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SERVIÇOS GEOSSISTÊMICOS E A REDUÇÃO DA APA DA ESCARPA DEVONIANA

Gilson Burigo Guimarães (gilsonburigo@gmail.com)1,2,3,4, Carlos Hugo Rocha5, Rosemeri Segecin Moro3,
Antonio Liccardo1,3,4
1
Departamento de Geociências/Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); 2Grupo Universitário de
3 4
Pesquisas Espeleológicas; Programa de Pós-Graduação em Geografia/UEPG; Membro do Conselho Gestor
5
da APA da Escarpa Devoniana, representando a UEPG; Laboratório de Mecanização Agrícola/Departamento
de Ciências do Solo e Mecanização Agrícola/UEPG

INTRODUÇÃO
A região dos Campos Gerais do Paraná e o limite entre o Primeiro e o Segundo Planalto
Paranaenses apresentam um patrimônio natural de caráter excepcional, fato responsável pela
determinação na constituição estadual de que eles fossem protegidos por unidades de conservação
(PARANÁ, 1989). Uma das alternativas adotadas pelo Estado para cumprir esta obrigação foi a
criação da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana em 1992.
Em novembro de 2016, numa estratégia que tem se repetido em diversos outros estados e também
em nível federal, foi apresentado na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná um projeto de lei
que prevê a redução desta APA para menos de um terço de sua área original. A lista de aspectos
negativos é imensa, chamando atenção também a incompreensão do valor da geodiversidade da
área abrangida e as implicações da defesa de um modelo de uso da terra que desconsidere o
conjunto dos serviços geossistêmicos operantes no contexto da APA.

APA DA ESCARPA DEVONIANA


Uma especial conjugação de processos naturais, ao longo do tempo geológico, permitiu que o atual
território paranaense tivesse uma riquíssima expressão de geodiversidade e biodiversidade.
Elementos distribuídos pela planície litorânea, Serra do Mar, três planaltos e duas imponentes
estruturas de relevo, que são a Escarpa Devoniana (separando o Primeiro e o Segundo Planalto) e
a Escarpa da Serra Geral (entre o Segundo e o Terceiro Planalto), influenciados pela natureza da
composição do substrato, progressivamente moldaram a instalação e desenvolvimento do Bioma
Mata Atlântica no Paraná. Igualmente influenciaram também os diferentes estágios que culminaram
na constituição da sociedade dos dias de hoje.
Um amplo setor do Segundo Planalto Paranaense, os Campos Gerais do Paraná, sempre chamou a
atenção pela singularidade, importância ambiental e beleza de sua paisagem, conjugando aspectos
de seu relevo contrastante e uma hidrografia peculiar, junto com flora e fauna características. Esta
região fitogeográfica delimitada por Maack (1948), constituída por campos limpos e campos
cerrados naturais, estaria limitada a leste pela borda do Segundo Planalto, a ‘Escarpa Devoniana’
(sendo devoniana a idade das rochas que a sustentam).
Um espetacular patrimônio geológico/geomorfológico, com rios de águas cristalinas em lajeados,
cachoeiras imponentes, mananciais de águas superficiais e subterrâneas, cânions e
despenhadeiros, furnas e cavernas, associa-se a representantes especiais da fauna e flora e a um
patrimônio cultural com destaque para sítios arqueológicos e o registro do tropeirismo.

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Atendendo o dispositivo constitucional já mencionado e, assim, buscando garantir às gerações
futuras sistemas naturais saudáveis em sintonia com práticas sustentáveis de utilização dos
recursos naturais da região, o governo do Paraná criou em 1992 a APA da Escarpa Devoniana. O
objetivo primordial de sua existência aparece no art. 1º do Decreto: “(...) assegurar a proteção do
limite natural entre o Primeiro e o Segundo Planaltos Paranaenses, inclusive faixa de Campos
Gerais, que se constituem em ecossistema peculiar que alterna capões da floresta de araucária,
matas de galerias e afloramentos rochosos, além de locais de beleza cênica como os “canyons” e
de vestígios arqueológicos e pré-históricos” (PARANÁ, 1992). Trata-se da maior unidade de
conservação contida integralmente no estado do Paraná, com perto de 393.000 hectares
distribuídos em porções de 12 municípios (Sengés, Jaguariaíva, Piraí do Sul, Tibagi, Castro,
Carambeí, Ponta Grossa, Campo Largo, Palmeira, Porto Amazonas, Balsa Nova e Lapa),
acompanhando a faixa leste do Segundo Planalto Paranaense (Figura 1).

Figura 1 – localização da APA da Escarpa Devoniana. Fonte: Plano de Manejo da APA (PARANÁ, 2004).

Apesar de tradicionalmente ser dado um maior destaque aos componentes bióticos de uma unidade
de conservação, claramente sua relevância deve ser dimensionada também pela sua diversidade
abiótica (BRILHA, 2002). A geodiversidade da APA acaba por se constituir num complexo somatório
de produtos e processos, relacionados ao contraste entre as rochas da Bacia do Paraná e seu
embasamento, com predomínio dos arenitos da Formação Furnas. Isto levou ao desenvolvimento
da cuesta da ‘Escarpa Devoniana’ com suas encostas abruptas e verticalizadas e topos alcançando
até 1.290 m, sob a influência da evolução do Arco de Ponta Grossa. Elevado gradiente,
disponibilidade hídrica, preparo estrutural e detalhes da mineralogia destes arenitos, dentre outros
fatores, permitiram por um lado a instalação de diversos corpos hídricos de expressão (Tibagi, das
Cinzas, Pitangui etc.) como também o desenvolvimento de um singular sistema cárstico em rochas
quartzosas, com manifestação em superfície e em profundidade, abrigando o principal aquífero
regional. Por fim, controlando tanto a identidade biogeográfica regional como sustentando a
propalada vocação de celeiro da produção agropecuária nacional, estão solos diversos, com

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participação significativa de Neossolos, Cambissolos, Latossolos, Argissolos e Organossolos
(MELO et al., 2007; GUIMARÃES et al., 2009; MELO et al., 2011).

O PROJETO DE LEI 527/2016


O período compreendido desde a época de criação da APA (1992), passando pela publicação do
Plano de Manejo e seu zoneamento ecológico-econômico (2004), chegando à instituição de seu
Conselho Gestor (2013), foi marcado por intensas pressões sobre esta área protegida, partindo de
setores da sociedade pouco afetos à relevância de temas ambientais e do bem-estar e direitos
públicos, ligados dominantemente às atividades agropecuárias, de silvicultura e mineração. Este
quadro levou a frequentes violações dos apontamentos do Plano de Manejo da unidade, numa
clara afronta a diversos dispositivos legais. Infelizmente estas atividades criminosas foram
precariamente monitoradas, coibidas e mitigadas por parte do poder público, comprometendo
seriamente a integridade dos processos naturais (bióticos e abióticos) operantes na área da APA.
O mais recente capítulo desta história surge na forma do Projeto de Lei 527/2016, de autoria do
legislativo estadual, prevendo a alteração dos limites da APA da Escarpa Devoniana, reduzindo-a
para aproximadamente 32% de sua dimensão original. Sua redação espelha, de forma cristalina,
uma total incompreensão do significado de uma unidade de conservação de uso sustentável e,
em particular, da APA da Escarpa Devoniana. Também é importante mencionar que a proposta
não emergiu de uma discussão ampla e democrática, conduzida e avalizada pelo Conselho
Gestor da APA. O projeto traz um memorial descritivo preparado por uma fundação mantida pelo
setor do agronegócio, não detalhando os argumentos para os novos limites, além de levar a um
polígono impreciso e definido sem rigor técnico, que não corresponde ao mapa divulgado pelas
entidades ruralistas mentoras do PL-527.
O projeto teve uma fortíssima recepção negativa por parte significativa da sociedade, com
diversas entidades apontando sua ilegalidade, inconstitucionalidade, inconveniência, caráter
antidemocrático e falta de bases técnicas adequadas. A expectativa é de que ele acabe rejeitado
e arquivado, mas o resultado final ainda é incerto.

APA DA ESCARPA DEVONIANA E SERVIÇOS GEOSSISTÊMICOS


Entre os pontos negativos do PL-527, destaca-se a perda substancial na arrecadação de ICMS
ecológico dos municípios. Só em 2014 aqueles com territórios dentro da APA obtiveram um
repasse de R$ 5 milhões, que se converteriam em R$ 1,6 milhão caso o novo perímetro estivesse
em vigor. Mapas produzidos pelo Laboratório de Mecanização Agrícola da UEPG demonstram
que a relação entre as áreas naturais e as ocupadas por atividades agropecuárias e de silvicultura
se inverteu drasticamente nos últimos 25 anos, indo de 61%/39% em 1992 para 33%/67% em
2017. Some-se a isso a fragmentação de ecossistemas e a inviabilização genética de
comunidades e consequente extinção de espécies emblemáticas da região. Outro ponto é a
incompreensão, negligência ou desrespeito diante da amplitude dos valores da geodiversidade da

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APA. Como Mochiutti et al. (2011) indicaram para um setor específico da APA (região de Piraí da
Serra), existe estreita conexão entre as atividades econômicas, científicas, culturais ou de lazer
com os elementos da geodiversidade ali presentes, mesmo quando em desacordo com as
indicações do Plano de Manejo e zoneamento ecológico-econômico. Gray (2011), ao agregar os
valores da geodiversidade em serviços geossistêmicos de regulação, provisão, suporte,
conhecimento e cultura, defende que a sociedade moderna depende tanto dos serviços
ecossistêmicos quanto geossistêmicos, sendo que uma abordagem equilibrada da gestão de
recursos naturais deve incluir tanto os fatores bióticos como abióticos, o que é claramente
extensível à realidade da APA.
Em busca de cifras e maior número de postos de trabalho, ou mesmo ao se identificarem “grandes
oportunidades de negócios”, fecham-se os olhos para tradições seculares, para a história coletiva
de grupos minoritários e cuidados de ordem ambiental. Por exemplo, flexibilizar a política de
permissão de empreendimentos potencialmente poluidores na área de recarga do Aquífero
Furnas, na APA da Escarpa Devoniana, é uma decisão hedionda, sob risco de se inviabilizar a
operação adequada de um processo geológico milenar. Não é admissível desconsiderar a
prestação do serviço geossistêmico de fornecimento de água de qualidade e em quantidade para
a manutenção de atividades econômicas e sustentação de cidades e ecossistemas, o qual
depende da compreensão dos limites seguros de operação de fronteiras regionais, numa
abordagem similar à de Steffen et al. (2015) para o planeta.
A própria existência de unidades de uso sustentável articuladas com outras de proteção integral é
recomendável e inerente à implantação de estratégias de geoconservação. Os moradores de Rio
Negro a Sengés, passando por Ponta Grossa, Tibagi e outros municípios, construíram seu senso
de local identificando-se como pertencentes a uma região distinta no estado. Mas até quando
existirão paisagens atreladas ao relevo e solos do reverso da Escarpa Devoniana, dominadas por
campos naturais com bosques de araucárias, justificando esta identificação? Apenas em áreas de
proteção integral, como nos parques estaduais de Vila Velha ou do Guartelá, em que as pessoas
não habitam dentro de seus limites?
O momento atual de grave crise econômica e de valores ético-morais traz o risco de decisões
precipitadas, como pode ser o caso na redução da APA da Escarpa Devoniana. Deixar de
compreender a importância dos processos inerentes à geodiversidade da APA da Escarpa
Devoniana (serviços geossistêmicos), incluindo a formação de solos que permitem as atividades
agropecuárias, a operação adequada do ciclo hidrológico, que repercute no fornecimento de água
localmente, como para Ponta Grossa e Carambeí e em áreas afastadas (por ex., em Londrina, no
norte do Paraná) ou sua beleza cênica e papel didático para as Geociências, representará um
enorme retrocesso econômico, ambiental, social e cultural, sob muitos aspectos irreversíveis.

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REFERÊNCIAS

BRILHA, J. Geoconservation and protected areas. Environmental Conservation, 29, p. 273-276,


2002.

GRAY, J.M. Other nature: geodiversity and geosystem services. Environmental Conservation, v.
38, n. 3, p. 271-274, 2011.

GUIMARÃES, G.B.; MELO, M.S.; MOCHIUTTI, N.F. Desafios da geoconservação nos Campos
Gerais do Paraná. Geologia USP –Série Publicação Especial, 5, p. 47-61, 2009.

MAACK, R. Notas preliminares sobre clima, solos e vegetação do Estado do Paraná. Arquivos de
Biologia e Tecnologia, 2, p. 102-200, 1948.

MELO, M.S.; MORO, R.S.; GUIMARÃES, G.B. (eds.) Patrimônio Natural dos Campos Gerais
do Paraná. Ponta Grossa: UEPG, 2007. 230 p.

MELO, M.S. et al. Carste em rochas não-carbonáticas: o exemplo dos arenitos da Formação
Furnas, Campos Gerais do Paraná/Brasil e as implicações para a região. Revista Espeleo-Tema,
Campinas, v.22, n.1, p. 81-97, 2011.

MOCHIUTTI, N.F.; GUIMARÃES, G.B.; MELO, M.S. Os valores da geodiversidade da região de


Piraí da Serra, Paraná. Geociências, v. 30, n. 4, p. 651-668, 2011.

PARANÁ. Constituição (1989). Constituição do Estado do Paraná. Publicada no Diário Oficial nº


3116 de 5 de Outubro de 1989.

PARANÁ. Decreto nº 1231 de 27 de Março de 1992.

PARANÁ. Plano de Manejo - Área de Proteção Ambiental da Escarpa Devoniana. Curitiba:


SEMA, 301 p. (Anexos), 2004.

STEFFEN, W. et al. Planetary boundaries: guiding human development on a changing planet.


Science, v.347, n.6223, 1259855, 2015. DOI: 10.1126/science.1259855

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