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A presença do cidadão na reforma do júri

Observações sobre a Lei no 11.689/08 e o Projeto de Lei


no 156/09

René Ariel Dotti

Sumário
I. Introdução. § 1o Um depoimento pessoal
§ 2 O Projeto de Lei no 156/09. II. A competên-
o

cia do Tribunal do Júri. III. O alistamento dos


jurados. IV. O sorteio, a convocação e a recusa.
V. A função do jurado. VI. Impedimento do
jurado. VII. Suspeição do jurado. VIII. O com-
promisso solene. IX. A formação pessoal do livre
convencimento. X. Atuação na instrução em ple-
nário. XI. Intervenção nos debates e exames de
prova. XII. Redação e leitura do questionário.

I. Introdução
§ 1o Um depoimento pessoal
Uma proposta de mudança legislativa,
independentemente de sua natureza e ex-
tensão, frequentemente gera resistências.
Elas podem provir de pessoas e de órgãos
que procuram conservar o status quo por
interesse material ou de outra ordem, ou
resultar de prejuízos, reais ou imaginários,
que a nova ordem positiva poderá pro-
vocar. Ou, ainda, mas não por último, de
René Ariel Dotti é Advogado. Professor Titu- oposição científica ou acadêmica.
lar de Direito Penal da UFPR. Membro de Comis-
Meus colegas de comissões de juristas
sões de Reforma do Sistema Criminal Brasileiro
(1979-2000). Corredator dos anteprojetos que instituídas no Ministério da Justiça e eu
se converteram na Lei no 7.209/84 (nova Parte pudemos avaliar essas hipóteses durante
Geral do Código Penal) e Lei no 7.210/84 (Lei de os trabalhos de elaboração dos anteprojetos
Execução Penal). Relator e revisor do anteprojeto de reforma da Parte Geral do Código Penal
de reforma do procedimento do júri, convertido e da Lei de Execução Penal. Um simples
no Projeto de Lei no 4.900, de 1995, da Câmara exemplo serve para mostrar uma parte do
dos Deputados. Detentor da Medalha Mérito universo de inquietações que se multipli-
Legislativo da Câmara dos Deputados (2007).

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cam para compor uma espécie de provação redo Teixeira2, até a minha renúncia, no ano
bíblica. Ele consistiu na erradicação do de 2000, em solidariedade ao Ministro José
sistema do duplo binário (pena + medida Carlos Dias, que se afastou voluntariamente
de segurança). A contradição era insaná- da Pasta da Justiça. Após amplo debate
vel: como aplicar a medida de segurança em reuniões internas e externas e eventos
(no pressuposto da periculosidade) após acadêmicos com grande número de parti-
cumprida a pena privativa de liberdade, cipantes, a minha contribuição foi acolhida
que deve ter, entre as suas finalidades, a para se converter no Projeto de Lei no 4.900,
ressocialização do condenado? 1 Houve de 1995, da Câmara dos Deputados.3 Mas,
severas críticas de alguns penalistas e durante aqueles processos de meditação,
artigos de imprensa denunciaram o que redação, discussão e publicação do disegno
seria a abertura dos manicômios para di lege, eu pude avaliar as opiniões sensatas
comprometer a segurança pública. Uma para aprimorar o texto e as manifestações de
outra novidade, a institucionalização das intolerância que se opunham à mudança. A
penas restritivas de direito foi considerada, supressão do questionário complexo, fonte
por críticos amargos, como um passaporte de nulidades, por um modelo simplificado
para a impunidade. Hoje, passados 25 anos de indagação e resposta, constituiu uma
da reforma penal e penitenciária, pode-se batalha em separado. Conforta-me saber,
afirmar que não se produziu o efeito dos pelos profissionais que operam no tribunal
“loucos nas ruas” e que os trabalhos gratui- popular, que o novo procedimento tem
tos em favor da comunidade caracterizam dado bons resultados.
uma das modernas formas de reação penal Penso que em relação às inovações pro-
e de utilidade social para os delitos de me- jetadas para um código de processo penal
nor gravidade. harmonioso com as conquistas do Estado
Sinto-me à vontade para prestar esse de- Democrático de Direito também ocorrerá
poimento pessoal também quanto ao projeto a mesma resistência cultural. Escritores e
de uma lei autônoma para a execução pe- professores que proclamam perante suas
nal. Uma objeção, carregada de indiferença turmas de alunos e nos textos acadêmicos
pelos Direitos Humanos, apregoava que o a importância dos princípios da ampla
sistema proposto era inexequível em face defesa, da contrariedade da instrução
das liberdades e dos direitos conferidos criminal e do devido processo legal não se
aos presos. Em outras palavras: o Estado constrangem em negar as lições da cátedra
que sacrifica a liberdade por meio da pena para integrar o coro dos fundamentalistas
não teria meios humanos e materiais para do direito penal de emergência e para
assegurar a garantia constitucional mínima contribuir, por omissão, para o triunfo do
prevista na Constituição revista de 1969: “é direito penal do inimigo.
assegurado aos presos o respeito à integri- Afinal, os redatores do Projeto no 156,
dade física e moral” (art. 153, §14). de 2009 4, devem estar espiritualmente
A mesma experiência de dúvidas e in-
certezas eu vivi como relator e revisor do 2
Portarias nos 3, de 10.6.1992 e 349, publicada no
anteprojeto sobre a reforma do procedimen- DOU de 17.9.1993, Seção II, p. 5277.
3
Sobre o histórico da elaboração legislativa, vide
to do júri, desde a minha indicação para par- dotti, René Ariel. “A reforma do procedimento do
ticipar das comissões de redação e revisão júri – Projeto de lei 4.900, de 1995”, em Tribunal do
instituídas pelo Ministro Sálvio de Figuei- Júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica
brasileira, coordenação de Rogério Lauria Tucci (vários
1
Exposição de Motivos da nova Parte Geral do CP: autores), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
“Das medidas de segurança. 87. Extingue o Projeto a 1999, p. 288 e ss.
medida de segurança para o imputável e institui o 4
O Projeto de Lei do Senado, no 156, de 2009,
sistema vicariante para os fronteiriços”. doravante será referido apenas como Projeto.

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preparados para uma reforma global do com o objetivo de permitir um pro-
processo penal brasileiro, com as armas da cesso muito mais ágil, sem qualquer
convicção e da esperança, segundo as quais prejuízo ao exercício da ampla defesa.
é a lei processual que deve girar em torno A elevação do número de jurados de
da Constituição, e não o contrário. Como sete para oito demonstra a cautela
acentua o Professor Eugênio Pacelli de Oli- com que se move o anteprojeto em
veira, “não é mais admissível compreender temas de maior sensibilidade social.
e muito menos seguir aplicando o processo O julgamento por maioria mínima é e
penal sem a filtragem constitucional”.5 sempre será problemático, diante da
Uma declaração audaciosa, com a mes- incerteza quanto ao convencimento
ma coragem, embora em outro tempo e com que se expressa na pequena margem
diverso objetivo, foi feita há alguns séculos: majoritária. Naturalmente, tais ob-
é a Terra que se move em torno do Sol – servações somente fazem sentido em
como o centro do mundo planetário – e não relação ao Tribunal do Júri, no qual se
o inverso. Seu autor foi levado ao Tribunal decide sem qualquer necessidade de
da Santa Inquisição e, para escapar da fo- fundamentação do julgado. Nos de-
gueira, foi obrigado a abjurar daquilo que mais órgãos colegiados do Judiciário,
era visto como uma heresia. Passaram os o contingente minoritário vitorioso
séculos e ninguém sabe ou lembra quem vem acompanhado de razões e mo-
eram os inquisidores. Mas a humanidade tivações argumentativas, de modo a
não se esqueceu do visionário que, mes- permitir, não só o controle recursal da
mo de joelhos, disse baixinho: “Eppur si decisão, mas, sobretudo, a sua aceita-
muove”. Esse gênio foi – e continua sendo ção. Não é o que ocorre no julgamento
– Galileo Galilei (1564-1642). popular. Imponderáveis são as razões
As críticas, como o vento, passam. de condenação e da absolvição, tudo
As verdades científicas ficam. Assim é e a depender de uma série de fatores
assim será com o projeto de hoje e lei de não submetidos a exame jurídico de
amanhã. procedência. E os velhos e recorrentes
problemas causados pelas nulidades
§ 2o O Projeto de Lei no 156/09 na quesitação restam agora defini-
Relativamente ao Tribunal do Júri, a tivamente superados. Com efeito,
Exposição de Motivos ao Proj. de lei no tratando-se de julgamento popular,
156/2009, dispõe: no qual se dispensa a motivação da
“Do ponto de vista instrumental, o decisão, a soberania do júri deve ser
anteprojeto acolhe os méritos de re- definitivamente afirmada: ou se de-
centes reformas da legislação proces- cide pela absolvição, ou, desde que
sual penal, notadamente as trazidas por maioria qualificada, pende-se
pela Lei no 11.689, Lei no 11.690 e Lei pela condenação, sem prejuízo de
no 11.719, todas do ano de 2008, além eventual desclassificação.”
da Lei no 11.900, de 8 de janeiro de
2009, que alteraram, recente e pro- II. A competência do tribunal do júri
fundamente, os procedimentos em
processo penal (...) A se destacar, em Em obra reunindo diversos artigos so-
matéria de procedimentos, a introdu- bre o tribunal popular, o seu coordenador,
ção no processo penal brasileiro de Rogério Lauria Tucci, escolheu muito bem
novas regras para o Tribunal do Júri, o subtítulo: “Estudo sobre a mais demo-
crática instituição jurídica brasileira”. 6
5
Curso de Processo Penal. 6 ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2006, p. 3. 6
Tribunal do Júri, cit.

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Antes mesmo da Independência (7.9.1822), e das Garantias Individuais)12: Art.150, §18.
a Lei de 18 de julho de 1822 instituiu, nos “São mantidas a instituição e a soberania
costumes jurídicos do Império, o tribunal do júri que terá competência no julgamento
popular, sob a influência e o estilo do Júri dos crimes dolosos contra a vida.” – Emen-
inglês. Originalmente, foi criado para julgar da Constitucional no 1, de 17.10.1969. (Dos
os delitos de imprensa. Direitos e das Garantias Individuais)13: Art.
Uma visita às leis fundamentais desde 153, §18. “É mantida a instituição do júri
o Império brasileiro mostra que somente que terá competência no julgamento dos
uma delas não incluiu expressamente o crimes dolosos contra a vida”. (Dos Direitos
tribunal do povo em capítulos da organiza- e das Garantias Individuais) – Constituição
ção judiciária ou da declaração dos direitos de 5.10.1988. (Dos Direitos e Deveres Indi-
individuais. Veja-se: viduais e Coletivos).14 Art. 5o, inc. XXXVIII.
Constituição de 25.3.1824. (Dos Juízes “é reconhecida a instituição do júri, com a
e Tribunais de Justiça)7: Art. 151. “O Poder organização que lhe der a lei, assegurados:
Judicial é independente, e será composto a) a plenitude da defesa; b) o sigilo das vo-
de Juízes e Jurados, os quais terão lugar, tações; c) a soberania dos veredictos; d) a
assim no cível como no crime, nos casos e competência para o julgamento dos crimes
pelo modo que os códigos determinarem”. dolosos contra a vida”.
Art. 152. “Os Jurados se pronunciam sobre Observações: (1) O tribunal popular foi
o fato, e os Juízes aplicam a lei”. – Consti- reconhecido como expressão democrática
tuição de 24.2.1891.8 (Declaração de Direitos)9: por todas as Cartas Políticas, com exceção
Art. 72, §31.”É mantida a instituição do da Constituição de 1937, promulgada pela
júri”. – Constituição de 16.7.1934. (Dispo- ditadura do Estado Novo (1937-1945), que
sições Preliminares)10 Art. 72. “É mantida a o excluiu da relação dos órgãos do Poder
instituição do júri, com a organização e as Judiciário. A decisão dos jurados podia ser
atribuições que lhe der a lei”. – Constitui- reformada quanto ao mérito, sob a vigência
ção de 10.11.1937. Omissa. – Constituição do Dec.-lei no 167, de 5 de janeiro de 1938. O
de 18.9.1946. (Dos Direitos e das Garantias art. 92, letra b, completava-se com o art. 96,
Individuais)11: Art. 141, §28. “É mantida a assim redigido: “Se apreciando livremente
instituição do júri, com a organização que as provas produzidas, quer no sumário de
lhe der a lei, contanto que seja sempre im- culpa, quer no plenário do julgamento, o
par o número de seus membros e garantido Tribunal de Apelação se convencer de que a
o sigilo das votações, a plenitude da defesa decisão do júri nenhum apoio encontra nos
do réu e a soberania dos veredictos. Será autos, dará provimento à apelação, para
obrigatoriamente de sua competência o jul- se aplicar a pena justa, ou absolver o réu,
gamento dos crimes dolosos contra a vida”. conforme o caso”.15 (2) Houve, na época,
– Constituição de 24.1.1967. (Dos Direitos opiniões sustentando a eliminação do Júri.
Surgiu, então, o histórico pronunciamento
7
Capítulo único do Título VI – Do Poder Judicial. de Magarinos Torres, que então presidia o
8
A Constituição de 22 de junho de 1890 foi publi-
cada pelo Decreto no 510, da mesma data, mas para
Júri do Rio de Janeiro, para esclarecer que a
vigorar “desde já unicamente no tocante a dualidade omissão constitucional não implicava a re-
das Câmaras do Congresso, à sua composição, à sua
eleição e à sua função, que são chamadas a exercer, de 12
Capítulo IV do Título II – Da Declaração de
aprovar a dita constituição, e proceder em seguida na Direitos.
conformidade suas disposições”. 13
Idem, ibidem.
9
Seção II do Título IV – Dos Cidadãos Brasileiros. 14
Capítulo I do Título II – Dos Direitos e Garantias
10
Seção I do Capítulo IV – Do Poder Judiciário, do Fundamentais.
Título I – Da Organização Federal. 15
Em espínola filho, Eduardo. Código de
11
Capítulo II do Título IV – Da Declaração de Processo Penal Brasileiro Anotado. 4 ed. Rio de Janeiro:
Direitos. Editor Borsoi, 1955, vol.VI, p. 121.

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vogação da legislação ordinária. O discurso necessária e nem oportuna essa mudança.
por ele pronunciado, em 16 de novembro Há uma tradição brasileira nos órgãos ju-
de 1937 – seis dias após a edição da consti- diciários quanto ao número ímpar de sua
tuição polaca –, encerra com estas palavras: composição. O Supremo Tribunal Federal
“O júri, entretanto, subsiste. Cuidemo-lo tem cinco membros em cada Turma e
dele com o zelo que merece”.16 (3) Um dos onze no plenário; as Turmas do Superior
clássicos erros judiciários decorrentes da Tribunal de Justiça têm cinco juízes e os
supressão da soberania do julgamento po- Tribunais Regionais Federais e os Tribunais
pular, foi a condenação dos irmãos Naves de Justiça estaduais têm três. (8) A cláusula
à pena de 25 anos e 6 meses de prisão ce- de reserva da competência para julgamento
lular, pelo Tribunal de Apelação de Minas dos crimes dolosos contra a vida prevista na
Gerais (4.7.1939), ao dar provimento ao Constituição de 1988 não exclui a possibili-
recurso contra a segunda absolvição dos dade da lei ordinária ampliar as hipóteses
réus pelo Tribunal do Júri, acusados pela para outras infrações, dolosas ou culposas,
morte de um comerciante. Após cumprirem que revelem na sua prática características e
a metade da pena (reduzida, em grau de violações de direitos e interesses imediatos
revisão, a 16 anos e seis meses), obtiveram da população. Servem como exemplos os
o livramento condicional. Anos mais tarde, delitos de trânsito, os crimes contra o meio
o “morto” apareceu na cidade. Os irmãos ambiente, contra o consumidor e contra a
Naves pleitearam a indenização pelo erro, economia popular.
mas somente um deles recebeu, porque o
outro faleceu antes da decisão.17 (4) A Carta III. O alistamento dos jurados
liberal de 1946 alçou o tribunal do povo
ao Capítulo dos direitos e das garantias § 1 Ampliação do número de cidadãos alis-
o

individuais. (5) A Constituição Federal tados. Dispositivo revogado: Previa o núme-


de 1967 e a Emenda no 1, de 1969, foram ro de 300 (trezentos) a 500 (quinhentos) no
editadas sob a vigência dos Atos Institu- Distrito Federal e nas comarcas de mais de
cionais baixados pelos governos militares 100.000 (cem mil habitantes) e 80 (oitenta) a
e restringiram a declaração de garantias 300 (trezentos) nas comarcas ou termos de
previstas na Constituição anterior. (6) A menor população (art. 439, primeira parte).
referida Emenda no 1, de 1969, suprimiu a Dispositivo vigente: Estabelece o número
garantia da soberania das decisões, abrindo de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e qui-
possibilidade para o julgamento do mérito nhentos) jurados nas comarcas de mais de
dos crimes contra a vida pelo Tribunal de 1.000.000 (um milhão) de habitantes, de 300
Justiça em grau de apelação, caracterizan- (trezentos) a 700 (setecentos), nas comarcas
do intolerável retrocesso marcado pela de mais de 100.000 (cem mil) habitantes,
Constituição de 1937. (7) A lei fundamental e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas
de 1988 restabeleceu as garantias da CF comarcas de menor população (art. 425).
1946, salvo quanto à exigência do número § 2o Maior universo de grupos sociais.
ímpar de jurados. O Projeto prevê o número Dispositivo revogado: O juiz elaborava a
de 8 membros (art. 349). Não me parece lista requisitando a indicação de cidadãos
que reunissem as condições legais, junto
16
Em azevedo franco, Ary. O Júri e a Cons- às autoridades locais, associações de clas-
tituição Federal de 1946, Rio de Janeiro: Livraria Freitas se, sindicatos profissionais e repartições
Bastos S/A, 1950, p. 10 a 14 (Mantida a acentuação públicas (art. 439, segunda parte). Dispo-
original. Os destaques em itálico são meus).
17
dotti, rené ariel. Casos criminais célebres. 3 ed. sitivo vigente: Além dessas fontes, mais
“O caso dos irmãos Naves”, São Paulo: Editora Revista as seguintes: a) associações de bairros; b)
dos Tribunais, 2003, p. 108 e ss. entidades associativas; c) entidades cultu-

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rais; d) instituições de ensino em geral; e) formas democráticas de acesso do cidadão
universidades; f) outros núcleos comunitá- para a prestação da justiça e um dos meios
rios (art. 425, §2o). didáticos de prevenção e de repressão da
§ 3o A divulgação dos assuntos inerentes violência e da criminalidade. Era indispen-
à função do jurado. Não havia disposição sável, portanto, que, além de ampliação dos
anterior. Disposição vigente: Com a lista centros de requisição dos juízes de fato,
geral publicada pela imprensa e divulgada houvesse uma cláusula salvatória, ou seja,
em editais afixados na porta do Tribunal do a previsão de pesquisa em outros núcleos
Júri, serão transcritos os arts. 436 a 446 do sociais. O Projeto mantém o dispositivo vi-
Código (art. 426, §2o). gente (art. 327, §2o) e contém uma regra de
§ 4o O controle dos nomes e endereços da notável expressão democrática, ao instituir
lista geral. Dispositivo revogado: Os nomes a seguinte faculdade: “Qualquer cidadão
e endereços dos alistados deveriam ser lan- que preencha os requisitos legais poderá se
çados em cartões iguais que, verificados na inscrever para exercer a função de jurado”
presença do órgão do Ministério Público, (art. 327, §3o). O sistema legal em vigor e a
ficariam guardados em urna fechada a cha- criação do direito de ser jurado mostram a
ve sob responsabilidade do juiz (art. 440). diferença do modelo autoritário anterior,
Dispositivo vigente: A verificação é feita na segundo o qual o alistamento era feito “pelo
presença do Ministério Público, de advoga- juiz-presidente do júri (...) mediante escolha
do indicado pela seção local da Ordem dos por conhecimento pessoal ou informação
Advogados do Brasil e de defensor indica- fidedigna (...)” (art. 439). (3) O cidadão-
do pelas Defensorias Públicas competentes, jurado, na perspectiva da Reforma, não
sendo que permanecem guardados em urna poderia manter-se em uma posição passiva
fechada, sob a responsabilidade do juiz quanto ao conhecimento e à avaliação de
presidente (art. 426, §3o). seus deveres e direitos enquanto magistra-
§ 5o A eliminação do “jurado permanente”. do temporário. Os arts. 436 a 446 do Código
Não havia disposição anterior. Dispositivo de Processo Penal regulam a função do
vigente: “O jurado que tiver integrado o jurado quanto aos seguintes aspectos: a)
Conselho de Sentença nos 12 (doze) meses obrigatoriedade do serviço do Júri, a salvo
que antecederam a publicação da lista geral de preconceitos de qualquer natureza (CF,
dela fica excluído” (art. 426, §4o). art. 5o, XLI e XLII); b) a sanção pecuniária
Observações: (1) O crescimento da po- pela recusa injustificada ao serviço do Júri
pulação brasileira, considerando-se o tempo e a expedição da relação das pessoas isentas
da entrada em vigor do Código de Processo de prestá-lo; c) a obrigação de prestar servi-
Penal (1o.1.1942), e o tempo da publicação ço alternativo, sob pena de suspensão dos
da Lei no 11.689/08, além da lamentável direitos políticos, imposta a quem se recusar
estatística progressiva dos crimes dolosos ao serviço do Júri fundado em convicção
contra a vida e a consequente criação de religiosa, filosófica ou política; d) presunção
novos ofícios e tribunais populares, impu- de idoneidade moral e direitos obtidos pelo
nham a ampliação do alistamento. O Projeto exercício efetivo da função de jurado; e)
conserva esses números e acrescenta: “... proibição de desconto nos vencimentos ou
observando-se, sempre que possível, a pro- salário do jurado sorteado que comparecer
porcionalidade entre homens e mulheres” à sessão do tribunal popular; f) previsão
(art. 327). Esse complemento se harmoniza de multa a ser aplicada ao jurado que, sem
com o princípio da igualdade entre homens causa legítima, deixar de comparecer no
e mulheres quanto aos direitos e obrigações, dia marcado para a sessão ou retirar-se
nos termos da Constituição (art. 5o, I). (2) Os antes de ser dispensado pelo presidente; g)
debates e o julgamento pelo Júri constituem hipóteses de aceitação de escusa fundada

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em motivo relevante e dispensa dos tra- escrivão, em livro destinado a esse fim
balhos; h) a previsão da responsabilidade (art. 428). Dispositivo vigente: Tam-
criminal do jurado nos mesmos termos em bém a portas abertas, o sorteio é re-
que o são os juízes togados por fato prati- alizado pelo juiz, cabendo-lhe retirar
cado no exercício da função ou a pretexto as cédulas até completar o número de
de exercê-la; i) aplicação, aos suplentes, 25 (vinte e cinco) jurados, na presença
quando convocados, dos dispositivos re- do Ministério Público, da Ordem dos
lativos às dispensas, às faltas, às escusas e Advogados do Brasil e da Defensoria
à equiparação da responsabilidade penal. Pública, previamente intimados para
(4) O controle acerca dos nomes e endere- esse ato (arts. 432 e 433).
ços dos jurados que compõem a lista é da § 2o A convocação para comparecimento à
maior importância, não somente quanto à reunião periódica. Dispositivo revoga-
visibilidade dos atos do chamamento dos ci- do: A convocação era feita por edital
dadãos, como também para evitar inclusões e convite nominal (art. 429 c/c o art.
ou exclusões indevidas. (5) Um dos graves 427). Dispositivo vigente: A convoca-
problemas do sistema anterior era a presen- ção é feita pelo correio “ou qualquer
ça do jurado permanente ou habitual, que outro meio hábil” (art. 434).
tinha seu nome mantido na relação da lista § 3o A divulgação dos assuntos inerentes
geral. Em Curitiba, chegou a ser criado um à função do jurado. Não havia disposi-
tipo de associação de membros do tribunal ção anterior. Dispositivo vigente: No
popular. A Reforma acaba com essa práti- mesmo expediente de convocação
ca altamente nociva, que estimulava uma serão transcritos os arts. 436 a 446 do
forma de profissionalismo do juiz de fato. O Código (art. 434, parágrafo único).
Projeto mantém o dispositivo vigente (art. § 4o O conteúdo do edital de convocação.
328, §4o). (6) O tema da seleção dos juízes Dispositivo revogado: O edital, afi-
de fato estimula debates e análises, com o xado à porta do edifício do tribunal
objetivo de sensibilizar os juízes togados e “e publicado pela imprensa, onde
os demais operadores do Tribunal do Júri, houver”, nele constando o dia do júri
aprimorarando a qualidade dos conselhos e o convite nominal aos jurados para
de sentença e, por via de consequência, dos o comparecimento “sob as penas da
julgamentos.18 lei” (art. 429). Dispositivo vigente: O
edital, afixado na porta do edifício
IV. O sorteio, a convocação e a recusa do Tribunal do Júri, conterá, além
da relação dos jurados convocados,
“§ 1o O sorteio de jurados para a reunião os nomes do acusado e dos procura-
periódica. Dispositivo revogado: O dores das partes, “além do dia, hora
sorteio deveria ser a portas abertas e e local das sessões de instrução e
um menor de 18 (dezoito anos) tiraria julgamento” (art. 435).
da urna geral as cédulas com os no- § 5o A recusa ao comparecimento. Dispo-
mes dos 21 (vinte e um) jurados, que sitivo revogado: A recusa ao serviço
seriam recolhidas em outra urna, fi- do Júri, por convicção religiosa, filo-
cando a chave respectiva em poder do sófica ou política, importará a perda
juiz. Tudo seria reduzido a termo pelo dos direitos políticos (art.435). Dis-
positivo vigente: A recusa originará
18
Especificamente sobre o assunto, bonfim, o dever de prestar serviço alternativo,
Edilson Mougenot. “O selecionamento dos jurados, a
questão da ‘notória idoneidade’ e a boa formação do
sob pena de suspensão dos direitos
Conselho de Sentença no Tribunal do Júri”. São Paulo: políticos enquanto não for prestado
Revista dos Tribunais, p. 309-693 e ss. o serviço imposto (art. 438).

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Observações: (1) Vide as observações anos (art. 434). Dispositivo vigente:
retro quanto ao controle acerca do alis- Maiores de 70 anos que requeiram
tamento dos jurados (§4o, Cap. III). (2) O dispensa (art. 437, IX).
serviço de correio ou qualquer outra via § 3o O direito/dever para todos. Não
hábil de comunicação, atende ao princípio havia disposição anterior. Disposi-
constitucional da razoável duração do tivo vigente: Nenhum cidadão pode
processo e caracteriza “um dos meios que ser excluído dos trabalhos do júri ou
garantam a celeridade de sua tramitação” deixar de ser alistado em razão de cor
(CF, art. 5o, LXXVIII). O Projeto mantém o ou etnia, raça, credo, sexo, profissão,
dispositivo vigente (art. 336). (3) Vide as classe social ou econômica, origem ou
observações retro (§3o, Cap. III). O Projeto grau de instrução (art. 436, §1º).
mantém o dispositivo vigente (art.336, pa- § 4o O direito/dever para todos. Dispo-
rágrafo único). (4) O edital de convocação sitivo revogado: O efetivo exercício
dos jurados é outro meio tradicional de co- da função de jurado constitui ser-
municação de atos processuais, que exige, viço público relevante, estabelece
para maior eficiência, a indicação de nomes presunção de idoneidade moral e
e endereços dos protagonistas do processo, assegura prisão especial, em caso de
além do dia, hora e local das sessões de crime comum, até o julgamento de-
instrução e julgamento. O modelo vigente finitivo, e preferência, em igualdade
altera a rotina que anteriomente previa a de condições, nas concorrências pú-
instrução perante o juiz togado e não pe- blicas (art.437). Dispositivo vigente:
rante o Júri. O Projeto mantém o dispositivo Mantém esses direitos, substituindo
vigente (art. 337). (5) O serviço alternativo a palavra “concorrências” por “lici-
consiste em atividades de caráter adminis- tações” e acrescendo o provimento,
trativo, assistencial, filantrópico ou mesmo mediante concurso, de cargo ou
produtivo, no Poder Judiciário, na Defen- função pública, bem como nos casos
soria Pública, no Ministério Público ou em de promoção funcional ou remoção
entidade conveniada para esse fim. O juiz voluntária (art.440).
fixará o serviço em atenção aos princípios § 5o Desconto nos vencimentos. Não
de proporcionalidade e razoabilidade (art. havia disposição anterior. Disposi-
438, §§1o e 2o). O Projeto mantém o mesmo tivo vigente: Nenhum desconto será
dispositivo, com uma alteração e um com- feito nos vencimentos ou no salário
plemento, ambos relevantes: a) estabelece do jurado sorteado que comparecer
que o juiz determinará o serviço alternativo à sessão do júri (art. 441).
“de modo a não prejudicar as atividades § 6o Dispensa. Não havia disposição
laborais do cidadão”; b) determina que, anterior. Dispositivo vigente: O ju-
“sempre que possível, o corpo de jurados rado somente será dispensado por
observará a proporcionalidade entre ho- decisão motivada do juiz presidente,
mens e mulheres” (art. 340, §§2o e 3o). consignada na ata dos trabalhos (art.
444).
V. A função do jurado § 7o Responsabilidade criminal Dispositi-
vo revogado: Os jurados eram respon-
“§ 1o A capacidade para o exercício da sáveis criminalmente, nos mesmos
função. Dispositivo revogado: Maiores termos em que o eram os “juízes de
de 21 anos (art. 434). Dispositivo vi- ofício, por concussão, corrupção ou
gente: Maiores de 18 anos (art. 436). prevaricação” (art. 438). Dispositivo
§ 2o A isenção em função da idade. Dis- vigente: O jurado, “no exercício da
positivo revogado: Maiores de 60 função ou a pretexto de exercê-la, será

200 Revista de Informação Legislativa


responsável criminalmente nos mes- não assumem o dever legal que lhes é
mos termos em que o são os juízes imposto. O Projeto mantém o dispositivo
togados” (art.445).” vigente (art. 346). (7) A responsabilidade
Observações: (1) O Projeto mantém o criminal do juiz de fato é uma exigência
dispositivo vigente (art. 338), que se ajusta natural em face do relevo da função. O
à capacidade para o alistamento eleitoral e o Projeto mantém o dispositivo vigente (art.
voto obrigatório (CF, art. 14 §1o, I). Também 347), que é especial em relação à norma
servem de referência os dispositivos sobre geral prevista no art. 327 do Código Penal,
a imputabilidade penal (CF, art. 228 e CP, a qual estabelece o conceito ampliado de
art. 27) (2) O Projeto mantém o dispositivo funcionário público.
vigente (art. 339, IX). Não se aplica o Esta-
tuto do Idoso (Lei no 10.741/03), que consi- VI. Impedimento do jurado
dera como tal a pessoa com idade igual ou
superior a 60 (sessenta anos). (3) A norma Parágrafo único. Relação das hipóteses.
está em harmonia com os preceitos consti- Dispositivo revogado: São impedidos de
tucionais que repudiam a discriminação em servir no mesmo conselho marido e mu-
qualquer de suas formas e pune gravemente lher, ascendentes e descendentes, sogro e
o racismo (CF, art. 5o, XLI e XLII). O Projeto genro ou nora; irmãos e cunhados, durante
mantém o dispositivo vigente e acrescenta o cunhadio; tio e sobrinho; padrasto, ma-
a hipótese de admitir o cidadão no serviço drasta ou enteado (art. 462). Dispositivo
do Júri quando a deficiência física que vigente (I): O mesmo impedimento ocorre-
apresenta for “compatível com o exercício rá em relação às pessoas que mantenham
da função” (art. 338, §1o). A orientação está união estável reconhecida como entidade
de acordo com o princípio da dignidade familiar (art.448, §1o). Dispositivo vigente
humana, que pressupõe a inclusão social de (II): Aplica-se aos jurados o disposto sobre
todos. (4) Um dos problemas práticos que impedimentos, a suspeição e as incom-
reduz a melhor contribuição do tribunal patibilidades dos juízes togados (art. 448,
popular na administração da Justiça é a §2o). Dispositivo vigente (III): Não poderá
falta de disponibilidade dos cidadãos para servir o jurado que: I – tiver funcionado em
se integrar nesse processo de colaboração julgamento anterior do mesmo processo,
cívica. Surge, então, a necessidade de se independentemente da causa determinante
ampliar os direitos e benefícios como con- do julgamento posterior; II – no caso de
traprestação. O Projeto mantém os mesmos concurso de pessoas, houver integrado o
direitos do dispositivo vigente, tanto no Conselho de Sentença que julgou o outro
que se refere à presunção de idoneidade acusado;19 III – tiver manifestado prévia
moral e prisão especial (art. 341), quanto disposição para condenar ou absolver o
à preferência nas licitações públicas e no acusado (art. 449).
provimento, mediante concurso, de cargo Observações: (1) A fórmula adotada na
ou função pública, bem como nos casos de Lei no 11.689/08, para regular as hipóteses
promoção funcional ou remoção voluntária de impedimentos, suspeições e incompa-
(art. 342). (5) A lei de Reforma consagrou a tibilidades, procura absorver as regras já
experiência prática de compensar o tempo vigorantes nos códigos de processo civil
empregado na função com a dispensa ao e processo penal, e acolher orientação da
trabalho profissional, sem descontos na doutrina e da jurisprudência a respeito
remuneração. O Projeto mantém o dispo- de situações atualmente não consagradas
sitivo vigente (art. 343). (6) O sentido da expressamente. Além dos impedimentos
norma é evitar, ou no mínimo reduzir, os 19
A nulidade daí resultante é absoluta (RT 653/343
expedientes de dispensa de jurados que e 681/338).

Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 201


atualmente previstos (CPP art. 462), acres- I; CPP, art. 251/256). A imparcialidade, a
centam-se outras hipóteses acima indicadas. liberdade de consciência e a determina-
(2) Correspondência entre os dispositivos ção de justiça são deveres indeclináveis
vigentes e os dispositivos do Projeto: a) o e virtudes que caracterizam a soberania
art. 448, §1o, corresponde ao art. 350, §1o; b) dos veredictos como um dos requisitos de
o art. 448, §2o, corresponde ao art. 350, §2o; existência e de funcionamento do tribunal
c) o art. 449 corresponde ao art. 351. popular (CF, art. 5o, XXXVIII, letra c). O
jurado pode decidir acima e além das regras
VII. Suspeição do jurado jurídicas, resolvendo em favor da justiça o
conflito entre a lei e o direito. Essa liberdade
Parágrafo único. Relação das hipóteses. para decidir segundo a sua livre convicção
Dispositivo revogado: Previa a suspeição e as exigências da justiça constitui exceção
“em razão de parentesco com o juiz, com à regra da fundamentação das decisões
o promotor, com o advogado, com o réu judiciais (CF, art. 93, IX).
ou com a vítima” (art. 458). Dispositivo Embora não relacionado formalmente
vigente: Aplica-se aos jurados o disposto entre os órgãos do Poder Judiciário (CF
sobre os impedimentos, a suspeição e as art. 92), o Júri exerce a jurisdição criminal
incompatibilidades dos juízes togados (art. nos limites da Constituição e da legislação
448, §2o). ordinária. Sob outro aspecto, a liberdade de
Observações: (1) Assim como se esta- consciência e o dever de justiça permitem
belece a equiparação de funções públicas que o juiz de fato reconheça causas supra-
entre o juiz de fato e o juiz togado para legais de exclusão de crime e de isenção de
efeito de responsabilidade criminal, a pena, máxime com a nova orientação legal
mesma orientação legal é fixada para os para o questionário (arts. 482 e 483).
casos de suspeição. (2) O Projeto mantém o O jurado não está obrigado a motivar
dispositivo vigente (art. 350, §2o). por escrito a sua decisão. As teses de acusa-
ção e de defesa são conhecidas e decididas
VIII. O compromisso solene pelos parâmetros morais e não em função
de balizas legais. Essa liberdade de consci-
§ 1o A liturgia do juramento e soberania ência era incompatível com o questionário
do veredicto. Dispositivo revogado e Dispo- tarifado do sistema anterior. Um dos exem-
sitivo vigente: “Em nome da lei, concito-vos plos que uma jurisprudência conservadora
a examinar esta causa com imparcialidade não admitia era o reconhecimento da coa-
e a proferir a vossa decisão de acordo com ção moral irresistível sem a identificação do
a vossa consciência e os ditames da justiça” coator. Muitas absolvições foram anuladas
(arts. 464 e 472). em grau de apelação com esse entendimen-
§ 2o Decisão vinculada à prova dos au- to. É oportuno referir o seguinte paradigma
tos. Projeto (art. 374). do Supremo Tribunal Federal:
Observações: (1) Um dos momentos de “1) Júri. Quesitos (omissão). O julga-
grande relevo nos trabalhos do Júri é o com- mento de fato da coação irresistível
promisso solenemente prestado. A liturgia envolve a formulação de pelo menos
adotada pelo juiz de fato ao responder, de três quesitos, posto que pressupõe
pé e com o braço direito, “assim o prome- sempre três pessoas, o agente, a
to”, assume um caráter simbólico inerente vítima, e o coator. 2) A omissão do
à instituição e a sua responsabilidade hu- quesito referente à figura do coator,
mana e social. A imparcialidade é uma das bem como a indagação sobre o fato
exigências impostas à judicatura de modo gerador da coação ocasiona vício
geral (LC no 35/79, art. 35, I; CPC, art. 125, insanável, passível de nulidade. 3)

202 Revista de Informação Legislativa


Jurisprudência do Supremo Tribunal § 2o Limites da decisão de pronúncia. Dis-
Federal. Pedido de ‘habeas corpus’ positivo revogado: Na pronúncia, o juiz
indeferido”.20 deve dar “os motivos de seu convenci-
Outra hipótese é a inexigibilidade de mento“ (art. 408). Dispositivo vigente: “A
outra conduta que, na lição do mestre Assis fundamentação da pronúncia limitar-se-á
Toledo, à indicação da materialidade do fato e da
“é a primeira e mais importante existência de indícios suficientes de autoria
causa de exclusão de culpabilidade. ou de participação (...)” (art. 413, §1o).
E constitui um verdadeiro princípio § 3o Proibições impostas às partes durante
de direito penal. Quando aflora em os debates. Não havia diposição anterior.
preceitos legislados, é uma causa Dispositivo vigente: Durante os debates, as
legal de exclusão. Se não, deve ser partes não poderão, sob pena de nulidade,
reputada causa supralegal, erigindo- fazer referências: a) à decisão de pronúncia,
se em princípio fundamental que está às decisões posteriores que julgaram admis-
intimamente ligado com o problema sível a acusação; b) à determinação do uso
da responsabilidade pessoal e que, de algemas como argumento de autoridade
portanto, dispensa a existência de em benefício ou prejuízo do acusado; c)
normas expressas a respeito”.21 ao silêncio do acusado; d) à ausência de
(2) O Projeto mantém o dispositivo interrogatório (art. 478).
vigente, mas introduz relevante acrésci- § 4o Proibição de leitura de documento ou
mo: “Em nome da lei (...) proferir a vossa exibição de objeto. Dispositivo revogado:
decisão de acordo com a prova dos autos, Proibia, durante o julgamento, a produção
a vossa consciência e os ditames da justiça” ou leitura de documento que não tivesse
(art. 374). Trata-se de aplicar o princípio sido comunicado à parte contrária, com a
geral segundo o qual “o juiz formará sua antecedência, pelo menos, de 3 (três) dias
convicção pela livre apreciação da prova” (art. 475). Dispositivo vigente: Além da lei-
(CPP, art. 157). tura de documento ou a exibição de objeto
que não tiver sido juntado ou apresentado
IX. A formação pessoal do livre com a antecedência mínima e ciência à ou-
convencimento tra parte de até 3 (três) dias úteis, prévios à
sessão (art. 479).
§ 1o O conhecimento individual de atos. § 5o Medidas para prevenir o juízo antecipa-
Dispositivo revogado: Onde fosse possível, do da culpa. Projeto. O acusado terá assento
o juiz-presidente mandaria distribuir aos ao lado de seu defensor (art. 375, §5o). Não
jurados cópias datilografadas ou impressas se permitirá o uso de algemas no acusado
da pronúncia, do libelo e da contrariedade, durante o período que permanecer no
além de outras peças que considerasse úteis plenário no júri, salvo em claras e restritas
para o julgamento da causa (art. 466, §2o). hipóteses (art. 376, §2o).
Dispositivo vigente: Após o compromisso, Observações: (1) A maior e mais eficien-
os jurados receberão cópias da pronúncia e, te participação da cidadania no processo
se for o caso, das decisões posteriores que e no julgamento realizado pelo tribunal
julgaram admissível a acusação e do relató- popular implica oferecer antecipadamente
rio do processo (art. 472, parág. ún.). ao juiz de fato o conhecimento de atos re-
levantes do processo. O conhecimento da
20
STF HC 57374 Rel. Min. rafael mayer 1a. T. DJ: decisão de pronúncia, apenas como juízo
17.03.1980.
21
assis toledo, Francisco de. Princípios básicos
de admissibilidade da acusação perante
de direito penal. 5 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1994. o Júri, e do relatório do processo – sem
Verbete no 283, p. 328, grifo nosso. abordar o mérito da acusação e da defesa

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–, são necessários para a melhor integração fase de investigação, ressalvada a prova
do jurado à causa penal. O Projeto mantém antecipada” (art. 380, III). Essa regra pro-
o dispositivo vigente (art. 374, §1o). (2) A clama a estrutura acusatória do processo
decisão de pronúncia não pode cometer o criminal. (4) O parágrafo único do art. 479
excesso de linguagem e nem a usurpação do Código de Processo Penal esclarece
da soberania do voto popular. O dispositivo quais são os documentos e os objetos que
vigente consagra a orientação da doutrina somente podem ser lidos ou apresentados
e da jurisprudência22. É equivocado o pre- com a juntada prévia aos autos e ciência da
cedente do Supremo Tribunal Federal (HC parte contrária. O Projeto mantém os dis-
96.123 – SP, de 3.2.09), no sentido de que, positivos vigentes. (5) O objetivo didático
com a superveniência da Lei no 11.689/08 da lei impõe a necessidade de se preservar
– que deu nova redação ao art. 478 do CPP, os direitos fundamentais. No dispositivo
vedando às partes referirem-se à decisão da em análise, essa garantia individual não
pronúncia durante os debates, não mais ha- foi prevista na redação original do Código
veria a nulidade pelo abuso da linguagem de Processo Penal e na Lei no 11.689/08.
e intervenção na livre convicção do jurado. Trata-se de uma conquista em harmonia
Com efeito, em duas oportunidades o juiz com o princípio constitucional da presunção
de fato toma conhecimento individual da de inocência (art. 5o, LVII) e um meio efetivo
pronúncia: ao receber a cópia (CPP art. 472, para neutralizar o sentimento preconceitu-
parágrafo único) e ao ter acesso aos autos oso. Sobre a proibição do uso de algemas,
(CPP, art. 480, §3o).23 O Projeto mantém o vide a observação no 3, supra.
dispositivo vigente (art. 315, §1o). (3) O
jurado deve decidir a causa pela formação X. Atuação na instrução em Plenário
pessoal de seu convencimento. Essa é a
principal razão pela qual se proíbe à parte § 1o Colheita da prova oral. Dispositivo
referir-se à decisão de outro órgão, no caso, revogado: O jurado podia inquirir as tes-
o juiz togado. O uso de algemas fora das temunhas de acusação e defesa (arts. 467
hipóteses restritas da Súmula Vinculante e 468). Dispositivo vigente: O jurado pode
no 11 do Supremo Tribunal Federal, confi- formular perguntas ao ofendido, às teste-
gura abuso de autoridade. Essa orientação munhas e ao acusado (art. 473, §§1o e 2o e
foi consolidada após o julgamento do HC art. 474, §2o).
91952, no qual se decretou a nulidade da § 2o Leitura de peças. Dispositivo revo-
condenação imposta pelo Tribunal do Júri gado: Previa o conhecimento de qualquer
ao réu que esteve desnecessariamente alge- peça do processo, que seria lida pelo es-
mado durante o julgamento. As hipóteses crivão, por ordem do presidente (art. 466,
do silêncio do acusado e da ausência do §1o). Dispositivo vigente: Proíbe a leitura
interrogatório também não podem auto- de peças “que se refiram, exclusivamente,
rizar a formação de um convencimento às provas colhidas por carta precatória e
negativo. Cabe ao Juiz-Presidente orientar às provas cautelares, antecipadas ou não
os jurados sobre a disposição legal em repetíveis” (art. 473, §3o).
análise (CPP, art. 497, IV e X). O Projeto § 3o Acareações e outras diligências. Dis-
mantém o dispositivo vigente com o neces- positivo revogado: Admitia somente a
sário complemento: as partes não podem acareação entre testemunhas (art. 470) e a
se referir “aos depoimentos prestados na possibilidade do juiz dissolver o Conselho
de Sentença para a “verificação de qualquer
22
STF HC 93299 Rel. Min. Ricardo Levandowski
fato, reconhecida essencial para a decisão da
- 1ª T. DJ: 24.10.2008.
23
No sentido do texto, o precedente do STJ, Rel. causa, [que] não puder ser realizada imedia-
Min. Arnaldo Esteves Lima, 5a T., DJ: 16.3.2009. tamente, o Juiz dissolva o conselho, formu-

204 Revista de Informação Legislativa


lando com as partes, desde logo, os quesitos XI. Intervenção nos
para as diligências necessárias” (art. 477). debates e exames de prova
Dispositivos vigentes: As partes e os jurados
poderão requerer acareações, reconheci- § 1o O pedido de informação e esclarecimento
mento de pessoas e coisas e esclarecimento ao orador. Dispositivo revogado: O jurado
dos peritos (art. 473, §3o). O juiz dissolverá tinha a faculdade de, a qualquer momento
o Conselho se ocorrer situação idêntica à durante os debates ou na sala secreta e por
prevista anteriormente (art. 481). intermédio do juiz, pedir ao orador que
Observações: (1) O jurado deve partici- indicasse a folha dos autos onde se en-
par na instrução e nos debates e, como um contrava a peça por ele lida ou citada (art.
juiz, deve aproveitar não só a prova ofere- 476, parágrafo único). Dispositivo vigente:
cida pela parte como também a colhida por Os jurados podem, a qualquer momento e
si mesmo. É natural, portanto, que o seu por intermédio do juiz, pedir ao orador que
convencimento será melhor formado. No indique a folha dos autos onde se encontra
regime anterior, ele formulava perguntas a peça por ele lida ou citada, facultando-
somente às testemunhas. Embora os re- se, ainda, solicitar-lhe, pelo mesmo meio,
vogados arts. 468 e 469 não se referissem o esclarecimento de fato por ele alegado
à inquirição do ofendido (em caso, por (art. 480).
exemplo, de tentativa de homicídio), essa § 2o Acesso aos autos e aos instrumentos
faculdade existia diante do conceito exten- do crime. Dispositivo revogado: O acesso
sivo de testemunha como informante. Não era somente permitido quando o jurado
era possível ao jurado fazer perguntas ao estivesse recolhido à sala secreta (arts. 476
réu porque o sistema de monopólio judicial e 482). Dispositivo vigente: O acesso ocor-
o vedava, conforme o revogado art. 187 re após encerrados os debates, porém, no
do Código de Processo Penal: “O defensor plenário do julgamento, perante o público,
do acusado não poderá intervir ou influir, e não na sala secreta (art. 480, § 3o).
de qualquer modo, nas perguntas e nas Observações: (1) A Reforma ampliou a
respostas”. Somente com o advento da Lei possibilidade de investigação da verdade
no 10.792/03 essa faculdade foi deferida material por parte do juiz de fato e estimula
às partes (art. 188). O Projeto mantém os a sua atuação, e não a sua omissão durante
dispositivos vigentes (arts. 375, §3o e 376, os debates, como era comum no regime
§1o). (2) A Reforma mudou a prática das anterior. A regra ampliada permite conferir
excessivas e desgastantes leituras de peças, a sinceridade ou não da parte na exposição
que não raramente eram requeridas pela dos fatos e caracteriza uma referência de
defesa com o objetivo de alongar o tempo ética profissional. O Projeto mantém o
do julgamento e cansar os jurados. O Projeto dispositivo vigente (art. 382). (2)
mantém essa limitação (art. 375, §4o). (3) O acesso antes do recolhimento à sala
Com o advento da Lei no 11.689/08, houve secreta oferece maior liberdade, ao contrá-
absoluta mudança no procedimento de ins- rio do que ocorria no momento próximo
trução judicial da causa. Os arts. 406 a 412 da votação. O Projeto introduz relevante
do Código de Processo Penal estabelecem modificação, ao retirar do texto do art. 480,
uma instrução preliminar, ao contrário do §3o, a expressão “nesta fase do procedimen-
regime anterior, no qual a instrução ordi- to”, ou seja, após concluídos os debates. A
nária alongava o tempo entre a denúncia e redação proposta é esta: “Os jurados terão
a pronúncia. Com a Reforma, a colheita da acesso aos autos e aos instrumentos do
prova é essencialmente realizada no plená- crime se solicitarem ao juiz presidente”.
rio do Júri. O Projeto mantém o dispositivo Isto é, ainda durante a discussão da causa
(art. 375, §4o). (art. 382, §3o).

Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009 205


XII. Redação e leitura do questionário no exercício de útil política judiciária des-
tinada a tentar corrigir os abusos do júri .25
§ 1o A rotineira usina de nulidades. Dispo- Esse trecho de sua lavra pode e deve ser
sitivo revogado: (Art. 484 e parágrafo úni- considerado como um depoimento pessoal
co). Dispositivo vigente: (arts. 482 e 483). do pranteado mestre e ex-Desembargador
§ 2o O Júri decide sobre o fato. Não havia do Tribunal de Justiça de São Paulo.
disposição anterior. Dispositivo vigente: Na literatura nacional, uma das obras
O Conselho de Sentença será questionado de maior prestígio profissional acerca da
sobre matéria de fato e se o acusado deve quesitação, é de autoria do Professor Mar-
ser absolvido (art. 482). ques Porto: Júri – Procedimento e aspectos
§ 3 o Simplicidade, distinção, clareza e do julgamento,26 com várias reedições. Esse
precisão. Não havia disposição anterior. autor, em texto crítico após a publicação
Dispositivo vigente: Os quesitos serão redi- do Projeto de Lei no 4.900, de 1995,27 ma-
gidos em proposições afirmativas, simples nifestou-se contrariamente à proposta de
e distintas, de modo que cada um deles simplificação do questionário.
possa ser respondido com suficiente clareza Pacelli de Oliveira pondera que as difi-
e necessária precisão. Na sua elaboração, culdades de encaminhamento de questões
o presidente levará em conta os termos da jurídicas a pessoas sem conhecimento do
pronúncia ou das decisões posteriores que Direito não são poucas (...). Não é por acaso
julgaram admissível a acusação, do interro- que muitas anulações de processos do júri
gatório e das alegações das partes (art. 482, originam-se de equívocos tanto na formu-
parágrafo único). lação dos quesitos como na contradição das
§ 4o A orientação diversificada do Projeto. respostas.28 O falecido Juiz togado, James
§ 5o O não conhecimento da tese da decisão: Tubenchlak, que durante muito tempo
falso problema. presidiu o Conselho de Sentença, também
§ 6o O problema da troca de mão. prestou valioso testemunho: Em nossa vi-
§ 7o Uma crônica de Olavo Bilac. são crítica, concluímos definitivamente que
observações: (1) A complexidade na a causa exclusiva, geradora da deficiência
redação e na compreensão dos quesitos dos quesitos em proporção alarmante,
tem provocado a proliferação de nulidades situa-se na deficiência da lei29. O depoi-
que comprometem o prestígio do Poder Ju- mento do prestigiado mestre de processo
diciário e acarretam considerável perda de
tempo, um esforço inútil de todos quantos 25
marques, José Frederico. O Júri. Coletânea
participam do julgamento frustrado. São as Estudos de Direito Processual Penal. RJ: ed. Forense,
1960, p. 235, grifo nosso.
múltiplas modalidades de erro judiciário, 26
marques porto, Hermínio Alberto. Júri –
para além das hipóteses clássicas que ver- Procedimentos e aspectos do julgamento. Questioná-
sam sobre a autoria e a materialidade. rios, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
O saudoso J. F. Marques chegou a afir-
27
Mensagem no 1.272/94, Brasília: Centro Gráfico
do Senado Federal, 1995.
mar que a complicada e difícil euremática 28
oliveira, Eugênio pacelli de. Curso de Processo
(sic)24 dos quesitos e questionários , foi uma Penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris Editora, 2007,
criação dos órgãos da superior instância, p. 559, (grifo nosso). O exímio processualista entende
que o interrogatório do réu deve merecer um quesito
24
No original, a expressão heuremática foi grafada específico “ainda que em aparente conflito com as te-
sem a letra h. Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferrei- ses apresentadas pela defesa técnica” (Ob.cit., p. 560).
ra, o termo significa o “complexo de normas para a Essa hipótese está incorporada na Lei no 11.689/2008
aplicação dos heuremas”. E por heurema entende-se (Parág. ún. do art. 482).
a “prevenção ou cautela com o fim de assegurar a 29
Tribunal do Júri - contradições e soluções, Rio
validade e eficácia dum ato jurídico” (Novo dicionário de Janeiro: Editora Forense, 1990, p. 118. (grifo nos-
da língua portuguesa. RJ: Editora Nova Fronteira, so). Uma nova edição dessa obra veio a público pela
1986, p. 891). Saraiva, 1994. Vide, p. 123.

206 Revista de Informação Legislativa


penal e notável ex-integrante do Ministério julgamentos dois são anulados por vícios
Público Estadual paulista, Tourinho Filho, do questionário ou por decisão contrária
é igualmente expressivo: Aliás, o questio- à prova dos autos, levando os Tribunais
nário, no Júri, continua sendo, como há cin- de Justiça a determinar sua renovação.
qüenta anos, fonte inexaurível de nulidade. Exemplo claro e evidente desse equívoco
Depois de tantos anos de vigência do atual do Código de Processo Penal em vigor,
Código, ainda não se sabe se, na legítima que sequer foi inteiramente recepcionado
defesa, os quesitos sobre a moderação e os pela Constituição Federal de 1988, man-
meios necessários devem ser formulados tendo formalismos indesejados, a dano da
englobada ou distintamente... 30 garantia e dos princípios da defesa efetiva
Esse era um dos problemas mais graves e da celeridade, foi o recente julgamento
do Júri brasileiro e foi considerado por e condenação, pelo Tribunal do Júri da
Rui Stoco, em linguagem crítica muito capital de São Paulo, de um coronel que
expressiva “uma absurda complexidade comandou a invasão, pela força policial,
do sistema de formulação do questionário da Casa de Detenção, considerada um dos
a ser submetido aos jurados”.31 maiores presídios do País, que a imprensa
As dificuldades práticas nessa área es- denominou de ‘Massacre do Carandirú’.
pecífica das perguntas e respostas do ques- Aos jurados foram submetidas duas séries
tionário dirigido aos juízes de fato e o imenso de quesitos. A maioria deles sobre questões
número de julgamentos anulados têm mo- de direito. Os juízes leigos, homens do
tivado a redação de monografias e artigos povo, não afeitos à teoria do Direito, tive-
que visam esclarecer a arte e a ciência de ram que responder a questões acerca do ‘es-
redigir quesitos.32 Na verdade e na prática, trito cumprimento do dever legal’, ‘excesso
um tormento bíblico que tem atormentado doloso e culposo no cumprimento do dever
há muitas décadas os jurados, os Juízes de legal ’, ‘inexigibilidade de conduta diversa’,
Direito, os agentes do Ministério Público, ‘excesso doloso e culposo na conduta exigi-
os defensores, os escrivães, os Oficiais de da’ e outras. As formulações e as respostas
Justiça e tantos outros serventuários. dadas poderão conduzir à anulação de um
Uma das maiores autoridades intelec- julgamento rumoroso, custoso, importante
tuais na área do Tribunal do Júri é o De- e demorado, levando ao descrédito e à
sembargador Rui Stoco. Sobre o tema, vale desmoralização do Poder Judiciário, frus-
repetir suas palavras: “Como se verifica, trando e aumentando e até perenizando a
hoje, lamentavelmente, o Júri converteu-se dor dos parentes das vítimas e impondo ao
em perigosa fonte de nulidades e assumiu acusado uma demora na definição que não
o estigma da ineficiência e da morosida- se coaduna com aqueles princípios consti-
de. No sistema vigente,33 de cada quatro tucionais referidos. Esses aspectos foram,
em uma segunda reportagem, posterior
30
tourinho filho, Fernando da Costa. Pro- àquela de 06.11.2000, evidenciados pelo
cesso Penal. 25 ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
jornal O Estado de São Paulo, afirmando que
152, grifos do original.
31
Crise existencial do Júri no Direito brasileiro. São ‘se a reforma do Código de Processo Penal
Paulo: Revista dos Tribunais, p. 252-664. já tivesse sido aprovada pelo Congresso, os
32
Souza, Aélio Paropat. Quesitos do Júri no jurados do caso U.G. teriam tido uma tarefa
Direito Sumular. São Paulo: Revista dos Tribunais, muito mais fácil...’”.34
p. 283-679.
Barbosa, Marcos Elias de Freitas. Regras e que- (2) A redação do vigente art. 482 do
sitos do Júri ante o Código Penal de 1984. São Paulo: Código de Processo Penal restaura a norma
Revista dos Tribunais, p. 233-649.
33
O artigo Tribunal do Júri e o projeto de reforma 34
Reforma pode diminuir contradições nos Júris. O
de 2001 foi publicado na Revista Brasileira de Ciência Estado de S. Paulo, Cadernos Cidades, de 08.jul.2001,
Criminais, v. 36, out./dez. 2001. p. C-5. Apud Rui Stoco. Ob. cit, p. 194 (grifo nosso).

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da Constituição Imperial (1824), que esta- séries distintas (art. 483). (4) A orientação
belecia: “Os Jurados se pronunciam sobre o do Projeto é diferenciada: “Encerrados os
fato, e os Juízes aplicam a lei” (art. 152). O debates, o Conselho de Sentença será ques-
Projeto também declara que o Conselho de tionado sobre a matéria de fato admitida
Sentença “será questionado sobre a matéria pela pronúncia e a que tiver sido alegada
de fato admitida pela pronúncia e a que pela defesa em plenário” (art. 384). Penso
tiver sido alegada pela defesa em plenário” que o texto vigente é mais adequado35. Com
(art. 384). (3) Dispositivo revogado: (art. efeito, na redação do questionário o Juiz
484 e parag. ún. a 487). Dispositivo vigente: levará em conta também o interrogatório
“Os quesitos serão formulados na seguinte do acusado. Esse critério considera o inter-
ordem, indagando sobre: I – a materiali- rogatório como o núcleo da defesa, embora
dade do fato; II – autoria ou participação; possa, eventualmente, haver divergência
III – se o acusado deve ser absolvido; IV entre o que diz o réu e o que sustenta o seu
– se existe causa de diminuição de pena defensor. Essa hipótese não é extravagante.
alegada pela defesa; V – se existe circuns- A contradição entre as teses da negativa de
tância qualificadora ou causa de aumento autoria e da legítima defesa ou a distinção
de pena reconhecidas na pronúncia ou em entre coautoria e participação demonstram
decisões posteriores que julgaram admis- essa possibilidade. Quanto aos quesitos, o
sível a acusação. §1o. A resposta negativa, Projeto estabelece que eles “serão formula-
de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos dos na seguinte ordem, indagando sobre:
quesitos referidos nos incisos I e II do caput I se deve o acusado ser absolvido; II – se
deste artigo encerra a votação e implica a existe causa de diminuição de pena alega-
absolvição do acusado. §2o Respondidos da pela defesa; III – se existe circunstância
afirmativamente por mais de 3 (três)jurados qualificadora ou causa de aumento de pena
os quesitos relativos aos incisos I e II do reconhecidas na pronúncia. §1o Havendo
caput deste artigo será formulado quesito mais de um crime ou mais de um acusado,
com a seguinte redação: O jurado absolve os quesitos serão formulados em séries
o acusado? §3o Decidindo os jurados pela distintas. §2o Respondido positivamente
condenação, o julgamento prossegue, o primeiro quesito por 4 (quatro) jurados,
devendo ser formulados quesitos sobre: o juiz-presidente encerrará a votação,
I – causa de diminuição da pena alegada proferindo sentença absolutória. §3o Se for
pela defesa; II – circunstância qualificadora negado por maioria o primeiro quesito, o
ou causa de aumento de pena, reconhecidas juiz formulará separadamente os quesitos
na pronúncia ou em decisões posteriores pertinentes a cada uma das causas de di-
que julgaram admissível a acusação. § 4o minuição de pena, qualificadoras e causas
Sustentada a desclassificação da infração de aumento. §4o Se tiver sido sustentada em
para outra de competência do juiz singu- plenário a desclassificação da infração para
lar, será formulado quesito respeito, para outra de competência do juiz singular, será
ser respondido após o 2o (segundo) ou 3o formulado quesito preliminar a respeito.
(terceiro) quesito, conforme o caso. § 5o §5o Resolvido o quesito, encerra-se a sua
Sustentada a tese de ocorrência do crime na apuração” (art. 385). Também penso que
sua forma tentada ou havendo divergência 35
A supressão do libelo (CPP art. 416/422, revoga-
sobre a tipificação do delito, sendo este da do) já fora proposta no Anteprojeto Frederico Marques
competência do Tribunal do Júri, o juiz for- (1970) e no Projeto no 1.268, de 1979, coordenado por
mulará quesito acerca destas questões, para Francisco de Assis Toledo e aprovado pela Câmara dos
Deputados (Proj. de Lei no 1.655-B, de 1983), aprovado
ser respondido após o segundo quesito. § 6o
em forma de substitutivo e publicado no DCN, seção
Havendo mais de um crime ou mais de um I, supl. De 17.8.1984. A redação final foi publicada no
acusado, os quesitos serão formulados em DCN, seção I, de 19.10.1984.

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a eliminação dos quesitos sobre a mate- partes (art. 482, par. ún.); b) quando a ata
rialidade e autoria ou participação trará dos trabalhos deve descrever fielmente: “os
consideráveis prejuízos quanto aos reflexos debates e as alegações das partes com os
da decisão na justiça civil e nas situações respectivos fundamentos” (art. 495, XIV).
de participação de menor importância, ou (6) Em artigo publicado sob o sugestivo tí-
se um dos concorrentes quis participar de tulo “Júri popular: erro do jurado – o amar-
crime menos grave (CP, art. 29, §§ 1o e 2o), go quatro a três”,36 o Advogado e Professor
ainda que possa haver indagação sobre Antônio Carlos de Carvalho Pinto analisa
causa de diminuição de pena alegada pela a prática do erro judiciário do tribunal po-
defesa (art. 385, II). A omissão da pergun- pular, que pode ocorrer, frequentemente,
ta sobre a materialidade também poderá pela troca de mão. E explica: “O certo é que,
acarretar perplexidade no espírito do jul- em 99% das vezes, ao depositar o seu voto
gador e resultar em possível nulidade do na sacola, aquela cédula que irá condenar
julgamento por manifesta contrariedade à ou absolver, nesse precioso, importante e
evidência do corpus delicti. dramático instante, o jurado vale-se de sua
Há determinados temas de processo memória, depositando o ‘sim’ ou o ‘não’,
penal cujas origens se perdem na noite dos segundo a lembrança que tem, de qual das
tempos. Eles refletem estados da alma em mãos carrega um ou outro voto! E, essa
sua mais original expressão antes de serem lembrança pode falhar!!! E, muitas vezes
tratados pela ciência jurídica. Pode-se afir- falha!!! É que, não obstante o jurado possa
mar que um desses assuntos indeléveis é a rever os votos antes de depositar, isto nunca
reação humana ao tomar conhecimento de acontece, até porque, nesse exato momento
um fato supostamente delituoso. A mate- há uma célere expectativa no recinto; os
rialidade surge como a primeira alteração votos são depositados em rápida seqüência
de pessoa ou coisa perceptível no mundo e todos se apressam para logo responderem
exterior. É a imagem da lesão física, do ao Magistrado, que está diante dos olhos de
corpo inerte, da agressão moral, da casa todos, esperando resposta à sua indagação.
destruída e de tudo o mais que a lei define Como os votos dos jurados são aferidos por
como o resultado da infração. A reação natu- maioria, logo se percebe a importância de
ral entre as pessoas de bem é a de tristeza cada um deles, bastando ressaltar que, na
pelo acontecimento, como forma anônima votação de quatro X três, em verdade, um
de solidariedade. Em seguida à pergunta único voto é que decide o julgamento!”.37 E
interior “o que foi?”, segue-se outra: “quem prossegue o criminalista: “Nos julgamentos
fez isso?”. (5) Um falso problema foi cons- em que participei, e que passam de algu-
tantemente levantado durante todo o tem- mas centenas, jamais pude observar um só
po de elaboração do anteprojeto original e jurado, uma única vez, consultar suas mãos
revisto até a fase de se converter em projeto após iniciada a coleta de votos; ao contrário,
de lei. Argumentavam criminalistas conser- sempre tenho presenciado os votos saírem
vadores que a fórmula de simplificação do de sob a mesa para a urna, utilizada apenas
questionário impediria o conhecimento da a memorização, que se inicia quando o Ma-
tese ou teses de defesa recepcionadas pelo gistrado anuncia que vai proceder a leitura
Júri por parte dos tribunais togados em dos quesitos”.38 (7) Em crônica antológica,
grau de recurso para exercer o controle de muito oportunamente intitulada O Júri,
legalidade quanto à decisão adequada ou Olavo Bilac (1865-1918) conta a história de
manifestamente contrária à prova. Aquela um “desventuradíssimo sujeito” conforme
objeção foi respondida em dois momentos: 36
RT 674/370 e ss.
a) quando o juiz redige os quesitos levando 37
Ob. cit. p. 371 e ss.
em conta o interrogatório e as alegações das 38
Idem, ibidem.

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as próprias palavras do escritor imortal. “A seria absolvido. Puro engano! Quando o
acusação fora frouxa; a defesa fora calorosa presidente leu as respostas aos quesitos
e clara, e calara no espírito do júri. O réu formulados, houve um espanto grande
sentia que a palavra do seu advogado ia e indizível: o sujeito estava condenado a
pouco a pouco abrandando os corações dos quinze anos de prisão! Como? Por que? –
jurados, e transformando-lhes as rijas fibras os jurados não tinham medido as palavras,
musculares em mole cera. E o desgraçado tinham confundido as respostas, tinham
exultava. Pelas janelas do velho casarão do trocado os quesitos, e força era declarar o
antigo Museu, mirava ele lá fora o céu azul, réu criminoso... Em vão, tentando demover
o livre céu luminoso retalhado pelo livre do seu propósito o juiz, clamava o advoga-
revoar das andorinhas. (...) A oração do do que a intenção do júri fora outra, pois
advogado acabara. Alguns jurados, como- não havia ali um jurado que não estivesse
vidos, enxugavam os olhos. O presidente convencido da inocência do mísero. Em
do tribunal, do alto do estrado, lançava vão! O juiz declarou terminantemente que
sobre o réu um olhar enternecido e amá- de boas intenções está o inferno calçado, e o
vel. Formularam-se os quesitos. Fechou- pobre diabo teve de desistir dos seus belos
se sobre o júri a porta da sala secreta. E projetos de bom jantar e de noitada alegre;
toda a gente que enchia a sala das sessões e voltou para a cadeia, sem compreender
rejubilava e sorria, certa de que o homem aquela atrapalhação”.39

39
Olavo Bilac - Obra reunida, ed. Nova Aguilar
S/A, RJ, 1996, p. 423.

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