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Luxo, lixo; guri, gari... E daí?

(Luiz de Aquino. O cerco e outros casos. Goiânia: Ed. do Autor, 2003)

"Meu nome? Onde moro? Se tenho mãe ou pai? Ora, o importante é que eu existo. Ou vocês
querem que, para existir, a gente tenha que recitar nome, endereço, nome de pai e mãe? Isso é
coisa de documento, não de pessoa. Olhem para mim: existo, sou mulato, estou crescendo e os
adultos costumam dizer que sou o futuro do Brasil.

Existo, e pronto! Ocupo lugar no espaço e quem disse isso foi um cientista, um sábio que viveu há
muitos anos; acho até que antes de Jesus. E incomodo. Ando descalço, roupas velhas. Eu gosto
de andar lá no centro, na Avenida Goiás, na Rua 7, na Rua 4. Gosto de ver aquelas madamas
bacanas se encolhendo pra não esbarrar em mim, medo de sujar a roupa fina. Gosto de correr
pelos canteiros da Goiás, eu e meus colegas — os engraxates, os apanhadores de papel, os
pivetes. É bom, sabe? É bom a gente ter uns amigos assim. Eu tenho muitos e gosto deles. Eles
também gostam de mim. Do nosso jeito: a gente gosta de se enrolar. Se o juizado pega um, os
outros se mandam. É que se a gente quiser bancar o valente vai também. Nossa amizade é assim,
ninguém exige nada de ninguém; cada um se vira como pode. Acaba sendo melhor, porque a
gente é mais livre. Não tem desses negócios de fazer visitinhas, marcar compromissos. Hoje eu
fico com os engraxates, amanhã com os entregadores de feira, depois com os catadores de papel.
Outras vezes a gente faz uma cara de triste e vai batalhar freguês de lanchonete. No Café Central,
onde o povo come em pé e com pressa, é batata: é só fazer uma cara de fome e faturar os caras.
Outro dia um freguês lá mandou eu escolher e eu pedi um sanduíche daqueles bacanas, com
carne, ovo e alface. Vai ser bom, siô! Tem uns caras legais, ainda. Uns caras que cooperam, né?

Mas o bom mesmo é lavar carro. Eu ainda sou meio pequeno, os caras não confiam muito. Aí eu
encostei num negão que faz ponto na viela do Popular. Fiquei na de ajudante dele. Faturamos
bem. Os caras deixam o carro aberto pra gente lavar por dentro, aí a gente liga o rádio, senta no
carrão e fica pensando até que é o Fittipaldi.

Futuro do Brasil, eu! Ouvi no rádio, a professora lá do grupo também falou assim uma vez. Sabe
que eu tenho saudade do grupo? Fiz só até o segundo ano, mas tive de sair porque a diretora falou
que num tinha carteira pra todo mundo. Também, precisava trabalhar, eu já tava crescendo, tinha
oito anos. Precisava ajudar, né? Aí eu comecei a pegar carona no ônibus das seis e meia. Porque
no das sete horas o cobrador era mau. Um dia eu fui passar debaixo da roleta e ele meteu o pé na
minha cara. Machuquei o nariz, mas menti pros amigos que foi briga. Foi até bom, porque eu
inventei uma história de valentia e fiquei respeitado.

Quando dava fome, no começo era duro. Até que aprendi uns macetes. Fiz amizade com a
cozinheira do restaurante do Armando, ela passava comida pra mim pela janela, escondido. Aí um
menino que tinha brigado comigo contou pros caras lá e eu perdi a boca. A gente fica na rua até
tarde, mas de noite tem que esconder do juizado. Tem dia que a gente tá tão cansado de bater
perna que nem vai pra casa. Fica por aí, dorme nas vielas, debaixo das marquises. Tem uma
garagem ali na Paranaíba que o guarda-noite me topa. De vez em quando eu durmo lá. Ele deixa
eu dormir dentro de algum carro. Eu fico com dó de sujar os carros e durmo no chão. Me cabe
bem, porque eu já tenho onze anos mas sou meio pequeno. E é tão quentinho.

Eu devia ter ficado lá no Centro hoje. Tá um frio danado, não sei o que vim fazer no Bairro Feliz.

Feliz é o bairro, com essa gente toda em casa, quentinho. Televisão colorida. Pô, aquele fedaputa
daquele menino podia ter ficado calado na hora que me viu na janela. Tive que correr, com medo
do pai dele. Bem na hora que tava passando Duas Vidas. Quando eu crescer quero ser doutor.
Que nem o Doutor Vítor. Ficar rico. Ter carro, casa bacana. Mas pra ser doutor eu preciso estudar
e pra estudar tenho que mudar de vida. Precisava deixar de ser pobre.

Oba, uma caixona de papelão!.. Vou deitar aí dentro. Vai ficar quentinho. É só o pessoal da
limpeza não me catar pensando que sou lixo".

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