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LEITURA SOCIOLÓGICA

Professor:
Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
DIREÇÃO

Reitor Wilson de Matos Silva


Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi

NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

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Projeto Gráfico Thayla Guimarães
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Editoração Flávia Thaís Pedroso
Ilustração Bruno Pardinho
Qualidade Textual Meyre Barbosa da Silva

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação


a Distância; ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares Mantovani.

Leituras Contextuais da Bíblia. Júlio Paulo Tavares Mantovani


Zabatiero.
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.
45 p.
“Pós-graduação Universo - EaD”.
1. Leituras. 2. Bíblia. 3. EaD. I. Título.

CDD - 22 ed. 220


CIP - NBR 12899 - AACR/2

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obtidas a partir do site shutterstock.com

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sumário
01 06| QUE É LEITURA SOCIOLÓGICA?

02 11| O CONTEXTO DO LIVRO DE MIQUÉIAS

03 25| LEITURA SOCIOLÓGICA - EXEMPLOS


LEITURA SOCIOLÓGICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
• Definir a leitura sociológica da Bíblia e suas relações com os métodos
históricos.
• Descrever o contexto social da época do livro de Miquéias como preparação
para a leitura sociológica de perícopes do livro.
• Apresentar os principais resultados de uma leitura sociológica de Miquéias
3, 2-8.

PLANO DE ESTUDO

A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:


• Que é Leitura Sociológica?
• O Contexto do Livro de Miquéias.
• Leitura Sociológica - Exemplos.
INTRODUÇÃO

Olá, aluno(a), bem-vindo(a) ao nosso estudo da Leitura Sociológica da Bíblia.


A Bíblia é um celeiro inesgotável de conhecimentos teóricos e práticos para
a vida pessoal e para a ação ministerial e missionária. Entretanto, para que os
seus tesouros sejam bem aproveitados, precisamos desenvolver habilidades
de interpretação textual diversificadas. Abordagens diferentes são necessárias
em função dos diferentes problemas ou situações que o estudo da Bíblia visa
resolver.
Um dos problemas fundamentais da vida humana é a justa organização e
realização da vida em sociedade. Nós, seres humanos, somos seres sociais, não
podemos viver isoladamente. Entretanto a maioria dos arranjos sociais existentes
na história humana tem demonstrado criar mais problemas e injustiças sociais
do que consegue resolver. A história nos ensina que não é fácil viver bem em
sociedade, e que os recursos científicos e ideológicos que desenvolvemos não
têm sido suficientes para resolver os grandes problemas sociais da humanidade.
Bem, não podemos supor que a religião, em geral, ou a fé cristã, em particular,
possa resolver esses problemas por conta própria. A história também nos
mostra que isso não é possível. Entretanto não podemos deixar de considerar
a contribuição da Bíblia e da fé para o aperfeiçoamento da vida em sociedade.
Em nossos tempos, muita gente acredita no secularismo, ou seja, na falta de
legitimidade das religiões para resolver problemas sociais ou humanos em geral.
Podemos aceitar a secularização enquanto separação entre Estado e
Religião, mas não o secularismo. Por isso, a leitura sociológica da Bíblia tem sido
desenvolvida e praticada como uma ferramenta missionária e humanizadora.
Queremos construir juntos um conhecimento técnico importante para a vida
humana na sociedade, e não só nas Igrejas. Mãos à obra, então. Aprenderemos
juntos (ou aperfeiçoaremos juntos o que já sabemos) a ler, sociologicamente,
a Escritura cristã.

introdução
que é leitura
sociológica?
Pós-Universo 7

Já estudamos as duas principais formas de leitura bíblica desenvolvidas na América


Latina, no último quarto do século XX: a hermenêutica contextual evangélica e a
leitura popular da Bíblia, de cunho mais ecumênico e ligada às teologias da libertação.
Nessas duas formas de leitura, o elemento sociológico está presente, embora nem
sempre seja o mais destacado. O que chamamos de leitura sociológica da Bíblia tem
uma história um pouco mais antiga na pesquisa do Primeiro Mundo e é uma das
formas de interpretação da Bíblia que se pratica tanto no âmbito da hermenêutica
contextual quando no da leitura popular da Bíblia.
Os primeiros passos para a criação de uma abordagem sociológica à exegese,
na pesquisa acadêmica, surgem com a criação da Crítica das Formas, no início do
século XX, caracterizada por: (a) descrição da forma literária das perícopes bíblicas;
(b) reconstrução da história de composição da perícope, desde a sua situação social
original, até a sua forma escrita nos livros bíblicos; (c) valorização da situação social
original da forma oral, em alemão Sitz im Leben (literalmente: situação na vida) para
entender a função literária e teológica da perícope escrita. A Crítica das Formas, porém,
é uma atividade exegética literária, e não sociológica, ou seja, visa compreender,
literariamente, o texto, e não sociologicamente.

saiba mais
Os estudos de Crítica das Formas inspiraram uma série de trabalhos sobre
a Bíblia em que aspectos sociológicos foram levados em consideração:
instituições sociais e políticas, o lugar do culto na vida social etc. Entretanto
esses estudos ainda não se caracterizavam como abordagens sociológicas
ao estudo bíblico, mas como abordagens históricas que davam ênfase a
aspectos da sociedade e política: “Esta ‘primeira onda’ de pesquisa sócio
científica, portanto, falhou em sua tentativa de estimular um programa mais
amplo de pesquisa social na erudição bíblica” (SIMKINS; COOK, 1999, p. 2).

Fonte: o autor.
8 Pós-Universo

A leitura propriamente sociológica da Bíblia passou a ser feita, nos anos de 1960,
com o trabalho pioneiro de George Mendenhall e se desenvolveu, especialmente, a
partir dos anos 1970, por meio das pesquisas de Norman K. Gottwald (nos Estados
Unidos) e Gerd Theissen (na Alemanha). Algumas obras desses dois pioneiros foram
publicadas em português e constam das Referências Bibliográficas deste nosso
estudo. Uma descrição dos trabalhos, nesse período, pode ser encontrada em CARTER,
Charles E. A Discipline in Transition: The Contributions of the Social Sciences to the
Study of the Hebrew Bible In: CARTER, Charles E.; MEYERS, Carol L. (eds.). Community,
Identity, and Ideology: Social Science Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake:
Eisenbrauns, 1966, p. 3-36. Daquela década até hoje, o número de autores e autoras,
no Primeiro Mundo, que praticam a chamada exegese sociológica tem crescido
significativamente, e o campo da pesquisa sociológica está já claramente delineado
e estruturado (SIMKINS; COOK, 1999, in passim).
Meu interesse, porém, está voltado à leitura sociológica praticada na América
Latina. No âmbito da leitura popular da Bíblia, desenvolveu-se a abordagem mais
tipicamente sociológica do conflito ou leitura dos quatro lados. O número 2 da revista
Estudos Bíblicos (1984) dedicou dois artigos à leitura sociológica da Bíblia, na América
Latina e, em 1990, o CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação)
promoveu uma série de encontros sobre a leitura da Bíblia, e um deles teve como
tema a leitura sociológica, o que rendeu a seguinte publicação: WEGNER, Uwe. A
leitura bíblica por meio do método sociológico. Rio de Janeiro: CEDI, 1990 (série
Mosaicos da Bíblia n. 12).
Pós-Universo 9

A leitura sociológica da Bíblia, no âmbito da leitura popular latino-americana,


caracterizava-se pelo esforço de encontrar, nos textos bíblicos, a resposta teológica
para os conflitos econômicos, sociais e políticos a fim de estimular, entre os leitores e
as leitoras da Bíblia, na atualidade, a compreensão dos conflitos de nosso tempo e a
participação em movimentos sociais que buscam a sua solução. A leitura sociológica
(ou dos quatro lados) olhava para o texto bíblico a partir de quatro aspectos da
vida social: economia, relações sociais, relações políticas e ideologia (ANDERSON;
GORGULHO, 1984) buscava entender a relação entre esses aspectos, especialmente, a
partir dos conflitos sociais entre governantes e governados, dominantes e dominados.
Com isto, estimulava as comunidades atuais de cristãs e cristãos a entenderem a
sua própria sociedade e a participarem ativamente na resolução de seus próprios
conflitos. Na descrição de Uwe Wegner:


A leitura sociológica tem por objetivo tirar a fé e a religião de suas amarras
intimistas, individualizantes e meramente espiritualizantes. A vida do povo
não se decide só no coração, muito menos só na alma. A vida do povo se
decide no prato cheio ou vazio sobre a mesa, no emprego ou desemprego
na fábrica, na terra para plantar, no salário arrochado ou não, no teto para
morar, no dinheiro para poder cuidar da saúde e em coisas semelhantes.
Toda a organização do trabalho e da vida social, por sua vez, vai depender
muito da política, de quem a exerce e com quais interesses. Em meio a tudo
isso haverá lugar para Deus e a religião? Devemos pensar Deus dentro de
realidades como as relações sociais, a economia, a política e a ideologia? Ou
o espiritual está para aquém destes âmbitos? A leitura sociológica responde
negativamente a esta última pergunta. Ela parte do entendimento de que
Deus não está aquém de nossa realidade nua e crua, mas que quer inserir-se
bem dentro dela e ser percebido a partir de suas dores e alegrias, desesperos
e esperanças. Em outras palavras: é na materialidade concreta da vida que
precisamos – também – sentir e enxergar a presença de Deus. E a análise
sociológica tem como seu principal objetivo exatamente este: o de tornar
Deus presente e transparente em esferas determinantes da vida, como a
política, a economia, as relações sociais e as ideologias. E se o método de leitura
através dos quatro lados torna possível enxergar a presença e a transparência
de Deus, não é por um capricho teológico qualquer, e sim, fundamentado
naquele que representa o centro da fé cristã, Jesus Cristo (WEGNER, 1990, p.
11, grifo do autor).
10 Pós-Universo

Economia

Política Sociedade Ideolgia

Relações
Sociais

Figura 1 - Os quatro aspectos da vida social.


Fonte: o autor.

Em síntese, a leitura sociológica da Bíblia é um tipo parcial de leitura, ou seja, tem


interesse ou enfoque bem específico: perceber o sentido teológico dos conflitos sociais
(em sentido amplo, dos quatro lados) nas Escrituras e, neste sentido, motivar o povo
de Deus a compreender e a participar dos conflitos sociais de seu próprio tempo.
Traz a leitura bíblica para o chão concreto da vida em sociedade e, assim, enfrenta
o risco de interpretar os conflitos sociais e políticos do tempo presente e se engajar
em sua solução. E é exatamente aqui que reside a tensão prática fundamental desta
abordagem de leitura: que critério seguir para nos engajarmos na luta atual por uma
sociedade melhor – o critério teológico ou uma opção ideológica ou político-partidária?
Em outras palavras, até que ponto a leitura sociológica da Bíblia consegue, de fato,
entender o sentido teológico das lutas sociais, ou é afetada pela visão ideológica de
seus praticantes? O risco é real, mas não anula a importância desta abordagem. Ter
consciência do risco é o primeiro passo para superá-lo.
Na sequência, examinaremos um exemplo de leitura sociológica da Bíblia, usando
o livro de Miquéias. Para começar, uma descrição dos conflitos sociológicos da época
do livro e, depois, o comentário propriamente dito dos textos de Miquéias.
o contexto do
livro de Miquéias
12 Pós-Universo

Miquéias e suas Re-leituras


O livro de Miquéias é um dos chamados “profetas menores”. Este apelido é justificado
se olharmos para o tamanho do livro comparado com os livros de Isaías, Jeremias e
Ezequiel (os “profetas maiores”). Se prestarmos atenção ao conteúdo, porém, de forma
alguma Miquéias é um profeta “menor”. A mensagem do livro é profunda e abrangente,
trata desde questões de posse da terra e a corrupção nos tribunais até questões ligadas
aos valores éticos de um país e a conceitos teológicos fundamentais. Chama atenção,
todavia, o fato de que o profeta Miquéias - de quem o livro toma o nome - não era
um “intelectual”, um homem de “cidade grande”, mas sim um camponês, um ancião
da vila de Moresete-Gate, um pequeno lugarejo quase na fronteira do reino de Judá
com a Filístia. Semelhantemente a Amós, também morador de uma pequena cidade
nas montanhas de Judá, Miquéias demonstra que a sabedoria popular em nada fica
devendo à “inteligência” das pessoas “estudadas” das grandes cidades. As palavras de
Miquéias têm, assim, um sabor camponês, um estilo rural, uma perspectiva de quem
trabalha a terra para produzir vida.
O profeta Miquéias, entretanto, não foi o único autor do livro que tem seu nome.
Ele conquistou discípulos e seguidores, a força de sua palavra foi percebida tanto no
interior de Judá como na própria capital do Reino. Em Jeremias 26,1-24, encontramos
um relato a respeito do profeta Jeremias. A cena se passa em Jerusalém, cerca de
100 anos depois da época de Miquéias. Jeremias, o profeta, prega sobre a destruição
de Jerusalém e causa indignação nas autoridades, vai a julgamento, acusado por
sacerdotes e profetas ligados ao Templo de Jerusalém. A sua condenação parece
inevitável, entretanto, alguns anciãos do interior tomaram a defesa de Jeremias
(Jr 26,17-19). Lembraram à assembleia reunida que, no passado, outro profeta já
anunciara a destruição de Jerusalém, e não fora condenado. Ao contrário, segundo
esses anciãos, salvou Judá do juízo divino, e eles citaram palavras de Miquéias (v. 18).
Vemos, portanto, que durante gerações, o pessoal do campo preservou as palavras
de Miquéias, pois viram nele um verdadeiro profeta de Javé.
Pós-Universo 13

Mas não foi só entre anciãos do interior que as palavras de Miquéias foram
respeitadas. Também na capital, Jerusalém, as suas palavras fizeram-se respeitar.
As mesmas pessoas que guardaram e transmitiram as palavras do profeta Isaías
preservaram as palavras de Miquéias e até tiveram o cuidado de colocar a mesma
profecia nos dois livros. Mq 4,1-4 e Is 2,2-5 são a mesma profecia, com pequenas
diferenças de detalhes. Os estudiosos não sabem bem quem foi o autor dessas
palavras nem quando elas foram escritas. Talvez Miquéias, talvez Isaías, ou mesmo
um discípulo, ou uma discípula de um desses profetas. O que interessa para nós,
porém, é que gente da cidade grande fez questão de ajuntar as palavras do camponês
Miquéias e fazer um livro com elas.
A formação do livro de Miquéias, apesar de ele ter apenas sete capítulos, possui
uma longa história. Ele começou a ser escrito na época do profeta Miquéias, um
agricultor do interior de Judá, que foi chamado por Javé para denunciar os crimes
da sua nação (os caps. 1-3 do livro). Isso aconteceu, aproximadamente, no último
quarto do século VIII a.C. (725-700). As palavras de Miquéias, como vimos, foram
preservadas por seus discípulos e por gerações de anciãos de Judá. É possível que,
em essência, 6,1-7,7 tenha tido sua origem entre profetas do reino de Israel, que se
mudaram para Judá após a destruição de Samaria. Esses profetas do reino do Norte
uniram-se a discípulos de Miquéias e ajudaram a manter vivo (no curso do séc. VII,
ou dos sécs. VII-VI a.C.) um movimento camponês de resistência contra a opressão da
casa real (Jerusalém) sobre o campesinato. É possível que, em função da linguagem
e perspectiva teológica de 6,1-7,7 o círculo que compôs este trecho e o anexou às
palavras de Miquéias tenha ajudado a formar um movimento teológico que, mais
tarde, tornou-se extremamente importante para a história religiosa e literária do
Antigo Testamento: o movimento deuteronomista.
14 Pós-Universo

Algum tempo mais tarde, a partir de 587 a.C., quando o reino de Judá não mais
existia, e Jerusalém estava em ruínas, as palavras de Miquéias (caps. 1-3), mais as
palavras dos seus “discípulos” (6,1-7,7) foram relidas por profetas judeus que esperavam
a restauração de sua nação. A grande questão já não era mais “denunciar os crimes de
Judá”, mas animar o coração dos sobreviventes à mortandade e à destruição causadas
pelo exército da Babilônia. Este processo de releitura durou, aproximadamente,
até o ano 500 a.C., refletindo uma situação complexa, que envolvia a tentativa de
reconstrução do Templo e da cidade de Jerusalém. A nação judaica estava sendo
reconstruída, mas havia muita indefinição política, religiosa e econômica. De novo
era necessário animar os corações dos sobreviventes do povo de Deus e tentar
reorganizar um projeto para a restauração de Jerusalém e de Judá. Os caps. 4 e 5
do livro de Miquéias refletem essa situação de desespero, incertezas e tentativas de
entender o fim do reino de Judá e elaborar projetos de restauração do reino.
Foi um período relativamente confuso no tocante às distinções entre os grupos
sócio teológicos. Essa confusão reflete-se nos caps. 4-5 de Miquéias, que giram ao
redor de dois eixos temáticos: Jerusalém (cap. 4) e um novo rei, do “campo” (cap. 5).
Semelhantemente, os conteúdos desses dois capítulos possuem afinidades tanto
com o Segundo Isaías como com o livro de Jeremias, além de indícios de presença
deuteronomista neles. Provavelmente, no final deste período, deu-se a redação final
do livro de Miquéias.
O estudo histórico-literário do livro de Miquéias sugere-nos pistas para localizar,
dentro desses diferentes momentos da história de Judá, as principais partes do
livro. Não temos certeza quanto a todos os detalhes, e há muita discussão entre os
estudiosos a respeito das diferentes camadas literárias deste pequeno livro. Podemos,
de forma simplificada, apresentar o seguinte quadro:

• Século VIII a.C. (palavras do profeta Miquéias) - 1,2-3,12 + (trechos do cap. 5).

• Séculos VIII-VII a.C. (profetas do reino de Israel e discípulos de Miquéias)


- 6,1-7,7.

• Séculos VI-V a.C. (re-leituras exílicas/pós-exílicas de Miquéias) - 4,1-5,14;


7,8-20 + (redação final).
Pós-Universo 15

A pesquisa tem indicado que várias perícopes não se encaixam, cronologicamente, na


sequência do livro. Isto aconteceu porque os redatores finais dos livros dos profetas
não se preocupavam com a ordem cronológica das profecias registradas por escrito.
A preocupação dos redatores dos livros era teológica, ou seja, eles queriam anunciar a
palavra de Deus para as suas comunidades. Por isso, os detalhes cronológicos ficavam
em segundo lugar, era mais importante o conteúdo da palavra - a mensagem de
Deus para o Seu povo.
Os livros dos profetas do Antigo Testamento são como árvores frutíferas: a cada
nova estação assumem a forma necessária para continuar vivendo e, no momento
certo, produzem os frutos que matam a fome e saciam a sede. As palavras/profecias,
no livro de Miquéias, são frutos de colheitas diferentes, mas vem da mesma árvore
e produzem o mesmo efeito. São os frutos da árvore da vida e, para os que estão
dispostos a se comprometer com o projeto de Deus, matam a fome e alegram a vida.
Para os que não se dispõem a seguir e construir o projeto de Deus, amargam a vida
e conduzem à morte.

atenção
No início da história da Igreja, o apóstolo Paulo falou dos pregadores do
Evangelho em termos semelhantes: “De fato, diante de Deus nós somos o
bom perfume de Cristo entre aqueles que se salvam e entre aqueles que
se perdem: para uns, perfume de morte para a morte; para outros, perfume
de vida para a vida” (2 Co 2,15-16). Para compreender essas palavras, hoje,
é preciso conhecer a história e a sociedade dos tempos em que o livro foi
escrito. A abordagem sociológica dá destaque aos conflitos e aos aspectos
estruturais da vida sociopolítica de uma nação ou grupo social. Por isso, em
vez de apresentar o contexto de Miquéias começando pelos fatos históricos,
farei a apresentação a partir de um conceito sociopolítico fundamental
para compreender o mundo dos livros do Antigo Testamento: o conceito
de imperialismo.

Fonte: o autor.
16 Pós-Universo

Judá sob o Imperialismo


Judá, na época em que Miquéias profetizou, estava sob o domínio do Império Assírio.
A presença assíria fez-se sentir na Palestina, na segunda metade do séc. VIII a.C., e
desestruturou as relações de poder na região. Na primeira metade do séc. VIII a.C.
tanto Judá como Israel experimentaram um surto de crescimento econômico e
político, graças à possibilidade de controlar as rotas do comércio internacional e à
liberdade em relação aos impérios estrangeiros. Aproximadamente por volta de 740
a.C., porém, o Império Assírio está novamente em um período de esplendor e começa
a lutar pelo controle da Síria-Palestina.
Por volta de 734 a.C., foi organizada uma coalizão anti-assíria, liderada por Rezin,
de Damasco. Israel entrou para essa coalizão, e houve esforços para conseguir o
apoio de Judá. O rei de Judá, Acaz, não entrou para essa coalizão anti-assíria e sofreu
a represália dos sírios e israelitas. Ameaçado pelos exércitos de Israel e Síria, Acaz
pediu socorro ao rei da Assíria - Tiglat-Pileser. Este veio, imediatamente, em socorro
de Acaz, conquistou Damasco e boa parte do território de Israel. Em troca dessa ajuda
militar, Acaz passou a pagar tributo aos assírios, e Judá tornou-se um país vassalo do
Império Assírio (cf. 2 Rs 16,1-18).
Pós-Universo 17

O reino de Israel, entretanto, perseverou em sua política anti-assíria até que,


finalmente, em 722 a.C. - após um cerco de três anos - a cidade de Samaria foi
conquistada. Cerca de 27.000 de seus habitantes foram deportados, e a cidade tornou-
se capital da província Samerina do Império Assírio. Na região do antigo país de Israel
vieram habitar pessoas de vários países do Império Assírio, conforme o costume assírio
de deportações, com vistas a facilitar o controle sobre as várias regiões do Império (
2 Rs 17,1ss). Enquanto Israel chegava ao fim como nação independente, o reino de
Judá era governado por Ezequias. Durante boa parte de seu reinado, Ezequias foi um
fiel vassalo do Império Assírio, mas, por volta de 705 a.C., após a morte de Sargão,
rei da Assíria, ele - Ezequias - começou a se preparar para se tornar livre do poderio
assírio. A atitude de Ezequias seguia um padrão relativamente comum naquela época
do poderio assírio, tendo em vista que o Império - quando da sucessão do trono -
ficava em um estado de grande agitação político-militar. Enquanto os herdeiros do
rei lutavam pelo trono, os países subordinados tentavam conquistar sua liberdade.
Senaqueribe, o novo rei assírio, alega ter controlado uma tentativa de revolta no sul da
Palestina, durante a qual ele “colocou o orgulhoso Ezequias sob os seus pés”. Em 703
a.C., Merodac-baladã assumiu o poder na Babilônia, organizou-se contra Senaqueribe
e convocou uma grande coalizão militar, contando com o apoio dos filisteus e dos
egípcios. Enquanto não podia lidar com o exército babilônio, Senaqueribe atacou a
região dos filisteus e conseguiu impedir a revolta de algumas de suas cidades-estado.
Nesse meio tempo, Ezequias que parecia permanecer fiel ao Império Assírio, estava
se preparando para uma revolta. Finalmente, em 701 a.C., Senaqueribe voltou ao sul
da Palestina, tomou praticamente todo o interior de Judá - que entregou aos filisteus
- e manteve Ezequias prisioneiro em sua própria capital, Jerusalém. Por alguma razão
desconhecida, Senaqueribe desistiu de tomar Jerusalém e voltou para a Assíria, não
sem, entretanto, recuperar a submissão de Ezequias. Após a morte deste, seu filho
Manassés reinou como fiel vassalo dos assírios (a partir de c. 697 a.C.). Em alguma data,
durante o reinado de Manassés, Judá recuperou as cidades outrora entregues pelos
assírios aos filisteus - certamente como recompensa pela fidelidade do rei judaíta ao
Império Assírio (2 Rs caps. 18-21).
18 Pós-Universo

Monarquia:
Imperialismo
Corte
Assírio
Templo
Exército
Povo:
Trabalho
Tributo

Figura 2 - Estrutura Político-Econômica no Antigo Oriente.


Fonte: o autor.
Sob a presença imperial assíria, a vida do povo de Judá sofreu várias adversidades, e
duas devem ser destacadas:

• Forte presença cultural estrangeira, que contribuía para a perda da identidade


religiosa do país. Discute-se, entre os historiadores, se a Assíria obrigou
Judá (ou os outros vassalos) a adorar os seus deuses. Não há, ainda, um
consenso sobre a questão. Parece-me que a melhor resposta seria a de
que a Assíria não impunha aos países vassalos a adoração de seus deuses,
entretanto a presença de oficiais assírios e a mera presença do poderio
assírio seriam suficientes para levar os vassalos a reverenciar os deuses do
Império. No mínimo, foi isso que Acaz fez, conforme o relato de 2 Reis 16,10-
18. Se levarmos em consideração que a marca distintiva da fé israelita era a
exclusividade da adoração a Javé, a presença cultural assíria significava um
forte abalo à identidade judaíta.
Pós-Universo 19

• Exigência de tributo adicional ao já exigido pela monarquia judaíta.


Juntamente com a ameaça à identidade religiosa do país, o imperialismo
assírio criava dura realidade financeira para os camponeses, principalmente,
com a exigência de pesados tributos - em pedras preciosas, outros bens e,
quando necessário, soldados (cf. os vários anais de reis assírios do período
e, também, 2 Rs 16,8; 18,14-15). Embora os relatos do livro de Reis falem da
fonte do pagamento dos tributos como o tesouro do templo, certamente
ele seria cobrado do campesinato, pois somente da produção agrícola é
que Judá poderia arrecadar dinheiro no comércio internacional.

Diante deste quadro, a resposta militarista de Ezequias somente vinha acrescentar


dificuldades ao campesinato judaíta. A chamada “reforma” de Ezequias (2 Rs 18,3-6)
foi parte de sua revolta contra o domínio assírio (2 Rs 18,7). Aparentemente, Ezequias
estava bem intencionado em sua política anti-assíria. Por um lado, tentou restabelecer
a identidade do país, recusando-se a patrocinar a adoração de deuses estrangeiros.
Por outro, tentou livrar a nação do domínio assírio e do consequente pagamento
de tributos ao Império. Entretanto, ao tomar as medidas para tal “libertação”, não foi
capaz de resolver os problemas mais imediatos e concretos do campesinato judaíta.
Vejamos:

1. Se o relato de 2 Rs 18,3-6 não é exagerado, na sua reforma religiosa Ezequias


não só atacou o culto a deuses estrangeiros, como também atacou os
“lugares altos”, ou seja, os santuários populares do interior, sob o pretexto de
que esses lugares altos seriam idolátricos. Assim, na tentativa de restaurar a
identidade da nação, não levou a sério os direitos religiosos do campesinato;
violentou a religião das famílias de seu povo.
20 Pós-Universo

2. Para lutar contra os assírios, Ezequias iniciou um ambicioso programa de


reforma da cidade de Jerusalém: reconstruiu os muros da cidade, fortaleceu
suas defesas, construiu estábulos e depósitos na cidade, edificou um novo
muro de proteção, reaparelhou o exército e escavou na rocha sólida um
túnel, com aproximadamente 534 metros de cumprimento, para garantir
o abastecimento de água de Jerusalém em caso de um cerco militar (2
Cr 32,5.28-30). Provavelmente, tomou medidas semelhantes em cidades
fortificadas do interior de Judá e contratou mercenários para o exército.
Essas medidas significavam não só um aumento da demanda de tributos
em espécie (para compra de materiais e armas), mas também significava
o arregimentamento dos jovens para os trabalhos de construção. Tributo
para o sustento da corte, para o sustento do Império e para o sustento de
um novo exército, mais a corveia para as obras militares do Estado, assim,
colocavam um jugo insuportável sobre o campesinato. Não é à toa, pois,
que Miquéias fala de Jerusalém como cidade construída com sangue (3,12).

Em tal situação, porém, nem todos saíam perdendo. Em toda e qualquer sociedade
há as pessoas que sabem e podem aproveitar as oportunidades sistêmicas para o
enriquecimento rápido. No tempo de Ezequias, duas possibilidades de enriquecimento
rápido foram criadas (ou intensificadas): por um lado, a participação no comércio
internacional necessário para auferir “divisas” a fim de pagar os tributos para o Império
Assírio e também pagar as despesas do projeto estatal - essa participação ocorria
sob a supervisão do Estado que, praticamente, detinha o monopólio do comércio
internacional então; e, por outro lado, o financiamento do campesinato endividado
pelos tributos e corveia crescentes. Com o não pagamento das dívidas, os credores
tomavam as terras dos devedores e formavam “latifúndios” altamente lucrativos. É
especialmente este processo de acumulação de terras que Miquéias, como porta-
voz dos sem-terra denuncia. Os sem-terra a quem Miquéias pertence teriam sido
agricultores que perderam as suas terras nesse processo iníquo de acumulação.
Pós-Universo 21

Tendo em vista que mudanças desse tipo não ocorrem sem forte legitimação
ideológica, não surpreende que Miquéias tenha tido fortes conflitos com os falsos
profetas, ou seja, os sacerdotes, adivinhos e pregadores que apoiavam o projeto do
rei e propagavam a teologia da inviolabilidade de Sião. Ao mesmo tempo, denunciava
os tribunais que permitiam a acumulação de terras, um processo que negava o
tradicional direito fundiário do campesinato judaíta. As pregações de Miquéias que
mais claramente atacam as questões e conflitos sociais estão nos capítulos. 2-3 do
livro.
Como resposta à revolta de Ezequias, Senaqueribe invadiu Judá em 701 a.C.,
tomou 46 cidades do interior, deportou boa parte de sua população e entregou o
território aos filisteus fiéis ao seu governo. Mais uma vez, o campesinato pagou a
conta da política militarista insensata de seu rei. Neste sentido, a política submissa
de Manassés, embora fortemente condenada pelos deuteronomistas por seu caráter
idolátrico (2 Rs 21), representou um alívio econômico para o campesinato judeu,
além de ter conseguido recuperar o território perdido por Ezequias. Não deixa de
ser irônico o fato de que o “bom” rei, do ponto de vista da “teologia”, foi um desastre
para o povo, enquanto o “mau” rei conseguiu benefícios (parciais, é certo) para esse
mesmo povo sofrido.

saiba mais
Não devemos nos iludir com isso, porém Manassés permaneceu um fiel
pagador de tributo ao império, tributo que ele extraía do campesinato
judaíta - e provavelmente foi essa a razão pela qual os assírios devolveram
os territórios perdidos por Ezequias - a fim de garantir uma base para a
arrecadação de tributos pelo novo e fiel monarca judeu. Além disso, a sua
política religiosa idolátrica - apesar dos exageros da crítica deuteronomista
- certamente causou sérios embaraços ao campesinato judaíta. O clima
econômico, cultural e religioso do reinado de Manassés parece ser o pano
de fundo das denúncias de Mq 6,1-7,7.

Fonte: o autor.
22 Pós-Universo

Judá sob o Imperialismo Babilônio e Persa


A maior parte de Miquéias 4-5 e 7,8-20 bem como o processo de redação final do
livro provêm do período em que Judá esteve sob o domínio dos babilônios e persas.
Na segunda metade do séc. VII a.C., houve mais uma tentativa, por parte do rei Josias,
de se livrar do poderio assírio e realizar uma reforma religiosa em moldes similares
aos do projeto de Ezequias. Em função de seu projeto militarista de independência,
Josias morre em uma batalha contra os egípcios, em 609 a.C. A partir daí, Judá sai da
esfera do poder assírio e entra na esfera do poder egípcio - troca um senhor por outro.
Entrementes, os babilônios conseguem assumir o antigo Império Assírio e passam a
se ocupar com a região palestinense. Judá cai sob a órbita do poder babilônio, mas
numa tentativa de se libertar, em 597 a.C., o rei Jeconias foi feito prisioneiro do rei da
Babilônia, tesouros do Templo foram tomados e uma pequena parcela da população
de Jerusalém foi deportada para a Babilônia.
Os babilônios impuseram um novo rei sobre Judá, Sedecias. Este, alguns anos
depois, se rebelou contra o domínio babilônico e causou a destruição de Jerusalém
(587 a.C.) e mais uma deportação de parte da população da cidade, além da morte
de considerável parcela da população do campo, no decorrer da invasão do exército
babilônio. Os babilônios colocaram sobre Judá um “governador”, provavelmente, a
fim de reorganizar a região com vistas à arrecadação de tributos. Isso não deu certo, e
mais uma revolta contra os babilônios aconteceu, causando mais uma deportação, em
582 a.C. A partir desse ano, Judá ficou “largada em suas próprias mãos”. Sem governo,
sem Templo, sem lideranças religiosas definidas. Judá transformou-se numa região
sem controle estatal e, possivelmente, os sobreviventes foram se ajeitando a partir
de suas tradições de organização clânica e foram levando a vida conforme possível.
Podemos imaginar o quadro confuso dos grupos de reflexão teológica desse
período, mas, certamente, tiveram de se esforçar para: explicar a queda de Jerusalém;
gerar esperança e projetos de restauração - ora messiânicos, ora centralizados no
Templo etc. e lidar com a presença e intercâmbio com estrangeiros e nações vizinhas.
Pós-Universo 23

Denúncia
Profecia Ameaça - Sentença;
Crítica Anúncio

Sacerdotes
Profetas
Denunciados Elite econômica
Governantes
Figura 3 - Profecia crítica e Denunciados
Fonte: o autor.
Em 539 a.C., os persas, que haviam tomado o Império Babilônico, resolveram reorganizar
a região de Judá e permitiram a volta de judeus exilados. Os livros de Ageu e Zacarias
tratam de alguns episódios ligados a essa primeira tentativa de reorganização de
Jerusalém e Judá (são textos dos anos 520-518 a.C.), bem como vários trechos do
Terceiro-Isaías (caps. 56-66) provêm, em geral, deste período inicial do domínio persa.
Novos conflitos surgiram tanto em nível teológico como político-econômico, e a
tentativa não foi, aparentemente, muito bem-sucedida. De qualquer forma, porém,
a vida em Judá estava novamente sob um regime de governo a partir de Jerusalém,
conflitos pela propriedade de terras voltaram a acontecer, situações conflitivas com
as nações vizinhas aconteceram e choques de projetos de restauração mais uma vez
se fizeram sentir.
24 Pós-Universo

É nesse confuso período e pouco conhecido pelos historiadores, de 580 a.C. até
500 a.C. que foram produzidos os caps. 4-5 de Miquéias, o texto de 7,8-20 e a redação
final do livro. Os grandes eixos temáticos dessa redação final foram:

1. Qual o projeto de restauração mais adequado para Judá e Jerusalém?;

2. Como nos relacionamos com o Império e com as nações vizinhas, nesta


nova situação?;

3. Como servir e adorar a Javé, de modo a reconquistarmos o seu favor e


amparo?

A essas perguntas, o livro de Miquéias oferece as seguintes respostas:

4. Judá e Jerusalém têm de ser reconstruídos, mas não mais como antagonistas,
e sim como colaboradores, numa relação de justiça e respeito ao direito
tradicional do campesinato. Jerusalém deverá exercer um papel de liderança
religiosa e política, mas sob o domínio de Javé e com um monarca que
atenda aos interesses do interior;

5. O povo de Deus será, por Javé, liberto do Império e se tornará um instrumento


de ensino da palavra de Javé para as nações, que aprenderão a viver em
paz. Rejeita-se a atitude militarista cujos resultados são apenas opressão,
destruição e mortandade. Há, porém, que lidar com as nações rebeldes
que não se dispuserem a seguir o caminho de Javé. Para estas, Judá - sob
a liderança de Javé - será uma forte nação capaz de enfrentá-las e derrotá-
las se e quando necessário;

6. A relação com o rei-Javé tem sua base na aliança misericordiosa de Javé com
seu povo e exige uma resposta do povo e de seu rei humano em termos de
justiça, solidariedade e humildade (temor a Deus). Os cultos não precisam de
sacrifícios de animais, mas de expressar o louvor a Javé, a atenção à Palavra
de Deus, o temor ao Senhor e a solidariedade/justiça sociais.
leitura
sociológica -
exemplos
26 Pós-Universo

Caro(a) aluno(a), até agora, vimos bastante teoria. Vale a pena, então, ver como
funciona a leitura sociológica. Selecionei duas perícopes do livro do profeta Miquéias
que podem nos ajudar a entender o processo prático de leitura sociológica.

Miquéias 3, 1- 4
Toda exegese inicia com a tradução do texto bíblico e a análise de sua estrutura.

Texto e Estrutura

1
Eu digo: Escutem bem, chefes de Jacó, governantes da casa de Israel! Por acaso, não
é obrigação de vocês conhecer o direito? 2 Inimigos do bem e amantes do mal; 3 vocês
são gente que devora a carne do meu povo e o esfola; quebra seus ossos e os faz
em pedaços, como carne na panela, como um cozido no caldeirão. A pele de vocês
será esfolada, a sua carne de seus ossos, 4 então vocês gritarão a Javé, mas ele não
responderá. Nesse tempo, ele esconderá a sua face, por causa da maldade que vocês
praticaram (ZABATIERO,1996, p. 56-86).

Vejamos a estrutura deste oráculo:

Introdução: Chamando a atenção dos denunciados (v. 1a)


Denúncia: A corrupção dos tribunais e seus efeitos sobre o campesinato (v. 1b-3)
1. Tribunais corrompidos (v. 1b-2a)
2. As vítimas da corrupção (v. 3)
Ameaça: Javé não ouvirá o clamor dos corruptos (v. 2b., 4)
1. Sofrerão o castigo que infligiram ao “meu povo” (v. 2b)
2. Clamarão, mas Javé não os ouvirá (v. 4)
Pós-Universo 27

A forma literária é a de um oráculo de juízo, com as seções de denúncia e ameaça


claramente demarcadas. Chamam a atenção, nesta perícope, a mudança dos sujeitos
gramaticais da segunda para a terceira pessoa (que é eliminada pela tradução), e o
arranjo poético bem acentuado das linhas que a compõem.
Há uma dificuldade textual de vulto na Bíblia Hebraica, que são os pronomes
de terceira pessoa do plural em 2b, que não possuem um antecedente gramatical
(na tradução da Bíblia Pastoral isso não é percebido). Vários comentaristas, portanto,
sugerem que se leia o v. 2b como parte da ameaça, e não como parte da denúncia. Esta
alternativa oferece melhor sentido para o texto, e o erro de cópia que ela pressupõe
poderia ter sido facilmente cometido por copistas, tendo em vista a repetição dos
verbos na perícope. Prefiro seguir essa sugestão e já adaptei a tradução apresentada,
seguindo esta linha exegética.
Quanto à redação, o oráculo não apresenta sinais de ter sido adaptado por um
processo de releitura. Cabe ressaltar que boa parte dos comentaristas vê o cap. 3 como
uma unidade independente do cap. 2, pois consideram que não há continuidade
temática entre eles. Nossa leitura, porém, deixa evidente a continuidade temática -
independentemente da validade de todos os detalhes da reconstrução sociológica
oferecida -, o cap. 3 tematiza as instituições sociais que legitimam o processo de
acumulação de terras denunciado no cap. 2, a saber: “agentes recrutadores” do Estado,
tribunais, profetas e sacerdócio.
28 Pós-Universo

Interpretação Sociológica
• Os denunciados (v. 1a)
Uma palavra introdutória sobre a expressão “Eu digo”. Esta expressão cumpre
uma importante função retórica: serve para reforçar a identidade do profeta
e, nesta função, corresponde à expressão “eu, porém”, no v. 8. Os denunciados
nesta perícope deveriam cumprir a justiça, e não o faziam. Miquéias, no v. 8,
apresenta-se como “cheio de justiça”, por isso, deve ser ouvido com atenção.
A palavra de Miquéias dirige-se contra os “chefes de Jacó” e “governantes da
casa de Israel” (de novo em Mq 3,9). Estes dois termos referem-se às pessoas
encarregadas da administração da justiça nos tribunais locais das cidades e
do “recrutamento” militar (e também para a corveia) - conforme indicam: Êx
18,25; Js 10,24; Jz 11,6.11: 2Cr 19,4-11; Dt 16,18-20; Is 1,23). Não sabemos ao
certo se, em todas as cidades de Judá, esses cargos eram preenchidos pelas
mesmas pessoas, ou não. O fato de aparecerem em paralelismo e, nesta
perícope, serem acusados apenas de distorcer o direito, dá a entender que
são funções diferentes exercidas pelas mesmas pessoas. Este, com certeza,
seria o caso nas cidades fortificadas, nas quais a população era composta
apenas de militares e pessoal ao seu serviço, e que serviam de abrigo para
as populações camponesas das vizinhanças, em caso de invasão estrangeira.
Em cidades não militares, as pessoas mais influentes seriam as prováveis
ocupantes desses cargos, exercendo as funções política e jurídica, às “portas”
da cidade. Nesse caso, vários dos “acumuladores de terras” denunciados no
cap. 2 poderiam ocupar tais funções. De qualquer forma, independentemente
das possíveis diferenças regionais, estas pessoas - “chefes” e “governantes” -
representavam o poder estatal e possuíam a autoridade política e jurídica
em suas regiões.
Pós-Universo 29

• A denúncia (v. 1b e 3)
A primeira parte da denúncia corresponde, propriamente falando, à acusação
de Miquéias contra os “chefes” e “governantes”. A acusação é iniciada com
uma pergunta retórica: “Não é a obrigação de vocês conhecer o direito?”
A resposta, obviamente, deveria ser positiva. Desta forma, o profeta indica
que os denunciados não estavam cumprindo corretamente o seu dever,
nos julgamentos aos quais presidiam. A pergunta retórica tem o efeito de
destacar a compreensão normal da função dos juízes em Judá e Israel. Eles
eram os responsáveis pelo cumprimento do direito, ou seja, sua obrigação
era efetuar julgamento justos e honestos nos tribunais às portas das cidades.
O verbo conhecer, aqui, tem o sentido de capacidade e habilidade no
tratamento das questões judiciais - envolve o conhecimento do direito
tradicional, oral ou codificado (como o Código da Aliança), e a sabedoria
para decidir uma questão judicial. “Direito”, traduz a palavra hebraica mishpat,
que, normalmente, é traduzida por “justiça”, mas aqui, como em outros
contextos (e.g., Dt 1,9-18; Êx 18,13-27) refere-se às sentenças pronunciadas
nos julgamentos. Consequentemente, a denúncia de Miquéias aponta a
corrupção do exercício da justiça nos tribunais, em função de interesses
econômicos dos participantes dos julgamentos e, nos casos em que os juízes
não eram diretamente envolvidos, envolvia a prática de aceitar suborno para
favorecer os ricos. A mesma acusação é formulada por outros profetas do
VIII séc. a.C. (Is 1,17.21-23; 5,7.23; Am 5,12), o que indica a extensão desse
tipo de violação da solidariedade social.
30 Pós-Universo

Em linguagem que lembra Am 5,15, mas com o sentido invertido, Miquéias


caracteriza esses juízes como “inimigos (os que odeiam) do bem e amantes
do mal”. Este par - bem e mal - é muito comum na literatura sapiencial (Pv
1,22; 9,8; 12,1; 13,24; Sl 34,14; 37,27) e é usado pelos profetas do VIII século
em referência à corrupção dos tribunais (cp. Is 1,17). No âmbito judicial, amar
o mal e odiar o bem corresponde a emitir sentenças injustas, favorecendo
os culpados e prejudicando os inocentes. No uso mais amplo, “bem” e “mal”
são termos genéricos que se referem ao “certo/errado”; concretamente,
indicam, respectivamente, a justiça decorrente da obediência ao direito de
Javé, e a injustiça decorrente da não obediência à vontade do Senhor. Em
uma chave mais sociológica, o bem denota a vida digna e livre das famílias
na terra dada por Javé, enquanto o mal corresponde ao rompimento da
vida comunitária das aldeias e vilas camponesas. O “bem”, podemos então
dizer, corresponde à tradição teológica rural, enquanto o “mal” remonta à
ideologia estatal que legitimava a opressão do campesinato.
No v. 3, Miquéias muda o tom de sua linguagem. Sai do âmbito jurídico e
utiliza metáforas extraídas da culinária e alimentação. Com essas metáforas,
Miquéias descreve os efeitos da injustiça dos tribunais para a vida do
campesinato. O “meu povo”, apelando à justiça jurídica para se defender
contra a opressão, nada encontra a não ser mais opressão. O tema, portanto,
permanece sendo o da espoliação do campesinato, o roubo de suas terras,
mas, aqui, encarado sob a perspectiva jurídica. Como resultado da corrupção
dos tribunais, os camponeses são como que esfolados, cozidos e devorados
por aqueles que deveriam defender o seu direito. O mesmo tipo de metáfora
é encontrado em Sl 14,4; 27,2 e Pv 30,11-14. Os exemplos no Salmo 14 e
em Provérbios 30,11-14 são particularmente instrutivos, pois denotam
exatamente a inversão de valores que ocorre em uma sociedade, quando
a vida humana fica subordinada aos interesses político-econômicos. Até
hoje estas metáforas são utilizadas pelas pessoas duramente oprimidas ou
em grande sofrimento. A indignação cresce à medida em que se percebe
que as pessoas investidas de autoridade para impedir a injustiça acabam
participando do próprio crime que deveriam coibir.
Pós-Universo 31

• A ameaça (v. 2b e 4)
A sentença pronunciada possui um tom altamente teológico, mas reflete
a expectativa costumeira da época, que o castigo corresponde ao mal
cometido. Está implícito, na ameaça, o fato de que o “meu povo”, oprimido,
clamaria a Javé e encontraria nele o refúgio e a libertação. Nesse dia, os
amantes do mal é que se veriam em uma situação de “vítimas de canibalismo”,
na qual teriam de gritar por socorro a Javé. Entretanto não seriam atendidos
por Javé. A época da execução da ameaça está indeterminada no texto.
“Depois” (lit. “naquele tempo”) não dá nenhuma indicação segura do tempo
do cumprimento da sentença, nesse sentido, corresponde a 2,3b.4a. Alguns
comentaristas entendem esta palavra como acréscimo dos redatores
deuteronomistas, implicando que a ameaça se referia à destruição de
Jerusalém. Não me parece necessário ir tão longe.
Embora o verbo clamar seja usado também em ambiente jurídico, é muito
mais comum no ambiente litúrgico. Aos juízes corruptos o profeta anuncia a
sentença de Javé: quando tiverem de lhe elevar o clamor, Ele não os ouvirá.
Duas frases expressam a negativa de Javé aos denunciados: “não responderá”
significa que Javé não irá intervir a favor deles, para os libertar do mal.
“Esconderá a sua face” indica que Deus sequer estará disponível para ouvi-
los em suas liturgias de lamento (cf. Sl 13,2; 22,5; Am 5,21-24; Is 1,10-15). Por
fim, a ameaça incorpora um elemento de denúncia “por causa da maldade
que vocês praticaram”. Embora aparente ser um anticlímax às metáforas
anteriores, a frase é apropriada aqui, pois os denunciados consideravam-se
o povo de Javé, os herdeiros das suas promessas e os agraciados pela Sua
poderosa mão (cf. 2,6). De fato, porém, nada mais eram do que praticantes
do mal. No devido tempo, enxergariam claramente que eram “não-meu
povo”, e que Javé não estava em seu “meio” (cf. 3,11).
32 Pós-Universo

Miquéias 3, 5-8
Assim como na perícope anterior, iniciamos com a tradução do texto hebraico e a
análise da estrutura da perícope.

Texto e Estrutura

5
Assim diz Javé para os profetas que extraviam o meu povo, que anunciam a
paz quando têm algo para mastigar, mas declaram guerra contra os que nada
lhes põem na boca. 6 Por isso, vocês terão noite, no lugar de visões; escuridão, ao
invés de respostas. O sol se esconderá sobre esses profetas, a luz do dia se apagará
sobre eles. 7 Os videntes ficarão envergonhados, os adivinhos ficarão confusos.
Todos cobrirão o rosto, porque Deus não responderá. 8 Eu, porém, estou cheio de
força, do espírito de Javé, do direito e da fortaleza, para denunciar a Jacó o seu
crime e a Israel o seu pecado.

A forma literária é a mesma de 3,1-4, ou seja, um oráculo de juízo. Possui algumas


peculiaridades, porém: os denunciados são apresentados na introdução, mas também
na ameaça; a denúncia é proporcionalmente curta em relação à ameaça; e especial,
porém, é a presença do verso 8, no qual Miquéias apresenta as suas credenciais como
verdadeiro mensageiro de Javé, em contraste com os profetas, videntes e adivinhos
que ele denuncia como mercenários. O arranjo estrutural possui uma organização
semi-quiástica.
A estrutura é clara:

Introdução - Fórmula do Mensageiro (v. 5a)


Denúncia - Enganam o “meu povo” (v. 5b)
Ameaça - Não terão resposta de Javé (v. 6-7)
Autoapresentação - O verdadeiro mensageiro de Javé (v. 8)
Pós-Universo 33

A dificuldade na interpretação deste texto mescla-se com a questão da redação. A


maioria dos comentaristas considera que o termo “espírito de Javé” seja um acréscimo
editorial. Segundo eles: 1) não fica bem, teologicamente, o Espírito de Javé estar em
sinonímia com os efeitos de sua ação; 2) a inspiração do Espírito é um tema comum
no exílio e depois, mas seu uso, aqui, seria único na profecia pré-exílica; 3) a métrica
do verso está sobrecarregada. As objeções 1 e 2 correspondem-se, eliminada uma,
a outra não se mantém. Ora, Miquéias já falara do “espírito” inspirador dos profetas
(2,11), naquele caso, um espírito enganador. Ao se autoapresentar, falar de ser “cheio
do Espírito de Javé” não precisa ser entendido no sentido teológico posterior, mas,
simplesmente, como uma forma “primitiva” de afirmar a veracidade de suas palavras.
A questão da métrica é inconclusiva, em particular nas palavras de Miquéias, que
não obedecem a padrões evidentes. Consequentemente, corrigi a tradução da Bíblia
Pastoral, que, para evitar a dificuldade, leu “força do espírito de Javé” - uma proposta
interessante, mas gramaticalmente inaceitável.

Interpretação Sociológica
• Os denunciados (v. 5a.7a)
São usadas três palavras diferentes para se referir aos denunciados: profetas,
adivinhos e videntes. Não devemos ver, neste fato, uma classificação de
diferentes tipos de profetas. Em 2,6-11 outros termos foram usados para se
referir à atividade profética. O que está em vista, com maior probabilidade,
são as diferentes formas pelas quais os profetas recebiam de Deus as suas
mensagens. Se, porém, houver alguma diferenciação funcional, o termo
“profetas” poderia se referir, especificamente, aos profetas ligados ao Templo
de Jerusalém, e os demais termos refeririam-se aos “profetas” espalhados
pelas várias cidades de Judá, sem conexão direta com o Templo.
34 Pós-Universo

O que é importante para a leitura sociológica, porém, é destacar a função


desses profetas no contexto social da época. Eles eram os que socializavam
a legitimação ideológica do projeto do Estado, ou seja, juntamente com o
sacerdócio, preenchiam a função de “educadores” (alguns prefeririam o termo
doutrinadores) do povo, transmitindo conforme os interesses do monarca
as tradições teológicas do país. Assim sendo, cumpriam o importante
papel de legitimadores do projeto estatal e ajudavam o Estado a manter
a “hegemonia” intelectual sobre a sociedade civil. Não podemos deixar de
mencionar, também, seu papel mais restrito, em relação aos indivíduos
que os consultavam. Faziam o papel de intercessores e de conselheiros,
atendendo às consultas das pessoas, seja em situações problemáticas, seja
em situações mais corriqueiras.

• A denúncia (v. 5b)


Duas acusações são feitas contra os profetas: 1) Eles “extraviam o meu povo”,
ou seja, enganam os oprimidos que clamam a Javé. Com suas falsas profecias,
desviam os oprimidos da verdade e os mantêm prisioneiros da exploração
de que são vítimas. Isaías faz a mesma acusação contra os líderes políticos de
Jerusalém (Is 3,12; 9,15). É esta a forma mediante a qual Miquéias pode acusar
os profetas de serem, em linguagem atual, “agentes ideológicos do Estado”.
Em linguagem teológica, esses falsos profetas desviam o povo de Javé dos
seus caminhos, do Seu projeto e, ao assim fazer, negam a sua condição de
“profetas” de Javé; 2) Eles são mercenários. Como, aparentemente, dependem
do pagamento de suas profecias, pelos consultantes para viver, acabaram
por emitir suas profecias de acordo com o montante recebido. Miquéias usa
interessantes metáforas aqui: quando esses profetas têm “o que mastigar
com seus dentes” e “com o que preencher suas bocas”, então, anunciam
“prosperidade” aos que os consultam. (A palavra hebraica, aqui, shalom, não
significa paz, mas indica a harmonia social, a prosperidade de uma família
ou nação).
Pós-Universo 35

Em outras palavras, de acordo com o valor do pagamento, tal será a pregação


do profeta. Se não há pagamento - e os oprimidos certamente não teriam
condições de pagar os serviços desses profissionais da religião - então, o
profeta “prepara uma guerra santa” contra o consulente. Dentro do contexto
da época, o que esses profetas faziam era confirmar a riqueza dos ricos e a
pobreza dos oprimidos, justificavam a ganância e o desempenho econômicos
dos exploradores e jogavam culpa sobre os ombros dos explorados. Não é à
toa que os acumuladores de terras e os líderes corruptos considerassem que
Javé estava com eles. Quão difícil, portanto, para os oprimidos era suportar
o peso da miséria, agravado pelo sentimento de terem sido abandonados
por Javé. Precisavam, portanto, de um autêntico porta-voz, de um verdadeiro
mensageiro de Javé.

• A Ameaça (v. 6-7)


O fato de a ameaça, aqui, ser bem mais longa do que a denúncia (o que é
mais típico dos oráculos de Miquéias) pode indicar um ainda mais elevado
tom de indignação da parte do profeta. Oito linhas são empregadas,
cumulativamente, para indicar o castigo; quatro usando metáforas (v. 6)
e quatro usando linguagem direta (v. 7). O que elas afirmam é que: esses
falsos profetas não poderão mais exercer sua atividade, pois Javé não falará
a eles, nem por meio deles. Também é interessante a mudança de pessoas
gramaticais. As metáforas em 6a são dirigidas diretamente aos falsos profetas,
enquanto as linhas de 6b-7 são endereçadas genericamente. No v. 6, as
duas primeiras metáforas formam um belo par:

vocês terão noite, no lugar de visões;


escuridão, ao invés de respostas.

Visões e respostas, provavelmente, referem-se ao modo pelo qual os


profetas recebiam as suas mensagens. Assim, Miquéias afirma que eles não
conseguirão mais receber nenhuma revelação, ao contrário, assim como as
suas respostas ao meu povo conduziam às trevas do desespero, os falsos
profetas somente encontrariam escuridão e trevas como resposta às suas
próprias consultas. Interessante paralelo encontra-se em Is 29,18.
36 Pós-Universo

Em 6b-7 intensifica-se a ameaça, porém a audiência é mais ampla, dá-se


a ideia de que, aqui, Miquéias dirige-se às vítimas dos falsos profetas,
conscientizando-as do mal que sofreram da parte deles:

O sol se esconderá sobre esses profetas,


a luz do dia se apagará sobre eles.
Os videntes ficarão envergonhados,
os adivinhos ficarão confusos.
Todos cobrirão o rosto,
porque Deus não responderá.

A comparação do conhecimento e da sabedoria com a luz era muito comum


no Antigo Oriente. Ao afirmar que os profetas perderão a luz e o sol, ou seja,
ficarão entregues às trevas, corresponde à afirmação de que deixarão de
receber mensagens da parte de Deus, tornarão-se ignorantes e incapazes
de conhecer os caminhos da vida. Consequentemente, perderão o respeito
e a influência que possuíam perante o povo (ficarão ”envergonhados” e
“confusos”). Desmascarados, já não mais serão capazes de enganar o “meu
povo”, que poderá buscar uma vida melhor.
Todos cobrirão o rosto (lit. “cobrirão o bigode”) é tanto uma atitude
expressiva do luto (Ez 24,17-22), como um requisito exigido dos leprosos
(Lv 13,45 s). É este o clímax da ameaça contra os falsos profetas: ficarão
vivos, mas em espírito enlutado; permanecerão buscando a resposta de
Deus, mas não mais a encontrarão. Terão a aparência da santidade, mas de
fato serão reconhecidos como impuros e separados de Deus. Em relação
ao Estado, o silêncio vergonhoso dos profetas pode indicar o fim de sua
hegemonia sobre o povo. Sem sustentação ideológica, o monarca e seu
projeto militarista ficariam nus perante o povo, que seria capaz de enfrentar
os seus opressores em campo aberto. Poderiam, então, fazer valer o seu
direito tradicional e a sua memória teológica. Cabe, ainda, lembrar o papel
dos profetas no serviço dos reis que se preparavam para a guerra (I Rs
22,4-8). Sem a palavra profética, o projeto guerreiro de Ezequias ficaria em
má situação.
Pós-Universo 37

• O verdadeiro mensageiro de Javé (v. 8)


Em contraste com os falsos profetas por ele denunciados, Miquéias apresenta
credenciais de um verdadeiro mensageiro de Javé. Quatro são os atributos
do profeta verdadeiro:

Cheio de
(a) força (coh)
(b) espírito de Javé (ruach YHWH)
(b’) direito (mishpat)
(a’) fortaleza (gevurah)

A escolha dos termos é muito bem feita e contrasta fortemente com o


retrato patético dos falsos profetas pintado na ameaça. Simultaneamente,
oferece uma crítica sutil ao projeto militarista do Estado, legitimado pelos
falsos profetas. O arranjo estrutural nos permite interpretar o trecho como
composto de dois paralelismos sinônimos entre os termos utilizados.
Se os falsos profetas são pessoas “vazias”, Miquéias está “cheio”, ou seja, está
pronto a atuar como profeta, capacitado para agir, e não pode ser impedido.
As virtudes que “enchem” o profeta são: 1) força e fortaleza: são dois termos
que denotam, respectivamente, força física e psíquica, e coragem (fortaleza),
atributos indispensáveis da força militar. Isto apresenta um sutil contraste
com o militarismo frágil e covarde defendido pelos falsos profetas; 2) Os
dois termos centrais da frase formam o contraste entre Miquéias, os falsos
profetas e os juízes corruptos. Dos falsos profetas, Miquéias falara como
cheios por um espírito enganador. Ao se apresentar como “cheio do espírito
de Javé”, Miquéias indica que fala a verdade e é um verdadeiro mensageiro
do Senhor. Cheio de “justiça”, Miquéias representa concretamente os valores
que os juízes deveriam representar, mas não o fazem. A mensagem de
Miquéias, portanto, baseia-se na palavra de Javé e nas tradições teológicas
do campesinato espoliado.
38 Pós-Universo

Consequentemente, Miquéias pode “denunciar a Jacó o seu crime e a Israel o


seu pecado”. Crime e pecado são termos constantemente usados em paralelismo no
Antigo Testamento. Podemos entendê-los, como; crime, isto é, sua rebelião e apostasia
(1 Rs 12,19), a sua atitude de oposição à justiça; e seu pecado, a sua falha em atingir
o alvo que lhe fora assignado (Jz 20,16). A monarquia judaíta e os grupos sociais que
a apoiavam estavam propondo um caminho de vida inadequado para Judá. Era um
caminho de injustiça social e negação da vontade de Javé. Já que os profetas, juízes e
sacerdotes nada faziam para denunciar esse rumo pecaminoso, Miquéias apresenta-
se como porta-voz de Javé - para trazer à luz do dia o que a ideologia monárquica
mantinha oculto aos olhos do povo de Deus. Na carta aos Efésios surge uma ideia
similar: aos cristãos exige-se que, em vez de se encherem de vinho [como os falsos
profetas], encham-se do Espírito de Deus a fim de viverem como Cristo viveu - com
solidariedade e coragem para andar no projeto do Pai.
Um último comentário sobre este verso 8. A maioria dos comentaristas usa-no
como critério para delimitar os oráculos que poderiam ter provindo de Miquéias.
Consideram que o profeta morastita só teria emitido oráculos de juízo e condenação.
Logo, todas as palavras de salvação ou ânimo encontradas no livro são atribuídas
aos seus redatores. Em especial, usam esse verso, juntamente com 3,12 para negar a
possibilidade de Miquéias ter emitido qualquer palavra esperançosa com relação a
Jerusalém (negando, totalmente, a possibilidade de o cap. 4 ter qualquer relação com
Miquéias ou com os seus discípulos). Não aceito esta limitação tão forte, uma vez que
este verso não tem como objetivo fazer uma descrição abrangente da mensagem
de Miquéias, mas sim estabelecer um contraste entre ele e os falsos profetas, entre
a utopia “retribalizadora” do seu movimento e a ideologia monárquica militarista. Se
Jerusalém poderia ter um papel nesse novo Judá, é uma questão que não pode ser
decidida só por este verso e por 3,12. De qualquer forma, não acredito que a proposta
do movimento camponês de resistência exigisse o fim do Estado monárquico e,
consequentemente, a impossibilidade de Jerusalém exercer um papel significativo
para Judá.
atividades de estudo

1. Sobre a história da leitura sociológica da Bíblia, leia e considere as assertivas:

I) Passou a ser feita a partir dos anos 1960, com o trabalho pioneiro de George
Mendenhall.
II) Desenvolveu-se especialmente a partir dos anos 1970, com as pesquisas de George
Mendenhall (nos Estados Unidos) e Gerd Theissen (na Alemanha).
III) Desenvolveu especialmente a partir dos anos 1970, com as pesquisas de Norman
K. Gottwald (nos Estados Unidos) e Gerd Theissen (na Alemanha).
IV) Os primeiros esforços começaram a ser feitos a partir dos anos 1980, com o trabalho
pioneiro de Charles E. Carter.

Estão corretas as assertivas:


a) II e III.
b) I e III.
c) II e IV.
d) III e IV.
e) Nenhuma das alternativas está correta.

2. “É possível que, em função da linguagem e perspectiva teológica de 6,1-7,7 o círculo


que compôs este trecho e o anexou às palavras de Miquéias tenha ajudado a formar
um movimento teológico que, mais tarde, tornou-se extremamente importante para
a história religiosa e literária do Antigo Testamento: o _____”.

Sobre o contexto do livro de Miquéias, complete o espaço em branco:


a) Movimento rabínico.
b) Movimento deuteronomista.
c) Movimento javista e eloísta.
d) Movimento profético.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
atividades de estudo

3. A quem são dirigidas as acusações da denúncia de Miquéias 3:1b e 3?

a) Chefes e governantes.
b) Sacerdotes e escribas.
c) Profetas e videntes.
d) As acusações são dirigidas aos levitas e falsos profetas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
resumo

Muito bem, aluno(a), é hora de recapitular o que estudamos até aqui. Vamos revisar os principais
conceitos estudados e suas aplicações práticas. Definimos e descrevemos a leitura sociológica
bíblica latino-americana, um modo de ler a Bíblia a partir das perguntas da análise crítica da
sociedade atual, em diálogo com uma análise crítica das sociedades nos tempos bíblicos. A leitura
sociológica da Bíblia na América Latina possui várias semelhanças com a leitura popular da Bíblia,
pois tem sido praticada, principalmente, no âmbito do movimento da leitura popular.

Procurei mostrar, pelo menos parcialmente, as origens da leitura sociológica na pesquisa exegética
do Primeiro Mundo, no âmbito da exegese histórico-crítica da Escritura. Iniciada no âmbito da
análise literária de textos bíblicos, na assim-chamada Crítica das Formas, a pesquisa do início do
século XX buscava descobrir as fontes cotidianas das formas literárias usadas em textos bíblicos.
Foi desenvolvido o conceito de Sitz im Leben, situação na vida, para indicar a origem social oral
dos posteriores textos escritos. A Crítica das Formas é praticada até hoje.

Posteriormente, mostrei a emergência de uma leitura sociológica propriamente dita, mediante


a qual se visava reconstruir historicamente a sociedade da época dos textos bíblicos. Nesse
momento, a leitura sociológica ainda funcionava como auxiliar da pesquisa histórico-crítica,
mas , aos poucos, foi se destacando da pesquisa histórica e passou a desenvolver suas próprias
perguntas e questionamentos. Diversas abordagens teóricas foram utilizadas e a prática atual da
leitura sociológica no Primeiro Mundo é bastante diversificada em sua visão teórica, objetos de
análise e intenções político-ideológicas.

Finalmente, mediante o trabalho concreto de leitura sociológica de duas perícopes do livro de


Miquéias, procurei mostrar o tipo de perguntas e o tipo de metodologia que se usa costumeiramente
na América Latina para a prática da leitura sociológica. Embora também sejam adotadas diferentes
perspectivas teórico-metodológicas, há um fator comum nas diversas formas de leitura sociológica
em nosso continente: a busca da compreensão dos processos e mecanismos de injustiça social e
de como superá-la. Ler, sociologicamente, a Bíblia na América Latina possui uma intenção prática
muito evidente: transformar a realidade social de nosso continente, profundamente marcado pela
injustiça social e desigualdade econômica.

Espero que este conteúdo lhe seja útil e abençoador.


material complementar

Sociologia da Cristandade Primitiva


Autor: Gerd Theissen
Editora: Sinodal

Sinopse: uma das obras pioneiras da leitura sociológica, no Primeiro


Mundo, ainda é uma consulta obrigatória para quem deseja aprofundar
suas habilidades de leitura sociológica. Aborda aspectos sociais do
movimento de Jesus e das comunidades paulinas.

Na Web
Para que você possa ampliar seus conhecimentos, acesse a resenha de uma revista bíblica
dedicada à leitura sociológica: <http://blog.airtonjo.com/2015/02/leitura-sociologica-da-
biblia.html>.

Segue também indicação de site com diversos materiais úteis para a leitura bíblica, de biblistas
católicos. Acesse: <http://www.abiblia.org/index.php>.

O Som ao Redor
Ano: 2014

Sinopse: o Som ao Redor não é um filme que precisa gritar para ser
ouvido, não precisa de grandes cenas dramáticas para chegar ao seu
objetivo ou mesmo para contar uma história. Evolui um relacionamento
amoroso para pouco depois dizer que ele terminou sem se dar o trabalho
de mostrar o fim ao espectador, que, por incrível que pareça, ainda assim
se dará por satisfeito, afinal está claro para ele desde o início de que a vida dos personagens
não é o foco da trama, mas sim a rotina de uma comunidade.
Bonito, divertido, assustador e cativante. O Som ao Redor é um dos melhores filmes brasileiros
dos últimos tempos. Talvez o mais impressionante desde Cidade de Deus. Celebra o cinema
de gênero de John Carpenter ao mesmo tempo em que investe em um tom mais realista. É
passado no Recife, no bairro em que o próprio diretor vive, mas também poderia ser passado
em qualquer grande cidade do mundo, onde as relações sociais estão cada vez mais marcadas
pela paranoia e pela impessoalidade.

Comentário: um exemplo de como a mesma realidade pode ser lida de diferentes modos
pelas pessoas que dela participam.
referências

ANDERSON, Ana Flora; GORGULHO, Gilberto. Introdução. In: ______. A leitura sociológica da
Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 6-10.

BARROS, Diana L. P. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988.

CARTER, Charles E. A Discipline in Transition: The Contributions of the Social Sciences to the Study
of the Hebrew Bible. In: CARTER, Charles E.; MEYERS, Carol L. (eds.). Community, Identity, and
Ideology: Social Science Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake: Eisenbrauns, 1966, p. 3-36.

SIMKINS, Ronald A.; COOK, Stephen L. (eds.). The social world of the Hebrew Bible: twenty-
five years of the social sciences in the academy. Atlanta: Society of Biblical Literature, 1999. (Série
SEMEIA; n. 87).

WEGNER, Uwe. A leitura bíblica por meio do método sociológico. Rio de Janeiro: CEDI, 1990,
(Série Mosaicos da Bíblia; n. 12).

ZABATIERO, Júlio P. T. Miquéias: a voz dos sem-terra. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 56-86.
resolução de exercícios

1. b) I e III.

2. b) Movimento deuteronomista.

3. a) Chefes e governantes.

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