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Chiu Yi Chih

POESIA VOLUME 5 NÚMERO 1

Só eu vagueio solitário
como um errante!
(Laozi)

em certos acasos, a vida-punhal lançada ao ar, pairando, suspensa, um turbilhão de


pontilhações abruptas, animais emergindo asperamente com golfadas violentas, às
vezes se transtornando debaixo de alguma mina deflagrada, debaixo de tecidos e
bicicletas coléricas no fundo das labaredas, com o seu segredo de crepitações
perfurando a palma da mão, como um entrançado de cascas e odores fermentando
ríspidas caligrafias, quando apenas ouvimos ecos, passos, ruídos atravessando as
manhãs de tantas bocas fétidas, porém nem tudo é só granito reluzindo súplica, de
repente, um levíssimo aroma se espalha por dentro de cada película, por dentro da
medula alvorecente, quase deliquescendo nesses tempos onde se calcinam os gritos,
pois algo irrompe lentamente das cadeiras emboloradas: em certos acasos, a vida-
floresta insuflada pelo sol, se adensa, dulcíssima, dissimétrica, descompassada

II

O movimento da natureza é incessante.


É como o movimento secreto do Céu e da Terra.
Quem é capaz de percebê-lo?
(Liezi)

cheia de reentrâncias, nódulos e miríades de anfractuosidades. inextrincável,


pesadíssima, tal como uma fruta que se desprende num leque de palavras: uma
geografia do alhures. há muito tempo que sua massa tão enregelada e severa parece
se coroar de centrífugas escamas. como a face da deusa talvez. rugosa. ferina. irônica.
até mesmo quando é vista em torno de sua cratera, em torno de suas chispas cheias
de viscosidades. no entanto, ela não era mais o que pensava ser. as águas vorazes e
as ardilezas tinham sido amordaçadas, enquanto os enlevos têm sido mais
involuntários do que o estrépito das rodas, sempre quando se esculpia nas suas
profundezas, sempre que a incompletude era lançada para além da sua complacência
- porém, da algazarra, ressurge, a princípio tímido e depois insistente, um
arquipélago, uma nuvem de interrogações. desassossegos? tantas vidas ela tem
vivido! sol insurgente no horizonte impreciso! grinalda de píncaros impecáveis!
convencida de que os escombros se conjugaram numa sinistra atmosfera, poderia
traçar um esboço ou um mapa, mas para que falar sobre as fragilidades? toda
geometria se esvai diante daquelas vesículas arenosas que se espicaçam entre uma
trepidação e outra. imponderáveis intervalos, músicas esfarrapadas, quem resistirá a
esse perpétuo esboroamento? tudo se exaspera. é inclemente a velocidade com que
as coisas são esconjuradas: há apenas uma escada que se ramifica: orlas volúveis,
linhas cruas, assoalhos flamejando com nódoas, faróis e faces anônimas

III

O Caminho é tão silencioso e límpido


como uma profundeza abissal.
(Zhuangzi)

nasço leopardo, carrego planícies, porquanto me desfolhando à sombra de meus


ombros, em torno desse mistério, noites e noites enriqueço-me assim como um
girassol grávido de leões, sob chuvas e intempéries, rejuvenescendo com as centelhas
no queixo, diante do que avistei resolvi ondular-me ao longo da muralha de sevícias,
eis que me encontrei arquejando na presença de veredas derribadas, estradas, uma
flora de inconstâncias, porquanto, ao ouvir minhas ofuscantes irmãs, como tocá-las
senão sendo-as? como aplacá-las? aqui, como nos becos mais imundos, o céu dedilha
a cordilheira dos antigos, com algumas migalhas vou me recompondo, maresia
embevecida nas mãos lanuginosas, persisto, escutando os planetas sucessivos, aqui,
como nos teatros nebulosos, não há nenhum ofício de canto queixoso, malgrado
túneis e ventos que estrugem entre ramalhetes liquefeitos, aqui, a princípio, atiramos
uma gotícula, e mais além, outras asas desabrochadas, somos semelhantes à
implacável fábula que se reinaugura nas profanações, embora um poeta já tivesse
colhido a febre das ogivas imaginárias, enquanto lívidos bosques vendo-nos assim,
refluídos nas espigas que somos, continuamos a destilar as rosas do deserto, somente
deglutindo aquela voz pastosa impregnada de cristas esmaltadas, aquela erva
perméavel às colinas e às flechas como baforadas, e contudo, nas cavernosas
voragens, como esvaziar os uivos incansáveis da travessia? mas não sejamos tediosos
ao mergulhar no ouro das plumagens, ignorados pelo feérico compasso das lonjuras,
açoitemos a boca desconhecida, as minúcias e os escarcéus dos vapores da meia-
noite, embora no marasmo dos lençóis retesados, o equívoco e os augúrios
momentâneos sejam apenas folhagens que relincham na borrasca-transparência das
algas, embora centenas e centenas de garras estejam nesse momento eclipsadas entre
as fímbrias da rocha vergastada
IV

seus olhos eram semelhantes


aos ouvidos que ouviam,
os ouvidos eram como o nariz que cheirava,
o nariz se assemelhava à boca que comia
e não havia nenhum órgão
que não pudesse se assemelhar a um outro.
(Liezi)

felinos que sobre a fronte se evaporam, sorvedouros como pólvoras famélicas,


expelindo espasmos e irremediavelmente se mordiscando, como remoinhos na
marcha inexaurível das pálpebras, quando a truculência parecia ser espetada com
todas as espécies ínfimas, onde até mesmo as minúsculas bifurcações se arrefeciam,
quando, sem os estremecimentos, as suas mãos insalubres se salpicavam na
magnificência, apesar de que agora uma malha indistinta se refractava nas limalhas,
enquanto há séculos nem mais se percorria esse recesso em meio às impertinências
das ardósias. ah! esses famélicos, frenéticos e indiscretos colibris cantando às
vésperas do plenilúnio, em mormaço, em transe, assim como quando se desmembram
os músculos sob as iminentes ameaças e se vê todo o rebuliço no fundo das várzeas,
em refúgio, em êxodo, exceto que sem motivo as suas presas se replicaram acima
das inscrustações como jamais tínhamos visto antes, e então fecundando as
efemérides, encravando as aves, fremindo o estampido das madrepérolas: mar de
fragores farfalhando de ponta a ponta, em frações que rumorejam sem alvoroço,
como se, de buraco em buraco, suas cabeças veludosas estivessem saindo de dentro
de certos invólucros: vociferantes, evanescentes

O Homem Superior
caminha no fundo das águas
e nunca se afoga.
(Liezi)

côncavas vozes, perfume fosforescendo, tudo ali são arborescências, na sua pele em
que já se desfilaram as convalescenças, enternecimentos e desalentos, assim como as
cascatas destemidas, as melodias retornando, invicta nostalgia, na sua pele todas as
excrescências, todos os anéis trovejaram e ainda confabularam num combate
multissecular, assim como um ancoradouro de insolências, ou mesmo as escórias que
humildemente nos conduzem às hortênsias pisoteadas: tudo ali são arborescências,
um ninho-de-injúrias que agora se multiplicou atrás das espáduas, ossos e cotovelos
retinindo-se um contra o outro, chacinados, exauridos, como os filhos desterrados de
outras eras e, nas orlas de uma outra cidade, onde ele se viu desfigurado perante os
impropérios, enfurecido, suplicante, titânico, exultante: tudo ali são concâvas vozes,
a invicta nostalgia, os braços impetuosamente afundados na areia, ele caminhando
pela praia, fustigado pelo seu próprio delírio, afastado de todos, o único,
intempestivo! ora pestilência florescendo, ora uma cacofonia onde todos os instantes
se fundiam e se confundiam, nuvens insidiosas estertorando as coxas enfunadas, ele,
um dos últimos, terribilíssimo, mas agora vergado sob a negra matilha das discórdias:
o mais plácido dentre todos, confrangido, espoliado nesse antro no qual estava
silenciosamente embrenhado sobre sua própria imobilidade, pois que outra coisa era
seu espírito senão um hipocampo raríssimo, uma abóbada ornada por presságios?
ainda que escarnecido, repousava transmudado e amanhecido, espinhoso cristal
fervendo na noite magnética: coração adormecido, oculto, intocável

VI

Como Indra, o tambor,


nuvens, Brahma, o sol,
uma joia realizadora de desejos,
um eco, espaço e terra,
assim é o Tathagata.
(Asanga)

assim que se inflamou meu rosto nos bramidos das trombetas sulfurosas, os milhares
de tathagatas com suas sobrancelhas surrupiadas se dissiparam nos labirintos de
dulcíssimo abismo, tal como aquelas máscaras milenares que palmilharam as
amígdalas arruinadas, ou como um ancoradouro de cúpulas estendendo seus
beatíficos braceletes ao longo de vastíssimos éons de insuperável eternidade,
enquanto também se anunciavam por meio de milhões de címbalos as tétricas
aparições dos mahasattvas sem que nenhuma ferrugem pudesse ainda se desprender
dos envoltórios lamacentos, mas como se alguém houvesse pressentido por alguns
segundos um pálido estampido por entre as sacadas desgrenhadas do couro invisível:
uma espécie de clareira ofuscante já tinha derrubado as vidraças do meu quarto ao
mesmo tempo que cada folha de amoreira já começava a se aglutinar à beira dos
incomensuráveis mundos que se despenhavam das alturas

VII

O Céu e a Terra são como um grão de arroz,


e um fio de pelo é como uma montanha
(Zhuangzi)

o jardim, silêncio à tona, com os olhos de uma foice cruzando aquela porta estreita,
o jardim quase interminável e, mais além, próxima de seu orifício central, uma urna
coberta por madeixas azuláceas semeando a fogueira da morte, quando, ao
atravessarem a ponte, ao se banharem na madeira cheia de lâminas mutiladas, e
dentre os espectros, tal como um cutelo desossado, uma princesa sendo tatuada pelas
franjas da lua recém-parida, um lombo extirpado sobre a goela dos túmulos, um
menino se enfaixando na pele de urso ao mesmo tempo que balbuciasse sílabas de
escápulas estropiadas, sob uma única insurgência, revoluteando em torno das
ribanceiras, eficácia dos alvéolos na sutura dos gravetos, vocação assustadora de
quem ainda nunca penetrou nos turíbulos da selva: assim num único hálito, o jardim
beligerante com as suas vísceras e planícies de passagens submersas

VIII

O curvo se completa.
O retorcido se endireita.
(Laozi)

um eco transbordante se alastrou sobre as comissuras dos lábios do céu enquanto as


ilhas subterrâneas eram bombardeadas acima do telhado de granito e uma garganta
de satélites enegrecidos despejava na prateleira as mil contradições sem máculas,
assim como um gafanhoto astucioso já se engalfinhava aos ectoplasmas de um dorso
marmóreo densamente povoado na sua última viagem com as vértebras, assim esteve
meu espírito grudado àquelas vozes estiradas sob as bordas de um outro violino que
se alargava indistintamente num marulhante resfolegar de primaveras, crestando-se
aqui e desmanchando-se ali sob as pálpebras do cálice matutino, como a irrupção de
um escorpião, um astro de dedos ígneos se evaporando sobre as mãos esbranquiçadas
da parturiente, sob os bálsamos abandonados à consumação, sob a morosidade de
semblantes assombrados pelas camélias hibernadas, quando ainda se colhia um
pouco de vinho a ser estancado nos vestíbulos alcantilados da aurora, quando menos
ainda podíamos aspirar os arabescos da bromélia, enquanto todos os fragores do
carvalho, os afluxos de flores renegadas e os redemoinhos de murmúrios em luto
apenas regressavam para as profundezas de um azul impenetrável

Chiu Yi Chih (邱奕智) é professor de filosofia chinesa clássica e de mandarim no


Centro Cultural de Taipei. É chinês naturalizado brasileiro. Filósofo, tradutor, poeta,
performer, mestre em Filosofia Antiga Grega (USP) e graduado em Letras (Grego
Clássico-Português/USP). Publicou um livro de poesia “Naufrágios” (Multifoco-
2011), um livro de ensaios filósoficos e poemas “Metacorporeidade” (Córrego-2016)
e a tradução do “Dao De Jing” (Mantra-2017). O livro taoista “Vazio Perfeito” de
Liezi (Mantra) na sua tradução em versão bilíngue será publicado em breve.
Atualmente vem escrevendo seu novo livro de poesias e prosas poéticas, dando aulas
de chinês e de filosofia taoísta e pesquisando as obras de Zhuangzi, Nagarjuna, os
Sutras do Budismo Chan e filósofos como Deleuze, Bataille, Plotino e Nietzsche.

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