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O apego é o nosso estado "normal", e junto

com a raiva, forma a dupla que se associa aos


dois canais laterais à coluna, por onde passa o
Prana (ou Qi, ou Energia Vital) quando
respiramos. Já pensou? A pura energia sutil
universal passa pelos canais associados ao
apego e à raiva: um presente para a nossa
evolução. Basta estar atento e consciente,
limpando-os a cada respiração...
Já o terceiro canal, central, por onde o Prana,
verde e luminoso, leva embora as energias
negativas depositadas nos chakras  pelo nosso
karma diário e as manda embora no alto da
cabeça, é ligado à Ignorância. Então, Apego,
Raiva e Ignorância formam o tripé do
sofrimento, como mostra a figura tibetana dos
3 animais, o galo, a serpente e o porco. Os 3
canais são banhadas pelo prana desde a nossa
primeira até a última respiração.

Pema Chodron fala então do apego (o galo),


chamado shenpa no budismo tibetano: como
ele nos “fisga” como um anzol, e como se
desvencilhar gradualmente dele na prática do
nosso dia-a-dia. Vamos lá:
“Você está tentando tratar uma questão com
seu colega de trabalho ou com sua
companheira. Num momento, o rosto dela
está aberto, ela está sorrindo. No momento
seguinte, uma nuvem embaça seus olhos e
seu queixo enrijece de tensão.
O que você está percebendo?
Alguém o critica. Criticam seu trabalho, sua
aparência ou seu filho. Em momentos como
esse, o que você sente? Há um gosto familiar
na sua boca, há um cheiro familiar. Ao se dar
conta disso, você sente que essa experiência
vem acontecendo desde sempre.
A palavra tibetana para isso é shenpa.
Geralmente é traduzida como "apego", mas
uma tradução mais apropriada poderia ser "a
fisgada". Quando a shenpa nos fisga é como
se ficássemos "colados".  Poderíamos chamar
de shenpa de essa sensação de "colamento".
É uma experiência de todo instante. Mesmo
um pontinho no seu casaco novo pode
conduzir a ela. Num nível mais sutil sentimos
um aperto, uma tensão, uma sensação de
fechamento. Em seguida, vem uma vontade
enorme de nos retirar dali, não queremos
mais estar onde estamos. Essa é a qualidade
da fisgada. Aquela sensação de aperto tem o
poder de nos fisgar para a auto depreciação,
culpa, raiva, ciúmes e outras emoções que
levam a palavras e ações que acabam por nos
envenenar.
Lembra daquele conto de fadas em que sapos
pulavam da boca da Princesa cada vez que ela
dizia coisas más? É como a sensação de ser
fisgado. Contudo não paramos – não podemos
parar – porque ainda estamos habituados a
associar o que quer que estejamos fazendo ao
alívio do nosso próprio desconforto. Essa é a
síndrome da shenpa. A palavra "apego" não
traduz completamente o que está
acontecendo. É uma qualidade de experiência
que não é fácil de descrever mas que todo
mundo conhece bem. Geralmente a shenpa  é
involuntária e vai direto à raiz do por que
sofremos.
Alguém nos olha de certa maneira, ou
ouvimos uma certa canção, sentimos um certo
cheiro, entramos em certo aposento e pronto!.
A sensação não tem nada a ver com o
presente, e apesar disso ela está lá. Quando
estivemos praticando para reconhecer a
shenpa, descobrimos que alguns de nós
podiam senti-la até mesmo quando uma
determinada pessoa simplesmente sentava
próximo de nós na mesa.
A shenpa floresce na insegurança motivada
por  vivermos num mundo que está sempre
mudando, impermanente. Experimentamos
essa insegurança como um fundo de leve
desconforto  e inquietação. Todos nós
queremos alguma espécie de alívio para esse
desconforto, então nos voltamos para o que
nos dá prazer – comida, diversão, álcool,
drogas, sexo, trabalho ou as compras. Com
moderação o que nos dá prazer pode ser
muito delicioso. Podemos apreciar seu sabor e
sua presença em nossa vida. Mas quando lhe
atribuímos poder com a idéia de que nos trará
conforto, removerá nossa inquietude, aí
somos fisgados.
Desse modo, também poderíamos chamar de
shenpa  o "impulso" – o impulso de fumar um
cigarro, de comer demais, de tomar outro
drinque, de saciar nossa dependência
qualquer que seja ela. Às vezes a shenpa é
tão forte que sentimos vontade de morrer ao
obter esse alivio de curto prazo dos sintomas.
O momento atrás do impulso é tão forte que
nós nunca nos livramos do padrão habitual de
buscar o conforto no veneno.  Este não
necessariamente tem que envolver uma
substância; pode ser dizer coisas mesquinhas
ou se aproximar de tudo com uma mente
crítica. Essa é a maior fisgada. Alguma coisa
aciona o gatilho de um velho padrão que
preferiríamos não sentir, nos retesamos e
engatamos em críticas e queixumes. Isso nos
proporciona uma satisfação ofegante e uma
sensação de controle que oferece alivio de
curto prazo ao desconforto.
Aqueles de nós com dependências fortes
sabem que trabalhar com padrões habituais
começa com a disposição de reconhecer
completamente nosso impulso e em seguida
disposição de não atuar a partir dele. Esse não
atuar é chamado abster-se. Tradicionalmente
é  conhecido como renúncia. Não renunciamos
ou nos abstemos da comida, do sexo, do
trabalho ou de relacionamentos em si.
Renunciamos e nos abstemos da shenpa.
Quando falamos sobre abster-se da shenpa,
não estamos falando de tentar jogá-la fora;
estamos falando de tentar ver a shenpa
claramente e experimentá-la. Se pudermos
ver a shenpa exatamente quando começamos
a nos fechar, quando sentirmos o aperto,
existe a possibilidade de agarrar o impulso de
fazer a coisa habitual e não fazê-la.
Sem a prática da meditação isso é quase
impossível de fazer. Geralmente, não
capturamos o aperto até que tenhamos
saciado o impulso de coçar nosso comichão de
alguma maneira habitual. E, a menos que
equiparemos o abster-se com bondade
amorosa e amizade para conosco, abster-se
dá a impressão de vestir uma camisa de força.
Lutamos contra ela. A palavra Tibetana para
renúncia é shenlock, que significa "virar a
shenpa de cabeça para baixo, sacudindo-a".
Quando sentirmos o aperto, de alguma forma
temos que saber como abrir o espaço sem
sermos fisgados para nosso padrão habitual.
Ao praticar com a shenpa, primeiro tentamos
admiti-la. O melhor lugar para fazê-lo é na
almofada de meditação. A prática da
meditação sentada nos ensina como nos abrir
e relaxar para o que quer que surja, sem
escolher ou selecionar. Ela nos ensina a
experimentar o desconforto, o aperto, a
coceira da shenpa. Treinamos em sentar
quietos com nosso desejo de coçar. É assim
que aprendemos a interromper a reação em
cadeia dos padrões habituais que de outra
maneira governarão nossas vidas. É assim
que enfraquecemos os padrões que nos
mantêm fisgados no desconforto que nós
confundimos com conforto. Nós rotulamos isso
através do "pensar" e voltamos para o
momento presente. Até mesmo na meditação
experimentamos a shenpa.
Vamos supor, por exemplo que na meditação
você se sentiu sereno e aberto.  Os
pensamentos vierem e se foram mas não o
fisgaram. Eram como nuvens no céu que se
dissolviam quando você os reconhecia. Você
foi capaz de voltar ao momento sem uma
sensação de luta. Em seguida você é fisgado
naquela experiência tão agradável: "Eu fiz
certo, consegui acertar. É como tinha que ser,
é o modelo." Ser apanhado dessa maneira
constrói arrogância e no reverso dela constrói
pobreza, porque sua próxima sessão não será
nada daquilo. Na verdade sua sessão "má" é
muito pior agora porque você foi fisgado na
"boa". Você sentou lá e foi discursivo: ficou
obcecado por alguma coisa em casa, no
trabalho. Você se preocupou e se atormentou;
foi apanhado com medo ou raiva. No fim da
sessão você se sentiu desanimado – foi
"mau", e só há você para culpar.
Há alguma coisa inerentemente errada ou
certa na experiência da meditação?
Somente a shenpa. A shenpa que sentimos
para a "boa" meditação nos fisga no que ela
"deve" ser e com isso somos conduzidos pela
shenpa a como ela não "deve" ser. No entanto
a meditação é apenas o que ela é. Somos
apanhados não nela, mas em "nossa idéia
dela": isso é a shenpa. Essa colada é a raiz da
shenpa. Nós a chamamos “pegada do ego” ou
auto-absorção. Quando somos fisgados na
idéia da experiência má, a auto-absorção fica
mais forte. É por isso que, como praticantes,
somos ensinados a não nos julgar, para não
sermos apanhados no bom ou mau.
O que realmente precisamos fazer é tratar as
coisas como elas são. Aprender a admitir a
shenpa nos ensina o significado de não estar
apegado a esse mundo. Não estar apegado
não tem nada a ver com esse mundo. Tem a
ver com a shenpa – sermos fisgados pelo que
associamos com conforto. Tudo o que estamos
tentando fazer é não sentir nosso desconforto.
Mas quando fazemos isso nunca chegamos à
raiz da prática. A raiz é experimentar a
coceira, assim como o impulso de coçar e
então não atuar sobre ele.
Se estamos dispostos a praticar dessa 
maneira todo o tempo, o prajna começa a
aparecer. Prajna é a visão clara. É a nossa
inteligência inata, nossa sabedoria. Com o
prajna, começamos a ver claramente toda a
reação em cadeia. À medida que praticarmos,
a sabedoria se torna uma força mais poderosa
que a shenpa.
Por si só, ela tem o poder de interromper a
reação em cadeia.
O prajna não está envolvido com o ego. Sua
sabedoria se baseia na bondade fundamental,
na abertura, na equanimidade – que corta a
auto-absorção. Com o prajna podemos ver o
que o espaço vai nos mostrar. Ação habitual,
que está baseada no ego é exatamente o
oposto – a compulsão de preencher o espaço
ao nosso estilo particular. Alguns de nós
fechamos o espaço martelando nossos
mesmos pontos; outros tentando suavizar as
águas.
Fomos ensinados que tudo que surge é fresco,
a essência da realização. Esta é a visão
básica. Mas como ver  tudo que surge como a
essência da realização quando a realidade é
que temos um trabalho a fazer? A chave é
olhar para dentro da shenpa. O trabalho que
temos que fazer é descobrir se estamos
tensos, fisgados ou "excitados". Essa é a
essência da realização. Quanto mais cedo 
captarmos isso, mais fácil será trabalhar com
a shenpa, mas até mesmo captar isso quando
já estivermos excitados é bom. Às vezes
temos que percorrer todo ciclo até que
vejamos o que estamos fazendo. O impulso é
tão forte, a fisgada tão profunda, o padrão
habitual tão colado que tem vezes que não
podemos fazer nada sobre isso.
Entretanto, há alguma coisa que podemos
fazer na realidade. Podemos sentar na
almofada de meditação e repassar a história.
Talvez comecemos lembrando a sensação de
excitamento e entremos em contato com ela.
Olhamos claramente a shenpa em
retrospecto; também ajuda muito ver a
shenpa surgindo em habitozinhos, quando a
fisgada ainda não é tão profunda.
Os budistas estão falando da shenpa quando
dizem, "Não se deixe apanhar no
contentamento: observe a qualidade que está
por trás  - a colada, o desejo, o apego". A
meditação sentada nos ensina a ver aquela
tangente antes de cair nela. Ela basicamente
se resume à instrução "rotule a coisa
pensando". Treinar isso na almofada onde é
relativamente fácil e agradável fazê-lo, é a
maneira de nos preparar para quando
estivermos excitados.
Em seguida podemos treinar em ver a shenpa
onde quer que estejamos. Diga alguma coisa
a outra pessoa e talvez você sentirá aquela
tensão. Em vez de ser apanhado numa
história sobre como você está certo ou como
você está errado, tome isso como uma
oportunidade de estar presente com a
qualidade da fisgada.
Use isso como uma oportunidade de estar
com o aperto sem atuar sobre ele. Deixe o
treinamento ser a sua base.
Você também pode praticar reconhecendo a
shenpa na natureza. Praticar se sentando
quieto e captando o momento em que se
fecha. Ou praticar numa multidão, olhando
uma pessoa de cada vez. Quando você está
em silêncio, o que o fisga é o diálogo mental.
Você fala consigo mesmo sobre maldade ou
bondade: eu-mau ou eles-maus, isso-certo ou
aquilo-errado. Simplesmente veja isso como
uma prática. Você ficará intrigado como 
involuntariamente se fechará e será fisgado
de uma maneira ou de outra. Apenas continue
rotulando aqueles pensamentos e volte para a
imediatez da sensação. É a maneira de  não
seguir a reação em cadeia.
Uma vez que estejamos conscientes da
shenpa, começamos a notá-la em outras
pessoas,  nós as vemos se fechando. Vemos
que elas foram fisgadas e que nada irá
penetrá-las agora. Naquele momento temos o
prajna. A inteligência básica surge quando não
somos apanhados escapando do nosso próprio
desconforto. Com o prajna podemos ver o que
está acontecendo com os outros; podemos ver
quando eles estão sendo fisgados. Em seguida
podemos dar algum espaço à situação. Uma
maneira de fazê-lo é abrindo o espaço no local
através da meditação. Fique quieto e coloque
sua mente na respiração. Segure sua mente
no lugar com grande abertura e curiosidade
para com essa pessoa. Fazer uma pergunta é
outra maneira de criar espaço em volta
daquela sensação de colamento. Assim como
adiar a discussão para outra hora.
No mosteiro, temos muita sorte de todo
mundo estar entusiasmado em trabalhar com
a shenpa. Muitas palavras que tenho tentado
usar se tornaram munição para as pessoas
usarem contra elas próprias. Mas sentimos
uma espécie de alegria trabalhando com a
shenpa, talvez porque a palavra não nos seja
familiar. Podemos reconhecer o que está
acontecendo com visão clara, sem nos
apontarmos. Como ninguém gosta
particularmente de ter sua shenpa apontada,
as pessoas no mosteiro combinaram, "Quando
você me vir sendo fisgado, só puxe sua orelha
e se eu o vir sendo fisgado, farei o mesmo".
Ou se você o vir em você mesmo e eu não
tiver captado, pelo menos dê um sinalzinho de
que talvez esta não seja a hora de
continuarmos a discussão. É dessa a maneira
que estamos nos ajudando uns aos outros a
cultivar prajna, visão clara.
Poderíamos pensar em todo esse processo em
termos dos 4 “R”: •    reconhecer a shenpa,
•    refrear (abster-se) o coçar,
•    relaxar no impulso que motiva o coçar, e
então
•    resolver continuar  interrompendo nossos
padrões habituais como esse pelo resto de
nossas vidas.
O que você faz quando não faz a coisa
habitual? Você se deixa ficar com seu impulso.
É como você se põe mais em contato com a
avidez e com a vontade de fugir. Você relaxa
nele. Em seguida, resolve continuar
praticando dessa maneira.
Trabalhar com a shenpa nos suaviza. Uma vez
que vemos como somos fisgados e como
somos arrastados pelo momento, não tem
como ser arrogantes. O segredo é continuar
vendo. Não deixar que a suavidade e a
humildade se transformem em auto-
depreciação. É apenas uma outra fisgada.
Como viemos fortalecendo toda a situação
habitual por um longo, longo tempo não
podemos espera desfazê-la do dia para a
noite. Não é um assunto para um tiro só. É
preciso bondade amorosa para reconhecer; é
preciso prática para abster-se; é preciso
disposição para relaxar; é preciso
determinação para continuar treinando dessa
maneira. Ajuda lembrar que podemos
experimentar dois bilhões de espécies de
coceiras ou sete quatrilhões de tipos de
comichão, mas só existe realmente uma única
raiz da shenpa – a aderência do ego. Nós a
experimentamos como aperto e auto-
absorção.
Ela tem graus de intensidade. As ramificações
shenpas são todos os nossos diferentes estilos
de coçar o comichão.
Recentemente vi um cartoon com três peixes
nadando em volta de um anzol. Um peixe está
dizendo para o outro, "o segredo é não
grudar". É um cartoon shenpa: o segredo é –
não morda o anzol. Se nós pudermos nos
apanhar no lugar onde o impulso de morder é
forte podemos, pelo menos, ter uma
perspectiva maior do que está acontecendo.
Praticando dessa maneira, ganhamos
confiança em nossa própria sabedoria. Isso
começa a nos conduzir a um aspecto
fundamental do nosso ser – amplidão, calor
e espontaneidade.”

Pema Chödron,  nascida Deirdre Blomfield-


Brown (Nova York, 1936) é uma monja
budista tibetana na tradição Vajrayana, e é
instrutora residente no templo Gampo Abbey,
em Cape Breton Nova Escócia, Canadá,
fundado pelo grande Chögyam Trungpa em
1984. Veja

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