Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Edição Texto Sobre Gratidão. André Comte-Sponville
Edição Texto Sobre Gratidão. André Comte-Sponville
Por
que seria? Há prazeres difíceis ou raros, que nem por isso são menos
agradáveis. Talvez sejam até mais. No caso da gratidão, todavia, a satisfação
surpreende menos que a dificuldade. Quem não prefere receber um presente a
um tapa? Agradecer a perdoar? A gratidão é um segundo prazer, que prolonga
um primeiro, como um eco de alegria à alegria sentida, como uma felicidade a
mais para um mais de felicidade. O que há de mais simples? Prazer de
receber, alegria de ser alegre: gratidão. O fato de ela ser uma virtude, porém,
basta para mostrar que ela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e
que, por conseguinte, há mérito – apesar do prazer ou, talvez, por causa dele –
em senti-la. Mas por quê? A gratidão é um mistério, não pelo prazer que temos
com ela, mas pelo obstáculo que com ela vencemos. É a mais agradável das
virtudes, e o mais virtuoso dos prazeres.
Ou, se o mostra, é mais para fazer invejosos do que felizes: ele exibe seu
prazer, mas é o prazer dele. Já esqueceu que outros têm algo a ver com isso.
Que importância têm os outros?
Por isso o egoísta é ingrato: não porque não goste de receber, mas porque não
gosta de reconhecer o que deve a outrem, e a gratidão é esse reconhecimento,
porque não gosta de retribuir, e a gratidão, de fato, retribui com o
agradecimento, porque não gosta de partilhar, porque não gosta de dar. O que
a gratidão dá? Ela dá a si mesma: como um eco de alegria, dizia eu, pelo que
ela é amor, pelo que ela é partilha, pelo que ela é dom. É prazer somado ao
prazer, felicidade somada à felicidade, gratidão somada à generosidade… O
egoísta é incapaz disso, pois só conhece suas próprias satisfações, sua própria
felicidade, pelas quais zela como um avaro por seu cofre. A ingratidão não é
incapacidade de receber, mas incapacidade de retribuir – sob a forma de
alegria, sob a forma de amor – um pouco da alegria recebida ou sentida. É por
isso que a ingratidão é tão frequente. Nós absorvemos a alegria como outros
absorvem a luz: buraco negro do egoísmo.
Essa gratidão é gratuita, por não se poder exigir dela, ou para ela, nenhum
pagamento. O reconhecimento talvez seja um dever, em todo caso uma
virtude, mas, observa Rousseau, não poderia ser um direito exigi-lo ou exigir o
que quer que seja em seu nome. Não confundamos gratidão com retribuição de
cortesias. Como quer que seja, porém, o amor quer bem ao amado, quase
necessariamente, pelo menos se é amor ao outro e não a si, portanto, se é
antes benevolência que concupiscência. Voltaremos a isso em nosso último
capítulo. Digamos apenas que a gratidão é levada a agir, por sua vez, em favor
de quem a suscita, não decerto para trocar um obséquio por outro (não seria
mais gratidão, e sim troca), mas porque o amor quer dar alegria a quem o
alegra, com o que a gratidão nutre a generosidade, quase sempre, que nutre a
gratidão. Daí um “amor recíproco”, como diz Spinoza, e um “zelo de amor”, que
caracterizam também a gratidão: “O reconhecimento ou gratidão é o desejo ou
o zelo de amor pelo qual nos esforçamos em fazer o bem àquele que o fez a
nós, em virtude de um sentimento semelhante de amor por nós.” É aí que
passamos da gratidão simplesmente afetiva, como dirá Kant, à gratidão ativa:
da alegria retribuída à ação retribuída. Quanto a mim, e apesar de Spinoza, eu
veria nisso menos uma definição (pois, por exemplo, podemos ter gratidão por
um morto, ao qual não poderíamos fazer o bem) do que uma consequência,
mas pouco importa. O certo é que a gratidão se distingue da ingratidão
precisamente por saber ver no outro (e não, como o amor-próprio, unicamente
em si mesmo) a causa de sua alegria – pelo que a ingratidão é ruim, pelo que a
gratidão é boa, e torna bom.
Mas que nada, por ninguém pediu para estar (o empréstimo, não o dom, é que
faz a dívida), pois ninguém, de resto, poderia saldar essa dívida. A vida não é
dívida: a dívida é graça, o ser é graça, e esta é a mais elevada lição de
gratidão. A gratidão se regozija com o que aconteceu, ou com o que é; ela é,
portanto, o inverso do arrependimento ou da nostalgia (que sofrem com um
passado que foi, ou que não é mais), como também da esperança ou da
angústia, que desejam ou temem (desejam e temem!) um futuro que ainda não
é, que talvez nunca seja, mas que as tortura com sua ausência… Gratidão ou
inquietude. A alegria do que é ou foi, contra a angústia do que poderia vir a ser.
“A vida do insensato”, dizia Epicuro, “é ingrata e inquieta: ela se volta toda para
o futuro.” Por isso eles vivem em vão, incapazes de se saciarem, de se
satisfazerem, de serem felizes: eles não vivem, dispõem-se a viver, como dizia
Sêneca, esperam viver, como dizia Pascal, depois lamentam o que viveram ou,
mais frequentemente, o que não viveram… O passado como o futuro lhes falta.
Já o sábio regozija-se com viver, claro, mas também com ter vivido. A gratidão
(charis) é essa alegria da memória, esse amor do passado – não o sofrimento
do que não é mais, nem o pesar pelo que não foi, mas a lembrança alegre do
que foi. É o tempo reencontrado, se quisermos (“a gratidão do que foi”, diz
Epicuro). Compreendemos que esse tempo torna a ideia da morte indiferente,
como dirá Proust, pois aquilo que vivemos, a própria morte, que nos levará,
não poderia tomar de nós: são bens imortais, diz Epicuro, não porque não
morremos, mas porque a morte não poderia anular o que vivemos, o que
fugidia e definitivamente vivemos. A morte só nos privará do futuro, que não é.
A gratidão liberta-nos dele, pelo saber alegre do que foi. O reconhecimento é
um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é que uma
imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna, e a habita.
Gratidão: desfrutar eternidade.
Isso não nos restituirá o passado, objetar-se-á a Epicuro, nem o que
perdemos… Sem dúvida, mas quem pode fazê-lo? A gratidão não anula o luto,
consuma-o: “É necessário curar os infortúnios com a lembrança reconhecida
do que perdemos, e pelo saber de que não é possível tornar não-consumado o
que aconteceu.” Pode haver formulação mais bela do trabalho do luto? Trata-
se de aceitar o que é, portanto, também o que não é mais, e de amá-lo como
tal, em sua verdade, em sua eternidade: trata-se de passar da dor atroz da
perda à doçura da lembrança, do luto a consumar ao luto consumado (“a
lembrança reconhecida do que perdemos”), da amputação à aceitação, do
sofrimento à alegria, do amor dilacerado ao amor apaziguado. “Doce é a
lembrança do amigo desaparecido”, dizia Epicuro – a gratidão é essa própria
doçura, quando se torna alegre. No entanto, o sofrimento é mais forte primeiro:
“Que terrível ele ter morrido!” Como poderíamos aceitar? Por isso o luto é
necessário, por isso é difícil, por isso é doloroso. Mas a alegria retorna, apesar
dos pesares: “Que bom ele ter vivido!” Trabalho do luto: trabalho da gratidão.
Não estou persuadido de que a gratidão seja um dever, como pensavam Kant
e Rousseau. Aliás, não acredito muito nos deveres. Mas o fato de ela ser uma
virtude, isto é, uma excelência, é atestado pela evidente baixeza de quem é
incapaz de gratidão, e atesta a mediocridade de nós todos, que carecemos
dela. Como o ódio sobrevive melhor que o amor!
Como o rancor é mais forte que a gratidão! Pode ser até que esta às vezes se
inverta naquela, a tal ponto o amor-próprio é suscetível: a ingratidão para com
o benfeitor, escreve Kant, “é um vício na verdade extremamente detestável ao
juízo de todos, embora o homem tenha tão má reputação sob esse aspecto,
que ninguém considera inverossímil que seja possível fazer um inimigo
mediante benefícios notáveis”. Grandeza da gratidão: pequenez do homem.
Sem contar que o próprio reconhecimento pode ser às vezes suspeito. La
Rochefoucauld não via nele mais que interesse disfarçado, e Chamfort notava
com razão que “há uma espécie de reconhecimento baixo”. É servilidade
disfarçada, egoísmo disfarçado, esperança disfarçada.
Epicuro, “convidando todos nós a despertar para dar graças.” Obrigado por
existir, dizem um ao outro, e ao mundo, e ao universo. Essa gratidão é de fato
uma virtude, pois é a felicidade de amar, e a única.