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‘A Encarnação’,

de Romano Guardini

Estado da Arte
24 Dezembro 2018 | 18h00

https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/romano-guardini-a-encarnacao/

De O Senhor (Der Herr), 1937.

“A fuga para o Egito” de Giotto di Bondone (c. 1337), na série de afrescos sobre a Vida de
Cristo da Capella Scrovegni em Pádua.

A liturgia de Natal inclui estes belos versos do capítulo décimo oitavo do Livro da
Sabedoria: “Pois enquanto todas as coisas estavam em sereno silêncio e a noite estava no
meio de seu curso, teu verbo poderoso desceu do céu, do teu trono real. . . .” A passagem,
transbordando com o mistério da Encarnação, é maravilhosamente expressiva da infinita
quietude que pairou sobre o nascimento de Cristo. Pois as maiores coisas são realizadas no
silêncio – não no clamor e exibição de uma comoção artificial, mas na profunda claridade da
visão interior; no quase imperceptível início da decisão, na superação silenciosa e no
sacrifício oculto. A concepção espiritual acontece quando o coração é vivificado pelo amor e
o livre arbítrio suscita a ação. As forças silenciosas são as forças fortes. Voltemo-nos agora
ao mais silencioso evento de todos, o mais silencioso porque ele veio de uma distância
recôndita além do ruído de qualquer possível intrusão – de Deus. Lucas relata:

No sexto mês o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada
Nazaré, a uma virgem noiva de um homem chamado José, . . . e quando o anjo se aproximou
dela, ele disse, ‘Ave, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as
mulheres.’ Quando ela o ouviu sentiu-se atribulada com suas palavras, e ficou ponderando
que tipo de saudação podia ser aquela.
E o anjo disse a ela, ‘Não temais, Maria, pois encontrastes graça junto a Deus. Eis que
concebereis em vosso seio e dareis à luz um filho; e vós o chamareis Jesus. Ele será grande, e
será chamado Filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi seu pai, e ele será
rei sobre toda a casa de Jacó para sempre; e o seu reino não terá fim.’

Mas Maria disse ao anjo, ‘Como se dará isso, já que eu não conheci nenhum homem?’

‘E o anjo respondeu a ela, ‘O Santo Espírito virá sobre vós e o poder do Altíssimo
descerá como uma sombra; e por isso o Santo que nascerá será chamado Filho de Deus.’ . . .

E Maria disse, ‘Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra.’ E
o anjo a deixou.

O quão silenciosamente tudo ocorreu é claro pelo seguinte: quando ficou evidente que
Maria estava grávida, José, a quem ela fora prometida, quis anular o noivado, pois ele
pensou que ela tinha sido infiel a ele; ele é louvado por planejar “repudiá-la privadamente” a
fim de não expô-la ao escândalo, pois ela era certamente muito cara a ele (Mt 1, 19). O que
aconteceu é tão impenetravelmente profundo que Maria não pode falar disso sequer a seu
futuro marido, e o próprio Deus precisa informá-lo.

Subjacente a profundezas que com suficiente reverência podemos ao menos começar


a sondar, as profundezas insondáveis de Deus, pois é a ele que os versos de abertura deste
capítulo se referem:

No começo era o Verbo, e o Verbo estava com Deus;

Deus está sendo descrito. Com ele está alguém mais, alguém chamado “o Verbo”; ele é
a expressão do sentido e da plenitude de Deus, Primeira Pessoa, Aquele que fala o Verbo.
Esta Segunda Pessoa também é Deus, “era Deus,” contudo há somente um Deus. Depois, a
Segunda Pessoa “veio” para o que era seu: para o mundo que ele criara. Consideremos
cuidadosamente o que isso significa: o Criador eterno, infinito não somente reina sobre o
mundo mas, num momento específico, cruzou uma inimaginável fronteira e pessoalmente
entrou na história – ele, o remoto e inacessível.
Como podemos representar melhor a relação de Deus com o mundo? Imaginando-o
como alguém que, tendo criado o mundo, vivia em algum lugar ‘lá em cima,’ eternamente
remoto e ditosamente suficiente a si mesmo, contente por permitir à criação que gire
automaticamente ao longo de seu curso estabelecido? Ou ele deve ser considerado
algo no mundo, a própria causa original do mundo, o Urgrund, um Poder criativo que
permeia todas as coisas, que não são senão a expressão material de sua essência? A
primeira concepção o isola numa inalcançabilidade celestial. A segunda o tornaria a essência
de tudo aquilo que existe. E a Encarnação? Houve alguma vez um homem tão
completamente embrenhado na ideia divina, tão inflamado pelo divino amor, que se
pudesse dizer dele: o próprio Deus fala nele? Ou talvez: Deus se expressa em todas as coisas,
em todos os povos, mas em uma pessoa em particular essa expressão foi tão poderosa e
clara que se pode dizer: nele Deus apareceu corporalmente na terra? É imediatamente
evidente que nenhuma dessas interpretações é fundada na Santa Escritura.
O relato da Revelação sobre a Encarnação e a relação de Deus com o mundo é algo
fundamentalmente diferente. De acordo com a Bíblia, Deus entrou no tempo de uma
maneira específica, agindo por uma decisão autocrática tomada em plena liberdade. O Deus
livre e eterno não tem um destino que seja uma matéria para mortais vivendo na história. O
que se entende é que Deus entrou na história, tomando assim o destino sobre si mesmo.

Contudo, esta jornada de Deus desde a eternidade até o transitório, a passagem


através da fronteira para a história, é algo que nenhum intelecto humano pode
compreender totalmente. A mente pode até opor o aspecto humano aparentemente
fortuito desta interpretação com a sua própria ideia ‘mais pura’ de divindade; porém
precisamente aqui se esconde o núcleo do cristianismo. Ante tal pensamento inaudito o
intelecto atola. Certa vez neste ponto um amigo me deu uma pista que me ajudou a
entender mais do que qualquer medida da mera razão. Ele disse: “Mas o amor faz dessas
coisas!” Repetidas vezes essas palavras ajudam quando a mente empaca em algum impasse
intelectual. Não que elas tenham explicado o que quer que seja à inteligência: elas
despertam o coração, capacitando-o a sentir o seu caminho rumo ao segredo de Deus. O
mistério não é compreendido, mas se move para mais perto, e o perigo do “escândalo”
desaparece.

Nenhuma das coisas grandes na vida humana aflora do intelecto; cada uma delas
desponta do coração e do seu amor. Se mesmo o amor humano tem as suas próprias razões,
compreensíveis apenas pelo coração que está aberto a elas, quanto mais verdadeiro isso
deve ser em relação ao amor de Deus! Quando é a profundidade e poder de Deus que atiça,
há algo do qual o amor seja incapaz? A sua glória é tão avassaladora que para todos aqueles
que não aceitam o amor como um ponto de partida absoluto, a sua manifestação deve
parecer a mais insensata loucura.

O tempo avança. José, introduzido por Deus, toma a sua esposa prometida para si.
Quão profundamente esta instrução deve ter penetrado para mover este homem sóbrio!
Como ele deve ter se sentido antes de ter se dado conta de que Deus pusera sua mão sobre
sua futura esposa, e de que a vida que ela havia concebido era do Espírito Santo! Neste dar-
se conta despertou o grande e gozoso mistério da castidade cristã (Mc 1, 19-25). Lucas
continua: “E José também partiu da Galileia desde a cidade de Nazaré até a Judeia à cidade
de Davi, que é chamada Belém – porque era a casa e a família de Davi – para se registrar,
junto com Maria sua esposa, que estava grávida. E aconteceu que enquanto eles estavam lá
chegou a hora. E ela deu à luz seu primogênito, e o envolveu em faixas, e o colocou numa
manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.”

O que acabávamos de tentar compreender na obscuridade da ação divina agora se


mostra a nós numa forma visível. Inicialmente uma criança como qualquer outra, ele chora,
tem fome, dorme, e ainda assim “o Verbo . . . se fez carne.” Não se pode dizer que Deus
“habita” nesta criança, por mais gloriosamente que seja; ou que o céu pôs o seu selo sobre
ele, de modo que ele deve perseguir isso, sofrer por isso de um modo que supera
sublimemente todos os outros contatos entre Deus e o homem; esta criança éDeus em
essência e na existência.
Se um protesto interior emergir aqui, dê espaço a ele. Não é bom suprimir nada; se
tentarmos, isso só vai para o subterrâneo, se torna tóxico, e reaparece mais tarde de uma
forma muito mais abominável. Alguém se opõe à ideia inteira de Deus-feito-homem? Estará
predisposto a aceitar a Encarnação somente como uma profunda e bela alegoria, jamais
como uma verdade literal? Se a dúvida pode afundar uma âncora em algum lugar em nossa
fé, é aqui. Então devemos ser pacientes e reverentes, aproximando-nos deste mistério
central do cristianismo com uma atenção calma, esperançosa, e suplicante; um dia o seu
sentido será revelado para nós. Enquanto isso, lembremo-nos da diretriz “Mas o amor faz
dessas coisas!” O teor do destino da criança está agora fixado. O que se é pelo nascimento
determina o tema geral da vida a seguir; tudo o mais é necessariamente suplementar. Os
incidentes e o ambiente certamente são influentes – eles sustentam e pesam, promovem e
destroem, pressionam e formam. Não obstante, é o primeiro passo na existência com sua
herança de sangue e espírito que é decisivo. Pensadores cristãos gastaram muito tempo e
reflexão sondando a vida interior de Jesus, ora do ponto de vista psicológico, ora pelo lado
teológico, em um esforço de descobrir o que deve ter acontecido ali. Mas toda a psicologia
de Jesus se estraçalha contra a rocha do que, essencialmente, ele é. Uma análise de Cristo
poderia ser válida para a periferia ou superfície mais exterior de seu ser, mas qualquer
significado ou imagem que consiga construir é quase imediatamente consumida pelo poder
do centro. Quanto à análise teológica, por mais que seja verdadeira em si mesma e
fundamentalmente importante para o pensamento cristão, é necessariamente abstrata.
Desse modo, a fim de fazermos algum avanço em nossa fé, somos obrigados a apelar a
alguma linha de pensamento concreta em nosso auxílio. Tentemos esta:

A jovem criatura no estábulo de Belém era um ser humano com um cérebro e


membros e coração e alma humanos. E era Deus. Sua vida era manifestar a vontade do Pai:
proclamar as novidades sacras, suscitar a humanidade com o poder de Deus, estabelecer a
Aliança, e tomar em seus ombros o pecado do mundo, expiando-o com amor e liderando a
humanidade através da destruição do sacrifício e da vitória da Ressurreição rumo à nova
existência da graça. Somente nesta realização repousa a autoperfeição de Jesus: satisfação
da missão e satisfação pessoal eram uma só e mesma coisa. O próprio Ressuscitado enfatiza
isso: “Não era necessário que o Cristo sofresse estas coisas antes de entrar em sua glória?”
(Lucas 24, 26). Era como se a auto-realização de Jesus significasse que o seu ser humano
“tomou posse” do ser divino que intrinsecamente ele sempre foi. Jesus não “experimentou”
Deus; ele era Deus. Ele nunca em nenhum momento “se tornou” Deus; ele era Deus desde o
começo. Sua vida foi somente o processo pelo qual esta divindade inata se consumou. Sua
tarefa era colocar a realidade e o poder divinos diretamente no reino da sua consciência e
vontade humanas; refletir a santa pureza em sua relação com todas as coisas, e concentrar o
infinito amor e a ilimitada plenitude divina em seu coração de carne e sangue. A vida do
Senhor também pode ser chamada uma contínua penetração, infiltração de si, a elevação de
seu ser a níveis sempre mais altos de autocontenção. Para ele, conquistar a si mesmo é
dominar sua própria superabundância. Todo discurso, luta e ação externos são
simultaneamente um progresso ininterrupto do homem Jesus Cristo em sua própria
divindade. Esse pensamento é certamente inadequado. Ele não pretende ser um argumento
teológico perfeito mas somente um estímulo quando nós refletimos sobre a frágil criança no
berço e sobre tudo aquilo que se agita por trás de sua pequena testa.

A vida pública do Senhor durou no máximo três curtos anos; alguns dizem que mal
chegou a dois. Mas precisamente por esta razão, quão significativos foram os trinta anos
precedentes nos quais ele não ensinou, não lutou, não operou milagres. Não há quase nada
na vida de Jesus que atraia mais a imaginação reverente do que o silêncio pródigo destes
trinta anos. Certa vez algo da imensidão por trás disso irrompeu: o incidente no templo
quando se permitiu pela primeira vez ao menino de doze anos acompanhar José e Maria na
peregrinação à Jerusalém que os costumes exigiam. Seus pais tomam o caminho de casa
acreditando que a criança estava com o grupo de parentes que também faziam a
peregrinação, mas o garoto tinha ficado para trás. Por fim ele é definitivamente dado por
perdido, e três dias de angustiosa busca se seguem, primeiro entre os parentes, então em
Jerusalém. Quando finalmente encontram o menino no templo, ele responde perplexidade
com perplexidade: “Por que me buscavam? Não sabem que eu devo me ocupar das coisas
de meu Pai?” (Lucas 2, 41-49). Jesus entra no templo, e algo nele parece emergir e se
apoderar dele. Sua mãe, José, seus companheiros de viagem foram totalmente esquecidos!
Sua resposta ao questionamento aflito de Maria revela melhor do que qualquer coisa o quão
distante do mundo deles era aquele no qual ele já estava desde então.

Não obstante, ele retorna obedientemente a Nazaré com seus pais para crescer com
os anos em sabedoria e graça ante Deus e os homens.

Tradução: Marcelo Consentin

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