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Raposas

“A raposa tem sete manhas, a mulher a manha de sete raposas”.


- Ditado popular
A figura da raposa desperta grande interesse em muitos. Parte por
sua incrível adaptabilidade natural, marcada por sua astúcia,
especialmente, em se aproveitar da distração e presença humanas.
Raposas descobriram que manter-se a uma distância segura do
ser humano, é muito benéfico para elas. Embora envolva riscos. Quanto
aos humanos, cabe o papel a alguns pouco imaginativos – ou talvez
criadores de galinhas – de as odiarem, e a outros de admirarem sua
esperteza e sem dúvida, beleza.
Diferentemente das fábulas de La Fontaine ou os contos
maravilhosos tão comuns no ocidente, onde as raposas (e outros
animais) são o que são, muito embora possam falar a linguagem dos
humanos ou por vezes pensar como eles, no oriente a coisa é diferente.
De uma forma geral, podemos perceber que muitas culturas
orientais apresentam aspectos animistas na base de suas crenças. E
isso leva os animais a adquirirem aspectos humanos, por vezes, de
forma mágica ou por uma habilidade inerente e misteriosa das criaturas
da natureza. E quando digo “aspectos humanos” eu me refiro, inclusive,
a sua forma.
No Japão, temos a popular imagem da kitsune ( a palavra
japonesa que designa a raposa vermelha, e que pode ter várias origens
etimológicas, amplamente debatidas por estudiosos desde o século XI),
uma raposa que pode tomar a forma humana – em quase totalidade das
vezes de uma bela mulher. Figura popular no Japão desde o século XI,
tendo sobre ela histórias registradas no compêndio de narrativas
Konjaku Monogatari, a kitsune foi, por muitas vezes, culpada pelo desvio
que os homens fizeram de casa, por perdas de objetos e entre tantas
outras peripécias, havendo assim muitas e muitas histórias sobre ela.
Algumas podem ser más, visando apenas um farto jantar, mas também
existem aquelas que são capazes de demonstrar gratidão e afeto.
Assim como as pessoas.
Outra cultura que tem uma ligação forte com a raposa – em partes
por sua cultura religiosa – são os Ainu, povo autóctone da região norte
do Japão, Hokkaido. Existem duas raposas que aparecem em suas
histórias, a poderosa raposa negra Shitunpe (significando: “coisa que
existe na cordilheira”) e a danadinha raposa vermelha Chirounpe (vulgo,
Vulpes vulpes, mas que na linguagem ainu significa “coisa que nós
matamos”). Enquanto a primeira é rara e tem uma posição de destaque
e certa altivez, a segunda, mais comum, é geralmente um problema
para esse povo que vive especialmente da pesca (daí o nome não muito
simpático que usaram para se referir a ela). Então, a quantidade de
histórias envolvendo a raposa vermelha é considerável, e aqui ela
apresenta o mesmo aspecto mágico: a mudança de forma. Mas apesar
da relação conflituosa, a cultura ainu considera todos os animais e seres
sagrados e é comum devotarem oferendas a eles.
Também na China existem vários contos sobre raposa, ao qual se
referem como Huli Jing, onde huli significa “raposa” e jing “essência”.
Acredita-se que o Huli Jing seja uma criatura de energia yin que
consome energia yang. Através do sexo, ela é capaz de se alimentar da
energia humana, e por isso, popularmente “Huli Jing” é uma expressão
para se referir a uma pessoa (geralmente mulher) de grande beleza,
sedutora e com algum quê de libidinosa. Mas há também outros termos,
como: Laohu (raposa anciã) que se refere a raposas de longa vida. As
raposas descritas como Huxian ( ) são aquelas que são
transcendentes ou imortais. Jiuwei hu (九尾 ) refere-se a uma raposa
de nove caudas. Assim como se espera da “natureza da raposa”, ela
tem comportamento malicioso e esperto, gostando de enganar os seres
humanos, porém, algumas vezes elas podem ajuda-los: curar os que
buscam a vingança, recompensar os adoradores com riqueza ou
fornecer orientação sábia.
Mas existe uma raposa que realmente apresenta o aspecto de
maldade. Na Coreia, uma linda mulher pode também ser a terrível
gumiho, uma raposa de nove caudas. Os contos antigos indicam que
por vezes poderia haver colaboração harmoniosa com os humanos,
porém nos tempos modernos a gumiho é conhecida por ser uma
criatura sanguinária e maligna que come fígados ou corações humanos.
A gumiho engana pessoas desavisadas para consumir seus corações
assumindo a forma de um ser humano. Também, existem histórias que
afirmam que para que elas consigam ser humanas para sempre,
precisam comer 1000 fígados humanos.
Claro, existem outras apresentações para as raposas em outras
culturas orientais. No entanto neste pequeno livro eu reuni apenas as
histórias típicas onde a raposa é um animal maravilhoso capaz de
transformar-se em um ser humano. E essas três culturas, são as que
mais possuem contos populares com essas imagens.

Lua Bueno Cyríaco


Raposa japonesa – Kitsune

“O Capuz Verde” (Aoi kikimimi zukin)


Houve uma história assim.
Um homem chamado Kameemon, que morava em uma vila, pensou
em ir a Edo para trabalhar. Saiu e, quando estava já se afastando da
aldeia vizinha, viu que três ou quatro crianças aprisionavam e
maltratavam um filhote de raposa. Com dó do animal, falou:
— Ei, vocês, vendam-me este filhote de raposa!
Deu-lhes então uma quantia qualquer e, assim, comprou a pequena
raposa.
— Raposinha, raposinha, vá agora e não se deixe mais ser
aprisionada e maltratada por crianças! – e soltou o animal para o lado
das montanhas. Ela foi, aos pulos, para o lado das florestas, feliz,
olhando para trás várias vezes.
Kameemon continuou andando, e passaram-se os dias. Certo dia,
parou para descansar, quando ouviu um ruído de sino – shan, shan –
que parecia aproximar-se. Chegando perto, alguém falou, enquanto
parava o cavalo:
— Ei, Kameemon, Kameemon! Eu sou a raposa das montanhas.
Outro dia você salvou minha filha, e estou muito agradecido. Gostaria
de lhe dar uma recompensa; venha comigo então. Suba neste cavalo e
feche os olhos.
O homem obedeceu e, depois de um tempo, ouviu:
— Abra os olhos.
Assim o fez, e estava em uma casa.
— Primeiro, tome um banho. Depois, o jantar será servido –
disseram-lhe.
Ele entrou no ofurô. Então, a filha da raposa apareceu e disse-lhe:
— Quando você acordar amanhã, uma pessoa irá trazer-lhe como
recompensa uma bandeja com dinheiro. No entanto, é melhor que você
fique com o tesouro de nossa casa, que é o capuz verde. Usando esse
capuz, terá a capacidade de entender a linguagem dos pássaros.
Ao amanhecer, de fato, trouxeram-lhe uma bandeja cheia de
dinheiro como recompensa, ao que ele disse:
— Eu não quero dinheiro; ouvi dizer que há um tesouro chamado
“capuz verde”, e ficaria agradecido se pudesse ficar com ele.
Então, o pai da raposa falou:
— É mesmo? Trata-se de um valioso tesouro de nossa casa e, se
o deseja, ficaremos felizes em lhe dar.
Kameemon pegou o capuz verde e foi embora. À beira da estrada,
resolveu descansar sob um cedro. Nesse momento, do lado leste, um
corvo veio voando e pousou na árvore. Logo, outro corvo veio voando
do lado oeste, pousou também no cedro e – kaa, kaa¬- os dois
pareciam conversar algo. Kameemon, então, colocou o capuz.
— Olá, corvo do oeste, há quanto tempo! Alguma novidade?
— Olá, corvo do leste, há quanto tempo! Não tenho nada de
especial para contar. E você?
— Pois é. Os humanos são mesmo uns tolos. A filha de um
magnata está com uma grave doença, à beira da morte, e ninguém
sabe o motivo. Na verdade, sob o pilar da casa que acabaram de
construir, um enorme sapo foi enterrado vivo e está sofrendo por não
conseguir sair dali. Por causa do sofrimento do sapo, a moça adoeceu.
Se ele for desenterrado, ela ficará curada. Os humanos são realmente
tolos por não saberem disso!
— Nossa, é mesmo?
Kameemon, que ouvia tudo, disse:
— Ei, ouvi algo interessante!
E resolveu então ir àquela aldeia. À porta da casa do magnata,
ficou andando de um lado para o outro, dizendo:
— Eu vejo a sorte, eu vejo a sorte!
Uma pessoa do palácio ouviu-o, e ele pediu:
— Quero cuidar da doença da moça.
Ao entrar na casa, Kameemon viu a moça muito magra; era só
pele e osso, parecia estar a ponto de morrer.
— Sob os pilares do soalho da sala, um sapo foi enterrado vivo e
está sofrendo; é por isso que a sua filha está doente. Se o sapo for
desenterrado, ela logo ficará boa.
Assim, cavaram sob o pilar e, quando olharam, um enorme sapo
saiu dali. A moça, então, rapidamente ficou curada. Kameemon ganhou
como recompensa uma grande soma em dinheiro e, ao invés de ir a
Edo, voltou para casa e viveu tranquilamente.
Dizem que assim viveu, prosperamente, por toda vida.
Doppengurarin, a lenha crepita sob a panela, o rabo do gato faz kii, kii.

*Edo: designação dada à capital do Japão a partir de 1603, atual


Tokyo.
Versão da província de Niigata.
Tradução: Marcia Namekata
Raposa ainu – Chirounpe

“Como um homem tirou vantagem de duas raposas”


Um homem adentrou as montanhas para pegar pele a fim de fazer
uma corda e achou um buraco.
Desse buraco veio uma raposa falando enquanto andava – e
apesar de ser uma raposa, falava a linguagem dos humanos:
— Soube de algo que podemos tirar grande proveito, vamos a um
lugar amanhã!
Ao que a raposa de dentro do buraco respondeu:
— Que proveito você se refere? Depois de ouvir melhor sobre isso,
se soar realmente vantajoso eu vou com você, se não, não vou.
A raposa de fora, portanto, disse:
— A vantagem que podemos tirar é a seguinte; eu virei aqui
amanhã por volta da hora do almoço. Você deve me esperar para
sairmos juntos. Se você tomar a forma de um cavalo, e eu tomar a
forma de um humano, eu monto em você e saímos juntos. Nós
podemos descer até a praia onde vivem os seres humanos que
possuem muita comida e uma sorte de coisas valiosas. Pois assim que
estivermos entre as pessoas, de certo algumas delas irão querer um
cavalo, e eu venderei para quem o quiser. Eu vou poder então comprar
um monte de comida e preciosidades. Depois disso eu vou embora, e
você, tendo a aparência de um cavalo, será levado para fora para
pastar e será amarrado em algum lugar na encosta. Então eu venho e
te ajudo a escapar e nós dividimos toda a comida e os tesouros
igualmente entre nós. Isso será proveitoso para ambos.
Assim disse a raposa de fora do buraco, e a de dentro ficou muito
satisfeita e respondeu:
— Venha me buscar amanhã cedo e nós vamos juntas.
O homem que estava escondido à sombra de uma árvore, esteve
escutando tudo. Quando a raposa que estava do lado de fora foi
embora, o homem também foi, para se proteger da noite.
Mas ele voltou no dia seguinte à entrada do buraco e disse,
imitando a voz da raposa que ele ouviu falando de fora do buraco no dia
anterior:
— Aqui estou, saia logo! Se você virar um cavalo nós podemos
descer para a praia.
A raposa saiu. Era uma raposa muito grande e bonita. O homem
então disse:
— Eu já vim transformado em homem, se você se transformar em
cavalo agora, não chamará a atenção mesmo se formos vistos juntos
por outras pessoas antes de chegar na praia.
A raposa se sacudiu e virou um grande cavalo acastanhado. Então
os dois saíram juntos e foram em direção a uma vila rica,
abundantemente provida de tudo. O homem disse:
— Eu venderei este cavalo para qualquer um que o queira!.
Como o cavalo era muito bonito e saudável, todo mundo queria
comprar. Então o homem o negociou por uma boa quantidade de
comida e tesouros, e foi embora.
Mas o cavalo era tão vistoso que o novo dono não quis deixá-lo do
lado de fora e o mantinha sempre dentro de casa. Ele fechou a porta, a
janela e levou grama para dentro para alimentá-lo. Mas apesar de
comer, ele – sendo na verdade uma raposa – não conseguia se
alimentar de grama. Tudo o que queria era comer peixe. Depois de
quase quatro dias, estava à beira da morte. Até que enfim, ele
conseguiu um meio de escapar pela janela e correu para casa.
Chegando até o lugar onde a outra raposa morava, quis matá-la. Mas
descobriu que a trapaça não fora feita pela sua comparsa raposa, mas
sim por um homem. Então as duas raposas ficaram muito furiosas e
começaram a confabular sobre achar e matar o homem.
Mas enquanto as raposas discutiam o que fazer, o homem aparece
e pede humildes desculpas:
— Eu vim naquele dia porque ouvi vocês duas planejando e então
eu as enganei. Por isso eu peço humildemente seu perdão. Se vocês
me matarem, não terão vantagem alguma. Então, daqui em diante, eu
vou cozinhar cevada, oferecer inau* e reverenciar vocês para sempre.
Dessa forma, vocês terão mais benefício do que se me matassem.
Peixe, também, sempre que eu fizer boa pescaria, vou oferecer como
um ato de respeito. Sendo dessa forma, as criaturas chamadas
humanos, vão respeitá-las para sempre.
As raposas ouvindo isso disseram:
— Nós achamos isso ótimo. Será muito bom!
Assim disseram as raposas.
E assim acontece com todos os homens, por isso ambos,
japoneses e ainu, reverenciam a raposa.
Assim é como se diz.
*Ainu: povo autóctone da região de Hokkaido, Japão.
*Inau: objeto sagrado feito com galho de salgueiro e palha
Tradução: Lua Bueno Cyríaco.
Conto Ainu, contado por Ishanashte em 1886. Transcrito por Basil
Hall Chamberlain. The Ainu Folk-Tales, 1888.
Raposa chinesa – Huli Jing

“A vingança da raposa”
A vingança da raposa

Em uma comunidade local, havia vários jovens folgazões. Ao saber


que, na sepultura deserta pertencente a um certo clã, havia raposas
que podiam assumir a forma de mulheres e seduzir os homens, eles
armaram armadilhas para elas durante a noite e, colocando-as na boca
dos buracos e fendas, pegaram duas. Para que as raposas não
mudassem suas formas, os jovens rapidamente as esfaquearam nas
coxas com punhais e amarraram-nas com cordas. Brandindo suas
facas, eles ameaçaram as raposas:

— Se vocês assumirem a forma humana e nos servirem vinho, nós


as liberaremos. Ou então vamos massacrar vocês.

As duas raposas gritaram e pularam, como se não entendessem.


Os folgazões, muito irritados, esfaquearam uma delas até a morte. A
outra então falou em uma voz humana:

— Eu não tenho roupas nem sapatos. Como eu poderia encarar


vocês quando transformada em um ser humano?

Os folgazões seguravam suas facas debaixo do queixo dela. Por


uma série de reviravoltas, ela se transformou em uma mulher bonita,
mas nua. O grupo estava em êxtase e, um após outro, a violaram. Com
seus braços ao redor dela, eles a forçaram a servir-lhes vinho, o tempo
todo segurando a corda com a qual a mulher estava amarrada. Ela falou
suavemente e sedutoramente, implorando para eles afrouxarem a
corda. Uma vez que deixaram as mãos livres, no entanto, ela
desapareceu em um piscar de olhos.

Quando se aproximaram de casa, os jovens folgazões podiam ver


chamas à distância. Todas as suas casas foram queimadas no chão, e
uma filha do homem que matou a raposa foi queimada até a morte.

E assim conheceram a vingança da raposa. Embora essas


raposas não tenham causado problemas aos homens, os homens
escolheram perturbá-las. Adequadas o suficiente são as consequências
para aqueles que fazem o mal com frequência!

Esta história do século XVIII aparece nos Random Jottings at the


Cottage of Close Scrutiny de Ji Yun.

Tradução para inglês: Leo Tak-hung Chan, The Discourse on Foxes


and Ghosts: Ji Yun and Eighteenth-Century Literati Storytelling.

Tradução: Lua Bueno Cyríaco


Raposa coreana – Gumiho

“A irmã raposa e seus três irmãos”


Há muito tempo, havia um homem que tinha três filhos, mas
nenhuma filha. Era o desejo mais querido de ter uma filha, então ele
subiu às montanhas e orou pelos espíritos. Uma noite, depois de meses
de oração, ele estava tão desesperado que disse:

— Por favor, Hannanim*, me dê uma filha - mesmo que seja uma


raposa!

Logo a esposa do homem descobriu que estava grávida, e com o


tempo ela teria uma linda garota. O homem estava feliz. Mas quando a
filha estava com cerca de seis anos, coisas estranhas começaram a
acontecer. Todas as noites morriam vacas e, pela manhã, nunca
encontravam vestígios do que as matara. Então, uma noite, o homem
disse ao seu primeiro filho que ficasse atento.

Pela manhã, o primeiro filho contou uma terrível história do que


aconteceu.

— Pai, eu não podia acreditar em meus próprios olhos – disse ele.


— É nossa pequena irmã que está matando o gado. Ela saiu no meio da
noite e eu a segui até o galpão de gado. Ao luar eu podia vê-la enquanto
fazia uma pequena dança. Então ela besuntou a mão e o braço com
óleo de gergelim. Ela empurrou todo o braço para a vaca e tirou o
fígado. Ela comeu aquilo cru enquanto a vaca morreu sem um som. Foi
tudo o que vi, pai, pois era muito horrível testemunhar mais.

O pai ficou indignado.

— Isso não é possível – disse ele. — Diga-me a verdade.

— Essa é a verdade, pai.

— Então você deve ter tido um pesadelo. Isso significa que você
traiu minha confiança dormindo, enquanto deveria vigiar. Saia das
minhas vistas! Você não é mais meu filho!

E então ele jogou fora seu filho mais velho.


Agora, foi a vez do segundo filho vigiar. Tudo estava bem por um
mês, mas quando a lua cheia apareceu, a mesma coisa aconteceu e,
pela manhã, ele fez seu relatório ao pai.

— Isso não é possível – disse o pai. — Diga-me a verdade.

— Essa é a verdade, pai.

— Então você deve ter tido um pesadelo. Isso significa que você
traiu minha confiança, dormindo enquanto deveria vigiar. Saia das
minhas vistas! Você não é mais meu filho!

E então ele jogou fora seu segundo filho.

Por fim, foi o turno do filho mais novo para vigiar sua irmã e, mais
uma vez, tudo estava bem por um mês. Quando a lua chegou, a
mesma coisa aconteceu, mas tendo visto o destino de seus irmãos mais
velhos, o filho mais novo mentiu.

— Pai – disse ele. — Nossa pequena irmã saiu no meio da noite e


eu a segui até a dependência. Ela pegou água e saiu de novo. Quando
passei pelo galpão de gado à luz da lua, vi que uma vaca havia morrido.
Deve ter ficado assustada com a lua cheia.

— Então você fez o seu dever como um filho deve – disse o pai. —
Você deve herdar minhas terras quando eu for juntar-me aos nossos
antepassados.

Enquanto isso, os dois primeiros filhos não eram mais do que


mendigos vagando pelo campo. Eventualmente, ambos chegaram ao
topo de uma montanha onde um antigo mestre budista os levou.
Estudaram diligentemente com ele até que seus corações ficaram
doloridos, desejosos de ver sua casa de novo. Depois de um ano, eles
decidiram voltar para sua aldeia para uma visita. O velho mestre fez aos
dois irmãos um presente de três garrafas mágicas: uma branca, uma
azul e uma vermelha.
— Usem-nas como eu os instrui – disse ele — e vocês poderão
derrotar qualquer inimigo - mesmo aquela sua irmã, que certamente é
um demônio da raposa!

Os irmãos agradeceram ao velho monge e voltaram para sua


aldeia apenas para encontrá-la totalmente deserta. Quando chegaram à
sua casa, viram o telhado em terríveis condições e o pátio coberto de
ervas daninhas. No interior, os painéis de papel nas portas estavam
todos em farrapos. Eles encontraram a irmã completamente sozinha.

— Onde está todo mundo? Onde está o pai? Onde está nosso
irmão mais novo? Onde está a Mãe? – Perguntaram.

— Todos descansam em seus túmulos – ela respondeu, não dando


explicações sobre suas mortes. Mas os irmãos sabiam o porquê. —
Estou sozinha agora – disse ela — Irmãos, vocês não vão ficar comigo?

— Não – disseram eles — Devemos seguir nosso caminho. Não há


nada para nós aqui.

— Mas está quase escuro – disse a irmã. — Vocês não vão pelo
menos ficar à noite?

Eles, relutantemente, concordaram e, de alguma forma, a irmã


preparou-lhes uma fabulosa refeição com vinho naquela noite. Eles
estavam desconfiados, e planejaram se revezar vigiando durante a
noite, mas passaram tanta fome durante o ano de pobreza que
comeram e beberam, e logo dormiram profundamente. No meio da
noite, o irmão mais velho acordou de repente com a bexiga cheia. Ele
pensou que seu irmão mais novo ainda estava comendo – algo soava
como alguém mastigando - então ele se virou com irritação para dizer-
lhe para parar. Ao luar, ele pode ver a mesa ainda na sala, as sobras
espalhadas. Mas, em vez de arroz branco, o que ele via eram vermes.
Em vez de vinho, havia copos de sangue. Em vez de kimchi de nabo,
havia dedos humanos cortados. Ele sentou-se horrorizado, percebendo
o que ele comeu, e então viu o que estava fazendo barulho - era a irmã
dele, montando o corpo de seu irmão morto, mastigando seu fígado
sangrento.

— Você dormiu bem, querido irmão mais velho? – Ela disse. — Eu


preciso de apenas mais um, e então eu serei um ser humano.

O irmão mais velho saltou da sua esteira de dormir e saiu correndo


da casa. Ainda estava grogue com a comida encantada, e ele tropeçou
e cambaleou, enquanto corria pela estrada à luz da lua. Logo sua irmã
iniciou a perseguição, e ela facilmente o alcançou. Recordando as
instruções do velho monge budista, o irmão pegou a garrafa branca e
atirou atrás dele. De repente, em um sopro de fumaça, um vasto mato
de arbustos espinhosos bloqueou o caminho da irmã. Ela ficou presa
por um momento, mas então ela mudou para sua forma original - a da
raposa - e escapou facilmente. Pouco tempo depois, ela o alcançou de
novo. Desta vez, o irmão pegou a garrafa azul e atirou as suas costas.
Houve um barulho alto, e um vasto lago apareceu. Mais uma vez a irmã
ficou presa. Ela lutou para nadar, mas então ela se transformou na
raposa de novo e facilmente remou para a terra.

O irmão mais velho estava exausto e aterrorizado. Não conseguia


correr mais. Ele então pegou a garrafa vermelha e atirou na raposa,
dizendo:

— Ya! Tome isso!

Houve uma explosão de luz imensa e a raposa foi engolida em


uma bola de fogo. Ela queimou até a morte, gritando, e quando só havia
cinzas, um inseto pequeno zumbiu e voou. E foi assim que o primeiro
mosquito veio ao mundo. E é por isso que tanto a raposa quanto o
mosquito tem medo de incêndios.

*Hannanim: deus supremo da coreia antiga.


Conto tradicional coreano, adaptado das histórias coletadas por
Heinz Insu Fenkl e James H. Grayson; Myths and Legends from Korea:
An Annotated Compendium of Ancient and Modern Materials. Tradução:
Lua Bueno Cyríaco
Ficha Técnica

Capa: “Kyubi no kitsune” 1906. Ukyio-e de Ogata Gekko.

Diagramação: Lua Bueno Cyríaco

Ilustrações: Lua Bueno Cyríaco, inspiradas nas obras tradicionais


japonesas, coreanas e chinesas.

Revisão: William Teca

Agradecimento especial à Marcia Namekata por ceder a tradução


de “Aoi kikimimi zukin”

Contos selecionados e traduzidos por Lua Bueno Cyríaco (do inglês


para o português)

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