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A cidade poética do arquiteto do papelão

Com passagens pelo mundo do futebol e da moda, o carioca Sergio


Cezar só foi se encontrar de verdade na arte. E imerso na arte, ele
redefiniu completamente sua relação com o planeta. Aos 61 anos,
conhecido como “Arquiteto de Papelão”, ele se dedica há pelo menos
três décadas a transformar o lixo em esculturas. Suas obras, recriações
poéticas de sobrados, cortiços, favelas, não apenas dão vida à
materiais que as pessoas consideram inúteis, mas também atentam
para questões arquitetônicas e urbanistas.
Periferia colorida numa maquete fez o cenário de abertura da novela
“Duas Caras”. A obra deu visibilidade internacional ao artista

De passagem por Natal ao lado da esposa potiguar Isabelle Cabral,


que participou do Festival Goiamum, Sergio conversou com o VIVER
sobre sua carreira – que ganhou visibilidade internacional desde a
peça criada para a vinheta de abertura da novela “Duas Caras” (2007-
2008), da Globo. “Sem dúvidas aquele trabalho foi o mais importante
que fiz. Foi uma experiência incrível, que me ajudou a redescobrir o
valor da minha arte”, conta o artista.

A obra criada para a vinheta é uma favela em miniatura, com mais de


1500 habitações, numa área total de 64m². Tudo feito com papelão
reciclado, latas de refrigerante e retalhos diversos. O trabalho foi
encomendado pelo designer Hans Donner, o mago das aberturas de
novelas da Globo. No vídeo de 70 segundos, se vê o crescimento da
comunidade ao redor de dois luxuosos edifícios criados através de
computação gráfica. A sequência intercala com imagens em preto-e-
branco do próprio artistas nos momentos de fabricação da mini-favela.

“Cara, foram muitas casinhas, cada uma com seus detalhes. Eu criei
de cabeça uma cidade para mais de 18 mil pessoas. Tudo feito em 28
dias, com uma equipe que montei com nove pessoas”, recorda Sergio.
“Foi a primeira novela em HD transmitida no Brasil e a que teve a
abertura mais longa. A novela foi um sucesso mundial, já passou em
200 países”.
Sergio Cezar encontrou na reciclagem o componente da sua arte

A obra rendeu ao artista convites de exposição e palestra em países


como EUA, Canadá, Alemanha, Portugal e Cuba, onde já participou
de duas Bienais de Havana. Em todas as ocasiões ele promoveu
oficinas, algo que está intrínseco no seu trabalho com a arte. “Em toda
exposição eu tenho que fazer oficina. Tenho que mostrar a arte de
reciclar o olhar, dar essa contribuição para as localidades que me
recebem. Isso tem a ver com a minha origem. Meu pai era porteiro,
minha mãe, doméstica. Eles são exemplos pra mim, porque tinham
essa preocupação com o lixo e a limpeza dentro de casa e na
comunidade”, diz.

A periferia poética
Além do viés ambiental das obras, é central no trabalho de Sergio a
questão urbanística, arquitetônica e social, sobretudo no que concerne
a periferia carioca. Com olhar poético e riqueza de detalhes, ele recria
habitações que em conjunto traduzem um pouco do cotidiano de
comunidades humildes.

“No meu trabalho eu observo essencialmente três coisas. O lixo, que é


onde eu arranjo meu material; a história arquitetônica do Rio, que eu
tenho a preocupação de dar vida nas minhas peças; e o modo como as
pessoas se relacionam com as casas e a localidade, de onde eu me
inspiro para dar movimento as obras”, explica o artista.

Embora retrate o ambiente da população pobre, Sergio afirma que seu trabalho não fala
de miséria. “Eu retrato a poesia do pobre. A poesia que está nessas pessoas que a
sociedade rejeita. Se você olhar legal, parece que aquelas casas estão desorganizadas,
mas tem sempre um vasinho de planta, um detalhe poético”, conta. Como não coloca
figuras em suas peças, ele diz dar movimento no trabalho a partir de três detalhes
subliminares: a vassoura, as roupas no varal e os livros.

“A vassoura encostada num canto gera um movimento que a gente desenvolve na


mente, imaginando quem colocou a vassoura ali, quem varreu ou vai varrer. Com a
roupa no varal, roupas simples, eu mostro que as pessoas são limpas, cara. É uma
maneira de quebrar a aquela ideia de sujeira, além de sinalizar que alguém lavou
aquelas roupas, vai retirá-las do varal e passar para usar. E os livros, eles são a são
educação”.
O contraste social
Uma das primeiras exposições de Sergio foi num shopping de elite na Zona Sul do Rio
e foi sucesso de visitação, com circulação de 2 mil pessoas por semana. Os
frequentadores se encantaram com aquela recriação artística da realidade que a maioria
fingia não ver na cidade. “O trabalho acabou dando um choque neles. Atraindo a
atenção daquela elite para aquilo que eles sempre preferiram não ver”, diz o carioca.

Detalhes que humanizam os cenários criados por ele

Detalhes que humanizam os cenários criados por ele

Perguntado sobre um movimento de fetichização das favelas que se vê expresso em


projetos culturais e turísticos, ele é sucinto em dizer que se pudessem, aqueles
moradores, embora capazes de encontrar alegria nas adversidades, prefeririam morar em
outro lugar. “Ninguém gosta de morar onde não tem saneamento básico, onde não tem
segurança, nem o mínimo de qualidade de vida. Ninguém gosta de morar em favela. Só
gringo”, conta. “Acho aqueles Jipes que sobem a favela para fazer turismo parecido
com Safari na África, onde se vê leão, elefante. Os turistas tirando fotos com os
moradores como se estivessem diante de um animalzinho. Não acho legal. Claro que
gera oportunidades para a comunidade, respeito isso. Mas é que me preocupo em ver
além disso. Dentro das favelas há um outro mundo completamente diferente do
asfalto”. 

De jogador de futebol a artista


Sérgio foi jogador de futebol, jogou no juvenil do Flamengo ao lado de Zico, Adílio,
Júnior, Cantareli. E profissionalmente jogou no América do Rio, disputando
campeonatos carioca e até brasileiros. “Fiz excursão na Europa por meio do esporte.
Mas vi que o futebol não era o meu mundo”, diz. Precisando de dinheiro, ele se tornou
segurança, trabalhando logo de cara para a modelo Luíza Brunet. “Era uma figura
maravilhosa. Olhou pra mim e disse que eu não era segurança, e sim modelo. Me botou
pra desfilar, fazer foto pra revista. Mas também vi que a moda não era meu mundo”.

Foi então que Sergio resolveu dar asas a um impulso artístico da infância. Largou tudo e
se lançou nas artes plásticas. “Na arte eu já tentei parar, mas vi que não consigo. É a
minha vida”, afirma. Como autodidata e dotado de um olhar atento, poético, voltado
para às ruas, ao patrimônio arquitetônico, às pessoas, ao meio ambiente, ele construiu
uma carreira de reconhecimento nacional e internacional.

Exposição em Natal
Por ser casado com uma potiguar, a produtora Isabelle Cabral, Sergio já veio várias
vezes ao Rio Grande do Norte. Numa das oportunidades, chegou a ministrar uma
oficina de criação de estampas a partir de relevos para o Festival Goiamum. Em suas
andanças pelo estado, ele também atentou para as habitações simples de pescadores de
São Miguel do Gostoso, Maracajau e Pipa, o que gerou a criação de algumas casinhas
que estão em seu atelier no Rio de Janeiro. Em Natal, ele se inspirou especialmente nos
ambulantes de Ponta Negra, com quem gosta de puxar papo, recriando carrinhos de
drinques. Quem sabe na próxima vez que o artista vier a cidade, ele venha com uma
exposição, em que, além dos casebres da periferia carioca, estejam à mostra peças do
seu olhar poético voltado para o cotidiano potiguar. “Tenho muita vontade. Já quis
expor aqui antes, mas não deu certo. Surgindo a oportunidade e conseguindo apoio, eu
trago as obras para  uma exposição”, avisa.

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