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Somente o ser humano se questiona: quem sou eu?

Um animal não se
pergunta isso. Ele simplesmente vive e aceita aquele corpo, seus
instintos e necessidades. Em algum ponto da história humana, começou
esse olhar para si mesmo e sentir que existe algo mais do que o corpo,
os pensamentos, os sentimentos. De onde terá vindo esse primeiro
lampejo de consciência assomando na mente humana? Foi certamente
um passo em frente na evolução, mas essa questão trouxe consigo
alguma inquietação, uma necessidade de buscar algo mais. Por ser tão
difícil de responder, nosso instinto foi procurar fora. Muitos sábios
discorreram e se questionaram partindo dessa mesma pergunta,
tentando definir o indefinível. Muitos artistas tentaram expressar
através de tintas, palavras, esculturas e tantos outros meios, esse vazio
existencial que tantas vezes não nos deixa dormir. Porque se não sei
quem sou, não sei o que faço aqui.

Porque o curioso é: nos identificamos totalmente com corpo, mente e


papéis sociais, com os heróis (ou vilões) de histórias pessoais que nós
mesmos narramos. Mas ao mesmo tempo em que nos vamos apoiando
nessa estrutura ilusória, algo dentro de nós nos diz que não é bem isso.
Isso nos causa um senso interno de dualidade e divisão, como se
estivéssemos constantemente escutando uma história mal contada, mas
em que queremos forçosamente acreditar. E aí começamos a procurar,
cada um de forma diferente. Assim muitos de nós chegamos ao Yoga,
como forma de nos sentirmos “melhor”. Porque mesmo que seja por
uma questão física ou emocional, no fundo o que queremos sempre é
uma resposta para acabar com o sofrimento. Intuitivamente, sabemos
que este não nos pertence, mas simplesmente não nos conseguimos
livrar dele sem ajuda. Essa pergunta eterna que nos faz duvidar se
estamos pisando em terreno firme ao acreditar em todas as nossas
identificações, que de alguma forma a prática parece ajudar a dissipar, é
que nos faz voltar dia após dia. Mesmo que as posturas nos pareçam
loucas, a série impossível de decorar e a mente difícil de calar. Porque
também em nós surge esse lampejo de consciência que nos diz que há
algo mais além do mundo externo e material, vamos respirando,
observando, limpando, desvendando as camadas que cobrem nosso
verdadeiro Ser.

Mas esse caminho até nossa essência pode-se fazer de diferentes


formas. Sri Ramana Maharshi enfatizava a meditação do tipo Vichara,
interrogação, em que vamos nos perguntando: eu sou isto? E por
exclusão vamos retirando aquilo que não somos. Esse processo pode
ser chamado de neti neti, “nem isto, nem isto”. Não sou o meu corpo,
não sou o meu pensamento, não sou o meu nome, não sou a minha
profissão… E por aí fora, até chegarmos a algo que não deixe espaço
para dúvidas. Mas para excluirmos algo e podermos afirmar com
certeza que não somos aquilo, precisamos conhecê-lo. É isso que
fazemos na nossa prática diária. Por isso passamos tanto tempo nos
observando. Como está meu corpo hoje? Que sensação é essa? É
dolorosa ou prazerosa? Como está minha mente? Porquê uns dias ela
fica tranquila e me deixa praticar em paz e outras me faz esquecer tudo,
me leva para mil lugares que eu não queria ir? Nosso verdadeiro Ser é
ilimitado, então ele toma a forma que lhe dermos. Por isso precisamos ir
purificando os vários invólucros e moldes para entender sua realidade
ilusória. Precisamos observar e conhecer para saber como os
transcender.

Partimos do corpo físico, mas podemos chegar a purificar até as


camadas mais sutis. Estes diferentes corpos recebem o nome de Koshas
e são cinco. São como vidros, em que se o primeiro está sujo de
nenhuma forma conseguimos enxergar o último. Essa sujeira não é mais
do que a soma de todas as cores que fomos dando as diferentes
situações da vida e acumulando nos diferentes Koshas.

Annamaya Kosha é o corpo físico. Anna significa comida, porque é disso


que ele é composto. Todos os dias aquilo que comemos nutre nossa
células, que se renovam a partir dessa nutrição. Pensando que este
corpo é formado pelo que comemos e digerimos, se entende porque a
alimentação é tão importante se queremos começar purificando os
Koshas. Para além de predominantemente sátvica, ela deve ser
adequada a nossa constituição, mas também à nossa capacidade de
digeri-la. Ama, o conjunto de biotoxinas que está na origem de muitas
doenças, se acumula quando comemos algo que não podemos digerir.
Quando temos muito Ama, nos sentimos pesados, acordamos com
dificuldade, as articulações doem. O interessante é que ao praticarmos
todos os dias e observarmos o efeito dos alimentos que consumimos no
dia anterior, acabamos por fazer escolhas e mudanças na nossa
alimentação cada vez mais adequadas. E o melhor é que essas
mudanças são normalmente graduais e suaves, porque acontecem de
dentro para fora e não baseadas em opiniões exteriores, com as quais
nossa razão pode até concordar, mas nossa vontade não. Ao mesmo
tempo, quando esquentamos, torcemos, alongamos e massageamos
nosso corpo com a prática, vamos removendo parte de Ama. Como
equilíbrio gera equilíbrio, ao estarmos menos intoxicados, optamos por
alimentos mais adequados.
A Primeira Série do Ashtanga Yoga recebe o nome de Yoga Chikitsa ou
terapia porque atua primeiramente no corpo físico, entre outras coisas,
aumentando o calor e a circulação sanguínea e linfática para todos os
pontos do corpo, massageando áreas que antes ficavam inertes. No
livro Yoga Mala, Sri K. Pattabhi Jois faz uma descrição detalhada sobre
os benefícios de cada postura desta série. A ideia é deixar este corpo
livre de doença e dor, para que o espaço que estas ocupariam seja
utilizado para a concentração e meditação. Quando nosso corpo físico
sente desconforto, toda nossa atenção é tomada por ele. Quando este
está equilibrado e em harmonia, podemos então começar a purificar as
camadas seguintes.

Pranamaya Kosha é basicamente o corpo energético. Composto por


Prana, energia vital, é purificado através de Asana e Pranayama. Os
seus canais, chamados nadis, recebem especial atenção na Segunda
Série, em sânscrito, Nadi Shodhana, que significa exatamente
purificação desses canais. O seu canal principal, o Sushumna, segue a
coluna vertebral, tendo dois canais secundários que o acompanham: Ida
(Lunar, esquerdo) e Pingala (Solar, direito). Os pontos de interseção
desses dois canais são pontos especiais de energia, os conhecidos
Chakras. Este corpo está entre o físico e o da mente, fazendo a ligação
entre os dois, o que é facilmente observável numa prática de asanas. O
Prana tem uma relação especial com a mente e para onde vai um segue
o outro. Podemos ter certa região bloqueada, por exemplo sentindo
resistência a que se abra. Se tentarmos forçar através da força física,
provavelmente causaremos uma lesão. Mas quando levamos nossa
atenção, sem julgamento, para aquela região, o Prana segue, podendo
fazer a energia fluir. Isso pode trazer à tona diferentes emoções e por
isso é comum para quem está começando as retroflexões profundas da
Segunda Série ter manifestações diversas desse desbloqueio, como
choro ou pesadelos. Como sempre, vale não racionalizar em excesso e
se entregar ao que está acontecendo, lembrando que cada um é um
indivíduo diferente e reagirá de forma diferente. Os Bandhas são mais
um exemplo dessa ligação entre esses três corpos. Se ao inicio usamos
muito a contração muscular para alcançar esses nós, aos poucos,
colocando nossa atenção neles, podemos sentir como a força física vai
diminuindo e se torna uma contração sutil, energética. Fechando o
Mula Bandha, interrompemos o desperdício de Prana pelo Apana Vayu.
Pelo Udhyana Bandha expandimos nossa capacidade torácica, fazendo
com que o Prana seja distribuído por todo o corpo energético a partir
da região do Anahata Chakra, o coração espiritual.

O Manomaya Kosha é o corpo da mente, pelo qual em vez de sangue e


linfa fluem pensamentos. Também aqui ficam guardados samskaras,
impressões passadas que se foram acumulando por um denominador
comum, influenciando tendências de comportamento, os vasanas.
Porquê quando escutamos alguém falar de bolo de chocolate nos dá
vontade de comê-lo? Porque essas três palavras nos lembram todas as
vezes que comemos e foi prazeroso, reavivando esse samskaras. Ou
não, pode ser que elas estejam associadas a uma memória de um bolo
que nos deu dor de barriga e somente menciona-lo nos enjoa. Seja
como for, nossa tendência automática é a de persistir no agradável e
rejeitar o desagradável, segundo nossas impressões anteriores e
prevalentes.
Tal como nosso corpo físico é composto por aquilo que conseguimos
digerir, também o corpo mental vai sendo formado por aquilo que
vamos digerindo, aquilo que vamos percebendo do mundo exterior e
aquilo que vivemos nele, fazendo nosso próprio conjunto de memórias
sensoriais, emocionais e intelectuais. E tal como existe Ama físico
também existe Ama mental, pegajoso e difícil de eliminar, obstruindo os
canais deste corpo, o fluxo do pensamento claro. Assim, a partir das
impressões percebidas, como as digerimos e guardamos, são gerados
padrões de comportamento. Um dos presentes recebidos ao praticar
Yoga é a crescente consciência desses padrões, o primeiro passo para
conseguirmos ultrapassá-los.

A purificação dos Koshas anteriores contribui grandemente para o


alcançarmos. Bloqueios energéticos e físicos podem ser como muros
que não nos deixam ver mais adiante, mesmo que queiramos muito.
Além disso, na pratica de asanas e Pranayama, temos diversas
oportunidades para observarmos como esses padrões surgem. A
competição com o colega do lado, a frustração de não conseguir chegar
no nosso ideal de um asana, o ego vibrando porque conseguimos
chegar dois centímetros mais longe, a vontade de desistir no meio, são
apenas algumas tendências que podem surgir. Na verdade surgem
várias vezes durante nosso dia, mas nem sempre nos damos conta,
porque passamos muitas vezes a correr. A ideia é que com atenção e
amor consigamos cada vez mais eliminar os samskaras que nos causam
sofrimento.

Vignamaya Kosha é o do intelecto, da inteligência sutil. Aqui se alojam


os samskaras e o Karma mais profundos. Praticando, estamos
despertando o poder do intelecto, sem a qual não podemos desvendar
essa trama intricada de samskaras e vasanas. Só a luz de Buddhi pode
iluminar as caixas empoeiradas onde guardamos impressões e
tendências profundas, num canto escuro de nosso ser. Mas para que
Buddhi se manifeste e prevaleça sobre a vontade do ego, seus apegos e
aversões, é necessário que Sattva domine sobre a mente. Por isso são
tão importantes as ações de purificação dos Koshas anteriores, para
criar o espaço e a luz necessárias para termos Viveka, discernimento.
O último Kosha, Anandamaya Kosha, é o chamado corpo causal, a alma
que causa a individualidade especifica com que cada um de nós vem
nesse mundo. Sendo o último, o mais sutil, é o que está mais perto de
Purusa, em direto contato com o Absoluto. Dá origem aos outros
Koshas e o último a ser dissolvido quando se morre. Ananda pode ser
traduzido como bem-aventurança, um estado de felicidade, paz e
tranquilidade, que seria a matéria que compõem este corpo.
Experienciar esse estado, um tipo de Samadhi, só é possível quando os
Koshas anteriores estão purificados.
No fundo, este é um processo de Kriya Yoga tal como descrito no
primeiro sutra do Sadhana Padha, o segundo Capítulo dos Yoga Sutras,
por Patanjali. Kriya significa ação e envolve Tapas, Svadhyaya e Ishvara
Pranidhana. Com Tapas, o calor da autodisciplina, muitas vezes
traduzido como austeridade, não só fazemos o sangue circular mais
fortemente, limpando nosso corpo físico de maus hábitos, como
queimamos as sementes dos samskaras para que não germinem mais.
Mas essa austeridade não é gratuita, não vem para nos causar dano ou
reprimir. Muito pelo contrário, é uma autodisciplina que nos ajuda a
seguirmos mais facilmente naquele caminho que escolhemos. Por
exemplo, queixamo-nos que não temos tempo para praticar, que
queremos acordar cedo, aproveitar mais o dia, mas não conseguimos.
Tentamos uma vez mas na manhã seguinte já deixamos nossa tendência
de acordar tarde por anos ditar. No terceiro dia nos arrependemos e
voltamos a colocar o despertador para cedo, para no quarto esquecer
da decisão na hora que a preguiça fala mais alto. E a verdade é que cada
vez que cedemos faz com que na seguinte custe mais ainda. Mas o que
por vezes não vemos é que mais do que a hora que acordamos ou não,
o que causa o sofrimento é essa indecisão, esse constante alternar
entre nossos valores e nossos condicionamentos. Usando o fervor de
Tapas, podemos nos disciplinar para acordar mais cedo por um tempo,
até que um belo dia descubramos que isso não nos exige mais esforço,
passando a acontecer naturalmente. Claro que isso não vem sozinho.
Ter os Koshas livres de Ama físico, mental e energético é fundamental
para conseguirmos permanecer firmes em nossas escolhas. No fundo, a
vida é feita de ciclos, de ações e consequências que quanto mais estão
em sintonia e de acordo com um propósito, mais força nos dão para
irmos em direção a esse propósito.

Svadhyaya se trata exatamente de auto estudo, auto-observação e


conhecimento. Entender como nossos corpos funcionam serve para
saber como manejá-los, como transformá-los, como não deixar que nos
dominem. Como dito antes, serve também para entendermos o que não
somos. Se me apego a ideia que sou aquela pessoa que acorda tarde, se
eu mesmo coloco esse limite estanque, dificilmente só com Tapas sairei
da cama. Mas se entendo que não sou essa preguiça, fica mais fácil agir
de acordo com os valores em que realmente acredito. Svadhyaya
também é o estudo de escrituras e livros sagrados, o que não deixa de
ser um estudo sobre nós mesmos, ou não fossem estes universais.
Com Ishvara Pranidhana, temos a oportunidade de purificar todos os
corpos, do mais grosseiro ao mais sutil. Porque no fundo, só sofremos
quando não nos entregamos ao fato que existe uma lei maior, porque
nosso ego sempre espera algo em troca, mesmo que tenha propósitos
aparentemente superiores. Se eu vier todos os dias vou conseguir fazer
drop-back sozinho? Se eu fizer Pranayama vou ter uma mente mais
calma? Se eu praticar por anos vou viver mais anos? Se eu meditar vou
me iluminar? Dificilmente fazemos algo sem nos apegarmos ao
resultado. E esse resultado não pode ser qualquer um, tem que ser o
que imaginámos, segundo nossa visão limitada da coisa. Exatamente
porque avidya nos domina, a ignorância sobre quem realmente somos.
Então nos apegamos a tal estrutura ilusória que falávamos no inicio. Se
pudermos entregar tudo a Ishvara entendendo que não somos mais do
que parte desse Todo, purificamos nossas ações, nossos corpos, nossos
samskaras mais profundos.

Assim, dizemos que Yoga é um caminho de purificação, camada por


camada. Mas purificar não é lavar. Qual a melhor maneira de fazê-lo?
Entregando-o ao fogo. Ao contrário de algo que lavamos e mantemos
intacto, quando o fogo toca em algo o liquefaz, modifica sua forma. Não
sabemos como aquilo que entregamos ao fogo divino vai sair, não
queremos oferecer por medo da perda, por apego. Mas se nosso desejo
por liberação é intenso, estamos disposto a deixar que todos nossos
Koshas sejam transformados pela chama da Consciência. Isso só pode
acontecer quando confiamos plenamente no Universo, quando
sabemos que o que tem de ser será, independentemente de nossa
vontade. Por isso que, mais que tudo, o Yoga é então, um caminho de
entrega e aceitação.

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