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Este Castelo como já antes dissemos é, antes de tudo, o Castelo de Teresa, o da sua alma e da

sua vida. Mas não fica simplesmente nela. Estende uma espécie de ponte levadiça e
comunicante entre os dois Castelos, o dela e o nosso. A partir do seu humanismo e experiência
religiosa, sai uma espécie de fluido comunicante que vem do seu Castelo ao nosso.

A Santa Madre dirige-se a cada um de nós, numa atitude positiva, falando-nos da “dignidade e
formosura das nossas almas”. É assim que aparece logo no título do Capítulo I, dando uma
chave de leitura ao Capítulo inteiro. Diz assim: 
- Trata da dignidade e formosura das nossas almas 
- Põe uma comparação para se entender 
- Diz o lucro que há em entendê-la e saber as mercês que recebemos de Deus 
- E como a porta deste Castelo é a oração 

Sublinhemos a palavra “alma/almas”. A partir da primeira linha do livro, “alma e Castelo”


equivalem-se na linguagem simbólica da obra. Na nossa linguagem de hoje “alma e Castelo”
equivalem ao “homem”. Ela começará a falar “da dignidade do homem”. 

O mistério do homem 

É a primeira surpresa. Para introduzir o leitor neste “tratado” de vida espiritual ou de teologia
espiritual, a Santa Madre começa por falar do homem. E fá-lo em termos não só elogiosos, mas
com o máximo apreço possível da dignidade humana. Como boa pedagoga que é, apresenta
uma visão positiva, grandiosa, exaltada do homem. 

Temos que deixar bem assente, como uma pedra angular que o homem é o mais parecido com
Deus e que em si mesmo tem uma capacidade que o transcende: não só está feito à imagem
de Deus, mas é capaz de contê-Lo. O homem não só tem vocação para Deus, é chamado à
comunhão com Ele, mas o seu próprio ser humano está estruturado como “capacidade de
Deus”, como espaço-morada de Deus, mais e melhor que o cosmos inteiro. O homem é um ser
aberto a Deus e é o homem o cenário das relações com Deus. O encontro interpessoal, Deus-
homem, produz-se na interioridade. Por isso a Santa Madre diz: “Ponde os olhos no centro” (M
I, 2,8). É aí que está Deus, “o lugar onde está Deus” e também onde está o melhor do homem.
Pôr os olhos no centro é orientar a vida para as fontes do ser. Não há homem, ser, sem
interiorização, sem enraizamento em Deus e em si mesmo. Não se trata só de que Deus esteja,
mas de que se participe da Sua vida. O estar autêntico é participação de vida, é comunhão. 

A alma do homem é apresentada como um Castelo, “um Castelo todo de diamante ou de mui
claro cristal”. É uma jóia transparente e enorme, em cuja interioridade há muitos aposentos,
grande “como o céu, onde há muitas moradas”. 
Logo de seguida, a Santa Madre apresenta também o Castelo, como algo muito terrestre e
realista: um Castelo guerreiro, bem firmado na rocha do nosso corpo e, por dentro, cheio de
vida e de problemas… 

Ao longo do livro o Castelo seguirá um processo de iluminação interior; à medida que se


aproxima do centro, mais luz tem, pois Deus vive no centro, sempre, é uma Presença activa,

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criadora de vida, fonte de luz. 
O Castelo guerreiro desenrolará um processo de luta e de conquista. Será este segundo
simbolismo o que vai prevalecer, pois a Santa Madre tem alma de combatente e sabe bem que
a vida humana é um combate, e ela quer comunicar esta ideia ao leitor, para que este não
sucumba à tentação de imaginar uma falsa paz no caminho que o espera. 

Três pedras basilares: fundamentação bíblica do Castelo 

A Santa Madre, quase sem se dar conta, ao lado do símbolo do Castelo, recorreu ao apoio da
Palavra bíblica. Extraiu da Palavra de Deus três afirmações, que são três palavras bíblicas: 

- Que no Castelo da alma há muitos aposentos, “como no céu há muitas moradas”. É uma
palavra de Jesus no evangelho de João: “Na casa do Pai há muitas moradas” (Jo 14, 2). Já no
Caminho a Santa Madre tinha explicado que a alma do homem é o “céu de Deus”. 

- Que a alma do justo é um paraíso onde Ele diz ter as suas delícias. É uma palavra do Livro
dos Provérbios: a Sabedoria “tem as suas delícias em estar com os filhos dos homens” (Pr 8,
31). 

- E que o “próprio Deus nos criou à Sua imagem e semelhança”. É o célebre texto do Génesis:
“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (…) e criou Deus o homem à Sua imagem,
à imagem de Deus o criou” (Gen 1, 26-27). 
Este texto também esteve presente na experiência profunda de Teresa, como ela conta: “Como
estava [eu] espantada de ver tanta majestade em coisa tão baixa como a minha alma, entendi:
“Não é baixa, filha, pois está feita à minha imagem” (Relação 54). 

Através da experiência interior, essas três palavras bíblicas passaram ao tecido da vida e
convicções da autora, e agora convertem-se em pedras basilares do Castelo. 

E nós, acreditamos nestas maravilhas, que nos esperam no Castelo? 

Destas três palavras bíblicas, há uma que serve a Santa Teresa para fazer uma espécie de
catequese preparatória e para dizer a maravilhosa comunicação de Deus com o homem. Deus
é o centro da história que nos vai ser contada, é o protagonista da hominização (= salvação)
do homem. Por isso o Castelo narra o que Deus faz no e ao homem. Esta palavra bíblica que
ilustra esta comunicação de Deus com o homem é do Livro dos Provérbios. Depois de afirmar a
dignidade e formosura do homem, e ante as maravilhas que se encontrarão ao entrar no
Castelo, pergunta se tal é possível. Claro que é possível, pois o plano de Deus acerca do
homem é maravilhoso. Só conhecer esse plano nos deveria despertar a mais amor. Quem
puser isto em dúvida, é que muito dificilmente chegará a sabê-lo por experiência, “porque
Deus é muito amigo de que não ponham (não ponhamos) medida às suas obras”. 

Poderíamos escutar aqui aquela pergunta de Jesus: “Tu acreditas que posso fazê-lo…? Tudo é
possível para quem crê…”. 

E porque se comunica Deus? Para Se revelar. Deus manifesta-Se, dando-Se. Não dá porque
seja bom o homem, mas porque Ele é bom. É importante saber que Deus Se comunica para
nos despertar a amá-Lo. É preciso estar aberto a Deus que faz mercês, a “um Deus amigo de

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que não ponham medida às suas obras”, como já dissemos. 

Então é assim que Teresa abre o Castelo interior. Pronuncia uma palavra grande, profunda,
luminosa sobre Deus e o homem em relação de amizade. É como se nos esteja a dizer: com
este Deus vais tratar. Então abramo-nos, agora, desde já, a este Deus, ainda que não nos
apercebamos d’Ele em lado nenhum. É o segredo do “êxito” espiritual. 

Entrar no Castelo 

“Pois, voltando a nosso formoso e deleitoso Castelo, temos de ver como poderemos entrar
nele. 

Parece que digo algum disparate; porque, se este Castelo é a alma, claro que não se trata de
entrar, pois se é ele mesmo, pareceria desatino dizer a alguém que entrasse num aposento
estando já dentro. Mas haveis de entender que vai muito de estar a estar; que há muitas almas
que ficam à volta do Castelo”. (M I, 1,5) 

A Santa Madre sabe por experiência que o homem se pode esvaziar a si mesmo e derramar-se
como água no exterior. 

Destas duas vertentes, de interioridade e exterioridade, que tem o Castelo, esta segunda pode
cancelar a primeira. Podemos exteriorizarmo-nos até à alienação. Ao contrário, quem se
interioriza, converte-se em centro de gravidade do circundante. 

A este propósito a Santa Madre atreve-se a escrever uma palavra dura. O homem pode
afastar-se do interior de si mesmo, até se desconhecer e tornar-se quase animal, vivendo “à
roda do Castelo”, ou conviver no fosso do corporal e sensual “com as sevandijas e alimárias
que estão à roda do Castelo” (n. 6). E daí a palavra dura da Santa Madre: “Isto seria grande
bestialidade” (n. 2). Seria reduzir o homem à condição de animal. De tal forma era dura a
palavra usada pela Santa Madre, que o Padre Graciano, ao ler o manuscrito, mudou-a para
“abominação”. Mas a Santa Madre necessitava de dizer na forma mais forte possível que o
desalojar-se da própria interioridade é uma das maiores aberrações do homem. No estado de
“bestialidade” o homem não sabe quem é, carece de sensibilidade interior, espiritual. Vive fora
de si mesmo. Quando muito “sabem que têm alma” (n. 2), isto é, uma interioridade, vivendo à
roda do Castelo… não se lhes dando nada de entrar dentro, “nem sabem o que há naquele tão
precioso lugar, nem quem está dentro” (n. 5). 

Estas são almas tolhidas, almas sem oração. Destas ela não fala, mas só das que “entram no
Castelo”, isto é, aquelas que se convertem aos valores espirituais, mas arrastam a situação
anterior: “Almas acostumadas a estar em coisas exteriores…” (n. 6). São pessoas que vivem
em dispersão e derramamento, em exteriorização e, consequentemente, em debilidade
extrema. 

Por isso, não basta conhecer o Castelo, é preciso entrar nele. Como? 

A porta do Castelo 

A esta pergunta a Santa Madre responde com outra afirmação categórica: “Tanto quanto eu

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posso entender, a porta para entrar neste Castelo é a oração e reflexão” (n. 7). 

Para entrar no seu Castelo, há só uma porta: a oração. Ao ler estas palavras, Edith Stein ficou
muito admirada e desconcertada, e pergunta: “Quer isto dizer que nós os filósofos e psicólogos
não chegamos a entrar no recinto interior do castelo? Precisamente o psicólogo, que é por
definição o especialista da psique, não tem passagem livre ao interior da alma?” 

Edith Stein rapidamente caiu na conta da profunda visão da Santa Madre. Para ela, a
interioridade do homem tem algo de sagrado. O Castelo está habitado por Deus. Entrar nele é
relacionar-se com Deus na morada interior, aí onde a pessoa é pessoa, e se encontra com
outra Pessoa. É isso o que requer um gesto não profano, mas religioso. É uma tarefa reservada
à oração. Orar é passar a porta do Castelo e começar a relacionar-se de forma pessoal com
Deus, é entrar no conhecimento de Deus e de si mesmo, é converter-se a Deus e a si mesmo.
Diz a Santa Madre: “Enfim, entram”, ainda que seja “cheios de mil negócios”. “Já muito fazem
em ter entrado.” 

A oração serve para tipificar/definir a pessoa na sua totalidade, mostra a situação espiritual do
homem. Eis como nos apresenta a Santa Madre os moradores das Primeiras Moradas que
chegam a entrar no Castelo: 
Aspectos positivos: 
- “Têm bons desejos”. 
- “Algumas vezes, oram”. 
- “Procuram algumas vezes desocupar-se” das coisas do mundo. 
- “Andam com desejos de não ofender a Deus e fazer boas obras”. 
- Entram nas Primeiras Moradas, as mais baixas, e já muito fazem em ter entrado. 

Aspectos negativos: 
- “Muito metidas no mundo” 
- “Muito apegadas a eles” (negócios do mundo) 
- “Embebidas no mundo, e engolfadas nos seus contentamentos, e desvanecidas com suas
honras e pretensões” 
- “Não têm força os vassalos da alma (que são os sentidos e potências naturais que Deus lhe
deu), e facilmente estas almas são vencidas” 
- “Resiste menos, como quem tem em parte perdida a esperança de vencer” 

Ao ler estes aspectos positivos e negativos, damo-nos conta de que o alcance ascético do
esforço destas pessoas se valoriza mais pelo início do movimento de interiorização, do que
pelos resultados em si mesmos. Assomar ao mundo que levamos dentro de nós, Deus e o
próprio eu, revela já uma descoberta, ou pelo menos, um despertar “a algo mais”, “a algo
distinto”. Com esta descoberta, nasce a vontade de entrar, decidindo-se o homem a dar outra
direcção à sua vida, a cultivar outros valores. É uma entrada condicionada, já que tudo quanto
arrasta consigo não lhe permite “ver” as riquezas interiores.

A Santa Madre ressalta o positivo: “Enfim, entram”. É um verdadeiro triunfo, dada a atracção
que o “mundo” exerce sobre quem “anda engolfado” nele. O mundo não é só uma força que
nos atrai de fora, mas entrou dentro de nós, empapa-nos, estamos nele engolfados. E isto
provoca uma grande debilidade de todo o nosso ser: tira-nos energia para viver, sangra-nos,
embrutece-nos, isola-nos, tornando impossível toda a comunicação. O mundo rouba-nos o
melhor que temos: a nossa capacidade de relação, não nos deixando escutar a Deus, nem aos
outros, nem nos dizermos a eles. O mundo arrasta-nos atrás de si, desterrando-nos de nós

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próprios. Torna-nos de tal forma impotentes, que a Santa Madre diz: “Não há remédio nem
podem entrar dentro de si” (n. 6). 

Quem entra na Primeira Morada? 

A Santa Madre recordou ao longo do Capítulo, três episódios bíblicos singulares. São imagens
de quem, estando fora do Castelo, está convidado a entrar. Ei-las aqui: 
- A figura bíblica da mulher de Lot (Gen 19, 26), imagem daqueles que não olham para si, para
o interior. O homem exteriorizado converte-se em estátua de sal. 
- O paralítico da piscina de Betsaida, incapaz de se levantar para se lançar na água, mas que
tem a graça de se encontrar com Jesus que o cura (Jo 5, 2-8) 
- O cego de nascença, que logo começa a ver, graças ao encontro com Jesus (Jo 9, 7). 

O segundo tipo evangélico tem para a Santa Madre uma especial força significativa, como ela
narra: “Dizia-me há pouco um grande letrado, que as almas que não têm oração são como um
corpo paralítico ou tolhido que, embora tenha pés e mãos, não os podem mexer; e são assim:
há almas tão enfermas e tão habituadas às coisas exteriores, que não há remédio nem parece
que possam entrar dentro de si mesmas.” (M I, 1,6) 

Doentes, vítimas de certa atrofia espiritual, todos precisamos da graça de Jesus para nos
pormos a andar, e passar essa subtil barreira que faz de diafragma entre a esfera do sentido e
o mundo do espírito. Este paralítico é a imagem do homem sem oração, exilado de si próprio,
sem interioridade. 

Em síntese, se queremos entrar nas Primeiras Moradas, temos que caminhar sem olhar para
trás, e confiar em Jesus, que nos livrará das amarras misteriosas que nos impedem de
atravessar o umbral de nós mesmos. Jesus é a presença fortemente vivida ao longo de todo o
processo espiritual, ao longo das Moradas. Por isso a Santa Madre, logo desde o início deste
caminho, pede-nos para pôr os olhos em Cristo. Será Jesus quem dará luz aos nossos olhos,
para começarmos a ver as maravilhas do nosso próprio Castelo, e conseguirmos encontrar-nos
com Deus dentro de nós.

SEGUNDAS MORADAS

As Segundas Moradas são as moradas da luta e da perseverança, ou melhor ainda, da


perseverança na luta. “Grande guerra”, reza o título. Podemos dizer que o cenário das
Segundas Moradas é o de um campo de batalha, onde a pessoa e Deus se encontram em
relação constante. Apesar da prática da oração estar mais disciplinada, contudo fica ainda
muito por fazer e, por isso, é tempo de lutar, pôr os fundamentos e dar consistência à obra de
Deus.

A estratégia principal, apontada pela mistagogia nestas Segundas Moradas é “trabalhar e


determinar-se e dispor-se” (n. 8): 
- trabalhar, porque falta muito caminho por andar; 
- determinar-se, porque a vontade está muito frágil; 
- e dispor-se, porque a obra é de Deus e corresponde à pessoa acolhê-la adequadamente. 

É aqui que entra a mistagogia que indicará como se há-de realizar este trabalhar, determinar-
se e dispor-se. 

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Comparativamente à etapa anterior, a situação melhorou, mas torna-se mais dolorosa. A
pessoa entra numa tensão forte e numa luta entre dois mundos contrários entre si: Deus-
criaturas, interioridade-exterioridade, fé-natureza. Os moradores das Segundas Moradas têm
“mais trabalho” que os das Primeiras Moradas, porque entendem as exigências de Deus e
experimentam a sua impotência para responder. 
A tarefa que a pessoa vai desempenhar nestas Segundas Moradas é árdua e as tentações de
voltar atrás não são poucas, de maneira que a Santa Madre nos exorta: “Procuremos fazer o
que está em nossa mão e guardemo-nos das sevandijas; que muitas vezes quer o Senhor que
haja securas e nos persigam maus pensamentos e nos aflijam, sem os podermos afastar de
nós, e até algumas vezes permite que nos mordam, para que nós nos saibamos melhor
guardar depois e para ver se nos pesa muito de O ter ofendido” (n. 8). 

E exorta o orante a não desanimar, porque esta etapa é muito necessária e, sem ela, não irá
adiante: “Por isso, não vos desanimeis, se alguma vez cairdes, para deixar de ir por diante;
pois, dessa mesma queda, tirará Deus bem” (n. 9). 

Ao mesmo tempo que o convida a não desanimar, Teresa exorta-o ainda a pôr o olhar e o
coração no horizonte que está chamado a alcançar, dizendo: “Porque não são estas moradas
onde chove o maná; estão mais adiante, onde tudo sabe ao que uma alma quer, porque não
quer senão o que Deus quer” (n. 7). 
Para não dar com o edifício todo em terra, a Santa Madre apresenta um programa certeiro e
cheio de força. 

Portanto, como vemos, etapa de luta. Teresa não entende a vida cristã, como idílio, mas como
uma batalha. Já no Caminho de Perfeição tinha dito às suas Irmãs: “Encerradas lutamos”. Que
não viemos “a regalar-nos por Cristo, mas a morrer com Cristo”. Mais que o “jardim cerrado”
do Cântico dos Cânticos, cada Carmelo é “um Castelo assediado”. 
Com as Primeiras Moradas, a Santa Madre introduz o leitor dentro do Castelo, o mesmo é
dizer, na sua interioridade. Para se manter dentro do Castelo, isto é, na sua interioridade, a
pessoa tem que lutar. 
Este período de luta começa logo que o orante entra no Castelo da sua interioridade e
prolongar-se-á quase até às últimas moradas. 

Como os soldados selectos de Gedeão 

Tal como nas Primeiras e Terceiras Moradas, também aqui ao principiante das Segundas
Moradas, a Santa Madre lhe sugere um tipo bíblico, com o qual possa identificar-se: os
soldados de Gedeão. Coloca-o exactamente no centro da sua exposição, no n. 6 do Capítulo:
“Esteja sempre de sobreaviso para não se deixar vencer; porque, se o demónio a vê com uma
grande determinação de que, antes perderá a vida, o descanso e tudo o que ele lhe oferece,
do que voltar ao primeiro aposento, muito mais depressa a deixará. Seja varão e não dos que
se deitavam a beber de bruços, quando iam para a batalha, não me lembro com quem, mas
determine-se: vai pelejar com todos os demónios e não há melhores armas do que as da
Cruz”. 

Sublinhemos os traços fortes do parágrafo: 


- Não se deixar vencer 
- Ter grande determinação 

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- Vai para a batalha 
- Antes perder a vida e o descanso e tudo… 
- Que se determine a lutar com todos os demónios 
- Não voltar atrás, à Primeira Morada 
- Seja varão 
- Não há melhores armas que a cruz 
- Não procurar o próprio deleite 

Como vemos aparece um léxico e imagens que reflectem e prolongam o símbolo fundamental
do Castelo. Como sabemos do relato dos soldados de Gedeão, dos mais de trinta mil só ficaram
trezentos, isto é, os mais valentes. É o tipo do lutador afincado das Segundas Moradas do
Castelo. É claro que a Santa Madre retira também esta imagem da luta de São Paulo e dos
textos da Regra. 
Segundo Santa Teresa, não há perspectivas de vida cristã adulta – e menos ainda, mística
experiência de Deus – para cobardes, comodistas, preguiçosos e timoratos, nem para aqueles
que entram no Castelo com o sonho do idílio intimista. Por isso ela ridicularizará
insistentemente os directores espirituais “com senso demasiado”, que programam a entrada no
Castelo a “passo de galinha”. Ela prefere a imagem da águia. 

Lutamos… “dentro do Castelo” 

Já no Caminho de Perfeição usou esta estratégia. A batalha decisiva, combate-a o homem


dentro de si mesmo. Começava assim o Capítulo X daquele livro: “encerradas aqui nas
condições que estão ditas, parece que já temos tudo feito e que não há que pelejar com
ninguém. Ó minhas Irmãs, não vos tenhais por seguras, nem vos deiteis a dormir, pois
acontecer-vos-á como àquele que se deita muito sossegado, tendo fechado muito bem as
portas por medo dos ladrões, e os deixa em casa. E já sabeis que não há pior ladrão que o que
está em casa, pois ficámos nós mesmas” (C 10,1). 
“Não há pior ladrão que nós próprios”. Já nas Primeiras Moradas a Santa Madre tinha
apresentado como paisagem de fundo o pecado como força capaz de arruinar o Castelo.
Agora, nas Segundas Moradas, apresenta o pecado não como um facto pontual, uma batalha
perdida, mas superada definitivamente com o perdão e o regresso ao Castelo. O pecado é a
dinâmica do mal introduzida na vida humana e tem a sinistra capacidade de desencadear umas
forças de desordem, difíceis de desalojar das moradas do Castelo. 

A Santa Madre começou o seu livro com uma visão exaltante da beleza e dignidade humana,
mas não prolonga com uma imagem ingénua e angélica da vida. O homem é, ao mesmo
tempo, estas duas coisas: 
- beleza e dignidade no seu ser (beleza do Castelo); 
- luz e sombras, grandeza e miséria na sua história (vida no Castelo). 

A ordem interior não é um pressuposto ou um ponto de partida. Será conquista quotidiana,


morada após morada, e meta definitiva no mais profundo da alma. 
No simbolismo do Castelo, o pressuposto de fundo consiste em que o fosso que o rodeia (e
que simboliza estas dificuldades e ajustes entre corpo/espírito) é um ninho de sevandijas
molestas e víboras peçonhentas. São as forças de desordem introduzidas no Castelo pelo
pecado. Se não se combatem, avançam moradas adentro. E claro está: “Mas isso fizeram estas
coisas peçonhentas que tratamos; como alguém que é mordido por uma víbora se empeçonha
e incha todo, assim aqui, se não nos acautelamos” (n. 5). 

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Nestas imagens usadas pela Santa Madre, ela analisa a realidade do homem e propõe três
frentes de combate: 
- o interior: desordem e conflito dentro de nós próprios. Quem entra nas Segundas Moradas
sente-se desconfortável no próprio Castelo: “Poderá haver maior mal do que não nos acharmos
em nossa própria casa? Que esperança podemos ter de encontrar sossego em outras coisas, se
nas próprias não podemos sossegar? Mas tão grandes e verdadeiros amigos e parentes, com
quem (…) sempre havemos de viver, como são as nossas potências, parece fazerem-nos
guerra, como que sentidas da que lhes fizeram os nossos vícios” (n. 9). 
- o exterior: quem padeceu o mal do pecado, alienando-se em certo modo, e colocando o seu
centro de gravidade fora de si, agora sofre a atracção das coisas e pessoas que o subjugaram;
sofre o feitiço dessa solicitação, o prolongamento da sua tirania. Tem que recuperar terreno e
enfrentar-se com tudo isto para readquir a liberdade e o domínio de si. 
- o transcendente: os “demónios” dirá a Santa Madre. Ela acredita, como São ulo, que na luta
que trava todo o cristão, intervêm forças misteriosas que o superam (Ef 6, 11). A Santa Madre
acredita no demónio. Experimentou-o como encarnação da mentira e do mal. Contra estas
forças misteriosas há que estar vigilante no umbral do Castelo interior, porque “é terrível a
violência que aqui usam os demónios de mil maneiras” (n. 3). 

O porquê da luta 

Qual é o motivo deste programa de luta? Como será fácil concluir, combater não é a última
razão da vida nestas Segundas Moradas: luta-se para recuperar o equilíbrio interior. Luta-se
pela paz. Luta-se pelo que marca toda a ascese: a perfeição. Luta-se pelo Senhor do Castelo:
para poder fazê-lo digno d’Ele e entregar-Lho. Luta-se para olhá-Lo a Ele, não a nós. Luta-se
para fazer a Sua vontade, não a nossa. Basta escutar a escalada de objectivos propostos pela
Santa Madre nos seus textos: 
- “Paz, paz, minhas irmãs, disse o Senhor e admoestou os Seus Apóstolos tantas vezes. Pois,
crede-me que, se não a temos e não a procuramos em nossa casa, não a acharemos na dos
estranhos. Acabe-se já esta guerra; pelo Sangue que Ele derramou por nós o peço eu aos que
não começaram a entrar em si; (…) Olhem que é pior a recaída que a queda” (n. 9). 
- “Toda a pretensão de quem começa a ter oração (e não vos esqueça isto, pois importa
muito) há-de ser trabalhar e determinar-se e dispor-se, com quanta diligência puder, a fazer
conformar a sua vontade com a de Deus; (…) nisto consiste toda a maior perfeição que se
pode alcançar no caminho espiritual. (…) Não penseis que há aqui muitas algaravias nem
coisas não sabidas e compreendidas (…), que nisto consiste todo o nosso bem” (n. 8). 

Já no Caminho tinha escrito, a propósito da limpeza interior: “Ora, se enchemos o palácio de


gente baixa e de bagatelas, como há-de caber o Senhor com a Sua corte?” (C 28,12). 
Deve-se lutar por um amor limpo, gratuito, desinteressado, pois o grande erro inicial neste
caminho de oração-amizade e que vicia tudo é querer “logo que o Senhor faça a nossa
[vontade] e que nos leve como imaginamos” (n. 8). 

Fundo autobiográfico presente nas Segundas Moradas 

A Santa Madre ao apresentar este Capítulo tem, por base, as suas próprias vivências e
experiência. Vamos deter-nos um pouco, em concreto, na sua experiência pessoal e ver a que
período da sua vida correspondem as Segundas Moradas. 

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No relato da Vida referiu por extenso os altos e baixos das Segundas Moradas do seu próprio
Castelo: 
- primeiros anos da sua vida de Carmelita na Encarnação; 
- grandes fervores iniciais; 
- têmpera e paciência heróica na sua enfermidade; 
- oito meses de paralisia total na enfermaria, e “quase” três anos de lenta recuperação, de
modo que “quando comecei a andar de gatas, louvava a Deus” (V 6,2); 
- mas, sobretudo, o baixo dos anos cinzentos, o seu esfriamento no ideal religioso; 
- o andar “de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade” (V 8,12); 
- abandono da oração; 
- frouxidão na piedade eucarística; 
- conformismo na vida religiosa; 
- dispersão afectiva. 
Tudo isto na alternância dos grandes desejos e de luta consigo mesma: “Desejava viver, pois
bem entendia que não vivia, antes pelejava com uma sombra de morte e não havia quem me
desse vida nem a podia eu tomar” (V 8, 12). 

Este é, sem dúvida, o pano de fundo autobiográfico de vida e a experiência que a Santa Madre
tem presente, quando agora nos fala de luta e desordem nessa zona do Castelo, que são as
Segundas Moradas. Mas na primeira exposição do Livro da Vida, tinha completado o quadro
narrativo com uma série de conselhos doutrinais dados ao principiante, como complemento
indispensável da luta: 
- antes de tudo, que viva com alegria e se mova com liberdade (V 13, 1); 
- que ponha a sua confiança em Deus e “não apoucar os desejos”, que “Deus é amigo de
almas animosas”; 
- que faça seu o lema de São Paulo: “Tudo se pode em Deus”, e o de Santo Agostinho: “Dá-
me, Senhor, o que me mandas e manda o que quiseres” (V 13,3), e o lema pessoal de Santa
Teresa: “Desejos, sempre os tive grandes” (V 13,4); 
- que aponte alto, porque “vai muito de, nos princípios – ao começar a ter oração – não
apoucar os pensamentos” (V 13, 7); 
- humildade: é necessário estar fundamentado nela e amar a verdade: “espírito que não vá
fundado na verdade, eu mais o quisera sem oração” (V 13,16); e, para isso, que se alimente
com o pão da Bíblia: “apoiados nas verdades da Sagrada Escritura, fazemos o que devemos” (V
13,16); 
- não se refugie em devoções sem fundamento: “De devoções tontas, livre-nos Deus!” (V
13,16), etc. 

Todos estes conselhos de ascese condensá-los-á a Santa Madre no Caminho de Perfeição


nalguns princípios fundamentais: praticar o amor de umas para com as outras; desapego e
liberdade de espírito; humildade e franca disponibilidade para os desígnios de Deus; sede da
água viva; determinada determinação… 

No livro das Moradas, a Santa Madre vai reduzir ao essencial a paisagem das Segundas
Moradas: a vida é vivida no meio da luta. Os conselhos de Vida e Caminho são indispensáveis
para fazer uma ideia adequada da ascese Teresiana: viver e lutar! Aqui no Castelo preferiu
condensar o seu programa ascético no aspecto combativo, como São Paulo, em quem ela se
inspira, porque lhe interessa curar o principiante da ilusão da vida fácil dentro do Castelo. Não
é fácil viver como cristão. Por isso, a sua síntese das Segundas Moradas, poderia formular-se
assim: “No Castelo luta-se”. 

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Toda a lição que a Santa Madre deu às suas filhas, aplica-se igualmente a nós. Não nos
deixemos levar pelo comodismo, por soluções rápidas e fáceis, de reduzir a radicalidade do
Evangelho aos cânones de um humanismo bonacheirão. O que Teresa inculca é o mesmo que
Paulo escreve a Timóteo: “A fé um bom combate: luta para conquistar a vida eterna” (1 Tim
6,12). “Trabalha como bom soldado de Cristo… Não será coroado senão quem tiver lutado até
ao fim” (2 Tim 2,5). 
Também a Santa Madre o formulou assim nas Segundas Moradas: “Irmãs, abraçai-vos com a
cruz que vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deve ser a vossa empresa” (n. 7). 

Processo mistagógico das Segundas Moradas 

Nível teológico: Cristo cura com amor misericordioso 

A base teológica das Segundas Moradas está toda impregnada da presença do Deus de Jesus,
na sua dimensão crucificada. 
Antes de pretender qualquer avanço nestas Segundas Moradas ou progresso espiritual, há que
apresentar ao orante o rosto do verdadeiro Deus e como O há-de reconhecer; sem conhecer
este rosto, não poderá avançar. Como é o rosto de Deus nestas Segundas Moradas? Que face
nos apresenta Deus de Si? Será este rosto de Deus, conhecido pelo orante, que o fará avançar
e perseverar na luta. 
É um Deus que conhece a condição pecadora do homem, está presente na sua história, ama-o
com entranhas de misericórdia, procura-o, busca-o, espera-o e, no meio das muitas quedas e
tentações, sabe tirar bens dos males. 
A Santa Madre vai ainda mais longe quando afirma que Deus deseja a companhia da pessoa:
“… tem em tanto este Senhor nosso que O amemos e procuremos a Sua companhia …” (n. 2).
Isto só o pode dizer quem provou na sua vida a profundidade da misericórdia de Deus. Porque
Deus é, na verdade, um Deus presente mesmo no pecado do homem, é o verdadeiro amador
que cura, espera, e pede amor e companhia por parte da pessoa. Se assim é, porque nos
derramamos tantas vezes, naquilo que não sacia, nem traz qualquer bem, quando temos à
mão, e tão perto e desejoso de nós, este Deus de amor? 
O pecado – ao contrário do que está muitas vezes no inconsciente do homem, por uma má-
formação religiosa, de educação - não separa o homem de Deus. O pecado não é obstáculo
para que a graça se derrame, ao contrário, é o lugar, por excelência para derramar o amor,
porque o pecado é uma falta de amor que há no homem e só Deus pode encher este vazio de
amor. A misericórdia é este derramar-se do amor de Deus no vazio do homem, que não tem
amor, e a cura que se opera no homem é esta. Assim, “onde abundou o pecado,
superabundou a graça” (Rm 5,20), na pessoa de Jesus Cristo. 

Do mesmo modo, a Santa Madre quer que as Irmãs tenham isto muito bem presente, esta
imagem do Deus misericordioso, para poderem avançar espiritualmente: “Por isso, não vos
desanimeis, se alguma vez cairdes, para deixar de ir por diante; pois, dessa mesma queda,
tirará Deus bem” (n. 9). “Que muitas vezes quer o Senhor que haja securas e nos persigam
maus pensamentos e nos aflijam, sem os podermos afastar de nós, e até algumas vezes
permite que nos mordam, para que nós nos saibamos melhor guardar depois e para ver se nos
pesa muito de O ter ofendido” (n. 8). 
Concluímos assim que nem o próprio pecado tem força para separar a pessoa de Deus, se a
pessoa se deixa conduzir por Ele e procura fazer a Sua vontade (eis o segredo e esforço que o
homem tem que realizar), porque como diz a Santa Madre: “Tudo guiará o Senhor em nosso
proveito, embora não encontremos quem nos ensine” (n. 10). Porque Deus é um Deus que

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ama com radicalidade o homem e, se está presente na sua história, não é para outra coisa
senão para o amar, e isto é tudo. Deus é só Amor e não sabe fazer outra coisa senão amar. 

A pessoa pode saber isto por conhecimento intelectual, mas este não é suficiente. Será
necessário o fruto do trabalho assíduo na oração com Deus, de modo que esta convicção
cresce de tal maneira que deixa de ser uma lição aprendida, para passar a ser uma verdade
conscientemente experimentada. No trato assíduo da oração, este amor de Deus está activo e
opera na profundidade da pessoa. 
O trato com Deus é fonte inesgotável de cura numa estrutura quebrada, ferida e desorientada. 
Este processo de cura é lento e progressivo, mas a graça de Deus presente vai unificando,
reconstruindo e transmitindo vida nova ao orante. 

Mas, além deste Deus que cura, a Santa Madre atreve-se a apresentar nas Segundas Moradas
um Deus necessitado da pessoa, um Deus que ama e espera resposta de amor, um Deus que
cura, reconstrói o homem e deseja companhia. Teresa diz-nos isto com estas palavras: “Com
tudo isto [com o nosso pecado], tem em tanto este Senhor nosso que O amemos e
procuremos a Sua companhia que, uma vez ou outra, não deixa de nos chamar para que nos
acerquemos d’Ele. E é esta voz tão doce, que se desfaz a pobre alma por não fazer logo o que
lhe manda” (n. 2). 

Neste processo de encontro, Deus sempre esperará essa resposta em amor e a Santa Madre
diz ao orante das Segundas Moradas: “Bem sabe Sua Majestade aguardar muitos dias e anos,
em especial quando vê perseverança e bons desejos. Esta perseverança é aqui o mais
necessário, porque com ela jamais se deixa de ganhar muito” (n. 3). 

Por isso a tarefa da mistagogia é recomendar e exortar o orante a confiar e a esperar em


Deus, como também diz a Santa Madre: “Confiem na misericórdia de Deus e nada em si
mesmas, e verão como Sua Majestade leva a alma de umas moradas a outras e a mete
naquela terra onde estas feras não a podem tocar nem cansar” (n. 9). 

A confiança e a espera são difíceis de alcançar nas primeiras etapas do caminho, porque uma
pessoa em processo de encontro com Deus procura resultados imediatos, de todas as ordens:
na graça, no crescimento pessoal, na superação de infidelidades e pecados; esquece-se que as
realidades humanas não acontecem subitamente. Deus conhece a condição humana e vai ao
ritmo do homem, esperando acolhimento no seu devido momento. Se não avançamos mais
rapidamente, é porque os obstáculos e lentidão estão do nosso lado, não do lado de Deus.
Deus apenas acompanha o nosso ritmo e o respeita. 

Nível antropológico: um homem ferido e em caminho de interioridade  

O cidadão das Segundas Moradas tem duas características fundamentais: ferido e em caminho.
Enquanto ferido, está quebrado e desorientado “que não sabe se há-de passar adiante ou
voltar ao primeiro aposento” (n. 4). Descobriu o chamamento de Deus e, respondendo, leva
em si toda a sua história humana de quedas, rupturas, desconfianças, traumas e temores;
mas, simultaneamente, põe-se a caminho. Um caminho que o conduz a grandes alegrias,
novas descobertas e grandes possibilidades, mas em que, ao mesmo tempo, tudo está
confuso, misturado, a bulir no mais profundo. 

A Madre Teresa tem consciência desta realidade e, por isso, não deixa de dar os seus
conselhos, a partir da sua própria experiência. Os perigos são latentes e reais e não devem ser

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subestimados, porque a graça está a actuar com força, e o orante deve dar o salto da fé, na
confiança e no abandono, para continuar o seu caminho para a interioridade. 
Na sua complexidade, o orante das Segundas Moradas encontra-se interiormente dividido
porque, como diz a Santa Madre, por sua própria experiência: “que ainda estamos com mil
embaraços e imperfeições e as virtudes que ainda não sabem andar, pois só há pouco
começaram a nascer, e mesmo praza a Deus que estejam começadas” (n. 7). 

Ordinariamente, a pessoa que começa o caminho da oração, leva uma vida sem disciplina
espiritual e pouco exercício de virtudes; pelo que será necessário tomar consciência desta
fragilidade, assumi-la integralmente e pôr-se em caminho de conversão. Os começos são uma
tarefa difícil, pelo que o desânimo chega rapidamente e, contraditoriamente, há grandes
desejos de superar essa frágil condição com a maior celeridade possível. Diz a Santa Madre:
“Toda a pretensão de quem começa a ter oração (e não vos esqueça isto, pois importa muito)
há-de ser trabalhar e determinar-se e dispor-se, com quanta diligência puder, a fazer
conformar a sua vontade com a de Deus; (…) e estai bem certas que nisto consiste toda a
maior perfeição que se pode alcançar no caminho espiritual” (n.8). 

A vontade deve ser activada com afinco, tenacidade e perseverança até que as rupturas e
feridas sejam curadas progressivamente pela graça. Mas começou o caminho para a
interioridade e esta é a grande vantagem do cidadão das Segundas Moradas para a superação
da imobilidade, do passivismo e a indiferença. Pôs-se a caminho e percorre a senda mais
árdua: a que o conduz ao seu centro, à sua profundidade, ao seu coração. 

Nesta Morada a Santa Madre usa insistentemente o verbo “entender”, porque o orante nesta
etapa, tomou consciência de diferentes realidades: de si e de Deus. 
Teresa explicita três realidades do orante no começo da vida espiritual: 
- “Entendem” que é necessário avançar: “os que já começaram a ter oração e entendido
quanto lhes importa não se ficarem nas primeiras moradas” (n.2); 
- “Entendem” os perigos que existem: “têm muito mais trabalho que os primeiros, ainda que
não tenham tanto perigo; pois parece que já os entendem” (n.2). Os perigos de que fala a
Santa Madre são três: 
* não deixar as ocasiões (n. 2) 
* a guerra do demónio (n. 3) 
* as más companhias (n. 6) 
- “Entendem” os chamamentos do Senhor: “Assim, estes entendem os chamamentos que lhes
faz o Senhor; porque vão entrando mais perto onde está Sua Majestade” (n.2). 
A vida é, portanto, mais reflexiva (“entendem”) e menos impulsiva, se está em atitude de
maior escuta e com um carácter de realismo particularmente activo. 

Transformação: Certeza de estar “em casa” 

O estar em caminho de interiorização séria e disciplinada leva o orante das Segundas Moradas
a uma transformação significativa: 
- descobre-se possuído pelo Outro que o cumula, enche e excede a partir do mais profundo do
seu ser; 
- tem consciência de ter estado fora de si e compreende que este é o grande perigo; 
- centra-se cada vez mais em Deus; 
- está menos derramado. 

E os frutos que se vão adquirindo são: 

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- activação da esperança; 
- abertura ao amor; 
- segurança em Deus; 
- sossego; 
- desejos de encontro cada vez mais profundos. 

A vida adquire tonalidades novas, dinamiza-se a pessoa toda e o horizonte abre-se cada vez
mais. Sabe que ainda não chegou à meta, mas “há grande esperança que entrem mais
adentro” (n. 2). 
Deste modo, a busca da profundidade torna-se cada vez mais urgente, o orante experimenta
as doçuras de Deus, intui que no final do caminho o manjar será servido e sabe-se convidado
ao banquete; entrou em contacto com a fonte do verdadeiro Amor, um Deus Amigo que o ama
como é, pois “logo o entendimento acode dando-lhe a entender que não pode encontrar
melhor amigo, ainda que viva muitos anos” (n. 4). 
O orante abre-se ao exercício concreto do amor e procura corresponder amando: “a vontade
inclina-se a amar Aquele em quem tem visto tão inumeráveis coisas e mostras de amor, e
quereria pagar alguma” (n. 4). 

O lar é o lugar do calor, do acolhimento, da companhia, da segurança, da paz e do amor.


Assim o orante “chegou” a sua casa, deixa de estar derramado noutros lugares que lhe são
alheios e começa a possuí-lo, porque Deus: “lhe diz que está certo que, fora deste castelo, não
encontrará segurança nem paz; que se deixe de andar por casas alheias, pois a sua está cheia
de bens, se a quiser gozar; que ninguém acha tudo que há mister senão em sua casa, em
especial tendo tal Hóspede, que a fará senhora de todos os bens; se ela quiser não andará
perdida, como o filho pródigo, comendo manjar de porcos” (n. 4). 

Estar “em casa” é o grande fruto das Segundas Moradas e será uma grande loucura não estar
contentes nelas, isto é, dentro, na intimidade e ao calor do Bom Deus: “Poderá haver maior
mal do que não nos acharmos em nossa própria casa? Que esperança podemos ter de
encontrar sossego em outras coisas, se nas próprias não podemos sossegar? Mas tão grandes
e verdadeiros amigos e parentes, com quem embora não o queiramos, sempre havemos de
viver, como são as nossas potências, parece fazerem-nos guerra, como que sentidas da que
lhes fizeram os nossos vícios. Paz, paz, minhas irmãs, disse o Senhor e admoestou os Seus
Apóstolos tantas vezes. Pois, crede-me que, se não a temos e não a procuramos em nossa
casa, não a acharemos na dos estranhos” (n. 9). 

Forte interpelação para convidar a tomar consciência da importância da interiorização: a oração


e o trato constante com o Amigo. Será necessário, procurar a vontade de Deus, porque só
assim se alcançará a meta e a Santa Madre identifica-a com a perfeição da vida espiritual,
dizendo: “Toda a pretensão de quem começa a ter oração (e não vos esqueça isto, pois
importa muito) há-de ser trabalhar e determinar-se e dispor-se, com quanta diligência puder, a
fazer conformar a sua vontade com a de Deus; e – como direi depois –, estai bem certas que
nisto consiste toda a maior perfeição que se pode alcançar no caminho espiritual. Quem mais
perfeitamente tiver isto, mais receberá do Senhor e mais adiante estará neste caminho” (n. 8). 

Eis aqui a tarefa do mistagogo: não perder de vista o ponto de chegada (conformar a sua
vontade com a vontade de Deus) para que o acompanhado, o “mystes”, se vá adequando a ela
cada vez com maior radicalidade. 

E, finalmente, a Santa Madre leva o leitor a tomar consciência de que é para o céu para onde

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vão os cidadãos das Moradas e que a mediação para o alcançar é o caminho de encontro
permanente com o Rei das Moradas, que é actividade árdua e difícil, porque passa por assumir
as próprias misérias e a reconstrução da pessoa em Deus. O céu espera o orante, de modo que
diz a Santa Madre: “Ora, pensar que havemos de entrar no Céu e não entrar em nós,
conhecendo-nos e considerando nossa miséria e o que devemos a Deus e pedindo-Lhe muitas
vezes misericórdia, é desatino. (…) Pois, se nunca olhamos para Ele [para Jesus], nem
consideramos o que Lhe devemos e a morte que sofreu por nós, não sei como O podemos
conhecer nem fazer obras em Seu serviço” (n. 11). 

Princípios mistagógicos das Segundas Moradas 

Em Jesus chamados ao amor 

As Segundas Moradas são as do encontro com Jesus que chama para amar e a pessoa
experimenta a Sua grata companhia. Há a experiência sensível de se ter encontrado com um
Deus misericordioso que assume toda a realidade da pessoa, com feridas incluídas, e que não
Se escandaliza da sua história pecadora, mas pelo contrário, aceita-a incondicionalmente. 
É a etapa da tomada de consciência de Deus presente na própria história e na pessoa de Jesus
Cristo: um Deus feito homem, feito à medida de todos, que sabe rir e chorar, expressando o
Seu amor abertamente; e o caminhante “cai na conta” que em Jesus encontra respostas às
suas perguntas mais urgentes e vitais (é a tomada de consciência que marca o início do
Cântico Espiritual de São João da Cruz, CB 1,1). Por isso se interessará em conhecer Jesus,
recorrendo aos Evangelhos, onde descobrirá o Deus humanado que fala, come, anda, sua e
vive a existência de todo o mortal. 

Amizade com Jesus 

A partir do momento em que o orante experimenta que este Deus de Jesus é um Deus
próximo, que toma consciência da sua realidade e desce à sua condição, começa a “tratar de
amizade com Aquele que sabemos que nos ama” (V 8,5). A oração – trato de amizade –
consiste em discorrer, pensar, reflectir os mistérios da vida, morte e Ressurreição do Senhor. 

Lutar e ir adiante 

Todo o ambiente ordinário do orante, neste momento da vida espiritual, lhe é adverso e
tentará separá-lo do caminho começado. Não há que desanimar, porque inevitavelmente virão
quedas no meio de tantas tentações. A Santa Madre recordará que Deus presente não
desamparará a pessoa e que, apesar, de todas as dificuldades, Deus tirará bens e proveito de
tudo isso (cfr. n. 9). 

Não forçar a amizade com Jesus 

A meditação que o orante inicia está cheia de desejos de conhecer Jesus – já o dissemos – no
entanto, nos começos, apresentar-se-ão obstáculos que é preciso vencer. A pessoa não sabe
centrar-se nem recolher-se, os pensamentos vão e vêem, atormentando e distraindo; parece-
lhe ser impossível pacificar-se no próprio acto da meditação. É a cruz-secura na oração. Não há
que se angustiar, dirá a Santa Madre, porque não é pela força que se alcançará a comunhão e
amizade com Jesus: há que ir com suavidade (cfr. n. 10) e não lutar contra nós mesmos. Neste
sentido é recomendável ter breves espaços de meditação, sobretudo, em torno da pessoa de

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Jesus e deixar-se, confiadamente, ante a presença do Deus presente, que ama, acolhe e olha.
Há um texto da Santa Madre que ajuda a clarificar esta atitude referida: “Pois, voltando ao que
dizia, de pensar em Cristo atado à coluna, é bom discorrer um pouco e pensar nas penas que
ali teve e por que as teve e quem é Aquele que as teve e o amor com que as passou. Mas não
se canse em andar sempre a buscar isto, antes se fique ali com Ele, aquietado o entendimento.
Se puder ocupá-lo em ver que o Senhor o olha, e acompanhe-O, e fale, e peça, e humilhe-se, e
regale-se com Ele, e lembre-se que não merecia estar ali” (V 13,22). 
Deve-se rezar para não cair em tentação, isto é, orar nos momentos de tentação, nas
dificuldades, na tentação do egoísmo. Nunca edificar a oração sobre os “gostos”, pois dará com
o edifício da vida cristã em terra. 

Procurar ajuda 

Se nas Primeiras Moradas a Santa Madre recorda que é necessário a conversão como atitude
de vida a integrar, nas Segundas Moradas, será ainda mais explícita: há que deixar as más
companhias e procurar as boas (cfr. n. 6). As primeiras serão uma constante tentação para sair
do Castelo, enquanto que as segundas, ajudarão a continuar e a ir adiante. Chega o momento,
então, de se juntar com outros que, de igual modo, foram convidados pelo Rei das Moradas a
viver a plenitude e a ter mais certeza da opção tomada nas Primeiras Moradas. 

Fazer tudo o que se puder 

Começam a germinar grandes desejos de realizar serviços, no entanto, não estão dadas as
condições para levá-los adiante. Não há que ter ilusões nem pretender impossíveis, mas é
preciso ir com passo seguro e firme; daí que a Santa Madre anime a realizar o humanamente
possível (cfr. n. 8): pequenos serviços segundo o tempo e condição da pessoa. Este momento
não deve ser de grandes exigências nem responsabilidades, porque há que recordar que
juntamente com o ânimo que vai crescendo, as dificuldades e inconsistências começam
também a aparecer, coisa que o morador das Segundas Moradas não sabe integrar, pois a sua
fé não está ainda madura para acolhê-las e revertê-las. 

Conclusão 

Em síntese, poderíamos assim resumir as Segundas Moradas: 


1 - A vida de oração nestas Moradas apresenta um cariz áspero e duro, mortificante: 
* o homem quer orar e não pode. Procura a Deus e encontra-se com o muro da secura. 
*radicalmente, esta dificuldade deve-se a uma vida de dispersão, de exterioridade. A fé não
encontra ainda o seu lugar; e aparece mais outra razão: o homem é fundamentalmente
egoísta, procura-se a si mesmo, e não a Deus. 
2 - Há a tentação de abandono, de voltar à vida anterior, a claudicar. A esta tentação, a Santa
Madre opõe a perseverança que é uma palavra-chave nas Segundas Moradas. Não é ainda
nestas moradas que “chove o maná”. Está mais adiante. A perseverança tem uma razão
suprema: Deus. Ele espera e valoriza muito estes esforços iniciais. 
3 - Face a isto, a Santa Madre apresenta a noção da “substância” da perfeição-oração: aceitar
o OUTRO e abandonar-se às Suas iniciativas. Deus faz tudo bem feito. A pessoa é convidada a
amar com pureza, desinteressadamente, isto é, a “abraçar-se com a Cruz de vosso Esposo…”
sem condições. 
4 - Para que o Castelo que se começa a levantar não venha todo abaixo, é preciso sustentá-lo
sobre a confiança em Deus e desconfiança de si (n. 9). 

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5 - É ainda necessário procurar a ajuda e o apoio de quem se nos apresenta autenticado pela
experiência e letras. Sozinhos não podemos fazer o caminho. Devemos abrir-nos “com quem
trata do mesmo” (n. 6).

O homem das Terceiras Moradas tem que passar “a prova do amor”, que o vai libertar de
egoísmos e ilusões narcisistas na vida espiritual. É-lhe pedido que fixe um programa de vida
espiritual e de oração e se estabilize nele. Aparecem as primeiras manifestações de zelo
apostólico, mas sobrevêm a aridez e as fases de impotência como estados de prova: “Prova-
nos Tu, Senhor, que sabes a verdade…” (n. 9). 
Sob a perspectiva bíblica, o cristão das Terceiras Moradas: 
- é provado na sua autenticidade: como o jovem rico do Evangelho, como o Apóstolo Tomé
(“morramos por Vós…”); 
- vive em risco permanente, até se sentir personificado nas duas figuras paradigmáticas de
David e Salomão: um, que supera o risco da queda; o outro, que sucumbe nela. 

Como o jovem do Evangelho 

Mais um passo em direcção ao interior do Castelo…, e chegamos às Terceiras Moradas. O


primeiro passo neste processo consistiu em “entrar”. Entrar nas Primeiras Moradas equivale a
“começar”, ser de verdade o que cada um é no profundo de si mesmo e, a partir daí, pôr em
movimento um processo de vida e de relação com Deus e com os outros. 
No Castelo luta-se: é a segunda etapa do processo. Para ser e viver é preciso esforçar-se e
batalhar. Agora, ao passar das Segundas para as Terceiras Moradas, o orante espera que à
luta se siga a vitória e a paz. Mas não vai ser assim. A Santa Madre vai falar-lhe, ainda, de uma
etapa de ascese, vigilância e esforço. Vai falar-lhe da prova do amor, dos riscos de ilusão e
narcisismo, da passagem por uma espécie de adolescência do espírito. 

Nesta nova etapa Teresa não teme tanto as novas provas, mas a própria pessoa, isto é, a
Santa Madre teme que a situação espiritual se converta em pedra de tropeço para o próprio
orante: 
- por apoiar-se em si mesmo, naquilo que já fez; 
- para exibi-lo como título diante de Deus; 
- por ficar parado como se tivesse feito tudo: “Passai adiante de vossas obrazitas” (n. 6). 

Para chamar a atenção do leitor da importância de uma leitura atenta, recomenda: “Olhai
muito, filhas, a algumas coisas que aqui vão apontadas, ainda que atabalhoadas” (n. 9). 

Nesta etapa Deus actua, responde aos esforços da pessoa, mas não como o orante espera.
Deus não se faz presente “premiando” e aprovando, mas provando. Deus entra em cena
provando-nos, revelando-nos a nossa verdade moral íntima, oculta no meio de tantas “obras”
ascéticas. 
Vai ser o refrão destas Moradas Terceiras: o homem é submetido por Deus à prova do amor.
Como diz a Santa Madre: “provemo-nos (…) ou prove-nos o Senhor” (n. 7); ou ainda: “Prova-
nos, Tu, Senhor, que sabes a verdade, para que nos conheçamos” (n. 9). O homem engana-se
a si mesmo e Deus inicia a sua ofensiva declarando-lhe a verdade da sua vida. 

A Santa Madre vai apresentar-nos um Deus que não Se dobra aos desejos do homem, mas um
Deus que age transcendentemente e, por isso, desconcerta. 
A acção de Deus vai pôr de manifesto a inconsistência e pobreza do que o homem fez até aqui:
“Passai adiante das vossas obrazitas” (n. 6); e “Ainda é mister mais para que de todo o Senhor

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possua a alma” (n. 5). 
Nada do que fizemos nos dá direito a nada: “Não peçais o que não tendes merecido, nem
havia de nos vir ao pensamento que, por muito que sirvamos, o havemos de merecer” (n. 6);
“Tenha-se por servo inútil”. Deus não vem atrás “pagando”, mas vai à frente abrindo caminho
de graça. 
Com esta sua acção, Deus faz ver ao homem a sua soberba espiritual: o homem quer dominar
e submeter Deus, que Ele Se dobre às suas obras. Por isso, a prova rompe os esquemas
espirituais que tinham regido o homem até agora, ao mesmo tempo que lhe abre o caminho a
seguir: deixar-se conduzir por Deus. 
Diante de todas as “obras” feitas até aqui, o “negócio” está em render a nossa vontade à de
Deus, como veremos no capítulo seguinte. E esta será a grande viragem da vida espiritual. 
Deus introduz o orante na aceitação do protagonismo de Deus na sua vida, a partir de uma
passividade activa da sua parte. Nesta etapa Deus começa a dar a conhecer que é Ele que
assume a iniciativa, actua, “embora muitas vezes não o queremos entender” (n. 7). 

E, por isso, vem a secura e falta de ânimo, um sentimento de desencanto. Deus defrauda. A
secura e a rudeza revelam a falta de humildade, isto é, a pouca verdade em que caminha a
pessoa, que não se abandona a Deus. Diz a Santa Madre: “não posso acabar de crer a quem
tanto caso faz destas securas, senão que é um pouco falta dela” [humildade] (n. 6). 

O orante tinha clamado a Deus para que se lhe comunicasse. Deus fá-lo agora e, como o
jovem rico do Evangelho, “lhe voltamos as costas (…) quando nos diz o que havemos de fazer”
(n. 7). 

Temos aqui a caracterização das “almas concertadas” e da nova fase que se inaugura nestas
Terceiras Moradas. 

Como se apresenta o orante das Terceiras Moradas? Apresenta aspectos positivos e aspectos
negativos. 

Aspectos positivos: 
- “Muito desejosos de não ofender Sua Majestade”; 
- “Por coisa alguma fariam um pecado”; 
- “Amigos de fazer penitência”; 
- “As suas horas de recolhimento”; 
- “Gastam bem o seu tempo”; 
- “Gastam bem sua vida e fazenda”; 
- “Exercitam-se em obras de caridade”; 
- “Decerto que é estado para desejar”; 
- “Bela disposição” para chegar às Sétimas Moradas. 

Aspectos negativos: 
- “Almas concertadas”; 
- “Dar-lhes conselho, não é remédio”; 
- “Parece-lhes que podem ensinar a outros”; 
- “Canonizam [as suas faltas] … e assim queriam que outros as canonizassem”; 
- “Quereriam a todos tão concertados como eles trazem suas vidas”; 
- “Que todos vão pelo seu caminho”; 
- “Penitências concertadas”; 
- “A sua razão está muito em si”; 

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- Agem “com tanto senso” e “grande discrição”. 

A Santa Madre aprecia aquilo que o orante destas Moradas faz, chama-lhe “bem-aventurado”,
mas põe a tónica no aspecto negativo: o estado em que vive é mais aparente que real. Precisa
de uma orientação de fundo, reorientação que não fará por si mesmo, porque não vê que a
necessita e porque está incapacitado moralmente para levá-la a cabo. Por isso intervém Deus
com uma intervenção de amor: Deus quer que estas almas “passem adiante”. Esta acção de
Deus revela o fundo de egoísmo do orante que permanece intacto sob a aparência de uma vida
espiritual “concertada”, minuciosa e cuidadosamente programada. 

O orante das Terceiras Moradas é acreditado pelas suas obras, são o seu troféu, o pedestal
sobre o qual se eleva, como veremos no capítulo seguinte. Considera-se o “cânon” e “norma”
de todos, ensinando a todos e não se deixando ensinar por ninguém. E diante de Deus
apresenta-se com exigências, pensa que Deus lhe está obrigado a fazer mercês, a regalá-lo na
oração. 

Podemos dizer que o orante das Terceiras Moradas fez muitas coisas, mas ficou intacta a
pessoa. Dá coisas, não se dá. Confia só nas suas obras. Faltou-lhe o amor que é saída de si,
esquecimento de si, viver só por Ele e, para ser curado, o orante das Terceiras Moradas tem
que reconhecer que lhe falta humildade, como veremos também no capítulo seguinte. 

Em conclusão, podemos dizer que a libertação do “eu” do orante está por fazer. E esta
libertação só se dá quando o homem se abandona e se confia incondicionalmente, em
movimento de amor, nas mãos do Outro. A mudança a que é chamado o orante é dar-se a si
mesmo com amor puro, sem interesse, por Deus somente. É dar gratuitamente. 

Veremos ainda no capítulo seguinte que o orante é chamado a entregar a sua vontade a Deus
e que é o interior, a vontade, que tem que ser curada. A pessoa cura-se na medida em que se
abre total e radicalmente a Deus, rompe o cerco do “eu”, num movimento de amor e doação.
Este é o “negócio”, não a multiplicação das obras externas. 

Cristo nas Terceiras Moradas 

A figura de Jesus afirma-se e cresce nestas Moradas como “modelo” da nossa vida. Apresenta-
se como Caminho e o orante é chamado a segui-Lo. Ele “pede-nos que deixemos tudo por Ele”,
já que a perfeição está em segui-Lo por caminhos de amor, que consistem em servir o
próximo. O orante é convidado a morrer por Cristo: a morrer ao egoísmo, aos temores e
medos que nascem da natureza, e a viver em comunhão de amizade com um “Deus tão
generoso que morreu de amor por nós”. É convidado a viver as exigências do amor, tal como o
expressou Cristo, a pôr toda a sua confiança e apoio n’Ele. 

Também a Santa Teresa passou por esta etapa: 


Vocação das suas Terceiras Moradas 

Quando a Santa Madre escreve estas páginas das Terceiras Moradas tem já mais de sessenta
anos de idade e claro que tem presente na sua memória a sua passagem por elas. Esta etapa
na vida da Santa Madre ocupa um período demasiado prolongado, cheio de vaivéns e
incertezas. Foi a década dos seus trinta anos, iniciada provavelmente como consequência da

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morte de D. Alonso, seu pai, quando ela entrava nos seus vinte e nove anos. 

A morte de D. Alonso fá-la regressar, uma vez mais, “à verdade de quando era criança”: que
“tudo passa”, que “tudo é nada”… Recupera os seus ideais, a sua tábua de salvação que é a
oração, a sua determinada determinação de viver a sério a sua consagração religiosa, de ser
coerente consigo mesma e com a voz misteriosa que a chama a partir de dentro. 
Mas, neste período tudo em Teresa é tão frágil, tão quebradiço... Faz e desfaz. Luta e
sucumbe. Escreveu no Livro da Vida: “Quisera eu saber descrever o cativeiro em que, nestes
tempos, trazia a minha alma. Bem entendia eu que estava cativa, mas não acabava de
entender em quê (…) Desejava viver, pois bem entendia que não vivia, antes pelejava com
uma sombra de morte e não havia quem me desse vida nem a podia eu tomar. E Quem ma
podia dar tinha razão de não me socorrer, pois tantas vezes me havia chamado a Si e eu O
havia deixado” (V 8, 11-12). 
O mesmo estremecimento se apodera da sua alma e da sua pena ao abordar agora o tema nas
Terceiras Moradas: “Certo é, minhas filhas, que estou com não pouco temor escrevendo isto,
pois não sei como o escrevo nem como vivo, quando disso me lembro muitas, muitas vezes.
Pedi-Lhe, minhas filhas, que Sua Majestade viva sempre em mim; porque, se não for assim,
que segurança pode ter uma vida tão mal gasta como a minha? (...) Mas bem sabe Sua
Majestade que só posso presumir da Sua misericórdia; e, já que não posso deixar de ser a que
tenho sido, não tenho outro remédio, senão acolher-me a ela e confiar nos méritos de Seu
Filho e da Virgem, Sua Mãe…” (n. 3). 

Aquilo que a Santa Madre recorda da sua vida nestas Terceiras Moradas, servirá de pano de
fundo à exposição que ela vai fazer desta zona do Castelo. 
Teresa está convencida de que todos temos que passar por uma experiência semelhante à sua.
É a experiência agridoce da própria fragilidade, com alternâncias de auto-suficiência e de
incoerência, de ilusões e humilhações, de firmes determinações e de dúvidas envolventes e
totais; experiência da própria insegurança radical e necessidade de descobrir a misericórdia
amorosa de Deus como tábua de salvação. 

Quatro tipos bíblicos 

Tal como sucedeu nas outras Moradas anteriores, Teresa recorre espontaneamente a quatro
personificações bíblicas. Um dos tipos bíblicos, elabora-o ela própria a partir de um salmo
sapiencial. O outro toma-o directamente do Evangelho. Vai utilizá-los como verso e reverso
desta etapa do caminho espiritual. 
A Santa Madre inicia assim as Terceiras Moradas: “Àqueles que, pela misericórdia de Deus,
venceram estes combates e com perseverança entraram nas Terceiras Moradas, que lhes
diremos, senão «bem-aventurado o varão que teme o Senhor»? (...) Por certo, com razão o
chamaremos bem-aventurado, pois, se não volta atrás (…), leva caminho seguro na sua
salvação” (n. 1). 
Neste quadro de luzes e sombras das Terceiras Moradas, o lado luminoso está plasmado nesta
personagem do salmo 111: “Bem-aventurado o que teme o Senhor”. Bem-aventurado,
enquanto se mantém no temor do Senhor. 
Na linguagem bíblica, temor do Senhor, não é medo de Deus. Significa respeito e consciência
amorosa do seu papel de Deus: teme o Senhor quem “ama de coração os seus mandamentos”
(v. 2). 
E prossegue o salmo apresentando este “varão ditoso”: 
- “Em sua casa haverá abundância e riqueza” (v. 3); 

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- “O seu coração está firme no Senhor” (v. 7); 
- “O seu coração é inabalável, nada teme” (v. 8); 
- “Reparte com largueza pelos pobres, a sua generosidade permanece para sempre” (v. 9); 
- “Os desejos dos ímpios saem frustrados” (v. 10). 

Os traços fundamentais retidos pela Santa Madre nesse tipo bíblico são a segurança e a bem-
aventurança. No Castelo, as Terceiras Moradas são um seguro de vida só se o morador delas
deposita toda a sua confiança em Deus. Uma tarefa desta etapa espiritual é educar-se para
uma ilimitada confiança n’Ele. Só a ilimitada confiança n’Ele poderá salvar-nos da instabilidade
e insegurança permanente de nós próprios. Na realidade, o refúgio seguro não é o meu próprio
Castelo; só Deus é garantia de segurança para a minha insegurança e os meus medos. 

O segundo tipo bíblico é o reverso da medalha. Já não é uma imagem ideal como a do salmo,
mas um jovem de carne e osso, muito parecido com a Teresa dos seus trinta anos. Na cena
evangélica, narrada por São Mateus, esse jovem vem à procura de Jesus com alma generosa.
Fez tudo bem desde a sua juventude. O que é pena é que tenha feito tudo, menos o que lhe
propôs Jesus. E o jovem retira-se entristecido (Mt 19,16-22). 

Sem dúvida que Teresa se revê nesta personagem do Evangelho. Este jovem, tão depressa
generoso como tacanho, é a imagem viva dos trinta anos da Santa Madre, quando ela oferecia
ao Senhor a jóia da sua vontade (o seu amor íntegro), e outras vezes lha retirava, quando o
Senhor estendia a mão para a tomar. Já no Caminho de Perfeição tinha recordado esse gesto e
tinha-o narrado assim: “Não são zombarias estas que se façam a Quem tantas fizeram por
nossa causa; (…) Dêmos-Lhe a jóia de uma vez para sempre, pois tantas tentámos em Lha
dar; (…) Somos repentinamente generosos, e depois tão tacanhos, que, em parte, mais valera
que nos tivéssemos detido em dar” (C 32, 8). 

O morador das Terceiras Moradas deve rever-se no jovem do Evangelho e empenhar-se na


complexa tarefa da generosidade, para com Deus e com os Irmãos. Não só oferecer e
oferecer-se (“Vossa sou, para Vós nasci, que mandais fazer de mim?”), mas recuperar-se da
humilhação do fracasso e das incoerências da própria generosidade juvenil. Sobretudo, deve
esforçar-se em algo mais difícil: aceitar que Deus tome a iniciativa, para além dos seus
projectos de generosidade. Mesmo quando a acção d’Ele me apanhe de surpresa na minha
vida; quando há intromissão dos outros no que é meu; ou nos acontecimentos que se
atravessam à frente do meu programa espiritual; ou ainda quando Ele expressamente me
ultrapassa e desfaz os meus esquemas, como ao jovem do Evangelho. 

O terceiro tipo bíblico é o Apóstolo Tomé: “Morramos com Ele”. É uma personagem que se
mostra cheia de arrojo e valentia, decisão de seguir o Senhor nos perigos e dificuldades, mas
que vacilará no momento da morte e ressurreição do Senhor. 

O quarto tipo bíblico é, como já referimos, David e Salomão. São dois exemplos de pessoas
muito dadas a Deus e favorecidas por Ele mas que desfaleceram na perseverança do bem. Diz
a Santa Madre: “Duma coisa vos aviso: que nem por ser tal e ter tão boa Mãe, estais seguras,
que muito santo era David, e já vedes o que foi Salomão; nem façais caso do encerramento e
penitência em que viveis, nem vos assegureis por tratardes sempre com Deus e exercitar-vos
na oração tão continuamente e estardes tão retiradas das coisas do mundo e tê-las, a vosso
parecer, aborrecidas” (n. 4). 

Etapa de imaturidade espiritual? 

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Se formos à raiz da palavra grega, em Mateus, este apelida o jovem de adolescente
(“neaniskos”): “Ao ouvir Jesus, o adolescente saiu entristecido, porque possuía uma grande
fortuna” (19,22). 
Na realidade a etapa que a Santa Madre descreve nas Terceiras Moradas corresponde a uma
espécie de “adolescência do espírito”, com os típicos traços dessa etapa da vida humana. Estes
aspectos vai desenvolvê-los a Santa Madre, analisando-os e caracterizando-os melhor, no
capítulo seguinte. Neste capítulo primeiro cingir-se-á a oferecer os traços principais e a
preparar o leitor para tomar consciência de que vai passar por esta zona da sua vida
espiritual. 

Como poderíamos caracterizar esta adolescência do espírito? 

- Adolescência do espírito é, podemos dizer, esse gesto de arrojo e generosidade primária,


como a do Apóstolo Tomé na subida a Jerusalém: “Vamos e morramos com Ele” (Jo 11,16),
mas logo se converte em obstinação e resistência diante de Jesus morto e ressuscitado. 

- Adolescência do espírito é uma atitude de segurança fictícia, minada pela realidade de uma
insegurança de fundo, diante das dificuldades que necessariamente hão-de sobrevir no
caminho. 

- Adolescência do espírito é a arrogância mal dissimulada, a fé secreta em si mesmo, a


convicção de que na vida do espírito – como na profissional – a iniciativa vem de nós próprios,
e que Deus e o Seu amor colaboram como alguém de segunda. Daí que estes tais “não podem
levar à paciência que se lhes cerre a porta para não entrar aonde está o nosso Rei, por cujos
vassalos se têm e o são” (n. 6). 

E a Santa Madre conclui o capítulo com uma oração: “Que poderemos fazer por um Deus tão
generoso, que morreu por nós e nos criou e nos dá o ser, que não nos tenhamos por
venturosos em que se vá descontando alguma coisa do que Lhe devemos pelo que Ele nos tem
servido (…)? (n. 8). E conclui com uma petição final: “Prova-nos, Tu, Senhor, que sabes a
verdade, para que nos conheçamos” (n. 9). 

Precisamente esta última invocação insinua o tema que irá desenvolver no Capítulo seguinte. É
necessário que o Senhor – que sabe as nossas verdades – nos submeta à prova do amor.
Passar esta prova do amor marcará a passagem de fronteira para as Quartas Moradas.

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