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Só eu vagueio solitário
como um errante!
(Laozi)
II
III
O Homem Superior
caminha no fundo das águas
e nunca se afoga.
(Liezi)
côncavas vozes, perfume fosforescendo, tudo ali são arborescências, na sua pele em
que já se desfilaram as convalescenças, enternecimentos e desalentos, assim como as
cascatas destemidas, as melodias retornando, invicta nostalgia, na sua pele todas as
excrescências, todos os anéis trovejaram e ainda confabularam num combate
multissecular, assim como um ancoradouro de insolências, ou mesmo as escórias que
humildemente nos conduzem às hortênsias pisoteadas: tudo ali são arborescências,
um ninho-de-injúrias que agora se multiplicou atrás das espáduas, ossos e cotovelos
retinindo-se um contra o outro, chacinados, exauridos, como os filhos desterrados de
outras eras e, nas orlas de uma outra cidade, onde ele se viu desfigurado perante os
impropérios, enfurecido, suplicante, titânico, exultante: tudo ali são concâvas vozes,
a invicta nostalgia, os braços impetuosamente afundados na areia, ele caminhando
pela praia, fustigado pelo seu próprio delírio, afastado de todos, o único,
intempestivo! ora pestilência florescendo, ora uma cacofonia onde todos os instantes
se fundiam e se confundiam, nuvens insidiosas estertorando as coxas enfunadas, ele,
um dos últimos, terribilíssimo, mas agora vergado sob a negra matilha das discórdias:
o mais plácido dentre todos, confrangido, espoliado nesse antro no qual estava
silenciosamente embrenhado sobre sua própria imobilidade, pois que outra coisa era
seu espírito senão um hipocampo raríssimo, uma abóbada ornada por presságios?
ainda que escarnecido, repousava transmudado e amanhecido, espinhoso cristal
fervendo na noite magnética: coração adormecido, oculto, intocável
VI
assim que se inflamou meu rosto nos bramidos das trombetas sulfurosas, os milhares
de tathagatas com suas sobrancelhas surrupiadas se dissiparam nos labirintos de
dulcíssimo abismo, tal como aquelas máscaras milenares que palmilharam as
amígdalas arruinadas, ou como um ancoradouro de cúpulas estendendo seus
beatíficos braceletes ao longo de vastíssimos éons de insuperável eternidade,
enquanto também se anunciavam por meio de milhões de címbalos as tétricas
aparições dos mahasattvas sem que nenhuma ferrugem pudesse ainda se desprender
dos envoltórios lamacentos, mas como se alguém houvesse pressentido por alguns
segundos um pálido estampido por entre as sacadas desgrenhadas do couro invisível:
uma espécie de clareira ofuscante já tinha derrubado as vidraças do meu quarto ao
mesmo tempo que cada folha de amoreira já começava a se aglutinar à beira dos
incomensuráveis mundos que se despenhavam das alturas
VII
o jardim, silêncio à tona, com os olhos de uma foice cruzando aquela porta estreita,
o jardim quase interminável e, mais além, próxima de seu orifício central, uma urna
coberta por madeixas azuláceas semeando a fogueira da morte, quando, ao
atravessarem a ponte, ao se banharem na madeira cheia de lâminas mutiladas, e
dentre os espectros, tal como um cutelo desossado, uma princesa sendo tatuada pelas
franjas da lua recém-parida, um lombo extirpado sobre a goela dos túmulos, um
menino se enfaixando na pele de urso ao mesmo tempo que balbuciasse sílabas de
escápulas estropiadas, sob uma única insurgência, revoluteando em torno das
ribanceiras, eficácia dos alvéolos na sutura dos gravetos, vocação assustadora de
quem ainda nunca penetrou nos turíbulos da selva: assim num único hálito, o jardim
beligerante com as suas vísceras e planícies de passagens submersas
VIII
O curvo se completa.
O retorcido se endireita.
(Laozi)