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1. Introdução
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O presente artigo possui trechos de tese de doutorado intitulada “Direito à Educação: diálogo entre
poderes”, defendida no ano de 2012, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas,
que será matéria de livro atualmente (ano de 2018) no prelo.
Já Sudano, Soares e Vergili (2015), em lugar de substituir o trabalho de Souza
(2006), soma-se a ele; não só por acrescentar mais uma década de análise ao contexto
científico, mas em especial por concentrá-la nos trabalhos publicados nos anais da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS),
enfatizando o proscênio nacional de estudos sobre políticas públicas, junto a área de
conhecimento que lhe é mais próxima.
Destes textos podemos extrair que os trabalhos na área de políticas públicas
cresceram significativamente a partir dos anos 2000 (ARRETCHE, 2003; SUDANO,
SOARES, VERGILI, 2015), já que encontraram, nesse período, condições institucionais
que fertilizaram o terreno para a intensificação das investigações, como linhas de
pesquisa, programas de pós-graduação, disciplinas e linhas de fomento (ARRETCHE,
2003).
Sem embargo, Arretche (2003) e Souza (2003), no Dossiê da RBCS, chamam a
atenção para o desenvolvimento horizontalizado da pesquisa, proliferada em diversas
áreas do conhecimento, dificultando uma sistematização do acúmulo de saberes
referentes a área de políticas públicas, de forma que o seu caráter interdisciplinar faz
avançar em alguns aspectos, mas estagnar em outros.
O desafio da sistematização da área também foi abordado por Marques e Faria
(2013), não só no campo metodológico, ao encontro dos textos do Dossiê da RBCS
(2003), mas também na definição do conceito de políticas públicas. Ressaltam, ainda, a
importância do reconhecimento do caráter multidisciplinar2 da área, mas que muitas vezes
se restringe ao discurso sem ser exercitado no desenvolvimento das pesquisas.
De acordo com Souza (2003), espaços de discussão acadêmica, como fóruns,
encontros, simpósios, congressos e afins, “permitem-nos conhecer melhor e mais
rapidamente a produção de nossos pares” (p.16), minimizando os efeitos desta dispersão.
Outro fator relevante levantado por Sudano, Soares e Vergili (2015) é referente a
predominância de trabalhos de profissionais das áreas de ciências política e políticas
públicas, ampliando para sociologia e economia; bem como uma concentração “na análise
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A interdisciplinaridade não se confunde com a multidisciplinaridade. A primeira é pautada por um
processo dialógico entre disciplinas sobre um mesmo objeto; já a segunda, é o trabalho simultâneo de cada
disciplina sobre um mesmo objeto, sem qualquer articulação, dependendo de um elemento externo para
fazê-las dialogar ou reunir-se (MORIN, 2000). Para Marques e Faria (2013) há, primeiro, a necessidade do
fomento ao debate multidisciplinar, para, em seguida, eliminar barreiras disciplinares, configurando a
interdisciplinaridade.
de apenas uma das fases do ciclo de políticas públicas, mais especificamente a
implementação. ” (p.17).
Neste contexto, a colaboração do direito na investigação de temas referentes à
área de políticas públicas é urgente, de forma que sua participação se configuraria como
um processo teórico-metodológico de retroalimentação, pois na medida em que
compartilha seus conhecimentos com as demais áreas, também realiza autorreflexão
sobre os limites e perspectivas próprios.
Para além dos pontos suscitados pelos autores sobre as pesquisas na área de
políticas públicas, quando do seu diálogo com o direito – talvez com qualquer outra área,
mas focamos aqui nos saberes jurídicos – entendemos existir duas condições prévias, de
alta relevância, que acabam determinando a essência das pesquisas sobre o tema, quais
sejam: a origem das políticas públicas e a relação que o direito constrói com as etapas do
seu ciclo.
Nesse sentido, tendo como pano de fundo o constitucionalismo e a democracia
(área de concentração do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito
do Sul de Minas), o objetivo do artigo, é apresentar o contexto de surgimento das políticas
públicas enquanto ação estatal e área do conhecimento, bem como pontuar alguns tipos
de estudos em que o direito se relacione com as etapas das políticas públicas contribuindo
para o amadurecimento da área.
Quando falamos em políticas públicas, podemos nos referir tanto àquilo que Jobert
e Muller (1987) chamaram de “Estado em ação”, quanto à área do conhecimento
trabalhada no texto de Souza (2006).
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O princípio de “rule of law” tem origem com a Magna Carta de João Sem Terra em 1215, visando
estabelecer limitações ao poder político, reconhecendo que nenhum homem, nem o rei, estaria acima das
leis, garantindo-lhe o devido processo legal.
impulso das classes populares, inaugura dois instrumentos de grande importância: veto e
impeachment.
A ideia da separação foi tomada por John Locke como pré-requisito da relação
entre os poderes, pois entendeu que a imparcialidade só existiria mediante a separação
entre aqueles que aplicam e aqueles que fazem a lei (MADONALDO, 2003).
Em Locke (1966) nota-se a existência declarada apenas dos Poderes Legislativo e
Executivo4, sendo que o primeiro seria o mais importante, e o segundo cuidaria da
aplicação das leis. Todavia, conforme aponta Maldonado (2003), é possível notar a
presença, ainda que embrionária, de uma ideia que tratava da existência de um âmbito
julgador, demonstrando que, em Locke (1966), havia a compreensão de que uma
limitação de poder se fazia necessária, para alcançar, restaurar ou manter a ordem. Mas
foi Charles de Montesquieu (2000) o responsável por instaurar um poder julgador,
mantendo uma relação mais estreita com o rule of law:
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Muito embora trate do poder Federativo como uma instância responsável pelas relações internacionais,
apenas os citados guardam relação com os Poderes existentes nos Estados Modernos.
Destarte, foram os norte-americanos que, em decorrência das eleições de 1800,
temerosos da possível tirania do Poder Legislativo, inauguraram a Separação dos Poderes
da forma como a conhecemos hoje, dando ao Poder Judiciário a capacidade de controlar
o abuso de outros poderes através do caso Marbury X Madison.
Na cultura jurídica norte-americana é costume referir-se a uma ação pelo
sobrenome dos envolvidos, neste caso, trata-se de litígio entre o juiz de paz William
Marbury e o secretário de justiça James Madison. Ocorreu que, nas eleições presidenciais
de 1800, John Adams perdeu para Thomas Jefferson e procurou manter controle do
Estado nomeando juízes em cargos de importância, dentre eles, William Marbury.
Todavia, Marbury não foi nomeado a tempo, ficando para Thomas Jefferson o dever de
intitulá-lo, o que, obviamente, negou-se a fazer. O juiz de paz apresentou uma ação inicial,
semelhante ao mandado de segurança, perante a Suprema Corte, exigindo a sua
nomeação, momento em que o juiz John Marshall declarou que a Suprema Corte não
tinha competência para julgar a inicial protocolada, configurando-se como a primeira
decisão sobre o controle de constitucionalidade (NELSON, 2000).
Paralelamente a este contexto de consolidação do Estado de Direito,
consequentemente de um formato de governança diferente do Estado Absolutista, há
também um percurso de formatação da relação entre este Estado e a economia.
Didaticamente, de forma resumida, simplificada, sem compromissos com
períodos históricos e considerando a existência de outras leituras e compreensões que
enriquecem este debate de desenvolvimento do Estado, podemos afirmar que a relação
entre Estado de Direito e economia dão origem a três tipos de Estado distintos, quais
sejam: Estado Mínimo, Estado Democrático de Direito e Estado Socialista, que antecede
o Comunismo.
No caso do Estado Mínimo, este seria formado pela união do Estado de Direito –
em termos de governabilidade – com a proposta de Estado Liberal de Adam Smith (1983)
– em termos econômicos –, cujo objetivo é o mínimo de interferência do Estado no
mercado.
É importante ressaltar que, neste texto, nos referimos ao Estado Liberal em termos
especificamente econômicos haja vista o fato de Locke (1966), Montesquieu (2000), entre
outros pensadores iluministas, serem liberais na acepção política e social da expressão,
cuja bandeira é a defesa de valores individuais como a liberdade. A isto, vinculado a uma
descentralização de poder, estamos aqui chamando de Estado de Direito, e não de Estado
Liberal, motivo pelo qual não se confundem.
A variação das tendências do Estado Mínimo ocorre diante das diferentes
correntes liberais econômicas, todos defendendo os direitos individuais e a separação
entre Estado e mercado, mas enfatizando distintos fatores a depender de suas teorias.
Smith (1983), por exemplo, importava-se mais com a segurança interna e externa, já
Ludwig von Misses (1995) com a defesa da propriedade privada, Hayek (1990)
condenava o planejamento econômico coletivista, e assim sucessivamente.
Tendo como base Ferreira (2014), podemos afirmar que o Estado Mínimo não
supera, de todo, o caráter exploratório presente no Estado Absolutista, mas com o
reconhecimento da igualdade formal para burgueses e populares, dá margem para o
surgimento de movimentos sociais que, além de reivindicarem status de cidadãos,
fortalecem a proposta de Estados Sociais.
Na seara dos Estados Sociais evidenciamos, aqui, o Estado Socialista, uma fase
anterior ao Comunismo, e o Estado Democrático de Direito.
O Comunismo de Marx e Engels (2005) tem como objetivo a eliminação das
barreiras entre interesses comuns e privados, em uma sociedade igualitária sem a presença
de uma instituição estatal. Para que possa ser alcançado, depende do estabelecimento de
uma fase anterior calcada no que chamaram de Estado Socialista. Neste contexto, em
lugar de somar o Estado de Direito com alguma teoria econômica, ocorre uma ruptura.
O Estado Socialista se apropria das discussões sobre igualdade construídas na
consolidação do Estado de Direito, mas valendo-se de uma releitura da coletividade em
lugar da individualidade. A proposta instala-se por meio da ditadura do proletariado,
resultante de uma revolução que tem como objetivo a redistribuição dos bens de produção
para futura disseminação do Estado e solidificação do Comunismo. Note que, nesta
perspectiva, a economia é secundária frente ao princípio da igualdade.
De outro lado, temos a proposta do Estado Democrático de Direito, uma versão
intermediária do Estado Mínimo e Socialista, em que ocorre a união da proposta do
Estado de Direito – governabilidade – com o Estado de Bem-Estar Social ou Welfare
State, ou ainda, Estado-providência (KEYNES, 1936) – economia –. Diferentemente da
proposta marxista, o Estado keynesiano busca o aperfeiçoamento, um equilíbrio, da
relação entre capital e desenvolvimento humano.
Keynes (1936) estava preocupado em acabar com o desemprego, pois acreditava
que a economia seguiria o caminho do pleno emprego, de forma que a dificuldade na
empregabilidade se tratava de uma situação temporária que desapareceria com o estímulo
da demanda.
Os dois grandes objetivos defendidos pelo principal expoente do Estado de Bem
Estar Social eram: a) garantia do bom funcionamento do mercado, a partir de uma lógica
diferenciada, pois inverte a análise feita pelos liberais, ou seja, ao invés de privilegiar o
lado da oferta – daquilo que é produzido – entende que é necessário estimular a demanda,
isto é, defende que é preciso pensar em consumir a produção para obter geração de
emprego e não lucro; e b) a garantia da defesa dos cidadãos na saúde, alimentação e
educação (KEYNES, 1936).
É com este formato que o Estado passa a dedicar mais tempo ao tema das políticas
públicas, em especial, as sociais.
Segundo Arretche (1995), em um dos estudos mais completos sobre o estado da
arte acerca da origem do Estado de Bem-Estar Social, “muitos autores se dedicaram à
tarefa de explicar a origem e desenvolvimento do welfare state. A bibliografia sobre o
assunto é imensa. A controvérsia sobre as razões, o significado e as perspectivas do
fenômeno não é menos complexa” (ARRETCHE, 1995 p.3).
A autora divide os argumentos analíticos em duas grandes correntes, uma que
vincula o surgimento do Estado-providência com a ordem econômica, e outro que o
vincula à ordem política, surgindo, assim, subcategorias. Daqueles argumentos que estão
vinculados à ordem econômica, Arretche (1995) os reduziu a dois, a saber: a) o welfare
state sendo um desdobramento necessário das mudanças postas em marcha pela
industrialização das sociedades; e b) o welfare state concebido como uma resposta às
necessidades de acumulação e legitimação do sistema capitalista.
Os argumentos vinculados à ordem política deram origem a quatro
posicionamentos: a) o welfare state é resultado de uma ampliação progressiva de direitos:
dos civis aos políticos, dos políticos aos sociais; b) o welfare state é resultado de um
acordo entre capital e trabalho organizado, dentro do capitalismo; c) Há diferentes welfare
states: eles são resultado da capacidade de mobilização de poder da classe trabalhadora
no interior de diferentes matizes de poder; e d) o welfare state é resultado de
configurações históricas particulares de estruturas estatais e instituições políticas
(ARRETCHE, 1995).
No caso do Brasil, o debate sobre a existência de um Estado de Bem-Estar ainda
é latente e controverso. Neste artigo, também pela forma de conceber a presença deste
tipo estatal, seguimos o posicionamento de Draibe (1993), qual seja, de que há um
Welfare State estabelecido no nosso país5.
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Embora não seja objetivo deste trabalho tecer análise aprofundada sobre o desenvolvimento do Estado, é
importante pontuar entendermos que o Estado Neoliberal ou Neointervencionista são deturpações da
proposta do Estado de Bem-Estar Social, em uma matriz de Estado de Direito, que merece atenção e
discussão para contribuição ao debate acerca da atuação do Estado na contemporaneidade.
maior complexidade à discussão incorporando novas frentes, como pensar a política
enquanto processo; Easton, em 1965, contribui para a definição do sistema da política
pública, que culmina no desenho mais utilizado na atualidade, o qual considera as fases
do ciclo da política, quais sejam: a definição da agenda, a formulação da política, sua
implementação e avaliação (HOWLETT; RAMESH, 1995).
Considerando este cenário, Souza (2006) resume a área da política pública como:
Por fim, apesar de Souza (2006) também dedicar-se à apresentação dos modelos
de formulação e de análise da política pública, ao considerarmos o campo como
interdisciplinar – o que ela chama de “holístico” (p.26) – corroboramos com suas
afirmações em que, desta forma, “a área torna-se território de várias disciplinas, teorias e
modelos analíticos” (p.26), bem como que tal característica, não configura carência de
coerência teórica e/ou metodológica, ao contrário, comporta múltiplos olhares. Motivo
pelo qual não vamos restringir o rol de modelos e análises que se encontra em expansão
juntamente com a área de conhecimento, deixando apenas a indicação do que se pode
encontrar no universo de trabalhos e publicações a serem explorados e replicados.
Além disso, é preciso considerar outros dois fatores: que “nem todos os problemas
são de natureza política e, sobretudo, nem todos são governamentalmente tratáveis”
(AGUILAR VILLANUEVA, 1996 p. 56), pois guardam relação com questões éticas,
religiosas, culturais, etc...; e que:
Desta forma, fica claro que a dificuldade em definir problemas públicos é, então,
dupla, pois por um lado busca um consenso entre os envolvidos no processo e, por outro,
clama por uma intervenção pública viável, com instrumentos e recursos disponíveis ao
Estado.
No processo de identificação do problema, é preciso ficar atento para não o
confundir com a situação problemática. Por exemplo, a falta de escolas no Município Y
é um problema público, isto é, uma construção lógica que articula e ordena dados e
elementos; a falta de escola próxima de casa para o filho de um determinado cidadão no
Município X é uma situação problemática, pois configura-se como fatos vividos e
observados pelos sujeitos e que, relacionados com seus parâmetros de valores, recebem
conotações de reprovação. As situações problemáticas são discrepâncias entre as
condições vividas, observadas ou desejadas e o que efetivamente ocorre. Esta
diferenciação é importante porque uma das maiores dificuldades dos governos é fazer
com que a definição e solução dos problemas públicos não sejam tão diferentes daquelas
que os interessados e afetados têm:
4. Considerações Finais
ARRETCHE, M. Dossiê agenda de pesquisas em políticas públicas. In: Rev. Bras. Ci.
Soc. Vol. 18 n.51, pp. 7-10, 2003. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v18n51/15981.pdf Acesso em 16 fev. 2018.
HAYEK, F.A. O caminho da servidão. 5ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
LASSWELL, H.D. Politics: Who Gets What, When, How. Cleveland: Meridian Books.
1936.
SMITH, A. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
SOUZA, C. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. In: Sociologias, n.16 pp. 20-45,
2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a03n16 Acesso em 16 fev. 2018.
TREVISAN, A.P.; BELLEN, H.M. Avaliação de políticas públicas: uma revisão teórica
de um campo em construção. In: Revista de Administração Pública – RAP, vol. 3, n.42
pp. 529-550. 2008. Disponível em: http://6644-12436-1-PB.pdf Acesso em 16 fev. 2018.