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PERFIL

‘Minha arte vale minha vida’


Henrique de Aragão completa 80 anos e fala ao JL sobre sua carreira nas artes
plásticas e a exposição que abre sexta-feira em Ibiporã

09/08/2011 | 17:11 Bruna Komarchesqui


Rua 1º de maio, 224, um dos endereços mais famosos de Ibiporã. Na casa de madeira – ao
lado do Cine Teatro Municipal Pe. José Zanelli – uma voz pausada responde o interfone,
convidando-nos a entrar. Por entre as obras de arte e plantas espalhadas pelo quintal, aparece
um senhor simpático, cabelos brancos, calça jeans e blusa de lã. A casa, na verdade, é
também um ateliê, onde o paraibano Henrique de Aragão continua produzindo esculturas,
pinturas e poemas.

Ao completar 80 anos de vida, o artista plástico comemora a criação da Fundação Henrique de


Aragão (FHA), que terá a missão de cuidar do acervo após sua morte. “Eu já dei minha
produção toda, na hora que eu estiver morto, para a comunidade. Está registrado em cartório, é
da Fundação Henrique de Aragão. Não pode ser vendida, pode ser emprestada para todo
mundo que se responsabilize”, conta.

 Toque de letras

Para celebrar os 80 anos de Aragão, o saguão do Cine Teatro Pe. José Zanelli recebe nesta
sexta-feira, às 21 horas, a exposição Uma releitura do tarô, com trabalhos do artista. Trata-se
de uma brincadeira com 22 esculturas dos arcanos maiores do tarô, na tentativa de aproximar
a população da arte. “É uma fantasia da minha cabeça. Quando você está tocando, entra em
contato direto com a arte”.

Para Aragão, que começou a desenhar em muros de Campina Grande aos 7 anos de idade, a
motivação da arte deve ser sempre o amor. Ele lamenta que a arte tenha virado mercadoria e
seja apreciada de acordo com seu valor de mercado. E qual o preço dos 80 anos de arte
produzidos por Henrique de Aragão? “Minha arte vale minha vida”, garante.

JL- O senhor é paraibano. Como resolveu vir para Ibiporã?


Henrique Aragão – Eu estava em São Paulo, em 1964, e vim aqui para fazer um ato de amor
a uma pessoa. A pessoa não estava bem e me disseram ‘fulano está mal, só fala de você’, aí
eu vim embora visitar esse amigo meu. Depois eu voltei para São Paulo, estava pintando uma
capela lá no seminário, aí chegou o primeiro bispo de Apucarana, Dom Romeu Alberti, e me
trouxe para eu ver o que faria lá na igreja. Aí comecei a trabalhar e acabei ficando aqui no
Paraná.

JL- E como a arte surgiu na sua vida?


Eu comecei a desenhar no muro da cidade em que eu morava aos 7 anos. E tinha uma relação
muito estreita com os animais e as plantas lá na minha cidade, onde tudo era muito primitivo,
muito telúrico, muito forte. Eu dançava em cima da serra, quase todo dia, escutava uma música
dentro de mim, saía correndo, tirava a roupa, dançava, às vezes o dia todo. Fora isso, eu
desenhava umas histórias, com carvão, caco de telha, folha, gostava de colorir. E eu contava
as minhas histórias e as donas de casa não gostavam muito, porque, normalmente, elas
pintavam o muro no natal, e eu era de uma família pobre, não sabia o que era o natal. E eu
comecei a descobrir o que era natal quando as famílias ricas pintavam os muros, que eram um
prato cheio para eu contar minhas histórias de bichos e de plantas.

JL- E quando a arte sacra entrou nessa história?


A sacra foi em 1966, em São Paulo. Antes eu já tinha feito uns trabalhos abstratos, tentando,
dentro do neoconcretismo, umas incursões meio místicas, numa linha de busca do infinito, de
harmonia interior com o mundo, com aquilo que a gente vive no dia a dia. Eu achava um
disparate que a gente não soubesse o que estava fazendo aqui, nem para onde a gente vai. Eu
não pedi para nascer... Era uma coisa minha, nunca briguei com ninguém, sou mais de
conversa. Tanto que eu vivo conversando com o infinito, com o divino. Hora eu acho que estou
num caminho mais ou menos para chegar a um porto qualquer, aí depois eu descubro que não
cheguei a porto nenhum, que não vou chegar a lugar nenhum, e que está tudo como no início
(risos).

JL- Sua arte é fruto de suas buscas?


É a minha vida. Minha arte é a minha vida. Mas não sei se é inspiração, eu chamo mais de
insight, porque a inspiração me parece um negócio muito das deusas e, essas coisas para
mim, só existem em literatura e poesia. Mas, na vida prática, encontramos muito poucos
deuses que nos deem a mão e nos digam ‘vai, é por aí’. A busca primitiva do homem é a
procura de si mesmo. A história da arte diz que aquele primeiro homem que pintava as
cavernas fazia uma arte anímica, que ele estava procurando interagir com a caça, mas para
mim, é muito mais uma busca dele mesmo. Ele estava procurando, por uma necessidade que
ele nem sabia, criar referências para existir como ser, porque ele nem falava ainda. E ele nos
deu o big bang para que explodíssemos a cabeça e começássemos a criar realidades que
realizassem a transformação da gente nesse processo evolutivo, de um bicho que acabara de
descer das árvores, em um bicho que ia começar a construir o mundo, ou destruí-lo, como
estamos fazendo.

JL- O senhor tem formação em arte ou é um autodidata?


Eu fiz até o segundo ano de Belas Artes, em Recife, mas não terminei, porque não gostei da
escola. Depois eu fui para a Itália, fiz um curso de anatomia para artistas, fiquei lá alguns anos.
Voltei para o Brasil, fiquei um tempo em Recife, depois voltei para São Paulo e vim para cá.
Daqui não saio mais, estou aqui há quase 50 anos.

JL- Como é seu processo de criação?


Eu trabalho em cima de imagens internas, eu digo visões. Mas não falo muito de visões para
não pensarem que sou um macumbeiro (risos), não tem nada a ver. Eu estou falando com você
agora e, na minha mente, existem milhares de imagens. Isso tudo está acontecendo no meu
ser, aí é só ir para o ateliê e começar a mexer, pegar os papeis, etc. Ou então pegar um livro,
porque eu escrevo poesia, já escrevi teatro. Mas é tudo uma necessidade orgânica, qualquer
coisa que flui dentro de mim e, ao mesmo tempo, encontra fora as referências e vou
produzindo. As referências são os materiais, as palavras, o papel, a tela, sobre as quais eu
jogo as imagens do meu ser. E não é só no cérebro, é uma coisa orgânica, de sangue, de vida.
A briga que eu tenho com o divino é ‘não me deixe em cima de uma cama, porque você sabe
que não vou aguentar’.

JL- Em Londrina, sua obra mais conhecida é O Passageiro, na rotatória da Rodoviária.


Gostaria que o senhor falasse um pouco dela...
O Passageiro era uma homenagem que a viação Garcia queria fazer ao instrumento de
trabalho deles, e me pediram para fazer um esboço. Eu não conseguia ver um passageiro com
uma malinha, saindo com a sacola nas costas assim. Para mim, o passageiro é um elemento
da viagem. E quando ele se locomove de um lugar para outro, tem o ponto de partida e uma
chegada que ele espera atingir. No meio disso, ele vai cheio de esperança de vencer a estrada
e chegar aonde quer, para realizar o que estabeleceu como referência para a vida dele como
um todo. Essa viagem pode ser feita com os pés, na areia e no barro, e pode ser feita com a
mente para uma galáxia qualquer. Como você vai chegar onde quer é uma coisa que depende
de seus recursos. Eu, por exemplo, viajo muito mais fácil com a mente, mas já viajei para
vários lugares, Normalmente, nunca estabeleço um destino prévio. É sempre alguém que me
pede ou oferece alguma coisa. A motivação é sempre o amor, eu vou para fazer aquela pessoa
contente. O jeito que chego até lá não tem a menor importância. É o que estiver mais simples,
dependendo da urgência, as circunstâncias da vida.

JL- A sua arte é sacra, mas ela tem muito de místico, como nessa exposição da releitura
do tarô. Como é isso?
Minha intenção com essa exposição é que sinto no mundo, mas, sobretudo, na comunidade de
Ibiporã, que nos desligamos da arte. A arte agora virou mercadoria, está nas galerias, está no
mundo. O pessoal dá um sentido à arte pelo preço que ela tem. Essa exposição é uma
brincadeira que vou fazer com os 22 arcanos maiores do tarô, que é fruto de uma cultura
popular de muita profundidade. Vamos por um capuz na pessoa e ela vai tatear, no escuro, no
meio dos 22 prismas. Quando você entra, faz uma pergunta, o que quer saber, mesmo
esquema do tarô. Vai ter uma taróloga, pelo menos uma vez por semana, que vai guiar esse
pessoal e ele vai tocar em sete cartas, sem ver. Depois, a taróloga vai se sentar à mesa com
essa pessoa, individualmente, e fazer a leitura para responder a pergunta dela.
Quando você está tocando, entra em contato direto com a arte. Hoje você entra no museu e
não pode chegar perto de uma obra de arte, pelo menos as mais famosas, no mundo todo. Isso
a título de proteção, eles falam. Quando você toca, a sua mão tem suor e tem ácidos, gordura,
aí fica no quadro ou na escultura. Até aí eu aceito, só que isso afastou o pessoal. Porque o
homem tem necessidade de tocar. Se o homem, para crescer enquanto ser humano, precisa
tocar, por que não? Tateando, no escuro, como cego que vai em direção à beleza, à harmonia,
à justiça, ao amor. E vai fazer isso pelo puro prazer, pelo mistério de descobrir aquilo que
perguntou. Mas ela vai se perder nessa busca, porque são sete cartas. É uma fantasia da
minha cabeça, para ver se a gente melhora, porque eu me preocupo muito com a comunidade
e com as crianças, sobretudo. Estou louco para ver uma criança de capuz fazer a pergunta
dela, não interessa qual seja. Vou pôr a taróloga no maior enguiço, porque, quando você pega
um adulto, tudo bem. Mas você pega uma criança de sete anos... Por exemplo, semana
passada, chegaram três crianças aqui, três irmãos – duas meninas e um molequinho. Aí
chegaram no portão: ‘Ô Henrique, a gente pode ver as obras?’. Eu digo: ‘Claro, não pode,
deve. É tua, eu só guardo’. Aí eles: ‘É verdade que você tem um pé de chocolate aí na sua
casa?’. Como é que eu vou explicar isso para as crianças lá no portão? ‘Amor, não é bem um
pé de chocolate, é um pé de cacau. Aí tem que tirar a semente...’. Comecei a explicar o
processo de chegar do cacau ao chocolate. Aí o menorzinho perguntou: ‘Tio, é sonho de
valsa?’ (risos) Aí acabei levando os três para ver o cacau. E eles saíram assim: ‘Ah!’ E
perguntaram: ‘Nóis pode voltar amanhã?’.

JL- No que o senhor está trabalhando agora?


Eu acabei duas esculturas pequenas e estou fazendo uma ave mítica, que ainda não sei o que
é. Estou fazendo como se a ave estivesse começando levantar o voo a partir do movimento de
toda a matéria que ela está sendo feita. Então os pés vão estar aqui e, ao mesmo tempo, não.

JL- O senhor falou um pouco do preço da arte. O senhor vive da sua arte? Qual o preço
dela?
Vivo, sim. O preço dela é minha vida. Mas o que me pagam, tem uma cotação do meu trabalho,
ao menos aqui no Brasil. Mas estou sobrevivendo. Estou reformando a casa e tenho que pedir
uma mão para os amigos. Eu procuro deixar a comunidade responsável por isso aqui. Para
mim, tem três palavras que integram minha relação com a arte e com a comunidade: beleza,
harmonia e justiça. Eu acho que deveria ser financiada pelos ricos e colocada na mão dos
pobres. Por isso a cidade é cheia de escultura por todos os lados, para a molecada chegar.
Senão, para que serve?

Cristo Libertador: UEL doa escultura à Fundação


Henrique Aragão
A administração da UEL formalizou nesta segunda-feira (21) a doação da escultura “Cristo
Libertador” à Fundação Henrique Aragão da cidade de Ibiporã. A obra confeccionada em latão
e aço inox será definitivamente incorporada ao acervo do autor da escultura, o artista plástico
Henrique Aragão.

A escultura de quatro metros de altura e um sol ao redor da cabeça foi doada à UEL na década
de 1980 e permaneceu na rotatória do CCH durante anos. O artista plástico ressaltou que a
obra é a forma mais explícita da criação e se declarou um apaixonado pela beleza do corpo
humano. “O Cristo Libertador foi inspirado a partir da teologia da libertação, pois Deus está em
cada um de nós plenamente”, declarou. Henrique Aragão é conhecido internacionalmente. Ele
reside em Ibiporã há 43 anos e possui centenas de obras instaladas em igrejas e espaços
públicos do Norte do Paraná.

A reitora em exercício, Berenice Quinzani Jordão, destacou que a obra terá um valor
inestimável para o patrimônio cultural de Ibiporã. “Será uma obra mais apreciada e valorizada,
pois nesta nova condição a escultura terá o espaço que merece ter, ocupando lugar de
destaque na região”, disse.

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