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Pema Chodron
Você está tentando tratar uma questão com seu colega de trabalho ou com
sua companheira. Num momento, o rosto dela está aberto, ela está
sorrindo. No momento seguinte, uma nuvem embaça seus olhos e seu
queixo enrijece de tensão.
Alguém nos olha de certa maneira, ou ouvimos uma certa canção, sentimos
um certo cheiro, entramos em certo aposento e bum. A sensação não tem
nada a ver com o presente, e apesar disso ela está lá. Quando estivemos
praticando reconhecer a shenpa em Gampo Abbey, descobrimos que alguns
de nós podiam senti-la até mesmo quando uma determinada pessoa
simplesmente sentava próximo de nós na mesa de jantar.
Vamos supor, por exemplo que na meditação você se sentiu sereno e aberto.
Os pensamentos vierem e se foram mas não o fisgaram. Eram como nuvens
no céu que se dissolviam quando você os reconhecia. Você foi capaz de
voltar ao momento sem uma sensação de luta. Em seguida você é fisgado
naquela experiência tão agradável: “Eu fiz certo, consegui acertar. É como
tinha que ser, é o modelo.” Ser apanhado dessa maneira constrói arrogância
e no reverso dela constrói pobreza, porque sua próxima sessão não será
nada daquilo. Na verdade sua sessão”má” é muito pior agora porque você
foi fisgado na “boa”. Você sentou lá e foi discursivo: ficou obcecado por
alguma coisa em casa, no trabalho. Você se preocupou e se atormentou; foi
apanhado com medo ou raiva. No fim da sessão você se sentiu desanimado
– foi “mau”, e só há você para culpar.
Somente a shenpa. A shenpa que sentimos para a “boa” meditação nos fisga
no que ela “deve” ser e com isso somos conduzidos pela shenpa a como ela
não “deve” ser. No entanto a meditação é apenas o que ela é. Somos
apanhados em nossa idéia dela: isso é a shenpa. Essa colada é a raiz da
shenpa. Nós a chamamos pegada do ego ou auto-absorção. Quando somos
fisgados na idéia da experiência má, a auto-absorção fica mais forte. É por
isso que, como praticantes, somos ensinados a não nos julgar, para não
sermos apanhados no bom ou mau.
O que realmente precisamos fazer é tratar as coisas como elas são. Aprender
a admitir a shenpa nos ensina o significado de não estar apegado a esse
mundo. Não estar apegado não tem nada a ver com esse mundo. Tem a ver
com a shenpa – sermos fisgados pelo que associamos com conforto. Tudo o
que estamos tentando fazer é não sentir nosso desconforto. Mas quando
fazemos isso nunca chegamos à raiz da prática. A raiz é experimentar a
coceira, assim como o impulso de coçar e então não atuar sobre ele.
O prajna não está envolvido com o ego. Sua sabedoria se baseia na bondade
fundamental, na abertura, na equanimidade – que corta a auto-absorção.
Com o prajna podemos ver o que o espaço vai nos mostrar. Ação habitual,
que está baseada no ego é exatamente o oposto – a compulsão de preencher
o espaço ao nosso estilo particular. Alguns de nós fechamos o espaço
martelando nossos mesmos pontos; outros tentando suavizar as águas.
Fomos ensinados que tudo que surge é fresco, a essência da realização. Esta
é a visão básica. Mas como ver tudo que surge como a essência da realização
quando a realidade é que temos um trabalho a fazer? A chave é olhar para
dentro da shenpa. O trabalho que temos que fazer é descobrir se estamos
tensos, fisgados ou “excitados”. Essa é a essência da realização. Quanto
mais cedo captarmos isso, mais fácil será trabalhar com a shenpa, mas até
mesmo captar isso quando já estivermos excitados é bom. Às vezes temos
que percorrer todo ciclo até que vejamos o que estamos fazendo. O impulso
é tão forte, a fisgada tão profunda, o padrão habitual tão colado que tem
vezes que não podemos fazer nada sobre isso.
Use isso como uma oportunidade de estar com o aperto sem atuar sobre ele.
Deixe o treinamento ser a sua base. Você também pode praticar
reconhecendo a shenpa na natureza. Praticar se sentando quieto e captando
o momento em que se fecha. Ou praticar numa multidão, olhando uma
pessoa de cada vez. Quando você está em silêncio, o que o fisga é o diálogo
mental. Você fala consigo mesmo sobre maldade ou bondade: eu-mau ou
eles-maus, isso-certo ou aquilo-errado. Simplesmente veja isso como uma
prática. Você ficará intrigado como involuntariamente se fechará e será
fisgado de uma maneira ou de outra. Apenas continue rotulando aqueles
pensamentos e volte para a imediatez da sensação. É a maneira de não
seguir a reação em cadeia.
Trabalhar com a shenpa nos suaviza. Uma vez que vemos como somos
fisgados e como somos arrastados pelo momento não tem como ser
arrogantes. O segredo é continuar vendo. Não deixar que a suavidade e a
humildade se transformem em auto-depreciação. É apenas uma outra
fisgada. Por virmos fortalecendo toda a situação habitual por um longo,
longo tempo não podemos espera desfazê-la do dia para a noite. Não é um
assunto para um tiro só. É preciso bondade amorosa para reconhecer; é
preciso prática para abster-se; é preciso disposição para relaxar; é preciso
determinação para continuar treinando dessa maneira. Ajuda lembrar que
podemos experimentar dois bilhões de espécies de coceiras ou sete
quatrilhões de tipos de comichão, mas só existe realmente uma única raiz
da shenpa – a aderência do ego. Experimentamo-la como aperto e auto-
absorção.