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Annie Besant
Reimpressão – 1913
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Índice
I - DIFERENÇAS
II - EVOLUÇÃO
III - O CERTO E O ERRADO
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DIFERENÇAS
Quando as nações da Terra foram criadas, uma após a outra, Deus concedeu
para cada uma uma palavra especial, a palavra que cada uma delas deveria
proclamar ao mundo, a palavra especial do Eterno que cada uma deveria falar.
Quando contemplamos a história das nações, podemos ouvir esta palavra da
boca coletiva do povo, pronunciada como ação, como a contribuição daquela
nação à humanidade perfeita e ideal. A palavra dada ao antigo Egito foi
Religião; para a Pérsia a palavra foi Pureza; para a Caldéia a palavra foi
Ciência; para a Grécia, Beleza; para Roma, Lei; e para a Índia, a primogênita
dentre as Suas filhas, para ela Deus concedeu uma palavra que resumia todas
em uma só: a palavra Dharma. Esta é a palavra da Índia para o mundo.
Mas não podemos falar esta palavra, tão cheia de significado, tão vasta no
alcance de sua força, sem nos curvarmos diante daquele que foi a maior
encarnação do Dharma que o mundo já conheceu: Bhîshma, o filho de Gangâ,
a mais grandiosa encarnação do Dever. Venham comigo, viajemos para o
passado, para cinco mil anos atrás, e veremos este herói estendido em seu
leito de flechas no campo de Kurukshetra, mantendo a Morte em suspenso até
que soasse a hora devida. Passamos por montes e montes de guerreiros
mortos, sobre montanhas de elefantes e cavalos mortos, e passamos por
muitas piras funerárias, por muitos montes de armas e carruagens quebradas.
E chegamos ao herói deitando em seu leito de flechas, atravessado por
centenas de setas, com sua cabeça recostada sobre um travesseiro feito delas.
Ele jogara longe o travesseiro que lhe haviam trazido para que repousasse
suavemente, e aceitou somente o encosto de flechas oferecido por Arjuna. Ele,
perfeito no Dharma, havia, ainda jovem, em nome de seu pai, em nome do
dever para com seu pai, em nome do amor que sentia por seu pai, feito aquele
grande voto de renúncia da vida familiar, renunciando à coroa, a fim de que a
vontade do pai pudesse ser cumprida, e o coração do pai, satisfeito. E
Shantanu lhe deu sua bênção, aquele dom maravilhoso de que a Morte só
poderia se aproximar dele por seu próprio comando, só quando ele mesmo
desejasse morrer. Quando ele caiu, cravejado por centenas de flechas, o sol
estava se dirigindo para o sul, e por isso o momento não era favorável à morte
de um ser que não haveria de retornar jamais. Então ele usou o poder que seu
pai lhe dera, e fez a Morte esperar até que o sol abrisse caminho à paz e
libertação eternas. Enquanto lá ficou estendido por muitos dias miseráveis,
atormentado pela agonia do corpo despedaçado que usara, chegaram até ele
muitos Rishis [Santos] e os descendentes dos reis Arianos, e ali chegou
também Shri Krishna, para ver seu fiel. Também chegaram os cinco príncipes,
os filhos de Pându, vitoriosos na grande guerra, e rodearam-no a chorá-lo e
honrá-lo, e desejando ser ensinados por ele. E em meio àquela penosa agonia,
Aquele cuja boca era a boca de Deus disse-lhe algumas palavras, e liberou-o
da febre escaldante, e concedeu-lhe repouso corpóreo, e clareza mental, e
tranqüilidade ao homem interno, e então instou-o que ele ensinasse ao mundo
o que é Dharma - ele cuja vida inteira o havia ensinado, que não havia se
desviado da senda da retidão, aquele que como filho, como príncipe, como
estadista, como guerreiro, jamais se havia desviado do caminho estreito. Os
que estavam ao seu redor pediram-lhe que ensinasse, e Vâsudeva lhe solicitou
que falasse do Dharma, porque ele era capacitado para ensinar (Mâhâbharata,
Shanti Parva, § LIV).
Estas são algumas das características do homem que pode procurar entender
os mistérios do Dharma. Tais são as qualidades que vocês e eu devemos
tentar desenvolver, se havemos de entender os ensinamentos, se havemos de
ser dignos de perguntar.
"O que é ação, o que é inação? Mesmo os sábios se confundem com isso. É
preciso distinguir a ação, distinguir a ação ilegal, distinguir a inação; misteriosa
é a senda da ação" (Bhagavad Gita, IV, 16-17)
Ele repetiu a mesma coisa no fim daquele discurso imortal, e disse - mas desta
vez alterada de modo a lançar uma luz renovada sobre o assunto: "Melhor
cumprir o próprio Dharma, ainda que destituído de mérito, do que cumprir com
perfeição o Dharma alheio. Aquele que cumpre o Dharma estabelecido por sua
própria natureza não incorre em pecado" (Ibid. XVIII, 47). Aqui Ele expõe mais
completamente este ensinamento, e delineia o Dharma das quatro grandes
castas, e a própria terminologia que Ele emprega demonstra o significado desta
palavra, que às vezes é traduzida como Dever, às vezes como Lei, outras
como Retidão, e outras como Religião. Ela significa tudo isso, e mais do que
tudo isso junto, pois seu significado é mais profundo e vasto do que o que
qualquer uma destas traduções expressa. Tomemos as palavras de Shri
Krishna quando Ele falou do Dharma das quatro castas: "Os Karmas dos
Brâhmanes [sábios e religiosos], dos Kshattriyas [realeza, guerreiros e
militares], dos Vaishyas [comerciantes, agricultores, artesãos, etc] e dos
Shûdras [servos], oh Paranpata, foram distribuídos de acordo com os gunas
[atributos] nascidos de suas próprias naturezas. Serenidade, autocontrole,
austeridade, pureza, perdão e justiça; sabedoria, conhecimento, fé em Deus,
são o Karma do Brâhmane, nascido de sua própria natureza. Valor, esplendor,
firmeza, destreza, e também não fugir do combate, generosidade, a natureza
de um governante, são o Karma do Khsattriya, nascido de sua própria
natureza. Lavrar a terra, proteger os rebanhos, e comércio, são o Karma do
Vaishya, nascido de sua própria natureza. A ação de natureza servil é o Karma
do Shûdra, nascido de sua própria natureza. O homem atinge a perfeição
quando cada ser cumpre o seu próprio Karma".
E então Ele passa a dizer: "Melhor cumprir o próprio Dharma, ainda que
destituído de mérito, do que cumprir com perfeição o Dharma alheio. Aquele
que cumpre o Dharma estabelecido por sua própria natureza não incorre em
pecado".
Vejam como as duas palavras, Dharma e Karma, são permutadas. Elas nos
dão a chave que devemos usar para decifrar nosso problema. Deixem-me dar
de início uma definição parcial de Dharma. Não posso estabelecer uma
definição completa de uma só vez. Não posso deixar já totalmente clara a
definição. Eu lhes darei a primeira metade, tratando da segunda quando chegar
a hora. A primeira metade é "Dharma é a natureza interna que atingiu em cada
homem um certo estágio de desenvolvimento e expressão". É esta natureza
interna que modela a vida exterior, que é expressa por pensamentos, palavras
e atos, a natureza interna que nasce no ambiente propício para seu
crescimento prosseguir. A primeira idéia a compreendermos é que o Dharma
não é uma coisa externa, como a lei, a retidão, a religião ou a justiça. É a lei da
vida em desdobramento, que modela tudo em seu redor para a expressão de si
mesma.
Assim, ao tentar seguir este assunto difícil e sutil, tratarei dele em três partes
principais. Primeiro, as Diferenças, pois as pessoas têm Dharmas diferentes.
Mesmo na passagem citada são mencionadas quatro grandes classes.
Olhando mais de perto, cada indivíduo tem seu próprio Dharma. Como vamos
entendê-los? Só podemos se entendermos algo da natureza das diferenças -
por que elas aparecem, por que devem existir, e o que queremos dizer quando
falamos de diferenças - a menos que entendamos como cada homem
demonstra, por pensamentos, palavras e atos, o estágio que atingiu, a menos
que compreendamos isso, não poderemos entender o Dharma. Então, em
segundo lugar, temos de lidar com a Evolução. Pois devemos acompanhar
estas diferenças à medida que elas evoluem. Por fim, devemos tratar do
problema do Certo e Errado, pois todo o nosso estudo conduz à resposta para
esta questão: "Como um homem deve conduzir sua vida?". Não valeria a pena
lhes pedir que me acompanhassem nestas difíceis regiões do pensamento a
menos que no fim demos valor ao nosso conhecimento e tentemos viver de
acordo com o Dharma, assim transmitindo ao mundo a palavra que a Índia
deve ensinar.
Desta forma podemos sentir algo do modo como Seu pensamento se dividiu
em miríades de formas de esplendor, quando Ele falou de Beleza ao mundo. O
mesmo é o caso da Força, da Energia, da Harmonia, da Música, e assim por
diante. Compreendemos, então, a necessidade da variedade: pois nenhuma
coisa limitada pode descrevê-Lo por completo, porque nenhuma forma limitada
pode expressá-Lo inteiramente. Mas à medida em que cada coisa se torna
perfeita em seu gênero, todas juntas combinadas podem revelá-Lo
parcialmente. Assim, a perfeição do universo é a perfeição na variedade e na
harmonia das partes inter-relacionadas.
Como podem surgir estas diferenças inumeráveis? Como podem vir à luz todas
estas diferenças? Como o universo fica, à medida que se desenvolve como um
todo, em relação às suas partes que se desenvolvem cada uma segundo uma
linha distinta? Dizem-nos que Ishvara, expressando-Se no lado Prakriti
[Matéria], apresenta três qualidades - Sattva, Rajas e Tamas. Nenhuma palavra
em português pode traduzí-las satisfatoriamente. Contudo, posso, por ora,
traduzir Tamas como inércia, a qualidade que não se move, que dá
estabilidade; Rajas é a qualidade da energia e do movimento; e Sattva talvez
seja melhor expresso como harmonia, a qualidade que concede prazer, já que
todo prazer surge da harmonia e só a harmonia pode conferí-lo. Então
aprendemos que estes três gunas se modificam de sete modos, em sete
grandes linhas, ao longo das quais são produzidas inumeráveis combinações.
Todas as religiões falam desta divisão sétupla, todas as religiões proclamam a
sua existência. No Hinduísmo eles têm os cinco elementos principais e os dois
além. Estes são os sete Purushas de que fala o Manu.
Agora Dharma pode ser definido como "a natureza interna de uma coisa em
qualquer estágio dado da evolução, e a lei do próximo estágio de seu
desenvolvimento" - a natureza no ponto em que atingiu de desenvolvimento, e
então a lei que rege o seu estágio seguinte de desdobramento. A natureza por
si mesma assinala o ponto em que chegou na evolução, depois vem o que ela
deve fazer a fim de evoluir ainda mais ao longo de seu caminho. Tomemos
estes dois pensamentos juntos, e então entenderemos por que a perfeição
deve ser atingida cumprindo cada um o seu próprio Dharma. Meu Dharma é o
estágio de evolução que minha natureza atingiu ao desenvolver a semente de
vida divina que é eu mesmo, mais a lei da vida de acordo com a qual a próxima
etapa deve ser seguida por mim. Isso pertence a este eu separado. Devo
conhecer o estágio de meu crescimento, e devo conhecer a lei que me
possibilitará crescer mais; assim passo a conhecer meu Dharma, e seguindo
este Dharma eu me encaminho para a perfeição.
Fica claro, então, compreendendo o que isso significa, o motivo pelo qual cada
um de nós deve estudar sua condição atual e seu próximo estágio. Se não
reconhecemos o estágio atual, permanecemos ignorantes a respeito do
próximo estágio para onde devemos nos dirigir, e por isso podemos estar indo
contra nosso Dharma e assim atrasando a evolução. Ou, reconhecendo
ambos, podemos atuar na linha de nosso Dharma, acelerando a evolução. Aqui
existe uma grande armadilha. Vemos que uma coisa é boa, nobre e grandiosa,
e desejamos realizar em nós mesmos essa coisa. Será ela o próximo estágio
de evolução para nós? Será a coisa que a lei de nossa vida em evolução
requer a fim de que esta vida possa fluir harmoniosamente? Nosso objetivo
imediato não é aquilo que é melhor em si mesmo, mas aquilo que é melhor
para nós em nosso estágio atual, e que nos leva um passo à frente. Tomemos
uma criança. Sem dúvida, se tomarmos uma menina, ela tem diante de si um
futuro mais nobre, elevado e belo do que quando ela está brincando com suas
bonecas; ela será uma mãe com um filho nos braços em vez de uma boneca,
pois este é o ideal da mulher perfeita: a mãe com seu filho. Mas ao mesmo
tempo em que este é o ideal da mulher perfeita, forçar em direção a ele antes
do tempo será prejudicial em vez de bom. Todas as coisas devem vir em seu
tempo devido. Se aquela menina há de se desenvolver até a perfeição da
feminilidade, e se há de ser mãe de uma família, saudável, forte, capaz de
suportar a pressão da grande corrente da vida, então deve haver um período
em que a menina brinque com suas bonecas, aprenda as lições, desenvolva o
corpo. Mas se pensar que a maternidade é mais elevada e nobre do que a
brincadeira, a maternidade será buscada antes de seu tempo, e nascerá uma
criança de outra criança, e o bebê sofrerá, a mãe sofrerá, a nação sofrerá; e
isso porque a época própria não foi tomada em consideração e a lei da vida em
evolução foi violada. Surge toda sorte de sofrimentos se colhermos o fruto
antes de ele estar maduro.
Dei este exemplo porque ele é bem marcante. Vou-lhes ajudar a ver por que
nosso próprio Dharma é melhor para nós do que um Dharma bem executado
mas alheio, que não está na linha de nossa própria vida em evolução. Aquela
posição elevada pode ser nossa no futuro, mas deve chegar seu tempo, o fruto
deve amadurecer. Colha-o antes da estação e seus dentes travarão na casca
azeda. Que fique na árvore, obedecendo à lei do tempo e da evolução
seqüencial, e a alma crescerá de acordo com o poder de uma vida infinita.
Isso nos dá uma outra chave para o problema - a função está em relação ao
poder. Uma função assumida antes desenvolver-se o poder correspondente e
necessário é extremamente danosa ao organismo. Assim aprendemos as
lições da paciência e da confiança na Boa Lei. Podemos julgar o progresso de
uma pessoa por sua vontade de trabalhar com a natureza e se submeter à lei.
Por isso o Dharma é descrito como lei, e às vezes como dever; pois ambas as
idéias nascem do pensamento básico de que ele é a natureza interna em dado
estágio de evolução e a lei do estágio seguinte de seu desenvolvimento. Isso
explica por que a moralidade é relativa, por que o dever deve ser diferente para
cada alma, de acordo com seu estágio de evolução. Quando passamos a
aplicar isso nas questões de certo e errado, descobrimos que podemos
resolver alguns dos mais sutis problemas da moralidade empregando este
princípio. Em um universo condicionado não se pode encontrar certo e errado
absolutos, mas apenas certos e errados relativos. O absoluto só existe em
Ishvara, e só lá para sempre ele há de ser encontrado.
Agora vemos como vêm à luz as diferenças na natureza, como o fator tempo
entra em jogo, e como, embora tenhamos todos a mesma natureza e
atingiremos todos a mesma meta, ainda assim existem diferenças nos estágios
de manifestação, e portanto também nas leis adequadas para cada estágio.
Isso é o que devemos compreender esta noite, antes de lidarmos com o
complexo problema de como se desenvolve a natureza interna. O assunto é
verdadeiramente difícil, embora os mistérios da senda da ação possam ser
esclarecidos à medida que compreendemos a lei subjacente, à medida que
reconhecemos o princípio da vida em desdobramento.
Possa Ele, que deu o Dharma como nota-chave da Índia, iluminar nossas
mentes obscuras com Sua vida em expansão e imortal, com Sua luz efulgente
e imutável, para que possamos tentar compreender um pouco de Sua lei; pois
só quando Suas bênçãos recaem sobre o buscador suplicante é que Sua lei
pode ser entendida pela mente, e Sua lei, gravada no coração.
EVOLUÇÃO
Esta noite vamos tratar da segunda parte do assunto que começamos ontem.
Vocês podem lembrar que por conveniência dividi o assunto em três partes:
Diferenças, Evolução, e o problema do Certo e do Errado. Ontem estudamos a
questão das Diferenças - como veio a acontecer de homens diferentes terem
Dharmas diferentes. Arrisco-me a lhes lembrar a definição de Dharma que
adotamos, dizendo que ele significa a natureza interna, marcada pelo estágio
de evolução, mais a lei do crescimento do estágio evolutivo subseqüente.
Peço-lhes que mantenham em mente esta definição, pois sem ela não seremos
capazes de aplicar o Dharma àquilo que iremos estudar na terceira parte do
assunto.
Sob o título de "Evolução" vamos estudar o modo como a semente de vida
evolui até a perfeita imagem de Deus, lembrando que chegamos à conclusão
de que a imagem de Deus só poderia ser representada pela totalidade dos
numerosos objetos que perfazem um universo até seus detalhes, e que a
perfeição do indivíduo depende da completude com que cumpre sua parte no
todo estupendo.
Em outro verso Ele diz: "Eu sou a fraude do embusteiro, e o esplendor das
coisas esplêndidas" (X, 36). Qual é o sentido destas palavras que soam tão
estranhas? Qual a explicação desta frase que parece quase uma profanação?
Não apenas neste discurso temos esta posição enunciada, como vemos que o
Manu ensina exatamente a mesma verdade: "Ele produz o universo a partir de
Si mesmo". A vida que vem do Supremo cobre-se de véu após véu de Mâyâ,
onde esta vida há de evoluir todas as perfeições que jazem nela em estado
latente.
Mas a primeira pergunta é: Esta vida, que vem de Ishvara, não contém em si
tudo já desenvolvido, todos os poderes manifestos, todas as possibilidades
concretizadas como realidades? A resposta a esta pergunta, pronunciada
vezes sem conta através de símbolos, alegorias e palavras diversas, é: "não".
Ela contém tudo em potência, mas nada manifesto de início. Contém tudo em
germe, mas de início nada como um organismo já desenvolvido. A semente é
aquela que foi posta nas vastas águas da matéria, e só a semente é dada pela
Vida do Mundo. Estas sementes, que procedem da vida de Ishvara,
desenvolvem - passo a passo, estágio após estágio, um degrau da escada
após o outro - todos os poderes que residem no Pai gerador, nome que o
próprio Ishvara dá a Si mesmo no Gitâ. Ele declara mais uma vez: "Meu ventre
é o Mahat-Brahma; ali coloco a semente; daí vem a produção de todos os
seres, oh Bhârata. Onde quer que haja ventres produzindo mortais, oh
Kaunteya, o Mahat-Brahma é seu ventre, e Eu, seu Pai gerador" (XIV, 3-4).
Desta semente - deste germe contendo tudo em possibilidade mas nada ainda
em manifestação - desta semente há de evoluir uma vida, estágio após estágio,
subindo cada vez mais alto, até que se forma enfim um centro de consciência
capaz de se expandir até a consciência de Ishvara, embora permanecendo
ainda um centro, com o poder de se manifestar como um novo Logos ou
Ishvara para a produção de um novo universo.
Este poder na vida, ou antes, estes inumeráveis poderes que Ishvara manifesta
a fim de que o universo possa existir, estas miríades de poderes são de início
inconspícuos na semente - nenhum sinal das grandiosas possibilidades,
nenhum traço do que há de se tornar depois. A respeito desta manifestação na
matéria há uma palavra que lança muita luz sobre o assunto, se pudermos
compreender seu significado interno e sutil. Shri Krishna, falando de Sua
Prakriti inferior, ou manifestação inferior, diz: "Terra, água, fogo, ar, éter, Manas
e Buddhi e Ahankara - estas são as oito divisões de Minha Prakriti. Esta é a
parte inferior". Então Ele passa a dizer o que é a Sua Prakriti superior:
"Conhece, oh tu poderosamente armado, minha outra Prakriti, a superior: o
elemento vida, pelo qual o universo é mantido" (VII, 4,5). Então um pouco
depois, separadas por muitos versos, de modo que às vezes se perde o fio
condutor, falam-se outras palavras: "Esta Minha Mâyâ divina, feita de gunas
[atributos], é difícil de penetrar; mas os que vêm a Mim, estes a penetram" (VII,
14). Este Yoga-Mâyâ é, com efeito, difícil de penetrar; muitos não conseguem
descobrí-Lo envolto em Mâyâ, tal a dificuldade de penetração, tal a dificuldade
da descoberta. "Aqueles desprovidos de Buddhi pensam em Mim, o Não-
manifesto, como se Eu tivesse manifestação, não conhecendo Minha natureza
suprema, imperecível, excelentíssima. Tampouco sou descoberto por todos,
envolto como estou em Minha Yoga-Mâyâ". (VII, 24, 25). Então ele declara
ainda que todo o universo é permeado desta Sua vida não-manifesta. O
elemento vida, ou Prakriti superior, é não-manifesto, e a Prakriti inferior é
manifesta. Então Ele diz: "Na aurora do dia tudo que é manifesto emana do
não-manifesto; quando chega o ocaso, tudo se dissolve n'Aquilo que é
chamado de não-manifesto" (VIII, 18). Isso ocorre repetidas vezes. Então Ele
declara novamente: "Portanto existe verdadeiramente, mais alto que o não-
manifesto, um outro não-manifesto, eterno, que não é destruído na destruição
de todos os seres" (VIII, 20). Há uma sutil distinção entre Ishvara e a imagem
que Ele emite. A imagem é o não-manifesto refletido, mas Ele mesmo é o não-
manifesto superior, o eterno que jamais é destruído.
Em cada uma destas formas inferiores no reino mineral a vida de Ishvara está
começando a se desenvolver. Não só a semente de vida evolui ali, mas Ele,
com todo o Seu poder e grandeza, também está ali, em cada átomo de Seu
universo. É Sua a vida semovente que torna a evolução inevitável. É Sua a
força que expande gentilmente as paredes da matéria, com paciência imensa e
amor cuidadoso, a fim de que elas não rompam com a tensão. Deus, Ele
mesmo o Pai da vida, mantém aquela vida dentro de Si como uma Mãe,
desenvolvendo a semente na semelhança de Si mesmo, jamais impaciente,
jamais apressado, desejando conceder todo o tempo das eras incontáveis que
a semente possa precisar. O tempo não é nada para Ishvara, pois Ele é eterno
e para Ele tudo também o é. É a perfeição da manifestação o que Ele busca, e
em Sua obra não há pressa. E veremos, mais tarde, como atua Sua infinita
paciência. O homem, que há de ser a imagem de seu Pai, mostra dentro de si
mesmo o reflexo do Eu com quem é uno, e de onde veio.
A vida deve ser despertada, mas como? Por golpes, por vibrações, a essência
interior é chamada à atividade. A vida é ativada por vibrações que a atingem de
fora. Estas miríades de sementes de vida, ainda não conscientes de si
mesmas, envoltas em matéria, são lançadas umas contra as outras na
infinidade de processos da natureza; mas a "natureza" é só a roupagem de
Deus, é só a manifestação inferior em que Ele se apresenta no plano material.
Estas formas colidem entre si repetidas vezes, agitando assim as conchas
externas de matéria em que a vida se envolve, e quando o golpe acontece,
freme a vida interior.
Porém a natureza do golpe não é importante. Tudo o que importa é que o golpe
seja forte. Qualquer experiência é útil. Tudo o que golpeia a concha de modo
forte o bastante para fazer a vida vibrar em resposta é o que é necessário nos
estágios iniciais. A vida interna deve ser posta a vibrar. Isso despertará algum
poder latente da vida. De início é apenas um frêmito em si mesmo, nada mais
do que uma agitação, sem resultados sobre a concha externa. Mas à medida
que os golpes se repetem e cada choque incute suas fortes vibrações, a vida
interna emite, através da concha envolvente, um frêmito de resposta. O golpe
provocou uma resposta. Chega-se a um outro estágio - a vida interna emite
uma resposta que atravessa a concha. Isso acontece nos reinos mineral e
vegetal. No reino vegetal a resposta às vibrações causadas pelo contato
começa a demonstrar um novo poder da vida - a sensação. A vida começa a
mostrar em si aquilo que chamamos de "sentimento", isto é, são dadas
respostas diferentes ante o prazer e ante a dor. O prazer é basicamente
harmonioso. Tudo que dá prazer é harmonioso. Tudo o que causa dor é
dissonante. Pensemos na música. Notas ritmadas tocadas juntas em acordes
dão uma sensação agradável ao ouvido. Mas se corrermos nossos dedos pelas
cordas sem atentarmos à posição das notas produziremos um acorde
dissonante, que causa dor ao ouvido. O que vale para a música vale para tudo.
A saúde é harmonia, a moléstia é dissonância. A força é harmonia, a fraqueza
é dissonância. A beleza é harmonia, a feiúra é dissonância. Em toda natureza o
prazer significa a resposta de um ser senciente a vibrações que são
harmoniosas e ritmadas, e a dor significa sua resposta às que são dissonantes
e desritmadas. As vibrações rítmicas criam um canal exteriorizante por onde a
vida pode se expandir, e esta expansão é "prazer"; O fechamento desritmado
dos canais e o extravasamento frustrado são "dor" [O estudante deve meditar
extensivamente neste princípio fundamental, o que lhe esclarecerá muito o
pensamento]. O extravasamento de vida em direção a objetos é o que
chamamos de "desejo"; daí que o prazer resulta da gratificação do desejo. Esta
diferença começa a se fazer sentir no reino vegetal. Chega um golpe que é
harmonioso. A vida responde a estas vibrações harmônicas e se expande,
sentindo "prazer" nesta expansão. Chega um golpe desastrado. A vida
responde a isso dissonantemente, é bloqueada, e sente "dor" neste bloqueio.
Os golpes se repetem sucessivamente, e só depois de eles ocorrerem miríades
de vezes é que começa a surgir, na vida aprisionada, o reconhecimento da
distinção entre os dois tipos. Nossa consciência, como ela é constituída no
presente, só é capaz de distinguir os objetos entre si fazendo diferenciações.
Tomemos um exemplo bem comum. Peguem uma moeda em suas mãos e
fechem seus dedos em torno dela; vocês a sentem; mas se a pressão é
contínua, sem variação alguma, a sensação na mão desaparece e vocês já não
sabem que sua mão não está vazia. Movam um dedo e sentirão o dinheiro;
mantenham a mão imóvel, e a sensação desaparecerá. Assim, a consciência
só consegue conhecer as coisas através de diferenças. E quando a diferença é
eliminada a consciência cessa de responder.
O Mestre chega e diz a esta inteligência em botão: "Se você matar aquele
homem, estarás fazendo um ato que proíbo com autoridade divina. Este ato é
errado. Acarretará misérias". O Mestre diz: "É certo ajudar os famintos, pois o
homem faminto é teu irmão; alimenta-o, não o deixes perecer, divide com ele o
que possuis. Este ato é certo, e se obedeceres estarás em harmonia com a lei".
São oferecidas recompensas para os atos corretos a fim de atrair a inteligência
nascente na direção do bem, e são dadas punições e feitas ameaças para
advertí-lo do errado. A prosperidade terrena é conseguida pela obediência à lei,
e a miséria segue a desobediência a ela. Este anúncio da lei, de que a miséria
segue aquilo que a lei proíbe, e a felicidade aquilo que a lei ordena, estimula a
consciência nascente. Ele desconsidera a lei, segue-se a penalidade, e ele
sofre, e diz: "O Mestre me havia avisado". A lembrança de um mandamento
comprovado pela experiência faz na consciência uma impressão muito mais
rápida e forte do que a experiência sozinha sem a revelação da lei. Com esta
declaração daquilo que ele aprendeu como princípios da moralidade, a saber,
que certas classes de ações retardam a evolução e outras classes a aceleram -
com esta declaração a inteligência é grandemente estimulada.
Como hoje em dia isso ocorre com freqüência! Quantas vezes um jovem,
argumentativo e presunçoso, não ouve à lei, não ouve à experiência, não
presta atenção ao treinamento do passado! O desejo vence a inteligência. Seu
pai fica desolado. "Meu filho mergulhou no vício", diz ele, "meu filho anda no
caminho do mal. Eu o ensinei na conduta correta, e vejam: ele se tornou um
mentiroso; meu coração está despedaçado por sua causa!". Mas Ishvara, Pai
mais amoroso do que qualquer pai terreno, tem paciência. Pois Ele está no
filho tanto quanto está no pai. Ele está lhe ensinando uma lição da única
maneira em que aquela alma deseja aprender. Ele não aprenderia com a
autoridade ou o exemplo. Depois de todos os infortúnios, aquele desejo pelo
mal que está impedindo sua evolução deverá ser extirpado de sua natureza. Se
ele não aprender através da gentileza, que aprenda pela dor. Que aprenda pela
experiência, que mergulhe no vício, e colha a amarga colheita que nasce do
burlar a lei. Há tempo, ele aprenderá a lição com certeza, embora através da
dor. Deus está nele, e mesmo assim permite que ele ande naquele caminho;
antes, Ele mesmo o abre para que ele possa andar nele, e quando ele
pergunta o motivo, a resposta de Deus é: "Meu filho, se tu não Me ouves,
segue teu rumo e aprende tua lição no fogo de tua agonia e na amargura de
tua degradação. Ainda assim estou contigo, velando por ti e por tuas ações, Eu
que sou o Cumpridor da lei e o Pai de tua vida. Deverás aprender na miséria da
degradação aquela cessação do desejo que não aprenderias da sabedoria e do
amor". É por isso que Ele diz no Gitâ: "Eu sou a fraude do embusteiro". Pois
Ele está sempre pacientemente trabalhando para aquela meta gloriosa, e por
vias ásperas, quando não andamos por outras amenas. Nós, incapazes de
entender esta compaixão infinita, lemos equivocadamente estas linhas, mas
Ele trabalha com a paciência da eternidade, a fim de que o desejo possa ser
completamente extirpado, e Seu filho possa se tornar tão perfeito como seu Pai
no céu é perfeito.
Este ideal é tão belo que todo homem sério e racional deseja atingí-lo. Mas a
sabedoria se adianta e diz: "Sim, será vosso, mas deveis conquistá-lo. Deveis
crescer, deveis trabalhar; será certamente vosso, mas não antes de terdes
pago o preço". É importante para nosso próprio crescimento, e para o
crescimento das nações, que esta distinção entre os Dharmas seja entendida
como dependente do estágio de evolução, e que sejamos capazes de discernir
nosso próprio Dharma pelas características que encontramos em nossa própria
natureza. Se apresentamos para uma alma despreparada um ideal tão excelso
que não a comove, impedimos sua evolução. Se oferecermos a um camponês
o ideal de um Brâhmane estaremos lhe apresentando um ideal impossível, e o
resultado é que ele não faz nada. Quando prescrevemos para alguém uma
coisa alta demais para ele, esta pessoa saberá que você esteve falando
bobagens, pois a terá mandado fazer uma coisa que está além de seus
poderes; sua própria tolice terá colocado diante dela motivos que não a
mobilizam. Mas sábios eram os mestres de antanho. Eles davam às crianças
brincadeiras, e aos mais velhos as lições superiores. Mas somos tão "espertos"
que apelamos ao mais baixo pecador com motivos que só estimulariam o santo
mais elevado, e assim, em vez de acelerar, estaremos impedindo sua
evolução. Coloquemos nossos ideais tão alto quanto possível. Mas não o
imponhamos para nossos irmãos, cuja lei de crescimento pode ser
completamente diversa da nossa. Aprendamos a tolerância que auxilia cada
pessoa em sua posição específica a fazer o que é bom para ela, e o que sua
natureza a impele a fazer. Ajudemos deixando cada pessoa em seu próprio
caminho. Aprendamos aquela tolerância que não repele ninguém, nem mesmo
o pecador, aquela que vê em cada um a divindade em ação, e fica a seu lado
para ajudá-lo. Em vez de ficarmos alheios em algum distante e elevado pico de
espiritualidade, e pregando uma doutrina de auto-sacrifício que está
completamente além de sua compreensão, usemos o egoísmo superior para
destruirmos o egoísmo inferior. Não digamos ao camponês que quando ele não
é diligente ele está se afastando do ideal, mas digamos: "Eis a tua mulher, tu a
amas, mas ela passa fome. Começa a trabalhar e alimenta-a". Com este
motivo, que certamente é egoísta, fazemos mais para elevar aquele homem do
que lhe pregando sobre Brahman, o incondicionado e não-manifesto.
Aprendamos o que Dharma significa, e seremos úteis para o mundo.
O CERTO E O ERRADO
Durante os dois últimos dias de nosso estudo estivemos dando nossa atenção
e fixando nosso pensamento no que posso chamar de, em grande parte, o lado
teórico deste problema complicado e difícil. Tentamos entender como surgem
as diferenças entre as naturezas. Tentamos captar a idéia sublime de que este
mundo foi criado para crescer a partir da simples semente de vida dada por
Deus até a imagem d'Aquele que a deu. A perfeição desta imagem, como
vimos, só pode ser expressa pela multiplicidade dos objetos finitos, e a
perfeição jaz nesta multiplicidade; mas nesta mesma multiplicidade que vemos
está necessariamente implicada a limitação de cada objeto. Então vimos que
pela lei do crescimento, devemos ter existindo num universo, a um só tempo,
todas as variedades de naturezas internas em evolução. Como estas naturezas
estão todas em estágios diferentes de evolução, não podemos fazer-lhes mas
mesmas exigências, e nem esperar delas o desempenho das mesmas funções.
A moralidade deve ser estudada em relação às pessoas que hão de praticá-la.
Ao julgarmos o padrão de certo e errado para cada indivíduo devemos
considerar em que estágio de crescimento este indivíduo chegou. O certo
absoluto só existe em Ishvara; nossos certo e errado são relativos e dependem
muito do estágio de evolução que tivermos alcançado.
Então se diz ainda que há um defeito inerente nesta teoria, afetando todos os
padrões morais encontrados em uma revelação que foi dada de uma vez para
sempre. A fim de que um esquema seja útil para a época em que foi dado,
deve ele ter uma natureza adaptada ao seu tempo. À medida que as nações
evoluem, e milhares de milhares de anos se passam entre o povo, descobrimos
que aquilo que era adequado à nação em sua infância se torna inadequado
para ela em sua maturidade; muitos dos preceitos uma vez úteis já não o são
hoje em dia, com a mudança das circunstâncias da época. Esta dificuldade é
reconhecida e resolvida quando passamos a lidar com as escrituras Hindus,
pois encontramos nelas uma vasta variedade de ensinamentos morais,
adequados a todos os graus de evolução das almas. Há preceitos tão simples,
tão claros, tão definidos e tão imperativos que mesmo a mais jovem das almas
pode utilizá-los. Mas vemos também que os Rishis reconheciam que estes
preceitos não se prestavam ao treinamento de uma alma altamente
desenvolvida. Encontramos na Sabedoria Antiga que eram dados também
ensinamentos a umas poucas almas avançadas, ensinamentos que seriam
completamente ininteligíveis para as massas. Estes ensinamentos eram
restritos a um grupo interno de pessoas que haviam atingido a maturidade da
raça humana. No Hinduísmo sempre têm sido reconhecido que as diferentes
escolas de moralidade são necessárias para o crescimento humano. Mas
sempre que, em alguma grande religião, este reconhecimento não existe,
temos uma certa moralidade teórica, não adequada às necessidades em
evolução das pessoas e, portanto, existe uma sensação de irrealidade, um
sentimento de que não é razoável permitir agora o que era permissível na
infância da humanidade. Por outro lado, encontramos aqui e ali, em todas as
escrituras, preceitos do mais elevado caráter que só poucos hoje em dia
podem sequer tentar obedecer. Quando um mandamento adequado para os
quase selvagens, ou o mandamento que é dado a um santo, é tornado uma
obrigação universal e dado com a mesma autoridade para todos, em qualquer
dos casos surge este sentimento de irrealidade, e o resultado é a confusão de
pensamento.
Assim, sua máxima também falha em ser um motivo atraente porque ela apela
somente àqueles de inteligência desenvolvida, isto é, somente à alma
altamente evoluída. Se formos ao homem comum do mundo, a uma pessoa
egoísta, e dissermos a ela: "Você deve levar uma vida de auto-sacrifício e
virtude e perfeita moralidade, mesmo que isso lhe custe a vida", qual vocês
acham que será a sua resposta? Uma tal pessoa diria: "Por que eu deveria
fazer isso pela raça humana, por pessoas no futuro a quem jamais verei?" Se
tomarmos isso como padrão de certo e errado, então o mártir se torna o maior
dos tolos que a humanidade já produziu, pois ele desiste da possibilidade de
felicidade [pessoal] e não obtém nada em troca. Não podemos assumir este
padrão, exceto limitando nossa consideração a casos onde temos uma alma
nobre, altamente evoluída e, embora não inteiramente espiritual, possui em si a
possibilidade de despertar a espiritualidade. Há pessoas como William
Kingdom Clifford, em cujas mãos a doutrina do utilitarismo foi insuflada com
uma nota de sublime elevação. Clifford, em seu ensaio sobre Ética, apela aos
mais altos ideais e dá o mais nobre ensinamento de auto-sacrifício. Ele não
acreditava na imortalidade da alma; aproximando-se da morte, ele foi capaz de
ficar ao lado de seu futuro túmulo, acreditando que ali terminaria tudo, e pregar
que a mais alta virtude é a única coisa que um homem de verdade pode
praticar, uma vez que deve isso a um mundo que lhe deu tudo. Mas muito
poucos tirarão uma inspiração tão nobre de uma perspectiva tão sombria, e
precisamos de uma visão de certo e errado que inspire a todos, apele a todos,
e não meramente àqueles que precisem de sua fraca motivação.
O que resultou enfim deste debate? Confusão, e algo pior: uma aceitação
hipócrita da revelação, com praticamente uma total desconsideração dela na
vida prática. Temos, de fato, uma revelação modificada pelo costume. Este é o
padrão que surge desta confusão. A revelação é tomada teoricamente como
autoridade, mas na prática é desconsiderada, porque muitas vezes é vista
como imperfeita. De modo que temos a atitude irracional de que aquilo que é
aceito como autoridade seja rejeitado na vida, e leva-se uma vida de tipo
ilógico, superficial, sem qualquer lógica ou razão, sem a base de qualquer
sistema racional e definido.
Mas se pensarmos por um momento nesta idéia, talvez consigamos uma visão
clara desta lei, e deixemos de sentir desconforto quanto a este aspecto relativo
do certo e do errado. Coloquemos uma escada com sua base no chão e seu
topo em algum lugar acima do teto. Suponhamos que um de vocês subiu cinco
degraus, outro dois, enquanto um terceiro ficou parado no chão. Para o homem
que subiu cinco degraus, ficar ao lado daquele que só subiu dois significaria
descer, mas para aquele que está no chão significaria subir. Suponhamos que
cada degrau da escada represente uma ação: cada uma seria ao mesmo
tempo moral e imoral, de acordo como ponto de vista em que olharmos. A ação
que seria moral para um homem bruto seria imoral para um homem altamente
cultivado. Pois para uma pessoa na parte superior da escada, descer seria ir
contra a evolução e, portanto, para ele este ato seria imoral; mas para alguém
que estivesse na parte inferior, subir até onde está aquele outro seria moral,
porque estaria na linha de sua evolução. E bem pode acontecer de duas
pessoas estarem no mesmo degrau, mas uma tendo subido e a outra descido
para se encontrarem, sendo o ato moral para uma e imoral para a outra.
Percebam isso e começaremos a desvendar nossa lei.
Tomemos então uma frase usada por um homem de gênio um tanto estranho,
Rudyard Kipling, que em sua obra faz os soldados dizerem que lutarão "pela
viúva que está em Windsor" [alusão à Rainha Vitória]. Isso pode soar um tanto
rude, mas é bom para o homem que passa fome, que sofre mutilações no
campo de batalha, se ele puder se imaginar diante de sua Rainha-Imperatriz,
mãe de milhões de pessoas, oferecendo-lhe sua vida, aprendendo pela
primeira vez a beleza da fidelidade, da coragem e da devoção. Há esta
diferença que, embora mui fracamente discernida pelo público, assinala a
distinção entre o assassinato privado e a guerra. Pois o interesse do primeiro
caso é pessoal, o do outro pertence ao eu mais vasto - ao eu da nação.
Mas este pensamento nos leva a um outro teste de conduta. Nossa ação busca
ganho pessoal ou promove o bem geral? Nossa vida é egoísta e inútil, ou ajuda
a humanidade? Se for egoísta, então está errada, é má, está contra o
crescimento do mundo. Se vocês estiverem entre aqueles que contemplaram a
beleza do ideal de unidade, e reconheceram a perfeição da humanidade divina
que buscamos, então vocês devem matar em si mesmos esta heresia da
separatividade.
Aqui podemos entender uma ou duas outras questões que muitas vezes são
lançadas em nosso rosto por aqueles que têm uma visão superficial das coisas.
Suponhamos um homem que deseja cometer um pecado, mas é impedido
somente pela pressão das circunstâncias; suponhamos que o desejo fica cada
dia mais forte; o que seria melhor para ele? Seria ele ter a oportunidade de
colocar em prática o desejo. Cometer um crime? Sim, mesmo um crime é
menos danoso para a alma do que um pensamento contínuo a respeito, como
se fosse um câncer a corroer o coração da vida. Uma vez empreendido, o ato
está morto, e o sofrimento que segue ensina a lição necessária, mas o
pensamento é gerador e vivo. [Isso não significa que uma pessoa deva
cometer um crime, mas sim que deve lutar contra ele. Enquanto ele lutar, será
bom, pois estará ganhando forças. O caso referido é onde não há luta, onde o
homem está procurando praticar a ação mas lhe falta oportunidade. Em tal
caso, o quanto antes se oferecer a oportunidade, melhor para o homem; o
longo desejo se realiza, depois traz seu sofrimento, o homem aprende a lição
necessária e é purgado de um veneno moral que poderia crescer cada vez
mais]. Compreendem? Se sim, então entenderão o motivo, nas Escrituras, de
Deus colocar no caminho de uma pessoa a oportunidade de cometer um
pecado que o homem deseja cometer, e de fato já o cometeu em seu coração.
Sem dúvida ele sofrerá por seu pecado, mas com o sofrimento ele
compreenderá o que sucede a quem pratica o mal. Se aquele pensamento
maligno fosse deixado a crescer no coração, ficaria cada vez mais forte, e
acabaria por destruir toda a natureza moral do homem. Pois isso é como um
câncer que, se não for removido rapidamente, envenenará todo o corpo. É,
pois, muito mais misericordioso que um tal homem peque e sofra, do que ele
fique a desejar e seja impedido pela mera falta de oportunidade, e assim
produza uma inevitável degradação para suas vidas futuras.
Agora chego à última palavra - uma palavra que ouso pronunciar-lhes, a vocês
que tem estado a escutar com paciência em um assunto tão difícil e abstruso.
Há uma nota ainda mais alta: saibam que existe uma meta suprema, e no
último trecho em sua direção nem o Dharma pode mais nos guiar. Tomemos
algumas palavras maravilhosas do grande Mestre, Shri Krishna, e vejamos
como, em Sua instrução final, Ele fala de algo ainda mais excelso do que
qualquer coisa que sequer tenhamos ousado abordar. Eis Sua mensagem de
paz: "Ouvi, mais uma vez, Minha palavra suprema, a mais secreta de todas;
amo-vos todos, portanto falarei em vosso benefício. Mergulhai vosso Manas
[Mente] em Mim, oh devotos, sacrificai a Mim, prostrai-vos diante de Mim, e
chegareis a Mim. Abandonando todos os Dharmas, buscai refúgio em Mim
somente; não vos entristeçais, eu vos libertarei de todos os pecados"
(Bhagavad-Gîtâ, XVIII, 64-66).
Minhas últimas palavras são endereçadas só àqueles que levam aqui a vida no
supremo desejo de se sacrificarem a Ele; estes têm o direito a estas últimas
palavras de esperança e paz. Então é alcançado o fim do Dharma. Então o
homem já não deseja nada exceto o Senhor. Quando a alma atingiu este
estágio de evolução, quando já não pede nada do mundo, mas se entrega
totalmente a Deus, quando eliminou todos os apelos do desejo, quando o
coração obteve a liberdade através do amor, quando todo seu ser se prostra
aos pés do Senhor - então, todos os Dharmas o abandonam, eles já não lhe
dizem respeito; para este já não se aplicam as leis do crescimento, o equilíbrio
do dever, a análise da conduta. Este se entregou ao Senhor. Nele já não existe
nada que não seja divino. Que Dharma pode restar para quem se uniu ao
Senhor, que já não é um eu separado? Sua vida imerge na d'Ele, Sua vida é
sua; ele pode viver no mundo, mas só como instrumento do Senhor. Ele é todo
de Deus. Sua vida é a de Ishvara, e o Dharma já não pode reclamar nada dele.
Sua devoção o libertou, pois sua vida se oculta em Deus. Esta é a palavra do
Mestre. Este é o último pensamento que deixo com vocês.
E agora, meus irmãos, adeus. Nosso trabalho junto está feito. Depois de uma
apresentação imperfeita de um assunto grandioso, posso lhes dizer: prestem
atenção ao pensamento na mensagem, e não a quem a transmite, pois é só
seu mensageiro; abram seus corações ao pensamento, e esqueçam as
imperfeições dos lábios que o transmitiram. Lembrem que à medida que
ascendemos para Deus, devemos tentar transmitir para nossos irmãos, mesmo
que fracamente, algum toque da vida que buscamos. Portanto esqueçam quem
fala, mas lembrem a mensagem. Adorem a Deus, cujo ensinamento estivemos
estudando, e por caridade perdoem as faltas da serva que o repetiu.