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A Arte Do Contentamento Divino:

Uma Exposição de Filipenses 4:11

Por Thomas Watson


A Arte Do Contentamento Divino:
Uma Exposição de Filipenses 4:11

"[...] Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação."

Thomas Watson
1. A INTRODUÇÃO DO TEXTO

"Digo isto, não por causa da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e
qualquer situação." - Filipenses 4:11

Essa frase entra no texto de Paulo como uma espécie de prolepse, uma
antecipação para prevenir qualquer objeção por parte do leitor. O Apóstolo tinha, nos
versos anteriores, dado várias exortações importantes e benditas — entre elas “Não
andeis ansiosos de coisa alguma” (Fp. 4:6).
Com isso, Paulo não quer que deixemos de lado nem o cuidado prudente (pois
aquele que não provê para sua própria casa “tem negado a fé, e é pior que um incrédulo”, 1
Tm. 5.8) — nem o cuidado religioso — pois temos de ter “diligência cada vez maior, [para]
confirmar a [nossa] vocação e eleição” (2 Pe. 1:10).
Ele exclui, contudo, cuidado ansioso em relação aos problemas e eventos da vida
- “Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber;” (Mat.
6.25). E, nesse sentido, um Cristão deve tomar cuidado para não se sentir ansioso.
A palavra “ansioso” no Grego vem de um primitivo que significa “cortar o coração
em pedaços”, um cuidado que divide a alma. Preste atenção nisso.
Nós tentamos “entregar nosso caminho ao Senhor” (Sl. 37:5). No Hebraico, a
palavra é “lançar [o seu caminho] sobre” o Senhor. O nosso trabalho é lançar nossas
ansiedades. O cuidar é obra de Deus (1 Pe. 5.7). Nós, por nosso descomedimento,
acabamos por tomar esse trabalho das mãos dEle.
Quando a ansiedade é excêntrica, tanto por desconfiança quanto por distração, é
muito desonrosa a Deus; É como se isso removesse a providência dEle, e estivesse Ele
sentado no céu sem ligar para o que acontece com as coisas aqui embaixo, como um
homem que dá corda num relógio e depois o deixa bater por conta própria.
O cuidado desmedido tira o coração de coisas melhores e, geralmente, enquanto
estamos pensando como devemos viver, esquecemos como morrer. A ansiedade é um
corrosivo espiritual que nos consome e nos desencoraja.
É muito mais fácil a nossa ansiedade aumentar a nossa aflição em um quilômetro
do que tornar nosso conforto alguns centímetros maior. Deus já a tratou como maldição:
"O seu pão comerão com ansiedade e a sua água beberão com espanto” (Ez 12:19). Melhor
jejuar que comer desse pão! “Não andeis ansiosos de coisa alguma.”

Assim, para que ninguém pudesse dizer “Paulo, você quer nos ensinar algo que mal
aprendeu? Por acaso você aprendeu a não ficar ansioso?”, o apóstolo parece
implicitamente responder a isso, nas palavras do texto: “[…] Aprendi a viver contente em
toda e qualquer situação.” Um discurso digno de ser gravado em nossos corações, e de ser
escrito em letras de ouro nas coroas e diademas de príncipes.
O texto então se desdobra em duas partes gerais: O Estudioso, Paulo (“Porque
aprendi”) e a Lição (“viver contente em toda e qualquer situação”).
2. O ESTUDIOSO E A PRIMEIRA PROPOSIÇÃO
Começarei pela primeira parte: O estudioso, e sua proficiência. A partir de
“Aprendi”, proponho duas observações por meio da paráfrase.
O apóstolo não diz “Eu ouvi, que em devo estar contente em qualquer situação”
mas “Eu aprendi”. Daí vem nossa primeira doutrina: que não é suficiente para Cristãos
ouvirem seu dever, mas precisam aprender o seu dever. Uma coisa é ouvir, outra é
aprender. Do mesmo, uma coisa é comer outra é preparar a refeição. Paulo era um
praticante. Cristãos ouvem muito mas - é de se temer! - aprendem pouco. Haviam
quatro tipos de solo na parábola (Lucas 8:5) e apenas um solo bom: Um emblema dessa
verdade - muitos ouvintes, poucos aprendizes.

Há duas coisas que nos impedem de aprender:


1. Desdenhar o que ouvimos:
Cristo é a pérola de grande valor. Quando desprezamos essa pérola, nunca
entenderemos nem seu valor, nem sua virtude. O evangelho é um mistério raro;
Em um lugar, é chamado de “evangelho da graça” (At. 20:24). Em outro,
“evangelho da glória” (2 Co. 4:4) pois nele, como num vidro transparente, a Glória
de Deus é resplandecente. Mas aquele aprende menosprezar esse mistério
dificilmente irá aprender a obedecê-lo. Aquele que olha para as coisas celestes
como coisas do mero acaso, ou talvez como oportunidade de negócio, ou que
carregam algum desenho político para serem de maior importância - esse
homem está no caminho da condenação, e dificilmente aprenderá das coisas da
paz de Deus. Quem irá aprender algo que pensa não valer a pena aprender?
2. Esquecer do que ouvimos:
Se um estudioso tem suas regras delineadas a sua frente e as esquece tão rápido
quanto as lê, nunca irá aprender (Tg. 1:25). Aristóteles chama a memória de “o
escriba da alma”. Bernardo1 chama-a de “o estômago da alma”, por reter e
transformar o alimento celestial em sangue e essência; Temos ótima memória

1
Provavelmente Bernardo de Claraval, influente abade e teólogo católico da idade média. (N. do
T.)
em outras coisas, lembramos de tudo que é vão. Ciro lembrava o nome de cada
soldado de seu enorme exército. Nós temos lembranças de injúrias, o que é
como encher um recipiente precioso como esterco. Como disse Hierão2 “quão
logo nos esquecemos das verdades sagradas de Deus?” Estamos prontos a
esquecermos de três coisas: nossas falhas, nossos amigos e nossas instruções.
Muitos cristãos são como peneiras: ponha uma na água, e ela se enche. Tire-a da
água, e tudo vaza. Então, enquanto escutam ao sermão, eles lembram algo; mas,
como a peneira fora da água, assim que saem da igreja, tudo está esquecido.
Cristo disse: “Ponde vós estas palavras em vossos ouvidos” (Lc. 9:44). Como um
homem que, para evitar que uma jóia seja roubada, a tranca num cofre. “Ponde
vós” quer dizer que não as palavras não devem cair apenas como o orvalho que
molha a folha, mas devem ser como chuva que mergulha até a raiz da árvore e a
faz frutificar. Ó, quantas vezes Satanás, como ave no céu, rouba a boa semente
que é semeada!

Deixe-me colocar você sobre uma dura prova. Alguns tem ouvido muito - já
viveram quarenta, cinquenta, sessenta anos sob a bendita trombeta do evangelho -,
mas quanto você tem aprendido? Você pode ter ouvido milhares de sermões, e ainda
assim não haver aprendido sequer um. Examine sua consciência.

Vocês tem ouvido muito contra o pecado, mas vocês tem sido apenas ouvintes ou
como um estudiosos? Quantos sermões têm ouvido sobre a cobiça, que é a raiz no qual
o orgulho, a idolatria e a traição crescem? Alguns chamam a cobiça de um pecado
metropolitano - um mal complexo, que entrelaça muitos outros pecados consigo. De
todos os pecados, a cobiça é um ingrediente principal. E ainda sim, vocês tem sido como
as duas filhas da sanguessuga, que gritam “Dá! Dá!” (Pv. 30:15). Quanto vocês tem
ouvido contra a raiva precoce - que é um frenesi curto, uma embriaguez sóbria, e que se
encontra no seio dos tolos - e ainda assim, na menor das ocasiões, seus espíritos se
inflamam? Quanto vocês têm contra jurar: É mandamento expresso de Cristo, “de
maneira nenhuma jureis” (Mt. 5:34). Esse pecado, de todos os outros, pode ser
denominado o trabalho infrutífero da escuridão. Não é nem adoçado com prazer, nem

2
Identidade incerta. Talvez Herodião de sucessor de Inácio como Bispo de Antioquia. (N. do T.)
enriquecido com lucro (que é o vermelho com o qual Satanás comumente pinta o
pecado). Jurar é proibido com intimação. Enquanto aquele que jura dispara suas juras,
como flechas voando em direção a Deus para ‘cutucar’ sua glória, Deus dispara um “rolo
voador” de maldições sobre ele. Vocês fazem de suas línguas uma raquete pela qual
lançam juramentos como se fossem bolas de tênis? Vocês se deleitam com suas juras,
como os Filisteus fizeram com Sansão, o que irá no fim derrubar a casa sobre suas
cabeças? Ai! Como podem ter aprendido o que é o pecado e não aprenderam a deixar o
pecado! Por acaso aquele que sabe o que é uma víbora brincará com ela?

Vocês tem ouvido muito de Cristo, mas conheceram a Cristo? Os Judeus


carregavam Cristo em suas Bíblias mas não em seu coração; Seu som “por toda a terra se
fez ouvir a sua voz” (Rm 10:18). Os profetas e apóstolos eram como trombetas, cujo som
foi se espalhou pelo mundo: ainda assim, muitos milhares que ouviram essas trombetas
não aprenderam de Cristo (“Mas nem todos obedeceram ao evangelho;” Rm. 10:16).
● Um homem pode saber muito de Cristo e ainda não conhecer Cristo: os
demônios conheciam a Cristo (Mt. 8:29);
● Um homem pode pregar Cristo e ainda não conhecer Cristo: como Judas e os
pseudo-apóstolos;
● Um homem pode professar Cristo e ainda não conhecer a Cristo: há muitos no
mundo que professam contra os quais Cristo professará (Mat. 7:22-23)

Pergunta: O que, então, é aprender de Cristo?


1. Aprender de Cristo é ser feito como Cristo, ter o caráter divino e Sua santidade
gravados em nossos corações. “E todos nós, com o rosto desvendado,
contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória
em glória, na sua própria imagem [...]" (2 Co 3:18).
Há uma metamorfose feita: um pecador, vendo a imagem de Cristo pelo espelho
do evangelho, é transformado nessa imagem. Homem algum olhou para Cristo
com tal olho espiritual, mas todos foram mudados. Um verdadeiro santo é uma
imagem de paisagem divina, onde todas as raras belezas de Cristo são retratadas
de forma viva e trazidas a tona - ele tem o mesmo espírito, o mesmo julgamento,
a mesma vontade de Cristo.
2. Aprender de Cristo é acreditar nEle, como sendo “Senhor meu e Deus meu!” (Jo.
20:28), que é a real aplicação de Cristo em nossas vidas. É como se se espalhasse
o remédio sagrado do seu sangue sobre nossas almas. Você pode ter ouvido
muito de Cristo, e ainda não poder, com uma humilde adesão, dizer “meu Jesus”.
Não se sinta ofendido se eu te disse que o Diabo pode recitar suas crenças tão
bem quanto você.
3. Aprender de Cristo é amar a Cristo. Quando temos nossas conversas sobre a
bíblia, nossas vidas brilham cintilantes na igreja de Deus como ricos diamantes e
são, até certo ponto, paralelas com a vida de Cristo, como são uma transcrição e
um original.
Quanto extraímos para apenas da primeira palavra do texto!
3. A SEGUNDA PROPOSIÇÃO
Essa palavra (ἔμαθον, ematón; Eu aprendi) indica dificuldade. Mostra o quão difícil
foi para o apóstolo chegar ao contentamento da mente. Paulo não chegou naturalmente
a isso, mas ele aprendeu. Custou a ele muita oração e muito choro. Ele foi ensinado pelo
Espírito.
Por isso coisas boas são difíceis de se encontrar. O trabalho da Religião não é tão
fácil quanto a maioria imagina. “Eu aprendi”, diz Paulo. Na verdade, você não precisa
ensinar um homem a pecar - é natural, portanto é fácil. Vem como água jorrando da
fonte. É muito fácil ser mal. Se vai pro Inferno sem qualquer esforço, mas aquilo que é
divino deve ser aprendido. Cortar carne é fácil, mas furar uma veia e não perfurar uma
artéria é difícil. A habilidade de pecar não precisa ser aprendida, mas a Arte do
Contentamento Divino não é alcançada sem diligência santa.

Existem duas razões plenas pelas quais deve haver tanto estudo e exercício.

1. As coisas espirituais são contra a nossa natureza


Cada coisa na religião é antítese a nossa natureza. Na nossa vida Cristã existem
duas coisas: o Crer e o Fazer, e ambas são contra nossa natureza.
O Crer, são as questões de fé como, por exemplo, um homem ser justificado pela
retidão de outro. Tornar-se tolo para então tornar-se sábio. Salvar tudo perdendo tudo.
Isso é contra a natureza!
O Fazer, são as questões de prática, como, por exemplo, a abnegação: um
homem negar sua própria sabedoria e se ver como um cego. Negar sua vontade e a
dissipar dentro da vontade de Deus. Arrancar seu olho direito, cortando e crucificando
aquele pecado que é seu favorito, e que está mais perto do seu coração. Um homem
morrer para o mundo, e, no meio da necessidade, abundar. Para um homem tomar a sua
Cruz e seguir a Cristo, não apenas nos caminhos dourados mas nos sangrentos. Abraçar
a religião mesmo quando ela “esteja de pijamas”, com todas as jóias de honra já
guardadas. Isso vai contra a natureza, e portanto precisa ser aprendido. Também a
auto-examinação: um homem desmontar seu coração, como um relógio, em pedaços.
Fazer uma inquisição espiritual, um julgamento da consciência, uma travessia pelas
coisas da sua própria alma. Tomar a candeia e a lamparina de Davi, e buscar pelo pecado.
Como um juiz, sentenciar a si mesmo. Isso é contra a natureza, e não se alcança sem
aprender.
A auto-reforma: Ver um homem, como Calebe, de outro espírito, andar negando
a si mesmo - a curso da sua vida alterado e correndo para o rio da vida com Deus. Isso é
completamente contra a natureza. Quando uma pedra vai pra cima, não é um
movimento natural mas intenso. O movimento da alma a caminho do céu também é
intenso, e deve ser aprendido. Carne e sangue não tem prática nessas coisas. A Natureza
não pode se livrar da Natureza mais do que Satanás pode se livrar de Satanás.

2. Coisas espirituais estão acima da nossa natureza


Existem coisas na natureza que são difíceis de se descobrir, como, por exemplo, a
razão de certas coisas, que não é descoberta sem estudo. Aristóteles, um grande filósofo
- o qual alguns chamam de uma águia caída das nuvens - não conseguiu descobrir para
qual direção o rio Euripo ia e por isso se jogou nele.3 Quais então são as coisas divinas,
que estão numa esfera acima da natureza, e além da distinção humana (como a
Trindade, a união hipostática; o mistério da fé, o crer aparado na esperança? Somente o
Espírito de Deus pode acender nossa candeia aqui. O Apóstolo chama essas de as coisas
profundas de Deus. O evangelho é cheio de joias, mas elas são trancadas longe do senso
comum e da razão. Os anjos no céu estão explorando a profundidade dessas coisas
sagradas.
Roguemos ao Espírito de Deus que nos ensine: devemos ser divinamente
ensinados! O eunuco conseguia ler mas não compreender até que Felipe se juntou a ele
em sua carruagem. O Espírito de Deus deve se juntar a nós em nossa carruagem. Ele
deve nos Ensinar, ou então não aprenderemos - “E todos os teus filhos serão ensinados do
Senhor” (Is 54:13).

3
Referente ao Estreito de Euripo, na Grécia. Na época que essa obra foi escrita, provavelmente era
comum a crença de que Aristóteles havia se suicidado depois de não conseguir entender para que lado as
águas do Estreito se moviam. (N. do T.)
Um homem pode aprender a ler um relógio de sol facilmente. Contudo, não
pode dizer como as horas passam se o Sol não brilhar sobre o seu relógio. Nós podemos
ler a Bíblia inteira, mas não podemos aprender o cumprir nosso propósito até que o
Espírito de Deus brilhe em nossos corações. Implore por esse Espírito abençoado. É a
prerrogativa real de Deus nos ensinar. “Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te ensina o que é
útil, e te guia pelo caminho em que deves andar. .” (Is 48:17). Os ministros da Palavra podem
nos dar aulas, mas somente Deus pode nos ensinar.

Temos perdido tanto nossa audição quanto nossa visão, portanto estamos muito
despreparados para sermos ensinados. Desde que Eva ouviu a Serpente nós temos sido
surdos. Desde que ela olhou para a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, temos
sido cegos. Mas quando Deus vem para nos ensinar, ele remove esses impedimentos.
Estamos naturalmente mortos. Quem é que tenta ensinar um homem morto?
Mesmo assim Deus consegue fazer homens mortos entenderem seus mistérios! Deus é
o grande professor. Essa é a razão que a palavra pregada trabalha de forma diferente
sobre os homens.
Dois homens sentados num mesmo banco: Um, forjado eficazmente pela
palavra. O outro repousa sobre os mandamentos como uma criança já morta agarrada
ao peito, e não recebe qualquer alimento. Qual é o motivo? Porque o vendaval do
Espírito sopra sobre um e não sobre o outro. Um tem a unção de Deus, que o ensina
todas as coisas, enquanto o outro não. O Espírito de Deus fala de forma doce mas
também de forma irresistível.
E nessa doxologia celestial, ninguém pode cantar a nova canção senão aqueles
que “têm na fronte o selo de Deus.” (Ap. 9:4). Os reprovados não podem essa nova canção.
Aqueles habilidosos nos mistérios da Salvacão devem ter o selo do Espírito sobre eles.

Façamos essa a nossa oracão: Senhor, sopra seu Espírito sobre sua Palavra. E temos
ainda uma promessa que “adiciona asas” á nossa oração: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis
dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas
aos que lhas pedirem?” (Mt. 7:11)
Assim, concluímos a primeira parte do texto, sobre o Estudioso (a qual eu planejei
como uma breve pincelada ou paráfrase).
4. A LIÇÃO
Chegamos agora a segunda parte do texto, que é a principal. A Lição em si:
“aprendi a viver contente em toda e qualquer situação” (Fp 4:11)
Aqui está uma rara oportunidade de aprendizado e certamente muito mais a se
admirar sobre Paulo saber lidar com qualquer situação do que todo seu estudo das
coisas do Mundo, outrora aplaudido por Julio César, Ptolomeu e Xenofonte, todos
grandes admiradores do aprendizado.
O texto tem poucas palavras nele, “viver contente em toda e qualquer situação”.
Mas, se é verdade o que Fulgêncio4 disse, que “a mais áurea sentença é medida pela sua
brevidade e suavidade”, então esse é um perfeito discurso. Aqui se demonstra que a
grandeza jaz nas pequenas coisas. O texto é como uma joia preciosa - pequena em
quantidade, mas de grande valor.
A proposição principal na qual irei insistir é que um espirito gracioso é um
espirito contentado. A doutrina do contentamento é muito superlativa, e até que
tenhamos aprendido isso, não teremos aprendido a sermos Cristãos.

I. A Lição é dura
Alguns anjos no céu não haviam aprendido, e não estavam contentes. Mesmo
em seu estado muito glorioso, eles ainda estavam escalando, mirando em algo maior.
“[...] anjos, os que não guardaram o seu estado original” (Jd 1.6). Eles não mantiveram seu
estado porque não estavam contentes com seu estado. Nossos primeiros parentes,
trajando as vestes brancas da inocência no paraíso, não haviam aprendido a ser
contentes. Eles tinham corações que aspiravam mais, e considerando sua natureza
humana muito baixa e rústica, pensaram que seriam coroados com a deidade e seriam
como deuses. Mesmo tendo a sua escolha todas as árvores do Jardim, ainda assim
nenhuma os contentava senão a Árvore do Conhecimento, que eles supunham seria
como colírio para abrir seus olhos e os fazerem oniscientes. Imagine então: se essa lição

4
Provavelmente Fulgêncio de Ruspe, teólogo de Ruspe, na atual Tunísia e um seguidor dos
ensinamentos de Agostinho. (N. do T.)
foi tão difícil de ser aprendida na inocência, quão difícil para que a encontremos, nós que
somos obstruídos pela nossa corrupção!

II. A Licão é de alcance universal


A Licão importa a todos, tais como os ricos. Pode parecer desnecessário
pressionar o contentamento para cima dos ricos, os quais Deus abençoou com grandes
posses. O objetivo, contudo, é os persuadir a serem humildes e gratos. Antes digo, sede
contentes.
Os ricos têm seus descontentamentos tanto quanto outros. Em primeiro lugar,
quando tem muitas posses, estão descontentes por não possuírem mais. Em sua mente,
poderiam transformar os cem talentos em mil! Um homem quando bebe, quanto mais
bebe, mais quer beber. A cobiça é como um inchaço. Um coração mundano é como
uma cova que nunca se farta (Pv. 30:16). Portanto, digo aos ricos, sede contentes.
Em segundo lugar, os ricos se supomos que estejam contentes com com suas
posses (o que é muito raro), ainda assim, mesmo tenham posses o bastante, não tem
honra suficiente. Se seus celeiros estão cheios o bastante, a altura de suas torres não é
suficiente. Aspiram ser alguém no mundo, tal como Teudas dizia ser alguém (At 5:36).
Ninguém nunca os ve tão alegres quanto quando os ventos da honra e dos aplausos
enchem sua velas. Se esse vento acaba, se tornam descontentes.
Pode se dizer que Hamã tinha tudo quanto seu coração teria tudo que seu
coração orgulhoso desejasse. Ele estava sobre todos os príncipes, na linha de honra
como o segundo mais poderoso do reino. Ainda assim, no meio de toda a sua pompa,
por Mordecai não curvar-se nem ajoelhar-se, ele se torna descontente e cheio de ira.
Não havia maneira de amenizar o seu coração inflamado por vingança senão jorrar o
sangue dos Judeus e oferecê-los em sacrifício. Tal ânsia é dificilmente diminuída sem
sangue. Portanto, digo aos ricos, sede contentes.
Em terceiro lugar, se supomos que tais ricos estejam contentes com sua honra e
título magníficos, ainda assim não tem contentamento nos seus relacionamentos. A
mulher do coração pode muitas vezes atiçar as brasas,como a esposa de Jó que, num
ataque de mau humor, poderia ter feito Jó romper seu relacionamento com Deus -
“Amaldiçoa a Deus e morre” (Jó 2.9).
Algumas vezes, filhos causam descontentamento. Quão frequente é vermos uma
mãe amamentar uma serpente (e aquele que antes sugava seu leite, agora suga seu
sangue)? Pais muitas vezes colhem da videira colhem espinhos e da figueira colhem
abrolhos5. Filhos são como arbusto florido: como a rosa, que tem uma agradável
fragrância mas, como disse Basílio6, tem seus espinhos.
Nossos confortos relativos não são como vinho puro, mas misturado. São mais
turvos do que as bebidas destiladas, e são como o rio sobre o qual Plutarco fala, no qual
as águas pela manhã correm doces e a tarde, amargas. Não temos ganhamos nessa vida
uma declaração de isenção. Por isso, os ricos devem ser chamados a serem contentes.
A Doutrina do Contentamento também diz respeito aos pobres. Os que tomam
liberalmente dos seios da Providência, sede contentes. É uma lição dura, portanto era
necessário a imputar sobre a categoria anterior (os ricos). Quão difícil é, quando o seu
mantimento se foi e suas posses se desfizeram a quase nada, ser contente ainda assim?
O nosso meio de subsistência na Escritura é chamado de nossa vida, porque se
refere às próprias ligaduras da vida. A mulher no Evangelho havia gasto tudo o que tinha
com médicos (Lc. 8:43). No grego, o texto diz ὅλον τὸν bion, “toda sua vida”. Ela gastou
toda sua vida com médicos porque havia gastado os meios pelos quais deveria viver. É
admirável manter-se contente quando a pobreza corta nossas asas. Mas o dificilia
pulchra (do Latim, “o belo é difícil de obter”) apesar de duro, é excelente. E o Apóstolo
aqui tinha aprendido a viver contente em toda e qualquer situação.
Deus tinha colocado Paulo em uma grande variedade de condições (como
sempre lemos de muitos homens) e ainda assim ele estava contente. Caso contrário, ele
nunca teria passado por tudo com tanto entusiasmo. Vamos olhar para as adversidades
pelas quais o Apóstolo passou:
“Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não
desanimados” 2 Coríntios 4.8

5
Um jogo de palavras com Mateus 7:16 (N. do T)
6
Citação atribuída a Basílio, Bispo de Cesaréia nos meados do Século IV. A citação se refere a uma
crença de que antes da queda do homem, as rosas não teriam espinhos. (N. do T)
“Em tudo somos atribulados” havia tristeza em sua condição. “Porém não
angustiados”, havia contentamento em sua condição. “Perplexos”, aqui, sua aflição. “Porém
não desanimados”, aqui está o seu contentamento.
E, se lermos mais a frente, “nas aflições, nas privações, nas angústias, 5nos açoites,
nas prisões” (2 Co. 6.4). Aqui vemos sua dificuldade, e, admiravelmente, seu
contentamento: “Nada tendo, mas possuindo tudo” (2 Co 6.10).
Quando tudo é arrancado do Apóstolo, ainda no que se refere ao doce
contentamento em sua mente (que era como música em sua alma), ele possuía tudo.
Em 2 Coríntios 11:23-25, temos um pequeno mapa, uma breve história dos seus
sofrimentos. “Muito mais em prisões, [...] em perigos de morte, muitas vezes”. Ainda assim,
contemple a bendita estrutura e temperança de seu espírito: “aprendi a viver contente em
toda e qualquer situação.”Qual fosse a maneira que os ventos da Providência soprassem,
ele tinha tal habilidade e destreza espiritual que sabia mudar seu curso de acordo.
Por seu estado exterior, Paulo era indiferente. Poderia estar tanto no topo da
escada de Jacó como lá embaixo. Poderia cantar tanto seu prazer quanto suas lágrimas.
Tanto uma canção triste, quanto um hino. Ele poderia ser o que Deus quisesse que fosse.
“Sei passar falta, e sei também ter abundância” (Fp. 4.12)
Aqui há um raro padrão para imitarmos. Paulo, no que se refere a sua fé e sua
coragem, era como o cedro que não se abala. Mas em sua condição exterior, ele era
como uma vara, que se é torcida de todos os lados pelos ventos da providência divina.
Quando um próspero vendaval batesse sobre ele, ele dobraria de acordo (“Tanto de
fartura”). E quando viesse uma rajada barulhenta e cheia de aflição, ele se dobraria em
humildade de acordo com isso (“quanto de fome”).
Paulo era, como disse Aristóteles, como um dado que tem quatro lados. Jogue-o
da maneira que for, ele sempre cairá em pé. Deus poderia lançar o Apóstolo da maneira
que fosse, e ele cairia apoiado nos pés do contentamento.
Um espírito contentado é como um relógio: apesar de ser carregado para cima e
para baixo, seu mecanismo não se abala nem as engrenagens saem da sua ordem - mas
o relógio continua em seu movimento perfeito. Assim era com Paulo. Apesar de Deus o
levar por várias condições, ainda assim ele não se exaltava com uma nem se desanimava
com outra. O mecanismo do seu coração não estava quebrado, as engrenagens do seu
coração não estava desordenadas. Pelo contrário, ele mantinha seu constante
movimento em direção ao Céu, ainda contente.
O barco ancorado pode chacoalhar um pouco as vezes, mas nunca afunda. Carne
e sangue tem seus medos e inquietudes, mas a Graça toma conta delas: um Cristão cuja
âncora está no céu nunca afundará em seu coração. Um espírito gracioso é um espírito
contente.
Essa é uma arte rara. Paulo não aprendeu isso aos pés de Gamaliel. “Já tenho
experiência” (Fp 4.12) - no Grego μεμύημαι, “aprendi o segredo”. É como se Paulo
dissesse “já fui iniciado a esse sagrado mistério, eu já aprendi essa arte divina, eu tenho o
jeito pra isso”. Deus deve nos fazer artistas.
Se colocássemos uma pessoa sem treino para praticar alguma arte, quão mal ela
iria? Coloque um lavrador para pintar retratos e desenhos, qual seria o resultado? Está
fora da sua esfera. Coloque, então, um pintor - que é preciso na arte de escolher e pintar
com as diversas cores - e coloque-o para arar, ou deixe-o para plantar e cuidar das
árvores. Essa não é sua arte, ele não é habilidoso nisso. Pedir a um homem natural que
viva pela Fé e, quando todas as coisas vão mal, ele esteja contente é pedir algo que ele no
qual ele não é habilidoso. Seria o mesmo que pedir que uma criança guie o leme de um
navio.
Viver de forma contente perante a Deus, na falta dos confortos externos, é uma
arte que não foi revelada a carne e o sangue. E mais que isso: muitos dos próprios filhos
de Deus, que tem excelência em diversos aspectos da vida com Deus, quando o assunto
é contentamento quanto eles erram - na verdade, mal começaram a dominar essa Arte.
5. A RESOLUÇÃO DE ALGUMAS QUESTÕES

Para ilustrar essa Doutrina, me aprofundarei em algumas questões:

1. Pode um Cristão não estar sensível de sua condição e ainda assim estar
contente?
Sim. Porém, invés de um Santo, ele é um estóico. Raquel fez bem em chorar por
seus filhos - era natural - mas seu erro foi recusar ser confortada - houve
descontentamento (Mt 2.18). O próprio Cristo foi sensíve, quando seu suor se
tornou em grandes gotas de sangue, dizendo “Meu Pai, se possível, passe de mim
este cálice” (Mt 26:39). Ainda assim, estava contente, e docemente submeteu-se
a vontade do Pai: “Todavia, não seja como eu quero, e sim como tu queres”. O
Apóstolo nos chama a humilharnos sob a poderosa mão de Deus, (1 Pe 5.6), o que
não podemos fazer senão estivermos sensíveis de nossa condição.
2. Pode um Cristão não compartilhar com Deus seus sofrimentos e ainda assim
estar contente?
Sim. Jeremias confiou a Deus sua causa (Jr 20.12) e Davi derramou perante
Senhor sua queixa (Sl 43.2). Podemos clamar a Deus e desejar que Ele tome nota
de todas as nossas feridas. Haveria uma criança de não se queixar a seu Pai?
Quando qualquer peso está sobre o espírito, a oração dá escape, e alivia o
coração. O Espírito de Ana estava sobrecarregado: “Eu sou mulher atribulada de
espírito” (1 Sm 1.15). Mas depois de haver orado e chorado, saiu, e o peso se foi.
Aqui vamos a diferença entre uma queixa santa e uma queixa descontente. Em
uma, nos queixamos a Deus. Na outra, nos queixamos de Deus.
3. O que o contentamento exclui?
Existem três coisas que o contentamento exclui de seu território, e de não podem
de modo algum conflitar com ele:
I. Reclamação vexatória: essa é filha legítima do descontentamento. O
Salmo 55.2 diz “sinto-me perplexo em minha queixa”, não “eu murmuro em
minha queixa”. Murmurar não é nada mais que uma rebelião do coração, é
se levantar contra Deus. Quando o mar está agitado e inquieto, nada sai
dele além de espuma. Quando o coração está descontente, nada sai dele
além de espuma de raiva, impaciência e algumas vezes, quase a
blasfêmia.
II. Agitação desajustada: Quando um homem diz “estou em uma situação
da qual não sei como sair. Estou perdido!” Mente e coração estão tomados
de tal forma que esse homem não está pronto a orar ou meditar. Ele não é
ele mesmo. Semelhante a quando um Exército se dispersa após uma
derrota cada homem corre para um lado, o Exército está em disordem, do
mesmo modo são os pensamentos do homem que correm para cima e
para baixo, destraído. Descontentamento desloca a juntas da alma.
III. Desespero imaturo: Isso é geralmente consequência dos outros. Um
homem estando com sua mente apressada, não sabendo de que maneira
se desatar do problema presente, começa a cair com sua carga, a desmaiar
e afundar. O cuidado está para a mente como um peso está para as
costas: enche o espírito, mas se sobrecarregado, o afunda. Um espírito
desesperado é um espírito descontente.
6. Mostrando a natureza do Contentamento
Tendo respondido essas questões, devo em seguida descrever essa αὐτάρκεια
(“autarquéia”) ou Contentamento.
É um doce estado de espírito, pelo qual o Cristão leva a si mesmo, sempre em
equilíbrio, em qualquer condição. A natureza disso fica mais clara nessas três breves
observações:

I. Contentamento é uma coisa DIVINA


O contentamento não se torna nosso por meio de aquisição, mas por infusão. É
uma muda retirada da árvore da vida e plantada pelo Espírito de Deus na alma. É uma
fruta que cresce não no jardim da Filosofia, mas de origem celestial. É portanto, muito
observável, que o contentamento é unido a piedade:

“De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento” (1 Tm 6.6).

Sendo o contentamento uma consequência da piedade, paralelo a ela ou ambos,


eu o chamo de divino - para distingui-lo do contentamento que um homem moral pode
conquistar. Os incrédulos parecem ter conquistado esse contentamento mas é apenas a
sombra, uma imagem. Um cristal, não o diamante verdadeiro. O contentamento deles é
civil, esse é sagrado. O deles vem dos princípios da razão, esse, da religião. O deles
apenas foi iluminado pela luz da Natureza, esse, iluminado pela Candeia da Escritura. A
razão pode ensinar um pouco de contentamento: “Qualquer condição que eu esteja, é
para isso que nasci e, se encontrar cruzes pelo caminho, tudo será apenas uma miséria
completa. Todos tem o que é seu reservado, porque deveria eu ficar atribulado?”. A razão
pode nos sugerir isso. E, na verdade, isso pode até compelir um tanto.
Mas viver segura e alegremente em Deus quando os nosso mantimento terreno
diminui, só a vida em Deus pode trazer isso a tesouraria da alma.
II. Contentamento é uma coisa INTRÍNSECA.
Está dentro do homem, não na casca e sim na raiz. O contentamento tem tanto
nasce quanto corre dentro da alma. Os pilares do conforto que um homem contente
tem não partem de fora, de confortos externos, e sim de dentro. Quando a aflição toma
lugar no espírito, “o coração conhece a sua própria amargura” (Pv 14.10). De igual modo o
contentamento está dentro da alma, e não depende de nada externo. Assim, deduzo
que problemas externos não podem impedir esse contentamento abençoado. É uma
coisa espiritual, que se levanta das bases espirituais, isso é, a compreensão do amor de
Deus.
Quando há uma tempestade lá fora, pode have música dentro. Uma
abelha pode ferroar pela pele, mas não pode ferroar o coração. Aflições não podem
afligir o coração de um Cristão, onde o contentamento está. Ladrões podem saquear
nosso outro e nossa prata, mas não a pérola do contentamento, a menos que estejamos
prontos a deixá-la ir. Porque o contentamento está trancado numa do coração. A alma
que possui esse rico tesouro do contentamento, é como Noé na Arca, que pode cantar
no meio de um dilúvio.

III. Contentamento é uma coisa HABITUAL


O contentamento brilha com uma luz fixa no firmamento da alma. Ele não
aparece só de vez em quando, como algumas estrelas que só são vistas raras vezes. Pelo
contrário, é um estado estabelecido do coração. Uma ação não determina que uma
pessoa é contente. Não se chama de desprendido alguém que deu esmola uma vez na
vida (talvez um avarento chamaria). Se chama de desprendido aquele que “pratica a
hospitalidade” (Rm 12.13), isso é, que em todas as ocasiões está pronto a aliviar as
necessidades dos pobres. Desse, é dito ser um homem contente, ou seja, dado ao
contentamento. Não é casual, mas constante.
Aristóteles, em sua retórica, comparou as cores do rosto que aparecem com as
emoções e as cores naturais da pele. Um rosto branco pode se tornar avermelhado
quando fica corado - mas isso é parte do sentimento. Só se diz que uma pessoa é
corada, quando de fato ela é constantemente assim. Não se é um homem contente
quando se é apenas em certas ocasiões, quando as coisas vão bem. Um homem
contente é contente constantemente - é o hábito da sua alma, como sua pele é sempre
igual.
7. Motivos para o contentamento santo
Tendo estudado a natureza do contentamento, quero agora estabelecer algumas
razões ou argumentos para o contentamento, que podem preponderar sobre nós.

A primeira, é o preceito de Deus. O contentamento nos é imputado como dever,


“Contentai-vos com as coisas que tendes” (Hb 13.5). O mesmo Deus, que nos chama a
acreditar, nos chama a ser contentes. Se não obedecermos, pecamos contra Deus. A
palavra de Deus é garantia suficiente. Ela tem autoridade em si, e deve ser o bastante
para parar o descontentamento. A palavra de Deus deve ser a estrela que guia, e Sua
vontade, o peso que move nossa obediência. Sua ordem é a lei, e carrega majestade o
bastante para nos cativar á obediência. Nossos corações não devem ser mais inquietos
como o mar revoltoso, até mesmo o qual pela Sua Palavra se acalma (Mt 8.26).

A segunda, é a promessa de Deus. “Porque ele tem dito: De maneira


alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei.” (Hb 13.5). Aqui vemos que Deus colocou
a si mesmo, sobre sua mão e selo, para cuidar das nossas provisões necessárias.
Se um Rei dissesse a qualquer um de seus súditos: “Eu cuidarei de você. Enquanto
houver dinheiro da Coroa, te darei sua providencia. Se estiveres em perigo, eu o curarei. Se em
necessidade, eu te suprirei.” não haveria de se contentar tal súdito? Contemplem a
Promessa que Deus fez ao crente e colocou-se como fiador para a sua segurança.
“Nunca jamais te abandonarei” - não deveria isso afastar o espírito mal do
descontentamento?
“Deixa os teus órfãos, e eu os guardarei em vida; e as tuas viúvas confiem em mim.” (Jr
49.11). Posso imaginar um homem piedoso em seu leito de morte, muito descontente, e
o ouví-lo reclamando sobre o que será de sua esposa e seus filhos quando estiver
partido. Deus então diz: “Não se atribule, sê contente e eu cuidarei de seus filhos. E deixe
que sua viúva confie em mim”. Deus tem nos feito uma promessa, que nunca nos deixará,
e tem estendido a promessa a nossas esposas e filhos. Isso não satisfaz? A fé verdadeira
toma a fiança de Deus sem chamar por testemunhas.
A terceira, por virtude de decreto. Qualquer que seja nossa condição, Deus, o
grande Juiz do mundo, desde tempos imemoriais decretado essa condição para nós e,
por sua providência, ordenado tudo o que fosse necessário para isso. Um Cristão deve
sempre pensar consigo: “Quem me colocou aqui, quer nos altos ou nos baixos? Não a
sorte nem o acaso, como os cegos incrédulos pensam. Não! É o altíssimo Deus que, por
sua providência, me colocou aqui”.
Devemos agir de acordo com o que Deus tem para nós. Não devemos dizer
“Esse ou aquele me causou isso”. Não olhe demais para “debaixo das rodas”. Lemos em
Ezequiel da “roda dentro da outra” (Ez. 1.16). O decreto de Deus é a causa das rodas se
moverem, e a sua providência são as engrenagens internas que movem todo o resto. A
providência de Deus é o leme que vira um navio inteiro chamado Universo. Digamos
então, como o santo Davi, “Emudeço, não abro os lábios porque tu fizeste isso.” (Sl 39.9). A
providência de Deus (que nada mais é que a consumação do seu próprio decreto) deve
ser o contraponto contra o descontentamento. Deus tem nos colocado em nosso lugar,
e tem o feito em sabedoria.
Imaginamos que tal condição de vida seja boa para nós. Se fossemos nossos
próprios escultores, frequentemente cortaríamos o pedaço errado. Ló, tendo de
escolher, escolheu Sodoma (Gn. 13:10), que pouco tempo depois foi queimada com
fogo. Raquel desejou muito ter filhos (“Dá-me filhos, senão morrerei”, Gn 30.1) e custou a
ela sua vida dar à luz um filho. Abraão tinha grande carinho por Ismael (“Disse Abraão a
Deus: Tomara que viva Ismael diante de ti.”, Gen. 17.18), mas teve pouco conforto vindo dele
ou de sua descendência - porque nasceu como um filho do conflito, a sua mão era
contra todos, e a mão de todos, contra ele (Gn. 16.2). Os discípulos choraram por Cristo
deixar o mundo, preferindo sua presença física. Contudo, era melhor para eles que Cristo
fosse, ou o Consolador não viria. (Jo 16.7). David escolheu a vida de seu filho, ele jejuou e
chorou por isso (2 Sm 12.16), porém se a criança tivesse vivido, seria um monumento
perpétuo de sua vergonha.
Frequentemente ficamos sob nossa própria luz. Se sempre pudéssemos escolher
nossos próprios confortos, frequentemente faríamos as escolhas erradas. Não é bom
para a criança que seus pais escolham por ela? Se deixada por conta própria, talvez
escolhesse uma faca e cortasse seus próprios dedos. Ou um homem já doente e
acamado que pede por vinho, que em seu caso seria quase como um veneno. É melhor
para um paciente que esteja sobre os cuidados médicos.
A ideia de um decreto divino determinando, e da providência divina dispondo de
todas as coisas necessárias, deveria trabalhar em nossos corações o contentamento. O
sábio Deus tem nos ordenado nossa condição: se Ele vê bem em que abundemos, então
abundaremos. Se Ele vê bem em que necessitemos, necessitaremos. Esteja contenta na
disposição de Deus.
Deus vê em sua infinita sabedoria que ter a mesma condição não é conveniente
para todos. O que é bom para um, pode ser ruim para outro. Apenas uma estação do
ano não serviria as necessidades de todos: um precisa de sol, outro de chuva. Uma
condição de vida não cabe para todo homem, do mesmo jeito que nenhum terno cabe
em todos os corpos. Prosperidade não é para todos, nem adversidade é para todos. Se
um homem é trazido a baixo, talvez é porque possa lidar melhor. Talvez tenha um
estoque maior de graça, mais fé e mais paciência - e possa pegar “uvas do espinheiro”,
encontrar conforto na sua cruz. Nem todos podem fazer isso. Outro homem se senta
eminente num lugar digno - e é mais preparado para tal. Talvez tal lugar requeira mais
sabedoria, que nem todos são capazes de ter. Talvez ele possa usar suas posses melhor,
tenho um coração público além do seu lugar público. A sabedoria de Deus que há
condições que são ruins para um e boas para outros. Assim, coloca os homens em
diferentes esferas - algunas mais alto, alguns mais abaixo.
Um, deseja saúde, e Deus entende que a doença seja melhor para ele - Deus
trabalha a saúde espiritual por meio da doença física, consumindo seu corpo natural, que
é sujeito a morte. Outro homem deseja a liberdade, mas Deus vê a cárcere como melhor
para ele, pois trabalhará a liberdade espiritual por meio da prisão - enquanto seus pés
estão presos, seu coração crescerá.
Se acreditamos nisso, isso colocará em cheque as disputas pecaminosas e os
sofismas dos nossos corações. “Devo eu estar descontente com aquilo que acontece
pelo Decreto de Deus, e é ordenado pela sua providência?” Se a resposta for sim: essa é
a atitude de um filho de Deus ou de um rebelde?
8. Como um Cristão pode tornar sua vida confortável
Temos então, a primeira aplicação: como um Cristão pode vir a ter uma vida
confortável, quase um céu na terra, sejam os tempos como forem - pelo contentamento
cristão (leia Pv. 15.13). O conforto da vida não consiste em ter muito. É de Cristo a
máxima: “a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui” (Lc
12.15), mas no estar contente. Não fica uma abelha contente com o sustento do orvalho,
ou de beber da flor, como também o boi que pasta pelas montanhas? Contentamento
está dentro do homem, no coração. E a maneira de estar confortável não é tendo seus
celeiros cheios, mas as mentes quietas. “O homem contente”, diz Seneca7, “é o homem
feliz”.
Descontentamento é um humor irritadiço, que seca o cérebro, gasta o espírito,
corrói e come o conforto da vida. Faz o homem não aproveitar aquilo que possui. Uma
gota ou duas de vinagre tornam o vinho inteiro amargo. Pegue um homem que tenha
influência e todos os confortos desse mundo e com uma ou duas gotas de
descontentamento, tudo se tornará amargo e envenenado.
O conforto depende no contentamento. Jacó mancou quando o tendão de sua
coxa encolheu. Quando o tendão do contentamento começa a encolher, começamos a
mancar no nosso conforto. Contentamento é necessário para manter a vida confortável,
assim como o óleo é necessário para manter a lamparina queimando. As nuvens do
descontentamento frequentemente resultam em chuvas de lágrimas .
Teremos conforto nas nossas vidas? Podemos, se quisermos. Um Cristão pode
entalhar qualquer condição que queira em si mesmo. Por que reclamas das suas
tribulações? Não é a tribulação em si o problema, e sim o descontentamento. O que
afunda um barco não é a água lá fora, e sim a água que entra nele pelos buracos. Não é a
aflição externa que pode tornar a vida do Cristão em enfado - uma mente contente
navegaria sobre essas águas. Quando há, no entanto, um buraco de descontentamento
aberto, e a tribulação entra no coração, aí ele se inquieta e afunda. Faça, portanto, como
um marujo, e jogue a água para fora. Pare o vazamento espiritual na sua alma, e então

7
Seneca, flilósofo e advogado do Império Romano, considerado um dos mais proeminentes
estóicos.
nada o poderá machucar.lição externa que pode tornar a vida do Cristão em enfado -
uma mente contente navegaria sobre essas águas. Quando há, no entanto, um buraco
de descontentamento aberto, e a tribulação entra no coração, aí ele se inquieta e afunda.
Faça, portanto, como um marujo, e jogue a água para fora. Pare o vazamento espiritual
na sua alma, e então nada o poderá machucar.
9. Uma advertência ao Cristão descontente
A segunda aplicação, é uma justa reprova aos que estão descontentes com sua
condição. Essa doença é quase epidêmica. Alguns, não contentes com os chamados
para os quais Deus os colocou, querem subir aos níveis superiores - da roça ao trono, e
que, como a aranha de Provérbios 30.28, querem estar “nos palácios dos reis.”. Outros
desejam ir da oficina pro púlpito (Nm 12.2) - querem estar no templo de honra, antes de
estarem no templo da virtude. Que tentam tomar a cadeira de Moisés, sem os sinos e
romãs de Arão8.
São como símios, que demonstram sua deformidade enquanto escalam. Não é
suficiente que Deus tenha presenteado homens a cada um em segredo, para os edificar,
e que Ele tenha os feito ricos em misericórdias? É necessário que “ainda também
procurais o sacerdócio”? (Nm 16.10)

O que é isso senão descontentamento nascido do orgulho altivo? Esses


secretamente taxam a Sabedoria Divina, pois Deus não os colocou que seja um
centímetro mais alto. Todo homem reclama que seu estado não é melhor, mas
raramente reclama que seu coração não é melhor. Um homem prefere um tipo de vida,
o outro, outra. Um homem prefere a vida no campo, outro a vida na cidade. O poeta
elegantemente expressa:

“Feliz o mercador!”, diz o velho soldado,


De muitas batalhas, seu o corpo quebrado!
Já o mercador, com seu barco abalado pelo vento impetuoso:
“Melhor é o exército! Morrer rápidamente, ou alegrar-me vitorioso!9

O soldado pensa que é melhor ser mercador e o mercador, que é melhor ser
soldado. Homens podem se contentar com qualquer coisa além do que Deus tem para
eles. Podemos chorar junto com o poeta, que diz:

8
Isso é, desejam a posição de destaque sem cumprir as coordenadas do sacerdócio. (N. do T.)
9
Tradução livre de trecho de uma poesia contida no original deste livro, de autoria de Horácio,
grande poeta romano (N. do. T)
“O que acontece, Mecenas,
que ninguém seja contentado
Com aquilo a sorte deu a si,
ou que o destino tenha lhe dado?
Pelo contrário louvam a vida
daquele que está ao lado?”10

Por que é que ninguém seja contente? Poucos Cristãos tem aprendido a lição de
Paulo. Nem o pobre nem o rico sabem como ser contentes. Aprendem qualquer coisa,
menos isso.
Se são pobres, aprendem a serem invejosos. Desejam o mal para aqueles
acima deles. A prosperidade do outro dói nas vistas. Quando a candeia de Deus brilha
sobre o tabernáculo do vizinho, a luz os ofende. No meio da pobresa os homens podem,
nesse sentido, abundar - isto é, em inveja e malícia! Um olho invejoso é um olho mal.
Aprendem a ser impetulantes, reclamando como se Deus tivesse sido duro com eles. Só
falam das suas vontades - sobre como querem esse ou aquele conforto - quando na
verdade sua maior necessidade é um espírito contente. Esses estão bem contentes com
seus pecados, mas não com sua condição.
Se são ricos, aprendem a ser cobiçosos, com uma sede insaciável de
conquistar o mundo, e a por meios injustos acumular - aqueles “cuja destra está cheia de
suborno” (Sl 26.10). Ponha uma boa causa num lado e uma peça de ouro no outro lado
da balança, e ouro sempre pesará mais. Salomão diz que há quatro coisas “que não
dizem: Basta!” (Pv 30.15). Eu adicionaria uma quinta - o coração de um homem cobiçoso.
Vemos então que nem o pobre nem o rico sabem como serem contentes.
Certamente nunca desde a criação o pecado do descontentamento reinou (ou melhor,
aplicou seu furor) mais do que nossos tempos. Nunca Deus foi mais desonrado. Quase
nunca se consegue conversar com alguém sem que a paixão da sua língua o traia, dando
voz ao descontentamento do seu coração! Os lábios de todos falam dos seus
problemas, e disso mesmo a língua gaguejante fala livre e fluentemente. Se não temos o
que queremos, não devemos olhar para Deus com maus olhos. Mas, infelizmente, nossa

10
Tradução livre de trecho de uma poesia contida no original deste livro, de autoria de Horácio,
grande poeta romano (N. do. T)
condição atual é a de doentes com o descontentamento. Se Deus não perdoa o povo de
Israel por sua luxúria, eles pedem que Deus os matem - afinal, eles tinham que ter
codornizes para comer com seu maná!
Acabe, sendo um rei, esperaria-se que as terras da coroa fossem suficientes para
ele. No entanto, se tornou rabugento e descontente pela vinha de Nabote. Jonas, apesar
de ser um bom homem e um profeta, estava pronto para morrer queixando-se porque
Deus havia matado sua aboboreira. “Mate-me!”, diz ele (Jn 4.8). Raquel reclama - “dá-me
filhos ou morro”. Ela tinha muitas bênçãos, se parasse para vê-las, mas faltava a ela a
benção do contentamento.
Deus suprirá o que necessitamos, mas é preciso que ele satisfaça nossos desejos
também? Muitos estão descontentes por ninharias: outros terem melhores vestidos,
jóias mais caras, uma moda mais moderna. Nero, não contente com seu império, se
irritava que os músicos tinham mais habilidade tocando que ele. Quão fantásticos são
alguns, que se consomem por coisas que, se tivessem, os tornariam mais ridículos!
10. Um estímulo ao contentamento
Somos exortados a trabalhar pelo contentamento, que é o que embeleza e
adorna um Cristão - como um bordado espiritual - e o faz saltar aos olhos do mundo.
Contudo, escuto algumas reclamações azedas e digo “Puxa! Como é possível estar
contente? O Senhor “agravou-me com grilhões de bronze!” (Lm 3.7)
Não há pecado que não tente se esconder sobre uma máscara, ou, se não pode
ser escondido, se vindicar por meio de desculpas. O pecado do descontentamento, para
mim, é muito espertinho em suas desculpas - as quais primeiro irei revelar, e depois
responderei. É necessário colocar isso como regra: descontentamento é um pecado.
Assim, todos os pretextos e desculpas com os quais ele tenta se justificar, se tornam
nada mais do que as maquiagens e roupas extravagantes de uma meretriz.

I. A perda de um filho
A primeira desculpa que o descontentamento faz é “Eu perdi um filho!”. Paulina11,
depois de perder seus filhos, foi tomada de tal espírito de tristeza que quis sepultar a si
mesmo em seu descontentamento. Nosso amor pelos nossos relacionamentos nunca
pode ser maior que nosso amor por Cristo.
Devemos ser contentes não apenas quando Deus nos dá misericórdias, mas
quando ele as toma também. Se devemos em tudo dar graças (1 Ts 5.18), então em nada
devemos estar descontentes.
Talvez Deus levou a sua cisterna, pra que possa te dar mais da primavera. Talvez
ele escureceu a luz das estrelas pra que tenha mais luz do sol. Deus quer que você tenha
mais dele mesmo - e nao é Deus melhor que dez filhos? Não olhe tanto para a perda
temporal, mas sim para o ganho espiritual. Os confortos desse mundo correm na sujeira
- mas aqueles quem saem do celeiro da promessa, ó quão doces e puros!
Outro ponto, é que os filhos são são dados, mas sim emprestados. “Trago”, disse
Ana sobre seu filho, “como devolvido ao Senhor”. Ela o emprestou. O Senhor havia apenas
o emprestado a ela. As misericórdias do Senhor não nos são vinculadas a nós e sim

11
Identidade desconhecida (N. do T.)
emprestadas. O que um homem empresta, ele pode pedir de volta quando quiser. Deus
tem te dado uma criança para cuidar. Irá você ficar aborrecido que ele a tomou de volta?
Não fique descontente que uma benção foi tomada de você: pelo contrário, sede grato
pelo tempo que lhe foi concedida.
Suponhamos que sua criança seja tomada de você, a qual era ou má ou boa. Se
era rebelde, não perdestes tanto um filho, mas um peso. O seu choro é por algo que
poderia ter te dado muito mais choro. Se era piedoso, então lembre-se que “o justo é
levado antes que venha o mal” (Is 57.1), e é colocado no centro da felicidade divina. Essa
terra é cheia de vapores vis e que nos machucam. Quão felizes aqueles que estão nas
regiões celestes! “O justo é levado”, no original significa “apanhado, ajuntar”. Como um
homem apanha flores e as preserva em forma de doce, assim Deus ajunta seus filhos
como flor doce, que ele cobre com sua glória e as preserva com Ele para sempre.
Por que deve então o Cristão estar descontentado? Por que choraria
excessivamente? “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai, antes, por vós mesmas”
(Lc 23.28). Da mesma maneira podemos ouvir nossos filhos dizendo a nós lá do céu:
“Não chorem por nós que estamos felizes. Dormimos em travesseiros macios, no colo do
próprio Cristo! O Príncipe da paz está nos abraçando e nos beijando com seus lábios! Não se
conturbem por nós. Não chorem por nós, mas chorem por si mesmas, pois estão num mundo
pecaminoso e cheio de pesares! Estão no vale das lágrimas, mas nós, na montanha de
especiarias. Chegamos ao nosso porto, mas vocês ainda estão sendo levados pelas ondas da
tribulação”
Ó, Cristão! Não fique descontente por sua criança partir, mas regozije-se que
Deus lhe deu essa criança antes dela partir. Siga em frente em gratidão. Quão grande
honra é para os pais gerarem uma criança que, quando enquanto viva aumenta a alegria
dos Anjos (Lc 15.10nasce) e quando se vai, aumenta o número deles?
E ainda, se Deus levou uma de suas crianças e te deixou as outras, ele poderia ter
lhe tirado todas! Ele tirou todos os confortos de Jó: suas posses, seus filhos! Sua esposas
ainda lhe restava, mas como uma cruz. Satanás fez de sua costela um arco com o qual
ele jogava flechas de tentação em Jó, pensando ter acertado no coração - “amaldiçoa
Deus e morre!”. Mas Jó tinha uma couraça de integridade e, apesar de seus filhos terem
sido tomados, sua graça não havia. Ainda estava contente, ainda abençoava a Deus.
Pense de quantas bençãos você ainda aproveita! Ainda assim nossos corações por si
próprios são mais descontentes por uma perda do que gratos por uma centena de
misericórdias.
Deus pode ter colhido um punhado de uvas da sua videira, mas quantos
preciosos cachos ele te deixou?
Você pode contestar: “Mas essa era minha única criança! - o esteio da minha velhice,
a semente do meu conforto; a única flor nascida da minha descendência!”. Contudo, Deus te
prometeu (isso é, se você pertence a Ele) “um nome melhor do que filhos e filhas” (Is 56.5).
Faleceu aquele que seria o monumento para manter o nome da sua família? Deus te deu
um novo nome, e ainda mais, escreveu seu nome no livro da vida! Contemple o seu
brasão espiritual! Aqui está um nome que não pode ser cortado de ti.
Deus tirou seu único filho? Ele te deu o único filho dele! Uma troca feliz. Que
motivos tem para reclamar das perdas tem aquele que tem a Cristo? Ele é o resplendor
(Hb 1.3), as riquezas (Cl 2.9), e o deleite (Sl 22.8). Cristo é o suficiente para agradar o
coração de Deus e ainda assim não é suficiente para nos tomar de santo deleite? Ele é
sabedoria para nos ensinar, retidão para nos absolver, santificação para nos adornar - ele
é o presente real, é o pão dos anjos, é a alegria e o triunfo dos santos. Ele é tudo e está em
todos. (Cl 3.11). Porque então estar decontente? Apesar da perda de sua criança, ainda
tem aquele por qual todas as coisas são perda (Fp 3.8)
E, por último, que nos encabule pensar que a natureza ultrapassaria a graça.
Púlvilo - um incrédulo! - quando estava prestes a consagrar um templo a Jupiter e ouviu
a notícia do falecimento de seu filho não deixou sua empreitada - manteve compostura
de mente, ordenou que fosse feito um enterro digno.

II. A perda de posses


A segunda desculpa que o descontentamento dá é “Repentinamente grande
parte das minhas posses se foram!”. A Deus agrada algumas vezes trazer seus filhos aos
pontos mais baixos, e então tirar suas posses. Ele então age com eles como aquela viúva
que não tinha nada em sua casa além de um pote de óleo (2 Rs 4.2). Contudo, sede
contentes.
Deus pode ter te tirado suas posses, mas não sua porção. É um paradoxo
sagrado. Honra e posses não são parte do dote do Cristão. São acessórios e não
essenciais. São extrínsecos e estrangeiros - portanto a perda desses não deve
denominar um homem como miserável, pois sua porção se mantém. “A minha porção é o
Senhor, diz a minha alma” (Lm 3.24).
Suponha que um homem tenha uma fortuna de milhões e, por acaso, perca o
botão da sua manga. Um botão mal contaria como parte da suas posses, e não se pode
dizer que depois disso estaria acabado. Da mesma maneira, a perda de um conforto
terrestre não representa muito na porção de um Cristão, como não é muito a perda de
um botão entre um milhão. “Estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33), e tais coisas
devem ser contadas como excedente.
Quando um homem compra um pedaço de tecido, ele deixa alguns centímetros
de folga. Se perder esse pedaço, não estará tudo arruinado, porque a peça inteira ainda
está intacta. Nosso estado externo está para a nossa porção, como alguns centímetros
estão para uma peça inteira. Por que haveria então o Cristão de estar descontente,
quando a garantia do seu tesouro espiritual ainda o resta? Um ladrão pode levar todo o
dinheiro que tenho comigo, mas não pode levar minhas terras. Do mesmo modo o
Cristão tem o seu título de direito a terra prometida. “Maria, pois, escolheu a boa parte, e
esta não lhe será tirada.” (Lc 10.42).
Além disso, talvez se suas posses não se perdessem, poderia ser a sua alma. Os
confortos externos frequentemente apagam o calor interno. Deus não nos dá jóias para
que nos apaixonemos tanto por elas, que esquecemos quem foi que nos presenteou.
Que pena é que quando cometemos idolatria com a criatura! É como se Deus fosse
forçado a, algumas vezes, tirar nossas posses. A prata e a jóia são sempre jogadas fora
para que se salve o passageiro. Muitos podem até amaldiçoar o tempo no qual tinham
tais posses, pois tinham sido como encantamento para afastar seu coração de Deus.
“Os que querem ficar ricos caem em tentação”
(1 Tm 6.9)
Seria o caso de irritar-se por Deus te prevenir de uma tentação? Riquezas são
como os espinhos de Mateus 13:7. Seria o caso de irritar-se por Deus tirar os espinhos pra
longe de você? As riquezas são como argila pesada. Talvez suas afeições, que são os pés
da alma, podem estar enfiados tão fundo nessa argila reluzente que não podem subir
aos céus. Sê contente. Se Deus faz uma represa que segura todos os nossos confortos
externos, é para que o pequeno córrego do nosso amor possa correr mais e mais rápido
em direção a ele!
Se suas posses são pequenas, Deus ainda pode abençoar no pouco! Não é sobre
quanto dinheiro temos, e sim quantas bençãos. Aquele que muito xinga o ouro, pode
abençoar a comida no barril e o óleo na botija. E se você não tiver todas os luxos? Ainda
assim, tem a promessa. “Abençoarei com abundância o seu mantimento” (Sl 132.15) e, aí, o
poco vira muito. Sê contente por ter o orvalho das bençãos destilado. Um jantar de
apenas verduras fica doce, quando o amor está ali. E digo mais: quando o amor de Deus
está ali.
Outros podem ter mais posses que você, mas também mais preocupações. Mais
riquezas, mas menos descanso. Mais lucro, menos ocasiões para o gastar. Mais herança,
mas talvez “Deus não lhe concede que disso coma” (Ec 6.2). Tem domínio sobre suas
posses, mas não as usa. Possui mais, aproveita menos. Em uma palavra, você tem
menos ouro que o outro, e talvez, menos culpa.
É possível que, também, que você nunca tenha crescido na sua vida espiritual -
seu coração nunca esteve tão humilhado - como quando sua condição era ruim. Nunca
esteve tão pobre de espírito, e tão rico na fé. Nunca havia corrido pelos caminhos dos
mandamentos do Senhor tão rápido quanto quando os seus pesos dourados foram
removidos das suas costas. Nunca se ocupou tanto para chegar ao céu na sua vida,
nunca se se aventurou pelas promessas de Deus como fez desde que deixou de velejar
os mares. Esse é o melhor tipo de negócio. Ó Cristão, você nunca lucrou tanto
espiritualmente, nem experimentou as deliciosas marés da alegria! E mesmo que tão
fraco no seu estado, nunca esteve tão fortificado e em segurança! Sê contente - o que
foi perdido de uma maneira, foi ganho de outra.
Sejam as suas perdas quais forem, lembre-se: Em todo problema há apenas
sofrimento, mas em todo descontentamento há pecado. Um pecado pesa mais que
milhares de sofrimentos.
O que? Só porque parte da minha renda se foi eu devo deixar minha retidão de
lado? Devo eu deixar minha fé e minha paciência de lado? Porque não tenho mais uma
posse, não devo por isso possuir meu próprio espírito? Ora, aprenda a ser contente!
III. Problemas na Família
Uma terceira desculpa para o descontentamento é “Minha família só me dá
tristeza! Onde eu deveria encontrar meu conforto, encontro apenas mágoa!”. Essa
desculpa se divide em duas outras, para as quais darei respostas específicas.
A primeira delas é “Meu filho é rebelde! Temo que tenha dado a luz a um filho
que se voltou ao Diabo”. É verdadeiramente triste pensar que o inferno pode estar
decorado com as caveiras de nossos filhos um dia. Certamente a dor de uma mãe nessa
situação é muito pior que a dor do parto! Mas, ainda assim, é necessário que aprender a
humilhar-se, sem se descontentar.
Considere, por exemplo, que talvez seja possível retirar algo da desobediência do
seu filho. Algumas vezes o pecado do filho é como sermão para os pais: a indisciplina
dos nossos filhos pode ser um um lembrete da nossa própria desobediência contra
Deus. Houve um tempo quando nós fomos as crianças rebeldes. Quanto tempo nosso
coração ficou na defensiva contra Deus? Quanto tempo Deus arrazoou conosco e nos
chamou até que nós finalmente nos entregássemos? Com toda a ternura do seu coração
Ele caminhou até nós e nós caminhamos até Ele com toda a teimosia de nossos
corações. Quantos são os sinais do Espírito Santo aos quais nós resistimos todos os dias?
Quantas indelicadezas e afrontas temos feito a Cristo? Que disso possa nascer uma
fonte que jorra arrependimento. Olhe para a rebeldia dos seus filhos e chore por sua
própria rebeldia.
Apesar de tal desobediência ser motivo de grande tristeza, não é sempre sua
culpa. Os pais deram a essa criança não apenas o leite materno mas também “genuíno
leite espiritual”? Desde sua tenra idade foi educada na Palavra? Não há mais nada que
possa ser feito. Os pais só podem trabalhar o conhecimento. Deus é quem trabalha a
graça. Só juntam a lenha, enquanto é Deus quem a incendeia. Os pais podem apenas ser
guias para mostrar aos seus filhos o caminho do Céu, mas é o Espírito de Deus é quem
entalha os corações de tal maneira. “Acaso, estou eu em lugar de Deus”, disse Jacó, ”que ao
teu ventre impediu frutificar?” (Gn 30:2). Estariam os pais no lugar de Deus para
concederem a graça? O que se pode fazer se um filho, tendo em mãos as tochas da
consciência, da Escritura e da educação, ainda assim corre decidido em direção as águas
profundas do pecado? Chore por seu filho, ore por seu filho, mas não peque por ele
ficando descontente.
Nunca diga que seu filho é do Diabo. Deus pode o reformar. Ele prometeu
“converter o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais” (Ml 4.6) e que
“águas arrebentarão no deserto” (Is 35.6). Quando seu filho vai de vento em popa para o
Inimigo, Deus é capaz de soprar um vento contrário pelo seu Espírito e alterar seu curso.
Quando Paulo estava respirando perseguição aos santos (At. 9.1) e navegando em
direção ao inferno, Deus o vira em direção contrária. Antes ele ia a Damasco, mas Deus o
envia a Ananias. Antes um perseguidor, agora um pregador.
Apesar das nossos filhos estarem, no presente tempo, caídos no lamaçal do
diabo, Deus pode os tirar do poder de Satanás (At 26.18) e os trazer das trevas para a luz
do meio-dia! Monica chorava por seu filho Agostinho12, e por fim Deus concedeu suas
orações e ele se tornou um famoso instrumento na Igreja de Deus.

Outra origem do descontentamento quanto aos relacionamentos: “Mas meu


marido anda no caminho mal! Onde eu busquei o mel, só tomei ferroadas!”.
É coisa triste ver o vivo e o morto unidos. Ainda assim, não deixe que seu coração
faça birra por descontentamento. Chore pelos pecados dele, mas não murmure.
Como Deus te colocou nesse relacionamento - e como você não pode ficar
descontente - então há de discutir com Deus? O quê? Havemos de, a cada Cruz que cai
sobre nós, questionar a infinita sabedoria de Deus? Que blasfêmia de nossos corações!
Em segundo lugar, não murmure porque Deus pode usar o pecado do seu marido
em parte para o bem. Talvez se ele não fosse tão mal, você nunca seria tão boa? O fogo
queima com mais calor no clima mais frio. Deus, muitas vezes pela sua química divina,
usa os pecados dos outros para nosso bem, e torna nossas enfermidades em
tratamento.
Quanto mais profano o marido, mais a esposa cresce em santidade. Quanto mais
mundano, mais celeste ela se torna. Deus as vezes torna o pecado do marido num
impulso para desenvolver a graça da esposa. As exorbitâncias dele se tornam como um
fole que sopra o fogo do seu zelo e sua devoção cada vez mais.

12
Mônica e seu filho de Agostinho de Hipona, um dos pais da Igreja e importantíssimo do século
IV. Em um dos seus trabalhos, descreve os esforços de sua mãe para sua conversão. (N. do T.)
Não é assim? A maldade do seu marido não te leva a oração? Talvez você nunca
orasse tanto se ele não pecasse tanto. Ele estar morto te desperta ainda mais. A coração
de pedra dele é como martelo que esmiúça o seu coração. O Apóstolo diz que “esposa
incrédula é santificada no convívio do marido crente” (1Co 7.14), mas, nesse sentido, a
esposa crente é santificada por meio do seu marido descrente, pois cresce em Cristo. O
pecado dele serve como pedra de afiar para a graça dela, e como remédio para a alma.

IV. Problemas com Amigos


A terceira desculpa que o descontentamento dá é “meus amigos tem sido muito
ruins para mim, e provaram ser falsos amigos”.
É triste quando um amigo prova ser como um ribeiro no verão (Jó 6.15). Um
viajante, desidratado pelo calor, chega até o ribeiro esperando refrescar-se; o ribeiro,
contudo está seco. Ainda assim, sede contente.
Em primeiro lugar, porque você não está sozinho. Outros santos foram traídos
pelos seus amigos. Quando dependeram de seus amigos, seu apoio foi tão útil quanto o
de um pé deslocado. Assim foi no Tipo, Davi: “Com efeito, não é inimigo que me afronta;
[...] mas és tu, homem meu igual, meu companheiro e meu íntimo amigo.” (Sl 55.12-13) e
também no Antítipo13, Cristo, que foi traído por um amigo. Por que haveríamos nós de
considerar ter dada a nós a mesma porção que Cristo teve? O servo não está acima do seu
Mestre. (Mt 10.24)

Um cristão pode muitas vezes enxergar pecado na sua punição: Não tem ele
agido traiçoeiramente para com Deus? Quantas vezes tem ele magoado o Consolador,
quebrado seus votos e, pela descrença, ficado ao lado de Satanás contra Deus! Quantas
vezes tem abusado do amor de Deus, tomado as jóias da misericórdia Divina e feito com
elas um bezerro de ouro, servindo seus próprios luxos?

13
Tipo e Antítipo são termos relacionados a Tipologia Bíblica. Nesse contexto, um tipo é uma
simbologia do velho testamento que representa algo do novo. Nesse caso, a traição sofrida por Davi é
como representação da futura traição de Cristo por Judas. (N. do T.)
Quantas vezes tem tornado a livre Graça de Deus, que deveria ser a tranca para
deixar o pecado do lado de fora, como chave para abrir as portas pra ele? Essas feridas o
Senhor recebeu na casa dos seus amigos (Zc 13.6)
Olhe para os desaforos do seu amigo e chore pelos seus próprios desaforos
contra Deus. Deve um Cristão condenar em outro aquilo de que ele mesmo é culpado?
Seu amigo se mostrou ser traiçoeiro? Talvez você depositou muita confiança
nele. Quando se coloca mais peso sobre uma casa do que seus pilares podem suportar,
ela quebrará. Deus diz: “Não creiais no amigo, nem confieis no companheiro” (Mc 7.5).
Talvez você colocou sobre seu amigo mais confiança do que colocou em Deus. Amigos
são como taças de cristal: podemos as usar, mas se nos apoiarmos com muita força
sobre elas, elas vão quebrar. Eis aqui uma questão de humidade, mas não de mau humor
ou de descontentamento.
Ademais, temos um amigo no céu que nunca nos falhará. “Há amigo”, diz
Salomão, “mais chegado do que um irmão.” (Pv 18.24). Tal amigo é Deus! Ele é muito
diligente e interessado por nós. Ele debate consigo mesmo, consultando e projetando,
como nos pode fazer bem. Ele é o melhor amigo, que nos dá contentamento no meio
de todas as descortesias de nossos amigos. Considere os seguintes pontos:

A. Ele é amigo amoroso.


“Deus é amor” (1Jo 4.16). Ele nos diz que nos gravou na palma de suas mãos (Is 49.16)
para que nunca saiamos de sua vista. Ele nos carrega em Seu seio (Is 40.11), junto ao Seu
coração.
Não há fim ou qualquer restrição em Seu amor - antes, como o Rio Nilo,
transborda pelas margens. Seu amor é muito além de nossos pensamentos, do mesmo
modo que vai muito além dos nossos desertos. Ó, o infinito amor de Deus, em dar seu
Filho de amor para ser feito carne, que valia mais do que se todos os anjos fossem feitos
em minhocas! Deus, nos dando Cristo, deu Seu próprio Coração. Aqui está o amor,
desenhado em toda a sua glória, e entalhado como que com “ponta de diamante”. Todo
outro amor é como ódio em comparação ao amor do nosso Amigo!.
B. Ele é amigo cuidadoso.
“Ele tem cuidado de vós!” (1 Pe 5.7). Ele cuida e leva a cabo os nossos negócios
como se fossem seus. Ele cuida dos interesses do seu povo e suas preocupações, como
se fossem dEle.
Ele nos provê a graça que nos enriquece e glória que nos enobrece. Davi, em
Salmos 142.4, queixou-se dizendo que não há “ninguém que por mim se interesse” (Sl
142.4). Um Cristão tem um amigo que se interessa por ele.

C. Ele é amigo sábio


Um amigo algumas vezes pode se enganar por ignorância ou pelo erro, e dar a
seu amigo veneno no lugar de açúcar. Deus, no entanto, “é sábio de coração” (Jó 9.4). Ele
tanto habilidoso quanto fiel. Ele sabe qual é a nossa enfermidade, e qual remédio é o
mais apropriado. Ele sabe o que nos fará bem, e quais ventos serão melhores para nos
levarem até o céu.

D. Ele é amigo fiel


Ele é fiel em suas promessas - “na esperança da vida eterna que o Deus que não
pode mentir prometeu” (Tt 1.2). O povo de Deus pode até ser os “filhos que não mentirão”
(Isa 63.8), mas Deus é o Deus que não pode mentirar (Dt 23.19). Ele não enganará a fé
do seu povo. Mais que isso, ele não o pode. Ele é chamado ἡ ἀλήθεια (hē alētheia), “A
Verdade”. Deixar de ser verdadeiro seria o mesmo que deixar de ser Deus.
O Senhor pode, algumas vezes, mudar sua promessa (como quando ele muda
uma promessa temporal em uma promessa espiritual. Porém, ele nunca quebrará sua
promessa.

E. Ele é amigo compassivo


Por tal razão lemos na Escritura sobre como Ele anseia em Suas entranhas (Jr 30.20). A
amizade de Deus não é nada mais que compaixão, porque não há, naturalmente,
nenhuma afeição em nós para desejarmos Sua amizade, nem bondade em nós para a
merecermos. O “magnetismo” está todo nEle.
Quando éramos cheios de pecado, Ele era cheio de amor. Quando éramos
inimigos, Ele nos mandou a Embaixada da Paz. Quando nossos corações se voltaram
contra Deus, Seu coração se voltou para nós. Ó, que doçura e simpatia tem nosso amigo
no Céu!
Nós mesmos amolecemos nosso coração para aqueles em miséria, mas é Deus
que gera todas as misericórdias e afeições que estão em nós e, por isso, é chamado de
Pai de Misericórdias (2 Co 1.3)

F. Ele é amigo constante


“Suas misericórdias não têm fim” (Lm 3.22). Amigos muitas vezes, na adversidade, se
vão como folhas no Outono. “Amigos só em volta da panela”14, como disse Plutarco.
Esses são lisonjeadores e não amigos.
Joabe foi, por um tempo, fiel a casa do Rei Davi, não se unindo a traição de
Absalão. Contudo, em pouco tempo se mostrou sua falsa lealdade a Coroa, seguindo a
traição de Adonias.
Deus é um amigo para sempre. “Tendo amado os seus que estavam no mundo,
amou-os até ao fim” (Jo 13.1).
E se eu estiver sendo desprezado? Ainda assim Deus me ama. E se meus amigos me
rejeitarem? Ainda assim Deus me ama. Ele ama até o fim, e não há fim para tal amor.
Isso, penso eu, no caso da indelicadeza e da aspereza dos amigos, é motivo suficiente
para acalmar o descontentamento.

V. Problemas com afrontas


As afrontas também não devem nos descontentar. Primeiramente, porque são
um sinal de que há algo de bom em ti. (Sl 38.20) “Que mal fiz eu?”, disse Sócrates. Que
mal tenho eu feito, para que o homem mau me elogie? O aplauso do perverso
geralmente denota algum mal, e a censura, algum bem. Davi chorou e jejuou e isso virou

14
Tradução livre da frase em Latim, “Amici circa sartaginem”
censura a ele. (Sl 69.10). Rumamos ao céu passando pelas barreiras do sofrimento, e do
mesmo modo, pelas nuvens das afrontas.
Se sua afronta é por causa de Deus, como a de Davi foi - “pois tenho suportado
afrontas por amor de ti” (Sl 69.7) - então é motivo de triunfo e não de desânimo! Cristo
não diz “quando sofrerdes afrontas, estejais descontentes” mas “regozijai-vos”! (Mt 5.12).
Vista suas afrontas como uma coroa de honra, porque agora “sobre vós repousa o Espírito
da glória e de Deus.” (1 Pe 4.14). Coloque suas afrontas no inventário das suas riquezas -
assim fez Moisés (Hb 11.26). Deve ser a ambição de um Cristão vestir a farda de seu
Salvador, mesmo que ela esteja manchado de sangue e sujo pela vergonha.
Deus nos faz o bem por meio das afrontas. Como Davi disse da maldição de
Simei: “Talvez o [...] Senhor me pagará com bem a sua maldição deste dia.“ (2 Sm 16.12).
Isso nos coloca numa busca pelo nosso pecado. Um filho de Deus trabalha para ver seu
pecado a cada pedra de afronta que é lançada contra ele. Além disso, essa é mais um
oportunidade para exercitarmos a paciência e a humildade.
Jesus Cristo se contentou em ser afrontado por nós: “suportou a cruz, não fazendo
caso da ignomínia” (Hb 12.2). Nos surpreende pensar que aquele que é Deus aguentou ser
cuspido, ser coroado com coroa de espinhos, com escárnio. E, quando estava pronto
para curvar Sua cabeça na Cruz, ver os Judeus, em escárnio, balançarem suas cabeças
dizendo “salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se”. A vergonha da Cruz foi tanto
quanto o sangue na Cruz: Seu nome foi crucificado antes do seu nome. As flechas
afiadas das afrontas, as quais o mundo atirou contra Cristo, penetraram mais fundo no
seu coração que a lança. Seu sofrimento foi tão ignominioso que o Sol se envergonhou
ao vê-lo e guardou seus raios brilhantes, se escondendo nas nuvens (talvez porque o Sol
da Retidão estava em eclipse). Toda essa revolta e reprovação o Deus da Glória suportou,
ou melhor desprezou, por nós.
Sejamos, então, contentes por termos nossos nomes eclipsado pelo de Cristo.
Não deixemos que a afronta faça morada no nosso coração, mas usemo-la como coroa
sobre nossas cabeças.
Sobretudo, o que é uma afronta? Nada mais é que um pequeno tiro. Como hão
de ficar frente a boca do canhão, aqueles que se descontentam com uma afronta, de
igual modo se descontarão com muitas.
Ademais, muitos homens não se contentam com as afrontas sofridas, para
manterem seus luxos? Não deveríamos nós fazer o mesmo, para mantermos a verdade?
Há alguns, diz Filipenses 3.19, cuja glória, “está na sua infâmia”. Devemos nós nos
envergonhar daquilo que é nossa glória? Não devemos nos atribular por essas coisas
pequenas. Aquele cujo coração já foi tocado divinamente pelo Espírito de Deus, toma
como honra o ser desonrado por Cristo e busca o desprezo do mundo tanto quanto
busca seu louvor.
Vivemos num tempo no qual homens ousam afrontar o próprio Deus. A
Divindade do Filho de Deus é afrontada de forma blasfema pelos Socinianos15. A bendita
Bíblia é afrontada pelos antiescrituristas16, como se não passasse de lendas e mentiras e
a fé de cada homem, uma fábula. A justiça de Deus é trazida a medida da razão pelos
Arminianos. A sabedoria de Deus em suas ações providenciais, é posta à prova pelos
ateus. As ordenanças de Deus são depreciadas pelos Familistas, como sendo fardo
pesado demais para uma consciência nascida livre e carnal demais para um espírito
sublime e angelical17. Os caminhos de Deus, sobre os quais brilha a majestade da
Santidade, são caluniados pelos profanos. As bocas dos homens se abrem contra Deus,
como se Ele fosse um Mestre maldoso e o caminho da verdadeira vida Cristã fosse
muito restrito e severo.
Se os homens não podem falar coisa boa de Deus, haveríamos nós de nos
descontentar e nos atribular por falaram mal de nós? Com tanto esforço para enterrarem
a glória das verdades de Deus, haveríamos de nos surpreender que “a garganta deles é
sepulcro aberto” (Rm 3.13) quando o assunto é enterrar a nossa reputação? Devemos
estar contentes por estarmos na “lavanderia de Deus” e pelo nosso nome ter sido um
pouco manchado. Quanto mais “sujo” nosso nome pareça ser aqui, mais brilharemos
quando Deus nos levar às regiões celestes.

15
Seguidores da doutrina de Fausto Socino, a qual rejeita a divindade de Cristo, o considerando
apenas como um homem. (N. do T.)
16
O Antiescriturismo foi um movimento do Século XVII que negava toda a autoridade da Bíblia e
não a considerava como verdade, presente de forma relevante durante a Revolução Inglesa. (N. do T.)
17
Os Familistas, (Familia Caritatis) foram uma seita mística do Século XVI que tomava a natureza e
o espírito como autoridade sobre todas as coisas, e não Deus.
VI. Problemas com o desprezo do mundo
A sexta desculpa que o descontentamento dá tem a ver com o desrespeito do
mundo. “Não recebo estima dos homens equivalente com meu valor e minha graça!”. Isso te
atribula? Considere alguns pontos.
Primeiramente, o mundo é um juiz inconstante. Como ele muda muito, ele é
cheio de parcialidade. O mundo concede respeito do mesmo modo pelo qual escolhe
suas preferências, muitas vezes favorecendo uns e outros não. Há em você real valor? É
melhor merecer respeito e não o ter, do que ter não o merecer!
Você é uma pessoa graciosa? Deus lhe respeita, e o julgamento dEle é o maior
prêmio que se pode conquistar. Um crente é uma pessoa honrada, tendo nascido de
Deus.
“Visto que foste precioso aos meus olhos, digno de honra, e eu te amei, darei homens por ti e
os povos, pela tua vida” - Isaías 43.4
Deixe que o mundo pense o que quiser pensar de você! Talvez nos olhos deles,
você seja um rejeitado - contudo, aos olhos de Deus, seja Sua pomba (Ct 2.14), como
esposa (Ct 5.1), ou como uma jóia (Ml. 3.17). Outros talvez te considerem como a escória
da terra (1 Co 4.13), mas Deus dará povos inteiros por seu resgate! (Is 43.4).
Que isso seja seu contentamento: não importa quão tortos os olhos do mundo
estão ao me olhar, se Deus me olha com bons olhos. É melhor que Deus aprove que o
homem aplauda: o mundo pode até nos honrar, enquanto Deus nos temem sua
“lista-negra”! De que adianta a um homem de que seus companheiros de cela o
aplaudam se o juiz o condena?
Trabalhe para se manter perto de Deus, e dar valor ao Seu amor. Mesmo que os
outros não liguem para mim, estarei contente sendo um amado do Rei dos céus!
Considere também isso: Se somos filhos de Deus nós devemos, na verdade,
buscar pelo desrespeito. Um crente está no mundo, mas não é do mundo. Estamos aqui
na condição de peregrinos, fora de nosso próprio País. Portanto, não devemos buscar
pelos respeitos e aclamações do mundo. É suficiente que nos tenhamos honra em
nosso próprio país celestial! (Hb 14.13) É muito perigoso ser um queridinho do mundo.
O descontentamento originado do desrespeito tem um “quê” de orgulho. Um
Cristão humilde deve ver a si mesmo como inferior ao que os outros veem dele. Quem
começa a pensar nos seus pecados e como provocou a Deus acaba por chorar como
chorou Agur em Provérbios 30, dizendo “sou demasiadamente estúpido para ser homem”
e, portanto, está contente mesmo que seja colocado “ao lado dos cães do meu rebanho”
(Jó 30.1). Apesar de estar em baixa na visão dos outros, ainda assim é grato a Deus por
ter livrado sua alma do mais profundo poder da morte. (Sl 86.13)
Um homem orgulhoso coloca grande valor em si mesmo e se irrita com os outros
por não o valorizarem de igual modo. Preste atenção no seu orgulho! Tivessem os outros
uma janela pro seu coração ou se seu coração estivesse no lugar que seu rosto está - aí
sim veríamos quanto respeito você teria!

VII. Sofrimento pela verdade


A sétima desculpa que se dá pelo descontentamento é a de sofrer por causa da
verdade. Considere, porém, que seus sofrimentos não são maiores que seus pecados.
Coloque os dois numa balança e veja qual pesa mais. Onde o pecado pesa mais, o
sofrimento pesa menos. Alguém com um espírito carnal considera seu sofrimento muito
maior e seus pecados muito menores. Para um, olha pela lente de aumento; pro outro,
pela lente negativa, diminuindo seu tamanho. O coração carnal grita: Aparta de mim as
rãs! (Ex. 8.8). O coração gracioso grita: “perdoes a iniquidade do teu servo!” (2 Sm 24.10).
Um diz “ninguém nunca sofreu como eu tenho sofrido”. O outro diz “nunca ninguém
pecou como eu tenho pecado” (Mq 7.9).
Você tem sofrido? Aí está uma ótima oportunidade para mostrar o valor e
constância da sua mente. Alguns dos santos de Deus contariam como grande favor
serem honrados com o martírio. Um disse “estou numa prisão até estar na prisão”. Voceê
considera como problema aquilo que muitos usariam como uma ensígnia gloriosa.
Até aqueles que só agem com base nos seus princípios morais mostraram
constância e contentamento em seus sofrimentos. É dito que Cúrcio, bravamente
montado e em sua armadura, se jogou num lago para que a cidade de Roma (de acordo
com o Oráculo) fosse livrada da peste. E nós, tendo a sabedoria divina que nos diz “não
temais os que matam o corpo e não podem matar a alma;” (Mt 28.10), não deveríamos ter
muito mais constância e paciência para nos dedicarmos as injúrias por Cristo e sofrermos
pela verdade ao invés da verdade sofrer por nós?
Os Décios entre os Romanos, se faziam voto de morrerem para que suas legiões
e soldados fossem coroados com a honra da vitória. Quão contentes devemos nós estar
com o sofrimento para a vitória da verdade! O general romano Régulo, tendo jurado
retornar a Cartago, mesmo sabendo que havia uma fornalha acesa o esperando lá não
ousou infringir seu juramento e o foi. Nós, então, que somos Cristãos, tendo feito um
voto com Cristo no Batismo e renovando-o no bendito sacramento, deveríamos sofrer
com grande contentamento, escolhendo sofrer ao invés de violarmos nosso voto
sagrado! Assim, benditos os mártires, que com coragem e alegria ergueram suas almas a
Deus! Mesmo quando o fogo foi ateado em seus corpos, ainda assim seus espíritos não
se inflamaram com paixão ou descontentamento. Mesmo que os outros venham a ferir
seu corpo, não deixe que firam sua mente pelo descontamento. Mostre por sua coragem
heróica que você está acima dos problemas, os quais você não pode viver sem.

VIII. Sofrimento pela prosperidade dos ímpios


A próxima desculpa é a prosperidade dos perversos. Confesso que é muito
frequente que os maus gozem do que é bom e que os bons suportem o mal. Davi
mesmo sendo um homem bom tropeçou e quase caiu por causa disso (Sl 73.3). Ainda
assim, sê contente.
Lembre-se que tais coisas não são nem únicas nem são as melhores. São nada
além das bolotas que Deus dá aos porcos. Os crentes tem muito mais frutos a escolher:
a oliva, a romã e os frutos que crescem na videira verdadeira, Jesus Cristo. Outros podem
até ter a manteiga da terra, mas você tem o orvalho dos céus! Eles tem as terras férteis,
mas você tem as fontes de água viva que são limpas pelo sangue de Cristo e adoçadas
com seu amor.
Ver os ímpios florescerem é mais uma questão de pena do que de inveja. Sua
riqueza já pra eles todo o céu que irão conseguir: “Mas ai de vós, os ricos! Porque tendes a
vossa consolação” (Lc 6.24) Por isso Davi fez sua solene oração: “livra do ímpio a minha
alma com a tua espada, com a tua mão, Senhor, dos homens mundanos, cujo quinhão é
desta vida
e cujo ventre tu enches dos teus tesouros” (Sl 17.13b-14a). Penso eu que essas palavras eram
a súplica constante de Davi: Dos homens desse mundo que tem sua porção nesta vida,
livra-me bom Senhor. Quando os perversos terminarem de comer suas finas iguarias,
então virá o triste acerto de contas que tornará tudo inútil. O mundo é primeiro como
um musical, mas depois vira uma tragédia grega. Não inveje um homem que irá queimar
e fritar no inferno - deixe-o que se deleite com a manteiga da terra. Lembre-se que para
cada grão de areia de misericórdia que sai pra fora deles, Deus pode uma gota de ira em
seu cálice. “[...] acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo
de Deus” (Rm 2.5)
Portanto como um soldado certa vez disse ao seu parceiro: “Você inveja minhas
uvas? Elas são preciosas demais pra mim, eu morreria por elas!”, da mesma maneira te
digo: “Você inveja os ímpios?”. Infelizmente a prosperidade deles é como o banquete de
Hamã antes de sua execução. Se um homem estivesse para ser enforcado, alguém
invejaria se o levassem para passear por algum belo lugar, ver uma galeria ou até mesmo
subir as escadas até a execução vestido coberto em ouro? Os ímpios podem florecer em
sua bravura por um tempo, mas quando “brotam como a erva, e florescem todos os que
praticam a iniquidade, nada obstante, serão destruídos para sempre;” (Sl 92.7). Essa grama
orgulhosa será aparada. O que for que o pecador aprecie, há com ele uma maldição (Ml
2.2). Vamos nós então invejá-lo? Invejaríamos um cão se lhe dessem comida
envenenada? Os grandes sulcos nos lombos dos Cristãos tem neles sementes de
benção plantadas. Quando a mesa do ímpio se torna em sua armadilha, sua honra é
sufocada.

IX. Sofrimento pela maldade do mundo


“Os tempos atuais são repletos de heresia e impiedade e isso me perturba” é a
nona desculpa dada pelo descontentamento. Essa desculpa pode ser desmembrada em
duas partes, as quais responderei separadamente.

A heresia dos tempos


Realmente é um assunto muito triste. Quando o Diabo não consegue destruir a
igreja pela violência ele a envenena. Quando ele não consegue, como as raposas de
Sansão, atear fogo no milharal, ele planta o joio. Do mesmo modo que ele trabalha para
destruir a Igreja pela divisão, ele também o faz destruindo a verdade com o ero.
Podemos lamentar como Seneca: “Verdadeiramente, vivemos na escória dos tempos”.
Vivemos em um tempo que foram abertas as comportas para opniões novas e a opnião
de todo homem tornou-se sua Bíblia! Apesar disso nos deixar profundamente
entristecidos, não vamos murmurar nem nos descontentar.
Em primeiro lugar, porque isso desencobre os homens. O erro revela tais como
manchados e corrompidos. Quando a lepra chegava até o rosto, o leproso era
descoberto. O erro é como um bastardo espiritual, cujo pai é o Diabo e a mãe, o orgulho.
Não se conhece alguém apegado ao erro que também não seja orgulhoso. Agora, é bom
que esses apareçam, para que a reta justiça de Deus seja sobre eles. Além disso, para que
outros que estejam limpos não sejam infectados. Se um homem está doente, é bom
que se retire. Do meu lado, eu fujo dos hereges como fujo do Diabo, porque é enviado a
fazer os propósitos do inimigo. Pergunto a você: se houvesse na sua cidade uma taverna
na qual, sob o disfarce de vender vinho, muitas garrafas de veneno foram vendidas não
seria melhor que outros soubessem para que não comprem? É importante que aqueles
com opiniões envenenadas sejam conhecidos, para que o povo de Deus possa nem
cheirar nem provar tal veneno.
O erro também é um critério para descobrir bons homens. Ele prova o ouro.
“Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados se
tornem conhecidos em vosso meio” (1Co 11.19). Assim, nosso amor a Cristo e nosso zelo
pela verdade aparecem. Deus mostra os que são peixes vivos, que nadam contra a
corrente. Os que são ovelhas a salvo, que pastam nos pastos verdes das ordenanças. Os
que são pombos, que vivem nos ares onde o Espírito “respira”. A frente desses Deus
coloca uma guirlanda de honra: “São estes os que vêm da grande tribulação” (Ap. 7.14).
Esse são os que se opuseram aos erros dos tempos. Esses são os que preservaram a
virgindade de sua consciência, que mantiveram seu julgamento intacto e seu coração,
macio. Deus terá um troféu de honra para alguns de seus Santos. Serão renomados por
sua sinceridade, sendo como o Cipreste, que não perde seu vigor e sua cor mesmo no
inverno.
Em segundo lugar, não fique pecaminosamente descontente, porque Deus pode
tornar os erros da igreja em vantagem para a verdade. Desse modo as verdades de Deus
serão mais escrutinadas e então confirmadas. Como é na Lei, quando um homem
falsamente se intitula dono de um pedaço de terra, o título real de propriedade tem de
ser buscado e ratificado. Alguns nunca teriam estudado para defender as verdades da
Escritura se outros não tivessem tentado derrubá-las com seus sofismas. Todas as
névoas do erro que subiram do profundo abismo apenas fizeram o glorioso sol da
verdade brilhar muito mais forte. Se Ário e Sibélio não tivessem espalhado seu
condenável erro, as verdades sobre a bendita Trindade nunca teriam sido discutidas por
Atanásio, Agostinho e outros. Se o inimigo não tivesse trazido tanto da escuridão do seu
principado, os campeões da verdade nunca teria corrido tão rápido para as Escrituras
para acender suas candeias. Então Deus, que tem uma roda no meio de de outra roda,
determina tais coisas sabiamente e as vira pra onde quer. A verdade é uma planta divina,
que se acomoda justamente quando é chacoalhada.
Além disso, Deus usa isso para aumentar o valor de sua verdade ainda mais. Até
mesmo os escassos “retalhos” da verdade são estimados. Quando há muito metal
falsificado, o preço do ouro sobe. O puro vinho da verdade nunca vale mais do que
quando as doutrinas podres são propagadas.
O erro também nos torna mais gratos a Deus pela jóia da verdade. Quando vocÊ
vê outro infectado com uma doença, quão grato você fica a Deus por ter te livrado da
infecção! Quando vemos outros com sua lepras nas cabeças, quão gratos somos a Deus
que nos entregou a crer numa mentira e sermos condenados? É boa coisa que mesmo o
erro desses tempos seja usado para nos tornar mais humildes e gratos, adorando a graça
livre de Deus que nos impede de beber daquele veneno mortal.

A impiedade dos tempos


Eu vivo e convivo com os profanos, “quem me dera asas como de pomba!Voaria e
acharia pouso!” (Sl 55.6) Realmente é triste estar no meio dos ímpios. Davi disse “vi os
infiéis e senti desgosto” (Sl 119.158) e Ló, que era como estrela brilhante numa noite escura,
estava vexado ou, como a palavra no original diz, enfadado pelas conversas sujas dos
homens maus (2 Pe 2.7). Ele tornou os pecados de Sodoma em lanças que atravessaram
sua própria alma. Devemos, se há em nós qualquer faísca do amor divino, sermos
sensíveis aos pecados dos outros e que nossos corações sangrempor eles. Ainda assim,
não devemos romper em choro e descontentamento, sabendo que Deus em sua
providência o permitiu e certamente não sem razões.
Primeiro, porque o Senhor usa os ímpios como barreira para defender os dEle. O
Deus sábio frequentemente faz aqueles que são ímpios porém pacíficos serem meio de
guardar seu povo daqueles que são ímpios porém cruéis. O Rei da Babilônia manteve
Jeremias e deu uma ordem especial em seu cuidado, pra que não lhe faltasse nada (Jr
39.11,12). Deus algumas vezes usa pecadores audazes para serem muralhas em deefsa de
Seu povo.
Deus coloca os ímpios e os devotos para que eles sejam meio de salvar os ímpios.
Essa é a beleza da santidade que tem uma força magnética que atrai e puxa até mesmo
os ímpios. As vezes Deus usa um marido crente como meio para converter uma esposa
descrente e vice-versa: “Pois, como sabes, ó mulher, se salvarás teu marido? Ou, como
sabes, ó marido, se salvarás tua mulher?” (1Co 7.16). Os santos vivendo entre os ímpios,
por seu conselho prudente e exemplo piedoso podem os ganhar afim de que abracem a
verdadeira religião. Se não houvessem alguns santos vivendo no meio dos ímpios como,
numa maneira prática, sem milagres, podemos imaginar que os ímpios seriam
convertidos? Vários dos que hoje são Santos brilhando nos céus antes serviram desejos
diversos. Paulo antes foi perseguidor. Agostinho, um Maniqueísta. Lutero, era Monge.
Contudo, pela severo e santo procedimento dos santos eles foram convertidos a
verdadeira Fé.

X. Sofrimento pela falta de dons e habilidades


Uma outra desculpa que vem do descontentamento é a de se ter poucos dons
ou habilidades: “Eu não posso”, diz o Cristão, “discursar com fluência nem orar com
elegância como outros fazem”.
Considere que a Graça vai além dos dons. Comparar a Graça concedida a você
com os dons de outro, há uma grande diferença. Contudo, Graça sem dons é
infinitamente melhor que dons sem Graça. Na religião, o que é vital é o melhor. Dons
são uma obra extrínseca e comum do Espírito Santo, que incidem até sobre os
reprovados. A Graça, no entanto, é uma obra distinta, uma jóia colocada apenas sobre os
Eleitos. Você tem a semente de Deus e a Sua unção santa? Sê contente;
Você diz “eu não posso discursar com a mesma fluência de outros”. Na vida Cristã,
a experiência é melhor que as noções e o que o coração sente é melhor do que a
expressão vocal. Judas, sem dúvida, poderia dar um discurso eloquente sobre Cristo.
Ainda assim, bem fez a mulher no evangelho que sentiu a virtude saindo de Cristo (Lc
8.47). Um coração santificado é melhor que uma língua de ouro! Há muita diferença entre
dons e graças, do mesmo modo que há entre uma tulipa pintada na parede e uma
crescendo no jardim.
Também diz que não pode orar com a mesma elegância que outros. Oração é
muito mais algo do coração do que da cabeça. Na oração não é a fluência que prevalece,
e sim o fervor (Tg 5.16) nem Deus escuta pela elegância no falar, e sim pela eficácia do
Espírito. Humildade é melhor que fluência. Aqui o enlutado se torna orador. Choros e
gemidos se tornam a melhor retórica!
Devemos ser contentes pois Deus dá habilidades de acordo com o lugar para o
qual o chama. Alguns são colocados em esferas e funções superiores, cujo lugar requer
mais dons e habilidades. Mas até mesmo o membro mais inferior é útil em seu lugar e
terá delegado a si o poder necessário para seu ofício peculiar.

XI. Sofrimento pelos problemas da Igreja


“Infelizmente, meu descontentamento não é por mim e sim pelos outros. A Igreja
de Deus sofre”, é o que se houve na décima primeira das desculpas dadas pelo
descontentamento.
Devo confessar, isso realmente é triste. Deveríamos pendurar nossas
harpas nos salgueiros (Sl 137.2) por essa razão. Apesar disso, considere que Deus
está sentado à popa do navio da Igreja (Sl 46.5). Algumas vezes a Igreja é como
um barco jogado de um lado ao outro pelas ondas, “ arrojada com a tormenta e
desconsolada” (Is 54.11). Não pode Deus, contudo, conduzir tal navio ao porto
seguro, mesmo que haja tormenta no mar? O barco citado no evangelho estava
sendo chacoalhado porque nele havia pecado, mas não virou porque nele havia o
Cristo. Cristo está no barco da sua Igreja - não tenha medo de naufragar, a âncora
da Igreja está nos céus! Nós não cremos que Deus ama sua Igreja e a cuida tão
bem? Os nomes das doze tribos foram gravados na couraça do peitoral de Aarão,
simbolizando quão perto do coração de Deus o seu povo está. Eles são Sua
porção (Dt 32.9) - há isso de se perder? São sua glória (Is 46.13) - há ela de ser
ofuscada? Certamente não. Deus pode libertar sua Igreja não apenas da oposição
mas também pela oposição. As angústias da igreja sempre contribuirão para sua
salvação.
Deus sempre propagou a verdadeira religião por meio do sofrer. A
fundação da igreja foi construída sobre sangue, e esses derramamentos de
sangue a fizeram frutificar. Caim colocou a faca na garganta de Abel e, desde
então, as veias da igreja tem sangrado. Mas ela é como o vinho que cresce pela
sangria18. É como a palmeira, que quanto mais peso é nela pendurado, mais alto
ela cresce. A santidade e paciência dos Santos sob perseguições muito somou ao
crescimento da verdadeira religião e à glória da Coroa divina. Basílio e Tertuliano
observaram sobre os mártires primitivos que muitos dos pagãos, vendo seu zelo
e constância, se tornaram Cristãos. O cristianismo é como uma fênix que sempre
revive e floresce a partir das cinzas dos homens santos. Isaías, serrado ao meio.
Pedro, crucificado em Roma de cabeça pra baixo. Cipriano, bispo de Cártago, e
Policarpo de Esmirna, ambos se tornaram mártires pela verdadeira religião.
Assim, ainda mais a verdade foi selada pelo seu sangue e gloriosamente
espalhada. Tais coisas fizeram com que o imperador Juliano se abstivesse da
perseguição aos Crentes, não por pena mas por inveja, dado que a Igreja
rapidamente crescia, como bem observou Nazianzo19.

XII. Sofrimento pelos próprios pecados


A décima segunda desculpa dada como justificativa para o descontentamento é a
de que “não são minhas aflições que me atribulam e sim os meus pecados que me
inquietam”.
Certifique-se de que seja isso mesmo. Não prevarique com Deus e com sua
própria alma. No verdadeiro luto pelo pecado quando o sofrimento presente é

18
Refere-se ao método chamado “saignée” (Sangria) em que se retira parte do suco enquanto a
outra parte se mantém em contato com a pele, na produção do vinho Rosé. (N. do T.)
19
Gregório Nazianzo, teólogo e arquebispo de Constantinopla do Século IV.
removido, a tristeza ainda continua. Mas vamos supor de que essa desculpa seja real, e
que o pecado seja mesmo a razão do seu descontentamento. Ainda assim posso te dizer
que existem três casos nos quais a inquietude pelo pecado passa dos limites.
O primeiro é quando ela se torna desalentadora e coloca o pesado do pecado
acima da misericórdia. Se Israel tivesse apenas chorado sobre as mordidas de cobra e
não tivesse olhado para a serpente de bronze levantada por Moisés, eles nunca teriam
sido curados. A tristeza pelo pecado, quando nos leva longe do Senhor é um pecado por
si própria, porque há mais desespero do que remorso. Há tantas lágrimas nos olhos que
ela impedem de ver a Cristo. A tristeza por si só não salva, como se pudéssemos fazer
um Cristo a partir de nossas lágrimas, mas é útil porque prepara nossa alma mostrando
que o pecado é vil e que Cristo é precioso. Olhe para a serpente de bronze, o Senhor
Jesus! A visão do seu sangue revive e o remédio dos seus méritos são muito maiores que
a nossa dor!
Faz parte da política de Satanás, ou nos impedir de ver nossos pecados ou que
vejamos, mas que sejamos engolidos pela tristeza (2Co 2.7). Ou ele quer nos tornar
estúpidos ou amedrontados. Ou quer remover das nossas vistas as lentes da lei de Deus,
ou destacar os nossos pecados com uma caneta tão vermelha pra afundemos na areia
movediça do desespero.
Em segundo lugar, quando a tristeza se torna em indisposição, ela dessintoniza
nosso coração para oração, meditação e santidade. Ela enclaustra nossa alma. Não é
mais só tristeza e sim emburramento e transforma o homem penitente num homem
cínico.
O terceiro ponto é quando essa tristeza é fora de tempo. Deus nos fez regozijar, e
nós penduramos nossas harpas nos salgueiros. Deus confia em nós, e nós nos jogamos
para baixo e nos trazemos até a beira do desespero. Se Satanás não pode nos impedir
de chorar pelo nosso pecado, ele com certeza vai querer que nós o façamos na hora
errada.
Quando Deus nos chama de maneira especial para sermos gratos pela
misericórdia e colocar vestes brancas, então Satanás vai tentar nos colocar de luto e,
invés de vestiduras de louvor, nos vestir com um espírito pesado. Assim, Deus perde o
nosso reconhecimento de sua misericórdia e nós perdemos o conforto. Se sua tristeza
tem te virado pra Cristo, te feito valorizá-lo mais, ter fome e se deleitar nEle, é isso que
Deus espera! Um Cristão peca em torturar a si mesmo sob a ruína do seu próprio
descontentamento.

Espero, então, ter respondido a maior parte das objeções materiais e desculpas que o
pecado do descontentamento dá para si mesmo. Com isso, não consigo vejo qualquer
razão pela qual o Cristão deve estar descontente, a não ser estar descontente com seu
próprio descontentamento.
11. Um estímulo ao contentamento
Me permita então, a partir de agora, propor algo que servirá como uma lima para afiar e
aguçar seu contentamento.

1. A excelência do contentamento
O contentamento é uma flor que não nasce em qualquer jardim. Com certeza você
acharia excelente se eu pudesse prescrever um remédio ou um antídoto contra a
pobreza. Mas veja, aqui está algo muito mais excelente: alguém ser pobre e ainda assim,
ter o suficiente. Isso, só o contentamento do espírito traz. Contentamento é um remédio
contra todos os nossos problemas, um alívio a todas as nossas cargas, é a cura de todo
cuidado.
Contentamento, mesmo que não seja propriamente dito uma graça concedida e
sim uma disposição da mente, ainda assim nele reside uma mistura feliz de todas as
graças. É um composto muito precioso, que é feito de fé, paciência, mansidão,
humildade, etc., que são os ingredientes que o compõe.
Existem sete excelências no contentamento. A primeira, é que um Cristão
contente carrega consigo o Céu. Por que o que é o céu se não um doce repousar e pleno
contentamento que a nossa alma terá em Deus? No contentamento encontramos os
primeiros frutos do céu.
O contentamento é como o céu porque Deus está ali: É possível ver o agir de
Deus nesse coração. Um Cristão descontente é como um mar tempestuoso: quando a
água está agitada, você não consegue ver nada ali. Porém quando ela está serena, então
é possível até ver a si mesmo refletido na água (Pv 27.19). Quando o coração anda no
descontentamento é como um mar agitado - não se pode ver nada além de paixão e do
murmurar. Não há nada de Deus ali, não há nada do céu ali. Mas pela virtude do
Contentamento, é como se o mar estivesse calmo e é possível ver um rosto refletido ali:
a visão de Cristo no seu coração, uma representação de todas as Graças.
Também porque descanso e paz estão ali. Ó que paz existe no coração contente.
Que céu! Um Cristão contentado é como Noé na arca. Mesmo a arca sendo levada pelas
ondas, Noé podia se sentar e cantar dentro da arca. A alma que entra na arca do
contentamento se senta quieta e navega sobre as águas dos problemas, e pode cantar
na arca espiritual. As rodas da carruagem se movem, mas não o seu eixo. A
circunferência dos céus se movem, mas a terra sempre se mantém em seu eixo. Quando
nos vemos rodeados por criaturas a nossa volta, o espírito contente não sai de seu eixo.
As hélices do moinho de movem com o vento, mas o moinho em si não se move. Que
grande símbolo de contentamento! Quando o nosso estado exterior se move com os
ventos da providência, mesmo assim o coração está firmado no santo contentamento. E
quando outros tremem nos tempos de dificuldade, o espírito contente diz, como Davi,
“o meu coração está firme” (Sl 57.7). Que é isso senão um pedaço do céu?
A segunda excelência é que qualquer defeito é compensado no contentamento.
A um cristão pode faltar os confortos que outros tem, como terras e posses. Deus,
contudo, destila em seu coração o contentamento que é muito melhor. Nesse sentido é
verdade que nosso Salvador disse “receberá muitas vezes mais” (Mt 19.29). Talvez aqueles
que entregaram tudo por Cristo nunca tenham de volta sua casa ou sua terra, mas Deus
lhes dá um espírito contente, e isso cria tamanha alegria na alma que essa se torna
infinitamente mais doce que todasas casas e todas as terras que tenha deixado por
Cristo.
Foi triste para Davi, no que se refere aos confortos externos, ter saído de seu
reino. Quanto ao doce contentamento que ele encontrou em Deus, contudo, ele teve
mais conforto até mesmo que os homens tem no tempo da colheitae das víndimas. (Sl
4.7). Um homem tem sua casa e sua terra em que viver enquanto outro apenas sua
profissão que lhe dá o sustento. Do mesmo modo um Cristão pode ter pouco no
mundo, mas se ele é especialista no contentamento, então ele sabe passar necessidade
mas também sabe abundar. Ó, quão rara a arte - ou até o milagre - do contentamento!
“Mas como pode um Cristão estar contente na falta de confortos externos?”, você
pode me perguntar. Um cristão encontra contentamento destilado nos seios das
promessas. É pobre na carteira, mas é rico nas promessas. Há uma promessa que traz
doce contentamento a nossa alma: “os que buscam o Senhor bem nenhum lhes faltará” (Sl
34.10). Se o que desejamos é bom para nós, então o teremos. Se não é bom, então não
o ter é bom para nós. Descansarmos satisfeitos com essa promessa nos dá
contentamento.
Em terceiro lugar, o contentamento nos torna “afinados” para servir a Deus. O
contentamento lubrifica o coração e o torna apto a orar, meditar, etc. Como pode
alguém que tem paixão pela tristeza e o descontentamento servir a Deus sem
distrações? (1Co 7.35) Contentamento nos prepara e deixa o coração afinado. É
necessário preparar o violino e apertar as suas cordas antes de tocar uma música.
Quando o coração do Cristão está afinado com base no padrão divino do
contentamento, então está pronto pro serviço. Um Cristão descontentado é como Saul
quando o espírito mal o tomava: quantas ofensas e desacordos não faz em oração!
Quando um exército está fora de ordem, então ele não está pronto para a batalha.
Quando os pensamentos estão espalhados e distraídos com os cuidados da vida, um
homem não está pronto para a devoção. Descontentamento toma o coração inteiro de
Deus e o fixa na tribulação presente. Desse modo o coração do homem repousa em
oração, mas sim no problema.
Descontentamento desloca as juntas da alma. É impossível para um Cristão
descontente ir feliz e alegremente ao serviço de Deus. Que devoção falha! A pessoa
descontente dá a Deus apenas meio serviço. Sua devoção é meramente um exercício
corporal, sem a alma que o anime. Davi não queria oferecer a Deus aquilo que nada o
custou (2 Sm 24.24). Onde há muito cuidado com as coisas do mundo, há muito pouco
custo espiritual no serviço. A pessoa descontente faz seus deveres pela metade. É como
Efraim, um pão não virado (Os 7.8), assado pela metade. Ele dá a Deus o externo, mas
não o espiritual. Seu coração não está no serviço. É assado de um lado, mas do outro
lado é massa crua. Que proveito há em oferecer serviço tão cru e indigesto? Aquele que
dá a Deus só a pele da adoração pode esperar mais do que apenas a casquinha do
conforto? Contentamento coloca o coração nos moldes e, só então, damos a Deus a
nossa flor e espírito em serviço. Aí o coração do Cristão se torna intenso e sério.
Sem o contentamento é impossível fazer certas coisas, como por exemplo,
regozijar em Deus. Como podemos regozijar estando descontentes? Estaríamos mais
prontos a murmurar do que regozijar. Como poderíamos ser gratos pela misericórdia?
Estaríamos mais aptos a insatisfação que a gratidão. Também seria impossível ver Deus
como justo em todos os seus caminhos. Como poderíamos fazer isso estando
descontentes? Muito logo iríamos censurar a sabedoria de Deus ao invés de
evidenciarmos sua justiça.
Então quão excelente é o contentamento, que prepara, como se fosse uma
corda, o nosso coração para o serviço! Verdadeiramente o contentamento não apenas
torna nosso dever leve, mas também aceitável a Deus! É isso que põe a beleza e o valor
neles. O contentamento acalma a alma. Nosso coração, assim como o leite, se está
sempre a mexer nada pode se fazer com ele. Mas deixe descansar por algum tempo e
ele vira creme. Quando o coração é excessivamente mexido pelo descontentamento e a
inquietude, não é possível tirar proveito nenhum do seu serviço, pois se torna raso e
efêmero. Mas quando o coração está firmado no santo contentamento, aí há valor no
seu serviço - ele se torna o creme.
A quarta excelência é a de que o contentamento é o pilar espiritual da alma. É
bom pro homem carregar fardos. Aquele cujo coração não se deixa afundar tem um
espírito invencível nos sofrimentos. Um Cristão contentado é como a flor de camomila
planta - quanto mais a pisam, mais ela cresce. Do mesmo modo que um remédio faz
com que a doença saia do corpo, assim também o contentamento espanta os
problemas do coração. O coração contente diz: ”Se estou sob censura, Deus pode me
vindicar. Se estou em necessidade, Deus pode me aliviar”. 2 Reis 3.17 diz “Não sentireis
vento, nem vereis chuva; todavia, este vale se encherá de água”. Assim, o contentamento
santo impede o coração de se esvair.
No Outono, quando as frutas e as folhas se foram, ainda há seiva na raiz. Quando
há um Outono na nossa felicidade externa e as nossas posses, como folhas, caem, ainda
há a seiva do contentamento no coração. Um Cristão tem vida dentro de si mesmo
quando seus confortos externos não florescem. Um coração contentado nunca se
acaba.
O contentamento é um escudo de ouro que rebate os descorajamentos.
Humildade é como o chumbo na rede de pesca - segura a alma quando ela quer se
mover nas águas agitadas da paixão. O contentamento é como uma bóia que mantém o
coração flutuando quando ele está se afundando no desencorajamento. O
contentamento é o grande suporte, como barra de ferro que aguenta qualquer peso que
sobre ela é colocado - melhor que isso, é como a rocha que quebra as ondas!
É curioso observar dois homem sofrendo a mesma aflição, o quão diferente cada
um age sob ela. O Cristão contente é como Sansão, que levou os portões da cidade
sobre suas costas (Jz 16.3). Ele consegue seguir com a sua cruz alegremente e pra ele é
como nada. O outro, como Issacar, que baixou seus ombros à carga (Gn 49.15). A razão é
que o descontentamento cria o enfraquecimento. Descontentamento incha a tristeza, e
a tristeza quebra o coração. Quando o sagrado tendão do contentamento começa a
diminuir, começamos a mancar sob nossas aflições. Não sabemos quais cargas Deus
pode colocar sobre nós. Vamos, portanto, preservar nosso contentamento, bem como
nossa coragem. Davi com suas cinco pedras e sua funda desafiou Golias e o superou.
Coloque nada mais que contentamento na funda do seu coração e com essa pedra
sagrada você pode tanto desafiar o mundo quanto o conquistar. Você poderá enfim
quebrar as aflições que de outro modo te quebrariam.

A quinta excelência é a de que o contentamento previne muitos pecados e


tentações. Onde há falta o contenamento não há falta de pecado. O descontentamento
com a nossa condição é um pecado que não vem só - pelo contrário, é como o primeiro
elo em uma corrente que puxa todos os outros elos consigo. Em particular existem dois
pecados que o contentamento previne.
Em primeiro lugar, ele previne a impaciência. O descontentamento e a
impaciência são gêmeos: “Eis que este mal vem do Senhor; que mais, pois, esperaria eu do
Senhor?” (2 Re 6.33). Como se Deus estivesse tão preso a nós que ele tivesse de
conceder misericórdia a nós apenas quando nós a desejássemos. Isso é causado pela
falta de fé. A fé nos dá uma noção sadia de Deus. É uma graça inteligente, que acredita
que a sabedoria de Deus é como tempero e que Seu amor adoça todos os ingredientes.
Isso trabalha em nós a paciência. “Não beberei, porventura, o cálice que o Pai me deu?” (Jo
8.11)
A impaciência é filha da infidelidade. Se um paciente tem uma opinião ruim de
um médico e pensa que o mesmo o está envenenando ao invés de medicar, então o
paciente não toma nenhuma das suas medicações. Do mesmo modo, se temos uma
visão ruim de deus e pensamos que ele irá nos matar, então saímos correndo e
choramos como um homem tolo que grita “vá embora com esse remédio!” mesmo que
o remédio exista para o seu bem. Não é melhor que o remédio doa um pouco do que a
doença inflame?
A impaciência também é gerada pela falta de amor a Deus. Nós aceitamos a
repreensão dos que amamos não apenas de forma paciente mas também de forma
grata. O amor “não se ressente do mal” (1 Cor 13.5). O amor pôe a mais gentil e mais justa
cobertura sobre as ações de um amigo. O amor cobre multidão de pecados (1 Pe 4.8). Se
fosse possível que Deus errasse do menor dos modos - o que seria blasfêmia pensar ser
verdade - o amor cobriria tal erro! O amor lev0a tudo no bom sentido e permite
suportar qualquer coisa. O amor tudo suporta. (1 Co 13.7). Se amássemos a Deus,
teríamos paciência.
A falta de humildade também é causa da impaciência. O homem impaciente
nunca se humilhou sobre a carga do pecado. Aquele que olha para seus próprios
pecados - os inúmeros e inúmeros deles - se contorce internamente e é afetado pela
tristeza. Mas ainda assim se mantém paciente e diz: “Eu suportarei a indignação do
Senhor, porque pequei contra ele.” O barulho maior abafa o menor. Quando o mar ruge,
os rios se aquietam. Do mesmo modo, aquele que deixa seus pensamentos analisarem o
próprio pecado fica tanto silencioso quanto maravilhado, pensando que há de ser pior
do ele mesmo.
Quão grande então é o pecado da impaciência! E quão excelente é o
contentamento, que é o contraposto desse pecado! O Cristão contente, crendo que
Deus faz tudo em amor, é paciente e não tem sequer uma palavra de reclamação. Esse é
o pecado que o contentamento previne.
O contentamento também previne a murmuração, um pecado que está um
degrau acima do outro. Murmurar é discutir com Deus, é lançar injuriar sobre ele. “E o
povo falou contra Deus” (Nm 21.5). O murmurador essencialmente diz que Deus agiu de
maneira errada com ele e que ele mereceria melhor. O murmurador acusa Deus de ser
tolo e duro. Essa é a linguagem, ou melhor dizendo a blasfêmia, de um espírito
murmurante. “Deus poderia ser sido mais sábio e um Deus melhor para mim”. O
murmurador é um rebelde. Os Israelitas são chamados no mesmo texto de
murmuradores e rebeldes (Nm 17.10). Não é a rebeldia tal como o pecado da feitiçaria?
Vocẽ, murmurador, é aos olhos de Deus do mesmo modo que uma bruxa ou um
feiticeiro: como alguém que flerta com o mal. E isso é um pecado de primeira
magnitude.
A murmuração frequentemente acaba em maldição. A mãe de Mica espalhava
maldições quando seus talentos de prata foram tomados (Jz 17.2). Do mesmo modo faz
o murmurador quando parte de suas coisas são tomadas. Murmuração é música pros
ouvidos do diabo. É aquele pecado que Deus não suporta: “Até quando sofrerei esta má
congregação que murmura contra mim?” (Nm 14.27) A murmuração é um pecado que afia
a espada contra o povo, é um pecado que pode destruir a terra. “Nem murmureis, como
alguns deles murmuraram e foram destruídos pelo exterminador” (1 Co 10.10). O murmurar
é um pecado apodrecedor que, sem misericórdia, antecipará muitos funerais na
Inglaterra. Então quão excelente é o contentamento que previne esse pecado! Estar
contente e murmurar é impossível. Um Cristão contente concorda com sua condição
presente e não murmura, mas contempla. Aqui vemos a excelência do contentamento -
é um antídoto espiritual contra o pecado.
Em segundo lugar, o contentamento previne muitas tentações. O
descontentamento é como um demônio que está sempre tentando.
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