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Professor:
Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
DIREÇÃO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
• Definir a leitura sociológica da Bíblia e suas relações com os métodos
históricos.
• Descrever o contexto social da época do livro de Miquéias como preparação
para a leitura sociológica de perícopes do livro.
• Apresentar os principais resultados de uma leitura sociológica de Miquéias
3, 2-8.
PLANO DE ESTUDO
introdução
que é leitura
sociológica?
Pós-Universo 7
saiba mais
Os estudos de Crítica das Formas inspiraram uma série de trabalhos sobre
a Bíblia em que aspectos sociológicos foram levados em consideração:
instituições sociais e políticas, o lugar do culto na vida social etc. Entretanto
esses estudos ainda não se caracterizavam como abordagens sociológicas
ao estudo bíblico, mas como abordagens históricas que davam ênfase a
aspectos da sociedade e política: “Esta ‘primeira onda’ de pesquisa sócio
científica, portanto, falhou em sua tentativa de estimular um programa mais
amplo de pesquisa social na erudição bíblica” (SIMKINS; COOK, 1999, p. 2).
Fonte: o autor.
8 Pós-Universo
A leitura propriamente sociológica da Bíblia passou a ser feita, nos anos de 1960,
com o trabalho pioneiro de George Mendenhall e se desenvolveu, especialmente, a
partir dos anos 1970, por meio das pesquisas de Norman K. Gottwald (nos Estados
Unidos) e Gerd Theissen (na Alemanha). Algumas obras desses dois pioneiros foram
publicadas em português e constam das Referências Bibliográficas deste nosso
estudo. Uma descrição dos trabalhos, nesse período, pode ser encontrada em CARTER,
Charles E. A Discipline in Transition: The Contributions of the Social Sciences to the
Study of the Hebrew Bible In: CARTER, Charles E.; MEYERS, Carol L. (eds.). Community,
Identity, and Ideology: Social Science Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake:
Eisenbrauns, 1966, p. 3-36. Daquela década até hoje, o número de autores e autoras,
no Primeiro Mundo, que praticam a chamada exegese sociológica tem crescido
significativamente, e o campo da pesquisa sociológica está já claramente delineado
e estruturado (SIMKINS; COOK, 1999, in passim).
Meu interesse, porém, está voltado à leitura sociológica praticada na América
Latina. No âmbito da leitura popular da Bíblia, desenvolveu-se a abordagem mais
tipicamente sociológica do conflito ou leitura dos quatro lados. O número 2 da revista
Estudos Bíblicos (1984) dedicou dois artigos à leitura sociológica da Bíblia, na América
Latina e, em 1990, o CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação)
promoveu uma série de encontros sobre a leitura da Bíblia, e um deles teve como
tema a leitura sociológica, o que rendeu a seguinte publicação: WEGNER, Uwe. A
leitura bíblica por meio do método sociológico. Rio de Janeiro: CEDI, 1990 (série
Mosaicos da Bíblia n. 12).
Pós-Universo 9
“
A leitura sociológica tem por objetivo tirar a fé e a religião de suas amarras
intimistas, individualizantes e meramente espiritualizantes. A vida do povo
não se decide só no coração, muito menos só na alma. A vida do povo se
decide no prato cheio ou vazio sobre a mesa, no emprego ou desemprego
na fábrica, na terra para plantar, no salário arrochado ou não, no teto para
morar, no dinheiro para poder cuidar da saúde e em coisas semelhantes.
Toda a organização do trabalho e da vida social, por sua vez, vai depender
muito da política, de quem a exerce e com quais interesses. Em meio a tudo
isso haverá lugar para Deus e a religião? Devemos pensar Deus dentro de
realidades como as relações sociais, a economia, a política e a ideologia? Ou
o espiritual está para aquém destes âmbitos? A leitura sociológica responde
negativamente a esta última pergunta. Ela parte do entendimento de que
Deus não está aquém de nossa realidade nua e crua, mas que quer inserir-se
bem dentro dela e ser percebido a partir de suas dores e alegrias, desesperos
e esperanças. Em outras palavras: é na materialidade concreta da vida que
precisamos – também – sentir e enxergar a presença de Deus. E a análise
sociológica tem como seu principal objetivo exatamente este: o de tornar
Deus presente e transparente em esferas determinantes da vida, como a
política, a economia, as relações sociais e as ideologias. E se o método de leitura
através dos quatro lados torna possível enxergar a presença e a transparência
de Deus, não é por um capricho teológico qualquer, e sim, fundamentado
naquele que representa o centro da fé cristã, Jesus Cristo (WEGNER, 1990, p.
11, grifo do autor).
10 Pós-Universo
Economia
Relações
Sociais
Mas não foi só entre anciãos do interior que as palavras de Miquéias foram
respeitadas. Também na capital, Jerusalém, as suas palavras fizeram-se respeitar.
As mesmas pessoas que guardaram e transmitiram as palavras do profeta Isaías
preservaram as palavras de Miquéias e até tiveram o cuidado de colocar a mesma
profecia nos dois livros. Mq 4,1-4 e Is 2,2-5 são a mesma profecia, com pequenas
diferenças de detalhes. Os estudiosos não sabem bem quem foi o autor dessas
palavras nem quando elas foram escritas. Talvez Miquéias, talvez Isaías, ou mesmo
um discípulo, ou uma discípula de um desses profetas. O que interessa para nós,
porém, é que gente da cidade grande fez questão de ajuntar as palavras do camponês
Miquéias e fazer um livro com elas.
A formação do livro de Miquéias, apesar de ele ter apenas sete capítulos, possui
uma longa história. Ele começou a ser escrito na época do profeta Miquéias, um
agricultor do interior de Judá, que foi chamado por Javé para denunciar os crimes
da sua nação (os caps. 1-3 do livro). Isso aconteceu, aproximadamente, no último
quarto do século VIII a.C. (725-700). As palavras de Miquéias, como vimos, foram
preservadas por seus discípulos e por gerações de anciãos de Judá. É possível que,
em essência, 6,1-7,7 tenha tido sua origem entre profetas do reino de Israel, que se
mudaram para Judá após a destruição de Samaria. Esses profetas do reino do Norte
uniram-se a discípulos de Miquéias e ajudaram a manter vivo (no curso do séc. VII,
ou dos sécs. VII-VI a.C.) um movimento camponês de resistência contra a opressão da
casa real (Jerusalém) sobre o campesinato. É possível que, em função da linguagem
e perspectiva teológica de 6,1-7,7 o círculo que compôs este trecho e o anexou às
palavras de Miquéias tenha ajudado a formar um movimento teológico que, mais
tarde, tornou-se extremamente importante para a história religiosa e literária do
Antigo Testamento: o movimento deuteronomista.
14 Pós-Universo
Algum tempo mais tarde, a partir de 587 a.C., quando o reino de Judá não mais
existia, e Jerusalém estava em ruínas, as palavras de Miquéias (caps. 1-3), mais as
palavras dos seus “discípulos” (6,1-7,7) foram relidas por profetas judeus que esperavam
a restauração de sua nação. A grande questão já não era mais “denunciar os crimes de
Judá”, mas animar o coração dos sobreviventes à mortandade e à destruição causadas
pelo exército da Babilônia. Este processo de releitura durou, aproximadamente,
até o ano 500 a.C., refletindo uma situação complexa, que envolvia a tentativa de
reconstrução do Templo e da cidade de Jerusalém. A nação judaica estava sendo
reconstruída, mas havia muita indefinição política, religiosa e econômica. De novo
era necessário animar os corações dos sobreviventes do povo de Deus e tentar
reorganizar um projeto para a restauração de Jerusalém e de Judá. Os caps. 4 e 5
do livro de Miquéias refletem essa situação de desespero, incertezas e tentativas de
entender o fim do reino de Judá e elaborar projetos de restauração do reino.
Foi um período relativamente confuso no tocante às distinções entre os grupos
sócio teológicos. Essa confusão reflete-se nos caps. 4-5 de Miquéias, que giram ao
redor de dois eixos temáticos: Jerusalém (cap. 4) e um novo rei, do “campo” (cap. 5).
Semelhantemente, os conteúdos desses dois capítulos possuem afinidades tanto
com o Segundo Isaías como com o livro de Jeremias, além de indícios de presença
deuteronomista neles. Provavelmente, no final deste período, deu-se a redação final
do livro de Miquéias.
O estudo histórico-literário do livro de Miquéias sugere-nos pistas para localizar,
dentro desses diferentes momentos da história de Judá, as principais partes do
livro. Não temos certeza quanto a todos os detalhes, e há muita discussão entre os
estudiosos a respeito das diferentes camadas literárias deste pequeno livro. Podemos,
de forma simplificada, apresentar o seguinte quadro:
• Século VIII a.C. (palavras do profeta Miquéias) - 1,2-3,12 + (trechos do cap. 5).
atenção
No início da história da Igreja, o apóstolo Paulo falou dos pregadores do
Evangelho em termos semelhantes: “De fato, diante de Deus nós somos o
bom perfume de Cristo entre aqueles que se salvam e entre aqueles que
se perdem: para uns, perfume de morte para a morte; para outros, perfume
de vida para a vida” (2 Co 2,15-16). Para compreender essas palavras, hoje,
é preciso conhecer a história e a sociedade dos tempos em que o livro foi
escrito. A abordagem sociológica dá destaque aos conflitos e aos aspectos
estruturais da vida sociopolítica de uma nação ou grupo social. Por isso, em
vez de apresentar o contexto de Miquéias começando pelos fatos históricos,
farei a apresentação a partir de um conceito sociopolítico fundamental
para compreender o mundo dos livros do Antigo Testamento: o conceito
de imperialismo.
Fonte: o autor.
16 Pós-Universo
Monarquia:
Imperialismo
Corte
Assírio
Templo
Exército
Povo:
Trabalho
Tributo
Em tal situação, porém, nem todos saíam perdendo. Em toda e qualquer sociedade
há as pessoas que sabem e podem aproveitar as oportunidades sistêmicas para o
enriquecimento rápido. No tempo de Ezequias, duas possibilidades de enriquecimento
rápido foram criadas (ou intensificadas): por um lado, a participação no comércio
internacional necessário para auferir “divisas” a fim de pagar os tributos para o Império
Assírio e também pagar as despesas do projeto estatal - essa participação ocorria
sob a supervisão do Estado que, praticamente, detinha o monopólio do comércio
internacional então; e, por outro lado, o financiamento do campesinato endividado
pelos tributos e corveia crescentes. Com o não pagamento das dívidas, os credores
tomavam as terras dos devedores e formavam “latifúndios” altamente lucrativos. É
especialmente este processo de acumulação de terras que Miquéias, como porta-
voz dos sem-terra denuncia. Os sem-terra a quem Miquéias pertence teriam sido
agricultores que perderam as suas terras nesse processo iníquo de acumulação.
Pós-Universo 21
Tendo em vista que mudanças desse tipo não ocorrem sem forte legitimação
ideológica, não surpreende que Miquéias tenha tido fortes conflitos com os falsos
profetas, ou seja, os sacerdotes, adivinhos e pregadores que apoiavam o projeto do
rei e propagavam a teologia da inviolabilidade de Sião. Ao mesmo tempo, denunciava
os tribunais que permitiam a acumulação de terras, um processo que negava o
tradicional direito fundiário do campesinato judaíta. As pregações de Miquéias que
mais claramente atacam as questões e conflitos sociais estão nos capítulos. 2-3 do
livro.
Como resposta à revolta de Ezequias, Senaqueribe invadiu Judá em 701 a.C.,
tomou 46 cidades do interior, deportou boa parte de sua população e entregou o
território aos filisteus fiéis ao seu governo. Mais uma vez, o campesinato pagou a
conta da política militarista insensata de seu rei. Neste sentido, a política submissa
de Manassés, embora fortemente condenada pelos deuteronomistas por seu caráter
idolátrico (2 Rs 21), representou um alívio econômico para o campesinato judeu,
além de ter conseguido recuperar o território perdido por Ezequias. Não deixa de
ser irônico o fato de que o “bom” rei, do ponto de vista da “teologia”, foi um desastre
para o povo, enquanto o “mau” rei conseguiu benefícios (parciais, é certo) para esse
mesmo povo sofrido.
saiba mais
Não devemos nos iludir com isso, porém Manassés permaneceu um fiel
pagador de tributo ao império, tributo que ele extraía do campesinato
judaíta - e provavelmente foi essa a razão pela qual os assírios devolveram
os territórios perdidos por Ezequias - a fim de garantir uma base para a
arrecadação de tributos pelo novo e fiel monarca judeu. Além disso, a sua
política religiosa idolátrica - apesar dos exageros da crítica deuteronomista
- certamente causou sérios embaraços ao campesinato judaíta. O clima
econômico, cultural e religioso do reinado de Manassés parece ser o pano
de fundo das denúncias de Mq 6,1-7,7.
Fonte: o autor.
22 Pós-Universo
Denúncia
Profecia Ameaça - Sentença;
Crítica Anúncio
Sacerdotes
Profetas
Denunciados Elite econômica
Governantes
Figura 3 - Profecia crítica e Denunciados
Fonte: o autor.
Em 539 a.C., os persas, que haviam tomado o Império Babilônico, resolveram reorganizar
a região de Judá e permitiram a volta de judeus exilados. Os livros de Ageu e Zacarias
tratam de alguns episódios ligados a essa primeira tentativa de reorganização de
Jerusalém e Judá (são textos dos anos 520-518 a.C.), bem como vários trechos do
Terceiro-Isaías (caps. 56-66) provêm, em geral, deste período inicial do domínio persa.
Novos conflitos surgiram tanto em nível teológico como político-econômico, e a
tentativa não foi, aparentemente, muito bem-sucedida. De qualquer forma, porém,
a vida em Judá estava novamente sob um regime de governo a partir de Jerusalém,
conflitos pela propriedade de terras voltaram a acontecer, situações conflitivas com
as nações vizinhas aconteceram e choques de projetos de restauração mais uma vez
se fizeram sentir.
24 Pós-Universo
É nesse confuso período e pouco conhecido pelos historiadores, de 580 a.C. até
500 a.C. que foram produzidos os caps. 4-5 de Miquéias, o texto de 7,8-20 e a redação
final do livro. Os grandes eixos temáticos dessa redação final foram:
4. Judá e Jerusalém têm de ser reconstruídos, mas não mais como antagonistas,
e sim como colaboradores, numa relação de justiça e respeito ao direito
tradicional do campesinato. Jerusalém deverá exercer um papel de liderança
religiosa e política, mas sob o domínio de Javé e com um monarca que
atenda aos interesses do interior;
6. A relação com o rei-Javé tem sua base na aliança misericordiosa de Javé com
seu povo e exige uma resposta do povo e de seu rei humano em termos de
justiça, solidariedade e humildade (temor a Deus). Os cultos não precisam de
sacrifícios de animais, mas de expressar o louvor a Javé, a atenção à Palavra
de Deus, o temor ao Senhor e a solidariedade/justiça sociais.
leitura
sociológica -
exemplos
26 Pós-Universo
Caro(a) aluno(a), até agora, vimos bastante teoria. Vale a pena, então, ver como
funciona a leitura sociológica. Selecionei duas perícopes do livro do profeta Miquéias
que podem nos ajudar a entender o processo prático de leitura sociológica.
Miquéias 3, 1- 4
Toda exegese inicia com a tradução do texto bíblico e a análise de sua estrutura.
Texto e Estrutura
1
Eu digo: Escutem bem, chefes de Jacó, governantes da casa de Israel! Por acaso, não
é obrigação de vocês conhecer o direito? 2 Inimigos do bem e amantes do mal; 3 vocês
são gente que devora a carne do meu povo e o esfola; quebra seus ossos e os faz
em pedaços, como carne na panela, como um cozido no caldeirão. A pele de vocês
será esfolada, a sua carne de seus ossos, 4 então vocês gritarão a Javé, mas ele não
responderá. Nesse tempo, ele esconderá a sua face, por causa da maldade que vocês
praticaram (ZABATIERO,1996, p. 56-86).
Interpretação Sociológica
• Os denunciados (v. 1a)
Uma palavra introdutória sobre a expressão “Eu digo”. Esta expressão cumpre
uma importante função retórica: serve para reforçar a identidade do profeta
e, nesta função, corresponde à expressão “eu, porém”, no v. 8. Os denunciados
nesta perícope deveriam cumprir a justiça, e não o faziam. Miquéias, no v. 8,
apresenta-se como “cheio de justiça”, por isso, deve ser ouvido com atenção.
A palavra de Miquéias dirige-se contra os “chefes de Jacó” e “governantes da
casa de Israel” (de novo em Mq 3,9). Estes dois termos referem-se às pessoas
encarregadas da administração da justiça nos tribunais locais das cidades e
do “recrutamento” militar (e também para a corveia) - conforme indicam: Êx
18,25; Js 10,24; Jz 11,6.11: 2Cr 19,4-11; Dt 16,18-20; Is 1,23). Não sabemos ao
certo se, em todas as cidades de Judá, esses cargos eram preenchidos pelas
mesmas pessoas, ou não. O fato de aparecerem em paralelismo e, nesta
perícope, serem acusados apenas de distorcer o direito, dá a entender que
são funções diferentes exercidas pelas mesmas pessoas. Este, com certeza,
seria o caso nas cidades fortificadas, nas quais a população era composta
apenas de militares e pessoal ao seu serviço, e que serviam de abrigo para
as populações camponesas das vizinhanças, em caso de invasão estrangeira.
Em cidades não militares, as pessoas mais influentes seriam as prováveis
ocupantes desses cargos, exercendo as funções política e jurídica, às “portas”
da cidade. Nesse caso, vários dos “acumuladores de terras” denunciados no
cap. 2 poderiam ocupar tais funções. De qualquer forma, independentemente
das possíveis diferenças regionais, estas pessoas - “chefes” e “governantes” -
representavam o poder estatal e possuíam a autoridade política e jurídica
em suas regiões.
Pós-Universo 29
• A denúncia (v. 1b e 3)
A primeira parte da denúncia corresponde, propriamente falando, à acusação
de Miquéias contra os “chefes” e “governantes”. A acusação é iniciada com
uma pergunta retórica: “Não é a obrigação de vocês conhecer o direito?”
A resposta, obviamente, deveria ser positiva. Desta forma, o profeta indica
que os denunciados não estavam cumprindo corretamente o seu dever,
nos julgamentos aos quais presidiam. A pergunta retórica tem o efeito de
destacar a compreensão normal da função dos juízes em Judá e Israel. Eles
eram os responsáveis pelo cumprimento do direito, ou seja, sua obrigação
era efetuar julgamento justos e honestos nos tribunais às portas das cidades.
O verbo conhecer, aqui, tem o sentido de capacidade e habilidade no
tratamento das questões judiciais - envolve o conhecimento do direito
tradicional, oral ou codificado (como o Código da Aliança), e a sabedoria
para decidir uma questão judicial. “Direito”, traduz a palavra hebraica mishpat,
que, normalmente, é traduzida por “justiça”, mas aqui, como em outros
contextos (e.g., Dt 1,9-18; Êx 18,13-27) refere-se às sentenças pronunciadas
nos julgamentos. Consequentemente, a denúncia de Miquéias aponta a
corrupção do exercício da justiça nos tribunais, em função de interesses
econômicos dos participantes dos julgamentos e, nos casos em que os juízes
não eram diretamente envolvidos, envolvia a prática de aceitar suborno para
favorecer os ricos. A mesma acusação é formulada por outros profetas do
VIII séc. a.C. (Is 1,17.21-23; 5,7.23; Am 5,12), o que indica a extensão desse
tipo de violação da solidariedade social.
30 Pós-Universo
• A ameaça (v. 2b e 4)
A sentença pronunciada possui um tom altamente teológico, mas reflete
a expectativa costumeira da época, que o castigo corresponde ao mal
cometido. Está implícito, na ameaça, o fato de que o “meu povo”, oprimido,
clamaria a Javé e encontraria nele o refúgio e a libertação. Nesse dia, os
amantes do mal é que se veriam em uma situação de “vítimas de canibalismo”,
na qual teriam de gritar por socorro a Javé. Entretanto não seriam atendidos
por Javé. A época da execução da ameaça está indeterminada no texto.
“Depois” (lit. “naquele tempo”) não dá nenhuma indicação segura do tempo
do cumprimento da sentença, nesse sentido, corresponde a 2,3b.4a. Alguns
comentaristas entendem esta palavra como acréscimo dos redatores
deuteronomistas, implicando que a ameaça se referia à destruição de
Jerusalém. Não me parece necessário ir tão longe.
Embora o verbo clamar seja usado também em ambiente jurídico, é muito
mais comum no ambiente litúrgico. Aos juízes corruptos o profeta anuncia a
sentença de Javé: quando tiverem de lhe elevar o clamor, Ele não os ouvirá.
Duas frases expressam a negativa de Javé aos denunciados: “não responderá”
significa que Javé não irá intervir a favor deles, para os libertar do mal.
“Esconderá a sua face” indica que Deus sequer estará disponível para ouvi-
los em suas liturgias de lamento (cf. Sl 13,2; 22,5; Am 5,21-24; Is 1,10-15). Por
fim, a ameaça incorpora um elemento de denúncia “por causa da maldade
que vocês praticaram”. Embora aparente ser um anticlímax às metáforas
anteriores, a frase é apropriada aqui, pois os denunciados consideravam-se
o povo de Javé, os herdeiros das suas promessas e os agraciados pela Sua
poderosa mão (cf. 2,6). De fato, porém, nada mais eram do que praticantes
do mal. No devido tempo, enxergariam claramente que eram “não-meu
povo”, e que Javé não estava em seu “meio” (cf. 3,11).
32 Pós-Universo
Miquéias 3, 5-8
Assim como na perícope anterior, iniciamos com a tradução do texto hebraico e a
análise da estrutura da perícope.
Texto e Estrutura
5
Assim diz Javé para os profetas que extraviam o meu povo, que anunciam a
paz quando têm algo para mastigar, mas declaram guerra contra os que nada
lhes põem na boca. 6 Por isso, vocês terão noite, no lugar de visões; escuridão, ao
invés de respostas. O sol se esconderá sobre esses profetas, a luz do dia se apagará
sobre eles. 7 Os videntes ficarão envergonhados, os adivinhos ficarão confusos.
Todos cobrirão o rosto, porque Deus não responderá. 8 Eu, porém, estou cheio de
força, do espírito de Javé, do direito e da fortaleza, para denunciar a Jacó o seu
crime e a Israel o seu pecado.
Interpretação Sociológica
• Os denunciados (v. 5a.7a)
São usadas três palavras diferentes para se referir aos denunciados: profetas,
adivinhos e videntes. Não devemos ver, neste fato, uma classificação de
diferentes tipos de profetas. Em 2,6-11 outros termos foram usados para se
referir à atividade profética. O que está em vista, com maior probabilidade,
são as diferentes formas pelas quais os profetas recebiam de Deus as suas
mensagens. Se, porém, houver alguma diferenciação funcional, o termo
“profetas” poderia se referir, especificamente, aos profetas ligados ao Templo
de Jerusalém, e os demais termos refeririam-se aos “profetas” espalhados
pelas várias cidades de Judá, sem conexão direta com o Templo.
34 Pós-Universo
Cheio de
(a) força (coh)
(b) espírito de Javé (ruach YHWH)
(b’) direito (mishpat)
(a’) fortaleza (gevurah)
I) Passou a ser feita a partir dos anos 1960, com o trabalho pioneiro de George
Mendenhall.
II) Desenvolveu-se especialmente a partir dos anos 1970, com as pesquisas de George
Mendenhall (nos Estados Unidos) e Gerd Theissen (na Alemanha).
III) Desenvolveu especialmente a partir dos anos 1970, com as pesquisas de Norman
K. Gottwald (nos Estados Unidos) e Gerd Theissen (na Alemanha).
IV) Os primeiros esforços começaram a ser feitos a partir dos anos 1980, com o trabalho
pioneiro de Charles E. Carter.
a) Chefes e governantes.
b) Sacerdotes e escribas.
c) Profetas e videntes.
d) As acusações são dirigidas aos levitas e falsos profetas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
resumo
Muito bem, aluno(a), é hora de recapitular o que estudamos até aqui. Vamos revisar os principais
conceitos estudados e suas aplicações práticas. Definimos e descrevemos a leitura sociológica
bíblica latino-americana, um modo de ler a Bíblia a partir das perguntas da análise crítica da
sociedade atual, em diálogo com uma análise crítica das sociedades nos tempos bíblicos. A leitura
sociológica da Bíblia na América Latina possui várias semelhanças com a leitura popular da Bíblia,
pois tem sido praticada, principalmente, no âmbito do movimento da leitura popular.
Procurei mostrar, pelo menos parcialmente, as origens da leitura sociológica na pesquisa exegética
do Primeiro Mundo, no âmbito da exegese histórico-crítica da Escritura. Iniciada no âmbito da
análise literária de textos bíblicos, na assim-chamada Crítica das Formas, a pesquisa do início do
século XX buscava descobrir as fontes cotidianas das formas literárias usadas em textos bíblicos.
Foi desenvolvido o conceito de Sitz im Leben, situação na vida, para indicar a origem social oral
dos posteriores textos escritos. A Crítica das Formas é praticada até hoje.
Na Web
Para que você possa ampliar seus conhecimentos, acesse a resenha de uma revista bíblica
dedicada à leitura sociológica: <http://blog.airtonjo.com/2015/02/leitura-sociologica-da-
biblia.html>.
Segue também indicação de site com diversos materiais úteis para a leitura bíblica, de biblistas
católicos. Acesse: <http://www.abiblia.org/index.php>.
O Som ao Redor
Ano: 2014
Sinopse: o Som ao Redor não é um filme que precisa gritar para ser
ouvido, não precisa de grandes cenas dramáticas para chegar ao seu
objetivo ou mesmo para contar uma história. Evolui um relacionamento
amoroso para pouco depois dizer que ele terminou sem se dar o trabalho
de mostrar o fim ao espectador, que, por incrível que pareça, ainda assim
se dará por satisfeito, afinal está claro para ele desde o início de que a vida dos personagens
não é o foco da trama, mas sim a rotina de uma comunidade.
Bonito, divertido, assustador e cativante. O Som ao Redor é um dos melhores filmes brasileiros
dos últimos tempos. Talvez o mais impressionante desde Cidade de Deus. Celebra o cinema
de gênero de John Carpenter ao mesmo tempo em que investe em um tom mais realista. É
passado no Recife, no bairro em que o próprio diretor vive, mas também poderia ser passado
em qualquer grande cidade do mundo, onde as relações sociais estão cada vez mais marcadas
pela paranoia e pela impessoalidade.
Comentário: um exemplo de como a mesma realidade pode ser lida de diferentes modos
pelas pessoas que dela participam.
referências
ANDERSON, Ana Flora; GORGULHO, Gilberto. Introdução. In: ______. A leitura sociológica da
Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 6-10.
BARROS, Diana L. P. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988.
CARTER, Charles E. A Discipline in Transition: The Contributions of the Social Sciences to the Study
of the Hebrew Bible. In: CARTER, Charles E.; MEYERS, Carol L. (eds.). Community, Identity, and
Ideology: Social Science Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake: Eisenbrauns, 1966, p. 3-36.
SIMKINS, Ronald A.; COOK, Stephen L. (eds.). The social world of the Hebrew Bible: twenty-
five years of the social sciences in the academy. Atlanta: Society of Biblical Literature, 1999. (Série
SEMEIA; n. 87).
WEGNER, Uwe. A leitura bíblica por meio do método sociológico. Rio de Janeiro: CEDI, 1990,
(Série Mosaicos da Bíblia; n. 12).
ZABATIERO, Júlio P. T. Miquéias: a voz dos sem-terra. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 56-86.
resolução de exercícios
1. b) I e III.
2. b) Movimento deuteronomista.
3. a) Chefes e governantes.