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Teatro das origens

Estudos das performances


afro-ameríndias
Zeca Ligiéro

Teatro das origens


Estudos das performances
afro-ameríndias
Copyright © 2019, Zeca Ligiéro

Direitos cedidos para esta edição à


Editora Garamond Ltda.
Caixa Postal: 40.854 | Cep: 20261-970
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel: (21) 2504-9211
editora@garamond.com.br

Revisão
Alberto Almeida

Editoração Eletrônica
Estúdio Garamond

Capa
Estúdio Garamond
Foto da capa: Detalhe da porta de entrada do Templo
das Pítons, Uidá, República de Benin. Foto de Zeca Ligiéro, 2011.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L691t
Ligiéro, Zeca
Teatro das origens : estudo das performances afro-ameríndias / Zeca
Ligiéro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Garamond, 2019.
296 p. : il. ; 21 cm.

Inclui bibliografia
ISBN 9788576174806
1. Teatro - História. 2. Representação teatral. I. Título.
19-58321 CDD: 792.028
CDU: 792.028

Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qual-


quer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.
À tribo do NEPAA, sem a qual este livro não existiria.
Aos pajés Richard Schechner, Amir Haddad e Robert
Farris Thompson que me ensinaram a criar pontes
entre a arte e o conhecimento.

Ritual de Zione, praia na periferia de Maputo, Moçambique. Foto de Zeca Ligiéro, 2012.
Agradecimentos

À Faperj, pelo apoio durante todo o processo da pesquisa sem o qual não
poderia realizar as inúmeras viagens que foram fundamentais para o desen-
volvimento deste livro, especialmente a bolsa Cientista do Nosso Estado;
À Capes, pelo apoio recebido durante o desenvolvimento da pesquisa
em Paris com a bolsa Capes/Cofecub;
Ao Museu Quai Branly, em Paris, pelas possibilidades de acesso ao seu
precioso material;
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e ao Departamento de
Direção da Escola de Teatro da UNIRIO;
Ao International Theatre Institute que por meio de convites para partici-
pação de congressos e encontros em Seul (Coreia) Xiaman (China) e Baku
(Azerbaijão), permitiu um outro olhar sobre as artes cênicas do continente
asiático;
Ao Instituto Hemisférico de Performance e Política, Nova York, pelo
apoio recebido durante todo o processo;
Ao Prof. Dr. Jacques Poulain, da Université Paris VIII, meu orientador
durante o estágio Pós-Doutoramento nessa universidade;
Ao Prof. Dr. Richard Schechner, pela permanente abertura para discutir
as minhas dúvidas;
Aos meus queridos orientandos de curso doutorado da UNIRIO, por
compartilharem integralmente suas pesquisas e me permitirem sempre um
renovado olhar sobre os processos das performances culturais e artísticas;
À Profa. Dra. Aressa Egly Rios, pela sua revisão cuidadosa com sugestões
preciosas. Sou grato também ao Prof. Dr. Cláudio Alberto Santos, pela sua
preciosa revisão e sugestões. E à Profa. Dra. Jussara Trindade, também por
sua participação na edição deste livro;
À Profa. Dinah Guimaraens Pappi e ao Prof. Guilherme Werlang, com-
panheiros do projeto Capes/Cofecub;
À Profa. Dra. Juliana Manhães, que comigo compartilhou sua investi-
gação em Moçambique;
À Profa. Dra. Denise Zenicola, preciosa conselheira em meus caminhos
artísticos e acadêmicos;
Ao Prof. Dr. Oswald Barroso e ao Prof. Dr. Licko Turle, que trabalharam
comigo em estágios de pós-doutoramento ;
Sou grato também à Profa. Maria Bernadette Ramos Flores, por propiciar
um olhar sobre as performances e o patrimônio histórico;
Agradecimento especial àqueles que me abriram caminho nos diversos
países em que pesquisei: a Teté Kitissou, Lucién Ekoé Ayl, no Togo; ao Prof.
Dr. Nataniel Ngomane; que abriu as portas da ECA de Maputo, Moçambi-
que; ao Prof. Paulo Raposo, da Escola Superior de Teatro e Cinema Lisboa;
Aos fotógrafos e amigos: Dani Leriche e Jean Michel Fickenger e ao ar-
tista William Wilson, de Paris; ao Prof. Dr. José Assad, da Universidad José
Caldas de Bogotá, Colômbia; a Fábio Toletti, de Lecce, Itália;
Ao grupo Sotz’il Jay e ao seu diretor artístico Gilberto Guarcax Gonzáles,
e a Ana Rosa Orozco, da Guatemala;
Ao CTO Rio, especialmente a Claudia Simone, pelo convite para par-
ticipar com eles da comitiva brasileira ao III Festival de Artes do Senegal,
em 2010;
Sou grato aos amigos e colaboradores de Belém: Miguel Santa Brígida,
Karine Jansen, Cláudio Didimano, Luiza Braga e Michele Campos de Mi-
randa;
Aos sacerdotes e sacerdotisas que iluminaram minha pesquisa com sua
sabedoria: Mãe Beata de Iemanjá, Adailton Moreira Costa, Mãe Rita de
Belém e Oswaldo dos Santos;
Ao pajé Sapaim Kamaiurá e ao brincante khraô, Ismael Aprak, o hotxuá,
pelas novas perspectivas de estudos sobre a tradição ameríndia abertas du-
rante o processo da escrita deste livro, ainda que não sejam especificamente
objetos de estudo do mesmo;
Aos fotógrafos: Igor Keller, Flávia Fafiã, Roni Walk, Michele Campos de
Miranda, Yara Ligiéro, Tatiana Damasceno, Juliana Manhães, sou grato por
terem cedido gentilmente seus respectivos trabalhos.
Eu trabalho como hotxuá mesmo. É uma coisa diferente,
fora da brincadeira do palhaço do branco. Então é isso.
Meu tio era palhaço sagrado dos khraô (aprendeu com o
tio dele), e vem vindo, e aí passou para mim d’eu brincar
também igual que eles estavam brincando. Na lei do índio
eles vão brincar só na hora da corrida da tora (da festa)
das batatas. Mas aqui eu já brinquei fora, fora. E eu já
tenho o neto, que já tá um rapaz, e ele brinca comigo. A
brincadeira do hotxuá se chama meocrunjé.

Ismael Aprac, Hotxuá, o palhaço sagrado khraô. Entrevista


com Zeca Ligiéro, 2015, Aldeia Multicultural, Goiás.

Dança dos Kariri-Xocó, Aldeia Multiétnica. Foto de Chico Rota, 2016.


Sumário

Prefácio.....................................................................................13

Introdução................................................................................21

Características e qualidades do Teatro das Origens............35

Teatro ameríndio ancestral: performance, ritual e


festa em narrativas pré-colombianas.....................................91

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes


da Turquia: Diferenças por constrastes – jogo, ritual
e espetacularização................................................................129

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique):


teatro de divindades que brincam com a
violência humana...................................................................165

Motrizes Culturais: Do ritual à cena contemporânea a


partir do estudo de duas performances: Sotzil Jay
(Maia, da Guatemala) e Danbala Wedo
(Afro-Brasileira, do Benin, Nigéria e Togo).......................195

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem


do principio ao fim................................................................233

Posfácio...................................................................................289
Prefácio
José Assad Cuéllar1

Conheci o Zeca antes de conhecê-lo.


Em 1995, meu pai me deu um livro que havia encontrado em uma
reconhecida editora e livraria de Bogotá, cujo título em espanhol
era: Iniciación al Candomblé, escrito por um tal de José Luís Ligiéro
Coelho.
Longe de imaginar, até então, que nos anos seguintes, mais exa-
tamente em 1991, eu conheceria pessoalmente o autor daquele texto
que, sem saber de suas andanças pelos territórios impudicos do tea-
tro, me levaria a associar os assuntos do Candomblé com idiomas e
estruturas típicas da teatralidade em aspectos ligados à dramaturgia,
atuação e encenação.
Essa associação entre ritual e teatralidade tornou-se, posterior-
mente, um dos marcos de referência para desenvolver o objeto de uma
pesquisa que iniciei com um laboratório de pesquisas na Faculdade
de Artes de Bogotá – ASAB, da Universidade Distrital Francisco José
de Caldas, Bogotá: “O treinamento como prática criativa”.
Esta passagem anedótica é para estabelecer a série de “coincidên-
cias” que levaram ao encontro pessoal entre Zeca Ligiéro e o acima
mencionado, e sobre a publicação deste livro do qual, sem dúvida
alguma, os leitores farão bom proveito porque é um trabalho bem
documentado, honesto e extenso que resume um projeto de pesquisa
e de vida em si, tanto na ordem racional-cognitiva, como no lugar

1 Encenador, dramaturgo e professor da Universidad Distrital de Bogotá, Colômbia.

Prefácio | 13
do sensível-criativo, porque seu autor soube vivenciar suas reflexões
teóricas a partir de uma prática irrenunciável, porque ele é acima de
tudo um homem de vocação teatral inconfundível.
Dramaturgo, diretor, ator que investiga o teatro a partir do próprio
teatro e, acima de tudo, obstinado em seus propósitos como ninguém.
Ele tem lutado contra a corrente para abrir caminhos na academia
que possibilitem a inclusão de conhecimentos, técnicas e saberes
ancestrais das culturas afro-ameríndias no processo de formação de
atores e dançarinos.
Este propósito também o levou a fundar o Núcleo de Estudos das
Performances Afro-Ameríndias – NEPAA, dentro da UNIRIO. Berço
de pesquisadores que desenvolveram sua formação de pós-gradua-
ção dentro das diretrizes de pesquisa deste centro que conquistou
seu espaço, apesar da resistência em terceira pessoa da marca do
eurocentrismo.
Mas voltando às origens desta relação, confesso que o autor daque-
le livro já provocava em um leitor desavisado, ligado ao ofício teatral
– que era o meu caso –, a possibilidade de conectar conteúdos do
âmbito dos mitos, das práticas religiosas e suas ritualizações com as
formas adequadas de teatro, revivendo assim a utopia ou pelo menos
o desejo de restabelecer a conexão entre mito, ritual e dramatização.
Aspectos estes tratados no livro que ora apresento à consideração
dos leitores.
Anos depois, conheci pessoalmente Zeca Ligiéro, através de Licko
Turle, que veio para a Colômbia como assistente do grande encena-
dor/professor Amir Haddad, para um projeto de formação destinado
a diretores de escolas regionais de teatro. Amir Haddad é outro ponto
em comum com Zeca porque ele, em seus primórdios, na década de
1970, recebeu influências de Haddad no projeto Grupo Niterói. Licko
Turle sugeriu Zeca Ligiéro como a pessoa ideal para dirigir um dos
trabalhos do curso de aprofundamento em atuação. Naquela época
eu estava atuando como coordenador do programa de teatro da Fa-
culdade de Artes de Bogotá – ASAB. Nessa estada, Zeca montou com

14 | TEATRO DAS ORIGENS


sucesso Notícias das Coisas Passadas, espetáculo baseado em textos
de Augusto Boal, entre outras fontes dramatúrgicas. A estética e o
conteúdo dessa montagem me deram a primeira luz de sua pesquisa.
Desde então, pude perceber seu interesse em desenvolver um pro-
cesso de pesquisa que explorasse as qualidades do teatro a partir de
uma perspectiva ampliada, capaz de conectar a visão contemporânea
da performance com as formas e conteúdos ancestrais presentes no
imaginário e nas manifestações culturais populares.
Essa ideia de atemporalidade passa a ser elucidada ao longo dos
capítulos deste trabalho ao reestabelecer o fio condutor entre o mito,
o rito e a dramatização ou teatralidade. Uma relação, a meu ver, di-
luída através dos séculos pela concepção epistêmica que a partir do
pensamento europeu purificou, para não dizer esterilizou, o teatro
de influências do mito e ritual, em prol de sua autonomia como uma
linguagem estrita e supostamente “artística”.
Por outro lado, deve-se reconhecer que não foram poucas as tenta-
tivas, através dos movimentos de vanguarda e celebridades do teatro
ocidental, de devolver à arte milenar seu lugar e preponderância na
vida da sociedade. Em outras palavras, reviver essa qualidade mágica
e poderosa do teatro como acontecimento vital em um espaço de
convivência onde o indivíduo busca uma experiência coletiva, através
da representação do mito, seu reencontro na origem compartilhada.
Tanto Calderón de la Barca, como Brecht, ou Grotowski, ou Barba,
Artaud e tantos outros indivíduos, movimentos e vanguardas focaram
suas expectativas na busca do elo perdido que permitiria ao teatro re-
cuperar sua relevância preeminente no conjunto das práticas sociais.
No entanto, e sem desconsiderar essas tentativas, a valiosa contribuição
do autor deste livro é reconhecer essas formas primevas e essenciais do
Teatro das Origens nas manifestações “vivas” das culturas marginaliza-
das pelo discurso hegemônico, elaborado a partir de uma concepção
que canoniza práticas teatrais dentro de uma perspectiva unívoca.
Este cânone exclui claramente os limites na definição do que pode
ser concebido como teatro. Aristóteles define este primeiro cânone

Prefácio | 15
em A Poética. A obra, do ponto de vista formal em uma consolida-
ção epistemológica, procura estabelecer os parâmetros estéticos do
teatro a partir da leitura de seu contexto histórico, ou seja, fazendo
referência à época de ouro do teatro grego, que foi assumida pela
cultura ocidental não só como o modelo de teatro no Ocidente, mas
como o paradigma universal do teatro propriamente dito.
Contudo, por outro lado, Zeca propõe nesta investigação um olhar
que relativiza qualquer definição absolutista de teatro, e até omite o
julgamento dos neodescobridores do teatro que refletem sobre as
ligações deste com o rito e, portanto, com o mito.
Dessa maneira, nosso autor formula uma hipótese perturbadora
na qual estabelece a existência, ou melhor, a subsistência desse teatro
primevo no aqui e agora, o qual não é invisível como consequência
de sua extinção, mas pelo filtro canônico das estéticas dominantes
imersas no ethos da cultura ocidental que obscurece, apesar de sua
materialidade, sua presença diante do nosso olhar limitado.
De tal forma que o que estaria em questão segundo este ponto
de vista é a possibilidade de questionar a definição de teatralidade, a
partir de uma definição dada, para vislumbrar com grande clareza a
ausência do Teatro das Origens. De modo que a perda dessa arte no
seu papel de protagonista na vida das pessoas nada mais é do que um
sofisma construído a partir da concepção excludente que não reco-
nhece, nas manifestações ancestrais praticadas a partir da margina-
lidade, valores cognitivos, estéticos e sábios modelos de subsistência.
Para tornar evidente esta afirmação, não devemos ir às prateleiras
de historiadores, antropólogos e profetas do teatro, mas observá-la
e vivenciá-la em um exercício de participação de forma direta no
espectro variado de suas múltiplas expressões em todo o mundo.
Seja nas festas populares, carnavais, rituais sociais e religiosos, e em
tantas outras expressões performáticas que, simultaneamente, em
culturas separadas pela geografia, compartilham manifestações tão
diferentes quanto semelhantes e que nada mais são do que aquilo que
autor identifica como o Teatro das Origens.

16 | TEATRO DAS ORIGENS


Não é necessário escrutinar o passado, mas abrir o olhar sem
preconceitos para a autêntica teatralidade que nos oferece o presente
nos espaços rejeitados a partir da visão “intelectual” dominante dos
estudos teatrais. Porque essas manifestações vitais e perenes subsistem
na periferia social. Este é o grande palco do Outro Teatro.
Não é possível, portanto, pretender, a partir do lugar da hegemo-
nia, a descoberta do elo perdido desse teatro porque sua busca dá um
salto do presente para o passado, pulando sobre suas manifestações
que, a partir da marginalidade do tempo presente, têm constituído
seu espaço para a sobrevivência, tal como os próprios seres humanos
que integram essas culturas à sombra das preocupações e percepções
dos poderosos.
Somente modificando o ângulo do nosso olhar se pode vê-las
emergir naqueles lugares e momentos em que sempre viveram. A
queda do véu colonial revela a rica e deslumbrante diáspora de mi-
lhares de manifestações que não eram reconhecidas como teatrais
pelo simples fato de não se enquadrarem numa definição de produto
de uma espécie de pré-consumo cultural.
O Teatro das Origens está aqui. Em qualquer lugar e hora. Por
exemplo, na noite, durante a VI Mostra Latino-Americana de Teatro
de Grupo de São Paulo, em 2011, em que compartilhamos com Zeca
uma obra que mostrou essa conexão entre o presente e o passado. Eu
falo do grupo Sotz’il, da Guatemala, com a apresentação do espetáculo
“Oxlajuj B’aqtun”.
E este teatro, tal como é documentado pelo autor, é uma mani-
festação eternamente recorrente e simultânea. É o que ele nos faz ver
quando descreve os rituais das divindades negras do Togo, bem como
os carnavais indígenas dos Andes, ou os dervixes da Turquia, ou ainda
os rituais da Umbanda e do Candomblé, e, claro, as performances dos
povos indígenas, negros e mestiços que entrelaçam uma infinidade
de expressões teatrais.
Em todas estas manifestações há um traço comum, que é o parti-
cipação do sujeito individual em sua dimensão coletiva, recompondo

Prefácio | 17
o tenso equilíbrio entre indivíduo e sociedade. Esta espécie de catarse
só é possível quando a teatralidade se corresponde à essência do mito
nas práticas do Teatro das Origens
Mas esta posição crítica proposta pelo autor em relação ao olhar
hegemônico não questiona a validade do teatro ocidental em si: ao
contrário, valida seu discurso epistêmico e apenas relativiza sua
influência frente a outras formas e outras práticas culturais que não
pretendem “gravitar em torno de...”, mas subsistem como “motrizes
culturais” – termo cunhado pelo autor – em uma dimensão atem-
poral e atópica.
Este contraste com um discurso que aborda os limites da teatrali-
dade do paradigma concêntrico, instala a noção do teatro ocidental
como uma tentativa absolutista que impossibilita imprimir-lhe a
qualidade de “essencial”, que é a que o teatro deve comportar para
se reencontrar com o mito, e, através do ritual, com seu papel fun-
damental na vida comunitária. Esse teatro que procura sobreviver
através da ilusão do entretenimento algum dia se reencontrará com o
caminho que o conduzirá a também fazer parte do Teatro das Origens
que vai recebê-lo, paradoxalmente, a partir dos territórios marginais
da sociedade e não ao contrário.
Cantar, dançar, batucar e contar são sinais inconfundíveis para
reconhecer a teatralidade por uma perspectiva mais ampla. Sem
temer, com um olhar mais democrático, uso o termo proposto por
Zeca Ligiéro que aponta para esse Outro Teatro que, paradoxalmente,
é o Teatro das Origens, aquele que habita e se expressa no eterno pre-
sente. De forma que essas expressões primordiais foram mantidas e
transformadas, sem perder o ponto de encontro com o mito mediante
o ritual e a teatralidade, como aprofunda o autor ao longo deste livro.
Essa necessária descolonização traz à luz as fontes perdidas do
teatro que sempre estiveram presentes no cotidiano, nas práticas
sociais das culturas invisíveis. Nisto reside a importância deste livro
que fará parte do acervo bibliográfico para reorientar os referentes
do teatro com a introdução de um olhar renovador que nos convida

18 | TEATRO DAS ORIGENS


a refletir sobre a sincronia do universo em contraposição com uma
leitura linear dos acontecimentos.
Essa visão de mundo é nutrida pela concepção espaço-temporal
que as culturas ancestrais aplicam na dinâmica de sua vida cotidiana,
privilegiando o círculo como expressão simbólica de espaço, tempo
e relações sociais. Esse Outro Teatro, em um paradoxo esclarecedor,
é realmente esse Teatro das Origens.
O autor também se aprofunda na perspectiva junguiana, no
conceito de arquétipo, introduzindo o teatro como conteúdo desse
campo, constituindo portanto uma expressão universal comum a
todas as culturas e não um modelo irradiado de uma civilização su-
perior. Como arquétipo e como conteúdo do inconsciente coletivo,
não poderia, então, desaparecer misteriosamente, talvez perder-se
momentaneamente, a partir da observação óbvia de uma perspectiva
determinada e determinista.
Zeca Ligiéro, homem de teatro, professor, pesquisador, também
nutre a reflexão sobre a prática teatral com suas propostas, que a
partir da narração se entrelaçam com os recursos da dança, música,
canto e história delineando uma dramaturgia que reúne a perspectiva
de suas reflexões e investigações. Assim, pensa e procura aprender
teatro a partir da prática de seu próprio teatro.
Como exemplo dessa teatralidade original temos: “O Evangelho
Segundo Dona Zefa”, “Sociedade Secreta dos Palhaços Sagrados
Sucupira e Dona Mariana”, “A Princesa Turca da Amazônia”, entre
outras dramaturgias, que dão testemunho dessa pesquisa que incor-
pora uma concepção que se aprofunda neste livro constituindo um
sugestivo convite para que pesquisadores e artistas considerem essa
nova abordagem que nos impulsiona a reconsiderar a noção de teatro
no mundo de hoje.
O Teatro das Origens é, também, o teatro do presente e do futuro.

Tradução: José Dantas Martins

Prefácio | 19
Introdução

Ao escolher a palavra “origem” para definir algo, sei que estou corren-
do o serio risco de ser interpretado como um messiânico querendo
retomar um conceito tão gasto e exaurido pelo seu emprego em ser-
mões, ou pelas explicações científicas bombásticas que pretendiam
contrariar todas as teorias previamente concebidas como donas da
verdade sobre o começo de alguma coisa. Vou pedir um pouco de
paciência para retomar a palavra “origem” e dar-lhe uma abordagem
específica ligada ao mundo da encenação. Longe de mim propor
estudar a origem do teatro.
Tomo a palavra “origem” como uma garrafa de vidro ou de pet
que sobreviveu a tantas batalhas, passou por tanto processos e tantas
mãos que, mesmo lanhada, ainda guarda intacta o seu formato origi-
nal, objeto completo, um todo, mantendo uma configuração definida
enquanto “recipiente”. Feita para transportar líquidos, seu fim, pelo
menos nos trópicos, lixo do mundo, é terminar quase sempre no
mar boiando, no caso do plástico, e igualmente no caso do vidro, se
estiver cheio de ar.
Estarei falando e propondo o estudo de uma variedade de origens
que poderia, cada uma delas, caber dentro dessa pequena fragata
de plástico ou vidro. Não pretendo enaltecer esta ou aquela origem,
mas perceber a precariedade do mundo, em que sempre as origens
de uns parecem ser suficientes para massacrar as origens de outros,
e a própria palavra “origem” é deslocada para outros contextos a fim
de atender propósitos de confinamento e afirmação de uma verdade
exclusiva para comprovar a superioridade de uma sobre as demais.

Introdução | 21
Neste livro, quero demonstrar a possibilidade de entender proces-
sos mágicos de vários grupos e pessoas que se apropriam de origens
como suas, ou inventam suas próprias origens para de alguma maneira
viverem melhor neste mundo de deus me livre. Muitas delas viraram
tradições milenares...
No sentido psicológico, ou mesmo ontológico, o ser parece en-
tender a sua origem de maneiras diferentes ao longo de sua vida. A
menos que seja catequizado, desde muito jovem, por uma religião
que lhe forneça prontas todas as explicações para aceitação, sem
nenhum questionamento.
Embora não pretenda generalizar, estou propondo uma forma
de pensar a origem como uma espécie de processo de encontros e
de autoconhecimento. Creio que, embora com poucos dados mais
concretos para convencer o leitor sobre a minha tese, procuro o enten-
dimento da importância das tradições orais, no caso afro-ameríndias,
ao oferecer a experiência do sensível em toda a sua plenitude. E a
partir dela, procurar entender processos de criação ainda ligados a
estas cosmovisões mesmo que eventualmente sejam também conta-
minados por processos híbridos de criação artística contemporânea.
Longe de mim querer tratar o Teatro das Origens como a busca de
uma pureza na restauração de comportamentos ancestrais.
Ao desmontar toda a parafernália das estruturas racionais de expli-
cação sobre o divino e alinhar o ser para sua volta à natureza, tradições
africanas, afro-ameríndias e indígenas abrem a possibilidade para o ser
perceber-se a si próprio, por meio de seu corpo na intimidade do pró-
prio contato com o mundo natural. E descobrir aí a sua potencialidade
e repensar o seu destino: o que fomos, o que somos e o que poderemos
vir a ser. As religiões da natureza, na maioria dos casos, não impõem
à mente dos seus seguidores palavras e origens transmitidas por ou-
trem como únicas e verdadeiras, não apresentam descrição do céu e
do inferno e nem incutem uma moral sobre possíveis leis ditadas por
uma voz superior dita divina. A palavra continua soprada pelo vento,
os encantos da natureza se revelam por si se o ser tem a sensibilidade

22 | TEATRO DAS ORIGENS


para abraçar e conhecer a diversidade de formas presentes, desde o
testemunho das pedras sagradas – as bibliotecas ancestrais, à escritura
do canto das aves, à diversidade de plantas e animais silvestres que
desde tempos remotos têm revelado os próprios segredos da natureza
para que os seres vivam a sua jornada migrando sobre o planeta. Cabe
ao pajé, xamã, babalaô ou mago de cada tradição interpretar o oráculo
ou sonho revelador e, através dele, dar conhecimento dos problemas
que afetam os seres e as suas comunidades para em conjunto procurar
resolvê-los. Não existe uma única origem, existe a minha origem, a sua
origem, e a origem como abstração e imaginação, como uma garrafa
vazia capaz de flutuar sobre as águas aguardando ser preenchida.
As tradições religiosas da natureza também possuem seus mitos,
suas histórias exemplares que são contadas, cantadas, dançadas, en-
cenadas, e assim relembradas, e de alguma forma encerram e trazem
aportes e experiências milenares que podem ajudar e melhor conhecer
os caminhos tortuosos do conhecimento do visível e do invisível. No
momento em que se pensa apenas quanto custa o metro quadrado de
onde está plantada uma árvore, este meu livro pode não servir nem
como combustível apesar do grande esforço utilizado na sua feitura.
A partir do momento em que observamos como os mitos (histórias
exemplares) são encenados em comunidades distintas, observamos
a ocorrência de algo extremamente significante: nos aproximamos
do que estou descrevendo como o Teatro das Origens. Não estou me
ocupando em descrever e observar sociedades isoladas e desgarradas
do convívio social do Ocidente, embora inclua aqui a análise de alguns
grupos indígenas tradicionais da América e da África, mas já em contato
com os não indígenas há muito tempo. Mas me refiro principalmente
aos grupos que reverenciam as forças da natureza onde acreditam
estar presente o sagrado. Então, nessas representações míticas vamos
observar uma encenação que na maioria dos casos foi reelaborada ao
longo de muito tempo (décadas? séculos? como saber?).
Trago estas questões, simples a meu ver, dou esta enorme volta
para reafirmar mais uma vez que uma origem possível do teatro

Introdução | 23
não é na Grécia, mas no próprio Teatro das Origens, que acontece
e aconteceu em vários lugares, do presente, do passado e, provavel-
mente, continuará acontecendo no futuro. Da mesma forma como
aconteceu lindamente na Grécia, a mitologia se tornou encenação e
esta se tornou por sua vez teatro, cuja tradição, infelizmente, é uma
das únicas que conhecemos a fundo e equivocadamente foi laureada
como a origem de todas as outras expressões cênicas do mundo.

Casa de Vodun em Aneho, Togo, representação do vodun Gbede. Foto Zeca Ligiéro, 2011.

Ao longo da minha investigação sobre religiões e práticas perfor-


mativas em uma diversidade de culturas, em distintos continentes,
fui percebendo traços comuns em suas encenações de mitos e his-
tórias ancestrais. Suas cosmogonias, embora sem parentesco entre
si, e muitas vezes com procedências desaparecidas na bruma dos
tempos, pareciam estar ainda mais vivas e reconfiguradas em diás-
poras nas várias regiões das Américas, quando rituais são encenados
peremptoriamente em calendários previamente conhecidos. Este
livro é portanto uma tentativa de analisar este tipo de encenação
que estou chamando de Teatro das Origens. Na medida em que
desloco o estudo do ritual para a esfera do estudo da cena, me con-
centro principalmente no ritual público, onde se procura envolver

24 | TEATRO DAS ORIGENS


o espectador mediante sua espetacularidade, com ele compartilhar
crenças, fantasias, jogos, verdades, e juntos alcançarem algum tipo
de “transportações e transformações”, como indica Richard Sche-
chner (2012, p.70-72).1
Longe do mundo da indústria cultural e do entretimento das
grandes cidades, o Teatro das Origens aparece revigorado no mun-
do das celebrações e festas religiosas, como é o caso das tradições
africanas e afro-brasileiras, ou em rituais cíclicos ou processos ritua-
lísticos ameríndios, como o Karup no Parque do Xingu ou entre os
kaiapó do Pará. O Teatro das Origens emerge em comunidades que
resistiram ao processo colonial e ainda experimentam as constantes
pressões econômicas e religiosas (cristãs, na maioria dos casos) e
as sucessivas invasões territoriais locais. Não custa acrescentar que
grande parte das dificuldades em manter as tradições se deve ao fato
de essas comunidades afro e ameríndias pertencerem à grande base
pobre e miserável dessa pirâmide social em luta pela posse legal de
suas terras, demarcações, êxodos, grilagem etc.

Grupo Sotz’l Jay, ritual e teatro sagrado maia na UNIRIO. Foto Zeca Ligiéro, 2011.

1 SCHECHNER, Richard. “Ritual”. In: Performance e Antropologia de Richard Schechner, Org. de Zeca
Ligiéro, Mauad X, 2012.

Introdução | 25
Podemos perceber aspectos de resistência cultural, mas também
como uma arena de afirmação de identidades, preservação da me-
mória e luta para manter os princípios ancestrais. Procura-se aqui
então entender o teatro como o desdobramento do próprio ritual, que
para exercer a sua plena eficácia por meio da encenação se estabelece
como uma prática de teatro completa em si, e não apenas em partes
como “dramatização”, “brinquedo popular”, “dança dramática” ou
“elementos cênicos ilustrativos”. Trata-se de um ritual construído para
ser um teatro que manipula uma mitologia específica, distribui falas,
marcas, estabelece uma narrativa, inventa personagens, se transforma
em coro, utiliza a música, a dança, a percussão, cenário e figurino
de forma articulada e consistente. Tem uma função religiosa mas é
realizado com todos os elementos que caracterizam o teatro como
entretimento, em muitos casos com requintada elaboração de técnicas
teatrais, e logra grande comunicação com seu público, não apenas
no sentido de comunhão da mesma fé, mas que também faz parte de
um tempo de lazer. Não pretendemos afirmar que todo ritual é teatro
e que entidades manifestadas são personagens. Isto seria banalizar
algo tão extraordinário e tão intrigante e complexo.
O conceito de Teatro das Origens surgiu durante o projeto de
estudo “Outro Teatro: do ritual à performance”2, no qual procurava
estudar em bloco o que seria o teatro não eurocêntrico, e em seu
desdobramento passei a observar e distinguir o teatro sagrado, reali-
zado por praticantes, daquele feito por artistas admiradores, embora
ambos procurassem trabalhar com as estéticas afro ou ameríndias. Eu
pretendia desta forma fechar mais o foco, e nasceu então o conceito
de Teatro de Origens – ao passo que a definição de “Outro Teatro”
engloba um leque amplo de expressões dramáticas tradicionais e
contemporâneas não originadas no continente europeu. O Teatro de
Origens, filosoficamente falando, requer uma abordagem específica, já
que somente o praticante (performer ou espectador) comprometido

2LIGIÉRO, Zeca. Outro Teatro: do ritual à performance, defendido como tese para professor titular na UNIRIO
em 2015; vencedor do edital da Faperj para publicação.

26 | TEATRO DAS ORIGENS


com os princípios fundantes da tradição em questão seria capaz de
melhor apreender sua cosmogonia para poder praticar integralmente
os seus processos de encenação. Verificamos ainda que, em muitos
casos, performers e encenadores não comprometidos com os rituais
têm se aproximado e apropriado de seus elementos e suas estéticas em
criações múltiplas, relacionando-as ainda com as grandes tradições
híbridas contemporâneas. Neste sentido, destacamos sobretudo o tra-
balho de encenadores como Jerzy Grotowski no Teatro das Fontes e no
Teatro como Veículo, e Eugenio Barba em seu Teatro Antropológico.
Resta frisar que neste livro não trataremos da incorporação de técni-
cas milenares ao trabalho do ator contemporâneo, nem estudaremos
tradições outras de encenação que foram trazidas para o Ocidente ou
descobertas nas Américas como propostas de novidade experimental.
Nosso foco é o Teatro das Origens enquanto processo criador pela
comunidade religiosa, e verificamos que se trata não necessariamente
de simples reprodução de uma estética antiga preservada, uma vez
que tem sido recriado de diversas formas em diversas comunidades,
como veremos a seguir, seguindo as tendências das tradições orais.

Africanos e ameríndios separados e misturados


Como elementos comuns das tradições africanas e ameríndias,
destacamos o cantar/dançar/batucar/contar trabalhados dentro de
uma dinâmica contínua, que tenho chamado de “motrizes culturais”
e são tratados aqui em outros artigos (LIGIÉRO: 2011)3. Embora esta
dinâmica seja o que mais chama a atenção, por evidenciar o corpo e a
relação do performer com o espaço em sua busca de melhor interagir
com o espectador de forma a “transportá-lo e a transformá-lo” (SCHE-
CHNER:1985)4, é importante também destacar também os elementos
visuais presentes na construção de figurinos, adereços, elementos ceno-

3 LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras, Ed. Garamond, 2011.
4 SCHECHNER, Richard. “Performers e espectadores transportados e transformados”, Between Theater & An-
thropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985, p. 117-150. Tradução: Selma Treviño, revista
Moringa, Artes do Espetáculo, v. 2, n.1 (2011) .

Introdução | 27
gráficos e decorativos na concepção do desenho cênico da performance.
Torna-se fundamental, também, entender as dinâmicas da performance
na sinergia, pois nada é concebido arbitrariamente, constituindo-se,
pois, uma relação concreta tanto como simbólica, já que a sua relação
com o cosmos se dá pela ação do corpo do performer no centro e no
entorno da roda ou organizado em performances processionais.
Podemos dizer que de dentro da eficácia do ritual emerge a ence-
nação; o jogo cênico é portanto um expediente para exemplificar com-
portamentos e presentificar antigas crenças, quase sempre incluindo o
transe, precedido de rituais secretos nos quais, no caso ameríndio, são
ingeridas feitas com plantas sagradas, incitando a contínua utilização do
cantar/dançar/batucar. Em muitos casos, as encenações contam a vida
de guerreiros míticos, de sacrifícios ancestrais e de triunfos decorrentes
da forte ligação com animais sagrados ou com as forças da natureza.
Coletivos de iniciados performam desenhos específicos no espaço,
corporificando arquétipos de uma cosmogonia anterior à própria vida
do performer. Em ações carregadas de simbolismo, catalisam forças
e mitos que pertencem não somente à lembrança dos vivos, como a
vivências anteriores de guerras, paixões, lutas exemplares não apenas
da comunidade a qual ele pertence, mas à própria ancestralidade do
seu povo. Assim, esta performance ancestral se complementa com
a vivência dos embates contra o colonialismo, a escravidão e outras
formas de opressão por que passaram ou passam os participantes.
Presenciei algumas destas encenações em vários países da África:
elas remontam a períodos muito anteriores ao que conhecemos no
Ocidente, sem contudo pretender ser históricas ou recreações de
épocas distantes. São feitas em comunidades isoladas, ou mesmo
dentro de grandes cidades como Lomé, Maputo, Dakar, para citar
algumas. Elas passam da situação de culto devocional para a situação
de execução de um determinado roteiro de encenação, que em muitos
casos, mesmo aberta às modificações individuais e locais, passam a
fazer parte de determinada tradição cênica. Elas se apresentam em
consonância com as coirmãs da diáspora americana classificadas

28 | TEATRO DAS ORIGENS


como afro-brasileiras, afro-latinas (em todos os países das diáspo-
ras africanas) e, por sua vez, dispõem de elementos comuns com as
performances ameríndias das quais me ocupo, principalmente das
desenvolvidas na Guatemala, pertencentes à grande tradição maia,
como o Rabinal Achí e a performance do grupo Sotz’il Jay.

Abertura do Festival de Divindades Negras, Togo. Foto Tatiana Damasceno, 2011.

Cortejo de delegações indígenas, Tunja, Colômbia. Foto Zeca Ligiéro, 2009.

Introdução | 29
Nascidos dentro do contexto do ritual, estes dramas litúrgicos
apresentam elementos do jogo cênico, disponibilizam tipos de repre-
sentação de divindades e ancestres, encenando episódios marcantes
das suas respectivas passagens pelo planeta, as lutas e conquistas junto
às suas comunidades em épocas remotas. Elas invocam suas forças
espirituais ou ainda demonstram o convívio com outras divindades
durante o seu percurso terrestre e sua permanente influência sobre
o destino das comunidades dos que estão vivos.
Não se pretende incluir neste estudo a tradição católica dos mis-
térios, milagres e moralidades medievais que, por sua vez, poderiam
também ser analisados como Teatro das Origens, já que tradicional-
mente este teatro foi concebido a partir das mitologias cristãs e seus
princípios fundantes. Este não é o foco do presente trabalho. E pelo
fato de este Teatro pertencer igualmente à categoria de um teatro
catequizador, organizado em consonância com o poder e performado
com características colonizadoras, se coloca em posição oposta aos
grupos oprimidos que são tratados aqui. A surpresa de encontrar as
danças dos dervixes na Turquia abriu uma perspectiva nova para en-
tender a arte devocional dos Sufi dentro dos confinamentos das regras
do Islã. E fiquei absolutamente fascinado por essa junção de ritual/
performance/teatro das origens, como será analisado posteriormente.

Apresentação pública do ritual dos dervixes, Istambul. Foto de Zeca Ligiéro, 2012.

30 | TEATRO DAS ORIGENS


Vamos nos concentrar em algumas performances específicas;
devemos ressaltar, portanto, cada performance ou ritual que enqua-
dramos na categoria de Teatro da Origens como um objeto único, já
que ocorre em diversas lugares, e cada cultura, como constatou Boas,
... pode ser entendida unicamente como como produto histórico
determinado pelo ambiente social e geográfico em que cada povo foi
colocado, e pela maneira como desenvolve o material cultural que
chega a seu poder como contribuição exterior ou como fruto de sua
própria faculdade criadora. (BOAS, 2015:11)5

Entretanto, o próprio Boas, em seu trabalho pioneiro no campo


da Antropologia, aponta também para uma outra possibilidade ao
constatar que condições dinâmicas, baseadas em distintos fatores,
podem produzir processos culturais semelhantes em diferentes partes
do mundo, e desta maneira os acontecimentos históricos possam
ser percebidos segundo pontos de vistas mais dinâmicos. Ele alerta
sobre as dificuldades de estudos culturais baseados na geografia e em
dados históricos, mas mesmo assim nos fornece possibilidades de
entender alguns fenômenos que procuro analisar aqui e que aconte-
cem em distintos lugares utilizando estruturas e gramaticas cênicas,
procurando descobrir suas escolhas na construção da cena e a partir
daí comprovar a minha tese da existência do Teatro de Origens em
uma diversidade de comunidades, mas mantendo vários pontos em
comum como veremos a seguir.

A disposição dos capítulos


No primeiro artigo, “Características e qualidades do Teatro das
Origens”, examino os elementos que constituem o Teatro das Ori-
gens, destacando suas características principais e exemplificando
performances africanas, afro-brasileiras ou ameríndias. Trata-se de
uma perspectiva nova de compreensão das possibilidades cênicas
encontradas em apresentações de rituais e danças que são exem-

5 BOAS, Frans. Arte primitiva. Mauad, 2015.

Introdução | 31
plificadas em elementos como o texto, a música, a dança, uso de
figurinos e máscaras, bem como a própria ocupação do espaço onde
a performance acontece.
Com “Teatro ameríndio ancestral: performance, ritual, festa em
narrativas pré-colombianas”, demonstro que existia um teatro nas
Américas, altamente complexo e bem desenvolvido, muito anterior à
chegada dos espanhóis, com o impacto da complexa tradição oral em
que se preservava um espetáculo majestoso em coreografias, canto,
percussão e dança, utilização de cenários naturais e ricos ornamentos
corporais. Examinaremos as festas ritualísticas astecas (mexicas), de
onde emerge um teatro com participação da comunidade, algumas
das quais envolvendo sacrifico humano, e em seguida dois textos que,
transcritos de línguas nativas, permanecem como modelos de antigas
estruturas dramáticas ameríndias: um de tradição maia e outro inca .
Examinaremos estes materiais que guardam a rica memória da tradi-
ção ameríndia de um teatro baseada na força do inseparável quarteto
percutir/cantar/dançar/contar. Aqui se fundamenta o argumento
de um Teatro de Origens, uma vez que toda a narrativa mitológica
explicita a origem cósmica da vida social.
Em “Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Tur-
quia: diferenças por contrastes – jogo, ritual e espetacularização”,
procuro compreender as diferenças e os pontos comuns a partir do
êxtase religioso e o do jogo corporal. Ambas as performances, de
origem e prática ritualística pela sua popularidade e interesse público,
saíram do campo religioso e comunitário e passaram para o campo
da produção de espetáculo. Evidentemente as diferenças entre as
duas são grandes, de acordo com os contextos onde são gerados: uma
executada basicamente por mulheres e a outra quase exclusivamente
por homens. Este estudo de casos concentra-se no conjunto de danças
em roda oriundo das comunidades afro-brasileiras, com destaque
para as principais “danças de umbigada”: o tambor de crioula, o
coco, o jongo, o lundu e o samba de roda, e em seguida viaja até en-
trada da Ásia, para analisar a performance da dança de rodopio dos

32 | TEATRO DAS ORIGENS


dervixes, chamada Sama, da Ordem dos Sufi, que se espalhou pelos
países muçulmanos em diferentes formas. Procura-se compreender
o comportamento do corpo em relação às culturas que incorporam
as tradições.
Em “Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique): teatro
de divindades que brincam com a violência humana”, são analisados
dois rituais provenientes de distintas culturas africanas que mantêm
em comum antigas relações com os ancestres e ao mesmo tempo
conservam marcas de um passado mais recente, escravocrata e co-
lonialista, de lutas e guerras. Procura-se entender a tradição como
algo em constante transformação, como a própria religião que sofre
variadas interpretações ao longo da sua própria história. Mesmo com
características próprias em seus respectivos contextos sociais e históri-
cos, as duas performances apresentam dinâmicas semelhantes porque
suas encenações emergem do ritual, e elas, por sua vez, incorporam
não somente a força de suas divindades, mas algumas das mudanças
sociais ocorridas na vida da comunidade, dentre as quais destacamos
a presença da violência da guerra em rituais em que o cantar/dançar/
batucar se transformam nas próprias narrativas, de acordo com o
jogo de quem o performa ao contar os dramas comunitários. Aqui
exemplificamos o Teatro das Origens em relação às distintas tradições
africanas, de origem e procedência diversas.
Em “Motrizes culturais: do ritual à cena contemporânea a partir
do estudo de duas performances: Sotz’il Jay (maia da Guatemala) e
Danbala Wedo (afro-brasileira, do Benin, Nigéria e Togo)”, procura-se
entender como duas práticas performativas contemporâneas: uma
baseada numa tradição ameríndia maia em que formas de ritual,
drama e dança e música estabelecem paradigmas de um teatro das
Origens maia, e a outra, um espetáculo de dança contemporâneo
dialogando com rituais africanos dos voduns e dos orixás por meio
de alguma de suas motrizes culturais.
Em “Palhaços sagrado e santo brincalhão: a origem do princípio
ao fim”, procuro investigar a figura do cômico dentro dos rituais

Introdução | 33
afro-brasileiros, africanos e ameríndios examinando os palhaços de
Folia de Reis, a origem africana de Arlequim e a Sociedade Secreta
dos Palhaços Koreoduga, do lado africano, e o Hotxuá, o palhaço
khraô, junto com outras representações cômicas como o contador
de história ianomâmi. Procurando perceber uma teatralidade que
emerge do sagrado, bem como entender a dimensão de divindades
que gostam de se divertir à custa dos humanos, como Makunaima
dos taulipang e o Exu trazidos por africanos da Nigéria e de Benin.
No “Posfácio”, intento refazer alguns pensamentos procurando
amarrar alguns conceitos no sentido de vislumbrar uma epistemologia
afro-ameríndia, um campo de estudos novo baseado em tão antigas
tradições na esperança de ressignificar o conceito de teatro como
encenação apesar de suas raízes etimológicas estarem contaminadas
pela tradição greco-romana que norteou suas teorias e sua historio-
grafia, sem ter levado em conta, sobretudo, as epistemologias locais
e suas práticas performativas: definidas como Teatro das Origens.

34 | TEATRO DAS ORIGENS


Características e qualidades
do Teatro das Origens

Gostaria de inicialmente destacar os elementos cênicos elaborados


dentro de técnicas seguras na maneira de construir a cena, destacando
suas estéticas particulares para compreender o alcance, os contextos
e as formas de como o ritual se transforma em teatro, sem contudo
perder a sua essência. As apresentações da associação religiosa dos
Goro Voduns ou Breketé durante dois festivais de Divindades Negras
no Togo (2011 e 2013) são um bom exemplo das possibilidades con-
temporâneas dos processos de encenação dentro de uma variedade de
rituais em que se conjugam a performance de diversas manifestações
de entidades, suas ações dramáticas, danças, interatividade entre si
e o público, utilização do espaço, bem como a manipulação de facas
e objetos perfurantes como no caso do grupo de “guerreiros”. Cores
e formas de vestir ressaltam comportamentos, o uso de turbantes
ressalta o rosto, que é maquiado de forma a exaltar a dramaticidade
da própria cena do autoflagelo como prova de coragem, no caso dos
guerreiros. Diferente em vigor, o outro grupo que incorpora a Maman
Tsamba (Tchamba), a protetora de quem foi escravizado, rodopia
enquanto ajudantes utilizam chaleiras para esfriar o solo por onde
dançam, uma dança mais cadenciada. O figurino largo e rodado dá
ênfase ao rodopiar do performer.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 35


Goro Vodun no palco do festival de Divindades Negras, Aneho. Foto de Tatiana Damasceno, 2011.

Goro Vodun no palco do festival de Divindades Negras, Aneho. Foto de Tatiana Damasceno, 2011.

36 | TEATRO DAS ORIGENS


Goro Vodun no palco do festival de Divindades Negras, Aneho. Foto de Tatiana Damasceno, 2011.

Assinalo portanto uma estrutura outra de teatro que se carac-


teriza principalmente por dois aspectos complementares: 1) o da
construção de uma narrativa própria (a peça ou o texto, a história a
ser contada – obviamente, dentro das tradições ágrafas: se transmite
oralmente) e; 2) a escolha de linguagens cênicas específicas e o cons-
tante exercício das mesmas. Se no primeiro ele afirma identidades e
manipula simbolismos provenientes de antigas tradições por meio
da encenação de mitos e histórias cosmogônicas, no segundo revela
um conhecimento de técnicas de representação, de canto, dança,
complementado por escolhas amadurecidas de utilização de materiais
na criação de cenários, figurinos, adereços e até mesmo maquiagem
dentro de tradições orais transmitidos entre sacerdotes, xamãs,
religiosos e simpatizantes. Na maioria dos casos o espaço recebe o
nome de “terreiro”, seja ele de terra batida ou de cimento queimado,
e, como veremos, terreiro é muito mais do que um simples espaço
onde ritual e jogo se complementam.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 37


Início do xirê, Ilê Omi Oju Arô, Miguel Couto. Foto Zeca Ligiéro, 2010.

1. Narrativa: o texto e seus elementos musicais


e coreográficos
Em relação ao aspecto da estrutura do texto teatral, no teatro or-
todoxo geralmente se concebe a encenação a partir da obra escrita;
não é este o nosso caso. O texto é um roteiro previamente conhecido e
vivenciado pelos devotos/performers, ele pertence a uma tradição oral
ou, em muitos casos, guardado de memória depois de tantos anos de
apresentação, como é o caso de Rabinal Achi na Guatemala. Portanto,
ele é guardado por algum mestre da tradição, geralmente uma mãe
ou pai de santo, ou mesmo uma liderança comunitária, um festeiro
etc. que, além de guardar os figurinos e outros elementos, é procla-
mado, ou ele mesmo se autoproclama, guardião, e todo ano, durante
o calendário do “santo”, ele mesmo programa, convoca e remonta a
performance como manda a tradição. É muito comum pais e mães
de santo serem também os guardiões de Terno de Moçambique, ou
de Congadas, bem como outras agremiações, como blocos de afoxé
ou grupos de maracatu e outros folguedos populares.

38 | TEATRO DAS ORIGENS


Desenhos dos alagbês (músicos). Casa de Voduns, Aneho, 2011. Foto Zeca Ligiéro, 2011.

O início e o fim de cada ritual é determinado por um conjunto


de ações e acontecimentos que inevitavelmente é controlado pela
orquestra de atabaques e instrumentos percussivos. O ritual público
mais importante do candomblé é o xirê. Segundo o pesquisador José
Flávio Pessoa Barros,
... o termo xirê significa exatamente brincadeira. Seria uma expressão
lúdica que comemora o mito de origem e essa relação estabelecida entre
homens e deuses. A origem da vida e a origem dos orixás é lembrada
através da dança, através da música sagrada e ela fala exatamente dessa
formação do mundo6.

Portanto, se, por um lado, pensarmos o xirê como uma espécie


de narrativa mítica referencial, temos que levar em conta também o
seu lado lúdico que, como chama atenção José Flavio, é justamente a
encenação. Isto fica claro se pensarmos em outra concepção de teatro,
pois o seu fio condutor não é a palavra, como no drama psicológico
ocidental, mas se dá por meio do inseparável trio: percutir/cantar/dan-
çar que, juntos, ativam o quarto elemento, o contar. Neste sentido, não

6 BARROS José Flávio Pessoa. No vídeo 6, “O Xirê”, da série Religiosidade Afrobrasileira, direção de Rafael
Eiras. Disponível em: <https://vimeo.com/16142502 > visto em 20/03/19

Características e qualidades do Teatro das Origens | 39


se trata de um drama mental, cujos conflitos determinam a narrativa e
desenvolvimento do enredo como o drama ocidental. Não, a narrativa
é épica, pois os episódios são trazidos em fragmentos numa elaborada
construção estética que trança e reconfigura a criatividade individual
com a consciência do coletivo. A dimensão corpórea mobilizada por
essa narrativa jamais se repete, pois não nasce de partitura fixa, não se
expõe como páginas sequenciais decoradas ou materiais previamente
editados para uma ocasião específica. Neste sentido, é performance
ao mesmo tempo que nada é improvisado, pois tudo é acontecimento
encadeado pelo fluxo de cada sequência indicada pelo quarteto per-
cutir/cantar/dançar/contar. Ou seja, sabemos a ordem que os orixás
irão aparecer mas não sabemos quem vai virar orixá neste dia, e nem
quantos irão virar. E nem quanto tempo vai durar a sequência de cada
orixá dançando. Muitos deles querem ficar dançando mais tempo, se
insubordinam e, na saída, voltam para dançar novamente, fazendo
com que a plateia vibre e grite o seu nome, e neste caso o condutor do
ritual o encaminha carinhosamente de novo para a saída da arena do
terreiro, para que possa dar início a outra sequência. É muito comum,
ao final, para se despedir do público, os orixás se inclinarem com a
mão no peito, como que agradecendo, e, como no teatro, ao final da
apresentação o público reage batendo palmas.
Alguns sacerdotes, em vez da expressão “festa para os orixás” ou
“ritual para este ou aquele orixá”, usam a palavra “toque”:
“Toque” é o nome que se dá, genericamente, à cerimônia pública
de candomblé. Como o próprio nome revela, “toque”, esta é uma
cerimônia essencialmente músical. Seu objetivo principal é a
presença dos orixás entre os mortais. Sendo a música uma linguagem
privilegiada no diálogo dos orixás, o toque pode ser entendido como
um chamado, ou uma prece, pedindo aos deuses que venham estar
junto a seus filhos, seja por motivo de alegria ou de necessidade destes7.

7 AMARAL, Rita e SILVA, Wagner Gonçalves da. “Cantar para subir: um estudo antropológico da música ritual
do Candomblé”. https://www.monografias.com/pt/trabalhos913/cantar-musica-ritual/cantar-musica-ritual2.
shtml, consultado em 1/04/2019.

40 | TEATRO DAS ORIGENS


Se o grupo de músicos executa cada etapa, é por sua vez condu-
zido pela voz do cantor, que puxa cada música de acordo com uma
sequência lógica sem contudo ser uma partitura fixa. Muitas vezes, o
próprio orixá chega até os pés do atabaques e sopra o canto que quer
dançar. Já o cantor, pode estar entre os músicos, ser um convidado,
ou a própria liderança do terreiro quem conduz o ritual. A música é
repetida por todos os fiéis em coro.
Nos terreiros mais tradicionais, a orquestra é constituída por três
atabaques: o mais avantajado chamado de rum, o médio ou rumpi e
o menor dos três, chamado lê. “Além da percussão de couro, encon-
tramos o agogô, campânula simples ou dupla de ferro, tocado com
pequenas varas; o aguê, uma espécie de chocalho feito de uma cabaça
ornada por uma rede de contas, que alteram o seu som, segundo
o movimento de rotação imprimido” (ZENICOLA, 2017, p. 28).
Destaco a importância do percutir/cantar como algo imbricado e
contextualizado pelo próprio andamento do ritual. Como atesta Silva:
Como cantar é uma atitude onde se busca o contato com forças
divinizadas, não importa tanto uma tradução literal resultante de uma
ordenação sintática (o que seria impossível dado o vocabulário residual
das línguas africanas aqui existentes). Importa, antes, o significado
atribuído e justificado pelo uso da “língua” dos antepassados e o saber
a eles atribuído. Como aponta Yeda Pessoa de Castro, “importa saber,
por exemplo, para que santo e em que momento deve ser cantada tal
cantiga e não o que essa cantiga significa literalmente.”

Dessa forma, o que realmente importa é que a música sempre fará


alusão, pela escolha de qualquer dos seus elementos, a momentos
significativos do rito, não só ordenando-o, mas, ao mesmo tempo,
estabelecendo uma identidade entre aqueles que compartilham deste
significado que “norteia” a relação do indivíduo com seus deuses.

Portanto, o que refiro ao texto, neste caso um drama litúrgico, é


determinado por um conjunto de saberes que passa pela articulação
do canto que descreve a jornada de cada uma das divindades do

Características e qualidades do Teatro das Origens | 41


candomblé, na maioria dos casos cantada nas línguas nativas afri-
canas (quicongo, ewé/fon ou ioruba) com a orquestra e o repertório
de gestos e movimentos alusivos a cada passagem mítica desenhada
no salão. Existe o estilo de dança preferida por cada nação do can-
domblé, e pessoas do santo há mais tempo percebem uma espécie
de sotaque em cada casa. É possível perceber também pessoas que
incorporam a mesma divindade, embora desenvolvam no salão a
mesma sequência de gestos alusivos a cada passagem mítica, e en-
tender que os mais antigos parecem dançar de forma mais orgânica,
mais fluida, embora não haja nenhuma cobrança de virtuosismo na
sua performance. Para a criação do conjunto do espetáculo, além do
estilo peculiar de cada casa no percutir/cantar/dançar, existe toda
uma arguta percepção de cada um na escolha de roupas e de adereços
como colares, braceletes, turbantes, ferramentas e outros elementos
sagrados a serem manipulados pela divindade, preservando em todas
elas as ações próprias e o simbolismo das cores de cada um. E previa-
mente à sessão pública, existe um longo processo de preparação com
banhos de ervas e rituais preparatórios que antecedem o momento
de novo encontro entre entidades, médiuns e público. Geralmente,
na parte da manhã, ocorre o ritual privado do sacrifício de animais
dedicados às divindades no qual toda a casa participa, menos os que
são dispensados para outros serviços na casa.
Ao pensar no desenvolvimento de um enredo trazido por cada
orixá, pode-se pensar em um longo processo de aprendizado, o texto
aqui, mais que uma sequência lógica de diálogos, ações, sentimentos,
como no teatro ortodoxo, é pensado como algo que só é possível por
meio de um processo altamente sofisticado atingido por meio de uma
alteração do estado da consciência, quando possível, para o devoto
entrar em transe. A relação do iaô (filha ou filho de santo) com seu
próprio transe é algo que amadurece durante algum tempo, até ser
capaz de entender que a linguagem máxima do santo é a dança. O
aprendizado de uma coreografia específica relacionada à vida e às
ações comportamentais atribuídas a divindades chamadas orixás,

42 | TEATRO DAS ORIGENS


voduns ou inkices vai se desenhando no espaço ajudado pelo seu
iniciador na casa. Logo, esta narrativa ultrapassa os treinamentos
diários de um ator, e entramos em processos muito mais complexos
de acesso a um plano de transformação do corpo do performer ao
entrar em contato com seu outro eu, divino. Como bem registra
Zenicola, a partir de Cossard:

Nesta perspectiva, Cossard levanta a discussão sobre a não existência


de ruptura entre o fiel e a entidade assumida, não é um sair de si, há
então o entre o homem e seu deus, afirmando que o outro, o outro lado
que aparece no transe em forma de deus, misto de deus e natureza, na
verdade é parte dele também, onde associa a ideia de metamorfose,
o eu que se transforma em outro. “Existe na yawo a justaposição de
dois estados paralelos: o estado normal, consciente e o estado de
transe, inconsciente, considerado divino.” Mesmo quando a iniciada
está desperta e consciente, sua segunda personalidade, inconsciente, a
que se diz pertencer ao òrisà, continua a pensar, agir, observar e influir
sobre sua vida e a dos demais seres humanos. No subconsciente se
encontra criado e plasmado um segundo eu muito coerente e muito
extenso. (1981, p.130)

Ao se familiarizar por meio do transe com a força arquetípica que


o “monta” (utilizo aqui a compreensão africana presente principal-
mente em outros países da diáspora africana), cujas forças espirituais
se expandem por meio da dança por todo o seu corpo em um longo
processo de iniciação, o iaô apreende seu próprio enredo, as mitolo-
gias ancestrais que constelam sua cabeça, dita “ori” em iorubá.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 43


Confirmação de Sete Anos Yemojá, Ilê dos Ventos, Sepetiba, RJ. Foto Tatiana Damasceno, 2012.

Existe quase um consenso entre o povo de santo ligando a palavra


orixá com o “arquétipo” enquanto características psicológicas. Talvez
o investigador mais famoso a divulgar esta noção seja Pierre Verger, e
assim ele explica para um jornalista, por ocasião do lançamento de um
dos seus livros: “O orixá é uma espécie de arquétipo do comportamento
da gente. Quando se apossa de uma pessoa, ela revela o que está em seu
inconsciente, passa a exprimir sua personalidade verdadeira”8. Neste
sentido, em seu mais popular livro, Orixás: deuses iorubas na África e
no Novo Mundo, a palavra aparece para pormenorizar as características
de cada orixá presente no panteão ioruba. Ele acrescenta que mesmo as
pessoas que não “têm sangue africano” podem incorporar os orixás por
possuírem as “tendências inatas e um comportamento correspondente
àquele de um orixá, como a virilidade devastadora e vigorosa de Xangô,
a feminilidade elegante e coquete de Oxum etc.”(VERGER, 1997:33).

8 VERGER, Pierre. “Candomblé com sotaque francês”. Entrevista de Pierre Verger por Maria José Quadros
publicada no jornal O Globo em 16/08/1992. http://www.pierreverger.org/br/pierre-fatumbi-verger/textos-e-
entrevistas-online/entrevistas-de-verger/candomble-com-sotaque-frances.html. Consultado em 23/03/2019.

44 | TEATRO DAS ORIGENS


Verger tomou emprestado o conceito de arquétipo de C. G. Jung apenas
parcialmente, já que para o psiquiatra suíço os arquétipos são conjuntos
de “imagens primordiais” originadas de uma repetição progressiva de
uma mesma experiência durante muitas gerações, armazenadas no in-
consciente coletivo. A doutora Nise da Silveira acrescenta ainda que
o arquétipo é uma forma de imaginar muito arcaica, pertencente a
uma camada do inconsciente profunda que por sua vez remete a um
passado remoto que o ser humano carrega em sua memória coletiva
(SILVEIRA: 1997). Para entender melhor o conceito de arquétipo de
Jung, é necessário estar familiarizado primeiro com o conceito seminal
de “inconsciente coletivo”:
O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se
de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência
à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal.
Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de
conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da
consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos
do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto
não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência
apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste
em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo
é constituído essencialmente de arquétipos.
O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da
ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas
formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo
lugar. A pesquisa mitológica denomina-as “motivos” ou “temas”; na
psicologia dos primitivos elas correspondem ao conceito das représen-
tations collectives de Levy-Brühl e no campo das religiões comparadas
foram definidas como “categorias da imaginação” por Hubert e Mauss.
Adolf Bastian designou-as bem antes como “pensamentos elementares”
ou “primordiais”. A partir dessas referências torna-se claro que a minha
representação do arquétipo – literalmente uma forma preexistente não
é exclusivamente um conceito meu, mas também é reconhecido em
outros campos da ciência. (JUNG, 2002:51)

Características e qualidades do Teatro das Origens | 45


Portanto concordamos plenamente com a relação entre orixá
e arquétipo proposta por Verger, mas percebemos que a força do
arquétipo vai muito além do temperamento psicológico ou do
biótipo do médium que o incorpora no candomblé. Neste sentido,
percebemos que entrar no transe é uma porta aberta para que o
iaô acesse o mundo arquetípico. Ao contrário do esquizofrênico,
como pesquisou Nise da Silveira, que o compara com Jonas ao ser
engolido pela baleia, “que o transporta em uma noite de viagem no
mar do Ocidente ao Oriente, simbolizando assim o suposto trânsito
do sol desde o seu desaparecimento até a sua saída, no seu ama-
nhecer”9, o iaô não perde completamente a consciência, pois não é
uma possessão no sentido de que é a umbanda, quando o espírito
de uma pessoa morta (egun) toma emprestado o corpo do médium.
No candomblé, o transe é uma visita acompanhada ao mundo dos
arquétipos como desdobramento de um longo aprendizado e co-
nhecimento. É verdade também que existe a crença de que muitos
desses arquétipos muitas vezes se confundem com ancestrais que
viveram em algum lugar na África e que agora estão em um plano
superior aos humanos. Além do mais, a senda para se aproximar do
arquétipo, que por sua vez é ligado à sua ancestralidade individual,
é um longo período de convivência com a sabedoria dos terreiros
e de seus guardiões. Neste processo, o ancestre aparece em algum
momento da sua vida e lhe toma os sentidos, e a partir daí começa o
seu processo de aproximação do terreiro onde se torna abiã. Pouco
a pouco, quando iniciado, passa ser iaô e aprende a decifrar quem
é o ancestre que será a sua referência, pois a ele sua cabeça (ori)
será consagrada (podendo haver o caso de dois ou mais donos da
cabeça). Por meio do convívio e da troca de saberes com os mais
antigos no terreiro, vai entender do que orixá de cabeça gosta e do
que não gosta, e desta relação nasce o seu ofício devocional. Ao
longo da vida, e como dizia Mãe Beata de Yemojá, o iaô aprende a

9 HENDERSON, Joseph L. “Los mitos aniguos y el hombre moderno”. In: Carl G. Jung El Hombre y sus símbolos.
Madrid: Aguilar, 1969, p. 119-120

46 | TEATRO DAS ORIGENS


sentir “a aproximação do orixá que vem vindo devagar como um
noivo que se aguarda no altar, para com ele caminhar juntos.”10
Ao ser iniciado, o elégùn (aquele que pode ser visitado pelo orixá)
aprende a canalizar a energia do arquétipo para sua dança, expressão
máxima da sua força. E na dança vai contar a sua própria história arque-
típica. E com os mais velhos no santo, no cotidiano do terreiro e quando
está “virado”, ele vai aprendendo as respectivas danças e cantos que fazem
parte do repertório dos orixás que constituem seu enredo pessoal.

Obrigação de Sete Anos, Ilê Omi Oju Arô, com Mãe Beata de Iemojá. Foto: autor desco-
nhecido, 2009.

Quando comecei a investigar o candomblé e a assistir aos seus


rituais públicos, tinha a ilusão de que os orixás eram dança pura e
viviam no Orun (céu) dançando, e aguardavam o momento do tran-
se para montar em seus cavalos e sair galopando no terreiro, cada
um com sua dança específica. Pura ilusão que se desfez, quando vi

10 Entrevista de Mãe Beata de Yemojá com o autor, 1989. In: vídeo Performance Afro: Amostração, direção de
Zeca Ligiéro, 2017.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 47


pais e mães de santo dançando ao lado do iaôs incorporados e lhes
mostrando com exatidão cada movimento e a coreografia adequada
para cada momento do canto, tanto em rituais públicos e como pri-
vados, que pude observar depois que me iniciei. Nesta relação não
havia palavras de estímulo ou de reprovação, sem comentários, ao
contrário do diretor tradicional que fiscaliza o ator e orienta com
instruções enquanto ele atua nos processos de ensaio. No terreiro,
apenas o pai ou mãe de santo dançava ao lado com o neófito. Para
minha surpresa, talvez a grande magia inexplicável do candomblé seja
que, mesmo de olhos fechados, o iaô incorporado, quando percebia
a presença do mestre ao seu lado e notava que estava fora do tom
na sua dança, ou com movimentos desordenados, imediatamente se
adaptava aos movimentos e ao ritmo dado pelo mestre que o ladeava.
Orixá também aprendia a dançar. Nunca tropeçava ou trombava com
outros durante a incorporação, mesmo permanecendo todo o tempo
de olhos fechados, como era de praxe, ou em casos raros de olhos
abertos mas expondo apenas a parte branca do olho, como se a íris
do olho estivesse voltado para algo dentro de si.

Festa das Iabás, Terreiro Ilê Axè Atará Magba. Foto de Tatiana Damasceno, 2012.

48 | TEATRO DAS ORIGENS


Volto aqui para a precisa descrição de Zenicola (p. 115) sobre a
relação da dança do orixá e suas mitologias em relação à importância
da manutenção de coreografias executadas em público:
Embora sejam gestos aprendidos e assimilados através da iniciação, não
deixam a menor dúvida quanto à sua veracidade, não constituem uma
imitação da realidade ou imitação de um mito – são gestos simbólicos
que propõem, de forma direta, soluções místicas, cuja eficácia somos
capazes de sentir de imediato. O corpo apresenta uma dança composta
de gestos e movimentações, que vêm sendo selecionados e sintetizados
ao longo dos tempos, há muitas gerações; gestos que parecem ter sido
selecionados para durar e tornam-se, por isso, símbolos dos mitos,
explicam e informam uma identidade, ao mesmo tempo concreta
e abstrata, formas trazidas do mundo mágico cerimonial, criando
uma ponte com o passado. Uma grande quantidade de gestos e
movimentações corporais, elaborados gestos de expressão, cuja
eficiência parece não se esgotar com o passar do tempo.
A ação destes corpos, em seu desempenho, resgata através de gestos
ativos uma verdade ou crença que deve ser difundida de maneira
eficiente. Daí a importância, para o povo de santo, a manutenção das
suas tradições através da encenação pública (2014, p.115).

Oferendas coletivas aos voduns, abertura do Festival de Divindades Negras,


Santuário Sagrado de Glidji, Togo. Foto Tatiana Damasceno, 2011.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 49


2. As linguagens cênicas específicas
A primeira coisa que devemos examinar na performance do Teatro
de Origens é a participação do devoto enquanto linguagem articulada.
Pensar na sua preparação, no conhecimento de seu próprio reper-
tório, para em seguida examinar alguns elementos que ele manipula
na encenação coletiva dos mitos ancestrais. Em seguida, veremos a
questão das roupas utilizadas, das máscaras ocasionais, da utilização
do espaço e, por último, a sua relação com a seu público.

Devotos/ Performers
Já que vamos analisar culturas sem obedecer a um critério es-
tritamente científico, não teremos como tratar cada encontro como
estatística ou como estruturas similares, pois são culturas distintas,
em alguns casos apenas aparentadas entre si. Logo, o trabalho dos
devotos/performers do Teatro das Origens não deve ser visto de forma
uniforme. Não existe uma mesma razão ou sequer uma homogenei-
dade na sua prática, sendo que na maioria dos casos se assume o todo
da performance como função estritamente religiosa. Não existe a ideia
de “representação teatral”, ao mesmo tempo em que tudo é preparado
para alcançar um nível de esplendor estético, de coesão entre todas as
etapas do ritual, rigor na preparação das roupas de santo, decoração
adequada do terreiro, geralmente com bandeiras de seda enfileiradas
(ultimamente lamentavelmente substituída pelo plástico), em cada
detalhe a busca da harmonia procurando gerar a energia criativa
para que o ritual público alcance o nível de celebração e de êxtase
religioso. Existem outras atividades paralelas dentro dessas comuni-
dades, neste caso muito dos dirigentes, já aceitam o termo “festeiro”
ou “brincante” justaposto à função pública que já exercem, seja de
sacerdote de matriz africana ou de líder ameríndio. No caso de ativi-
dades artísticas e lúdicas aparte dos principais rituais, a brincadeira
é feita dentro do espaço do terreiro sem problemas, uma vez que os
altares, os pejis, os assentamentos sagrados estão bem guardados e
longe do público frequentador não iniciado. Assisti dentro do terreiro

50 | TEATRO DAS ORIGENS


Fanti/Ashanti em São Luiz, Maranhão, o grupo de Tambor de Crioula
da própria comunidade se apresentando no pátio externo da grande
área ocupada pelo terreiro, onde haveria mais tarde um ritual para os
orixás, sendo que esse terreiro atípico (e tradicional ao mesmo tem-
po) se caracteriza também por cultuar encantados, voduns e orixás
em espaços distintos. Logo, um critério extremamente científico na
busca de apreensão de resultados comparativos, que queira extrair
regras de entendimento dos procedimentos e separar o que é ritual
(eficácia) e do que é entretimento (performance artística) utilizando
a famosa tabela de Schechner11, tem poucas possibilidades de êxito.
Para compreender as possibilidades do Teatro das Origens, há que
se procurar uma flexibilidade sem a preocupação de provar teses e
comprovar hipóteses.
Mas, de qualquer forma, em todos os casos analisados o sacerdote/
xamã em nenhum momento se vê como ator, muito menos como
diretor do espetáculo. Nem pretende fazer “teatro”, uma vez que a
palavra “teatro” e “teatral” está sempre contaminada por alguma
coisa artificial, apartado do mundo concreto das pessoas que não
frequentam ou mesmo nunca foram a uma casa de espetáculos. Tudo
no ritual é intenso, concentrado. Mas tanto o zelador da casa como
os devotos têm consciência de que tudo deve ser orquestrado como
pede a tradição. Não pode haver corpo mole, e tudo deve ser feito
de forma devocional e com entrega total. Os membros da comuni-
dade chegam pelo menos um ou dois dias antes do ritual público,
preparam-se de diversas maneiras, com banhos de ervas, orações,
rituais privados, e igualmente se esmeram em roupas limpas, engo-
madas, passadas e se possível novas para cada celebração, tudo para
o grande momento do encontro com suas divindades por meio do
transe em público. Momento em que entidade chega para dançar e,
através de sua coreografia, rememorar o seu próprio culto ancestral
das terras distantes (não importa se proveniente da Nigéria, Togo,

11 SCHECHNER, Richard. “Ritual”. In: Performance e antropologia de Richard Schechner, org. Zeca Ligiéro,
Mauad X, 2012.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 51


Congo, Angola, Amazônia, ou mesmo da Mata Atlântica), delineando
sua mítica jornada na evolução pelo espaço de cimento ou de terra
batida. E narra sua história cantada por todos e ponteada pelo ritmo
alternado dos atabaques, agogôs, chequerês e os gãs, ou, no caso
ameríndio, por maracas e flautas.

Dança dos Yawalapiti, terreiro da Aldeia Multiétnica, Goiás, foto Chico Rota, 2015.

É importante frisar que, dentro das cosmogonias indígenas, para


se referir a divindades, ou espíritos, é comum a utilização da palavra
“encantado ”. Luiz Antonio Simas define encantado como aquele que
não teve uma morte física,
... porque o encantado não é exatamente uma entidade como em
várias umbandas, que teve a vida terrena, que teve a morte física,
e que vem e baixa nos seus cavalos de santos para interagir com as
pessoas. O encantado foi aquele que driblou a morte. O encantado
foi aquele que num momento determinado se encanta. Ele sofre o
arrebatamento.12

12 SIMAS, Luiz Antonio. Entrevista ao autor em Dona Mariana, Princesa turca da Amazônia. Direção Zeca
Ligiéro, Produção Nepaa, 2018.

52 | TEATRO DAS ORIGENS


Neste sentido, os rituais africanos e indígenas brasileiros ou afro-
-ameríndios são distintos: o mundo da encantaria abre uma nova
perspectiva de estudos, já que “a atuação do encantado no médium
é uma relação de irradiação e não de incorporação” (ALBURQUER-
QUE, 2010 apud MACEDO, 2019, p.38), do que não vamos nos
ocupar no momento.
Caio Macedo, em sua pesquisa sobre performance ameríndia,
destaca o corpo do performer como o epicentro do ritual em seus
vários aspectos:

A semiótica pankararu está exposta no corpo, com pinturas e


esfoliações, nos adereços anexados ao corpo carnal, na costura e no
bordado de vestimentas sagradas, na musicalidade e nos instrumentos
sagrados. Há diversos momentos e formas em que esses símbolos se
manifestam, alguns em instâncias sociais, em que toda a comunidade
pode estar presente e fazer parte do conjunto, ou aqueles mais
reservados em família, ou um grupo seletivo de acordo com o trabalho
a ser feito13.

Refutamos, porém, a ideia simplória de comparar as divindades


incorporadas ou irradiadas (encantados) com “personagens teatrais”,
e suas mitologias com os dramas nascidos do texto teatral que por sua
vez deriva da mente de um autor. Estamos atentos ao fato de que os
divindades/entidades “incorporadas” tampouco são “personagens”
criados pelo performer, vai muito além disso.

13 MACEDO, Caio Richard de Araújo. O corpo encantado na performance cerimonial pankararu, dissertação
ECA-USP, 2019, p. 22.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 53


Dança dos “praiás” Aldeia Pankararu, Pernambuco. Foto de Caio Richard Macedo, 2017.

O processo do ritual é um reaprender com os sacerdotes e pajés


a forma como seus ancestrais conviviam com o sagrado na África,
no caso do candomblé (orixás, voduns, inkices) e em diferentes
formas no Tambor de Mina (encantados e caboclos) e em muitos
casos na umbanda (pretos velhos, caboclos etc.), ou ainda nos pá-
ramos distantes dos Andes, na selva Amazônia, no serrado, na mata
Atlântica... Por meio de uma dança própria, teatral, coreografada,
paramentada, compartilhada com a comunidade, completando
desta maneira a última necessidade da ocorrência do teatro: a pre-
sença dos espectadores e preferivelmente seu total envolvimento. O
seu transporte e a sua transformação. Transcendendo as opressões
mentais, físicas, psicológicas e integrando-se com a energia sagrada
do cosmos.
Uma vez que esses processos são conhecidos pelos zeladores do
terreiro através da repetição de rituais privados, e muitas vezes o
aprendizado se dá também durante os rituais públicos, eles passam
os conhecimentos básicos da performance de encontro com as di-
vindades/entidades e seu compartilhamento com os fiéis que vêm às
casas de santo para participar de suas festas e rituais.

54 | TEATRO DAS ORIGENS


Altar para o Povo da Rua. Exu e Pomba-Gira seminus em tons de vermelho e preto, Seu Zé
no seu impecável terno de linho, chapéu panamá e gravata vermelha compartilham o mesmo
espaço e energia. Foto de Phylls Galembo, 1993.

Cada divindade/entidade, seja orixá, caboclo, no caso da umbanda


pomba-gira ou preto velho, ou, entre os ameríndios os encantados, ani-
mais sagrados, entre outros, tem as suas cores, seus adereços, sua forma
de se vestir e de usar os distintos e específicos turbantes. A partir daí,
dentro do contexto simbólico das forças que representam, as divindades
manifestadas são vestidas de acordo com um desenho previamente
acertado e preparado com um propósito de melhor representarem a
força do ancestre que as montam. Neste sentido, o santo é apresentado
de forma simbólica para desempenhar o seu papel sem contudo ter o
intuito de se desgarrar do médium e adquirir uma autonomia para
participar de uma trama psicológica com conflito dramático e final feliz.
Embora em algumas situações, como os dramas litúrgicos maia, asteca
e inca, cujas formas recitadas muitas vezes suplantavam as formas dan-
çadas e cantadas, podemos observar nos textos remanescentes aspectos
de trama e desenvolvimento de características mais elaborado e mais
próximo das formas teatrais conhecidas no Ocidente, constituindo-se
desta forma em drama devocional apartado do culto ritualístico, como
veremos no segundo capitulo deste livro.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 55


Grupo Sotz’il Jay revisita ritual maia. Unirio. Foto Zeca Ligiéro, 2011.

Em alguns casos estudados anteriormente sobre o candomblé,


como o ritual Olorogum, percebemos mais claramente os orixás já
incorporados criando uma performance na qual representam a si pró-
prios indo para a guerra, dois grupos se organizam em fila e dançam
como se estivessem se preparando para ir à guerra, cada um levando
uma matula amarrada em um porrete. Neste caso excepcional, po-
deríamos claramente perceber um exemplo de um drama ancestral
encenado num processo de metateatro, pois o médium incorpora
o orixá que representa a si próprio indo à guerra. Tudo isso é parte
de um longo ritual, com várias etapas anteriores e mais outras no
decorrer de uma longa noite (LIGIÉRO: 2011).
Em momentos únicos podemos ainda registrar algumas perfor-
mances pontuais e extraordinárias, como a de Mãe Beata de Iemonjá
que eventualmente, em rodas de contação de história, “interpretava”
Tia Cilú, uma contadora de histórias que ela conhecera na infância.
Em sua performance solo, Beata vivia o personagem trazendo his-
tórias da sua infância. Entrava em cena de bengala, com um terço
católico pendurado no pescoço e trazia um pano branco na cabeça,
bem diferente dos turbantes elegantes que sempre gostava de usar.

56 | TEATRO DAS ORIGENS


Ela encarnava uma Preta Velha cansada, entidade típica da umbanda.
Mas logo depois da entrada arrastada, ela se inflamava contando suas
histórias pungentes, entusiasmada, quebrando qualquer composição
realista do personagem. Era carismática e desfilava suas histórias
modelares de comportamentos de africanos e seus descendentes em
épocas remotas na África e no Recôncavo Baiano. Algumas das quais
foram publicadas em seu livro Caroço de Dendê: a sabedoria dos ter-
reiros (Pallas:1996). Mesmo distante de outros exemplos, aqui temos
uma sacerdotisa griô que encena mitos de suas tradições afro-baianas.

Mãe Beata de Yemojá interpretando um personagem da sua infância, Tia Cilu.


Ile Omi Oju Arô. Foto Zeca Ligiéro, 2009.

A partir destes dois exemplos não se pode generalizar nem indicar


que sempre há no ritual afro ou indígena a existência do propósito
da encenação. A guerra entre os orixás é parte da mitologia clássica
iorubana, que marca o afastamento das divindades dos terreiros por
um período de tempo, em que todos os outros rituais são suspensos,
e que coincide com a fase da quaresma católica. A sua volta da guerra
se dará alguns meses depois, quando as festas e os rituais públicos
voltarão a acontecer. É parte do enredo mitológico do terreiro de
candomblé no Brasil, parte de seu Teatro das Origens. A performance

Características e qualidades do Teatro das Origens | 57


de um pai ou mãe de santo que encena as próprias mitologias pode
ser vista ainda como pedagogia de apresentação das cosmogonias
afro-brasileiras e, sem dúvida, um tipo de performance interessante
e instigante de Teatro das Origens.

Início do transe de um Guerreiro (com um boné) e de Mama Tchamba (com um lenço) na


casa de voduns embaixo da árvore sagrada no interior do Togo. Foto Yara Ligiéro, 2013.

Guerreiro incorporado por uma sacerdotisa de Goro Vodun, Togo.


Foto de Tatiana Damasceno, 2013.

58 | TEATRO DAS ORIGENS


Vestindo as divindades/entidades como figurinos especiais

Imagens dos encantados vestidos do Tambor de Mina, Pará.


Fotos de Zeca Ligiéro, 2011.

Farfalhar das saias das Princesas Turcas da Amazônia, Tambor de Mina, Belém.
Foto de Zeca Ligiéro, 2010.

No tambor de Mina ou na Gira da Umbanda, ao contrário do teatro


ortodoxo, o médium está vestido desde o começo com a roupa da
entidade que vai incorporar. Assim, não existe o efeito de esconder

Características e qualidades do Teatro das Origens | 59


algo do público para aparecer como efeito durante a cena. O corpo do
performer assume a personalidade da roupa que veste desde a entrada
do público no salão ou no terreiro e se confraternizam aguardando
o momento máximo do transe. É muito comum, neste caso, após o
término do ritual, todos serem convidados para comer – e os médiuns
continuam com a mesma roupa.
Já as mães e pais de santo do candomblé, desde o início vestem
roupas variadas que indicam o seu cargo no terreiro e sua filiação
ao orixá/vodun ou inkice que rege a sua cabeça. Quando rodam ou
são pegos pelo santo (incorporam), eles se mantêm com a mesma
roupa até o final da primeira parte, quando saem e vão ao interior
do terreiro para serem paramentados com as roupas adequadas ou
que condizem melhor com a personalidade de seus orixás/vodun/
inkices. Então, voltam para a parte final do ritual quando dançam,
ao som dos atabaques e do canto dos Ogans (músicos), geralmente
acompanhados pela própria comunidade do terreiro.
Já nos candomblés, os médiuns (os rodantes, filhos/filhas de santo)
têm uma roupa básica, chamada de “roupa de ração”, que consiste
em uma bata ou camisu e uma saia, tudo absolutamente branco. A
roupa de ração, embora tenha uma construção simples, apresenta
uma grande complexidade como registra em detalhe Alissan Silva,
numa foto de sua tese em processo no PPGAC-UNIRIO14.

Detalhe da barra de uma saia de ração: sinhaninha


e acima, nervurinha. Foto de Alissan Silva, 2018.

14 SILVA, Alissan, p. 43.

60 | TEATRO DAS ORIGENS


Alissan Silva destaca o esforço e o esmero das mulheres de can-
domblé na construção de seus trajes para o cotidiano e para as festas,
apontando o desejo de fazer o melhor para agradar a divindade:

Ao assistir xirê no candomblé, podemos perceber o cuidado e o esmero


em relação aos trajes utilizados pelos fiéis, sobretudo as mulheres,
cuja indumentária emoldurada pelas voluptuosas anáguas e requinte
de suas saias, bem como os outros componentes de seu traje, é
notável muito embora a maioria das mulheres de candomblé tenha
procedência humilde.

Em sua investigação, a autora vai destacar o trabalho feminino da


mulher de candomblé na construção da roupa, como um processo de
aprendizado dinâmico dos próprios conceitos e preceitos do candom-
blé. Desta forma, poderemos entender como a roupa, o figurino que
veste o santo, não apenas é desenhada por uma costureira, mas por
uma série de conhecimentos que buscam atingir o nível máximo de
beleza estética em conjunção com o que significa cada parte da rou-
pa, organizando no corpo pertencimento, conhecimento e devoção.
Como sintetiza seu pensamento:

Percebo aqui, então, a costura como o próprio princípio de construção


das saias de axé. Modelando, cortando, unindo as partes, dando
forma, descosturando e re-costurando as partes em outras novas
formas, que, mesmo em uma nova “roupagem”, não deixaram de ser
o que eram, mas se restauraram: performance. Panos, tecidos, linhas,
fitas e bordados com os quais se tem costurado a circularidade de
nossas histórias, sendo elo dos fragmentos de nós, como mulheres
de candomblé, às saias de todas as outras que nos antecederam,
e também dos tantos ventres, hoje, livres que estão por vir. Assim
como, remontando a construção política da mulher no candomblé,
ostentando beleza e poderio que em muitos casos não lhes é possível
fora do terreiro15.

15 SILVA, Alissan, p. 49.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 61


Pintura corporal
O primeiro ameríndio a chegar à Europa foi Essomericq, levado
por um francês que se perdera na costa brasileira.16 Mas o grupo mais
conhecido foi aquele levado em 1550 à vila de Rouen para celebrar a
visita do Rei Henrique II. No ano seguinte, foi publicado um livreto
com ilustrações em xilogravuras que assinalava os pontos altos do
evento. Organizado como performance processional ao ar livre onde
desfilavam em uma espécie de tableaux vivant, os 50 tupinambás com
mais 150 marinheiros da Normandia disfarçados adequadamente de
nativos incluindo também um grupo de prostitutas locais (talvez por
serem as únicas figurantes que podiam exibir seus corpos nus sem
grandes problemas). Esta mesma performance aconteceu em outros
lugares da Europa, procurando chamar atenção para a politica de
criação da França Antártica, a nova colônia na região da atual cidade
do Rio de Janeiro, cuja invasão aconteceu de 1555 até 1560, quando
foram expulsos pelos portugueses.
Uma segunda performance ameríndia ocorreu em Paris com os
três tupinambá do Maranhão (França Equinocial) em espetáculo
“edificante”, integrado à ordem monárquica e católica das cerimônias
solenes da corte francesa. A propaganda monárquica que encerra as
cerimônias parisienses de 1614 alinhava-se com os princípios apostó-
licos modernos. Assim escreve o Padre Claude d’Abbeville17: “Estáva-
mos ansiosos por mostrar aos franceses o fruto de nossa missão e os
primeiros enxertos de nossa nova colônia” (p. 334). Como “enxertos”
da nova França Equinocial, os tupinambá são representados fora de
toda “realidade selvagem” e exibidos em espetáculo de conversão à
religião e à civilização francesa. A publicação de um livro, em edição

16 O nativo é mencionado pela primeira vez na segunda edição póstuma do livro História da Grande Ilha de
Madagascar (1661), do administrador colonial Etienne DE FLACOURT (1607-1660). O autor descreve a viagem
de Binot Paulmier, que depois de ter se perdido em algum lugar da América do Sul teria trazido em sua viagem
de volta o indígena chamado Essomericq.
17 D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas:
em que trata das singularidades admiráveis e dos costumes estrandos dos índios habitanes do país (L’Histoire de la
Mission des Pères Capucins en l’Isle de Maragnan et terres circonvoisines). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1945.

62 | TEATRO DAS ORIGENS


luxuosa, assim como as cerimônias solenes em forma de performances
espetaculares e a impressão de gravuras que representam os índios, ser-
viram, sem dúvida, ao propósito de encorajar uma possível emigração
à colônia França Equinocial, cuja capital era São Luís do Maranhão.
Entre 1613 e 1614, dos seis embaixadores tupinambá, três morreram
logo, provavelmente não suportando o inverno europeu. Mas a prin-
cipal performance descrita pelo Abbeville foi sua entrada triunfal no
palácio real do Louvre para prestarem homenagem ao rei de França
e “colocar suas pessoas e suas terras sob o seu cetro”, reconhecendo-o
como “seu rei e soberano monarca” (340 – 341). Algumas horas antes,
Itapucu fora batizado como Luís Maria. Além da performance oficial,
ele também apresentou com seus outros dois irmãos danças, cantos e
percussão de seu povo, mas com roupas apropriadas à corte francesa.
Sua performance de ameríndio convertido foi bastante usada como
propaganda de uma nova ordem colonial francesa.

“Toupinambous Maragnans”, publicação Mercure François do ano de 1613.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 63


Nenhuma destas performances ameríndias na França poderia ser
considerada Teatro das Origens, mas elas revelam algo em comum que
podemos notar: a nudez é o que caracteriza o índio como selvagem
para o europeu. Se para poetas e filósofos é o símbolo da inocência,
como recém-chegado da terra do Éden, para as autoridades eclesiás-
ticas encarna o primitivo, o que não conhece as leis e a moral cristã
e necessita ser catequizado, convertido e vestido adequadamente. E,
de fato, não precisamos ter olhar europeu, para perceber a expressi-
vidade do corpo ameríndio com sua nudez adornada por pinturas
corporais trazendo símbolos e mitologias, do jeito que foi concebido
pelo criador segundo suas crenças.

A mulher indígena idealizada como Cabocla Jurema.


Gravura anônima em torno de 1950.

64 | TEATRO DAS ORIGENS


A nudez é algo normal para a maioria de indígenas brasileiros,
e presente em suas performances. Consequentemente, o ponto
de partida de um figurino do Teatro das Origens ameríndio pode
ser a não roupa, mas a nudez. O despojamento total. Entretanto,
observamos que mesmo nessas comunidades, há nos rituais deter-
minadas pinturas corporais e arranjos de penas e plumas de forma
a se aproximar dos seus encantados. Se a nudez é roupa do dia a
dia, a pintura corporal e os adornos são reservados para momentos
de ritual e celebração.
A pintura corporal, os grafismos indígenas e a sua arte plumária
é algo que não se pode resumir em enfeite, embelezamento, adorno,
como seria o caso da escolha roupas de acordo com a moda vigente
no Ocidente, obedecendo às últimas novidades, as mais representati-
vas das classes abastadas com as quais o individuo quer se identificar
ou ser confundido, como passou a vestir Juan Marie ao abandonar
a sua identidade Itapucu. Para os indígenas que habitam o Brasil,
alguma marca indenitária é feita diretamente no ou sobre o corpo
– piercing nos lábios ou orelha, corte de cabelo próprio, arranjos de
penas e plumas, colares e pulseiras. Sobre a pele, desenhos geomé-
tricos feitos de urucum e tinta de jenipapo. Tudo isto para deixar
claro que existe a identidade de um povo, uma tribo, uma tradição.
O pajé Mapu Huni Kuin, articulador político da comunidade Huni
Kuin e morador de Rio Branco, Acre, afirma:

... nós temos uma tradição, cada povo tem a sua tradição, seus costumes,
sua forma de viver o dia a dia, né? Nós temos os nossos grafismos,
que mostram a nossa ancestralidade. Essa daqui por exemplo é o
grafismo da jiboia. O que é o grafismo da jiboia? A jiboia para nós
é um ser sagrado, faz uma conexão espiritual onde nós recebemos a
nossa medicina da ayahuasca. Antigamente, os líderes espirituais é que
tinham contato com as medicinas, o povo não18.

18 Entrevista de Mapu Huni Kuin com o autor, Rio Branco, Acre, 2018.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 65


Tudo que Mapu veste reflete o grafismo sagrado da jiboia dos Honi Kuin – bandana,
colar de miçangas e camisa feita no tear. Foto Zeca Ligiéro, Rio Branco, Acre, 2018.

De acordo com a mitologia da tradição Huni Kui, a jiboia foi


responsável pelo conhecimento da medicina sagrada. Nos tempos
remotos, ela se transformava em mulher e acabou casando com um
caçador guerreiro e levando-o para o fundo do lago. Após alguns
anos, ele teria voltado com o conhecimento da ayahuasca, e para não
perder esse conhecimento teria se transformado em uma árvore de
onde se colhe a medicina sagrada. Este teria sido então o ancestral
dos Hui Kuin, segundo Mapu, que tem a sua história originada no
conhecimento adquirido com a jiboia – e daí derivam os diversos
grafismos sagrados que aparecem nas pulseiras, nos tecidos e na
pintura corporal. Portanto, o grafismo é parte de um pertencimento
ancestral, não se trata de uma simples decoração do corpo.

Tipo de grafismo Huni Kuin. Tecido e tear Huni Kuin. Foto Zeca Ligiéro.

66 | TEATRO DAS ORIGENS


Máscaras sagradas
A questão da máscara sagrada, entretanto, depende de cada
grupo e cada tradição. Em muitos casos as máscaras são guardadas
em lugares secretos e seus rituais não são revelados para os não indí-
genas. Sua utilização é uma constante entre os indígenas espalhados
por todas as Américas. Representam animais sagrados, encantados,
símbolos de clãs. Inúmeros rituais são marcados pela utilização de
máscaras para encenar mitos e lendas sobre as origens dos tempos,
quando todos os seres falavam a mesma língua.
Caio Macedo assim destaca a importância da máscara realizada
entre os pankararu de Pernambuco para o pesquisador:
A máscara enquanto estrutura plástica é apresentação materializada
dos costumes culturais, sendo a sua cerimônia, o ponto ápice da
performance social desssa comunidade, é um objetivo vivo que serve
à análise antropológica do comportamento humano e a pesquisas
teatrais que se interessem pelo corpo em transe cênico. (MACEDO,
2019, p.22)

Dança dos Pankararu, Aldeia Pankararu, Pernambuco. Foto de Caio Richard Macedo, 2018.

Desta maneira, ele acredita que, quando o performer cobre o rosto


e oculta a sua individualidade como fruto de um consenso coletivo,

Características e qualidades do Teatro das Origens | 67


a própria representação anula o individual para que a personificação
cultural se instaure e revele a máscara como símbolo social. Neste
raciocínio, podemos perceber que o performer, ao entrar em contato
com suas forças arquetípicas, rompe momentaneamente os perten-
cimentos do ego, para entrar em sintonia com o encantado que ele
veste, ou que lhe cobre o corpo e a cabeça, no caso dos pankararu
registrado por Caio Macedo.

Máscara dos ticuna, de Debret. A ilustração está no Museu Castro Maia, Rio de Janeiro.

Dentre as máscaras indígenas mais expressivas estão as dos ticuna,


numeroso grupo que se distribui pela Amazônia brasileira, peruana e
colombiana. As máscaras ticuna chamaram a atenção do pintor Jean
Baptiste Debret, que visitou o Brasil com a missão artística francesa
entre 1818 e 1832 e publicou seu desenho em Viagem pitoresca e
histórica ao Brasil (1834-1839).

68 | TEATRO DAS ORIGENS


Gravura de Alcide d’Dorbigny, 1836

O cortejo dos ticuna desenhado pelo paleontólogo Dorbigny, que


visitou a Amazônia no final do século XIX, exibe o Teatro das Origens
daquele grupo de maneira inequívoca.
Muitas vezes, a máscara apartada da sua função de performance
pode ser considerada uma obra de arte e até atingir alta cotação no
mercado das artes, mas não é isto que importa para nosso estudo.
Já que a
... sua performance só se completa através do seu uso, a transmutação
do corpo que a veste é a necessidade da sua expressão e comunicação
com o público que assiste, sua dança mostra a herança coreografada
que os antepassados assumiam ao se relacionar com máscara, uma
expressão codificada que só os saberes dessas etnias são capazes de
entender. Os nativos se reconhecem durante a significação dada aos
signos, construindo uma teia de memórias que é relembrada a cada
manifestação. (MACEDO: 2019, p. 23)

O simbolismo de máscaras como seres sobrenaturais assinalando


memórias ancestrais aparece também em diversos grupos étnicos

Características e qualidades do Teatro das Origens | 69


africanos. Animais e humanos compartilham o espaço na mesma
máscara, assinalando jornadas, pertencimentos, parentescos. Talvez
a mais célebre seja a dos Festivais de Geledé, os espíritos das anciãs
mágicas e sagradas dos iorubá, conhecidas como Mães da Noite,
temidas por serem feiticeiras perigosas.

Máscaras de Geledé, Festival de Divindades Negras. Algumas máscaras


aparecem com as escarificações no rosto, marcas da iniciação – representam as
“Mães da Noite”, espíritos de mulheres iniciadas. Foto Tatiana Damasceno, 2013.

Muitas vezes alguns poucos traços, como no caso do Goro Vo-


dun, não chegam a ser uma máscara, mas sem dúvida transportam a
categoria “maquiagem”, ou “pintura corporal” ao mesmo objetivo da
máscara, ao desenhar sobre o rosto o símbolo, a marca. Esse grafismo
já observamos no Ponto Riscado da Umbanda, quando se desenha o
ícone da própria entidade para convocá-la do ciberspace ou do HD
sideral da Umbanda. (LIGIÉRO e DANDARA: 2017).
O círculo em torno do nariz e da boca, com traços externos que
parecem indicar a importância desta centralidade, destaca a maneira
como o guerreiro do Goro Vodun agarra faca com a boca. Catalisam
a fúria e a resistência contra o colonialismo.

70 | TEATRO DAS ORIGENS


Guerreiro Goro Vodun. Foto Tatiana Damasceno, 2011.

Entre o palco e o terreiro: espaços de confinamento e espaços de libertação


Desde o começo do século XX, encenadores de avant-garde vis-
lumbraram a modernidade do teatro europeu na sua saída da caixa
preta da casa de espetáculos para a rua, para outros espaços não
convencionais. As novas referências passaram a ser as apresentações
vindas de outros continentes que visitavam a Europa durante as ex-
posições coloniais que começaram a ser produzidas ainda no final do
século XIX, algumas das quais recriaram o ambiente de onde vieram,
mas de qualquer forma eram vilas cenográficas. Tanto a Feira Mundial
parisiense de 1878 quanto a de 1889 apresentaram uma Vila Negra
(vila nègre) e a atração de cerca de 400 indígenas.19 Nelas, africanos,
asiáticos e ameríndios eram confinados em espaços públicos onde
era reproduzido o seu “habitat natural”, onde apresentavam seus ri-
tuais típicos e alguns ainda vendiam suas comidas exóticas. Não por
acaso essas feiras eram chamadas de “Zoológicos Humanos”. Eram
patrocinadas para mostrar como os governos coloniais valorizam as

19 Colonialism On Display. In: < courses.lumenlearning.com/suny-hccc-worldhistory2/chapter/the-world-


fairs/>, visto em 24/03/2019.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 71


culturas estrangeiras, mostrando-se como fraternos, amigos e res-
peitosos. (Embora a hospedagem dos estrangeiros fosse sempre um
desastre, com muitas mortes, doenças e maus tratos).

Pôster do Zoológico Humano da Exposição Colonial de 1931, Paris. Negros e mouros são
mostrados com seus exóticos costumes e suas roupas extravagantes.

A Exposição Colonial de 1931, promovida no Jardim d’Acclima-


tation junto a uma das portas de entrada de Paris, se propunha a
criar uma “enciclopédia em três dimensões”, fazendo a propaganda
do sistema colonial e ao mesmo tempo informando e educando a
população sobre as diferentes culturas que estavam sob a tutela da
França. Foi durante este evento que Antonin Artaud teve a chance de
assistir pela primeira vez ao Teatro de Bali e, a partir daí, vislumbrou
um outro tipo estética teatral:
A representação teatral de Bali que vive de dança, do canto, da
pantomima – e também, em certa medida, embora reduzida, do teatro
tal como compreendemos no Ocidente – restitui o teatro, por meio de
cerimônias de indubitável antiguidade e de experimentada eficácia,
ao seu destino original que é apresentado como uma combinação de

72 | TEATRO DAS ORIGENS


todos estes elementos fundidos em conjunto numa perspectiva de
alucinação e medo20.

Artaud percebia ali um teatro ancestral diferente do teatro psico-


lógico e/ou literário de sua época, cujos gestos pareciam “hieróglifos
animados”, outro tipo de teatro trazido pelo transe animado pela
dança, música e canto. Um teatro que “tem um vocabulário de gestos
e mímica para todas as circunstâncias da vida, restabelecendo o valor
supremo das convenções do teatro...” (ARTAUD:81).

Ticket da Exposição de 1931 com a figura do invasor colonial.

Da mesma forma que Artaud, cerca de oito milhões de pessoas,


de maio a novembro, compareceram à Exposição colonial de 193121
com 32 milhões de tickets total vendidos para os vários conjuntos de

20 ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Ensaio, Minotauro, Lisboa: s/data, pg.79.
21 http://npa2009.org/content/exposition-coloniale-de-1931-apog%C3%A9e-ou-limites-du-
colonialisme%E2%80%89 .

Características e qualidades do Teatro das Origens | 73


pavilhões, superando as outras exposição universais de 1889 e tendo
o dobro de visitantes da Exposição de Arte Decorativa de 1925.22
Mas a verdade é que poucos viam nas exposições organizadas pelo
governo das colônias algo além do que havia sido mostrado desde o
início do contato com os outros continentes, cujos habitantes eram
indistintamente chamados de “indígenas”, não importando se sua
procedência fosse da Ásia, da Oceania, das Américas ou da África.
O espaço da exposição foi concebido para que a multidão circulasse
entre as diversas performances. E cada performance, um espetáculo
diferente dos “primitivos”. Entre o parque de diversão e o circo, o
público circulava observando o que ocorria atrás da cerca, ou da jaula.
Nitidamente, a quarta parede do teatro era visível e realmente marcava
uma distinção entre o europeu visitante e os primitivos colonizados.
Se pensarmos nas performances não europeias que aconteciam e
acontecem fora daquele continente, vamos perceber outras manei-
ras de utilização do espaço além daquele teatro vulgar a que foram
submetidos os “indígenas” dos outros continentes nesses zoológicos
humanos europeus. Vamos nos concentrar nas performances africa-
nas e ameríndias e transportar-nos para outra categoria de espaços
para entender as relações que se estabelecem. Luiz Antônio Simas e
Luiz Rufino empregam de maneira exemplar a categoria “terreiro”23
para definir um tipo de utilização de espaço concebido pelo afro-
descendentes:
As invenções dos terreiros na diáspora salientam a complexidade dos
modos de vida aqui praticados e as possibilidades de relações tecidas.
Assim, as muitas possibilidades de configuração de terreiros apontam
que os mesmos podem refletir desde uma busca por ressignificação da
vida referenciada por um imaginário em África, como também aponta
para as disputas, negociações, conflitos, hibridações e alianças que se

22 Segundo o diretor geral da exposição, General Olivier. In: “Filosofia da Exposição Colonial, 15 de outubro
1931, p.278-293. Apud L’ESTOILE, Benoît de. Le gôut des autres: de l’Exposicion coloniale aux Arts Premiers.
Paris: Flammarion, 2007, p. 34
23 SIMAS, Luiz Antonio e RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro,
Mórula Editorial, 2017.

74 | TEATRO DAS ORIGENS


travam na recodificação de novas práticas, territórios, sociabilidades
e laços associativos. (SIMAS e RUFINO: 2017, 41)

Se o autor parte do que historicamente se consagrou como “terreiro


de casas de candomblé”, ele propõe um alargamento do conceito:
A noção de terreiro orienta-se, conforme sugerimos, a partir das
sabedorias assentadas nas práticas culturais. Consideramos que
“praticar terreiros” nos possibilita inventar e ler o mundo, a partir das
lógicas de saberes encantados. As perspectivas encantadas praticam
e interpretam o mundo ampliando as possibilidades de invenção,
credibilizando a diversidade e referenciando-se naquilo que os próprios
fundamentos das mais diferentes “macumbarias” definem como uma
ciência encantada.
Assim, os terreiros inventam-se, a partir do tempo/espaço praticado,
ritualizado pelos saberes e as suas respectivas performances. Essa
consideração não despreza a referência dos terreiros a partir de sua
fisicalidade, mas alarga o conceito para as dimensões imateriais. Aquilo
que damos conta como a materialidade de um terreiro perpassa pelos
efeitos e cruzamentos do que pensamos como o saber praticado.
O que a noção de terreiro abrange é a possibilidade de se inventar
terreiros na ausência de um espaço físico permanente. Assim, abrimos
possibilidades para pensar essa noção a partir do rito. As práticas
passam a ser a referência elementar. A perspectiva mirada a partir do
rito expõe as possibilidades, circunstâncias e imprevisibilidades postas
nas dinâmicas de se firmar terreiros. (SIMAS e RUFINO: 2017, 41)

Esta percepção realmente encantadora me estimula a repensar as


inúmeras possibilidades de aplicação do terreiro a toda e qualquer
prática espacial do Teatro das Origens. Terminologia que passarei a
adotar a partir de aqui, incluindo por extensão aquelas que acontecem
ou que partem das antigas tradições ameríndias, não importando se
em terreiros cobertos ou ao ar livre. Terreiro, espaço de terra batido
com os pés que dançam.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 75


a) Ritual e celebração em espaço aberto na natureza
Muitas rituais acontecem na praia, ou na floresta. Nestes espaços
abertos muitas vezes não existe uma concentração específica em
um único terreiro. O público circula e participa do ritual à sua ma-
neira. Embora exista um comando prévio de alguém, pois o ritual é
realizado por uma congregação e, portanto, a comunidade é levada
e trazida de ônibus, às vezes os lugares são ermos. Portanto, muitas
vezes é confundido com os rituais privados, mas, na medida em que
são feitos em espaços públicos e utilizadas roupas especiais, cantos,
orações, curas e incorporações, pensamos que se encaixa na categoria
de Teatro das Origens sem um enredo definido, aproximando-se em
alguns momentos de um happening ou de um teatro de participação.
Poderíamos pensar que em muitos rituais para Iemanjá no Ano Novo
do Rio, ou no dia 2 de fevereiro, são recriados terreiros na praia, que
se expandem pela orla como um desdobramento do espaço vivo
dilatado pela crença.
No ritual Zione24, assistido em Maputo, Moçambique, uma con-
gregação evangélica justapõe elementos da igreja protestante norte-
-americana com elementos da espiritualidade e cultos da natureza
africana. O ritual começa ao nascer do sol, quando os principais
sacerdotes avançam entrando nas águas do mar, onde parecem flutuar
em busca de bênçãos do mar para a cura, para mais tarde realizar o
batismo de fiéis que avançam em sua direção. Enquanto isso, outros
esperam na praia. Existe o transe, a dança, o canto e o êxtase religioso.
Ao final as pessoas vagam pela praia abençoadas e performam o seu
encontro com Jesus.

24 Zione se caracteriza por uma igreja popular de Moçambique. A origem do nome das Igrejas Ziones (Zionist)
provém da cidade de Zion City, Illinois, Estados Unidos da América, onde a Christian Apostolic Catholic Church,
a Igreja que deu o início a este ramo do pentecostalismo, foi fundada por J. Dowie em 1896. As primeiras igrejas
zionistas na África austral surgiram na África do Sul sob a influência norte-americana no início deste século.
Victor AGADJANIAN. In: Lusotopie 1999, 415-423, http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/agadjanian.
pdf , consultado em 30/03/2019.

76 | TEATRO DAS ORIGENS


Ritual de Zione, praia na periferia de Maputo, Moçambique. Fotos de Zeca Ligiéro, 2012.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 77


b) Rituais ou celebrações em terreiros junto à moradia
da comunidade.
As aldeias indígenas ou quilombos geralmente possuem um pátio
central onde acontecem seus rituais e suas festas. Trata-se de uma
arena completa, geralmente arredondada. Muitas vezes os performers
entram enfileirados, outras vezes a própria formação é feita dentro
do círculo, revelando tudo, uma vez que quase todos os elementos da
comunidade participam dos eventos e das festas sazonais. No caso da
Aldeia Multiétnica havia grande e heterogêneo público, e as etnias
presentes fizeram seus respectivos rituais e suas performances de for-
ma demonstrativa e não propriamente litúrgica, uma vez que grande
parte dos espectadores presentes estavam estava lá para assistir e não
tanto para participar ativamente do ritual, porque não pertenciam à
comunidade indígena. Neste caso de espaço, os performers entram e
saem enquanto o público permanece no entorno, sentado ou de pé,
como preferir, e eventualmente sai no meio.

Terreiro dos Pankararu, Pernambuco. Foto Caio Richard Macedo.

78 | TEATRO DAS ORIGENS


Dança dos Yawalapiti, Aldeia Multiétnica, Goiás. Foto de Chico Rota, 2012.

c) Terreiro dilatado e móvel


No caso da aparição inesperada de um ou vários performers em
um espaço aberto como uma praça, ou ao lado da igreja no principal
quarteirão do bairro, tanto o público fiel como o passante é atraído
pela performance e a ela se junta como uma comunidade relâmpago.
Só que a performance não se dá apenas em um ponto. Ela rompe o
pequeno círculo. E conduz os seus espectadores para outro lugar, ou
então a performance com seus movimentos cria um espaço oval, ou
quase retangular, movimentando-se nas mesmas direções, como no
caso da dança Mapiko, de Moçambique.

Deslocamento do Lipiko no meio do público. Foto de Zeca Ligiéro, 2012.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 79


d) Terreiros abertos ao ar livre em festivais
Espaços são organizados em frente a templos, ou áreas específicas
da cidade apenas para sediar um festival. Anualmente são organizadas
apresentações de grupos religiosos, como é o caso de diversos festivais
na África, bem como em diversos países das Américas em que etnias
ou comunidades são convidadas a trazerem seus cantos, danças e
encenações para serem compartilhadas e abertas também para um
público interessado. É o caso do Festival de Divindades Negras, no
Togo. Ali também é criada uma arena para os grupos desenvolverem
performances relacionando-se com o círculo, pois o público se dispõe
desta maneira. Muitas vezes dançarinos e público se confundem e
se misturam no espaço do terreiro (SIMAS e RUFINO: 2017, 41).

Apresentação do Sociedade Virgens de Adjifos, Festival de


Divindades Negras, Aneho, Togo. Foto de Zeca Ligiéro, 2011.

Na abertura do Festival de Divindades Negras, o ritual envolveu os


participantes sem a divisão entre espectadores, obviamente excluindo
os estrangeiros como eu. Todos dançavam, cantavam, se ajudavam
em êxtase. Podemos sentir o espaço vivo, redimensionado como um
único terreiro. Todos vestiam roupas brancas. Era uma homenagem
aos 41 voduns da floresta sagrada de Glidji.

80 | TEATRO DAS ORIGENS


Ritual de Abertura do Festival de Divindades Negras,
Santuário de Glidji. Foto de Tatiana Damasceno, 2011.

e) Pequenos terreiros orbitais


Performers que escapam do terreiro principal e recriam cenas
em espaços outros. São casos raros, mas notamos isto no sítio da
Maison de Goro Vodun, no interior do Togo, quando a maioria dos
voduns dançava e permanecia com o coro de devotas sentadas em
torno da árvore sagrada, um grupo de cinco guerreiros saiu e ficou
dançando como se mantivessem a guarda em um posto de proteção
da comunidade. Quando me aproximei, um deles me encarou. Como
se estivesse dizendo “fique no seu espaço e me deixe no meu”. Quem
sou eu para discutir com um guerreiro ancestral incorporado...

Guerreiros saem do núcleo principal da performance. Foto de Yara Ligiéro, Togo, 2013.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 81


Ritual para a Divindade do Fogo, Centro Cultural do Grupo Sotz’il Jay.
Foto Zeca Ligiéro, 2012.

f) Pátio ou terreiro no interior de templos


Existem os rituais cíclicos ou eventuais que acontecem dentro de
espaços fechados por distintas razões, sobretudo por causa das per-
seguições religiosas e policiais. Geralmente, a performance acontece
em semi-arena e os espectadores se postam no entorno. Ao fundo fica
o altar e a orquestra de músicos. Talvez sejam estes os espaços mais
comuns, encontrados nas casas de candomblé, de umbanda e tambor
de mina e ciganos. No caso, fiquei surpreso ao visitar o grupo Sotzíl
Jay, na Guatemala, para assistir à inauguração do seu diretor que tinha
sido morto há três anos e quando cheguei existia uma cerimônia ao
Deus do Fogo maia (detalhes no capítulo 4).

g) Perfomances processionais
Concebida por Brooks McNamara e Barbara Kirshenblatt-Gim-
blett, o conceito de “performance processional” indica uma forma
móvel de apresentação na qual tanto os performers como o público
acompanham o seu andamento, seguindo por vários paradas externas

82 | TEATRO DAS ORIGENS


previamente acertadas. Poderíamos citar como exemplos a própria
Escola de Samba (LIGIÉRO: 2011) ou, obviamente, a procissão cató-
lica. Carlos Veracruz analisa a importância da procissão da divindade
Tempo do Candomblé Angola Mansu Nangetu de Belém, Pará:
Quando percebi a potencialidade de contágio da procissão, na medida
em que ela acontecia na rua, eu estava percebendo os valores bantos
envolvidos nela. Valores potencialmente coletivos, pois só vivendo em
comunidade, é que o ser humano (muntu) pode participar da vida
pulsante em toda a criação, visível e invisível. E a vida só se realiza, ou
tem um sentido, na interação. Se isolar morre, deixa de interagir com
o fluxo pulsante da vida. (VERACRUZ: 2017, p.80)

Procissão do Tempo. Fotografia de Guy Veloso (2015). Fonte: Instiuto Nangetu.

Participação do público
De um lado do interior do pequeno barracão de alvenaria do
terreiro de Dona Isabel, em Belém do Pará, as irmãs Dona Mariana,
Dona Erondina e Dona Jarina evoluem em suas danças pelo exíguo
salão. De um lado, o público observa atento e às vezes sendo tocado

Características e qualidades do Teatro das Origens | 83


pelas saias rodantes das entidades manifestadas; do outro, como um
grande altar, bonecas no tamanho natural (manequins de mulheres
negras), representando as três irmãs, com vestidos das mesmas cores
usadas por cada uma delas colocadas em um plano superior, parecem
observar a performance do ritual e o encontro com seu público. Um
tipo de relação impensada no teatro ortodoxo. Já em outro terreiro
visitado na mesma cidade, este de umbanda, numa festa também para
Dona Mariana, pudemos ver em uma área central todas as entidades
livremente circulando, enquanto o público, mais distante, assistia
sentado em bancos, como acontece geralmente também nos terreiros
de candomblé. Em outro terreiro, na Ilha de Marajó, também num
ritual para Dona Mariana, a plateia permanece apenas de um lado
de um quadrilátero, enquanto os outros três encerram os rituais,
dando uma ideia de palco italiano. Portanto, não existe uma relação
homogênea entre os diversos espaços e festas consagrados para as
encantadas da Turquia e seu público. Entretanto, a veracidade destes
mesmos rituais, sua plasticidade, sua força, permanece inalterada.
O que desfaz um pouco a ideia de teatro segundo a qual o espaço
determina a linguagem e a comunicação.

Terreiro de Tambor de Mina de Dona Isabel, Belém, Pará. Foto de Zeca Ligiéro, 2010.

84 | TEATRO DAS ORIGENS


Dona Mariana incorporada conversa com Uma ajudante do ritual maquia Dona Maria-
seus devotos. na incorporada.

Na festa de Tambor de Mina, em Belém, enquanto é incorporada


por Dona Mariana, a Princesa Turca da Amazônia, a médium inte-
rage com frequentadores do terreiro dando conselhos, ou ainda, em
outra ocasião, tem a sua maquiagem retocada durante o ritual por
uma ajudante, ressaltando o aspecto dado à elegância feminina da
entidade. Aqui poderíamos aplicar o conceito de Richard Schechner
do Teatro Ambientalista25, aquele que usa todo o espaço, sem as
tradicionais separações de territórios do mundo do performer e do
espaço onde está o espectador. “Existe uma relação real e viva entre
os espaços do corpo e os espaços pelos quais o corpo se move; o
tecido humano vivo não pára abruptamente na pele, os exercícios
com espaço são construídos com base na suposição de que os seres
humanos e o espaço estão vivos” (SCHECHNER: 1973,97). Se para
Schechner a proposta é como um exercício de imaginar o espaço
como algo vivo, para o devoto o espaço concretamente é algo vivo,
como tudo que existe. Ou seja, quando estamos falando do Teatro das
Origens, estamos falando de uma relação contínua entre seres vivos.
Em ocasiões especiais, em espaços outros que o templo, como no
festival de Divindades Negras do Togo, além de toda a parte restrita
aos membros, realizada em círculo em algum lugar mais reservado,
quando o grupo se encontra “aquecido” as entidades incorporadas, e

25 SCHECHNER, Richard. Environmental Theatre, Aplause Books, 1973.

Características e qualidades do Teatro das Origens | 85


devidamente paramentadas, fazem o cortejo e sobem no amplo palco
para suas danças grandiosas, como é o caso do grupo Goro Vodun.

Cortejo do grupo Goro Vodun subindo ao palco do Festival, todos incorporados. Foto de
Tatiana Damasceno, 2011.

Em outros casos, trata-se de um teatro de participação, quando


não existe uma barreira entre plateia e performers: espectadores/
fiéis participam da mesma festa em que as entidades incorporadas
e devidamente vestidas para a ocasião bebem, fumam, dançam e
conversam com os clientes, dando conselhos sobre sexo, dinheiro,
problemas psicológicos etc. Como é o caso do Pagode de Zé Pelintra
e Maria Padilha, onde os espectadores do ritual são convidados a
dançar com as entidades incorporadas.
As performances africanas e ameríndias dentro do contexto estri-
tamente lúdico ou religioso, ou em ambos, só se completam com a par-
ticipação da comunidade. Portanto, nada é pensado com autonomia
própria, está sempre em relação ao grupo a qual ela pertence. Mesmo
que determinadas performances envolvam separação de gêneros, elas

86 | TEATRO DAS ORIGENS


atendem às necessidades momentâneas do grupo ou da comunidade
como no caso de Mapiko e dos Koreduga, como veremos em outros
capítulos. Portanto, a participação e envolvimento do público é o que
dá sentido a este teatro que estamos procurando apontar.
A maioria dos rituais é organizada a partir do círculo. Acontecem
dentro de uma roda, em volta dela ou tendo como referência espacial
o eixo deste círculo. No caso do candomblé, no centro são enterrados
os assentamentos e onde se encontra a grande força, o axé. O poder de
fazer as coisas acontecerem. Muitas das coreografias também seguem
esse formato. Assim como as brincadeiras populares que ainda não
foram padronizadas pelo incentivo das apresentações públicas em
palcos italianos.
O público de devotos ou simpatizantes se organiza em torno da
performance, seja ritual ou jogo, para melhor participar, alguns senta-
dos, quando há cadeiras ou muros, outros permanecem em pé. Muitas
vezes um visitante pode inesperadamente entrar em transe, e neste caso
o pessoal do terreiro vem cuidar dele, levando-o para dentro da casa,
onde é tratado de forma a recuperar a consciência já que não é inicia-
do. Caso seja iniciado, ele poderá se integrar ao ritual, e é igualmente
ajudado pela equipe da casa que lhe fornece algum pano para colocar
em cima da sua roupa e vestir apropriadamente a divindade que o
monta. Assim, percebemos as possibilidades de troca e de mudança
nas relações estabelecidas entre os performers e os espectadores.
Acredito que a dinâmica da performance determina as relações
espaciais; o mesmo espaço é ocupado ora pelos performers em sua
evolução enquanto dança ou executa algum movimento em conexão
com o drama mítico apresentado de forma cerimoniosa, ora pelo
espectador, convidado também a dançar, que às vezes permanece
atento apenas assistindo. Não existe a ideia de um ilusionismo, como
no teatro ortodoxo. Tudo é feito às claras.
Importante frisar que a utilização do espaço deste Teatro das
Origens não se filia às grandes correntes do teatro ocidental, pois
acontece geralmente em forma de arena (dentro do terreiro), pátios

Características e qualidades do Teatro das Origens | 87


internos ou ainda ,no caso das aldeias, no seu circulo central. Quase
sempre é precedido por um cortejo (dança/canto/percussão) que
traz o grupo para o centro da roda em performances processionais.
Ao final, o grupo se retira também em forma de cortejo, enfileirado
ou em duplas.
O Teatro das Origens oferece ao pesquisador e ao devoto oportuni-
dades raras de presenciar, por meio do seu uso preciso, a consagração
do espaço e, como vimos anteriormente, por meio da utilização de
uma narrativa mítica, de um repertório em que conjuga as diversas
expressões dança, música, canto, criação de figurinos especialmente
feitos pela comunidade. Tudo é construído coletivamente em espe-
táculos de rara beleza, enaltecendo e cultuando as divindades da
natureza. As divindades, por sua vez, ao voltarem ao mundo dos
vivos, encontram na arte a forma mais requintada de demostrar o
sagrado para os humanos.

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90 | TEATRO DAS ORIGENS


Teatro ameríndio ancestral
Performance, ritual e festa em
narrativas pré-colombianas

Ellos supieron escuchar


Carlos y Gudrun Lenkersdorf habían nacido y vivido en
Alemania.
En el año 1973, estos ilustres profesores llegaron a México.
Y entraron al mundo maya, a una comunidad tojolabal, y
se presentaron diciendo:
– Venimos a aprender.
Los indígenas callaron.
Al rato, alguno explicó el silencio:
– Es la primera vez que alguien nos dice eso.
Y aprendiendo se quedaron allí, Gudrun y Carlos, durante
años de años.
De la lengua maya aprendieron que no hay jerarquía que
separe al sujeto del objeto, porque yo bebo el agua que me
bebe y soy mirado por todo lo que miro, y aprendieron a
saludar así:
– Yo soy otro tú.
– Tú eres otro yo.
Eduardo Galeano
(Los hijos de los dias, 2012, p.37)

Os elementos da dança e suas complexas coreografias, o uso


de máscaras, os elaborados desenhos corporais, a arte plumária, o
canto, as brincadeiras e a dramatização de animais selvagens e seres
encantados mitológicos, além do profundo sentido ritualístico são
as características em comum das performances tradicionais dos

Teatro ameríndio ancestral | 91


grupos étnicos que constituem o extraordinário leque ameríndio de
celebrações, cuja extensão vai desde as áreas geladas dos esquimós no
Alasca à Terra do Fogo no Chile. Ele se expande por uma geografia
tão ou mais complexa que a africana, habitada por culturas milenares,
vivendo em montanhas a mais de quatro mil metros de altitude ou
densas florestas húmidas tropicais ou ainda grandes planaltos, cerra-
dos e desertos do interior, cuja população em sua grande maioria já se
encontra em processos centenários de hibridização, com exceção de
grande parte da zona litorânea tanto do Atlântico como do Pacífico,
onde quase todas as culturas foram dizimadas pela presença massiva
do colonizador.
É possível perceber semelhanças entre a diversidade de perfor-
mances nativas, mesmo daquelas criadas em diferentes contextos
como: as provenientes das montanhas dos Andes ou da América
Central com as florestas húmidas das Amazônia. Por outro lado, as
performances culturais nativas das grandes civilizações maias, incas,
astecas, como as nativas do Brasil e de outros países das Américas,
de fato não possuem nenhum parentesco com as do europeu, sendo
mais visível a sua aproximação com as asiáticas, as quais a maioria
dos história dores apontam como uma de suas origens, mas que não
vamos estudar no momento.
Para melhor compreender a estrutura da criação cênica destas civi-
lizações pré-hispânicas de forma a percebê-la como um todo a partir
das diversas partes das suas festas sagradas: o drama, o teatro, a peça
concebida e a performance, utilizarei o modelo criado por Richard
Schechner. Ele pode ajudar a definir de forma mais precisa as diversas
e intricadas relações entre esses distintos conceitos, que para muitos
são idênticos, embora se trate de distintas noções (SCHECHNER,
1977:71) Em seu modelo (figura 3.1), Schechner assim conceitua os
tópicos que se conjugam na construção dos eventos levados à apre-
sentação pública em diferentes grupos sociais:

92 | TEATRO DAS ORIGENS


Desenho de Richard Schechner.26

Drama: O menor, mais intenso e (aquecido) círculo. Um texto escrito,


uma partitura, um roteiro, plano ou mapa. O drama pode ser tomado a
partir de um lugar para outro ou de tempos em tempos, independente
da pessoa ou pessoas que o carregam. Essas pessoas podem ser apenas
“mensageiros”, ainda incapazes de ler o drama, não menos capazes de
compreendê-lo ou representá-lo.

Texto: Tudo que pode ser transmitido de tempos em tempos e lugar


a lugar, o básico código dos eventos. O que é transmitido de pessoa a
pessoa, os transmissores não são mero mensageiros. O transmissor do
texto deve saber o texto e ter a habilidade de ensiná-los aos outros. Este
ensino pode ser consciente ou por meio de empatia ou meios enfáticos.

Teatro: Evento criado por um grupo específico de performers, o que as


performances realmente fazem durante a produção. O teatro é concreto
e imediato. Usualmente, o teatro é a manifestação ou representação
do drama e/ou da peça escrita.

Performance: o mais largo, o menos definido dos círculos. A constelação


de eventos, muitos dos quais passam despercebidos, que acontecem

26 SCHECHNER, Richard. Performance Theory. New York and London: Routledge, 1988. p. 72.

Teatro ameríndio ancestral | 93


dentro/entre ambos os performers e a plateia, do momento em que
o primeiro espectador entra no campo da performance – o precinto
onde o teatro acontece – até a hora em que o último espectador sai.

Ao oferecer uma leitura das diferenças entre os quatro conceitos


fundamentais dos processos representacionais, Schechner possibilita
a análise das inter-relações entre os diversos tópicos que compõem
muitas das performances culturais em sociedades atuais ou de outras
épocas, conforme examinaremos a seguir. A partir de uma diversida-
de de arquivos que descrevem as intricadas relações das sociedades
pré-colombianas e suas ricas celebrações, onde ritual, mitologia,
sacrifício, heroísmo se combinam com um sofisticado treinamento
de perfomers e de encenadores, somos levados à definição de dramas
nucleares, parte fundamental de um extenso teatro ameríndio cujos
textos de tradição oral e, posteriormente, escritos, se articulam como
parte de complexas performances espetaculares, que por sua vez
incorporam questões cruciais das tradições ameríndias das grandes
civilizações asteca, maia e inca. É possível, desta forma, apontar
para a existência de um teatro nativo, nascido dentro do ritual e por
mim batizado de Teatro das Origens, centrado em dramas míticos
e desenhado no espaço circular ou processional, por meio de um
inseparável quarteto canto/dança/percussão/narração.
O conceito do inseparável trio da performance africana drum-
ming/singing/dancing tem sido por mim traduzido como “batucar/
cantar/dançar”27, e a partir da investigação sobre Outro Teatro passei
a utilizar também o verbo “contar” ao perceber que grande parte das
performances culturais apresentam o elemento narrativo, remetendo
sempre a uma determinada história, implícita ou explicitamente.

27 Da tríade drumming-singing-dancing, criada por K. K. Fu-Kiau (Ligiéro, 2011), inicialmente traduzi o primeiro
verbo to drum como “batucar” que pareceu-me bastante apropriado para o contexto afro-brasileiro; entretanto,
ao expandir este conceito para as tradições ameríndias, evito a utilização desta palavra e proponho, então, o
termo “percussionar” ou “bater” ou “chacoalhar” (uso percussivo com as maracas), já que “rufar”, o mais indicado
pelos dicionários, também parece-me algo estranho ao universo da performance cênica.

94 | TEATRO DAS ORIGENS


Festas religiosas astecas – Teatro ameríndio
Dentre os relatos sobreviventes das civilizações da Mesoamérica,
talvez as que mais possam se enquadrar neste esquema traçado por
Schechner são as festas religiosas astecas (faladas em nauatles28). Festas
sazonais, com inúmeras etapas, uma verdadeira constelação de eventos,
cujos núcleos por sua vez apresentam sua escrita sob forma de uma gra-
mática específica por meio de símbolos, músicas, danças, movimentos
e ações dramáticas que constroem um teatro de intensa participação
comunitária e que culmina com a representação de um drama, que en-
volve o sacrifício humano e, em alguns casos, a antropofagia do inimigo.
Este material foi intensamente recolhido, numa espécie de etnografia
“pagã”, pelos frades cronistas Bernardino de Sahagún (franciscano)29
e Diego Durán (dominicano)30, cujas volumosas obras eram parte
das estratégias de conversão dos indígenas em cristãos, embora quase
tenham ido para fogueira do Santo Ofício pelos detalhes de suas des-
crições sobre as tradições indígenas. Suas obras foram escritas algumas
décadas depois da conquista espanhola no México (iniciada em 1526),
mas se referem a tradições religiosas anteriores, minuciosamente reco-
lhidas por uma equipe de seminaristas ajudantes dos frades junto aos
mais antigos moradores, que fizeram parte destas cerimônias levadas
a cabo por sacerdotes, autoridades locais e comunidades nativas do
México, levantadas de forma sistemática e consistente pela pesquisa
de Martha Toriz que verifica a estreita ligação entre a festa indígena e
o espetáculo teatral, como atesta o próprio título do seu livro: La fiesta
prehispánica: un espectáculo teatral (1993).

28 Na época da conquista espanhola do México, no início do século XVI, nauatle era o idioma dos astecas, que
dominavam o México central durante o fim do período pós-clássico da cronologia mesoamericana. A expansão
e influência do Império Asteca fizeram com que o dialeto falado pelos astecas de Tenochtitlán se tornasse um
dialeto de prestígio na Mesoamérica deste período. Com a introdução do alfabeto latino, o nauatle também se
tornou uma língua literária e muitas crônicas, gramáticas, obras de poesia, documentos administrativos e códices
foram escritos nos séculos XVI e XVII4. Esta língua literária, baseada no dialeto de Tenochtitlán, foi chamada de
nauatle clássico e está entre as línguas mais estudadas e bem-documentadas das Américas. “Ameríndias, línguas”:
Nova Enciclopédia Barsa 1. (1999). São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, pp. 329-332.
29 SAHAGÚN, Bernardino de. História general de las cosas de la Nueva España. México: Porrúa, 1979.
30 DURÁN, Diego. História de las Indias de Nueva España e islas de tierra firme. México: Porrúa, 1967.

Teatro ameríndio ancestral | 95


María Sten, ao observar o conjunto de descrições de dezoito fes-
tas, realizadas pelos cronistas presentes no México após a conquista
espanhola, detecta características teatrais, apontando a existência
de escolas para os cantores e dançarinos, com ensaios preparatórios
para apresentações que muitas vezes tinham a duração de vários
dias e contavam com o uso de máscaras, figurinos, perucas, pinturas
corporais e maquiagem, além de adereços e cenografia própria, bem
como um diversificado repertório de danças entremeando elementos
dramáticos e burlescos, com algo próximo do circense. E acrescenta:

Mas este teatro rudimentar que conta com todos os elementos da


representação tradicional, tem algo mais que o distingue de modo
especial; é um teatro-espelho do homem e seu mundo; um espetáculo
religioso que ao mesmo tempo é uma fonte imprescindível para os
estudos antropológicos, que permite descobrir a filosofia daquela
sociedade, seus mitos, o Olimpo de seus deuses, sua cosmologia, sua
astrologia, sua magia e seus ritos. (STEN, 1974:30-31 apud TORIZ,
1993:54)

Toriz concentra-se em quatro festas para delas extrair os ele-


mentos do espetáculo teatral. As festas são sazonais e algumas
delas se dão em sequência, perfazendo uma constelação de eventos
processionais que utilizam como espaço sagrado as montanhas, as
lagoas (consideradas sagradas) e o pátio ou escadarias da entrada
do templo Maior de Tenochtitlan. Como preparação para as per-
formances ritualísticas, cada participante, não apenas os sacerdotes,
“devia aumentar de antemão as suas próprias forças mágicas. Para
isto usavam, além do rito de teocuali (comer carne dos sacrificados),
os banhos, jejum e abstinência sexual. O banho constituía já entre
as tribos mais antigas do Planalto Central uma prática preliminar
a todo ato de culto” (TORIZ, 1993:51).
Duas das festas que se sucedem e se conectam tornam-se preciosas
para nosso estudo. A primeira é dedicada ao Xipe Tótec, divindade
da vegetação e também senhor da vida/morte/renascimento, que co-

96 | TEATRO DAS ORIGENS


necta a agricultura com a vida militar e a guerra em geral. A festa que
acontece vinte dias depois (mês do calendário mexica) é a dedicada
ao deus Tlácoc, o deus da chuva, que representa também a fertilidade
e a água. É identificado com cavernas, fontes, montanhas sagradas e
também apresenta um lado terrível dos raios e tempestades. É asso-
ciado, por outro lado, com a bonança e a fertilidade.
A festa para Xipe Tótec é a mais relevante de todas, pois dela
participavam, além dos sacerdotes, guerreiros e cativos, reunindo
sempre uma grande plateia participativa, e acontecia em várias
cidades simultaneamente. A nobreza está sempre presente. Devido
ao caráter belicoso desta sociedade, a festa reflete o drama da luta
contra o inimigo, da sua derrota e da incorporação das suas forças
por meio de várias encenações até a ingestão da própria carne do
inimigo. O sacrifício humano pontua, assim, de forma cabal, a au-
toridade máxima religiosa e secular e suas hierarquias. A violência
da guerra é assim convocada, louvada e ritualizada com danças,
bebidas, comidas e cânticos. Cada segmento do ritual é entremeado
com bailados onde sacerdotes, guerreiros e ajudantes executam um
drama que se repete sempre com novos performers, mas com um
enredo fixo.
O catálogo do Museu Chileno de Arte Precolombino informa que:

Em Teotihuacán e Monte Albán, Xipe-Totec era adorado “nosso senhor,


o sem pele”, deus da primavera, fecundidade e renovação perpétua da
terra. Às vezes, ele era representado vestido com uma pele humana,
símbolo da renovação da natureza, dos ourives e deus dos guerreiros
sacrificados, em outras ocasiões, era esculpido sob uma pele de onça,
ou macaco. Como é o caso desta representação em cerâmica

A culminância de toda a performance dedicada a Xipe-Totec é o


teatro sacrificial. Quatro guerreiros entram em cena bailando, dois
vestidos de águia e dois de tigre; eles encenam, por meio de uma
coreografia, as lutas, rodeiam a plataforma de pedra (onde serão
sacrificados os guerreiros aprisionados) ao centro do espaço cênico

Teatro ameríndio ancestral | 97


no pátio do templo e se posicionam em assentos especiais. Entram
os sacerdotes, onde se destaca aquele que vai, dentre eles, arrancar
os corações dos sacrificados. Ele se veste com uma pele de lobo
ou de puma, para dar destaque à sua força, e se senta em um lugar
especial perto da pedra sacrificial, ao lado de outro sacerdote que é
o “padrinho” dos cativos. Entram, então, os músicos com bandeiras
brancas sobre os ombros e circundam a pedra sacrificial. Quando
todos estão sentados, começam a cantar e a tocar seus instrumentos.
A intensidade cresce conforme avança a cena, preparando um am-
biente de guerra e de temor. O “padrinho” dos cativos vai até onde
está um deles; eles estão nus e com seus cabelos parcialmente cor-
tados e, desde a noite anterior, foram preparados ritualisticamente:
corpos banhados e ungidos, cabeleiras apropriadamente tosadas e
os corpos pintados com listas verticais de cores vermelha e amare-
la, simbolizando o próprio deus Xipe Tótec. É possível que fossem
previamente ensaiados para este momento solene da apresentação
daquele que seria o seu último drama para o público. No teatro vivo,
quando o sacerdote escolhe um cativo, ele o leva até a pedra e ali o
amarra por um pé, de forma que, mesmo preso, consiga lutar em
torno da pedra. O “padrinho” lhe entrega suas armas: uma espada e
quatro garrotes de pau. Em seguida, lhe dá de beber pulque31 em uma
xícara. O cativo a segura e a levanta em direção aos quatro pontos
cardiais e depois bebe, chupando o líquido por um canudo de cana.
O “padrinho” pega um escudo redondo, levanta-o oferecendo-o
aos quatro pontos cardiais e entrega a arma de defesa ao cativo.
O sacerdote se afasta do cativo ao som de tambores e de canto. O
dono (“padrinho”) do cativo, orgulhoso pelo seu bom desempenho,
baila em seu lugar, enquanto observa a ação. Em seguida, um dos
guerreiros sai bailando e vai lutar com o cativo.

31 Pulque, antiga bebida sagrada mexica atualmente popularizada no México. Disponível em <http://www.bbc.
com/travel/story/20141125-mexicos-ancient-drink-makes-a-comeback>, consultado em 3 de agosto de 2015.

98 | TEATRO DAS ORIGENS


Luta da águia (guerreiro) contra o prisioneiro (TORIZ, 1993:91).

Durante as lutas, os guerreiros (caracterizados como águia ou


tigre) na maioria esmagadora das vezes vencem o cativo, quando
então quatro homens o seguram pelas mãos e pelos pés colocando-o
deitado sobre a pedra. O sacerdote carrasco o executa com um golpe
sobre o peito de onde extrai o seu coração. O coração é levantado
com a mão direita e oferecido ao Sol e, depois, colocado sobre um
prato e depositado somente no altar. O “padrinho” traz outro cativo,
efetuando a mesma ação anterior, que se repete várias vezes até todos
os cativos serem vencidos e imolados. O sacrifício terminou, mas as
cerimônias continuam.
Os corpos dos cativos são esfolados e as peles retiradas cuidado-
samente e devolvidas aos seus donos, as cabeças são desmembradas
do corpo que será desossado e cozinhado, posteriormente, para um
banquete antropofágico oferecido aos guerreiros. Os sacerdotes e os
nobres prosseguem o ritual e seguram pelos cabelos, com a mão direi-
ta, as cabeças que arrancaram dos corpos dos sacrificados, executando
o último bailado, o mais macabro de todos. Desta maneira, dançam e
cantam aos sons de tambores em volta da pedra ensanguentada. Ao
final do rito, um momento de melancolia: o “padrinho” dos cativos

Teatro ameríndio ancestral | 99


agarra as cordas com que estes haviam sido atados e as levanta na
direção dos quatro pontos cardiais, faz reverências, geme e, como se
tivesse perdido os próprios filhos, assume o papel de uma carpideira
e chora. As peles são levadas por seus donos ao templo, onde serão
veladas toda a noite.

Retirando a pele dos prisioneiros sacrificados (TORIZ, 1993: 79).

Na manhã seguinte o ambiente festivo prossegue, agora em tom


de farsa. Alguns indígenas pedem emprestadas as peles dos cativos
aos donos das mesmas e se vestem com elas e, assim, cobertos com
a pele do cativo pintado de deus, como se fora uma roupa de malha,
colada ao seu corpo, se dispersam pelos bairros para pedir esmolas
em meio a um momento carnavalesco.
As pessoas do povo recebem contentes a esses pedintes, pois eles
lhe trazem boa sorte, lhes entregam espigas, abóboras, feijão etc. Já
os nobres lhes dão plumas, joias, mantas etc. Durante vinte dias (que
equivale a um mês no calendário mexica), o que coincide com a pró-
xima festa dedicada ao deus das chuvas e da água, eles permanecem
com a pele dos cativos.

100 | TEATRO DAS ORIGENS


Muitos rapazes se vestiam com as peles dos prisioneiros mortos (TORIZ, 1993: 82 e 95).

Cortejo de um grupo vestindo as peles dos prisioneiros sacrificados


(TORIZ, 1993, capa do livro).

Teatro ameríndio ancestral | 101


Em uma cerimônia pública com a participação de todo o grupo
que esteve presente no mês anterior, estas peles são retiradas, e cada
performer é purificado com banhos especiais, com direito a palmadas
para tirar o sebo que acumulou sobre sua própria pele. Os enfermos
da comunidade participam desse cortejo porque acreditam poderem
se curar.

Enterrando a pele (TORIZ, 1993: 110).

Depois disto, as peles são levadas em procissão e finalmente


enterradas junto ao templo, acompanhado de cantos solenes. Além
de todos os atributos do deus Xipe Tótec, ele é conhecido como
aquele que não tem pele, pois sua pele, a vegetação, está sempre se
renovando. Assim, sua imagem é representada coberta por uma pele
humana. Ele é também identificado com os animais que trocam de
pele, como a serpente32.

32 Esta descrição foi compilada do livro de TORIZ (1993) e dos relatos de Sahagún (SAHAGÚN, Bernardino
de. Historia general de las cosas de la Nueva España. México: Porrúa, 1979) e de Durán (Durán, Diego. Historia
de las Indias de Nueva España e islas de tierra firme. México: Porrúa, 1967).

102 | TEATRO DAS ORIGENS


Os rituais obedeciam a um preciso calendário e incorporavam
também o simbolismo dos números, que acreditavam refletir a har-
monia e a disposição do cosmos. Também o simbolismo das cores
é relevante, pois por meio dele era possível mostrar a relação com
os pontos cardiais do universo e sua estreita ligação com os deuses
e as divindades do mundo subterrâneo. Toriz aponta que “todo o
conjunto de atos mágicos e de culto pressupõe um verdadeiro drama
religioso, tal qual eram as festas anuais dos povos nahuas. Tratava-se
de manifestações de caráter geral que conformavam um espetáculo
essencialmente coletivo em que a multidão é, ao mesmo tempo em
que executora, espectadora” (TORIZ, 1993:53).

Rabinal Achí e Ollantay: o ritual, o teatro e seu texto


Deixo agora as tradições orais recolhidas pelos religiosos espa-
nhóis e as suas posteriores discussões para me concentrar em duas
peças remanescentes do teatro pré-colombiano, cuja mitologia e
estética remetem a períodos anteriores à colonização espanhola e
que foram transcritas posteriormente por autores desconhecidos de
origem indígena. Pretendo evidenciar a presença desta maneira de
encenação peculiar, longe dos padrões eurocêntricos, que muitas
vezes pensamos ser as únicas convenções possíveis, mesmo quando
florescida dentro de uma estética nativa. Vou me ocupar de duas obras
raras: o Rabinal Achí, de tradição maia, originária da Guatemala, e o
Ollantay, de tradição inca, originário do Peru, ambos os textos prove-
nientes de performances pré-colombianas ligadas ao poder imperial
nativo e de suas respectivas tradições épicas. Rabinal Achí foi regis-
trado parcialmente em hieróglifos33 na língua maia e, posteriormente
ao processo da colonização, foi transcrito para o alfabeto latino. Já no

33 Embora se diga que a linguagem maia é escrita em hieróglifos, não se trata exatamente disto. A escrita
maia utiliza logogramas complementados por um conjunto de glifos silábicos, com função semelhante à atual
escrita japonesa. BERLIN, H. (1958). “El glifo emblema en las inscripciones Maya.” Journal de la Société des
Américanistes de Paris 47: 111-119.

Teatro ameríndio ancestral | 103


caso de Ollantay, como não existia uma linguagem escrita quechua34,
língua adotada pelos incas quando assumiram o controle de todo o
Peru e parte de outros países da América Latina, não se pode provar
com dados concretos que o texto é realmente anterior à chegada dos
espanhóis, embora a estrutura do mesmo não se pareça com nada do
Século de Ouro espanhol ou mesmo anterior a este.
Portanto, vou destacar a relação entre a tradição oral e a encenação
como processo de restauração do comportamento ancestral. Não estarei
aqui dando destaque igualmente à maneira como estas peças também
refletem a ideologia das classes dominantes, obra que demandaria
uma pesquisa mais profunda e um fechamento do foco. Estarei me
concentrando sobretudo nos aspectos da encenação e de sua passagem
da tradição oral para literatura escrita como um processo que, muitas
vezes, se desvincula da prática teatral, onde muito da tradição oral se
perde em detrimento da própria prática e da ideologia dos encenadores.
Lembrando que, nos dois casos, tanto a preservação do texto como o
que sabemos do que foi a sua representação original, foram levadas a
cabo por padres europeus; sendo o primeiro texto escrito em quéchua e
o segundo em língua maia, ambos foram recriados em inúmeras versões
em espanhol a partir da dominação colonial. Neste sentido, procuro
provar que existiu sim um teatro, embora não separasse dança, ritual,
festa, música, de forte tradição oral. No caso maia, o texto foi preser-
vado em língua escrita achí, maia original, enquanto no inca ainda há
quem duvide que foi escrito antes da chegada do colonizador, embora a
sua estrutura, citações de lugares e de pessoas estejam profundamente
calcadas na linguagem quéchua do período de pré-colonização. Ambos
apresentam uma estrutura que poderíamos encaixar na categoria de
“drama”. Para melhor compreendê-la, recorro à construção triangular
do drama analisada por Schechner:

34 O quíchua (qhichwa simi ou runa simi), também chamado de quechua ou quéchua, é uma importante família
de línguas indígenas da América do Sul, ainda hoje falada por cerca de dez milhões de pessoas de diversos grupos
étnicos da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru ao longo dos Andes. Possui vários dialetos
inteligíveis entre si. É uma das línguas oficiais de Bolívia, Peru e Equador. CAMPBELL, Lyle. American Indian
Languages: The Historical Linguistics of Native America, Oxford University Press, 1997, p. 189.

104 | TEATRO DAS ORIGENS


Figura desenhada por Schechner (SCHECHNER, 1988:16)

No meio do teatro experimental de hoje todos nós temos, mas


esquecemos, das peças triangulares bem feitas. Mas alguns dos
fundamentos deste trio de construção se aplicam ao grego, ao
elisabetano bem como ao drama moderno ocidental (figura 1.5).
Uma visão rápida desta estrutura (1.5) vai nos ajudar alinhavar as
características salientes de nossos teatros.
X e Y são forças, grupos ou indivíduos em conflito. R é a resolução
do conflito relacionando X e Y. O drama continua até o que separa
(e também, obviamente, junta) X e Y é mediado ou removido através
de compromisso, luta, vitória, reconciliação, derrota, ou morte. X e
Y estão em conflito porque eles estão ou representam ideias opostas
e empreendem ações mutuamente exclusivas. X e Y são finalmente
resolvidos em R, o que é uma nova situação ou instituição. Esta
construção é o que Aristóteles pensa quando ele diz que o drama tem
“começo, meio e fim”35.

Nas duas peças encontramos a figura do herói, indivíduo que se


destaca dos demais pela sua competência e bravura e que desencadeia
uma série de ações que geram conflitos psicológicos, morais, que, por

35 SCHECHNER, Richard. Performance Theory. New York and London: Routledge, 1988, pp. 16-17.

Teatro ameríndio ancestral | 105


sua vez, deixam os destinos humanos por um fio. Schechner afirma
que, ao trazer a questão da estrutura fechada com começo, meio e
fim, a mesma aponta para “caminhos” que funcionam como “um
plano de ações humanas organizado, frequentemente bloqueado por
outras pessoas, algumas vezes prematuramente finalizado por causas
naturais ou não.” (1988:17). E destaca, ainda, que é no drama que os
caminhos se completam e que a plateia experimenta o trabalho do
“destino”, da “fatalidade” ou da “sorte” e que “é desta noção de vida-
-caminho que eu crio o modelo triangular com sua dupla qualidade
de complementação e focos, o que Susanne Langer coloca em outras
palavras o que eu tento desenhar”36.
O drama trágico é desenhado de tal forma que o protagonista cresce
mentalmente, emocionalmente e moralmente, pela demanda da
ação, o que ele próprio iniciou, até a completa exaustão dos seus
poderes, o limite do seu possível desenvolvimento. Isto é, é claro,
uma tremendo encurtamento da vida; em vez de se submeter ao
multifacetado e longo processo físico da biografia, as trágicas vidas
dos heróis amadurecem em algum aspecto particular; todo o seu
ser está se concentrando em algum aspecto particular; todo o seu
ser está concentrado em um objetivo, uma paixão, um conflito e
uma derrota final. Por esta razão o agente principal da tragédia é
heroico, seu personagem, a situação a ser desdobrada, a cena, muito
embora ostensivamente familiar e simples, são todas exageradas,
carregadas com mais sentimentos se comparadas com as que possuem
realmente37.

36 SCHECHNER, Richard. Performance Theory. New York and London: Routledge, 1988, p. 21.
37 Langer, Susanne. Feeling and Form. New York: Scriber’s, 1953, p. 357, apud SCHECHNER, Richard. Perfor-
mance Theory. New York and London: Routledge, 1988, p. 21.

106 | TEATRO DAS ORIGENS


Rabinal Achí, o drama maia encenado na Guatemala
Ao encontrar a informação sobre a existência do Rabinal Achí, o
drama pré-hispânico maia, tive uma grande surpresa, pois atribuímos
toda a história do teatro à cultura que determina o seu nascimento:
a Grécia Antiga. Nos meios acadêmicos brasileiros se desconhece a
existência de um drama maia pré-hispânico como o Rabinal, embo-
ra o mesmo já tenha sido tombado como patrimônio imaterial da
humanidade pela UNESCO, em 2009. Outro ponto que se destaca
nesta apresentação: não existe um limite distinto entre o que é dan-
ça, teatro e música. Trata-se de uma conjugação de linguagens em
que os elementos artísticos e ritualísticos são combinados de forma
requintada e elaborada para melhor entreter os deuses, mostrando a
devoção dos humanos, que obviamente também se divertem.
Observa-se aqui um processo raro de preservação das formas
épicas de encenação conjugando texto, dança e música para contar
uma história de embate entre guerreiros; a peça tradicionalmente
era encenada dentro de um contexto ritualizado, feita para os deuses
maias como testemunho da crença e conhecimento de sua própria
mitologia original. Entretanto, uma vez banida, para voltar a ser en-
cenada foi mudado o calendário, adequando-se ao da Santa Madre
Igreja Católica para obter a permissão do poder colonial. A partir
século XVII, passa a ser representada no dia 25 de janeiro durante
os festejos católicos.
É importante destacar que o espetáculo Rabinal Achí não foi
originalmente escrito para ser encenado: ao contrário, foi encenado
dentro de um contexto religioso celebratório e somente muitos sécu-
los depois suas falas foram transcritas. Sua escrita decorreu de uma
prática teatral exercida ao longo de séculos. Logo o drama pré-his-
pânico torna-se uma performance na qual os elementos artísticos e
ritualísticos são combinados de maneira requintada e elaborada para
melhor estreitar a relação entre humanos e deuses, de forma a entreter
a ambos com danças, narrativas épicas e cantos, acompanhados de
instrumentos musicais tradicionais de sua cultura, onde a ênfase de

Teatro ameríndio ancestral | 107


toda a performance não está na dramaturgia embora seja dela que
iremos nos ocupar, principalmente para refutar o argumento de que
não existe o teatro ameríndio porque não existe uma dramaturgia
ameríndia.
O personagem chamado “Homem de Rabinal” é um guerreiro do
Senhor dos Cinco Raios, que reina sobre a nação de Rabinal a partir
de uma fortaleza no topo da montanha chamada Kajyub. Guardando
as fronteiras de sua corte encontram-se dois personagens que têm os
seus nomes ligados às forças espirituais: a Águia e o Jaguar (que nós
conhecemos como onça), que na performance tornam-se dois coros
compostos cada um por um grupo de treze figuras, e que também
representam os guerreiros protetores da fortaleza. Na corte de Rabinal,
além do Senhor dos Cinco Raios (Job’Toj) e seu servo, Achij Mun
Ixoq Mun, existem ainda os personagens de sua filha, que é solteira
mas que atende pelo nome de “Mãe das Penas de Quetzal” (Uchuch
Q’uq’ Uchuch Raxon), e a da rainha, sua esposa, que atende apenas
pelo nome de “Senhora”, personagem que não tem fala e não tem
aparecido nas últimas performances da peça. Apenas um personagem
antagonista se apresenta: Caewk do Povo da Floresta, um guerreiro
da nação vizinha Quiche. A peça começa quando Homem de Rabinal
o captura e o traz para julgamento junto ao Senhor dos Cinco Raios.
Em termos de estrutura e conteúdo, o drama se fundamenta na cul-
tura maia dinástica do século XV, mas sua história está calcada em
mitos de origem e em temas populares e políticos da cultura maia.
O machado e o escudo que os personagens principais carregam
são símbolos do poder da realeza que vão de volta aos dramas da
corte dos quais os arqueólogos chamam de Período Clássico, que se
estende do século quarto ao século X. Os antigos machados tomaram
a forma de uma divindade com uma lâmina de machado de pedra
montado em sua testa, uma divindade celestial capaz de arremessar
raios e meteoros38.

38 Tedlock, Dennis. Rabinal Achi: a Mayan drama of war and sacrifice. New York: Oxford University, 2003, p. 1-2

108 | TEATRO DAS ORIGENS


Tedlock chama a atenção para a continuidade e a transformação das
tradições maias no contato ocorrido com a invasão da cultura espa-
nhola. Ele sinaliza que tradicionalmente as encenações eram feitas com
coros que cantavam e narravam a história enquanto os atores “dança-
vam em silêncio”, mas os missionários intervieram no teatro maia em
escala massiva, não só substituindo os hinos maias por hinos católicos
ou suprimindo por completo, em outros casos, as iniciativas de produ-
ções locais. “Enquanto isto, eles introduziram dramas alternativos da
tradição teatral vernácula da Europa medieval.” (TEDLOCK, 2003:2).
Rabinal Achí é uma exceção, pois apesar das proibições e censuras se
popularizou nos primeiros anos de colonização. A peça permaneceu
falada em língua maia, com personagens locais cantando e dançando
música maia tocada com as longas trombetas de madeira tradicionais,
cuja história dramatizava o sacrifício de um prisioneiro de guerra, tema
este em nada subordinado às novas diretrizes coloniais. A cultura maia
não tinha o hábito de soletrar palavra por palavra o texto do que iria
ser dito na performance, mas os diálogos acabaram sendo transcritos
quando a própria língua passou a ser grafada no alfabeto romano.

Mural de Bonampak, século VIII: cultura maia representando uma encenação religiosa com
os músicos contracenando com divindades aquáticas e do submundo. Artista desconhecido.

Teatro ameríndio ancestral | 109


Os dramaturgos que conceberam e produziram as versões ancestrais
de Rabinal Achi trabalharam sob a constante ameaça da censura. Sua
solução para o problema de manter a memória viva do drama de
corte maia foi separar as palavras da música e eliminar tudo, menos
os contornos de conteúdo religioso original da vista do público.
(TEDLOCK, 2003:2)

Desta maneira, para resistir e manter viva a tradição, como todos


os outros rituais e dramas religiosos maias, Rabinal Achí passou a ser
performada entre quatro paredes ou nas montanhas, longe do raio de
visão das autoridades eclesiásticas. Ela sobreviveu clandestinamente
de 1625 a 1856, quando o padre francês Brasseur de Bourbourg
traduziu-a para o espanhol a partir de um manuscrito de autoria de
Bartolo Sis, em Achí, o qual foi perdido. O que sabemos agora é que tal
frade convenceu as Confrarias a encenar a peça, num evento que teve
lugar em 20 de janeiro de 1856 e que durou 12 dias. Assim, Bourbourg
teve a experiência de assistir à peça em sua totalidade, como texto e
como uma performance. O Rabinal Achí é o único texto indígena que
não reflete qualquer contaminação cultural característica de todos os
outros textos sobreviventes das tradições maia.
Outro manuscrito, datado de 1913 e assinado por Manuel Pérez,
foi encontrado em 1957 nas mãos de Esteban Xolop. Este manuscrito
é diferente do traduzido por Bourbourg. É também possível que o
manuscrito de 1913 (que é o utilizado hoje em dia) possa ser o único
transcrito por Bartolo Sis. Mesmo que a existência de duas versões
diferentes possa lançar dúvida sobre a originalidade de qualquer um
dos manuscritos, o importante é observar como até nossos dias o
Rabinal Achí é transmitido oralmente através de guardiões de uma
tradição que o receberam de seus familiares mais velhos e aprenderam
de cor, como um dever para com a preservação da cultura de toda a
comunidade. Como afirmou Breton:

... ainda hoje, apesar da existência de uma referência escrita do texto


em mãos, José León Coloch recita de cor todos os cerca de três mil

110 | TEATRO DAS ORIGENS


versos do texto, da mesma forma como Esteban Xolop, seu sogro de
quem os herdou, fez isso. (BRETON 1999:26)39  

As coreografias das danças respondem a diagramas muito espe-


cíficos e seguem uma composição especial para preparar diferentes
momentos da representação. Alguns descrevem o movimento de
uma serpente, outros indicam a colocação dos personagens como
eles tomam parte na trama da dança. São basicamente lineares e
arredondados. Em alguns pontos os dançarinos mantêm o ritmo
batendo os pés no chão.
As estruturas da música do Rabinal Achí são antigas e originais.
A música é tocada por três músicos com trompetes, tambores e cím-
balos. Tem ritmos e harmonias complexos e uma variação contínua
da melodia. A música participa através de diferentes momentos da
performance e os músicos são uma parte muito importante dela. A
estrutura da música muda de acordo com os personagens, que têm
seu lugar na representação em cada momento. Cada um dos perso-
nagens principais também é identificado com diferentes apresenta-
ções musicais quando vai falar. É importante apontar como as vozes
dos artistas, ao recitar o texto, também se tornam parte da música.
Embora não ocorra sempre a pulsação rítmica contínua em todo o
corpo durante o tempo da performance, ainda assim poderíamos
aplicar o conceito de drumming/dancing/singing de Fu-Kiau, criado
para definir a performance negra africana, bantu particularmente, e
por mim utilizada em diversos artigos40.
As máscaras pré-colombianas feitas pelos artesãos de Rabinal,
as roupas e os artefatos de uso especial conhecidos como “tocados”
são feitos para representar determinados significados simbólicos e
usados com elmos ou capacetes, pois preenchem toda a cabeça do
performer. Todos os elementos são originais e respondem à estética

39 Bourbourg, Brasseur de (tradução). Rabinal Achí. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/ebooks/15309>.


Acesso em 17 de maio de 2015.
40 LIGIÉRO, Zeca. Cantar/dançar/batucar. In: Corpo a Corpo: estudos das performances brasileiras. Rio de
Janeiro: Editora Garamond, 2011.

Teatro ameríndio ancestral | 111


indígena local. Sua construção e seu uso durante a execução exigem
sensibilidade e habilidades específicas.
Em relação à construção dramatúrgica propriamente dita, pode-
mos verificar que os personagens principais os dois príncipes que se
antagonizam, o Rabinal Achí e o Quiché Achí, representam as suas
respectivas comunidades rivais. Quiché Achí é capturado e levado a
julgamento por ter tentado roubar crianças, uma violação grave da
lei de maia.
No primeiro ato, Quiché Achí é encarregado pelos seus chefes
de cobrar tributos dos rabinalebes e desafia Toj, senhor Ojob de
Rabinal, a sair de sua fortaleza. Os dois guerreiros se envolvem
em sério conflito, inicialmente verbal, mas que termina em luta. O
guerreiro Quiché é capturado e levado a julgamento por ter tentado
sequestrar crianças como prisioneiras de guerra. No segundo ato,
o guerreiro de Rabinal entra no palácio, no interior da fortaleza de
Toj, para anunciar a captura do Guerreiro Quiché. Aqui podemos
aplicar de forma segura o modelo triangular característico, indicado
por Schechner: “X e Y estão em conflito porque eles estão ou repre-
sentam ideias opostas e assumem mutualmente ações exclusivas.
(SCHECHNER, 1988:16-17). O principal conflito gerado pelo não
pagamento de tributo, trouxe a invasão e o enfrentamento entre os
dois guerreiros. A peça começa em frente à fortaleza de Rabinal
com a discussão dos guerreiros, após o Guerreiro Quiché ter sido
derrotado. Esta discussão está entremeada de citações históricas
de batalhas, conquistas e negociações relacionadas ao domínio
geográfico da região e seus reinos desde o século XII (atualmente
sítios arqueológicos), bem como as cotas de pagamento de tribu-
tos na forma de cacau e de outros grãos. Existe um conflito ainda
maior sobre os limites dos reinos e qual deles, historicamente, teria
de fato o direito de cobrar tributo do outro. O tom das falas está
longe de um diálogo realista, e os dois guerreiros são extremamente
elogiosos em relação ao próprio desenvolvimento da batalha e as
estratégias usadas.

112 | TEATRO DAS ORIGENS


Guerreiro Quiché: Ahá! Céu arrogante, terra arrogante! Que mais há
de dizer? Pobres palavras disseste diante do céu, diante a terra, diante
ante mim, diante dos meus olhos. Sou eu pois um valente guerreiro?
Assim você falou: Sou eu pois valente, sou eu guerreiro? Onde haverá
escutado que fugi das flechas da batalha? E além disto disseste: herdarei
tuas montanhas, teus vales. Isto disseste: Sou eu então valente, sou
eu guerreiro, para que tu herdes, pois, tuas montanhas e teus vales?
Certamente que reconheço os limites das montanhas, os limites dos
vales, porque sou filho da nuvem, porque sou filho da névoa. Por isso
herdo tuas montanhas, teus vales. Donde o assinala o céu, o assinala
a terra. Ainda hei de falar-te mais, Guerreiro capitão Rabinal Achí.
Céu e terra estejam contigo!
Rabinal Achí: Ahá! Valente guerreiro, pessoa prisioneira e cativa!
Assim realmente disseste diante do céu, diante da terra: Então, sou
valente? Sou eu guerreiro para herdar tuas montanhas, teus vales? Por
suposto que reconheço os limites das montanhas, os limites dos vales,
porque sou filho da nuvem, sou filho da névoa. Não é o que tens dito?
Porque ainda assim que herde as tuas montanhas, teus vales, queira
o céu que tu te submetas atado diante de meu governante, diante da
minha nação, na grande fortaleza, na grande muralha. Assim tenho
dito, diante do céu, diante da terra. Céu e terra estejam contigo, pessoa
prisioneira e cativa.

Interessante notar a questão da forte presença dos elementos da na-


tureza no discurso dos guerreiros como testemunho dos acontecimen-
tos humanos. Existe uma disputa territorial, mas ao mesmo tempo o
céu e a terra parecem fazer parte do mesmo mundo humano e divino, já
que também são filhos de “nuvem e de névoa”, discurso este que remete
ao que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro tem classificado de
Perspectivismo (CASTRO, 2009), aplicado aos estudos dos indígenas
da Amazônia: muitas vezes um animal ou uma montanha podem ser
visto sob uma perspectiva mais humana que o outro homem, branco
ou de outra tribo, neste caso um antagonista. Mas o guerreiro invasor
havia cometido a falta grave de raptar crianças, fato reprovável com

Teatro ameríndio ancestral | 113


pena de morte pelas leis de Rabinal. Uma vez condenado à morte, o
Guerreiro Quiché pede clemência, vai se despedir de sua terra e gente, e
novamente, como testemunho, elenca as montanhas e o vento. Estamos
falando da palavra enquanto vento soprado em forma de juramento.
No terceiro ato, o guerreiro de Rabinal volta ao guerreiro capturado e
amarrado para contar-lhe a resposta do senhor Ojob ‘Toj.
No quarto e último ato, o Guerreiro Quiché é trazido para o palá-
cio onde, após interrogatório, obtém certos privilégios senhoriais de
acordo com a ética da guerra entre os maias. Após ter comido bem e
se intoxicado com as bebidas sagradas do reino, ele dança três danças,
incluindo uma com a princesa de Rabinal, a última das quais é uma
dança em que ele testa a agilidade das facções dos guerreiros Águia
e Jaguar. O ato final termina com o Guerreiro Quiché amarrado e
simbolicamente degolado. Poderíamos, então, retomando a análise
de Schechner, indicar que as vértices do pontos X e Y em conflitos,
são finalmente fechadas no triângulo e “resolvidos em R, o que é uma
nova situação ou instituição” (SCHECHNER, 1988:16-17).
Desde a colonização, no século XVI, a dança Rabinal Achí é rea-
lizada entre o dia de São Sebastião (20 de janeiro) e o de São Paulo
(25 de janeiro), sendo que as representações podem ter diferentes
versões com o mesmo elenco. O festival é coordenado por membros
de confrarias, irmandades locais responsáveis ​​pela sua produção e
execução. Ao participar da dança, a vida entra em “contato” com os
mortos, os antepassados, denominados rajawali e que são represen-
tados por máscaras. Para o espectador moderno de Achí, recordar os
seus antepassados n ​​ ão é apenas a perpetuação da herança do passado,
é também uma visão do futuro, uma vez que um dia a vida vai se
juntar com seus antepassados.
Originalmente a representação acontecia em datas específicas do
calendário maia dedicadas ao Tohil, Deus do fogo e patrono do signo
Toj, com o sacrifício e a cerimônia, simbolizada pelo fogo sagrado
que nos reconcilia com o coração do céu e o coração da terra. O fato
de atualmente a representação ser em frente à Igreja ou, ainda, ao

114 | TEATRO DAS ORIGENS


lado do cemitério, deve ser entendido como a sobrevivência de uma
tradição, já que o próprio texto se refere a uma série de localidades
onde a cultura Rabinal foi fundada. Essas localidades são as mesmas
áreas simbólicas e sagradas onde a cultura se iniciou e se preserva até
hoje: o templo, o cemitério e cinco montanhas no entorno. Nesstas
localidades os performers convidam os seus ancestres, as divindades
e os indivíduos do presente. José Leon Coloch é quem tem a custódia
da tradição oral, é o diretor e representante do grupo de dança do Ra-
binal Achí, o grupo responsável pela tradição dentro da comunidade
de Rabinal. Este Drama Dançado é importante como uma forma viva
de o passado se comunicar com o presente e uma memória viva dos
princípios fundacionais e de identidade do povo de Rabinal.
Retomando as definições do modelo de Schechner, podemos
perceber como no drama maia, atualmente amparado por um texto
escrito e um roteiro de ações que, de alguma forma, sustenta suas
funções de elucidar sobre o coração da tradição maia e seu entor-
no, destacamos assim os elementos que formam um teatro, com a
presença de espectadores membros das comunidades e convidados.
No entanto, percebe-se que o teatro, o texto e o próprio drama estão
enredados por sucessivas performances preparatórias, envolvendo
oferendas e sacrifícios durante a apresentação do espetáculo de teatro,
e mesmo depois do evento, pois cada parte é construída como forma
de devoção e de culto aos ancestres. Conforme afirma Tedlock ao
descrever a cena final de Rabinal:
Depois de sua fala final, Cawek conduz todos os personagens ao centro
do palco, onde ele ajoelha em direção ao oeste enquanto eles dançam
em torno dele movimentando seus machados. O momento quando
sua cabeça é cortada é representada somente pelo momento quando
eles param os seus movimentos. Ele então levanta-se e junta-se aos
outros na dança final. Agora é como se ele e os outros personagens
se tornassem novamente fantasmas, em seus caminhos de volta ao
mundo paralelo de onde eles conduzem vidas que são visíveis apenas
para sonhadores. (TEDLOCK, 2003:19)

Teatro ameríndio ancestral | 115


Ollantay, a encenação do drama inca
Em minha primeira viagem ao Peru, nos anos 80, encantando com o
esplendor das culturas incas e as anteriores a estas, perguntei se existiria
algum resquício de teatro deixado por aquelas civilizações tão fortes.
Na época, só encontrei um pequeno livro com o texto de um drama
em duas línguas, quechua e espanhol, chamado Ollantay. Era uma
história sobre a aristocracia inca que ao primeiro olhar parecia uma
tragédia grega. A informação que li no prefácio do livro era de que o
texto havia sido escrito pelo Padre Antônio Valdez no século XVII, com
quem se encontrara o manuscrito em 1770, o que foi comprovado pelas
pesquisas de Raúl Porras Barrenechea41, atestando que a sua estrutura
cênica e linguagem estavam ligadas ao Século de Ouro espanhol. Ao
estudar o que parece ser uma ilha diante das outras produções, como
hinos e cantos de tradição católica adotados pela Igreja, o pesquisador
Barrenecha não esclarece bem porque alguém da igreja se interessaria
por um herói nativo, contando a história de um general não aristocrata
que se apaixona por uma princesa inca (ARGUEDAS, [s.d.]:7-9).

Ollantay, como obra nacional, publicado em revistas em quadrinho peruanas42.

41 BARRENECHEA, Raúl Porras. El Ollantay y Antonio Valdez. In: Indagaciones peruanas:


El Legado Quechua. Disponível em:<http://sisbib.unmsm.edu.pe/bibvirtual/libros/linguistica/legado_quechua/
el_ollantay.htm>. Acesso em 17 de maio de 2015.
42 Disponível em https://letrashoracinas.wordpress.com/2014/07/06/comentamos-la-obra-ollantay/. Acesso
em 8 de agosto de 2015.

116 | TEATRO DAS ORIGENS


A mais antiga representação de que se tem notícia do drama foi
realizada durante a revolução de Túpac Amaru II, em Tinta, em torno
de 1780. Segundo as fontes bibliográficas, o inca rebelde ordenou a
encenação da obra com o propósito de exacerbar o orgulho da raça
nativa e estimular a luta contra os opressores espanhóis. Após a
derrota da rebelião, a representação da obra foi proibida e esta ficou
desaparecida durante séculos.
Tudo indica que a obra se baseia em um personagem existente,
conforme apurou o pesquisador Markham:
Encontramos, assim, que o nome de Ollantay pertencia a Anta. Agora,
os incas estavam sob grandes obrigações para com o chefe da Anta,
porque o seu governante tinha salvado o filho mais velho do Inca Rocca
do chefe de Ayamarca, e ele o tinha devolvido ao seu pai. Para este
grande serviço o chefe da Anta foi declarado ser um nobre do mais alto
nível e primo à família inca. Além disso, a filha do chefe Anta foi casada
com o inca Uira-cocha, e era a mãe de Pachacuti. Assumindo, como
parece provável, que Ollantay era um filho do chefe de Anta, ele seria
um primo do inca, e de muito alto escalão, embora não uma agnate
(descendente masculino da aristocracia inca) da família reinante. Isso,
suponho, é o que se pretende. Pachacuti desejou levantar sua família
acima de todas as outras, e que, portanto, não deveria haver casamentos
com indivíduos mesmo do mais alto nível; e sua severidade excessiva
do seu governo sobre a transgressão de sua filha é, assim, explicada43.

Ollantay, então, na vida ou na ficção, nasceu plebeu, mas devido à


sua competência nas artes da guerra alcançou o posto de general dos
exércitos incas e foi benquisto entre a nobreza do país. Ele tem um
relacionamento secreto com Cusi Coyllur (“luz alegre” ou “estrela”),
filha do inca Pachacutec (“o restaurador do mundo”). Esse amor é
proibido, porque de acordo com as leis do Império ninguém, a menos
que seja de outra linhagem inca, poderia se casar com uma princesa.

43 Autor anônimo, apud Ollantay: A Drama of the Time of the Incas. Publicado por Sir Clements R. Markham.
disponível em: <http://www.gutenberg.org/files/9068/9068-h/9068-h.htm>. Acesso em 17 de maio de 2015.

Teatro ameríndio ancestral | 117


O segredo do casal é compartilhado pela Rainha Mãe, Anahuarqui
Ccoya.
Apesar das previsões funestas dadas por Huillac Uno, o sacerdote
supremo da corte, Ollantay decide solicitar ao governante inca a
aprovação formal do casamento com a princesa Coyllur Cusi. Em seu
discurso, Ollantay lembra que, embora suas origens sejam humildes,
ele proporcionou grandes conquistas ao Império Inca, enriquecendo-
-o ainda mais e tornando mais poderoso o grande senhor dos incas,
mas este, enfurecido, o expulsa de sua presença. A filha, Cusi Coyllur,
é trancada em uma cela incomunicável. Lá, porém, em segredo, ela
tem uma filha, Ima Sumac, fruto do amor com Ollantay, que por sua
vez também é apartada da mãe quando ainda bebê.
Ollantay, ao não encontrar mais sua amada, pensando que ela
foi assassinada, decide deixar Cusco com Piqui Chaqui, seu servo.
Ameaça voltar e destruir a cidade imperial. Com seu grupo entrin-
cheirado, instala-se na cidade que leva o seu nome, Ollantaytambo,
declarando-a um Estado independente, disposto à resistência armada
contra os exércitos do poderoso inca.
Dez anos mais tarde, o inca Pachacutec morre sem alcançar seu
desejo de derrotar Ollantay, sendo sucedido por seu filho Tupac Yu-
panqui. O novo rei, disposto a derrotar e capturar Ollantay a todo
custo, envia Nahui Rumi, que promete reabilitar sua derrota anterior.
Rumi se infiltra na trincheira inimiga como espião, ganha a confiança
de Ollantay e, aproveitando o relaxamento da ressaca de uma festa
noturna em Ollantaytambo, abre as portas da cidadela para dar acesso
às tropas fiéis ao Rei que, sem qualquer resistência, consegue capturar
Ollantay e outros oficiais, que são levados para a capital, Cuzco. Tupac
Yupanqui solicita um conselho a seus assessores sobre o destino dos
rebeldes. Uma Huillac, o sacerdote, que sempre foi um pacificador,
aprova a pena de morte para Ollantay. O inca, que em princípio está
disposto a matar todos os revoltados, tem um momento de reflexão e
muda totalmente de ideia: resolve colocar em liberdade os rebelados
e nomear a Ollantay major-general e comandante em caso de sua

118 | TEATRO DAS ORIGENS


ausência. Tupac partirá para Callao (onde será erguida futuramente
a capital Lima) e Ollantay se torna, então, o inca.
Enquanto isso, apesar de ter passado dez anos de dura prisão,
Cusi Coyllur ainda mantém alguma esperança de sair. Sua filha, Ima
Sumac, tem ciência de que sua mãe está viva na prisão. Ela consegue
ser levada à presença do novo inca para pedir-lhe clemência para a
mãe. É permitida a sua entrada no palácio no momento em que seu
pai está sendo nomeado o novo inca de Cusco. Este fato ocorre por
acaso: Ima Sumac, brava desde a infância, entra no palácio imperial
e se ajoelha diante do inca, pedindo misericórdia para sua mãe, que
continua acorrentada no fundo no templo das virgens. Todos vão até
onde está a princesa, Ollantay reconhece seu espectro, coberto por
seus longos cabelos. Tupac finalmente reencontra a irmã, de cujos
lábios ouve a sua triste história. Então, Tupac Yupanqui, magnânimo,
a liberta. Coycolleur se une definitivamente a Ollantay, terminando
com final feliz o drama inca.
A peça caminha para concluir como uma tragédia, mas o final
surpreendente aponta para outra direção. A mudança indica que a
luta entre guerreiros (presente também nos outros dramas – asteca
e maia) é suplantada pelo perdão, o que une o casal, razão pela qual
todo o drama havia começado dez anos antes. Os elementos religiosos
do texto foram destituídos. O próprio rei já não respeita a posição
do sacerdote máximo que era favorável à execução de Ollantay.
Logo, temos aí uma mudança de paradigma: o texto, possivelmente
modificado muitas vezes, aproximou-se do teatro de aventura e de
romances, afastando-se do drama sacrificial que caracterizava as
outras montagens. Portanto, temos aqui uma separação entre o texto
e o contexto que o gerou. Longe de um contexto indígena peruano, o
texto passa a representar uma idealização do inca, como um guerreiro
apaixonado que lutou para vingar e, no final, conquistar o seu amor.
O texto tornou-se popular no Peru e atualmente é encenado por
grupos amadores e em escolas, como culto à memória inca. É possível
encontrar diferentes versões da peça, e até mesmo a sua reprodu-

Teatro ameríndio ancestral | 119


ção em forma de história em quadrinhos, na qual o universo inca
é ficcionalizado e torna-se algo um tanto ou quanto romantizado,
uma idealização de um passado mítico. É possível verificar ainda no
youtube algumas montagens em escolas com jovens interpretando
seus diálogos em versões que mais parecem novelas mexicanas,
carregadas nos tons dramáticos. Ao contrário de Rabinal, não existe
mais nenhuma relação com as tradições das populações indígenas. A
peça serve a alguma atividade cultural ilustrativa e, em alguns casos,
à atividade turística, pois algumas encenações acontecem nas ruínas
de Ollantaytambo, próxima à cidade de Cusco onde, hipoteticamente,
ocorreu a possível resistência do herói diante da recusa do rei em
oferecer-lhe a mão da princesa.
O pesquisador peruano Chara (2010) nos informa sobre as três
hipóteses da origem de Ollantay: a primeira é de que se trate de um
texto inca autêntico, baseado na história, em que os personagens, as
configurações, a linguagem, tudo pertence à era pré-hispânica, ou
seja, antes da chegada dos espanhóis na América. Outro argumento
é que a peça se passa em um total de quinze cenários, o que não
ocorre em qualquer obra de teatro espanhol da Idade de Ouro. Esta
posição tem sido defendida por intelectuais de diferentes países, como
Sebastian Barranca e Gavino Pacheco Zegarra no Peru, o argentino
Vicente Fidel Lopez, o boliviano Jesus Lara, entre outros. A segunda
hipótese é de que o texto seja de origem espanhola e escrito durante
o período colonial, afirmação esta feita por escritores como Ricardo
Palma, Bartolomé Mitre, Arturo Oblitas, Marcelino Menéndez Pe-
layo. Sua estrutura e características de fundo, tais como a presença
do “engraçado” ou bobo da corte e o ato de perdão imperial no final,
presumivelmente de influência da igreja cristã ocidental, reforçam
esta hipótese. No entanto, contra esta posição está o fato de que o
escravo/empregado cômico existiria em todas as literaturas, tanto
do Ocidente como do Oriente, e o indulto do perdão não era um ato
estranho para o estilo de governo dos incas, de acordo com o que se
sabe através da história. Mais tarde surgiu uma terceira hipótese, que

120 | TEATRO DAS ORIGENS


procurou conciliar as duas anteriores. Argumenta-se que o núcleo
de Ollantay é pré-hispânico, de origem inca e presumivelmente foi
mostrado de forma dramática durante as feiras e outras cerimônias
imperiais importantes, mas foi adaptado por escritores latino-ameri-
canos para o teatro encenado com o modelo espanhol, através de uma
série interpolações de cenas, do desenvolvimento de uma linguagem
mais próxima à dinâmica do teatro espanhol, o que deveria ter ocor-
rido ainda no século XVI, culminando na versão copiada por Padre
Valdés, no século XVIII. Esta hipótese tem sido sustentada por José
de la Riva Agüero y Osma, no Peru, e Ricardo Rojas, na Argentina44.

Conclusões
Essa é uma fotografia que representa uma cena do teatro indígena, e
eu fiz muita questão de trazer porque se vocês abrem qualquer manual
de teatro brasileiro, vocês vão encontrar duas afirmações: a primeira
de ordem geral que o teatro nasceu na Grécia, e a segunda que o teatro
brasileiro nasceu quando os jesuítas aqui chegaram, com o teatro
do Anchieta, etc., etc. A mim, me parece uma coisa absolutamente
clara, que o que nasceu na Grécia foi o teatro grego. Porque o teatro
japonês não nasceu na Grécia, o teatro chinês não nasceu na Grécia.
É uma coisa tão clara, não é?! E o teatro brasileiro não nasceu quando
os jesuítas chegaram não. Os jesuítas trouxeram uma contribuição
importantíssima, mas já existia este teatro aqui, do mesmo jeito que
existe esta pintura, maravilhosa, existia este teatro, extraordinário,
que por acaso como o teatro grego, um teatro de máscaras, um teatro
mítico, são divindades que estão aqui presentes, como o teatro grego
primordial, e este teatro tem que ser levado em conta.

Ariano Suassuna45

44 Autor anônimo. Ollantay. Publicado por Simon Chara, disponível em: <https://www.scribd.com/
doc/13142631/OLLANTAY-ANONIMO>. Acesso em 17 de maio de 2015.
45 Suassuna, Ariano. Aula espetáculo: Arte no Brasil, uma história de cinco séculos? https://www.youtube.com/
watch?v=ew5XpfZMwnQ

Teatro ameríndio ancestral | 121


A primeira questão que me coloquei ao contestar o eurocentrismo
que sempre dominou o ensino e aprendizado do teatro nas Américas
era de que existiu de fato neste continente, antes da chegada dos eu-
ropeus, um teatro nativo. Calcava minhas investigações nas teorias do
estudo da performance procurando entender que o teatro, dentro das
concepções ameríndias, não estava confinado apenas ao espetáculo
encenado dentro dos cânones, definidos por Schechner em suas aulas
na New York University como “ortodoxos”, centrado em um texto escri-
to, realizado dentro de uma casa de espetáculos própria, uma vez que
embora a palavra esteja impregnada da sua própria etimologia grega,
o fenômeno teatral é inerente a todas as sociedades, inclusive as que
não tiveram contato com a civilização grega ou que por ela não tenham
sido influenciadas direta ou indiretamente. A meu ver, o conceito de
teatro, quando aplicado a outras tradições, deveria ser pensado como
algo próprio destas culturas. Sabemos que de acordo com o desenvol-
vimento da civilização grego/judaico/cristã ao longo dos séculos, estas
atividades que nasceram juntas – canto/dança/percussão – no teatro
pré-clássico grego, com as transformações ainda na Grécia e as pos-
teriores, passaram a ser atividades separadas e autônomas, cada uma
desenvolvendo as suas próprias estéticas. Como afirma Suassuna, na
Grécia nasceu o teatro grego! E assim por diante...
Meus interlocutores me questionavam: “Tudo bem, mesmo que
consideremos um teatro que inclua todas as outras artes – mas, e o
texto? Uma coisa é o ritual e a dança, outra coisa é o teatro.” E, então,
citavam as teorias de Aristóteles, os ditirambos como um pré-teatro
na Grécia, quando a polis ainda não havia consagrado a própria ati-
vidade teatral. Apontavam sempre uma evolução do teatro por meio
do aprofundamento dos conflitos humanos contidos no texto teatral,
quando a epopeia, calcada na rica mitologia grega, era articulada por
meio de um coro, e o protagonista, através da arte da declamação e,
depois, quando a luta do homem para ser dono do seu destino (contra
os deuses) se desenvolve até estabelecer o seu paradigma definitivo,
o conflito com os outros homens, quando o antagonista passa a ser

122 | TEATRO DAS ORIGENS


o próprio homem, articulando uma trama com matizes psicológicas,
mesmo que ainda preservando uma carga de ancestralidade desig-
nada pelo poder dos deuses. Isso sim, era teatro! Ora, assim eu era
fragorosamente derrotado em meu embate teórico. O teatro que eu
propunha era constituído de encenações com máscaras, cantos e
danças com uma rica mitologia, mas não dramaturgia. Sim, o texto
era o grande diferencial entre o teatro e o não teatro para os grandes e
pequenos teóricos. Para eles, eu estava sempre falando de um pré-tea-
tro, realizado por povos ainda atrasados, primitivos, em um estágio
civilizatório inferior, a maioria dos quais era iletrado ou analfabeto.
Mas, como pudemos verificar, das performances das festas astecas
pré-colonização espanhola surge um teatro ameríndio vital, com
seus próprios textos e valores, centralizado por dramas sacrificiais.
Toriz considera a mais teatral de todas as festas aquela dedicada ao
culto guerreiro: Il tlacaxipehualiztli. Mas também lista as principais
características do círculo do teatro, que emerge do grande círculo da
performance das festas ritualísticas sagradas, no entorno do Templo
Maior de Tenochititlan, o coração do Império Asteca:
a) A ação se desenvolve ao ar livre.
b) Em quatro festas analisadas existem cantos, música e danças.
c) Participação nas encenações de toda a comunidade local.
d) Presença de máscaras, figurinos, oferendas etc. (TORIZ, 1993:144)

Estas mesmas características também podemos perceber nas


indicações das características das outras duas peças aqui analisadas.
Acrescento, ainda, que em todas elas está presente o percurtir/cantar/
dançar/contar.
No caso de Rabinal Achí podemos ver, através da internet (no
youtube), flashes de sua montagem clássica, encenada anualmente
na cidade de Rabinal, e entrar em contato com sua rica estética, na
qual o inseparável quarteto mencionado anteriormente assegura a
transmissão do drama ancestral maia. Destas peças, em que entramos
em contato com as suas encenações transmitidas pelo texto original,

Teatro ameríndio ancestral | 123


emergem complexos processos em que a atividade teatral vem carre-
gada do contexto ritualístico onde foi gerada. Presentes, igualmente,
estão a cosmovisão ameríndia e o profundo sentido ético dos seus
heróis, que ao final da história levam o espectador a outro plano
(drama triangular proposto por Schechner), alcançando a catarse
de que fala Aristóteles em sua Poética. Isto acontece, por exemplo,
no caso do guerreiro Rabinal, quando o herói trágico “concentrado
em um objetivo, uma paixão, um conflito é conduzido a uma derrota
final” (SCHECHNER, 1988:16-17), que é a própria morte, ou o drama
romântico, quando o herói Ollantay, depois de passar por todas as
vicissitudes e guerras e, inclusive, ter provocado involuntariamente
a prisão incomunicável da amada, que não sabia, durante todo este
tempo, que estava viva e, inclusive, lhe dera uma filha, ao final do
drama ele reencontra as duas e torna-se, inesperadamente, o próprio
governante da cidade que combateu, um inesperado happy end.
Ao analisar o teatro antigo dos astecas, Toriz nos revela uma
complexidade inesperada de fusão de elementos:
Toda aquela gama de cantos, danças, procissões, música etc., não
somente fazem parte do nosso passado ou de nossas mais autênticas
raízes; muitos aspectos ainda subsistem. [...] festividades que se levam
a cabo em várias populações do México de hoje. (TORIZ, 1993:148)

Poderíamos, por extensão, pensar em outras formas teatrais sur-


gidas das ricas tradições ameríndias espalhadas pela América Latina
e com as quais, também como estas, nós do Brasil não temos pratica-
mente nenhum contato. Creio que o material levantado aqui é apenas
o início de um grande estudo sobre os dramas ameríndios, e oxalá
possa contribuir para o crescimento de um campo de pesquisa sobre
tradições teatrais ameríndias em novos trabalhos. Salientamos que
todas as encenações discutidas neste capítulo se caracterizam como
Outro Teatro, que é especificamente uma cena concebida, criada e
performada por sacerdotes e adeptos envolvendo os fundamentos
de origem de determinada cultura, e portanto, dentro de um núcleo

124 | TEATRO DAS ORIGENS


mais restrito do Outro Teatro, que estamos chamando de Teatro das
Origens, que emerge dos antigos e cruciais rituais.

La Fiesta de los Collasuyos (nome dado aos moradores desta região do Peru), ilustração
de Pomo de Ayala: percussão, canto, e performance procissional (El Primer Nueva
Coronica y buen gobierno de Felipe Guaman Poma de Ayala, século XVII).

Teatro ameríndio ancestral | 125


Referências bibliográficas
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126 | TEATRO DAS ORIGENS


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Suassuna, Ariano. Aula espetáculo: Arte no Brasil, uma história de cinco
séculos? https://www.youtube.com/ watch?v=ew5XpfZMwnq

Pedra sacrificial mexica. Museu


do Templo Maior, Cidade do
México. Foto Zeca Ligiéro.

Teatro ameríndio ancestral | 127


Dança de brincantes no Brasil e
dança dos dervixes da Turquia
Diferenças por constrastes – jogo,
ritual e espetacularização

O presente texto é parte de um estudo comparativo entre as perfor-


mances religiosas e seculares provenientes da África e presentes no
Brasil junto com as de outras tradições do mundo árabe/turco do
Oriente Médio em relação às suas performances públicas, nas quais
o performer desenvolve o seu enredo corporal em sintonia com o
ritual e o jogo de cena, de forma a atingir seu objetivo. Entendemos
enredo corporal como uma sucessão de ações do performer que
visam a criar sentido ou emoção para si próprio e em relação aos
espectadores. Focalizarei aqui nas danças de roda brasileiras de
umbigada, comparando-as com as danças rodantes dos dervixes da
Turquia. Ambas as performances e de prática ritualística, pela sua
popularidade e interesse público, passaram para o campo da produção
de espetáculo. Evidentemente as diferenças entre as duas são nítidas:
uma é executada basicamente por mulheres e a outra só por homens.
Este estudo de casos concentra-se primeiramente no conjunto de
danças em roda oriunda das comunidades afro-brasileiras, com des-
taque para as principais “danças de umbigada”: o tambor de crioula,
o coco, o jongo, o lundu e o samba de roda e, em seguida, viaja até
a entrada da Ásia para analisar a performance da dança de rodopio
dos dervixes, chamada Sama, da Ordem dos Sufi, que se espalhou
pelos países muçulmanos em diferentes formas.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 129


Entre as inúmeras investigações realizadas por Schechner, a ques-
tão da “roda do êxtase e do transe” dentro do fenômeno da perfor-
mance torna-se crucial para o nossa investigação. Em sua abordagem
sobre este tema, para exemplificar, ele vai escolher justamente o tra-
balho desenvolvido por Grotowski na sua fase do Teatro Laboratório,
e ali percebe também a sua conexão com o teatro oriental e com as
próprias propostas de Artaud.
Olhando a performance numa perspectiva global, dois processos
são identificáveis. O performer ou é “subtraído”, alcançando a
transparência, eliminando “de dentro do processo criativo a resistência
e os obstáculos causados pelo próprio organismo” (GROTOWSKI,
1968a:178); ou ela/ele é “acrescida a”, tornando-se mais ou diferente do
que ela/ele é quando não está performando. Ela/ele é “dobrado”, para
usar a palavra de Artaud. A primeira técnica, a do xamã, é o êxtase, a
segunda, da dançarina de Bali, é o transe. (SCHECHNER, 1988:175)

Roda do Êxtase e Transe por Schechner (SCHECHNER, 1988: 179).

Ele conclui que nenhuma performance é “puro êxtase ou transe.


Sempre há uma mudança, uma dialética tensão ente os dois” (SCHE-
CHNER, 1988:179). Em uma nota em meio ao texto, destaca:

130 | TEATRO DAS ORIGENS


O voo em êxtase do xamã deixa o corpo vazio e transparente:
absolutamente vulnerável. Ryczard Cieslak46 viaja por meio de
subtração para o êxtase quando ele representa o Príncipe em The
Constant Prince. Os dançarinos de transe de Bali são possuídos ou
“tomados” por quem ou o que mais os possui. Olivier47 viaja por meio
de adição para a posse; ele sistematicamente converte o “como se” de
seu Hamlet em um “tornar-se” Hamlet. Essas técnicas de treinamento
de performer que começam com um movimento em direção ao êxtase
– exercícios psicofísicos, yoga, etc. – ajuda a/o performer a “seguir os
impulsos”, o que é, entregar-se e tornar-se transparente. Neste estado,
um performer pode de repente “cair dentro” do seu papel porque a
vulnerabilidade do êxtase pode de repente se transformar na totalidade
da possessão do transe. (1988:179)

Ao analisar o processo de treinamento de Grotowski, baseado


em mergulhos no subconsciente, contato com estados alterados da
consciência e a posterior conversão desse material em signos – “ideo-
gramas gesticulados” – para assim construir uma partitura “cujas
notas são pequenos elementos de contato, reações aos estímulos do
mundo de fora: o que nós chamamos ‘dar e receber’” (GROTOWSKI,
1968:128), Schechner vai destacar a proximidade de Grotowski com
o Teatro Medieval Europeu, a Ópera de Pequim e o balé, ou outras
formas altamente codificadas, muito embora saibamos que no caso
do performer de Grotowski, como naquele da roda das danças tra-
dicionais afro-brasileiras, a sua gesticulação, embora formalizada
pelo simbolismo corporal da tradição que segue e respeita, veste a
pele do outro (no caso das mulheres, o próprio uso da saia longa e
rodada exigida na performance para entrar no brinquedo indica que
ela estará vestindo um outro personagem) para mais plenamente ser
ela mesma. Aqui os impulsos e desejos mais profundos expandem

46 Cieslak foi um dos atores que trabalhou no Laboratório de Grotowski e é apontado como exemplo das
técnicas então desenvolvidas.
47 Laurence Olivier foi um famoso ator britânico, conhecido por suas transformações ao interpretar os
personagens de Shakespeare.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 131


a marca do desenho coreográfico feito anteriormente, ou mesmo a
forma do movimento corporal aprendido com a tradição do próprio
brinquedo, dando-lhes, então, na busca de um estilo próprio de dan-
çar, algum outro sentido, desde que não saia do ritmo e não desafine
no movimento.
Dentre todas as rodas afro-brasileiras, aquelas em que ocorre o
transe são as do domínio restrito do culto aos ancestres familiares
ou divinizados. Nas que vamos abordar aqui, as danças seculares,
falaremos apenas do êxtase, pois este ocupa o corpo de forma tão
ativa na troca do jogo que, se há transe, é apenas o do performer ao
experimentar ser o dançante/cantante/batuqueiro em sua plenitude,
dilatando ao máximo sua própria energia para melhor compreender
a cinestesia da curta vida da performance, que vive apenas aquele
momento em que ele joga com outro performer dentro do ritmo
ditado pelos tambores.

Dança de mulheres no brinquedo de roda


Ao dobrar os joelhos e projetar o seu umbigo para frente, abrindo
espaço na roda para começar a brincadeira, o indivíduo expõe a sua
predisposição corporal para iniciar a brincadeira, a dança, o jogo. Ele
abre mão da sua postura quotidiana, ereta, funcional, para retornar ao
mundo “umbilical”, do que não pertence mais à vida ordinária, mas
ao universo restrito do jogo, adentrando em uma situação absoluta-
mente “extracotidiana”, como define Eugenio Barba. Suas qualidades
pessoais não serão mais medidas pelos seus conhecimentos intelec-
tuais; seu status e persona são deixados do lado de fora da roda. Um
indivíduo corporal emerge, sem tempo para a dedicação exclusiva
ao ego, e junto com ele uma criança livre volta a habitar novamente
seus movimentos sem qualquer tipo de julgamento, apenas entretida
e vivendo intensamente o momento presente. O que vale agora é o seu
“jogo de cintura” atendendo às perguntas e respostas do pessoal e do
coletivo da roda, embalado pelo ritmo do som, da dança e do canto.
É chegada a hora de estabelecer um verdadeiro diálogo corporal,

132 | TEATRO DAS ORIGENS


pois toda a roda se presentifica vibrante em comunicação constante
com o corpo da comunidade, seja ela de coco ou de marrabenta, de
capoeira ou de samba de roda. Ele se apresenta com o que ele tem
de mais íntimo, o seu umbigo, onde seu corpo foi alimentado pela
primeira vez para reconectar-se com o universo mãe de onde foi
parido culturalmente: o mesmo que o alimenta e gera dentro dele
a predisposição para se integrar ao cantar-dançar-batucar, o grande
corpo da performance africana e diaspórica.
Há quem veja nesta dança, em suas inúmeras versões femininas,
chamadas danças de umbigada, apenas a exposição da sexualidade
de um encontro, o prenúncio de um futuro acasalamento, como já
disseram muitos estudiosos, pois de fato, entre o umbigo e o órgão
sexual há menos de um palmo de distância, teoricamente falando.
Ao expor o umbigo, oferecemos também o ventre desguarnecido.
Sem que haja a intenção do sexo, não há porém exclusão do mesmo
no circuito do movimento, pois que do corpo faz parte ele também.
E se alguns dos movimentos do baixo ventre acompanham as ancas
no seu vai e vem, ou no seu movimento oitavado do infinito deitado
em rebolado com múltiplas repetições, não é que se está convidando
alguém (da roda ou espectadores) para o sexo, ou se está imitando o
ato sexual em si para deleite próprio ou de outros. A dança não é feita
para quem assiste à roda, a dança é um simples jogo, uma brincadeira
com quem está participando dela. E o corpo concentrado se dilata,
se recolhe e se estende, avança e recua entrando em um momento de
total sintonia com a música no seu remelexo contínuo, no que parece
ser um solo, mas solo não é. É o momento preciso em que o corpo
se acasala com a própria música que o habita em ondas sonoras,
transformando em movimento a sua vontade de transcender-se em
pulsações, pois sabe de antemão que não pratica ato solitário, nem a
dois. E se a mesma sequência de movimentos se apresenta em um par
de dançarinos, trata-se apenas do fragmento de uma contradança em
grupo, que se desdobra em infinitas combinações de pares na engre-
nagem da roda da dança, de acordo com as tradições locais, em seus

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 133


exercícios contínuos de autopreservação, em contato também com
diversas assimilações de outras danças aparentadas, sempre trazidas
por indivíduos que se agregam.
A dança de roda não impõe um estilo fixo, nem exige que algo da
linguagem de cada um seja banido para participar da brincadeira.
Assim, uma pessoa fora dos padrões estéticos ocidentais pode ser
considerada tão brilhante como a mais encorpada das passistas, nem
exige que algo da linguagem de cada um seja banido para partici-
par da brincadeira, pois a habilidade específica não está atrelada ao
virtuosismo atlético de cada um, mas à sua capacidade de entrega
ao estilo de cada dança, ao conhecimento profundo de particulares
movimentos transmitidos e guardados pela comunidade há muitos
anos. A herança não está em reter nada, mas em ser capaz de lembrar
no corpo o que os ancestres sabiam falar por meio da combinação
do cantar-dançar-batucar, para que o jogo entrelace conhecimentos
do passado em comunhão com o presente. Frequentemente, nos
surpreendemos com uma cozinheira, uma lavadeira, uma empregada
doméstica, cargos mal remunerados, geralmente ocupados em nossa
sociedade por pessoas negras e mestiças devido, ainda, aos modelos
escravistas perpetuados na sociedade capitalista, que, mesmo consi-
deradas na vida quotidiana como analfabetas ou com um universo
limitado, na roda demonstram conhecer um léxico corporal riquís-
simo, com habilidades corporais e desempenhos espetaculares, coisa
que pessoas de “nível universitário” não conseguem mais fazer, pois
suas linguagens corporais foram abandonadas, seus conhecimentos
ancestrais foram há muitos séculos descartados pelos seus parentes
e antecessores.
No mais elementar dos livros, aprendemos que apenas a mulher
tem o ventre e a capacidade de gerar filhos. A tradição oral perpetuou
também ensinamentos sobre o papel da mulher na sociedade em várias
danças de roda, tanto em sociedades coletoras como agrárias. Por causa
disto, algumas danças de roda mais antigas trazem especificamente a
linguagem do ciclo da fecundação, do crescimento uterino ao nasci-

134 | TEATRO DAS ORIGENS


mento. Não que o homem não possa entrar nessa roda, mas talvez
no corpo masculino alguns movimentos culturalmente reservados à
mulher possam parecer estranhos e exagerados para quem os assiste de
fora. Entretanto, de acordo com as concepções mais contemporâneas,
feminino e masculino são considerados frutos da mente humana.
Percebemos que, mesmo nas antigas tradições, às vezes, o corpo lhes
abre espaço e volume indistintamente na dança. E o corpo do homem
em exuberância feminina também se ajusta à roda como se mulher
fosse e como lhe convém, pois a arte da dança é a do corpo sensível,
que determina o movimento que lhe cabe, deixando a racionalidade
de fora da roda para de fato entrar na gira, e a partir daí ser o corpo o
nosso guia. Não somos mais o que pensamos ser, nem o que queremos
pensar que somos, mas somos simplesmente o que o nosso movimento
determina por meio das ações que espalhamos pelo espaço em comu-
nicação direta com o acontecimento da roda. Não importa o gênero,
mas a linguagem que está sendo articulada na dança.
Em algumas rodas, mais tradicionais, o espaço pertence total-
mente à mulher, ainda que o tambor seja o reino do homem, pois
assim determinaram as tradições que vieram da África. Essas danças
de roda foram assim desenvolvidas, em séculos, apenas por elas e
são do seu domínio exclusivo. Local de afirmação de identidade,
de encontro, de solidariedade. Algumas delas, além da saia rodada
comprida, são dançadas sempre descalças e remetem a um outro
tempo, remoto, em que reunidas entre si, podiam expressar-se de
forma própria e particular, exercitando um direito que a vida social
lhes foi roubando, uma dignidade que seus trabalhos forçados e mal
remunerados lhes passaram a negar. Na roda, rainhas irmanadas
voltam a aquecer no fogo do tambor suas esperanças, rememorando
formas de liberdade, exercendo corporalmente memórias e assim
reafirmando identidades negras.
Mas que dança é essa que o corpo todo bole? É uma dança social,
no sentido da convivência horizontal, em que a experiência da liberda-
de individual é levada ao êxito coletivo, energizando a festa. Mas este

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 135


fogo só se acende quando aquecido pelo som dos tambores, que por
sua vez necessitam de mãos ágeis, fortes, capazes de transmitir-lhes
os impulsos em sequências e frequências tais, que irradiam por todo
o salão falas antigas de ancestres, que como consta na tradição bantu,
vem também celebrar junto aos familiares, nas festas de irmandades e
confrarias negras e caboclas. Assim, a dança do quadril e da malícia,
do oitavado e das negaceadas, vive também do ritual e para o culto
de muitas divindades que com elas divide a fé e a alegria no rodopio
seja do salão ou do terreiro.
Algumas danças ousadas adotam posturas, poses, trejeitos, e na
sua performance invocam personagens, mobilizam enredos, aludem a
conflitos desta e da outra vida. O círculo da dança se abre, então, para
que microperformances sejam mobilizadas e, com figurinos suntuo-
sos, farfalhem pelas arenas como um coro de baianas do carnaval, que
ficou mais conhecido que a roda inicial de baianas rodantes. Dança
teatral... dança vira Outro Teatro.
A dança em roda vive não por ser imitada, mas por ser reinventada.
Em diferentes modalidades, suas motrizes culturais são praticadas
arrebanhando uma multidão de todas as etnias, credos e nacionali-
dades. Muitos passam a associar com o temperamento “brasileiro”,
procurando levar a ideia de um Brasil criado por brasileiros, para uma
prática que tradicionalmente pertenceu a camadas da população que
sempre foram exploradas e segregadas como população marginal.
Uma roda de dança negra no Caribe, ou em Cali, pode também ser
passível de sua associação a identidades locais. Portanto, permaneço
com a ideia de uma memória ancestral praticada em diversos estilos
de jogos, de acordo com as cores, ritmos, cheiros e sabores trazidos
de seus respectivos círculos familiares e sociais.
Uma roda não começa a girar à toa, nem um tambor está pronto a
qualquer hora para ser tocado. Existe um ritual anterior, uma prepa-
ração. Uma oferenda, um pedido, um sacrifício, uma nova aliança é
feita com as entidades africanas, sejam elas exus, pombas giras, pretos
velhos, malandros, santos protetores como São Benedito, São José,

136 | TEATRO DAS ORIGENS


São Sebastião, além das divindades inquices, voduns e orixás. Um
tambor não se aquece só com fogo. Sendo assim, quando começa a
festa o ritual já comeu solto, horas ou dias antes.
Juliana Manhães, em sua tese de doutorado, criou uma interes-
sante tabela sobre as danças de umbigada do Brasil que nos permite
checar suas principais características, oferecendo um rico painel, com
exemplos concretos, para melhor clarear nossas ideias sobre o estilo
de cada dança e suas relações espaciais, além de outros elementos
componentes destas performances culturais:

TABELA DAS CINCO DANÇAS DE UMBIGADA48


DANÇAS LUNDU TAMBOR DE COCO SAMBA DE JONGO
CRIOULA RODA

LOCALIDA- Atualmente Em quase todo Estados: Pa- Todo o estado Estados: Rio
DES na Ilha do o estado do raíba, Pernam- da Bahia, com de Janeiro,
Marajó, em Maranhão. buco, Alagoas ênfase no Espírito Santo,
Santarém e e Ceará; e Recôncavo Minas Gerais e
em Bragança na cidade de baiano. São Paulo.
– PA. São Luís, no
Maranhão.

ESPACIALI- Roda e/ou Roda. Roda e/ou Roda. Roda e/ou


DADE filas. filas. filas.

DATAS Ciclo Durante todo o Durante todo o Durante todo Durante todo o
FESTIVAS natalino em ano, mas princi- ano, mas prin- o ano, mas ano, mas prin-
OU PERÍO- Bragança, palmente no cipalmente no principalmente cipalmente nos
DO EM QUE mas pode carnaval, dia 13 ciclo natalino, no ciclo natali- dias de santos
ACONTE- acontecer de maio, São no carnaval e no, no carnaval católicos ou
CEM durante todo João ou mês de no São João. e no São João. de entidades
o ano. agosto. Depende de afro-brasilei-
qual santo a ras, dia 13 de
sambadeira maio, dia 20
louva. de novembro,
ciclo junino ou
alguma festa
do grupo ou
comunidade.

48 MANHÃES, Juliana. Um convite à dança: Performances de umbigada entre Brasil e Moçambique. 2014. Tese
(Doutorado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Centro de Letras e Artes,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 137


DANÇAS LUNDU TAMBOR DE COCO SAMBA DE JONGO
CRIOULA RODA

INSTRU- Dois curimbós Parelha: Tambor Ganzá ou Pandeiro, Tambor gran-


MENTOS (tambores), grande ou tambor maracá, atabaque, be- de: tambu
um alto e outro mãe, meião ou surdo ou rimbau, viola ou caxambu;
baixo; flauta socador e criva- zabumba, e chocalho. e o tambor
de madei- dor ou pereren- pandeiro e Uso de menor,
ra; maracás; e gue. Matraca em triângulo. palmas. candonguei-
viola cabocla, alguns grupos e o A sandália ro. Alguns
substituída pelo apito utilizado em de madeira é grupos usam
banjo. Hoje o todos os grupos quase como a puíta ou
instrumental para indicar o um quinto angoma e o
incorpora início, o fim e instrumento, chocalho.
flautas, as interrupções utilizado Uso de
clarinetes e durante a roda de somente palmas.
saxofones. brincadeira. em alguns
Uso de grupos.
palmas. Uso de
palmas.

INDUMEN- Mulheres: Mulheres: Saia Mulheres: Mulheres: Mulheres:


TÁRIAS Saia longa no colorida blusa Saia colorida Saia colorida Saia colorida
estilo “volta ao branca, torço, até o joelho, com grande blusa branca,
mundo”, blusa pano fazendo um blusa branca anágua fazen- flores nos
branca, deixan- pequeno turbante com babados, do volume, cabelos.
do a barriga de ou flores nos estilo ciga- blusa branca Colares e
fora, colares cabelos. Cola- na, os pés de renda com pulseiras
e pulseiras res e pulseiras descalços, babados, coloridas.
coloridas, flores coloridas. ou eventual- torço tipo Mestres
nos cabelos. Homens: Calça, mente com baiana, flores e alguns
Homens: camisa e chapéu tamancos, nos cabelos. grupos usam
Calça curta, de palha. flores nos Colares e branco.
com faixa na cabelos. pulseiras Homens:
cintura ou não, Colares e coloridas. Calça, cami-
camisa branca pulseiras Homens: sa e chapéu
com desenhos coloridas. Calça, camisa de palha.
marajoaras Homens: e chapéu de
e chapéu de Calça arre- palha.
palha. gaçada até
o meio da
perna, camisa
e chapéu de
palha.

ELEMEN- Água Terra e Fogo Terra e fogo Terra e fogo Terra


TOS DA
NATUREZA

138 | TEATRO DAS ORIGENS


DANÇAS LUNDU TAMBOR DE COCO SAMBA DE JONGO
CRIOULA RODA

SANTO Não foram São Benedito Varia de São Cosme São Benedito
PROTETOR encontradas ou Nossa acordo com Damião ou ou Nossa
informações Senhora do a comunida- do gosto da Senhora do
relacionadas Rosário. de, no litoral sambadeira. Rosário.
a algum santo é muito
protetor. festejado
para São
Pedro e São
João.

NOMES DE Não foram Não existe Travessão, Corta a jaca, Mancador,


PASSOS encontradas sistematização cavalo man- separa o tabeado ou tabé
informações dos nomes dos co, tropel visgo, miudi- e amassa café.
sobre o tema, passos, mas repartido, nho e apanha (Mestre Darcy)
embora nas sabe-se que sete e meio o bago.
descrições cada tambor e o xipapá. (Oneyda
revelem muitos proporciona um (Câmara Alvarenga,
meneios e passo ou jeito Cascudo, 1945:135)
requebros em de dançar. 1998:293)
conjunto com Chamo passo
as umbigadas. básico do
meião, círculo
pelo próprio
corpo, remelexo
do crivador,
quebras de
movimento do
tambor grande e
miudinho.

Observações sobre as cinco danças de umbigada


Em sua investigação, Manhães caracteriza corporalmente as
gestualidades das danças de umbigada brasileiras como aquelas
que apresentam a projeção do ventre para frente. Dentre as danças
relacionadas, o tambor de crioula no Maranhão é a única em que os
umbigos se encostam literalmente, já que em outras danças, como a
do coco e do jongo, “mesmo com os umbigos não se encontrando,
percebe-se a projeção da pelve ou a marcação do passo no pé, repre-

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 139


sentando a umbigada” (2014:148). No samba de roda, a umbigada
acontece quando os corpos se aproximam, podendo ocorrer um
ligeiro encontro de umbigos.
A relação dos brincantes (performers) que estão dançando com
a orquestra, composta quase sempre de três tambores, acontece em
uma diversidade de situações. No jongo e no coco a marcação do
momento da umbigada é precisa, obedecendo à pulsação, “sendo que
o jongo tem uma cadência mais vagarosa do que a batucada do coco,
e essa mesma gestualidade repete-se diversas vezes na pulsação com
seu par.” (MANHÃES, 2014:148).

Dança do Batuque em São Paulo. Litogravura de Spix e Martius, Sec. XIX

No tambor de crioula não há um momento específico da pulsação


que determina a umbigada, pois ela surge na pulsação entre a relação
dos três tambores, embora seja o tambor grande que geralmente indi-
ca o momento da punga (nome dado à umbigada no Maranhão). As-
sim, a coreira marca o momento da umbigada de acordo com a batida
do tambor grande, mas a umbigada que encosta os umbigos acontece
apenas uma única vez e em seguida começa uma nova dança com
outra pessoa que é convidada a entrar na roda. Antes do momento

140 | TEATRO DAS ORIGENS


do encontro entre os umbigos, podem acontecer momentos de mais
liberdade em que as coreiras que estão dentro da roda têm momentos
individuais, em que traçam um solo, girando “de um lado e depois
para o outro, ou mesmo rebolarem, podendo chegar ao chão, até o
momento em que uma delas tomará a atitude de umbigar na outra,
de acordo com a pulsação forte que o tambor grande proporciona”
(MANHÃES, 2014:27).
No samba de roda a umbigada ocorre sem uma marcação precisa
para a umbigada. Ela acontece de acordo com a própria dinâmica
da performance do brincante, que livremente entra na roda tirando
outro para dançar, sendo que “normalmente o passo do miudinho
faz aproximação dos corpos, demarcando a umbigada e a saída da
outra sambadeira” (MANHÃES, 2014:27).
Em todas as danças de umbigada há uma relação de cuidado e
respeito com os tambores e demais instrumentos de percussão, cada
uma apresentando suas especificidades. No jongo, os dançarinos têm
uma relação devocional com os tambores, as letras cantadas pedem
licença, lembram orações e muitas vezes fazem menção aos jongueiros
mais antigos. O coco é o ritmo mais alegre, tem uma energia de puro
divertimento e não apresenta relação com o sagrado, suspendendo
o tempo ancestral para que a brincadeira alcance o seu momento de
êxtase, provocado pela própria alegria do jogo e do ritmo acelerado
da dança. Já no samba de roda, antes de dançar para os tambores e
pedir licença é necessário que o performer circule em torno de toda
a roda para depois entrar e sambar no meio e, assim como no tambor
de crioula, é importante que, além de tirar a coreira que está dançan-
do ao entrar na roda, saúde os três tambores como sinal de respeito
à tradição. Neste caso, a alusão aos antigos tambores africanos, que
encerram o sagrado por canalizarem o som divino, é preservada.
Manhães, em seu estudo, procurou também discernir sobre a
“energia” como estados de “potência do corpo, de tônus muscular
ou de esforço, como Laban apontou em seus fundamentos de análise
do movimento” (2014:108), pensando em destacar em cada uma da

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 141


danças sua relação com os quatro elementos da natureza. Assim, ela
percebe no jongo “a dança mais terrena de todas, com uma relação
de base profunda, demarcada pela inclinação do torso” bem como “o
samba de roda, o tambor de crioula e o coco têm uma energia forte
da terra” (2014:108), sendo que estes dois últimos também agregam
uma energia de fogo, no sentido de que trazem movimentos mais
súbitos. O lundu, pela sua sinuosidade e leveza, ela associa à energia
da água. Manhães destaca que
... esses estados de energia demonstram a relação do contato físico do
corpo com os elementos da natureza, estabelecendo um diálogo em que
as danças de umbigada trazem, na maioria das vezes, os pés desnudos,
em contato com o chão, com a terra sagrada, onde vivem ainda a tribo
do nosso pai e a tribo da nossa mãe. (MANHÃES, 2014:103)

Lundu. Detalhe da litogravura de Earle, Sec. XIX.

Embora Manhães, em seu mapa, relacione ambos os sexos no


item indumentária, é importante frisar que algumas danças, como o
tambor de crioula, são tradicional, mas não exclusivamente, dançadas
por mulheres. Em outras danças, ainda que exista a presença mas-

142 | TEATRO DAS ORIGENS


culina, observa-se uma presença feminina mais marcante. No caso,
apenas o lundu, por ser uma dança tradicional da relação masculino
e feminino, necessita um dançarino homem para contracenar com
sua partner.

A umbigada fora do contexto comunitário, recreada pelo Coletivo Matuba como


prática de montagem se apresentando na UNIRIO. Foto Igor Keller, 2015.

As danças de roda afro-brasileiras, em seus diversos estilos,


exigem do brincante uma prontidão corporal, uma disponibilidade
para o jogo da própria dança e disposição para saber como entrar,
como dançar e como sair de roda de acordo com um vocabulário
simples que se não foi aprendido com o convívio com os mais
antigos, pode ser aprendido na hora, ao arriscar-se a penetrar no
círculo que forma a roda. Numa roda de brincantes antigos, os
novos brincam com mais cuidado procurando manter a harmonia
e o jogo que a dança pede. Não importa se apenas como brinquedo

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 143


ou como forma contaminada da religiosidade bantu, como o jon-
go. A flexibilidade das entradas e saídas de membros do público
indica uma forma aberta e comunitária de festejar e de manter as
tradições ancestrais. Uma grande quantidade de gente jovem de
áreas nobres da cidade, sem relação com comunidades tradicionais,
tem se aproximado dos mestres e dos grupos tradicionais demons-
trando a força dessas danças no universo contemporâneo. Muitos
deles, entusiasmados com os aspectos formais do movimento, dos
ritmos e das canções, tornam-se pesquisadores demonstrando um
profundo respeito por seus princípios ancestrais, suas normas e suas
regras. Embora o aspecto ritualístico tenha sido deixado de lado,
permanecem algumas cerimônias como a reverência aos mestres e
seus santos protetores.

Roda do Coletivo Matuba, prática de montagem na UNIRIO, 2015. Foto: Igor Keller.

144 | TEATRO DAS ORIGENS


A Roda dos Dervixes que gira para encontrar Deus
Assim como vi uma minúscula mesquita encravada na esquina
de uma rua empoeirada em Maputo, Moçambique, na qual mal cabia
um número reduzido de fiéis muçulmanos com seus tapetes para
estenderem e ali se ajoelharem para suas orações a Alá, pensei que,
em princípio, lá também poderia existir algum centro da Ordem Sufi,
igualmente minúsculo, onde os dervixes poderiam dançar. Mas como
evoluir no giro em um espaço pequeno, comprimido pelas paredes?
Em Maputo, a presença muçulmana era muito forte, presenciei o gru-
po de mulheres dançarinas/cantoras do Tufo de Malafaia49, no bairro
dos Militares, apresentando uma performance de roda no fundo do
quintal da líder, onde dançavam, batiam palmas e, inclusive, prati-
cavam sua dança de umbigada, cantando suas músicas africanas que
também eram repletas de referências ao mundo árabe. Sabemos que
os árabes chegaram ao continente africano pelo menos nove séculos
antes dos europeus. É provável que grupos de Sufi vivam em alguns
países da África Subsaariana, mas é bem mais conhecida a sua pre-
sença junto às grandes mesquitas ou em algum monastério do norte
ou leste da África. No bairro de Odurman, na periferia de Cartum,
Sudão, dervixes de pele negra com mantos brancos e verdes dançam
e cantam em roda diante do túmulo do Sheik Hamed Al-Nil, sendo
esta uma dentre as mais de cem Ordens Sufis espalhadas, principal-
mente, pelo mundo muçulmano, inclusive em vários países da Ásia50.
A dança rodopiante dos dervixes foi concebida pelos ensinamen-
tos deixados por Jalal ad-Din Muhammad Rumi (1207-1273), um
poeta, juiz, teólogo e místico do Islã, que nasceu na antiga Pérsia e
passou a sua vida em Konya, Turquia. Após sua morte, seus pen-
samentos, práticas religiosas e meditação, incluindo o corpo em
movimento giratório, inspiraram o filho Sultan Walad e seus segui-

49 A visita ao grupo de dançarinas Tufo de Malafaia, no bairro dos Militares, em Maputo, se deu graças à pesquisa
de Juliana Manhães, a quem pude acompanhar por cerca de dez dias, em 2013, como professor orientador.
50 CASTRO, Haroldo. Luzes da África: pai e filho em busca da alma de um continente. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 145


dores a fundarem a Ordem Sufi Malawiyah, popularizada como a
“ordem dos dervixes girantes”, aqueles que praticam uma cerimônia
chamada Sama. Entre os aspectos especiais da vida percebidos por
Sequer na dança do Sama, encontramos o simbolismo de diversas
ações onde estão configurados os mitos de criação do universo, do
ser humano e da nossa presença no mundo. Ele também atesta a
presença, na dança dos dervixes, do simbolismo do “progresso do
ser humano depois de realizar a tarefa da subserviência, como apoio,
com amor de Deus; e a nossa escalada em direção às fileiras do hu-
mano perfeito” (SEQUER, 2011:7). Portanto, ele vincula diretamente
a dança a uma visão mística de um comportamento a ser seguido
segundo determinadas normas em busca da perfeição humana, na
medida em que se aproxima de Deus. Nitidamente estamos diante de
um desenvolvimento do pensamento muçulmano, que por sua vez
herdou da tradição judaico-cristã a crença em um só deus, revelado
aos homens por meio da palavra escrita. Percebe-se a assunção e a
afirmação do monoteísmo praticado pelos muçulmanos, cujos prin-
cípios da palavra revelada, e ditada em livro como guia prático de
comportamento, se filiam diretamente à continuidade da genealogia
judaico-cristã numa espécie de “prosopopeia monoteísta”, título de
um capítulo do livro De l’homme: De l’aliénation à la communication
escrito por Jacques Poulain (2001). Mas ao assistirmos a um ritual
ou uma performance dos dervixes, ou estudarmos a história da
sua fundação, vamos perceber que seu universo é mais amplo do
que parece e está emprenhado de desejos místicos incorporados de
outras religiões do Oriente, na sua meta de aprimorar o ser humano
em sua busca espiritual até a sua iluminação, pois a dança, o canto,
a poesia e o amor são cruciais para melhor se aproximar de Deus e
a sua fisicalidade, em termos da dança, é veículo para o transporte
mais eficiente da palavra escrita.
Para melhor entender a história do movimento Sufi, é importante
ver como o islã é entendido de forma libertária e não restritiva, como
aparenta para o público leigo devido a interpretações fundamentalis-

146 | TEATRO DAS ORIGENS


tas, radicais, de terminados princípios em relação à própria religião
e ao seu uso indevido por grupos terroristas e grupos conservadores
árabes. Estudiosos têm apontado a origem da inspiração de Rumi
para a criação do Sama, ao encontro e separação com o grande mestre
Shams al-Din de Tabriz (1185-1248). Carvalho51 traz dados impor-
tantes ao levantar a origem da família de Shams, que era israelita e
seguia uma linha de dissidentes do islamismo sunita, que tinha entre
os seus postulados de vida, a “prática de se fazerem passar por loucos
ou tolos” (1996:19), sendo proveniente da tribo dos Hashinins, da
Síria, liderada pelo legendário Aladim, conhecido como “O Velho da
Montanha”, cujas práticas rituais admitiam várias formas de estados
alterados da consciência, como o êxtase místico através da dança.
Assim, é possível que Rumi tenha entrado em contato com a dança
mística que busca o êxtase por meio do encontro com Shams, que
praticava esta dança anteriormente. O pesquisador das tradições tur-
cas, Talat Sait Halman destaca, entretanto, que a maioria dos dervixes
não considera Sama uma forma de dança, mas uma meditação em
movimento. Ele aponta que a cerimônia carrega alguns atributos do
ritual dionisíaco presente na região da Anatólia, Turquia. Outros
antecedentes da dança giratória podem ser encontrados nas antigas
danças xamanísticas turcas trazidas quando estes migraram da região
da Ásia Central para a Anatólia (HALMAN, 2011:48).
Quando Rumi se encontra com Shams pela primeira vez, ele já era
conhecido como um acadêmico com estudos realizados nas línguas
persa, turca, árabe, grega e hebraica, dono de um vasto conhecimento
enciclopédico. Entretanto, “a paixão passou a reinar sobre sua mente.
As fronteiras do intelecto, subitamente pareceram muito estreitas,
constritas, claustrofóbica”. Como resultado do seu amor por Shams,
“ele embarca em um período de constante êxtase e excitação, de cria-
tividade poética, de imersão na música – e o Sama, o giro místico”.
Segundo a tradição desta Ordem de Sufi, Shams teria incentivado

51 CARVALHO. José Jorge. Poemas Místicos Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar Editorial, 1996.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 147


Rumi a começar e a firmar o Sama “como um meio artístico de ex-
perimentar o êxtase e atingir a comunhão mística com Deus, o Bem
Amado.” (HALMAN, 2011:17). Rumi abandonou os seus discípulos,
para tornar-se discípulo de Shams, com quem conviveu cerca de quin-
ze meses. Pressionado por enciumados discípulos e familiares, pois
Rumi havia abandonado o lugar de líder religioso muçulmano para
buscar um caminho próprio por meio da dança e do transe, Shams
decidiu voltar à sua condição de andarilho e desapareceu. Rumi se
desesperou. Compôs uma série de poemas em que se sente como em
um exílio espiritual: “Venha, venha, em sua ausência, eu perdi meu
juízo e minha fé” (HALMAN, 2011:27). Shams, cujo nome significa
Sol, passou a ter um duplo significado para Rumi, que o procurou em
diversas cidades sem êxito, até que finalmente seu filho, Sultan Veled,
trouxe o amado e inspirador mestre de volta. Ele, então, escreveu:
Bendito momento. Aqui nós sentamos neste palácio de amor
Você e eu.
Nós temos duas formas, dois corpos, mas uma só alma.
Você e eu.
As cores dos jardins e os sons dos pássaros
Entre os canteiros de flores nos farão imortais
Você e eu.
As estrelas do paraíso sairão para nos espreitar
Nós mostraremos estas estrelas e mesmo a lua
Você e eu.
Unidos no êxtase, nos não seremos mais você e eu
Resgatados da balburdia tola, vamos nos alegrar
Você e eu
Todas as aves brilhantes emplumadas do Paraíso vão mergulhar de
inveja
Quando eles nos ouvirem rindo alegremente,
Você e eu. 52

52 Poema de Rumi publicado em Halman T.S. Love is all Rumi’s life and poems of ecstasy the whirling dervishes.
Istambul: 3KG, 2011, p. 19.

148 | TEATRO DAS ORIGENS


Foi o encontro e a separação de Shams que gerou em Rumi uma
profusão de poemas e um ininterrupto transe, provocado pela dança,
conforme relato do próprio filho, o Sultão Walad:
Noite e dia, em êxtase ele dançava,
Na terra girava como giram os céus
Rumo às estrelas lançava seus gritos
E não havia quem os escutasse.
Aos músicos provia ouro e prata,
E tudo mais de seu entregava.
Nem por um instante ficava sem música e sem transe,
Nem por um momento descansava.
Houve protestos, no mundo inteiro ressoava o tumulto.
A todos surpreendia o grande sacerdote do Islã,
Tornado senhor dos dois universos,
Vivesse agora delirando como um louco,
Dentro e fora de casa.
Por sua causa da religião e da fé o povo se afastara;
E ele enlouquecido de amor
Os que antes recitavam a palavra de Deus
Agora cantavam versos e partilhavam com músicos.53

O Sultão Walad descreve como o próprio pai transformou a sua


maneira de ser ao abraçar os rituais da dança, levado não somente
pelo amor a Deus, mas também pelo desespero da perda do grande
amor de sua vida. Existe ainda a versão em que Shams é assassinado
pelos seguidores de Rumi, na companhia de um dos filhos dele, en-
ciumados com o relacionamento de ambos.
As ideias desenvolvidas por Rumi, entretanto, se distinguiam da
formação dos outros sacerdotes de Alá de sua época, uma vez que a
sua compreensão da religião mostrava uma grande flexibilidade em
relação aos outros cultos e mesmo outros países e etnias (que já na

53 Poema citado em Carvalho, José Jorge. In: Rumi. Poemas Místicos Divan de Shams de Tabriz. São Paulo:
Attar Editorial, 1996, p. 30.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 149


época se digladiavam disputando terras e poder). Ele afirma, em um
de seus poemas, que ao morrer encontramos inevitavelmente o mesmo
destino: “Minha fé e minha nação são Deus” (HALMAN, 2011:67) e,
ainda, reitera o mesmo valor das diversas etnias: “Hindus, Hipchaques,
Anatoles, Etíopes – todos eles descansam em paz em suas tumbas,
separadamente, mas com a mesma cor” (HALMAN, 2011:67). E,
percebendo a religião do ser humano como uma busca local, mas sem
fronteiras de reconhecimento do outro, atesta: “Em todas as mesquitas,
templos, igrejas eu encontro um único altar” (HALMAN, 2011:67),
pois todas provêm de uma única atitude necessária e que, uma vez que
se experimenta o amor, o individuo encontrará a sua plena realização.
E instrui: “Viva no êxtase do amor, porque amor é tudo o que existe
(HALMAN, 2011:67). Sua compreensão do papel desempenhado pela
mulher é também bastante avançada para a sociedade de sua época.
Rumi deu à mulher um lugar de destaque: “A mulher não é criatura,
mas criadora” (HALMAN, 2011:57). Em seus encontros e celebrações,
as mulheres sempre encontraram aceitação e realização. Após a sua
morte, sob a liderança de seu filho e do seu neto, as cerimônias do Sama
continuaram compartilhadas também pelas mulheres. Atualmente,
somente homens participam “oficialmente” da dança dos dervixes.
Na performance de Sama (que inclui uma série de etapas), o que
antes na tradição oriental era a meditação em silêncio, transforma-se
em uma meditação com ação corporal em conjunto com a música. De
acordo com a visão de Seker, Sama simboliza “a escalada do espírito do
ser humano: o servo direcionando sua face à verdade; sendo exaltado
com o amor Divino, abandonando a identidade pessoal e si mesmo
para se perder em Deus, e finalmente voltando da servidão, maduro e
purificado”54. Uma das funções da dança é, então, encontrar o êxtase
religioso, entretanto, o ritual está ligado a uma iniciação que prevê o
aprendizado de uma sequência de comportamentos e treinamentos
diários desenvolvidos em contato com um mestre. Os seus preceitos

54 SEKER, Mehmer. Rumi’s path of love ‘being freed’ with the Sama. In: ÇITAK, M.F.; BINGUIL, H. (Org.).
Rumi and His Path of Love. New Jersey: Tughra Books, 2011, p. 9.

150 | TEATRO DAS ORIGENS


estão ligados à submissão dos desejos do corpo e das emoções à von-
tade da mente inteligente como processo de purificação e aproximação
de Deus. Algumas destas práticas incluem o jejum, as preces em que
se repete os nomes de Deus ao infinito, o cultivo da música, da poesia
e da dança. Essas danças desenvolvidas nos templos e nas mesquitas,
entretanto, se popularizaram em outros espaços laicos durante a ex-
pansão do Império Otomano e começaram a ser apresentadas como
performances ritualizadas. Em algumas destas performances vamos
encontrar, então, uma releitura do ritual que, deixando o espaço
restrito de monastério, é exposto fora de um contexto estritamente
religioso cruzando, assim, uma barreira bem guardada e passando a
se constituir como refinado entretenimento. Atualmente, espetáculos
são criados como autêntica cerimônia Sama (o grifo é meu).

Performance do ritual Sama, pelos dervixes, em Istambul, 2012. Foto Zeca Ligiéro.

Em Istambul, em 2012, assisti pela primeira vez a uma destas


cerimônias Sama, em que se garantia a sua estreita relação com a
tradição. Ao entrar no antigo Terminal Ferroviário Serkeci, por onde
circulou outrora o famoso Orient Express, maravilhei-me com o lu-
gar, sua história, estava tudo muito bem preservado na estação, onde
passaram a circular apenas trens regionais. Somente uma parte dos
amplos espaços internos era usada para passageiros, e num grande
salão de espera, separado por paredes coloniais com vitrô colorido
e colunas com arcos, pendia do teto um grande lustre e havia alguns
refletores discretamente localizados nesse mesmo teto. Busquei um
assento para assistir a uma apresentação das danças dos dervixes
rodopiantes em sua cerimônia da Sama.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 151


Os músicos fazem um pré-aquecimento antes de começar a função da performance-ritual.
Foto Zeca Ligiéro, 2012.

Havia duas fileiras de cadeiras dispostas em três partes de um


quadrado. Ao fundo postavam-se as cadeiras para a orquestra. O
público pagante ocupou quase todos os assentos. Entram, então, os
dez músicos, que se colocam junto à parede do fundo e começam a
tocar uma longa música, que é uma espécie de preâmbulo preparatório
para a performance, um pequeno aquecimento com música clássica
turca. Dentre os instrumentos se destacam: ney (flauta de bambu),
kadum (tambor duplo), rebab (violino), kanun (um tipo de cítara de
72 cordas), tambur (um tipo de bandolim) e ud (um tipo de bandolim
menor). A cerimônia vai começar. Entram os seis dervixes que vão
participar da performance. Eles vêm em fila indiana, concentrados,
com as cabeças abaixadas, serenos, vestem uma longa túnica de cor
preta; traçam uma rota geométrica bem definida no chão e se posi-
cionam do lado esquerdo do quadrilátero. Ajoelham-se, apoiando-se
sobre os calcanhares nos tapetes de pele de carneiro de cor branca e
beijam o chão como reverência. Eles cruzam os braços sobre o peito
e fecham os olhos, orando.
Um deles se posiciona em frente à orquestra, sobre um tapete de
pele de carneiro pintado de vermelho: é o sheik, o líder espiritual. O

152 | TEATRO DAS ORIGENS


clima é solene, a voz que ecoa pelo ambiente lembra o começo de um
missa católica, a prece é entoada com a primeira parte do Alcorão.

Em nome de Deus, O mais cheio de Graça, O mais Misericordioso


Louvado seja Deus, O que ama e sustenta a todos os mundos
O mais cheio de Graça, O mais Misericordioso
Senhor do Dia do Juízo,
A Ti adoramos e Tua ajuda buscamos.
Mostra-nos o Caminho Reto,
O caminho daqueles a quem concedeste a Tua Graça
Aqueles cuja porção não é ira e que não se extraviam.
Amém.55

Inicia-se a primeira parte da cerimônia Sama com o nat-i serif


(honorável poema), invocação, oferenda, oração em louvor ao pro-
feta Maomé, a música criada pelo compositor Buhuriz Mustafa Itri
Efendi (1640-1712) e cuja letra, em persa, é do próprio Jalaluddin
Rumi (1207-1273), considerado o grande idealizador da Ordem. Um
breve silêncio é quebrado pelo som do kudum: “é o bun-be, o som do
tambor que segue a invocação, e que simboliza a ordem divina do
Criador. Logo em seguida começa a improvisação da flauta (ney)”
(CAMARGO, 2002:90). A flauta improvisa em cima do trajeto me-
lódico do taksim, “uma combinação de perguntas (sual), resposta
(cevap), conclusões, momentos de silêncio, e muitos elementos que
vão sendo elaborados à medida que a improvisação transcorre, en-
riquecida muitas vezes pela citação de um prelúdio ou de uma frase
musical tirada de uma composição, parte do repertório que o músico
possa ter de memória” (CAMARGO, 2002:93).
Quando os outros instrumentos entram, indicam o começo do
ciclo das danças. Eles, então, inclinam seus corpos batendo com as
palmas das mãos no chão: “Com este movimento, estão indicando
o último dia do julgamento e também simbolizando a ponte Sirat,

55 RUMI, J. Poemas Místicos Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar Editorial, 1996, p. 98.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 153


que liga este mundo ao paraíso, o qual o dervixe deve cruzar para
alcançá-lo. Diz-se que esta ponte é tão fina quanto o cabelo e tão
cortante como uma navalha” (CAMARGO, 2002:94). Eles se levan-
tam e, de pé, inclinam seus corpos para frente formando, assim,
com um tronco e a cabeça, um ângulo perpendicular à cintura. O
mesmo movimento é feito pelo Sheik, que começa a caminhar e é
seguido pelo grupo em fila. Dão três voltas em círculo saudando-se
cada vez que se cruzam. Cada volta tem um significado especial. A
primeira, o conhecimento intelectual, a segunda, o conhecimento
através da visão, e a terceira, o da realidade vivida. Depois retornam
aos seus lugares de origem.

Músico com a flauta (ney) faz o seu solo.


Foto Zeca Ligiéro, 2012.

154 | TEATRO DAS ORIGENS


Recolhimento dos dervixes, ainda cobertos, ouvindo a orquestra. Foto Zeca Ligiéro, 2012.

Os dervixes lentamente e, quase em movimento espelhado, retiram


as túnicas, beijam-nas, deixando-as cair junto aos seus pés no chão,
onde permanecerão até o final da função, ato que significa que estão de
acordo com a tradição “deixando suas tumbas, suas amarras terrenas,
preparando-se para moverem-se em direção a Deus” (CAMARGO,
2002:101). Assim que a música avança em seus arabescos, eles dão
um passo à frente, se posicionam.

Os dervixes se posicionam com contrição para entrar no espaço da roda. Foto Zeca Li-
giéro, 2012.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 155


Começam um a um a levantar voo; em círculos, começam a
girar, algumas vezes como um pião estacionado no mesmo ponto,
outras lentamente deslizando pelo salão. E girando sobre si mesmo,
contornam em círculo, completando a performance rumo ao êxtase.

Os braços se descruzam e abrem o movimento circular. Foto Zeca Ligiéro, 2012.

Quem não conhece o simbolismo Sufi acaba por entrar em contato


com uma dança masculina extremamente delicada, espiritualizada,
distinta de qualquer interpretação do universo ligada à guerra, ao
sectarismo e à intransigência que tem sido demonstrada por diversas
correntes do Islã. À medida que a performance avança, é possível
observar diferentes andamentos na dança – pausa, espera, recomeço
– a música cantada evolui em momentos em que o instrumental se
aquieta um pouco, outras vezes se fortalece no sopro, na corda ou
na percussão. O corpo se mantém no ritmo da música, que ora leva
para o ar, coisa de anjo e de andorinha, ora o ritmo parece lembrar o
do caminhar sobre a terra, mas em síntese toda a performance lem-
bra um projeto de voo, onde a dinâmica do corpo estabelece novos
pontos de equilíbrio à medida que a força centrífuga tira o peso do
corpo. Aquilo de terra, de água, no máximo barro, vira coisa do ar,
contaminado por fogo de luz clara e transparente.

156 | TEATRO DAS ORIGENS


Terminada a performance na estação, fui caminhando para o hotel
e me perguntando: quem eram estes performers? Era a encenação de
um ritual, embora em nenhum momento eu tenha percebido algo
descompromissado, superficial. Eram dançarinos jovens. Eu havia
visto muitas gravuras de dervixes com barbas brancas. Como era
possível atingir essa quase perfeição em termos de graça e de fami-
liaridade com a tradição? A dança exige uma grande capacidade de
coordenação motora, de sentido de equilíbrio e do próprio treina-
mento no giro. Sem dúvida, estamos diante de um corpo construído
para a performance pelo convívio com os mestres e a tradição. Não
parecia uma simples imitação. Teria aquele grupo sido, de alguma
forma, iniciado nas danças sagradas dos Sufi?
O fato é que eu assistira a uma apresentação para público pagante
dentro de um espaço turístico. Por mais impacto que tivera em mim,
tratava-se de um espetáculo. E como espetáculo comecei a repensá-lo,
um “outro teatro”, que distendia as tênues fronteiras entre o ritual e o
entretimento enquanto, complementarmente, contava a história do
êxtase e do transe que ocorre tradicionalmente entre os Sufi, ao encenar
a própria meditação mimetizando ações e etapas de um ritual sagrado
dos sacerdotes, mestres e aprendizes desta antiga ordem religiosa.

Espectadora muçulmana videograva a performance dos dervixes em seu celular. Foto Zeca
Ligiéro, 2012.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 157


À medida que fui aprofundando meus conhecimentos sobre a
origem das danças sagradas dos Sufi, pude perceber que toda a per-
formance envolvia um enredo complexo e um cerimonial que exigia
não somente um espaço próprio para acontecer, mas um processo
iniciático para absorver os conhecimentos dos mestres na senda da
iluminação interior rumo ao encontro com o Deus único por meio
do êxtase e do transe místico.
Nós não precisamos de vinho para sentir êxtase ou exuberância;
Nas festividades nós não precisamos de música para fazer nos dançar
Como bêbados nós deitamos no chão, selvagens com alegria
no céu elevado;
Sem garotos e belas com copos, sem vinho, sem música para nosso transe56.

Para Rumi e seus seguidores dervixes, o transe é a ponte – o es-


tado alterado da consciência – onde é possível elevar-se a um nível
angelical atingindo uma outra margem, de onde banha-se com a luz
divina e as forças criadoras convergidas para um só Deus. Uma vasta
produção literária foi deixada por Rumi, muitos dos seus poemas
foram ditados enquanto se encontrava neste estado (o de transe). Se
ele, simbolicamente, abre mão da música para o transe, na prática
o que se percebe é uma ligação intrínseca entre o ritmo percussivo
(batucar), a música e o canto em diálogo com uma orquestra que está
fora da dança. A própria dança é um exercício de transporte de um
estado a outro, propulsor do êxtase e do transe. Assim, ele descreve
o poder e a influência da flauta de bambu no ritual do Sama:
As chamas do amor fazem a voz da flauta divina;
É a paixão de amor que grassa no vinho.
A flauta chora com os amantes que se despedaçaram,
Se rasga o peito e as lágrimas abrem o coração.
Nada mata ou cura a alma como a flauta
Nada pode cravar ou consolar como a flauta57.

56 HALMAN, Talat Sait. Love is all: Rumi’s life and poems of ecstasy / The whirling dervishes. Istambul: 3KG, 2011. p. 43
57 Idem, ibidem, p. 43.

158 | TEATRO DAS ORIGENS


Voo em linha circular e simultaneamente em torno do próprio eixo reproduzindo os movi-
mentos no espaço sideral. Foto Zeca Ligéro, 2012.

Quando lhe perguntaram por que usava a dança e a música mes-


mo em ocasiões solenes como funerais, Rumi respondeu: “Quando
o espírito humano, depois de anos de aprisionamento na gaiola e
masmorra do corpo, se torna finalmente livre, ele direciona o seu
voo para a fonte de onde ele veio, não é a ocasião para regozijo e
agradecimento e danças?”58. Ou ainda, como em um poema:
Enquanto o espírito do sol
Cintila reluzindo brilho
Como um grão de areia, o místico
Dança com prazer59.

Em outro poema, a diferença entre êxtase e transe é transitória,


em ambos há um processo de abandono do ego e dos pensamentos
malévolos, momentos em que se conclama um espaço livre para
dança, onde coletivamente se pode alcançar um estado alterado, e que
mesmo as emoções mais profundas simbolizadas pelo coração são
abandonadas na força do giro, que multiplica a sensação do profundo
encontro com a divindade:

58 Idem, ibidem, p. 43.


59 Idem, ibidem, p. 43.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 159


Eu bato meus pés no chão
Eu danço, minha alma, eu giro, meu mundo.
Bata suas mãos, minha alma, bata suas mãos, meu mundo,
Por favor faça – por causa deste homem em êxtase.

Você pode estar em transe,


Mas não cause estragos como no juízo final.
Deixe todo mal para trás.
Coloque sua mão no coração; mas onde está o coração?

Eu abandonei o coração e a alma


E eu fiquei sem eles no final
Onde estão eles, depois disto?
Se eles fossem corações incontáveis
Eu os abandonaria a todos60.

Considerações necessárias sem conclusões à vista


Naturalmente é estranho comparar uma dança com a outra, mas o
disparate pode tornar-se um material revelador de trabalho. Imantado
pelo desejo de ver espelhada uma dança com finalidade monoteísta
na outra com princípios politeístas, num encontro improvável de
uma dança surgida no bojo da tradição judaico/cristã/islã com uma
outra, diaspórica, trazidas por expatriados, escravizados de diversos
países da África buscando reconectar-se com suas ancestralidades
perseguidas justamente pelas religiões do livro, das verdades reve-
ladas por meio do Torá, da Bíblia ou do Alcorão, é que insisto nessa
comparação por contrastes.
Uma exibe o corpo em festa e em estado de jogo e de comunicação
com a roda, a outra neutraliza o corpo e concentra-se na mente enquanto
executa rotações sobre o próprio eixo, girando também em círculos em
torno do centro do espaço, que é cenograficamente dividido em um palco
em forma de arena e, portanto, geralmente assistido por uma plateia.

60 Idem, ibidem, p. 48.

160 | TEATRO DAS ORIGENS


O que teriam elas em comum, além do giro e, em alguns casos, o
caráter religioso? O que acontece quando ambas, deslocadas de qual-
quer contexto religioso, são apresentadas como entretenimento? Ambas
compartilham êxtase e transe? Quem são estes performers e por que
dançam em roda, girando sobre o seu próprio eixo? De um lado, salta o
feminino, mulheres falam de um de desejo de liberdade e uma busca do
puro prazer na dança, entre a brincadeira e o êxtase. Na outra, procura-se
o êxtase, sendo o transe místico uma consequência natural. Uma dança
de homens, criada com a meta de buscar a perfeição para chegar perto
de Deus a partir do encontro amoroso entre dois homens sábios.
Encontro-me aqui, portanto, propondo o espelhamento de uma
dança face a outra como um processo comum dentro do que enxergo
como “Outro Teatro”, cujo axioma principal se desenvolve em sintonia
com o cantar/dançar/batucar criado dentro de um contexto estrita-
mente religioso e reservado aos iniciados. Aqui, estas performances/
rituais/festas parecem ter caído na mão de quem, por amor, afinidade
e desejo criador, se aproxima do ritual e do brinquedo tradicional
como uma novidade, uma nova identidade, uma experiência vital e,
mesmo, um processo de autoconhecimento. Terapêutico, místico,
qualquer que seja o ensejo, mergulha-se na tradição como se per-
tencesse a ela desde os tempos primordiais. Esquece-se a profissão,
a idade, o pertencimento étnico ou social para abraçar um encanto
que se torna necessário na medida em que o corpo encontra formas
de expressão desconhecidas, não ensinadas nas escolas, nas univer-
sidades, nas igrejas, nos clubes sociais, nas mídias.
Como mote deste encontro, utilizei a roda do êxtase e do transe
de Schechner para entender que esses processos são desenvolvidos
de maneiras distintas pelos dois tipos de performances, alcançando o
êxito em suas empreitadas ao utilizar recursos semelhantes por meio
do indivisível cantar/dançar/batucar, uma vez que, mesmo referendado
na tradição, as performances aqui analisadas apresentam comporta-
mentos reiterados, como indica Schechner, ao analisar performances
à base de um ritual ou teatro. No presente caso, são performances que

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 161


recriam o comportamento ancestral (mesmo que a cerimônia Sama
seja direcionada unicamente ao Deus único, as referências ao mentor
espiritual e líder da Ordem paira como uma cerimônia de culto a um
ancestre, considerado o mestre dos mestres por seus discípulos). Ainda
que ritualizadas, estas performances adentram pelo campo do mero
entretenimento, pois para serem encenadas as situações são recontadas
nos mínimos detalhes; logo, além de cantar/dançar/batucar, acrescenta-
mos o contar, completando o quarteto. Rumi descreve inúmeras vezes
o transe místico como um momento especial, mas como se trata de
uma busca da própria consciência, não prevê nenhuma incorporação
ou interferência de entidades espirituais outras, porque esse estado de
consciência alterada mira em direção a um único Deus, que é percebido
como a única verdade revelada ao Profeta Maomé e por ele escrita no
Alcorão. Para os bantus, e mesmo para os povos do Golfo de Benin
com os quais nós brasileiros somos familiarizados, quando se fala em
transe imediatamente se evoca a incorporação de um ancestre ou uma
divindade da natureza. Ao eliminar a força mística da natureza, e a pró-
pria incorporação dela na forma de divindades que reúnem atributos
relacionados com os grandes fenômenos físicos, o monoteísmo aponta
para a verdade sobre a existência de um único Deus que está no “além”,
apartado dos humanos (POULAIN, 2001:134).
A dança de roda recriada no Brasil, tradicionalmente um brin-
quedo de mulheres negras, e a dança Sami dos dervixes da Turquia,
executada tradicionalmente apenas por homens, podem ser vistas
como danças opostas embora possamos, ao final, perceber pontos
de contato entre elas. Se a primeira exalta a conversa corporal e sua
relação com o ritmo e o estilo pessoal do performer em torno do um-
bigo e do quadril, exibindo de quebra a sensualidade feminina em sua
liberdade expressiva de ser e estar, a segunda, uma conversa pessoal
do dançante com o sagrado, adereça todos os gestos ao devocional
e esvazia o sentido do jogo em função da própria busca cerimonial
da aproximação com o Deus único, numa espécie de meditação em

162 | TEATRO DAS ORIGENS


movimento dentro de “um ritual ditirâmbico”61 realizado apenas por
homens religiosos ligados ao Sufi. O êxtase é alcançado por meio
do contínuo contato com a dança e a música e, em ambos os casos,
emerge um enredo com outro tipo de personagem não presente na
vida quotidiana, mas nascido da própria performance, ora transfigu-
rado pelo jogo ora pelo ritual. Tudo se torna espetáculo, embora isto,
talvez, não seja a proposta inicial de seus performers. O fato é que eles
mesmos se vestem com roupas próprias para o show e respondem com
o próprio corpo à chamada do músico, deixando-se levar pelo espírito
do som e do ritmo que lhes adentra a alma e os leva para um universo
que, para quem participa, pode ser percebido como o encontro com
a liberdade corporal e a plena comunhão com a natureza, ou mesmo
um encontro com Deus. Para o público, um espetáculo das glórias
deste mundo ou, ainda, o gozo de um espetáculo do outro mundo.

Dervixes aguardam a hora de entrar em ação novamente.

61 HALMAN, Talat Sait. Love is all: Rumi’s life and poems of ecstasy / The whirling dervishes. Istambul, Turquia:
Bilkent Kultur Girisimi Publications, Istambul, Turquia, 2011, p. 53.

Dança de brincantes no Brasil e dança dos dervixes da Turquia | 163


Referências Bibliográficas
CARVALHO, José Jorge. In: RUMI. Poemas Místicos Divan de Shams de
Tabriz. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
CASTRO, Haroldo. Luzes da África: pai e filho em busca da alma de um
continente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
HALMAN, Talat Sait. Love is all: Rumi’s life and poems of ecstasy / The
whirling dervishes. Istambul: 3KG, 2011.
MANHÃES, Juliana. Um convite à dança: Performances de umbigada entre
Brasil e Moçambique. 2014. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Programa
de Pós- Graduação em Artes Cênicas, Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
POULAIN, Jacques. De l’homme. De l’aliénation à la communication. Paris:
Collecion Passage, 2001.
RUMI, J. Poemas Místicos Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar
Editorial, 1996.
SCHECHNER, Richard. Performance Theory. New York: Routledge,1988.
SEKER, Mehmer. Rumi’s path of love ‘being freed’ with the Sama. In: ÇITAK,
M.F.; BINGUIL, H. (Org.). Rumi and His Path of Love. New Jersey: Tughra
Books, 2011.

164 | TEATRO DAS ORIGENS


Goro Vodun (Togo e Gana)
e Mapiko (Moçambique)
Teatro de divindades que brincam
com a violência humana

A análise de duas performances no mesmo continente, mas pertencen-


tes a culturas totalmente diversas, permite o desenvolvimento de um
estudo comparativo da produção de dois grupos étnicos distintos cujos
elementos urbanos e rurais encontram-se imbricados num mesmo tipo
encenação nascida no bojo do ritual. Elas apresentam características
diferentes em seus aspectos corporais, bem como no uso de vestuário,
mas revelam alguns pontos comuns, além do desenvolvimento de uma
autoexpressão de cada grupo, que alia a mais profunda tradição com
elementos da contemporaneidade. Em ambas as tradições é possível
perceber a maleabilidade da performance ao reestruturar seus rituais e
festas, nos quais o imaginário comunitário engendra tessituras de sua
própria história de vida e os processos de colonização, de submissão às
grandes religiões monoteístas (no caso, cristianismo e islamismo), de
constantes migrações (“desterritorialização”), bem como o entrecru-
zamento de diferentes tempos históricos, que coexistem num mesmo
presente de forma desarticulada, designado por Canclini como “hete-
rogeneidade multitemporal”62, criam estruturas híbridas e intangíveis.
Nas comunidades que estão à parte das políticas culturais impostas
pelo estado, a tradição, mesmo não sendo propositadamente inventada,

62 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
UNESP, 2011, p. 72.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 165


corporifica-se como dinâmicas culturais próprias, exclusivas, mesmo
quando restauradas a partir de outras tradições mais antigas imbricadas
nestas, cujos elementos comuns são, muitas vezes, tomados empres-
tados e rearranjados, separadamente, de forma peculiar, para melhor
servir às causas da comunidade ou às necessidades do performer ou
artista visual. Assim, um elemento típico, como a pomba cristã ou a
taça que carrega a hóstia, podem adquirir outros sentidos dentro da
performance e, embora esses elementos estejam claramente conotados
como cristãos, não será necessariamente uma performance totalmente
católica, como aparentemente tem sido pesquisada. Ao contrário, o
exemplo da performance afro-brasileira do palhaço de Folia de Reis
dentro do ritual católico talvez seja o mais significativo, como temos
demonstrado em diversos escritos63.
Ao trabalhar com performances centenárias africanas à luz dos
estudos da performance, a leitura “de uma tradição única e ou exclu-
siva” africana cai por terra, pois já não dá conta da complexidade e o
todo de suas performances no mundo contemporâneo. Daí, procuro
apreender em minhas observações e análises desde os trabalhos artís-
ticos (como parte de um processo performativo em andamento) até
a construção do ritual (completo ou parcialmente desenvolvido) e,
deste, o aspecto que mais nos interessa: a espetacularização dos mitos
por meio do corpo do performer e seus respectivos elementos cênicos
como figurino, máscaras, maquiagem e objetos peculiares, além da
utilização do desenho do espaço, fora e no próprio corpo. Aponto
ainda para a importância de aferir o que é intangível como algo em
um estado suspenso, pois depende exclusivamente de decisões in-
ternas da comunidade e/ou da relação do artista com seus próprios
materiais subjetivos. Assim, o artista traz do seu passado a visão do
vivido em relação com específicas tradições para se concretizar no
efêmero, que é a performance. O que se produz pela comunidade e
pelo performer/artista que com ela se relaciona é parte também de

63 LIGIÉRO, Zeca. Performances processionais e as escolas de samba. In: Corpo a Corpo: estudos das perfor-
mances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011, p. 157.

166 | TEATRO DAS ORIGENS


um espelho reflexivo de mazelas, demandas, conflitos e dramas entre
os sujeitos envolvidos na criação. Tem sido nosso objetivo entender
como se processam as dinâmicas internas das performances em si,
suas “motrizes culturais”, percebendo também as suas redes de rela-
ções e interações com as tradições64.
A tradição, por outro lado, não pode ser vista com o mesmo olhar
do passado, quando os isolamentos geográficos e humanos ainda eram
uma realidade e os deslocamentos de grupos ou de indivíduos eram
esporádicos ou forçados, como no caso da escravidão, e/ou decor-
rentes de guerras e do colonialismo. A diáspora para as Américas foi
apenas uma das diásporas sofridas, e/ou estrategicamente planejadas,
por quase todas as etnias africanas desde os tempos mais remotos.
Não pretendemos recuar muito no tempo, mas poderíamos mesmo
mencionar como característica dos povos as constantes migrações,
desde a mais antiga, cerca de 1,5 milhão de anos atrás, do Homo ha-
bilis, até então restrito à África, que teria dado origem a uma espécie
que se disseminaria pela Ásia e Europa: o Homo erectus. A infor-
mação sobre esses grupos isolados da África, América e Ásia ainda
era privilégio dos estudiosos, hoje não. Praticamente, os grupos que
se mantêm isolados hoje no Brasil, por exemplo, o fazem por pura
necessidade de se poupar do contato “sifilizatório”, como disse Nunes
Pereira em entrevista que realizei em 1985, e claro, neste caso, para
fugir das doenças do homem branco (já não tão branco assim), das hi-
droelétricas, dos desmatamentos, da poluição dos rios com mercúrio
fruto da mineração e, perfazendo novas diásporas, em busca do que
ainda resta de sagrado no fundo da mata virgem. Aos mais distantes
grupos isolados na América Latina, por exemplo, é possível, ainda
que com certa dificuldade, ter acesso à TV, rádio, internet e celular,
além de muitos ainda lutarem contra a constante onda de invasões de
suas terras por grileiros, fazendeiros de arroz e plantação de soja, ou
ainda contra a construção de hidrelétricas dentro de seus territórios

64 LIGIÉRO, Zeca. O conceito de “motrizes culturais” aplicado às práticas performativas afro-brasileiras. In:
Corpo a Corpo: estudos das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. p. 107

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 167


previamente demarcados, utilizando da comunicação midiática, entre
outros meios, para efetivar suas performances políticas.
Além do mais, a incorporação de elementos de outras culturas
ou provenientes da indústria cultural no dia a dia das comunidades
mais distantes é inevitável, bem como sua incorporação em eventos
cotidianos. A utilização de calções esportivos e sandálias havaianas
não pode mais ser vista como de elementos alheios às culturas indí-
genas, pois passaram a integrar muitos de seus rituais, escolhidos de
forma a reproduzir o simbolismo de suas cores naturais.
Mesmo em comunidades mais tradicionais, por meio das perfor-
mances se articulam novos elementos, no sentindo de tornar o ritual
ou a festa mais eficiente, não importando se esses novos elementos não
pertenceram tradicionalmente aos ancestres. Nestes casos, certamente,
acham que o seu uso empresta mais eficácia, beleza e mais poder ao
ritual e à festa, logo acreditam que os ancestres estarão agradecidos.
Novos elementos são incorporados, desta forma, à tradição como parte
de um renovado repertório dentro de um antigo ritual, não importando
nem um pouco se, aparentemente, características da pós-modernidade
se mesclam à parafernália do passado mais remoto. A cultura, assim
incorporada, se impõe diante de um tratamento de arquivo que procura
enquadrar o seu assanhamento e sua heterogeneidade65.
Pretendo analisar aqui dois casos absolutamente distintos, que
mesmo tendo sido originados nos grotões de seus respectivos países,
aparecem em festas e festivais nas capitais ou nas cidades turísticas
de seus países, ora encerrando um ciclo de iniciação de adolescentes,
como é o caso do Mapiko, em que um ou vários dançarinos masca-
rados se apresentam com uma orquestra de tambores em Maputo
– Moçambique, ora se apresentando em um festival, como é o caso
do Divinités Noires, que acontece no palco armado em frente à praia
de Aneho, no Togo, onde diversos grupos de Goro Vodun, também
chamado de Bréquété, se apresentam.

65 TAYLOR, Diana. Arquivo e Repertório: memória cultural das Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

168 | TEATRO DAS ORIGENS


Bréquété ou Goro Vodun: drama ritual da
guerra e da escravidão
Fui iniciado no estudo dos voduns pelos livros clássicos de Pierre
Verger66 e Roger Bastide67, cujas pesquisas comparativas haviam sido
realizadas principalmente no Benin, antigo reino Daomé, relacionan-
do-as com a tradição iorubá (nagô) do país vizinho, Nigéria. Os dois
pesquisadores haviam desenvolvido importantes pesquisas anteriores
na região da Nigéria, berço dos Orixás. A partir daí, aprendemos a
perceber uma correlação entre os dois tipos de divindades: voduns
e orixás, não só pela proximidade geográfica entre as áreas onde ha-
bitam e as suas mútuas influências, devido às constantes migrações,
como também por terem sido, ambas as tradições, fundamentais na
formação e no desenvolvimento das casas de candomblé de Salvador,
do Recôncavo Baiano e ainda em outras cidades, como Recife e São
Luiz do Maranhão. O estudo comparativo, desenvolvido principal-
mente por Pierre Verger, mostra-se ainda bastante atual, pois além
dos laços de parentescos culturais entre as tradições dos voduns
(fon/ewe de Benin) e a dos orixás (iroubás e também fon/ewe), levou
em conta também o fato de que ambas as divindades representam
as forças da natureza, bem como compartilham a incorporação de
arquétipos humanos comuns. Entretanto, o contato com os voduns
presentes no Festival des Divinités Noires, no Togo, revelou novas
nuances sobre este universo, embora muitos deles mantivessem as
mesmas correspondências arquetípicas analisadas, dentre as quais
poderíamos listar algumas como: exu/légua, xangô/hevioso, nanã
boroquê/nanã, oxumaré/dan. Assim, foi possível verificar um número
maior de entidades desconhecidas e com atributos distintos daqueles
apontados pelos pioneiros destes estudos no Brasil. Alguns dos vo-
duns (palavra que quer dizer “espíritos” na língua ewe/fon) aparecem
ora como formas antropomórficas ora como voduns familiares, como

66 VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes
de Moura. São Paulo: EDUSP, 1999.
67 BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo, EDUSP, Livraria Pioneira, 1958 (1973).

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 169


espíritos protetores dos mortos (egungun, em iorubá) ou ainda são
chamados de “fetiche” (tomado do português “feitiço”) do próprio
vodun, uma espécie de guardião ou mensageiro do vodun.

Os guerreiros se posicionam no palco em Aneho, 2011. Foto: Tatiana Damasceno.

Muitos dos grupos das sociedades iniciáticas participantes do


festival no Togo cultuam os voduns, mas foi o grupo dos Bréquété,
ou Gorô Voduns, que me chamou mais a atenção pelo caráter simul-
taneamente dramático e cômico de suas performances. A primeira
vez que vi um grupo de adeptos do Bréquété reunido, algumas horas
antes de se apresentar no palco de Acofin, no Festival des Divinités
Noires em Aneho, percebi que não se tratava de um grupo de danças
tradicionais africanas, mas sacerdotes e religiosos reunidos para
alguma coisa além do puro entretenimento. Ao contrário de muitos
grupos que participam do festival, sua dança não era descontraída,
embora forte e algumas vezes violenta. Nesse “aquecimento” que pre-
cedeu a apresentação no palco, pude perceber o caráter celebratório
“deste drama ritual”68. Os Goro Voduns foram estudados por Judy

68 MULLER, Bernard. Les Adeptes du Goro Vodou et de Tchamba. In: Leriche, Dany et Fickinger, Jean-Michel.

170 | TEATRO DAS ORIGENS


Rosenthal não somente no Togo, mas também em Benin e Gana, onde
teria se originado o culto. Ela soube da existência dos Goro Voduns
também entre os igbos e iorubas na Nigéria, além de constatar sua
presença em outros grupos da Costa do Marfim69. Este fato caracte-
riza os Goro Voduns como uma religião difundida em várias etnias,
cujos conceitos principais se concentram em torno do afa (ifá para
os iorubás), o oráculo sagrado popularizado no Brasil numa versão
simplificada conhecida como “jogo de búzios”.

A dança dos guerreiros, 2013. Foto: Yara Ligiéro.

O grupo demarcou seu espaço, foram colocadas cadeiras na areia,


dispostas em círculo embaixo de algumas palmeiras, os sacerdotes
mais antigos se sentaram enquanto a orquestra de atabaques se
instalou de um lado e o conjunto de mulheres, todas vestidas com o
mesmo tipo de vestido colorido, como um coro, ocupou o restante do
círculo em duas fileiras de cadeiras, emprestadas do festival. Elas segu-
ravam um pequeno pedaço de bambu em cada mão, e com eles quais
acompanhavam a batida dos tambores entoando os cantos de louvor
nas línguas mina e ewe. O transe foi acontecendo naturalmente, de

Divinités Noires. Paris: Les Editions Graines de Pensées et La Maison d’Été, 2013.
69 ROSENTHAL, Judy. Possession, Ecstasy, and Law in Ewe Voodoo. Virginia: University of Virginia Press, 1997.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 171


forma indistinta entre homens e mulheres; estas mais numerosas, à
medida que entravam em transe eram conduzidas para algum lugar
fora da roda para serem vestidas com as roupas alusivas aos voduns
que as incorporavam. Muitos deles portavam em suas mãos facas,
machadinhas e facões de cozinha, mantendo-os sempre pressionados
contra o próprio peito quando não estavam dançando. Algumas mu-
lheres do coro iam despejando no solo água de chaleiras decoradas,
chamadas buta, dando a ideia de esfriar o chão ou de purificá-los
para a evolução do ritual. O mesmo tipo de chaleira é utilizado na
entrada das mesquitas, mesmo aquelas mesquitas menores que muito
se assemelham a terreiros de umbanda ou de candomblé, pois não
tem a imponência das grandes construções árabes ou hindus.

Guerreiro incorporado, 2011. Foto: Zeca Ligiéro.

Uma vez devidamente incorporados e vestidos, chamou-me a


atenção as túnicas em formato da beca muçulmana, com uma calça
curta até os joelhos, predominantemente em três cores: vermelho, preto
e branco, o que diretamente me remetiam ao simbolismo iorubá do
axé (poder de fazer as coisas acontecerem) presentes, sobretudo, nos

172 | TEATRO DAS ORIGENS


assentamentos e nas roupas de exu iorubá e legba fon/ewe70. Este foi o
primeiro engano: não tinha nada a ver com este orixá/vodun. Rostos
fortes e dramáticos, marcados com traços de giz branco (efun) sobre
a pele bem negra, ou mesmo de branco esfumaçado, remetiam a algo
fantasmagórico. Passei, então, a identificá-los como eguns (termo em
iorubá utilizado no candomblé e na umbanda para referir-se aos es-
píritos de pessoas que morreram e que voltam ao mundo dos vivos).
Desta vez minhas observações tinham mais sentido. De fato, trata-se
realmente de espíritos que retornam à Terra e, no caso, são chamados de
“fetiche” (feitiço) ou mesmo “voduns”, mas em vez de serem seguidores
de um único vodun, como eu havia suspeitado, ali se apresentavam
entidades afiliadas a pelo menos três ou quatro voduns, como pude
verificar depois em entrevistas com diferentes sacerdotes do culto. O
nome “gorô” (de Goro Vodun), que pode ser traduzido como “noz
de cola” ou “obi”, é empregado em rituais por várias etnias, como os
mina-ewe, os fon, os ioruba e os haussá. Por dançarem dentro de um
mesmo ritmo, levam muitas vezes o nome bréquété, que corporifica a
própria imagem da percussão, embora, após pesquisa realizada dois
anos depois de ter assistido à cerimônia com sacerdotes e adeptos, tenha
sido possível verificar que pelo menos dois tipos de música, com suas
respectivas danças, diferenciam o culto do vodun Maman Tsamba e o
dos “guerreiros”, como são chamados popularmente. Enquanto a tradi-
ção dos guerreiros vem de Gana, a dos adoradores de Maman Tsamba
(pronuncia-se tchamba) iniciaram o seu culto na cidade homônima
de Tsamba, no norte do Togo. Ao entrar no transe, os fiéis de Maman
Tsamba rodopiam e são logo amparados pelas mulheres chamadas de
trewá, que os ajudam ora segurando-os nas extremidades dos braços
ou punhos, ora derramando água pelo bico da chaleira, seguramente
um hábito muçulmano empregado para lavar os pés e as mãos como
purificação para participar do ritual. Maman Tsamba é a protetora dos
escravos, de quem teve um parente escravizado algum dia ou de quem

70 LIGIÉRO, Zeca. Iniciação ao Candomblé. Rio de Janeiro: Nova Era / Record, 1993.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 173


teve membros da família que foram senhores de escravos. Segundo
o sacerdote Togbui Sassou Baklo II, era na cidade de Tsamba que os
escravos eram reunidos para serem vendidos para as Américas. Sua
relação com o mundo muçulmano é clara na foto da sacerdotisa Maman
Edoh Tchamele em frente ao cômodo onde está assentada a divindade
Maman Tsamba, no templo sagrado Dororibana. Essa imagem mostra a
divindade em posição de meditação usando um tecido chamado xador
(“tenda”, em persa) cobrindo metade o seu corpo, mas deixando os pés
e as mãos cruzados em forma de meditação.

Quarto do assentamento de Maman Tsamba, 2013. Foto: Zeca Ligiéro.

Já o transe dos guerreiros é mais violento, eles indicam logo o desejo


de segurar uma arma como faca, lança ou punhal estendendo o braço
direito, em seguida dobram a coluna, a parte superior do corpo incli-
na-se para frente, formando quase uma linha paralela ao solo. Em sua
frente, logo após a incorporação, é incendiada um pouco de pólvora
que espalha rapidamente o fogo e a fumaça no ar, fazendo-os dançar
freneticamente e golpear o ar com seus instrumentos cortantes. Após
violentos rodopios, sua dança dá a impressão de uma cavalgada, e eles
parecem patinar arrastando a planta do pé para a frente em movimentos
alternados de acordo com a batida dos tambores. A cavalgada dos guer-

174 | TEATRO DAS ORIGENS


reiros alude ao tradicional povo ashanti, embora haja quem afirme que
são descendentes dos haussá, sendo que ambos lutavam com exércitos
montados em cavalos de sangue árabe. A música tradicional de Mama
Tsamba é puxada pelo “adondô”, tradicional tambor de duas vozes,
como explica o sacerdote Togbui Sassou Baklo II: “tom tom, dim dim,
tom tom, dim dim”, enquanto gesticula apertando imaginariamente o
tambor com o braço e fazendo a pantomima de alguém que tira o som
dos dois lados do tambor. Esses são chamados de “Tambores Falantes”,
“porque eles podem produzir uma ampla gama de tons, incluindo
altos sons da voz feminina e os mais baixos da masculina” (entrevista
realizada com o sacerdote Togbui Sassou Baklo II em Lomé, no Templo
Sagrado Dororibana, em 30 de dezembro de 2013). Já no outro ritual,
para os guerreiros, eles usam grande tambores, como acrescenta o sacer-
dote: “Totalmente diferentes, totalmente”. Entretanto, na apresentação
no palco do festival é impossível identificar estas diferenças, já que os
adeptos dos vários voduns estão simultaneamente em transe. Porém,
aqueles que incorporam Maman Tsamba e os escravos usam somente
branco, ao passo que os guerreiros usam três cores: vermelho, preto e
branco, algumas vezes roxo.

Capitão do rei ashanti em seu cavalo árabe. Gravura de William Hutton, 1820.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 175


Poderia descrever o aspecto espetacular da apresentação dos
adeptos incorporados pelas entidades, como observou Müller:
Às vezes burlesco, os adeptos “jogam” simultaneamente paródia e
terror, eles querem provocar um estado a meio caminho entre o riso
e o medo. Ao invés de repetir os episódios de uma história (embora
essa dimensão não esteja ausente), eles realizam ações espetaculares
voluntariamente impressionantes que ilustram a condição física de
quem não é mais que dono de seu próprio corpo71.

É como se o transe submetesse o corpo do médium a todos os suplí-


cios, como se o próprio ato mágico colocasse o corpo do médium em
uma suspensão acima do perigo da morte, ao desferir golpes fatais contra
o próprio peito. Entretanto, os ferimentos de fato podem ser fatais, como
dizem os fotógrafos Dani Leriche e Jean-Michel Fickinger sobre um dos
sacerdotes fotografados no ano anterior, vítima fatal de seus próprios
golpes72. Portanto, apesar de um aparente espetáculo bufo, algo estrita-
mente trágico pode ocorrer. São vidas passadas, revividas, rememoradas
em uma performance que ultrapassa a compreensão ocidental de um
teatro dos espíritos, para que os adeptos compreendam suas próprias
ancestralidades por meio de catarses coletivas e dramas ritualizados.

Cortejo de Goro Voduns já incorporados a caminho do palco, 2011. Foto: Zeca Ligiéro.

71 MÜLLER, Bernard. Les Adeptes du Goro Vodou et de Tchamba. In: LERICHE, Dany e FICKINGER, Jean-
Michel. Divinités Noires. Paris: Les Editions Graines de Pensées e La Maison d’été, 2013.
72 Entrevista realizada com o autor em dezembro de 2013, Lomé, Togo.

176 | TEATRO DAS ORIGENS


Quem poderia entender profundamente estes dramas a não ser
quem os vivenciou ou ainda os vivencia em suas memórias coletivas?
Escravos e/ou descendentes destes que não foram vendidos e per-
maneceram escravos na África, mesmo após o fim o tráfico negreiro
exorcizam o passado funesto. Por outro lado, guerreiros ashanti
ou haussá, esmagados pelos exércitos inglês e francês em guerras
coloniais do século XX, voltam ao espaço do ritual para mostrar a
sua indomável bravura. Este drama não pertence unicamente a uma
pequena cidade como Aneho ou a um país como o Togo. Ele diz
respeito a quase toda a África negra e também a suas diversas diás-
poras do continente americano. De qualquer forma, creio tratar-se
de uma performance extremamente impactante em desenvolvimento
no mundo de hoje, que podemos apreciar, presenciar, documentar,
mas jamais podemos entendê-la apenas como uma tradição étnica
estagnada em um passado remoto.

Mapiko entre mortos e vivos, da tradição ao


mundo contemporâneo
Mapiko, uma dança tradicional da comunidade maconde73 ligada
à iniciação de meninos, tornou-se uma das danças mais conhecidas
na província de Cabo Delgado por sua afinidade com a Luta da Liber-
tação Nacional (1964-1974), iniciada naquela província, que atingiu
todo o país e deu fim ao regime colonialista português: a dança então
passou a ser conhecida nacionalmente e associada à própria luta de
resistência. Um ou mais dançarinos executam a dança usando más-
caras em forma de cabeça, esculpidas em madeira, representando os
ancestres que originalmente viviam nas florestas. Após a revolução
que pôs fim ao colonialismo português, em 1965, as máscaras e as
vestimentas passaram também a representar soldados e até mesmo

73 Os maconde são um grupo étnico banto que vive no sudeste da Tanzânia e no nordeste de Moçambique,
principalmente no planalto de Mueda, tendo uma pequena presença no Quênia. A população maconde na
Tanzânia foi estimada em 2001 em cerca de 1.140.000 habitantes e no censo de 1997, em Moçambique, em
233.258, dando um total de 1.373.358 maconde .http://pt.wikipedia.org/wiki/Macondes.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 177


Samora Machel, o principal líder e primeiro presidente do país. Ante-
riormente, os maconde já haviam apresentado uma longa história de
resistência contra a escravidão árabe e portuguesa, sendo subjugados
pelo poder colonial somente no começo do século XX. A dança está
presente também na Tanzânia, praticada pelo mesmo grupo étnico,
com características próximas mas com máscaras distintas, pois apre-
sentam motivos abstratos74, elemento este que não será nosso foco
no presente trabalho.
O dançarino mascarado é chamado de lipiko e deve estar envolto
em panos e coberto de tal forma que não possa ser reconhecido. De
sua roupa pendem guizos e no torso ou nas pernas são amarrados
chocalhos de metal. As máscaras tradicionais passaram a ser cobiçadas
por marchands e museus por sua importância dentro das manifesta-
ções do Leste Africano; os escultores do país são reconhecidos por
suas esculturas em ébano, chamado na região de pau-preto.
A dança Mapiko é acompanhada por uma orquestra de diversos
atabaques de tamanhos variados, todos da família dos unimembranó-
fones, e de um coro de homens e mulheres que cantam e dançam. Estes
conjuntos percussivos formam três grupos distintos, com funções
rítmicas diferentes. Nesses conjuntos, destacam-se o primeiro grupo
de singanga (singular), vinganga (plural); o segundo, composto por um
likute e um neya; e o terceiro e o último grupo, que é composto por
um indadje, intoche ou ntoji, instrumento que tem a função de marcar
o ritmo da dança, comandando os movimentos dos dançarinos75.
Originalmente a dança mapiko é praticada durante ritos de ini-
ciação masculina e feminina:
O dançarino mascarado performa no fim da iniciação, quando os
meninos terminaram os ritos da floresta (kujaluka), e algumas vezes
durante os feriados para uma plateia de homens, mulheres e meninos

74 DIAS, António Jorge, Os macondes de Moçambique, aspectos históricos e económicos, vol. I, Lisboa, Junta de
Investigações do Ultramar. 1964.
75 DPTUR – Direcção Provincial do Turismo. Dança Mapiko, República de Moçambique. Disponível em: <http://
www.turismocd.gov.m/cultura/tradi/cultura_tradi_dan_mapiko_pt.htmz>. Acesso em 8/8/2015.

178 | TEATRO DAS ORIGENS


e meninas não iniciadas. As mulheres, as meninas e os não iniciados
meninos não circuncisados devem ignorar que o performer é um
ser humano (homem) e não podem se aproximar dele durante a
performance. Espera-se que eles tenham por ele respeito (ishima),
comportando-se como se eles pensassem que ele é realmente uma
entidade do mundo dos mortos (lioka), convocada para acompanhar
a iniciação dos meninos. Acima de tudo, todas as coisas que se referem
ao Mapiko, dança e performance estão sob o domínio dos homens
iniciados. Entretanto, as mulheres mais antigas sabem os segredos
dos homens. De fato, elas têm a sua própria dança secreta as quais
acontecem durante a cerimônia de iniciação feminina, que acontecem
na floresta, antes da iniciação das meninas (ing’oma), entretanto
as máscaras de cerâmica (shintegamato) que são usadas durante o
nkamangu nunca são mostradas em performances públicas76.

Entrei em contato com esta dança durante uma cerimônia


tradicional de iniciação de meninos e meninas a que assisti no tra-
dicional bairro dos Militares, em Maputo, capital de Moçambique.
A cerimônia marcava a passagem dos jovens para o mundo adulto.
O local escolhido era o coração do bairro, uma praça pública ao
lado dos fundos de uma igreja evangélica onde, coincidentemente,
acontecia um casamento católico bem pouco ortodoxo, como vere-
mos adiante. As duas cerimônias tradicionais de iniciação de ambos
os sexos aconteciam quase simultaneamente, inclusive utilizando
algumas casas próximas da praça; elas se encontravam em diferentes
etapas: a dos meninos havia começado no fim de semana anterior.
Portanto, todos eles já tinham suas cabeças raspadas. Em determi-
nado momento, saíram de uma das casas, reencontram-se com seus
pais na praça, conversaram um pouco com eles e estes os encami-
nharam para outra casa, ao fundo da praça, onde foram recolhidos
(primeira foto da pagina 181). Um sacerdote tradicional os esperava

76 ISRAEL, Paolo. Mapiko mascarades of the Makonde: Performance and Historicty. In: East African Contours.
Reviewing Creativity and Visual Culture. ARERO , KINGDON Z. (eds). London: Horniman Museum, Critical
Museology and Material Culture series, 2005, p. 99-100.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 179


para o momento da circuncisão. Bem junto à parede dos fundos da
Igreja, as meninas tinham suas cabeças raspadas, permanecendo em
esteiras, sentadas no chão, enquanto outras eram raspadas antes de
serem recolhidas também (segunda foto na página seguinte), sendo
observadas por uma pequena multidão de parentes e curiosos ao
redor. Interessante notar que a raspagem da cabeça no candomblé,
que marca a chamada “feitura da cabeça”, corresponde à parte mais
secreta daquela religião. Ali, ao contrário, era absolutamente públi-
ca. Do outro lado da igreja, um grupo de homens havia feito uma
fogueira e aquecia seus pequenos atabaques, onde experimentavam
para saber se o couro estava suficientemente esticado e afinado. As
ações não eram consecutivas, mas simultâneas. Enquanto tudo isso
acontecia, fui atraído ainda pelas músicas africanas estilo gospel e
spiritual que eram cantadas dentro da igreja, onde acabei entrando.
O casamento oficial havia terminado e a noiva, de branco, com o
noivo de terno, dançavam e cantavam com alguns amigos e muitas
amigas trajando as tradicionais vestes moçambicanas de gala, com
capulanas em tons fortes. Eram danças tradicionais que pareciam ter
sido ensaiadas, pois eram bem executadas e a noiva fazia o solo da
música. Cheguei a filmar parte dessa cerimônia, que foi uma grande
surpresa para mim, já que eu tinha ido para assistir à cerimônia da
iniciação e a saída do Mapiko.
Do lado de fora, os sons dos tambores finalmente se tornaram
constantes. Chegou um dançarino chamado lipiko que, a meus olhos,
parecia muito com um palhaço da folia de reis77. Chegou caminhan-
do, como um ator que ainda não incorporou o seu papel. Mas ao se
aproximar dos atabaques, se inflamou e investiu correndo contra o
grupo, iniciando uma sequência de danças.

77 O pesquisador Vintane Nafassi, moçambicano de origem maconde, acrescenta que existe um tipo de mapiko
chamado de Nantyaka que é considerado um palhaço.

180 | TEATRO DAS ORIGENS


Os pais conduzem os iniciados. As meninas com as cabeças raspa-
Foto: Zeca Ligiéro. das aguardam. Foto: Zeca Ligiéro.

Ele não trazia nada nas mãos, diferentemente dos outros que
eu tinha observado em gravações de vídeo, que traziam facas ou
mesmo armas como uma metralhadora de madeira78. Sua perfor-
mance acontecia do lado oposto da igreja, onde parentes e curiosos
se aglomeravam em torno da raspagem da cabeça das meninas.
Pensei que iria assistir a alguma interatividade entre essa dança e o
ritual que acontecia do outro lado, mas isto não aconteceu. Este fator
também se diferencia das descrições dos rituais antigos do Mapiko.
Tradicionalmente são os músicos que convocam o dançarino para
começar a função. Israel Paolo nos oferece uma detalhada descrição
do funcionamento das diversas etapas desta performance:
Depois do ensaio, o lipiko é vestido (kupanga) uma vestimenta justa
feita de três peças de tecido que lhe cobre o corpo inteiro com exceção
dos pés e das mãos. Chocalhos de metal são então amarrados no seu
torso e ele é mascarado. A performance em si é composta por duas
partes separadas. A primeira parte é chamada lishesho “forma de
quatro” (plural mashesho). É tocada com uma característica muito

78 Existem dois vídeos no youtube em que é possível observar a dança mapiko: https://www.youtube.com/
watch?v=kmw4eHugjvM https://www.youtube.com/watch?v=qMeUjRIsj7Y&list=RDqMeUjRIsj7Y#t=6

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 181


clara de quatro tempos (quatro batidas rítmicas), e o movimento do
lipiko é lento e estilizado. Durante o lishesho, o coro, composto de
ambos, homens e mulheres, entoa músicas e danças juntos (kutam-
bila – entreter) antes, durante e depois da performance do lipiko. A
coordenação entre a orquestra (de atabaques) o coro e o lipiko é o
momento mais delicado e importante desta parte da performance.
Nshkasha é o nome do típico movimento para trás que o lipiko
performa no início e no fim da primeira parte. Isto dá o seu nome
para todo o movimento e, genericamente falando, para o estilo
de performance, a qual é chamada mapiko wanshasha. O segundo
movimento, mais rápido que o primeiro, é seguido com o dobro do
tempo (duas batidas rítmicas). Os passos de dança e os gestos os quais
não são estritamente marcados (como o shakasha) são deixados para
a imaginação combinada do lipiko com o mmagoma (o tambor que
lidera a orquestra) são chamados de vikuvo, tradução aproximada de
“estilo”. Os vikuvo são dançados durante o lishesco e o nshasha. Esses
consistem em um tipo de teatro dançado, no qual o dançarino alude os
movimentos do dia a dia da vila, imita os movimentos de um animal ou
conta histórias mais complicadas, geralmente relacionadas à guerra.79

Paolo Ismael, um dos poucos pesquisadores de Mapiko80, indica


que o ritual se modificou bastante ao longo da história da região e não
tem a mesma importância que tinha dentro da tradição, mas que a
dança mapiko ganhou uma nova dimensão no mundo contemporâneo
de Moçambique. Em seu trabalho, procura demonstrar que o ritual
não permaneceu congelado no passado tradicional, tendo algumas
vezes desaparecido ou mesmo se transformado pelo impacto da mo-

79 ISRAEL, Paolo. Mapiko mascarades of the Makonde: Performance and Historicty. In: East African Contours.
Reviewing Creativity and Visual Culture. ARERO , KINGDON Z. (eds). London: Horniman Museum, Critical
Museology and Material Culture series, 2005, p. 101.
80 Existe uma bibliografia limitada sobre mapiko. Nela, temos a etnografia colonial do clássico de DIAS J. e
DIAS M., Os macondes de Moçambique, vol. III, JIU, 1970. Para uma bibliografia mais recene existe KINGDON
Zachary, A Host of Devils, Routledge, London, 2002, além de ISRAEL Paolo, Mapiko masquerades of the Makonde:
Performance and Historicity. In: ARERO H. e KINGDON (Eds). Eastern African Visual ‘Traditions’, London:
Horniman Museum, London, 2005. Sobre o tema, ver também: MKAIMA M., Mapiko Masks yesterday and
today. In: KRISTIAN F. (ed.). Makonde: Mapiko. Linz: Neue Galerie der Stadt, Neue Galerie der Stadt, 1997.

182 | TEATRO DAS ORIGENS


dernidade e da globalização. Assim, seu aspecto de ritual secreto de
uma cultura étnica se autoafirmando transformou-se em uma cultura
crítica, frequentemente devotada para a representação da alteridade.
Em sua investigação, Paolo Ismael destaca a própria transformação da
dança ritual pelos seus criadores em função do contato pessoal com
o mundo contemporâneo. Afirma que estas transformações ocorrem
principalmente na coreografia, na maneira de esculpir a máscara, nos
figurinos, mas não no material usado para confeccionar a máscara, uma
madeira leve chamada ntene. Seu contato com um dos importantes
renovadores das máscaras, e do próprio Mapiko, nos revela uma inte-
ressante perspectiva. Trata-se de um senhor de mais de sessenta anos,
chamado Mustafá, que tornou-se um dos mais importantes escultores
de máscaras da região. Em 2001, ele começou um novo grupo de mapiko
com máscaras esculpidas em pneu de carro, em que o caráter grotesco
da máscara se via acentuado. A invenção foi muito bem aceita. Mustafá
é visto como um fazendeiro inventivo que também modernizou a sua
plantação de arroz e tornou-se famoso por suas canções premiadas por
suas críticas políticas. O autor, um europeu, ficou intrigado quando,
após algumas entrevistas, o velho artista moçambicano lhe pediu que
trouxesse uma máscara de borracha, das mais bizarras que pudesse
encontrar na Europa, porque ele queria adaptá-la ao lipiko e assim
chocaria e provocaria um grande espanto sobre a procedência daquilo.
Não estava preocupado se uma máscara de borracha podia ser usada
no ritual, “o que realmente ele queria era confundir e provocar a plateia,
brincar sobre a circulação de objetos desconhecidos e a maestria do
artista em moldá-los em outra coisa”81.
Em shimakonde (a língua maconde), a palavra lipiko, cujo plural
é mapiko, significa máscara em forma de capacete, usada durante
a performance, ou outra máscara de cabeça em geral. Mapiko re-
fere-se a qualquer tipo de dança mascarada que tenha um sentido
de algo secreto. O dançarino mascarado é chamado de lipiko ou

81 ISRAEL, Paolo. Irony, Ambiguity and the Art of Recycling Reflections on Contemporary Rural African Art
and ‘Africa Remix’. In: Third Text, vol. 20, Issue 5, September, London and New York: Routledge, 2006. p. 585–600.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 183


usando outra expressão idiomática como wavampangile (aquele
que foi vestido), nkuvina (o dançarino), wacujela vikuvu (aquele
que lança estilos). O pesquisador Miguel Costa Nkaima (1999), ao
debruçar-se sobre a longa tradição dos macondes, que vivem nas
margens do rio Rovuma partilhando territórios entre Moçambique
e a Tanzânia, destaca o seu estilo artístico aparentado ao originário
do Congo, destacando em seu estudo os grandes escultores de más-
caras e outros objetos de arte em madeira82. Portanto, os macondes
guardam as características de suas máscaras esculpidas em madeira
única, cavada para ser encaixada como um capacete que cobre toda
a cabeça e são reconhecidas como pertencentes às culturas bantu,
originárias da antiga região do Congo, além da própria língua ma-
conde, de origem também banto83.

Lipiko entrando em cena. Lipiko em ação. Fotos de Zeca Ligiéro,


Maputo, Moçambique, 2012.

82 NKAIMA, Miguel Costa. Máscaras Mapiko: ontem e hoje. In: Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas,
Lisboa, Instituto Camões, nº 6, julho-setembro de 1999.
83 A língua maconde ou shimakonde é uma língua falada no norte de Moçambique, na província de Cabo
Delgado. Também é falada no sul da Tanzânia, na zona fronteiriça com Moçambique. Disponível em <http://
pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_maconde>. Consultado em 8/8/2015.

184 | TEATRO DAS ORIGENS


No início do século XIX, ao pressionar Portugal no sentido
de pôr fim ao tráfico negreiro, a Inglaterra, a partir dos tratados
de 1810 assinados entre os dois países, passou a fazer rigorosa
vigilância nos principais portos africanos do Atlântico de onde
saíam os navios negreiros. Para burlar o controle britânico, mui-
tos traficantes intensificaram o comércio de escravos da África
Oriental, embarcando os cativos nos portos da, então, colônia de
Moçambique, Lourenço Marques (atual Maputo), Inhambane e
Quelimane, dirigindo-se principalmente ao Rio de Janeiro. En-
tre eles, encontravam-se os macua, swazi, maconde e nguni, que
ganhavam no Brasil a designação geral de “moçambiques”. Entre
18% a 27% da população africana no Rio no século XIX era de
Moçambique. No entanto, nem todos vinham da colônia portugue-
sa e, sim, de regiões vizinhas, onde hoje estão Quênia, Tanzânia,
Malauí, Zâmbia, Zimbábue, África do Sul e Madagascar. O grupo
linguístico majoritário era, portanto, o bantu.
Sabemos da forte presença de cativos vindos da região de Mo-
çambique para o Brasil no último ciclo de trafico negreiro (entre
1843 e o final da escravidão, em 1888), porém encontramos poucos
registros da presença dos maconde no Brasil, bem como desta dança
específica. No entanto, podemos identificar alguns elementos desta
dança em inúmeras performances brasileiras. Sendo assim, penso
imediatamente nos

... corpos dos palhaços da Folia, de uma maneira geral, traduzem


em suas danças e gestuais um posicionamento expressivo quase
que padrão: pernas paralelas distanciadas na linha do quadril;
pés paralelos enraizados no chão; tornozelos sustentados; joelhos
flexionados. Com esta configuração de membros inferiores, aponta-
se a base sólida dos pés no chão como o ponto de partida para a
organização de sua dança; evidencia-se forte relação com a terra.
Seu quadril participa do alinhamento do eixo vertical e acompanha
os movimentos de pés e pernas através de pequenas torções. Seu

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 185


tronco se projeta levemente para a frente e seus braços aparecem
soltos, com a ocorrência de um leve cruzar diagonal de movimentos
em oposição aos pés.84

Torna-se muito interessante perceber algumas características des-


ta tradição, sobretudo, a forma de utilização dos pés e pernas durante
a performance, já que em ambos os casos, Brasil e Moçambique, os
mascarados utilizam pouco a parte superior do corpo por sua relação
com a terra e a ancestralidade. Ausônia Bernardes completa:

Desta forma, e ainda como influência da cultura africana, identificada


como predominantemente agrária, percebemos a fundamental ligação
da dança do palhaço com a simbologia da terra: como se a fonte de
abastecimento da energia de seu corpo fosse através do contato enraizado
de seus pés com o chão; como se as posturas empregadas durante a
chula retratassem sua relação com o sagrado, com a tradição e memória
ancestral e como se o ato de comunicação em sua dança viesse através
do exercício dos pés. É importante sinalizar que todos os movimentos
observados na dança do palhaço apresentam os joelhos flexionados
o que, na cultura africana, indica um corpo vivo, pronto para atacar
e defender. A propósito, Jaqui Malone (1996:9) cita um provérbio do
povo bakongo: “Dance com os joelhos dobrados, para que você não seja
confundido com um cadáver”. Neste momento, portanto, mostra-se de
extremo valor destacarmos o repertório de passos que trazem os pés e
as pernas dos palhaços da Folia, como líderes de movimentos85.

As máscaras dos dois performers são bem distintas, já sua vesti-


menta apresenta algumas semelhanças, sobretudo por oferecerem
aos performers flexibilidade, leveza e forte colorido. Já a presença do
chocalho de metal preso no corpo do lipiko lembra sobretudo a “gunga”,

84 MONTEIRO, Ausônia Bernardes. O palhaço da Folia de Reis: dança e performance afro-brasileira. 2004. 177f.
Tese (Doutorado em Teatro) – Programa de Pós-Graduação em Teatro, Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p.136.
85 MONTEIRO, Ausonia Bernades. O palhaço da Folia de Reis: dança e performance afro-brasileira. 2004. 177f.
Tese (Doutorado em Teatro) – Programa de Pós-Graduação em Teatro, Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, pp. 141-142.

186 | TEATRO DAS ORIGENS


grupo de chocalhos de metal do tradicional terno de “moçambique” de
Minas Gerais e do estado do Rio, sem dúvida há aí um parentesco86.
Tanto Monteiro como Israel entendem a continuidade da forte liga-
ção ancestral, mas em convívio com o mundo contemporâneo. Ausonia,
ao analisar o estilo de movimento de três palhaços de distintas folias do
estado do Rio, vai perceber que eles trazem para suas performances as
danças que conhecem no seu cotidiano, seja a capoeira, o jongo, o frevo
ou o hip-hop. A tradição se afirma por incorporar novos elementos
à sua maneira. Israel, ao discutir novos grupos de mapiko, registra:

Em vikuvo (dança teatro) de Naupanga (um dos famosos Mapiko)


foi possível reconhecer pedaços de imagens “globalmente familiares”.
O dançarino mascarado jogou o facão no chão, deu a entender em
alguns passos de dança como a de Michael Jackson, e então ele se virou
rapidamente, chutando o espectador mais próximo em um estilo
inspirado em Bruce Lee. Toda a lishesho era um jogo sutil de sedução e
ameaça, com o dançarino atrair o público e assustando-o com chutes,
movimentos bruscos e golpes de facão. 87

Lipico como um velho violento, interior de Moçambique.


Desenho de Zeca Ligiéro baseado em foto de Israel Paolo.

86 SANTOS, Claudio Alberto dos. Tambores incandescentes, corpos em êxtase: técnicas e princípios bantus na
performance ritual do Moçambique de Belém, 2007. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas. Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2007.
87 ISRAEL, Paolo. Irony, Ambiguity and the Art of Recycling Reflections on Contemporary Rural African Art and
‘Africa Remix’. In: Third Text, vol. 20, Issue 5, September. London and New York: Routledge, 2006, pp. 102-103.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 187


Ambos os autores citados dão destaque à liberdade do performer
em relação à tradição estudada, ou seja, uma vez que a performance
é viva e está a serviço de um jogo com o público, um exercício lúdico
e uma reflexão sobre o que se vive, relacionando-se diretamente com
o contexto comunitário, ela não somente absorve novas temáticas,
como convive com novos estilos. A inovação faz parte da sobrevi-
vência da própria tradição. Não se percebe aqui a alteração de alguns
valores da tradição como uma perda de identidade da performance
em si. A performance está, justamente, a serviço deste ajustamento
do mundo espiritual com a vida prática, com as questões do dia a
dia, uma adaptação realizada pela inventividade dos performers
que, adquirindo um profundo aprendizado destas práticas outras,
tornam-se mestres, como no jazz, onde podem improvisar desen-
volvendo novos estilos. Algumas mudanças acontecem pela própria
diáspora dos grupos, que ao abandonarem a zona rural e o contato
com a floresta readaptam seus rituais e celebrações, como foi o
caso desta iniciação feita no bairro militar, longe da floresta. No
caso do mapiko, houve distintas transformações, primeiramente
lutando contra a repressão dos missionários católicos e protestan-
tes, depois contra a incompreensão do colonizador e, durante a
revolução que se propunha a combater as tradições animistas em
nome de um socialismo materialista, a própria dança introduz o
elemento de protesto e de combate ao inimigo comum, o coloniza-
dor português, transmutando-se em uma performance nacional a
favor da Frelimo88. Todavia, mesmo antes do contato direto com o
mundo globalizado, muitas dessas performances já apresentavam
elementos de crítica ao mundo do outro, o europeu, incorporando
seus materiais e objetos dentro do jogo cênico presente nos rituais

88 Frente de Libertação de Moçambique. A Frente de Libertação de Moçambique, também conhecida por seu
acrônimo Frelimo, é um partido político oficialmente fundado em 25 de Junho de 1962 (como movimento
nacionalista), com o objetivo de lutar pela independência de Moçambique do domínio colonial português.
O primeiro presidente do partido foi o Dr. Eduardo Chivambo Mondlane, um antropólogo que trabalhava
na ONU. Deste a independência de Moçambique, em 25 de junho 1975, a Frelimo é a principal força política
do país, sendo também o “partido da situação” desde então. Cf. http://www.c-r.org/accord-article/historical-
context%C2%A0war-and-peace-mozambique .

188 | TEATRO DAS ORIGENS


e em danças como mapiko. Como Israel argumenta: “Pode-se en-
contrar nas chamadas artes tradicionais africanas muitos instantes
de apropriação e de reciclagem, os quais estão agora no centro da
criação artística contemporânea89.

Considerações finais
O estudo de casos aqui se restringe a situações que demarcam
territórios corporais distintos, nos quais uma tradição aparece em
primeiro plano mas, no seu âmago, aparecem também outras tradi-
ções manifestas na maleabilidade de performances mutantes e em
movimento. Tanto na esfera religiosa como na da arte, a matéria
prima transformada pelas mãos do artista ou encarnada pelo corpo
do médium está sujeita ao efêmero, às políticas circunstanciais do
aqui e agora, às reflexões sobre o momento em que se vive, tendo
como referência os exemplos de como os antigos mestres viveram.
A matéria da arte e da religião africana se faz da palavra ouvida e
observada, e também dos comportamentos consagrados pelos valores
comunitários.
Ao analisar dois tipos de tradições em um único artigo, expresso o
desejo de demonstrar o quanto as tradições africanas contemporâneas
são fluidas; a tradição é referenciada como uma série de gestos, rituais
e comportamentos contidos dentro das dinâmicas exercidas que tenho
estudado como motrizes culturais, às quais somente pela performance
se tem acesso. Portanto, não são religiões da palavra restritiva, mas
do verbo, da ação, a partir da maleabilidade da percepção do corpo
do devoto por meio da sua performance. As tradições jamais serão
vistas como um referencial imutável de dogmas e certezas, pois por
meio da performance amalgamam e/ou mesmo dialogam com outras
tradições em seus processos de troca comunitária, seja por meio de
uma capacidade reflexiva ou pela própria absorção inexorável dos ma-
teriais oriundos do contato com a modernidade e com a globalização.

89 ISRAEL, Paolo. Irony, Ambiguity and the Art of Recycling Reflections on Contemporary Rural African Art
and ‘Africa Remix’. In: Third Text, vol. 20, Issue 5, September. London and New York: Routledge, 2006. P.76.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 189


Escolhi, deliberadamente, analisar dois fenômenos africanos distin-
tos, com fortes traços rurais, ambos apresentando ritual e encenação
incluindo brinquedos corporais e dança, um proveniente do Togo (nos
estudos pioneiros afro-brasileiros estaria entre os grupos sudaneses)
e outro, de Moçambique (enquanto se insere tipicamente dentro da
tradição banto (Rodrigues, 1932). Percebo dentro dos seus respectivos
rituais a erupção da encenação, que corporifica seus mitos ancestrais
juntando-se às linguagens contemporâneas por meio do cantar/dançar/
batucar/contar. No caso destes dois rituais, suas mitologias apresentam
a própria violência que essas sociedades sofreram pelas suas duras
diásporas, invasões, guerras internas e perseguições políticas.
Procurou-se destacar, ao longo desta análise, diversos pontos co-
muns entre os dois objetos, por se tratar de práticas que encapsulam
uma série de intricadas relações ancestrais e contemporâneas, que
não se preocupam em emitir um discurso próprio de pertencimen-
to e de identidade étnica, embora alguns destes elementos estejam
presentes. No caso do Togo, sua composição cultural não pertence
apenas a uma cultura específica, mas a um conglomerado das culturas
ewe, fon, mina, ashanti e iorubá, somado a uma forte influência mu-
çulmana trazida pelos haussás, também negros e africanos; no caso
dos macondes, provenientes de um ritual tradicionalmente étnico,
estes limites foram ultrapassados, para transformar-se em atividade
religiosa/lúdica, envolvendo outros grupos étnicos. As duas, portanto,
se distinguem por uma pluralidade de tradições, um somatório de
profundas e diversas experiências religiosas com princípios artísticos
abertos, trabalhando com motrizes culturais que trazem de volta o
mundo ancestral ao encontro de um cotidiano marcado pela Indús-
tria cultural.
Assim sendo, faço minhas as palavras de Paolo Israel quando
afirma:
Descobrir práticas “conceituais” e abordagens no trabalho de alguns
artistas africanos rurais coloca o desafio de criar novos paradigmas
que podem explicá-los. Isso nos leva a reformular a visão comum das

190 | TEATRO DAS ORIGENS


sociedades africanas rurais como estáticas, marginalizadas e cortadas
da rede mundial de informações90.

O pesquisador impõe a si, ainda, inúmeras questões, mas encerro


aqui com uma única questão: quando falamos de uma tradição afri-
cana, de que tradição estamos falando? Inúmeras, mutantes, híbridas,
não basta apenas olhar alguns aspectos artísticos e/ou antropológicos
de suas realidades, há que se aproximar, realmente, de como essas
comunidades experimentam a tradição em contato criativo e reflexivo
frente ao mundo globalizado onde já se encontram inseridas, embora
quase nada beneficiadas por ele.
Neste capítulo é possível perceber claramente como se instaura
um Teatro de Origens, não necessariamente elencando uma mitolo-
gia de origem étnica ou ancestral. Mas princípios fundantes de uma
cultura em transformação, que se viabiliza pela encenação de histórias
, cantos, danças que por si remetem a um corpus anterior, ancestral,
que com a sua autoridade espiritual se disponibiliza na cena, como
referência, memória coletiva e identidade comunitária.

Dança do Mapiko, foto de Zeca Ligiéro, Maputo, 2012.

90 ISRAEL, Paolo. Irony, Ambiguity and the Art of Recycling Reflections on Contemporary Rural African Art
and ‘Africa Remix’. In: Third Text, vol. 20, Issue 5, September, London and New York: Routledge 2006, p. 67.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 191


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2015.

Goro Vodun (Togo e Gana) e Mapiko (Moçambique) | 193


Motrizes Culturais
Do ritual à cena contemporânea a partir
do estudo de duas performances: Sotzil Jay
(Maia, da Guatemala) e Danbala Wedo
(Afro-Brasileira, do Benin, Nigéria e Togo)

Estas voces que vienen de los primeros tiempos hablan a los


tiempos que vienen. Brotan de la memoria de los mayas pero
dicen lo que dicen para que las escuche el mundo, que a los
tumbos busca rumbo tanteando en la noche, perdido como
ciego en un tiroteo. Y estas voces nos recuerdan que el centro
del Universo está en cada uno de nosotros, porque está en cada
uno de los frutos que brotan en cada instante del tiempo y en
cada lugarcito de la Tierra. Y nos invitan a recrear el hilo roto
de la vida, a sanar la violada dignidad de la naturaleza y a
recuperar nuestra perdida plenitud.91

Eduardo Galeano, em Raxalaj Mayab´K Aslemalil. Cosmo-


visión maya, plenitud de la vida, diversidad étnico-cultural:
la ciudadanía en un Estado plural, Guatemala, 2005.

A pluralidade das culturas trazidas da África negra apresenta um


paralelo com a multiplicidade das culturas nativas das Américas.
Para melhor entender o paralelismo de suas performances culturais,

91 “Estas vozes que vêm dos primeiros tempos falam aos tempos que virão depois. Brotam da memória dos
maias, mas dizem o que dizem para que o mundo as escute, ele que aos tombos busca rumo, perdido como
cego em tiroteio. E estas vozes nos recordam que o centro do Universo está em cada um de nós, porque está
em cada um os frutos que brotam em cada instante do tempo e em cada lugarzinho da Terra. E nos convidam a
recriar o fio rompido da vida, a curar a dignidade violada da nautureza e a recuperar a nossa plenitude perdida.”
Eduardo Galeano (tradução própria).

Motrizes Culturais | 195


é importante pensar tanto os respectivos contextos sociais, étnicos e
históricos, como suas concepções filosóficas e crenças condensadas
nos elementos comuns que as compõem, submetidos a processos que
tenho definido como “motrizes culturais”, empregados no restauro/
reiteração de comportamentos ancestrais no âmbito do ritual e em
arenas do divertimento contemporâneo. Portanto, este estudo procura
dar conta de se aproximar de disciplinas como antropologia, história,
filosofia, além dos estudos sobre artes cênicas, dança, música, como
também das artes visuais e sua rica literatura oral, para entender a
continuidade de um teatro arcaico e ou pré-dramático em diferentes
países da África, das Américas e em distintas comunidades brasileiras.
Isto não somente com o intuito de guardar e preservar tradições, mas,
na maioria das vezes, de dialogar com o mundo atual por meio das
técnicas milenares de suas performances, calcadas no inseparável trio
cantar/dançar/batucar, ou ainda, em alguns casos em que detectei o
uso da “narrativa”, passando a compor um inseparável quarteto com
o “contar”. A força da dinâmica em si se encarrega de centralizar
no corpo do performer o que normalmente é percebido como algo
separado na centrifugação do consumo ocidental, onde os universos
da música, da dança e do teatro se apartaram para se desenvolverem
como arte autônoma. Nestas performances tradicionais ou criadas
por artistas contemporâneos, como vamos analisar em seguida, o
quarteto cantar/dançar/batucar/contar se une em um inseparável todo
para suspender o tempo cronológico e adentrar num ciclo mítico,
transcendental, estabelecido pelo performer na presença dos espec-
tadores, na maioria das vezes invocando ou incorporando as forças
da natureza. Estas motrizes são conhecidas pelos mestres, sacerdotes
ou xamãs como o próprio fundamento da tradição, seja ela ameríndia
ou africana. Nota-se, ainda, que muitos outros elementos podem
ser adicionados de acordo com os contextos onde a cena acontece
e, neste caso, podendo se transformar e se transvestir, absorvendo
distintos figurinos, objetos e adereços do mundo contemporâneo
sem, contudo, perder sua identidade original. Como algo que pode

196 | TEATRO DAS ORIGENS


ter distintas embalagens, mas mantendo em seus corpos dinâmicas
com processos semelhantes, embora acontecendo em culturas que,
na maioria dos casos, não têm contato entre si. Em seus conteúdos
explícitos, podemos observar em ambas, as africanas, na diáspora
brasileira, e/ou as ameríndias, em seus processos de resistência dentro
das aldeias ou em contato com a sociedade de consumo, um profundo
respeito pela natureza em todos os desdobramentos físicos e simbó-
licos, combinado com princípios éticos preservados pela memória
dos mais antigos ou pelos mestres, brincantes, sacerdotes que unem
práticas filosóficas humanistas com exemplos de dedicação. Os rituais,
as danças, os ritmos e os mitos dessas culturas têm providenciado um
enorme manancial para autores, pintores, compositores, dançarinos e
artistas plásticos, que não necessariamente pertencem às comunida-
des ou foram iniciados em seus ritos, mas que incorporam as tradições
e algumas de suas dinâmicas culturais (motrizes). Embora tenham
sido feitas pesquisas criteriosas por antropólogos ou sociólogos, estas
performances culturais não foram analisadas em conjunto, enquanto
fundamentos estéticos e filosóficos, em estudos comparativos.
É sabido que a troca entre indígenas e negros é notável durante
os processos de escravidão e fugas, sofridas igualmente pelos dois
povos, obviamente em circunstâncias históricas diferentes, ainda
que pouquíssimo estudo comparado tenha sido feito nesse sentido a
respeito das suas culturas no que tange às suas performances culturais.
As poucas referências são ainda um entrave para o aprofundamento
nesta fase dos meus estudos.
A tentativa de aproximar os universos das tradições afro e amerín-
dia não pretende apontar para origens comuns ou crenças similares,
ou mesmo equivalentes. Trata-se de um exercício de compreensão
de processos únicos de criação e apresentação comunitária, onde são
repetidos alguns procedimentos técnicos para elaborar performances
com caráter litúrgico nas quais está previsto também o entreteni-
mento como forma comunitária de devoção e de reconhecimento
de signos e símbolos comuns por meio das linguagens cênicas. Em

Motrizes Culturais | 197


ambas as tradições, a convivência com o sagrado e com a sabedoria
ancestral se contrapõe à adversidade da globalização, da banalização
e a mercantilização da arte.
Nos últimos anos, para dar conta de entender as dinâmicas das
diversas manifestações que procedem de diferentes matrizes cul-
turais africanas e que são reprocessadas nas Américas, desenvolvi
como metodologia de trabalho o conceito de “motrizes culturais”, já
empregado em diversos artigos e sempre aplicado às performances
afro-brasileiras, conceito este que passarei a utilizar, também, em
relação à tradições ameríndias e que resumo aqui para melhor com-
preensão desta análise.

O conceito de motriz como fundamento cultural


Para entender as relações do corpo com a espiritualidade e a filo-
sofia africana, principalmente dentro do ritual (candomblé, umbanda,
jongo, folia de reis etc.), e também em situações do entretenimento
(samba, futebol-arte-negro etc.), no sentido de resguardar a tradição,
desenvolvi o conceito de “motriz cultural” como processo de enten-
dimento da continuidade de performances africanas no Brasil, no
lugar do termo “matriz”, largamente conhecido e empregado entre
adeptos e admiradores das performances afro-brasileiras (LIGIÉRO,
2011). Procurei destacar “um conjunto de técnicas aplicadas simul-
taneamente com o cantar-dançar-batucar” (LIGIÉRO, 2011:157),
expressão cunhada por Fu-Kiau para indicar o denominador comum
das performances africanas negras.
Considero ainda um outro valor agregado a essas dinâmicas, o
da ocorrência da simultaneidade de ritual e jogo dentro da mesma
performance, para o qual utilizo os conceitos de jogo e ritual de Sche-
chner (LIGIÉRO, 2012). Outra chave é o conceito de “recuperação do
comportamento”, do mesmo autor (SCHECHNER, 1985), empregado
para entender a instauração de dinâmicas que geralmente pertencem
ao campo das artes (música, dança, canto, jogo dramático) para criar o
corpo dilatado do performer, induzindo-o ao transe e ao contato com

198 | TEATRO DAS ORIGENS


o mundo dos ancestres A performance de origem africana, ao mesclar
o jogo (a brincadeira) com o ritual, empresta a toda a tradição popular
brasileira um tônus e uma rítmica próprios, criando uma literatura
corporal que muitos identificam genericamente como “brasileira”.
Uma forte característica das performances afro-americanas é, em
geral, justamente a via dupla entre o jogo (a brincadeira) e o ritual.
Aspectos comumente tidos como opostos nas religiões ocidentais
encontram nas chamadas celebrações tradicionais afro-americanas
um campo fértil de distensão e reencontro com as forças da natureza,
estas também, simultaneamente, ordenadas e caóticas.
Entre essas performances destaco a presença do cantar-dan-
çar-batucar, bem como a incidência do jogo dramático no ritual,
que constrói uma performance afro-brasileira sem, contudo, que o
elemento étnico seja o preponderante. Desta forma, muitas vezes a
maioria dos participantes não pertence ao mesmo grupo étnico, e
o ritual ocorre de igual maneira, como se toda a comunidade fosse
composta exclusivamente pela mesma etnia.
Seguindo a análise, destaco a importância do corpo dançante do
devoto/participante, onde todo o processo ocorre, no caso do afro-
-brasileiro. As dinâmicas das motrizes culturais se processam no corpo
do performer como um todo. Neste sentido, o corpo é seu texto. Nele
se materializa uma literatura viva, desenvolvida a cada apresentação,
refletindo o conhecimento que se tem da tradição. Frases contempo-
râneas de cunho acadêmico como “pensamento do corpo”, “fala do
corpo” etc., importadas de pensadores europeus ou norte-americanos,
já eram muito conhecidas da tradição afro no Brasil há pelo menos cem
anos, daí o ditado popular “tem que dizer no pé” usado para definir a
performance de um bom sambista (JAIR DO CAVAQUINHO, 2007).
Na performance, a cultura da cena, mais do que por marcas,
símbolos e formas (matrizes), se efetiva pelo conhecimento que o
performer traz em seu próprio corpo quando executa a combinação
dos seus movimentos no tempo e no espaço (LIGIÉRO, 2011:110-111)
Dessa forma, procuro perceber uma associação de diversas matrizes

Motrizes Culturais | 199


culturais na construção de motrizes afro-brasileiras capazes de se
reconstruírem na diáspora das Américas, reconfigurando elementos
étnicos originários de diferentes países da África em rituais e festi-
vidades também oriundos daquele continente, mas reprocessados e
recriados dentro do contexto opressivo colonial português ou espa-
nhol – muitas vezes tutelado pela igreja e sob o guarda-chuva de um
santo protetor – em que o ritual africano é restaurado dentro de uma
nova moldura cristã, como foi o caso da congada ou da folia de reis.
O elemento da transmissão dos saberes é muito importante por-
que, como tradição, se legitima através do contato de rituais/celebra-
ções; o conhecimento se exerce através da própria prática em que o
neófito é iniciado por meio do convívio com o seu mestre. Aparece
ainda, em muitos casos, a contribuição pessoal do performer, não só
fazendo o que aprendeu com mestre, mas ele mesmo desenvolvendo
um estilo próprio capaz de rearranjar os materiais apreendidos e as
técnicas da tradição em novas restaurações de antigos comporta-
mentos, como encara Richard Schechner92 com a sua conceituação
de comportamento recuperado (LIGIÉRO, 2011:113-114).

O corpo em ação conjunta e complementar:


cantar-dançar-batucar
Dentro de uma roda de samba, é natural – tanto na década de
1930 como hoje em dia – um sambista iniciar um simples batuque
chacoalhando uma minúscula caixa de fósforos como se fosse um ins-
trumento musical clássico, imprimindo o ritmo da música. Quando a
letra ainda não se faz presente, o canto surge com sons onomatopeicos
ou mesmo “telecoteco... tecoteco... skindô skindô...”, até a memória
trazer à tona uma antiga melodia ou algo de improviso, as letras vão
surgindo de acordo com a inspiração do momento. É como se o ritmo
não soubesse viver sozinho, precisa da sua expressão vocal. Mesmo
quando todos os sambistas estão sentados em volta de uma mesa, seus

92 SCHECHNER, Richard. O que é performance. In: O Percevejo – Revista de Teatro, Crítica e Estética, Programa
de Pós-Graduação em Teatro, UNIRIO. n. 11, v. 12, Rio de Janeiro, 2003, p. 32-37.

200 | TEATRO DAS ORIGENS


corpos não permanecem rígidos como se estivessem em uma orques-
tra sinfônica. Os que não têm instrumentos passam a bater palma e os
que ainda não se inseriram no conjunto, mesmo de fora, tocam algum
instrumento improvisado, como garfo ou colher no prato; alguns que
estão ainda mais longe instintivamente se aproximam e começam a
soltar as juntas, permitindo que as ondas sonoras lhes penetrem a
medula, modulando o quadril para reproduzir o molejo da música,
de forma que o corpo reverbere o batuque. Até os mais desafinados se
sentem encorajados a entoar, quando não toda a música, pelo menos
o refrão. Isto ocorre na roda de samba informal, mostrando que na
base do ritual afro-americano encontramos o cantar-dançar-batucar.
A dança africana subsaariana se caracteriza pelo seu movimento
explosivo e concentrado, o envolvimento total do corpo e a sintonia
com a percussão, gerando um contexto cujo sentido é fortemente es-
piritual e atinge, no êxtase, o seu apogeu, momento em que o transe, o
encontro máximo com o divino, pode ocorrer ou não, dependendo do
tipo de ritual e da preparação do médium para que isso aconteça. As
danças africanas são incontáveis em seus estilos, variando conforme
os grupos étnicos, ambientes e trocas mútuas através da história das
migrações. Em todos os casos, a dança ocorre dentro de um contexto
celebratório-ritualístico com grande capacidade de interatividade e
participação do público presente, quase sempre pessoas do mesmo
grupo ou de convidados e simpatizantes. Através do corpo, fala a
etnia, num léxico próprio de movimentos articulados com ritmos e
cantos que são emblemáticos da própria mitologia do grupo ou nação
em questão (LIGIÉRO, 2011:131-132).
Bunseki Fu-Kiau afirma que a dança é apenas um dos elementos
da performance africana e não deve ser estudada separadamente. Ele
propõe, em vez disso, o estudo de um só objeto composto (“amarrado”),
o “batucar-cantar-dançar” que seria, então, um continuum. Em sua
análise, aponta que em quase todas as religiões africanas os espíritos
dos principais ancestres, quando venerados por meio do transe, voltam
à Terra para dividir sua sabedoria com seu povo. Nessas culturas, os

Motrizes Culturais | 201


rituais acontecem em arenas, procissões ou de ambas as formas, com-
plementarmente. Em tais espaços os devotos tocam tambores, dançam
e cantam em honra aos deuses e ancestres: “A vida seria impossível em
qualquer comunidade africana sem os invisíveis e reconciliadores po-
deres de cura gerados pelo poderoso trio de palavras-chave da música
e do divertimento” (FU-KIAU, inédito). Fu-Kiau afirma que, quando
alguém está tocando um atabaque ou qualquer outro instrumento,
uma linguagem espiritual está sendo articulada. O canto é percebido
como a interpretação dessas linguagens para a comunidade presente
no aqui e agora. Dançar seria a “aceitação das mensagens espirituais
propagadas” por intermédio de nosso próprio corpo, bem como o en-
contro dos membros da comunidade nas celebrações conjuntas, sob o
perfeito equilíbrio (Kinenga) da vida. “Batucar-cantar-dançar permite
que o círculo social quebrado seja religado [religare], de forma a fazer a
energia fluir novamente entre os vivos e mortos.” (FU-KIAU, inédito).
Podemos, então, entender que a clássica separação entre religião e en-
tretenimento também não se aplica no caso das performances africanas,
são formas complementares dentro do mesmo ritual.

Sotz’il Jay e a performance ameríndia

Sotz’il Jay apresenta Oxalaj, 2012. Acervo Sotz’il Jay.

202 | TEATRO DAS ORIGENS


Os elementos da dança e suas complexas coreografias, o uso de
máscaras e os elaborados desenhos corporais, a arte plumária, o
canto e a dramatização de animais selvagens e seres encantados mi-
tológicos, o profundo sentido ritualístico e as encenações dos dramas
arquetípicos são características em comum dos grupos étnicos que
constituem o leque extraordinário ameríndio que vai dos esquimós à
Terra do Fogo, independentemente das situações geográficas: monta-
nhas, florestas ou cerrados. As performances culturais nativas, tanto
das chamadas civilizações pré-hispânicas maias, incas, astecas, assim
como a das indígenas da Amazônia ou dos planaltos, não possuem
nenhuma relação com as do europeu, mas apresentam aspectos muito
semelhantes às formas asiáticas e africanas, embora revelem traços
particulares e identidades próprias, assim como sistemas de lingua-
gens distintos. Estamos falando da concepção de um teatro arcaico
que sobreviveu, que chegou à contemporaneidade e se manifesta por
meio de performances feitas hoje em vários países preservando, anti-
gas tradições que reiteram comportamentos dos seus antepassados.
Ao incorporar elementos atuais, procuram abrilhantar ainda mais
suas performances enfatizando, mais fortemente, seus princípios. É
verdade que muitas delas sobreviveram graças a um processo de ne-
gociação com a Igreja Católica, e muitos de seus ritos se hibridizaram
em festas e procissões aparentemente pouco católicas, mas que não
são objeto deste artigo.
Antes de apresentar o espetáculo, os atores do Sotz’il Jay se
recolhem em silêncio, permanecem incomunicáveis, preparam-se
para um ritual, sabem que o palco é o microcosmo de uma operação
metafísica e que evocam entidades antigas e perigosas. Revigora-se
a memória dos ancestres. O espetáculo Oxlajuj B’aqtun constitui
um rito espiritual e artístico que dialoga profundamente com os
ancestrais daquele povo indígena em diversos planos: intelectual,
religioso e artístico, a começar pela evocação que a montagem faz ao
então guia espiritual e coordenador da entidade, Lisandro Guarcax,
sequestrado, torturado e assassinado em agosto de 2010, aos 32

Motrizes Culturais | 203


anos (ele promoveu e pesquisou a arte pré-hispânica por meio das
artes, impulsionou o movimento da Juventude Indígena em outros
núcleos comunitários). No programa do espetáculo anunciam que
tudo é consequência de uma maneira de ver o mundo:
Cada vez que nós maias sentamo-nos para comer, agradecemos a
cada um dos comensais pela comida. Não só a quem a preparou,
senão também aos que compartilharam esse momento conosco
nos permitindo estar ao seu lado. É que, para o pensamento maia, o
fato de estarmos vivos e respirarmos o ar que respiramos, o habitar
as terras que nossos ancestrais nos legaram para poder deixá-las no
futuro aos nossos netos, não é algo que nos corresponda “por direito”,
senão um presente que nos é entregue e pelo qual agradecemos.
O agradecimento, desde o pensamento maia, é um espaço para o
desfrute, para o reconhecimento da nossa felicidade por ser, por
respirar, por podermos ser testemunhas toda manhã de como a
vida se regenera.

O agradecimento, desde o pensamento maia, nada tem a ver com


a submissão, com saldar dívidas, com as hierarquias. Ao contrário.
É nossa oportunidade para parar, mirar ao nosso redor e celebrar
que estamos vivos. Agradecer uma vida que é cíclica, que está em
contínua transformação, que não tem princípio nem fim porque
simplesmente é. Graças a observação astrológica, nossos avós maias
desenvolveram uma matemática de grande exatidão que analisa e
reflete esse movimento cíclico que se resume em nosso conceito de
“zero”. Um conceito que, longe de representar o vazio ou o nada,
contém em si a essência da Plenitude. Assim, em nossa matemática
de base binária representamos o zero com uma semente, com um
grão de milho. Uma semente que é a um tempo o fim de uma
planta e o início de outra, porque todo fim de um ciclo implica
inevitavelmente o início de outro, porque nada desaparece nem
morre, porque tudo se transforma. Tudo está em movimento, a
galáxia que habitamos se expande no espaço e no tempo de forma
circular, o DNA que nos compõe é uma espiral infinita... tudo está

204 | TEATRO DAS ORIGENS


entrelaçado, nada termina. Por isso, o “Zaqates” outro dos valores
angulares da Cosmovisão Maia. A importância de terminar as coisas,
de fechar os círculos e fechá-los bem, de não deixar nada pela metade.
No trabalho, nas relações, na vida. Porque no universo tudo flui de
maneira circular, porque tudo está inter-relacionado e unido, cada
vez que não terminamos algo e o deixamos inconcluso, geramos
um desequilíbrio que frequentemente costuma ser o início da
infelicidade e do sofrimento. Apesar de séculos de empobrecimento
e discriminação, nós os maias seguimos sendo os netos e as netas
de uma civilização milenária que “desde os primeiros tempos fala
aos tempos que virão”, com a mesma firmeza pausada com que Tat
Lisandro Guarkax, artista maia kaqchikel, fundador do Grupo Sotz’il
e neto dos Aj Kaweq, redimensionava quinhentos anos de invasão
com uma frase simples: “No tempo em que Colombo veio à América
para comprovar se o mundo era redondo, nossos avós e avôs maias
conheciam o universo.”. São as vozes dos primeiros tempos que falam
aos tempos que virão, que brotam da memória dos maias para que
as escute o mundo. 93

Ao findar o espetáculo, também se isolam para realizar o que


Schechner chama de cool off, esfriar-se (SCHECHNER, 1998:57).
O próprio espetáculo, elaborado em etapas de um ritual, constitui
uma motriz cultural em si, congregando conhecimentos milenares
por meio do cantar-dançar-batucar, complementado pela sabedoria
de narrar histórias míticas, fundacionais, pertencentes à cosmovisão
maia. O Sotz’il Jay, grupo contemporâneo de investigação de teatro/
dança/música, se declara um coletivo de pesquisadores em busca das
“verdades ancestrais” da tradição maia, cuja religiosidade foi forte-
mente reprimida, mas que continua presente em inúmeros rituais e
celebrações, dentre os quais o Rabinal Achi94. Seu trabalho contex-

93 Revista da VI Muestra Latinoamericana de Teatro de Grupo. São Paulo (Brasil), 26 de abril de 2011, tradução
de Cláudia Lora.
94 Rabinal, o ritual criado e mantido pela comunidade Achí, Guatemala, é apresentado, segundo o calendário
católico, sempre nos mês de janeiro.

Motrizes Culturais | 205


tualiza a noção cíclica da vida percebida e praticada nas comunidades
tradicionais, contrariando a crença de que a cultura maia prega o fim
do mundo. Na cultura maia o encerramento de uma era implica uma
longa conta de cinco medidas de tempo, como q’ij (dia), winäq (20
dias), tun (360 dias), k’atun (20 anos) e b’aqtun (400 anos), os quais
vão mudando com o passar dos dias e dos numerais do calendário
sagrado, o cholq’ij. Isto se antepõe ao b’aqtun (unidade de medida do
tempo mais larga), o número sagrado treze (oxlajun), o resultado é
a duração de uma era maia, quer dizer: oxlajun b’aqtun equivale a
treze períodos de 400 anos ou 5.200 vezes 360 dias, pois na era maia
o tempo caminha através de uma espiral em que o passado e o futuro
se situam de forma paralela.

Oferenda – Ritual em torno do fogo sagrado, Centro Cultural Sotz’il Jay, Sololá, Guatemala,
2012. Foto: Zeca Ligiéro.

O trabalho do grupo consolidou-se com a criação do Centro Cul-


tural Sotz’il Jay, a casa do Grupo Sotz’il, em Sololá, distante umas duas
horas da capital Guatemala. Eu havia visto o grupo se apresentar em
São Paulo, por ocasião da VI Mostra Latino Americana de Teatro de
Grupo, em julho de 2011. Chamou-me atenção o seu espetáculo, um
ritual do principio ao fim, sua música, sua dança, o uso das máscaras

206 | TEATRO DAS ORIGENS


de animais, enfim, o grupo me surpreendeu em todos os detalhes.
No dia seguinte assisti também uma oficina sobre o seu trabalho
corporal e musical, novas surpresas: o treinamento tinha muito a
ver com capoeira, sobretudo a sua estreita relação com a música e o
balanço do corpo.

Oferenda ao Fogo Sagrado – Centro Cultural Sotz’il Jay, Sololá, Guatemala, 2012. Foto:
Zeca Ligiéro.

Em 2012, participei de uma celebração de inauguração do busto


de Lisandro no Centro Cultural Sotz’il Jay. Deparei-me com um
ritual em torno da fogueira sagrada, liderada pelo xamã Gilberto
Guarcax González, que é também um dos principais atores do grupo.
Quatro sacerdotes se revezavam em cada ponto cardial, enquanto
cantavam e ofereciam sementes de cacau, milho, velas em maços e
um tipo local de bebida fermentada, além de litros de rum para a
divindade do fogo. Não havia dança, no sentido que conhecemos,
mas um movimento simétrico, litúrgico, repetitivo. A cerimônia era
contida e concentrada. No final do ritual, os sacerdotes se recolhe-
ram num quarto, onde estava o altar das divindades maia, e de lá
saíram quando haviam decifrado o que o fogo havia dito durante o
ritual, procurando lavrar um entendimento também com a alma de
Lisandro, que havia recebido as oferendas. Elas haviam sido aceitas,

Motrizes Culturais | 207


deuses e sacerdotes se comunicaram com o púbico, passando, en-
tão, para uma outra fase, a da inauguração do busto propriamente,
feito por uma artista guatemalteca que descreveu sua intenção e
contextualizou a sua obra:
Estava em Toronto quando recebi a notícia que ele havia sido
sequestrado e assassinado. Isso foi feito não sei por que razão... eu sei
que não foi por acaso... tudo tem uma razão de ser. Mas há anos que
estava com a inquietude de fazer um busto... não sabia de quem, nem
de quê. Isso, quando li a notícia de Lisandro, eu disse: isso é o que eu
tenho fazer! Fazer o busto de Lisandro Guarcax, para que sua memória
não se perca. Para que, bem... os artistas são um pouco arrogantes,
ou muito arrogantes. Porque, eu vou morrer, mas isso eu não posso
deixar de fazer. Porque está feito para que resista ao vandalismo que
pode ocorrer, como acontece em muitas partes. Entrei com contato
com uma organização que, não me lembro quem, me deu o endereço
de um de vocês e uma senhorita me atendeu, me deu o contato do Sr.
Anastácio e ele me disse que sim, que com muito prazer me permitia
fazer o busto de Lisandro95.

Ela explicou como foi o processo de trabalho e como se inspirou


nas peças tradicionais da cerâmica maia, mas decidiu que o busto
seria em negro porque é a cor do morcego (quer dizer, sotz’il, em
língua maia), e lembra o simbolismo do morcego que “não tem
olhos mas vê e sente muito mais além” (discurso de Maria Ramirez,
2012). E ao finalizar seu discurso, lembrou que, coincidentemente,
esta homenagem ocorre no mesmo momento do julgamento desse

... grupo criminoso que tirou Lisandro de nós, mas também o


julgamento que está sendo realizado contra o General Efraín Ríos
Montt96. Esperamos que os juízes e magistrados tenham a sabedoria, a

95 Tradução de Carla Patrícia Lizaraso e Camila Daniel do vídeo, gravado por Zeca Ligiéro, com a artista plástica
guatemalteca Maria Ramirez, 2012. Acervo NEPAA, UNIRIO.
96 “O julgamento por genocídio, iniciado na Guatemala, do general Efraín Ríos Montt voltou a pôr o país
centro-americano diante dos horrores de seu passado. A guerra de 36 anos (1960-1996) entre o Estado e a

208 | TEATRO DAS ORIGENS


sensibilidade e o manejo da lei para que essas pessoas sejam julgadas.
Não queremos vingança, queremos justiça. E que eles reconheçam o
dano que fizeram. Agradeço você a atenção. Muito obrigada.

Representantes do grupo e a esposa do diretor assassinado também


falaram na ocasião. A cerimônia terminou com um almoço servido
com uma variedade de comidas feitas à base de milho.
A relação comunitária e familiar é muito forte. No site do grupo
lemos:
Esta montagem acontece em nome dos nossos avôs e avós, a eles
devemos os conhecimentos e a inspiração, estamos aqui para
continuar o seu legado. Também é uma homenagem a todos os avôs
e avós que lutam para manter o equilíbrio desde a Resistência do
Povo Maia97.

Resistência a séculos de exploração colonial e décadas de feridas


pela guerra civil, conjunção histórica comum a vários países da Amé-
rica Central ou da América do Sul. O trabalho surge da necessidade
de socializar os conhecimentos milenares maias reprimidos pela
sociedade atual. Como costumava dizer Lisandro Guarcax, em sua
língua-mãe, “desejamos que todos os nossos esforços se traduzam
em conhecimento do outro”.
O grupo pesquisa a tradição maia de diversas maneiras, coletando
antigos instrumentos musicais (flautas, ocarinas, apitos, cornetas,
tambores etc.) recriando-os a partir de pesquisas realizadas em museus
e nos sítios arqueológicos, ou copiando-os dos murais; também incor-
poram instrumentos musicais de outros grupos ameríndios dos Andes.

URNG (Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca) deixou, segundo se calcula, 200 mil mortos, em sua
maioria nas zonas rurais indígenas. O relatório publicado em 1999 pela Comissão de Esclarecimento Histórico,
patrocinada pela ONU, deu conta das atrocidades cometidas contra a população civil, fundamentalmente
por parte das forças militares. A informação é do jornal El País e reproduzida pelo Portal Uol, 29-03-2013”.
Instituto Humanitas Unisino. Julgamento de general obriga sociedade da Guatemala a confrontar seu passado.
disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518904-julgamento-de-general-obriga-sociedade-da-
guatemala-a-confrontar-seu-passado->. Acesso em 22 de maio de 2015.
97 Endereço do site do grupo Sot’zil Jay: <www.gruposotzil.org>.

Motrizes Culturais | 209


Da mesma maneira, recriam as danças, jogos e poses características das
antigas civilizações, com a ajuda de pesquisadores que se associaram
ao grupo. O grupo visitou o NEPAA – UNIRIO, dando uma oficina de
instrumentos musicais, um concerto, além de apresentar seu espetáculo
Oxlajuj B’aqtun. Em relação à dança tradicional, podemos perceber a
pesquisa de um léxico de personagens míticos, como o Jaguar.

Demonstração do grupo Sotz’il dos diversos instrumentos musicais maia. Oficina realizada
no NEPAA – UNIRIO, em 2012. Foto: Zeca Ligiéro.

Mural maia, a presença do Deus Jaguar. O deus Jaguar na peça Oxlajuj B’aqtun. Acervo
Sotz’il Jay.

210 | TEATRO DAS ORIGENS


Ilustrações de movimentos das danças tradicionais maias extraídos dos murais, a fim de
reproduzi-los em seu espetáculo Oxlajuj B’aqtun. Acervo Sotz’il Jay.

Em meio a uma relação temporal e espacial plena de símbolos e


analogias, a dramaturgia desce ao plano dos conflitos terrenos. Os
senhores de Xib’alb’a’ (os donos do submundo) enfrentam os gêmeos
Jun Ajpu’ e Yaxb’alamkej, representados como o ser humano e o
espírito. Eles refletem as forças duais mais necessárias à existência.
O conflito se dá por intermédio do jogo e da dança inspirada nas
chamadas danças folclóricas e nos murais maia.

Ritual e Jogo
Poderíamos comparar a iniciativa do grupo de reproduzir os
murais tradicionais à da dançarina Isadora Duncan, que se inspi-
rou em poses e posturas que imitavam frisos gregos e as pinturas
de dançarinos nos vasos e cânforas para romper com os padrões
do “antepassado, aristocrático, e palaciano ballet” (FAZENDA,
2012:70) na criação de uma “nova dança”, que se distancia dos mo-
delos vigentes propondo olhar a arte com mais liberdade e vigor,
uma arte de retorno ao natural, como referência à arte libertadora.
Já o propósito do grupo é totalmente diferente, pois recorre a uma

Motrizes Culturais | 211


identidade mítica, arquetípica, para articular um forte discurso de
resistência. A pesquisa do grupo incorpora os antigos murais das
diversas dinastias maias para melhor contar a história dos ante-
passados, cujas performances combinam perfeitamente o quarteto
cantar/dançar/batucar/contar. Mas, de forma distinta, o grupo tem
um compromisso com a tradição e nela mergulha para refletir sobre
um passado que tem sido reprimido ao longo dos séculos, e até o
momento presente, de forma violenta.

O jogo da máscara incorporando o sagrado. Foto Zeca Ligiéro.

212 | TEATRO DAS ORIGENS


Ritual e jogo se mesclam na cena. Foto: Acervo Sotz’il Jay.

Caminho de acesso ao Centro Cultural Sotz’il Jay a partir da rodovia perto de Sololá, Gua-
temala, 2012. Uma mulher maia tradicional com uma criança em um braço e o celular na
outro. Foto: Zeca Ligiéro.

Além dos elementos teatrais, a criação coletiva dirigida por Víc-


tor Manuel Barrillas Crispín – com nove atores em cena – costura

Motrizes Culturais | 213


referências da dança e da música sempre a partir de suas raízes. O
grupo é formado por jovens da etnia kaqchikel e soma dez anos de
trabalhos artísticos e culturais. Terra de milho ou iximulew, é como
se define, na Guatemala, a tradição maia. O grupo literalmente cria
um ritual cênico que se aproxima do que vislumbraram o Teatro
Antropológico (de Barba) ou o Teatro da Crueldade (de Artaud),
mergulhando profundamente no que foi denominado por Grotowski
como o “ator santo”98. Ignoramos entretanto qualquer relação artística
com a produção desses encenadores europeus.

Danbala Wedo: jogo sagrado entre dois


mundos que dançam
Ao assistir, no Festival Divinities Noires no palco de Aneho, no
Togo, à apresentação dos dançarinos Armando Pekeno (da Bahia)
e Vincent Harisdo (da República de Benin), ambos residentes na
França, fui absolutamente tomado pela performance da dupla
chamada Danbala Wedo, nome de um vodun bastante conhecido
no Benin, em Togo e também no Brasil. Na mesma noite escrevi
sobre essa performance, mobilizado, principalmente, pelas no-
vidades que corroboravam, em África, as minhas investigações
em terras brasileiras sobre as Motrizes Culturais. Desta vez uma
apresentação inserida dentro de um festival onde se apresenta-
vam, principalmente, agremiações provenientes de casas de culto
vodun, grupos para-folclóricos da região (Golfo de Benin e países
vizinhos ao Togo) e com a visita esporádica de alguns dançarinos
contemporâneos europeus, como convidados especiais de cada
edição do festival. A performance era criada por dois dançarinos e
uma pequena orquestra de seis músicos tocando variados instru-
mentos de percussão. Os dois dançarinos, com total liberdade para
trabalhar com a tradição, com uma profunda visão da imbricação
das culturas jeje-ewe-iurobá e sua presença na diáspora brasileira,

98 GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.

214 | TEATRO DAS ORIGENS


ao longo de uns quarenta minutos de apresentação se articulavam
e, entre as relações indissolúveis entre jogo e ritual, alternavam sua
dança, realizada ora em solo ora em trabalho conjunto. Somado
a isto, o fato de que não eram sacerdotes, nem propagadores de
tradição alguma, colocavam-se simplesmente como “dançarinos
contemporâneos” com uma relação profunda com as culturas afri-
canas do Golfo de Benin.

Vincent Harisdo e Armando Pekeno em Danbala Wedo, Festival Divinities Noires, Aneho,
Togo, 2013. Foto: Yara Ligiéro.

Fui pego de surpresa quando comecei a pensar que o solo de


Armando Pekeno era muito bem elaborado. Quando tocou a música
de Nanã Buruquê pela orquestra de cinco ou seis músicos que o
acompanhavam, vi seu corpo literalmente se transformar em lama,
em caranguejo, em bicho que nasce do barro mole. Sua pele negra
revestida de tinta branca me lembrou imediatamente a dança Butoh,
acentuada pelos seus movimentos lentos. Mas o seu diálogo com a
percussão me fez imediatamente mudar de continente, e se havia
ainda algo entre Kazuo Ohno e Armando, é porque em ambos a dança
nascia como algo líquido, fluido. Ambos eram calvos e tinham o corpo

Motrizes Culturais | 215


todo pintado de branco. Mas Armando não dramatizava o gesto como
Ohno, seu gesto fluía menos como rio que já sabe o caminho do leito
e mais como larva incandescente que ora desce e ora sobe a montanha
num caminho inverso, ou ainda nos toca por um atalho inesperado.
Quando me entretive neste solo, me espantei quando vi do outro
lado do palco, a figura do Vincent Harisdo vestido como uma antiga
dama da corte, uma roupa um tanto bizarra, uma figura que poderia
ser uma mãe de santo do candomblé, da santería ou do vodun, ele
também com o rosto, a cabeça careca e os braços pintados de branco.
(LIGIÉRO, Zeca. Web. 2013)

Quando apresentei o vídeo dessa performance no Instituto


Hemisférico de Performance em Nova York, perguntaram-me por
que dançarinos se mascaravam de branco à maneira do Butoh. Seria
uma influência da dança contemporânea? Pensei no simbolismo
iorubá, a tradição do Golfo de Benin mais conhecida no Brasil, à
qual eu me havia filiado como praticante, mas realmente não ousei
arriscar, pois no candomblé não se usa pintar o rosto e os braços
de branco, e somente nos rituais de iniciação o corpo e a cabeça
são parcialmente pintadas com o giz branco. O editor do meu livro
Initiation into Candomblé: Introduction to African culture in Brazil99,
Kwasi Konado, explicou que a pintura branca sobre o corpo era co-
nhecida em Gana, entre os Akan: “Tratava-se de uma argila branca
retirada dos rios (sagrados) chamada de hyire, aplicada sobre os
braços, rosto e pernas para simbolizar sacralidade/santidade, pureza
e vitória.”. Por sua vez, mencionou também a presença dos ewe/fon
que migraram para a parte oriental do Gana no século XVIII e XIX,
onde muitos ainda vivem (e também em outras partes do Gana) até
hoje. Portanto, a pintura corporal que aparentemente se liga à arte
do Butoh, aqui pertence a um simbolismo africano muito antigo e
assimilado por diversas culturas.

99 LIGIÉRO, Zeca. Initiation into Candomblé: Introduction to African culture in Brazil. New York: Diasporic
Africa Press, 2014.

216 | TEATRO DAS ORIGENS


Retomando a questão do ritual e do jogo, pude notar na perfor-
mance algumas características intrigantes:

Em seu semblante não havia santidade alguma, nenhum ar religioso.


Não era uma obra que reverenciava o princípio religioso, no sentido
da adoração, como as inúmeras que ocupavam o palco naquele festival,
embora houvesse um princípio ritualístico em poses e mesmo nos
movimentos das danças, nas quais reconhecia, principalmente em
Armando, a relação direta com a dança de alguns orixás, conforme
o ensinamento tradicional da dança afro-baiana. (LIGIÉRO, Zeca.
Web. 2013)

A questão de gênero emerge sem, contudo, trazer propriamente al-


guma bandeira ou reivindicação. O fato de ambos os homens usarem a
roupa típica das mães e filhas de santo (do vodun africano, da Santería
cubana ou do candomblé brasileiro) é um diferencial, que tradicional-
mente evoca a visão de mulheres poderosas da corte colonial, cujos
trajes foram adaptados para estes rituais africanos principalmente
no Brasil para assegurar uma pompa imperial afastando-se, desta
forma, dos trajes dos rituais tradicionais africanos. No candomblé, os
orixás, divindades máximas de um panteão de reis e rainhas do Keto
ou Oyo, ou mesmo as divindades dos voduns, identificadas também
como pertencentes a um passado mítico cuja presença terrena devia
se revestir de ouro e roupas suntuosas, se mescla com estilos inspira-
dos nas damas das cortes europeias presentes tanto no Brasil colonial
como nas terras colonizadas africanas (francesas, no caso de Benin e
Togo). Além das saias rodadas e armadas com anáguas engomadas,
acrescentou-se a bata em ponto chamado de Richilieu, obviamente de
origem francesa. A transição entre os seios nus e as batas, aparecem
na Bahia, por ordem de um governador geral, querendo moralizar
os costumes (LIGIÉRO, 1998:57).

Motrizes Culturais | 217


Na apresentação do grupo de sacerdotisas dos 41 voduns de Glidji, foi possível
observar as roupas brancas, algumas saias rodadas (influência da moda europeia
colonial) e o corpo pintado de argila branca. Foto: Yara Ligiéro.

No mesmo festival onde assisti à dupla de dançarinos, pude ver


também o cortejo das sacerdotisas de Glidji (foto acima), em que a
moda antiga africana convive com uma moda mais contemporânea
da saia rodada. No caso, chama atenção também a pintura corporal
com argila branca, destacando os braços, tronco e rosto. Algumas
têm os seios nus, e muitas delas cobrem o corpo com uma argila
branca. O uso da cor branca nas vestes e no turbante, bem como a
multiplicidade de guias com diferentes tipos de contas, lembram,
sem dúvida, um cortejo de sacerdotisas do candomblé ou mesmo
um cortejo carnavalesco afro-baiano.
Em meu relato notei que, em alguns momentos, eram líricos,
em outros, críticos chegando perto da caricatura, mas não queriam
extrair gargalhadas do público. Eram comentários corporais sobre os
personagens que viviam ao vestirem saias femininas.

Mas não havia tão pouco escárnio ou deboche. Havia sim, algo
feminino naquele corpanzil de homens maduros. Os gestos de orixás,
voduns femininos fluíam de seus corpos com a segurança de quem já
não precisa da mimeses, pois a memória é centelha que se incendeia

218 | TEATRO DAS ORIGENS


tanto no corpo do médium, como no corpo dançarino, neste caso,
embora com finalidades diferentes. Suas representações de mulheres
eram autoritárias, matriarcais como no ritual, mas algumas vezes,
eram demasiadamente violentas, extrapolando os limites impostos ao
ritual e adentrando por um entendimento arcaico dos seus princípios,
que a própria codificação da dança ritualística amansa e adestra em
gestos simbólicos e/ou emblemáticos, visando a fixação de conceitos
chave sobre os mitos e o simbolismo que carregam. (LIGIÉRO, Zeca.
Web. 2013)

Nos movimentos precisos dos dois dançarinos, era possível perce-


ber um corpo treinado, um corpo de dançarino contemporâneo, com
técnicas de diferentes procedências, demonstrando um treinamento
corporal em diversas tradições na procura de uma estética própria.
Fazenda100 enfatiza o conceito da construção de um corpo especia-
lizado baseado em Foster:

Cada técnica de dança “constrói um corpo especializado e específico,


um corpo que representa uma determinada visão estética da dança de
um coreógrafo ou tradição (FOSTER, 1992:485). Ou seja, cada técnica
de dança pressupõe um programa de desenvolvimento, da força, da
flexibilidade, do alinhamento, do ritmo e do equilíbrio, desenvolve
determinadas qualidades de movimento e o virtuosismo; coloca a
ênfase em certas partes do corpo e relações entre si; pode assentar numa
extensa nomenclatura e inúmeros elementos mínimos de movimentos
susceptíveis de serem agrupados em sequência ou simultaneidade, a
partir dos princípios anatômicos, fisiológicos e estéticos que regulam
as combinações possíveis. (FAZENDA, 2013:68)

E por estética, a autora especifica que se refere a


... preceitos estilísticos e a princípios de organização na produção de
formas sensíveis que são culturalmente variáveis, de grupo para grupo

100 FAZENDA, Maria José. Dança Teatral: Ideias, experiências, ações. 2ª ed. Lisboa: Edições Colibri/Instituto
Politécnico de Lisboa, 2012.

Motrizes Culturais | 219


e, no seu interior, mobilizados ou transformados, individualmente, no
decurso das práticas performativas.

O que mais chamou atenção na performance foi o foco do traba-


lho se dirigir para a relação com as danças ancestrais e seus possíveis
enredos encenados, mas de forma fragmentada, sem elencar propria-
mente dramas arquetípicos, mas como se fosse possível criar “tiras de
humor”, como faz um cartunista nos jornais, sobre essa arqueologia
dos ancestres divinizados em traços toscos, mas certeiros. Sequências
curtas com fortes imagens descontraídas, com ou sem comentários,
em outras células de movimentos.
Sem perseguir uma narrativa linear e lógica, algumas histórias foram
contadas por um corpo que há muito convive com o mundo dos
ancestres e deles extrai a sua seiva de vida. A precisão do gesto estava
em ser apenas o que é. O dançarino não precisa provar mais nada, o
dançarino cumpre o seu ato máximo, a dança dentro da música que o
provoca, provocando-a de volta com determinados gestos e movimentos,
já que o roteiro musical, também este, solto, obedece à lógica do jogo a
ser jogado. O dançarino não pretende imitar nem o transe nem a forma
da dança do vodun ou do orixá a que o médium, quando incorporado,
aprende a dançar para o ritual e que, longe do templo, o coreógrafo
imita como ensino dentro das academias de dança afro para o dançarino
dançar. Aqui não. O dançarino apenas dança a memória que seu corpo
descarrega. O gesto está uploaded com a própria carga que cria a sua
existência. Ele não carrega intenções, não quer significar nada. Já nasce
dizendo a que veio. (LIGIÉRO, Zeca. Web. 2013)

Neste sentido, podemos dizer que ambos os bailarinos se aproxi-


mavam do “corpo versátil”, como define Fazenda: “Para além destes
corpos cultivados numa técnica de dança singular, há um outro corpo
importante a considerar na contemporaneidade: o que é concebido
por um projeto estético diversificado” (2012:68). Ela aponta ainda
como a possível origem deste corpo, tal qual indicado por Foster, na
“Coreografia Experimental” da década de 1960, “quando as pesquisas

220 | TEATRO DAS ORIGENS


coreográficas reduziram as barreiras que separavam as linguagens
e os gêneros artísticos” (2012:72). Poderíamos acrescentar, no caso
desta performance, que a pesquisa avançava de maneira inclusiva as
barreiras entre arte e religião, não apenas de uma forma conceitual,
teórica, mas com uma proposta de combinação entre o ritual e o jogo.

Vincent Harisdo e Armando Pekeno em Danbala Wedo, Festival des Divinities Noires, 2013,
Aneho, Togo. Foto: Yara Ligiéro.

Neste momento, comecei a pensar que embora não houvesse


uma arte devocional, tratava-se de uma prática que conhecia pro-
fundamente as tradições do Golfo de Benin e suas diásporas ameri-
canas, tanto dos voduns como dos orixás sem, contudo, se prender
mimeticamente aos movimentos ritualísticos destas religiões, pois
a performance se desenvolvia com uma liberdade que volta e meia
abandonava qualquer clima litúrgico avançando para adentrar numa
atmosfera de puro jogo, fragmentando uma narrativa de referência
para implantar uma luta de encontros e desencontros de dois seres
dançantes em tensão e relação lúdica. Parecia-me que a criação do
movimento não nascia da tentativa de imitar para recriar uma parti-
tura conhecida de algum orixá particular, como é feito normalmente

Motrizes Culturais | 221


na aula de dança afro. Os dançarinos se envolviam com o movimento
da dança sagrada, mas de forma não convencional, sem pretender se
espelhar para guardar uma memória coletiva aprendida. Era possível
perceber que este “corpo de ideias” estabelecido pela dupla, ao se tocar
e um carregar o corpo/movimento sugerido pelo contato físico com
o outro, se aproximava do que ficou conhecido, a partir da década de
1970, como contact improvisation, cuja invenção foi atribuída a Steve
Paxton. Fazenda ressalta neste “o desenvolvimento de competências
sensitivas fundadas em determinados princípios que regulam a inte-
ração entre os dois corpos – tocar, transferir o peso de um corpo para
o outro, preservar um movimento fluido e responder, continuamente
com novas situações” (2012:73). Ela ainda acrescenta:
A prática do contact improvisation obriga a um conhecimento
de sensações internas provocadas pelo movimento e exige uma
capacidade de reagir instantaneamente às situações, de modo a
viabilizar a continuidade do dialogo entre os intervenientes e a
garantir uma segurança física, pois como diz Steve Paxton, “o que o
corpo pode fazer para sobreviver é mais rápido do que o pensamento.”
(vídeo Fall After Newton: Contact and Improvistation 1972-83).
(FAZENDA, 2012:73)

Entretanto, o jogo não se estabelecia apenas pelo contato físico,


mas pelo sentido que cada movimento adquiria para o outro. Nova-
mente, a performance escapulia de uma definição ortodoxa quanto
ao gênero ou estilo que abraçara. Não se tratava de uma sátira dos
trejeitos e movimentos da dança mas, muitas vezes, a própria brinca-
deira com “gestos sagrados” era experimentada com liberdade, visível
sobretudo no estilo de Harisdo, mais bufônico, que, por seu corpo
ser pesado, robusto, trazia para a dança, inevitavelmente, momentos
de puro humor.
Iniciaram um interessante jogo. Armando voltou agora também
vestido em uma saia rodada de baiana de santo. Mas o jogo não era
uma brincadeira de dois dançarinos alegres imitando mães de santo.

222 | TEATRO DAS ORIGENS


Não. Cada um trouxe seu universo para uma conversa franca entre
dois estilos distintos. Armando, oblíquo, sinuoso, transforma seu corpo
em pedra, argila, serpente, corda, bicho de quatro patas não por puro
exibicionismo, mas porque seu corpo cumpre um solene ritual de
imprimir no ar o grafismo das antigas cavernas, como se nós, ao vê-lo,
experimentássemos o estado alterado da mente dos antigos xamãs. Não
há misticismo, entretanto, apenas a fruição do corpo na necessidade
do diálogo com a música cantada e batucada. Vincent, com o corpo
grande que traz a espiritualidade sólida, a massa muscular que frágil
se desmonta para ouvir, cheirar, sentir, ver o outro partner atiçando-o
à criação conjunta. Em seu gesto largo o volume de paquiderme
se espicha como um leão na força do pulo e do giro e como uma
grande águia ele inventa novas jogadas, dando-nos a certeza de que é
possível, através do jogo, amar o que nos é absolutamente diferente,
ser sem ser exatamente o nosso oposto. O jogo aqui é franco, direto,
sem falsetes, sem falsidade. Uma peleja de sábios em um tabuleiro,
uma orquestração de veteranos músicos de jazz que versejam sobre
assuntos que lhes são caros, mesmo que já conhecidos, e os discorrem
em imagens e fraseados com o viço da primeira vez, na medida em
que novos prismas abrem a possibilidade de novas luzes e novas
ideias, pois, há ponto comum. Estão desarmados, deixaram o vício do
exibicionismo do lado de fora do palco. Já não querem provar mais
nada também, mestres das “artes do corpo desarmado”. (LIGIÉRO,
Zeca. Web. 2013)

Em suas aulas e na preparação de alguns de seus espetáculos,


Amir Haddad falava muito sobre a diferença do corpo do ator “ar-
mado” e “desarmado”. O corpo armado é fruto da imposição de um
sentimento planejado, ou seja, o ator já sabe o que sentir naquela
determinada situação e de alguma forma adianta-se, impondo e
posicionando o próprio corpo determinadas posturas a priori, com
as quais ele pensa melhor captar/expressar o sentimento de determi-
nado momento do seu personagem, mobilizado, naturalmente, pelo
roteiro de ações físicas com a qual desenha o personagem ao longo

Motrizes Culturais | 223


de uma partitura de gestos e expressões vocais. O que aprendi com
ele e, que procuro desenvolver à minha maneira, é que o próprio jogo
determina o sentimento do personagem e este, mais verdadeiro do
que o “armado”, porque não é representado, mas nascido do jogo,
tem o viço da espontaneidade e, assim, cria um estado suspenso de
jogo, ao qual Amir chamava de “bolha”. É como se todos os atores e
espectadores estivessem em uma única bolha, “abençoada” do jogo,
que alimentávamos e pela qual éramos alimentados por meio de
nossa emoção como ator e/ou espectador. Naturalmente, como se
tratava de teatro, além do jogo do corpo, a palavra determinava uma
série de implicações, inclusive incorporando sempre narrativas sobre
comportamentos humanos, reações, situações, etc. No caso do jogo
cênico da dupla de dançarinos, não havia palavra, apenas alguns pou-
cos sons musicais, acobertados pela orquestra de atabaques e música,
eventualmente, cantada. Então, nitidamente, não havia uma história
a seguir ou a perseguir. Era puro jogo, cada espectador criava o seu
enredo no próprio sentido de provocação, característica trazida pela
performing art. Os iniciados nas religiões africanas e afro-brasileiras
podiam associar os movimentos às tradições, outros poderiam ler de
acordo com o seu próprio repertório.
Um aspecto que me chamou a atenção era a questão de se ins-
taurar em determinados momentos, uma espécie de espelhamento,
obviamente longe da ideia de um coro, pois se estilhaçava em outros
momentos, mas alternando-se com o compartilhamento de movi-
mentos comuns.

Os dois homens negros carecas pintados de branco, vestidos de mulher,


nos remetem ao espelhamento. O espelho, entretanto, não reflete a
própria imagem do dançarino, mas estampa a cristalina diferença, a
peculiaridade de cada um, o estranhamento diante do outro. E quando
o gesto de um reverbera no corpo do outro, o espelho se estilhaça em
cacos de vidro – fragmentos de gestos em sequências duplas repetidas,
parecem recuperar o princípio do cubismo que Braque e Picasso

224 | TEATRO DAS ORIGENS


desconstruíram a partir das máscaras e corpos de madeira africanos
vistos nas exposições coloniais em Paris. Um painel de gestos, poses,
posturas africanas e afro-brasileiras é puro território de jogo plástico
e lúdico, a travessia do Atlântico negro em frações de segundos e
minutos. Então, os espaços entre dois se abrem: são portas, janelas,
varandas, salões, enseadas, baías, golfos a serem preenchidos por gestos
que insinuam histórias. Insinuam para que completemos, pois se fosse
dança e história completa caberia dentro de um HD. Vodus, orixás,
reis, rainhas, deuses, semideuses ao lado cativos e libertos. Esta dança
é jogo, ritual, é performance. Outro teatro, pré-dramático. Em seus
gestos, fluem os pais, as mães e suas tribos muito antigas no desenrolar
de uma memória corporal. Fazem uma festa inusitada na mistura de
tempos heterogêneos harmonizados pelo tempo de jogo sagrado com
momentos de humor, ternura, crueldade, acreditando que mesmo os
deuses, em seus momentos de descuido, têm sempre algo de humano.

O título Danbala Wedo é outro enigma, pois não havia sido


anunciado na programação oficial do festival e só tive conhecimento
do mesmo muito tempo depois. Trata-se de uma alusão direta à di-
vindade Danbala Wedo, do mais antigo panteão dos voduns (Loa ou
Iwa) da região dos ewe-fon. Quando assimilado pela tradição vizinha
ioruba, recebeu o nome de Oxumaré101, que é como o conhecemos
no Brasil, embora tenha sofrido algumas alterações, como veremos
em seguida. Segundo a investigação de Maya Deren, Damballah é
tão antigo, tão venerável, bem antes de o mundo ser conhecido e de
todos os problemas começaram. Sua imagem é benevolência, inocên-
cia paternal, o grande pai de quem nada se pede além das bênçãos.
Como “Dan”, a origem e a essência da vida. Damballah é inalterado
pela vida e por isso é, ao mesmo tempo, o passado antigo e a garantia
do futuro. Ele é representado como uma cobra, arqueada no caminho
que o sol atravessa o céu; por vezes, a metade do arco é composto
de sua contraparte feminina, Ayida, o arco-íris. Damballah e Ayida

101 Ver LIGIÉRO, Zeca. Iniciação ao Candomblé. Rio de Janeiro: Editora Record/Nova Era, 1993.

Motrizes Culturais | 225


juntos representam a totalidade sexual, englobam o cosmos como
duas serpentes enroladas sobre o mundo102. Já o orixá Oxumaré é
uma única divindade que durante metade do ano é masculina e na
outra feminina, mas igualmente é representado pela serpente.
Ao incluir Danbala Wedo como uma performance que trabalha
com as motrizes culturais africanas e afro-brasileiras, procurei des-
locar esta prática do sentido eminentemente religioso para pensá-la
dentro do âmbito artístico. Escolhi uma performance que abarca os
dois universos, o religioso e o artístico, sem, contudo, estabelecer uma
linha divisória nítida, uma vez que a criação artística inclui o univer-
so mítico, sua cosmologia, suas linguagens expressivas e, em alguns
casos, traz o que Taylor chama de “repertório”, culturas incorporadas
pela tradição oral cuja investigação, neste caso, vai além das portas das
salas de aula de dança, para pisar na terra batida dos ancestres, tra-
zendo de volta para o palco, não somente o próprio repertório, como
o elemento propulsor de toda performance africana: os tambores e
outras formas percussivas. No caso de Danbala Wedo, a dupla traz
uma orquestra de alabés, músicos que tradicionalmente conduzem
o ritual do transe jeje/ewe/iuroba, ou seja, aquele que aceita as ondas
divinas, já que Deus se materializa no próprio som, que faz vibrar os
tambores para o ritual, como interpreta K. K. Fu-Kiau em relação a
outra tradição subsaariana, a Congo. O poderoso e indivisível trio
apontado como imprescindível pelo filósofo do Congo aparecia
claramente na performance da dupla: cantar/dançar/batucar. Já o
contar, acrescentado por mim, não era tão nítido neste caso, já que a
narrativa solta e repleta de frases, comentários, era fragmentada em
diagramas, tiras de humor, lutas, transformações, dança ritualística.
Dentro de uma visão contemporânea, poderíamos dizer que a dança
conta a sua própria a história, do que ela é constituída, expondo sua
essência em detalhes, indicando o seu fundamento, o DNA da sua
performance, aplicando aqui o conceito de Diana Taylor (2002:149).

102 DEREN, Maya. The Divine Horsemen: The Voodoo Gods of Haiti. New York: Vanguard Press, [1953]1973.

226 | TEATRO DAS ORIGENS


A única formalidade, que não chega a ser uma regra fixa deste jogo
é deixar que a dança não pare de se inventar, não pelos quereres de
suas mentes e vontades, mas pela consciência exata de que só assim é
possível um diálogo assim tão completo sem se gastar uma só palavra.
(LIGIÉRO, Zeca. Web. 2013)

Ao indicar o conceito de Outro Teatro para uma apresentação de


dança, não quero esvaziar o termo dança, que também, por sua vez,
tem avançado em direção ao teatro. Quero apenas detectar e apontar
em práticas como esta, de afro-contemporâneo, que ao trazer o dis-
positivo das motrizes culturais de determinadas tradições africanas,
além de opções e conotações étnicas, éticas e políticas que não estou
abordando aqui, adentra-se por um tipo de performance em que,
inexoravelmente, o quarteto cantar-dançar-batucar-contar aparece,
não como forma ou como conteúdo, como se imagina quando se
relaciona motrizes com matrizes, mas como algo que vai além da
compreensão racional, mobilizando a lógica dos sentidos. O palco
não é metáfora da vida, o palco é a própria vida ou, como quer Artaud
em “A metafísica e a encenação”,
Afirmo que o palco é um lugar físico concreto que deve ser preenchido
e que se tem de dar uma linguagem própria concreta.
Afirmo que esta linguagem concreta, destinada aos sentidos
independente do discurso, tem de primeiro satisfazer os sentidos:
afirmo que há uma poesia dos sentidos e outra da linguagem e esta
linguagem física concreta a que me refiro só é verdadeiramente teatral,
na media em que os pensamentos que exprime estiverem para além
do alcance da linguagem falada. (ARTAUD, 1967:57)

Maria José Fazenda procura mapear o universo da dança e as


divide em três grandes blocos: as danças teatrais, as danças rituais
e as danças sociais (FAZENDA, 2012:43-56). E, obviamente, uma
quarta que transitaria entre as outras duas ou três. Por dança teatral
entende-se toda e qualquer dança que necessita de um palco e um

Motrizes Culturais | 227


espaço cênico e que tem uma coreografia e/ou um espetáculo a
apresentar. Dança ritual é aquela que faz parte de um ato de devoção
religiosa; já as danças sociais são aquelas onde não há separação entre
os espectadores e performers. Esta síntese nos ajuda a entender as
especificidades de seus estilos e funções e os contextos onde aconte-
cem. Mas ela mesma adverte sobre as “deslocações e transformações”
processada pela dança contemporânea, que tem se alimentado de uma
diversidade de gêneros, estilos e propósitos. Neste sentido, Danbala
Wedo, indo tão profundamente ao cerne religioso da dança tradicional
ewe/fon/iorubá, a traz para o convívio do puro entretenimento por
meio de um “jogo sagrado” sem, contudo, forjar na performance uma
pretensão de culto ou de religiosidade, mas absorvendo a cosmovisão
do mundo ancestral em questão.

Considerações quase finais


Nessas tradições distintas, sem nenhum contato entre si, mesmo
guardando as devidas diferenças, é possível perceber pontos em
comum quando falam através do corpo de performers, que artis-
ticamente estão comprometidos porque se mobilizam por meio de
motrizes culturais, se emprenham de sentidos míticos e, mesmo que
completamente inseridos na sociedade de consumo, não abrem mão
destes valores. Por outro lado, é possível perceber que dentro de am-
bas as tradições, maia e jeje/fon/iorubá, as suas religiões adoram as
forças da natureza, utilizam a medicina natural encontrada a partir
da manipulação de raízes e folhas, acreditam que a alma dos mortos
retorna à Terra para ensinar ou para evoluir através da reencarnação.
Elas têm outro ponto em comum, que particularmente nos interessa:
suas performances espetaculares. Em ambas notamos o mesmo can-
tar-dançar-batucar como um todo indivisível e inseparável. Ambas
as performances são interativas e dialogam com o ambiente onde
acontecem. O público permanece em roda, reagindo a tudo que os
brincantes ou performers fazem (LIGIÉRO, 2011:74). Neste estudo
comparativo, procurou-se discutir o conceito de performance cultu-

228 | TEATRO DAS ORIGENS


ral e performance artística no âmbito das performances africanas e
ameríndias, cujo eixo central é o corpo. Por intermédio das motrizes
culturais, os conhecimentos ancestrais são restaurados num processo
em que fica difícil separar onde começa o ritual e onde termina o
jogo, onde vida e fé convivem juntos, e mesmo o mais incrédulo dos
espectadores perceberá uma estranha forma de arte que o transporta
para outro tempo. Essas duas tradições tão antigas apresentam rela-
ções com narrativas corporais que são, de alguma forma, retomadas
e recontextualizadas por artistas, dançarinos e performers no começo
do século XXI. A apresentação procura enfatizar a poderosa contri-
buição afro-ameríndia como eixo de uma arte holística, integrada e
desenvolvida, principalmente, por culturas comunitárias em oposição
ao que propõe a indústria cultural.
Em ambas as performances percebe-se a busca de uma linguagem
imersa em uma aura ritualística. Em Sotz’il Jay percebemos atores
absolutamente comprometidos com a tradição e, em certo sentido,
com uma perspectiva de adoção da cosmovisão maia (ameríndia),
porque o próprio grupo pertence à comunidade, fala a língua original
maia e participa de rituais sagrados, conforme pude verificar em sua
sede em Sololá. A função do espetáculo é de puro entretenimento,
mas os processos utilizados, com o tempo de aquecimento anterior
e o do esfriamento após a função, evocam o ritual, os atores ficam
incomunicáveis por um tempo, como retornando de uma viagem,
como se tivessem entrado e saído do tempo suspenso do ritual.
Fato que em si poderia indicar a cena como pertencente ao Teatro
das Origens, contrariando já a teoria que procura enquadrar nesta
categoria somente o drama litúrgico parte de um ritual ou cerimônia
estritamente religiosa.
Para a outra dupla de Danballa Wedo, formada por performers de
culturas distintas, embora geograficamente vizinhas e com parentes-
cos espirituais (orixás e voduns), dialogar com o sagrado mas não tem
uma agenda devocional como a primeira, desconectando-se do que
poderia ser um Teatro de Origens: mesmo se referindo às linguagens

Motrizes Culturais | 229


das performances culturais, se apoia na performance artística de um
brasileiro e um beninense em residências artísticas europeias. Assim,
a dupla estabelece um novo paradigma para o performing art, dança,
teatro: Outro Teatro, enquanto dança tradicional, pantomima, canto
e experiências de “contato e improvisação”.

Referências bibliográficas
ASCHENGREEN, Erick. The beautiful danger. Facets of the romantic ballet.
Dance Perspectives, v. 58, Summer, 1974.
FAZENDA, Maria José. Dança Teatral: Ideias, Experiências, Ações. Lisboa:
Edições Colibri/Instituto Politécnico de Lisboa, 2012.
FREYRESS, George Hilhlm. Viagem ao interior do Brasil [1815]. São Paulo:
USP, 1982.
FU-KIAU, Kimbwandende Kia. Bunseki. A powerful trio: drumming, singing
and dancing. In: BULWA, Mèso. To have one’s eyes opened, master’s voices
of Africa. v. I. Manuscrito não publicado, cortesia do autor.
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976.
LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras. Rio
de Janeiro: Garamond, 2011.
______(Org.). Performance e antropologia de Richard Schechner. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2012.
SAPÓN, María Beatriz. El K’u’xja como base del sentir, pensary actuar de
la cultura maia: una introducción a las raíces del conocimiento/práctica
maya K’iche’ Maya’ K’iche’ Argueta, Sololá. Guatemala, 2008. Manuscrito,
publicação da autora.
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Filadélfia:
University of Pennsylvania, 1985.
______. O que é performance. In: O Percevejo – Revista de Teatro, Crítica
e Estética, Programa de Pós-Graduação em Teatro, UNIRIO. n. 11, v. 12, Rio
de Janeiro, 2003. p. 32-37
TAYLOR, Diana. You are here. The DNA of Performance. Drama Review,
46,1(T173), Spring 2002.

230 | TEATRO DAS ORIGENS


Sites consultados
www.gruposotzil.org
http://www.authenticmaya.com/rabinal_achi.htm
https://www.youtube.com/watch?v=Mk7ofMGXEko.

Entrevista
JAIR DO CAVAQUINHO. Jair do Cavaquinho [2007]. Entrevistador: Zeca
Ligiéro. Vídeo.

Motrizes Culturais | 231


Palhaço Sagrado e Santo
Brincalhão: a origem
do principio ao fim
Foi assim que começou a festa. Todos saíram para caçada.
Quando chegaram perto da aldeia, acamparam e mandaram
um jovem ver o estado das roças. Então esse rapaz foi até a
aldeia e na primeira roça encontrou os legumes vivos, fazendo
uma festa. Todos os legumes que foram plantados festejavam,
nenhum ficou de fora. O rapaz se assustou e ficou afastado
com medo. A abóbora com os outros legumes chamaram o
jovem: Venha! Não tenha medo! Nós somos seus parentes.
Não vamos lhes fazer mal. Vamos apenas ensinar a fazer
a nossa festa. Ai esse jovem entrou na roda e saudou cada
legume, dançando com todos eles. Aprendeu todos os passos
da festa. Ouviu a música e viu os movimentos. E a abóbora
prosseguia cantando com o maracá. E assim explicava tudo
a ele. O jovem passou a noite toda na roça. No dia seguinte,
ao voltar para a aldeia ensinou aos outros o que aprendeu.
Mostrou o ritual. Posicionou os cantadores a leste. Os croás
ao norte e nomeou os hotxuás que juntos cortaram a tora da
batata e depois foram brincar no centro do kà.
Contador khraô103

Dentro da nossa tradição católica, o sagrado se manifesta sempre


através da candura, da delicadeza, da pureza e do esplendor, visível
principalmente no barroco das igrejas com seus anjos e madonas,
ou através do sofrimento da carne, as torturas impingidas ao corpo
dos santos mártires que sofreram por comungar as ideias e a fé em
Cristo, o Deus crucificado vivo para nos salvar. Dar uma gargalhada

103 Filme Hotxuá, o Palhaço Sagrado, de Leticia Sabatella e Gringo Cardia, 2012. Produzido por Pedra Corrida
Produções e Letícia Sabatella

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 233


dentro de uma igreja é quase ofender ao Todo Poderoso, que parece
preferir confissões secretas de pecado, preces murmuradas como
conversas ao pé do ouvido. Todo o humor foi reservado para a figura
disforme, animalesca, ameaçadora da verdadeira excrecência humana
que é o diabo, aliás com quem tradicionalmente não se deve brincar,
licenças à parte somente na breve folia do carnaval. A reboque da
seriedade católica, se instaura o poder evangélico no Brasil, ainda
menos tolerante e com mais ganas para converter e arrebanhar de
fiéis. O conceito de sagrado parece saltar apenas do que se extrai das
escrituras bíblicas, origem da única sabedoria divina. Por outro lado,
não existe o conceito de cultura apartado dos ensinamentos da Bíblia.
O que não se atrela a ela é simplesmente banido como coisa do capeta.
Portanto, tudo que vem da África e nativo do Brasil só interessa en-
quanto capital de giro para novas conquistas territoriais evangélicas.
Já nas tradições africanas, afro-ameríndias e ameríndias, pela sua
proximidade com a natureza, e dotadas de uma cosmovisão ecológica,
desprovida do restrito dualismo judaico/cristão/muçulmano do bem e
do mal, o sagrado aparece de forma indelével e definitivo, por meio de
cosmogonias incompreensíveis para os dogmas. São mitologias apa-
rentemente inverossímeis, em um leque formidável de tipos de rituais
e celebrações de onde emergem ninhos de entidades, divindades de
diversas procedências, zoomórficas, ambivalentes, gulosas, poligâmicas,
que surgem como mascarados, pintados, às vezes pelados ou vestidos de
palha como palhaços, muitos deles ainda não localizados pelos repórte-
res do National Geographic em longínquos recantos do planeta, outros
já contemplados pelo estudo de importantes antropólogos e etnólogos,
mesmo assim, resistem bravamente, à seu modo, fazendo suas graças
e exercendo suas curas. Muitos são classificados como “mascarados”
apenas, para outros já se adotou a definição genérica ocidental de
“palhaços”, sem contudo desvirtuar o sacrossanto poder de provocar
o riso dentro e fora dos rituais sagrados. Elas ou eles visitam o mundo
dos vivos sem a menor cerimônia para com eles compartilhar farras e
esperanças de um mundo harmônico de encontros, às vezes ambíguo

234 | TEATRO DAS ORIGENS


mas sempre com amor eterno. Este artigo procura mostrar algumas
possibilidades de relação entre performers e espectadores também ditos
“sagrados, já que eles também são criadores deste Teatro de Origens. Se
a comunicação pelo riso é palpável, é impossível haver consenso para
quem não sente o milagre da cura dentro de si. É uma relação dinâmica
em que o espectador conhece as mitologias do visitador que, com sua
performance cômica, acalma seu coração e injeta fé e alegria, e ajuda na
transformação efêmera rumo ao bem-estar. Portanto, algumas relações
consideradas respeitosamente divinas, para outros, menos devotos,
são apenas amizades com seres do outro mundo que são brincalhões.
Interessante considerar que quase sempre, apesar das desconfianças
das sociedades locais e do ensejo de destruir tais crenças por parte
dos poderes religiosos cristãos e evangélicos, a memória desses bufões
africanos, afro-ameríndios e ameríndios é cultuada com tanto fervor
como daqueles mártires sofredores que vivem sangrando e com cara
de sofrimento que vemos estampados nos antigos calendários.
Não pretendo ser enciclopédico, pois seria uma lista infindável
de divindades bufas e brincalhonas, que me perdoem os Mateuses,
as Catirinas, e demais palhaços e brincantes do Norte e Nordeste do
Brasil pela minha santa ignorância e sua consequente ausência aqui,
mas eles já foram muito bem contemplados pela magnifica pesquisa de
Oswald Barroso A máscara e sua performance no Nordeste brasileiro.
Minha escolha de palhaços/divindades para análise, por outro lado,
não se deve a motivos técnicos-científicos, sou investigador neófito
nesses picadeiros sacros. Como não poderia deixar de ser, na senda
tortuosa da minha pesquisa tudo aconteceu quando teve que aconte-
cer, no “devagar depressa dos tempos”, como diria Guimarães Rosa, e
só posso escrever aquilo que de alguma forma saltou na minha frente
e virou espantalho móbile, criando encruzas, e do qual só consigo me
desvencilhar escrevendo sobre ele.
Se existe uma ideia atrás do relato em que aparecem mil ideias
é de qualquer mito sobre a origem, embora muitas vezes não ex-
plicite, sempre indica que antes daquele momento era o caos, o

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 235


não lugar, o não existir das coisas, e então a partir da origem tudo
começa a funcionar. Neste caso, estou tratando a origem de forma
bastante relativa, com todo o respeito que tenho por cada uma das
tradições pelas quais me apaixono e sobre as quais me desenvolvo
para escrever. Muitas vezes os palhaços, para saberem aonde ir,
se abaixam e olham para trás entre suas pernas, como se o futuro
estive exatamente de onde vieram. Então, fico imaginando que
a origem é palhaçaria, brincar que nada existe e que a partir de
amanhã começa um novo dia totalmente diferente, ou que partir
de amanhã serei outra pessoa. Ou que a partir de amanhã, quem
sabe, comece a ser eu mesmo, deixando a palhaçaria de lado. Ou
seja, a origem tem um princípio, mesmo que não tenha finalidade.
A origem está sempre, no ponto exato, de onde a vemos. Embora,
raramente concordemos uns com os outros sobre o ponto exato
onde ela teve o seu início.

O palhaço do circo e o palhaço de folia de reis


Duas figuras marcaram a minha infância. As duas eram cha-
madas de palhaço, mas eram absolutamente distintas em tudo.
Uma pertencia à tradição italiana de circo. Tinha o nariz de bola
vermelha. A careca típica. A roupa larga com suspensório. Um sa-
pato desproporcionalmente grande. Uma bengala de pano e uma
cachorra de trapos chamada Mijoleta. Uma voz esganiçada: berrava,
assobiava e gritava feito um desvairado. De vez guando peidava e
saia uma fumaça branca de talco, do seu choro esguichava água
na cara do partner e às vezes do público. Era terno, perverso, e na
maioria dos casos ingênuo, fácil de ser enganado. Conservo uma
foto autografada por ele, Teteia, junto com o partner Fernando.
1957, eu tinha sete anos.

236 | TEATRO DAS ORIGENS


Teteia e Fernando, do Circo Irmãos Campagnol.
Arquivo Vilma Campagnoli. Foto publicitário, 1957.

Depois tive a chance de ver os parentes engraçados de Teteia em


outros lugares, em outros circos, e mesmo na TV, quando fui ao Rio.
Onde morava, Laje do Muriaé, não havia sinal. E logo percebi que se
tratava de uma longa tradição de circo que sempre admirei mas sobre
a qual nunca tive a chance de escrever e investigar mais.
A outra categoria de palhaço, era a tradição de mascarados brin-
cantes da tradicional Folia de Reis, presente em vários estados bra-
sileiros, que vinham pulando, dando salto mortais, com um cajado
em um mão que algumas vezes era usado nos seus giros, volteios ou
pulos. Outras vezes, para ameaçar as crianças, correndo atrás delas
de forma espalhafatosa como se fossem dar umas pauladas... Nunca
vi nenhum palhaço bater ou mesmo pegar uma criança, mas aquilo
despertava medo e mesmo terror em algumas crianças como eu. Medo
e fascinação. Nas suas máscaras, feitas de couro de bode, era muito
comum haver dentes de cavalo, ou feitos de espora de galo, criando

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 237


sempre uma imagem forte, diabólica. Tudo era exagerado. Suas rou-
pas eram sempre largas, muitas vezes feitas com babados, de tecidos
estampados, geralmente chita ou cetim lustroso em cores primárias
com motivos florais realçados sempre pelo brilho da luz solar. Vinham
em procissão, junto com um cortejo de músicos que tocavam sanfona,
zabumba, viola, triângulo e caixa, entre outros instrumentos. A músi-
ca cantada por todos era lenta, chorosa, e sempre contava as romarias
da sagrada família de Jesus fugindo da perseguição do rei Herodes.
Os palhaços seguiam em marcha, até que a folia parava em frente a
uma casa previamente combinada e começava a cantoria em louvor a
Jesus. Num momento preciso abria-se a roda e, um por um, os palha-
ços começavam a dançar. Às vezes, a performance era de apenas um
palhaço, nas folias mais pobres. Eles também recitavam versos, que
mais tarde soube que eram classificados como “chula”. A voz abafada
pela máscara saía um tanto distorcida, a cadência era ritmada e em
verso. Havia sempre alguma coisa engraçada, alguma crítica, alguma
troça, eu não entendia muito mas gostava de rir gostoso como todos
os que assistiam, e nesses momentos sentia uma grande amizade por
aquela criatura tão terrível mas que tinha um humor contagiante. O
monstro perseguidor de criança se tornava um amigo contador de
causos engraçados. Tudo isso era entremeado com alguns números de
dança e de acrobacia. Ao final, pedia dinheiro pela sua performance,
e todos atiravam moedas, e como uma criança ele saía catando as
moedas com prazer e alegria. Eu não entendia como algo assim era
parte da religião católica que estava aprendendo em aulas de catecismo
para fazer a minha primeira comunhão na matriz de Nossa Senhora
da Piedade de Laje do Muriaé, a ampla igreja, local de silêncio, onde
se ouvia apenas o coro afinadíssimo comandado pela maestrina Dona
Antonieta e a condução da missa na voz grave e retumbante de Padre
Brandão. O sisudo e autoritário pároco, era também professor de latim
do recentemente criado Ginásio Maestro Mazini, dirigido por meus
pais. Tudo na igreja era contrição, proibição, vestidos sem decotes,
minissaia nem pensar, véus negros e brancos cobrindo a cabeça das

238 | TEATRO DAS ORIGENS


mulheres, sobretudo as filhas de Maria. Ao contrário, aquele palhaço
de Folia de Reis parecia pertencer a outro tipo de religião, outra ce-
lebração. E anos mais tarde eu soube que seu aspecto amedrontador
se aproximava dos mascarados africanos. Eram “os representantes
dos soldados de Herodes, perseguidores do Menino Jesus. (...) e por
isso associados à figura do demônio, ‘o cão’, diabo, satanás ou Exu.”
(RIOS: 64). Era o “elemento comumente tratado como profano dentro
da Folia” que mais me chamava atenção e que também associava ao
carnaval dos negros da cidade, brilhantemente representados pela
Escola de Samba Unidos do Rosário, comandada pelo Luiz Tâma-
ra, mais conhecido como Luiz Paca, sapateiro e verdadeiramente
o grande estimulador da cultura popular local. Além da Escola de
Samba, Luiz era proprietário do Clube Social dos Negros, o chamado
Bola Preta, pois o tradicional Clube Recreativo e Esportivo Lajense,
frequentado pela nata da sociedade lajense, não permitia a entrada
de negros. Sim, não estamos falando de uma cidade do interior do
sul dos Estados Unidos, mas do Norte fluminense.

Palhaços de Folia de Reis. Desenho de Zeca Ligiéro (Zeluco)


Programa Troupe Caique, 1998.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 239


Palhaço Falcão da Folia de Reis Estrela Azul do
Grande Espaço, Laje do Muriaé. Foto Zeca Ligiéro, 2010.

O ponto em comum entre o carnaval do samba e a Folia de Reis


em Laje naquela época é que, em ambos, os performers eram na sua
grande maioria afrodescendentes. Eles vinham da roça, de famílias
dos antigos escravos que trabalhavam na lavoura, andavam descalços
e visitavam a cidade nos fins de semana e em dias festivos, ou então
viviam nos morros (principalmente no morro do Cruzeiro e no do
Querosene) no entorno do vale serpenteado pelo Rio Muriaé onde
nasceu a rua principal da cidade e onde habitava a classe média e
os mais ricos. A elevação do povoado a Freguesia, com o nome de
Nossa Senhora da Piedade da Laje, se deu em 1861. Posteriormente
(1938), passou a se chamar Laje do Muriaé, nome que tem sua origem
numa laje de pedra, existente na margem direita do Rio Muriaé, onde
diminui a correnteza e se forma uma bacia. A vila teve rápido desen-
volvimento durante a primeira fase do café no Norte fluminense. O
cultivo do café trouxe para a Freguesia um grande número de negros

240 | TEATRO DAS ORIGENS


escravizados. Depois da libertação, como nas grandes cidades, estes
foram viver nos morros, e hoje constituem a maior parte da população
do município criado em 1962. Já não presenciei a beleza da natureza
e nem o verde dos cafezais. Mas meu tio Maneco (Manoel Ligiéro),
o poeta da cidade, em 1937 vislumbrava Laje como uma musa: “Laje,
princesa que no peito encerra um trono de ventura e de riqueza, de
cada lado o vulto de uma serra edificou-te a tua fortaleza. (...) De ti
me orgulho, Laje, e do esplendor que em derredor espalhas quando
falas pela canção dos cafezais em flor.”

Folia de Reis Estrela Azul do Grande Espaço do Mestre Floriano, Laje do Muriaé. Foto Zeca
Ligiéro, 2010.

O constante contraste entre os dois universos da pequena cida-


de do Norte fluminense: o mundo dos que mandavam, tinham o
poder, o dinheiro, e eram professores, padres, donos das lojas e das
mercearias, políticos, todos brancos, e os que desfilavam na Escola
de Samba, cortavam lenha, eram empregadas domésticas, vendiam
palmito, não sabiam ler nem escrever e, junto com os que se vestiam
de palhaço de Folia de Reis, eram todos pretos.
Aos dezessete anos, já morando no Rio, fui passar férias em Laje
do Muriaé e fui convidado pelo Bael, um jovem (mais velho que eu)
que fazia os cartazes do Cine Lajense, para criar com ele a decoração

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 241


do carnaval do Clube Recreativo e Esportivo Lajense. Os recursos
eram poucos e tivemos que usar a nossa criatividade. Pensamos em
criar uma espécie de circo para decorar o salão do clube, que ficava
no segundo andar de um sobrado – no primeiro era a sede da banda
Cinco de Novembro. O clube existe até hoje, e dá para a praça cen-
tral com uma varanda de onde se pode ver, além da praça, a Igreja à
direita, no alto, que domina toda a paisagem. Ao fundo, também no
alto, o morro do Cruzeiro onde fica o cemitério da cidade.
Nossa decoração consistiu em criar uma lona para cobrir o salão,
toda feita de papel de seda. Sim, colamos tudo com grude, barbante.
Uma grande lona de papel de seda suspensa e amarrada, colorida com
listas coloridas. E fui encarregado por Bael de executar os desenhos
nas paredes feitos com a mistura de tintas de pó xadrez (amarelo, ver-
melho, amarelo, azul e preto) e leite, adicionando ainda goma arábica
para fixar na parede de forma que pudesse ser lavada depois, já que a
pintura da parede era a óleo. (A mesma técnica que utilizava para fazer
os cartazes e as faixas de propaganda política na época das eleições.)
Uma vez que a lona de papel de seda foi erguida e devidamente
amarrada com fortes barbantes de sisal, chegou a hora de pintar as
figuras do circo nas paredes do clube. Em 1966, Chico Buarque havia
lançado a sua música “A Banda” e ganhou o II Festival da Música
Popular Brasileira com grande sucesso. Ela descrevia a interrupção
do dia a dia no interior do Brasil, destacando alguns personagens que
vinham ver o desfile da furiosa:

Estava à toa na vida


O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

A minha gente sofrida


Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

242 | TEATRO DAS ORIGENS


O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou


Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver…

Eu decidi fazer um painel na maior parede interna do salão ins-


pirado na canção do Chico. No carnaval de 67, sabia que “A Banda”
seria tocada, pois estava a toda hora no rádio. Hoje, revendo o painel,
percebo que nem na letra da música, nem no visual do meu painel
havia componentes negros. Não pensei em colocar as figuras do
Chico Preto que tocava o clarinete, do Tião que tocava o trombone,
do Nonô que tocava a tuba, todos meus conhecidos. Em conversa
com Silvério Pontes104, ele acrescenta enfaticamente: “A banda tinha
muito mais preto que branco... rsrs, por isso ela era suingada! Me
emociono quando me lembro dela.”105
Assimilei o preconceito da cidade na minha obra, aceitei as regras
do jogo e não coloquei nenhum negro nas paredes do Clube que não

104 Silvério Pontes, músico lajense radicado no Rio, filho do Helinho Pontes que participou durante décadas
da Banda Cinco de Novembro.
105 Conversa com Silvério Pontes no Facebook, dia 09/03/19.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 243


admitia a entrada deles em suas festas sociais, mesmo abrigando, no
primeiro piso, a famosa banda fundada pelo maestro Belo Mazini,
neto do Maestro Mazini, que veio da Itália como professor de música
da Princesa Isabel106. A Banda Cinco de Novembro atraiu músicos de
vários lugares e abriu as portas para os músicos negros, que abrilhan-
tavam as festas também no carnaval do próprio Clube (para tocar e
servir, podiam entrar) e no Clube Bola Preta, (Clube dos Negros),
localizado na subida para o morro do Cruzeiro. Enquanto a Cinco de
Novembro assimilou a libertação assinada pela Princesa Isabel e a in-
clusão proposta por Belo, o jovem artista, sentindo-se aceito e acolhido
no seu primeiro trabalho artístico para o carnaval, não ousou entrar
em choque com o tradicional preconceito vivido pela cidade. Guardo a
única lembrança visual desse carnaval em uma foto cedida gentilmente
pelo amigo Chiquinho Maracanã, que posou em frente ao meu painel.

Mural “A Banda” de Zeca Ligiéro. Fotógrafo desconhecido, 1967.

106 O Maestro Mazini, uma vez tuberculoso, foi morar na antiga freguesia de Laje do Muriaé, onde se estabeleceu
e fez família, não mais retornando para a capital.

244 | TEATRO DAS ORIGENS


Naquele mesmo carnaval, com uma bruta dor de corno, acabei
encontrando uma nova namorada no meio do salão, e a música “Más-
cara Negra”107 de Zé Kéti era a que mais me inspirava. Contrariando
a minha expectativa com o painel pintado, ela superou “A Banda” de
Chico Buarque, todos sabiam cantá-la, e era muito boa de se dançar.
A sua execução dava chance para os casais evoluírem pelo salão em
dois ritmos e em grupos alternados, o ralentado da marcha rancho e
o pulado da marchinha. De alguma forma trazia a voz do morro108
carioca e a sua disponibilidade corporal, assimilando à sua maneira a
tradição do trio do carnaval de Veneza: Arlequim, Colombina e Pierrô,
que já havia sido incorporado no carnaval brasileiro. E assim, a música
“Máscara Negra” tornou-se uma mais importantes do carnaval de todos
os tempos, também na nossa pacata cidade, e no Clube dos Brancos.
Tanto riso, oh, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão

Tanto riso, oh, quanta alegria!


Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão

Foi bom te ver outra vez


Tá fazendo um ano

107 Lançada para o carnaval de 1967 pela voz de Dalva de Oliveira, a música de Zé Kéti foi uma das mais tocadas
e tornou-se uma estrela nos carnavais seguintes, hoje um clássico.
108 “Voz do Morro”, título de uma das músicas mais conhecidas de Zé Kéti, lançada em conjunto com o grupo
homônimo dirigido pelo compositor. Fundado em 1965 por Zé Kéti, o grupo foi uma das primeiras oportunidades
que os sambistas de morro tiveram para gravar suas próprias composições – muitos até então inéditas – sem
intermediários. O grupo foi formado com alguns integrantes do musical Rosa de Ouro, montado por Kléber
Santos e Hermínio Bello de Carvalho no Teatro Jovem do Rio de Janeiro, mas a ideia de se apresentarem
profissionalmente surgiu no Zicartola (Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira).

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 245


Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou, meu amor

Na mesma máscara negra


Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade

Vou beijar-te agora


Não me leve a mal
Hoje é carnaval

Vou beijar-te agora


Não me leve a mal
Hoje é carnaval.

É interessante nota, a transgressão que Zé Kéti faz na sua letra ao se


identificar com Pierrô, o palhaço branco, romântico, que desta vez fica
com a Colombina e justamente deixa o esperto Arlequim chorando
no meio do salão. Ao escolhe, ser Pierrô, Zé Kéti, um dos primeiros
compositores negros a assumia publicamente a defesa da negritude,
subverte a história. A identificação justamente com o palhaço branco,
parece mesmo uma provocação bem humorada. Talvez, ao retratar
o Arlequim como o perdedor, e se identificar com o palhaço branco
vencedor, Zé Kéti quis algo mais.

Arlequim e seus simbolismos: do africano ao greco-romano


No Brasil, a máscara negra do Arlequim vem sempre carregada
de história, ao passo que a do Pierrô é utilizada apenas no carnaval.
O Pierrô às vezes é representado também com o rosto todo branco e
uma lágrima negra descendo do rosto, ou apenas usando a máscara
de couro branca original das gravuras do século XVI. Na commedia
dell’arte era também conhecido como Petrolino, o servo fiel, forte,
confiável, honesto, e vestia roupas brancas folgadas com um lenço ou
uma gola bufante no pescoço. Um personagem sempre devotado a

246 | TEATRO DAS ORIGENS


seu patrão. Sua imagem se popularizou no cinema francês, e algumas
vezes aparece também no circo.

As três figuras originais da commedia dell’arte italiana presentes no carnaval brasileiro.

A Colombina é a contrapartida feminina do Arlequim. Usualmen-


te retratada como inteligente e habilidosa, era uma das servas que
levava bilhetinhos e fazia intrigas. No meu limitado entendimento
da época, eu via o triângulo amoroso como algo pertencente ao reino
do carnaval, e só muitos anos mais tarde, quando comecei a estudar
teatro, os reconheci como personagens da commedia dell’arte e com-
preendi que a história dos personagens era muito mais antiga. Da
Itália havia migrado para a França, Inglaterra e outros países.
Arlequim, por sua vez, é um personagem contraditório, com
muitas referências, ao que tudo indica: sua ancestralidade cômica é
proveniente dos comediantes da antiga Roma. Conhecido por suas
traquinarias como um servo esperto que também reunia distintas
características além das habilidades circenses, era acrobata, se com-
portava de forma amoral e, sempre tentado pelos sentidos, era glutão
e exageradamente amoroso.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 247


Numa análise mais detalhada vamos perceber que a atuação de
Arlequim pode remeter a contextos ainda mais complexos e anti-
gos, sobretudo, ao assimilar formas de animais nativos de outros
continentes, como percebe Theophile de Gautier: “Arlequim, com
a aparência de um macaco, corpo de cobra, com sua máscara negra
de couro e manchas diagonais com lantejoulas cintilantes encarna o
amor, a sagacidade, a ousadia, todas as qualidades e vícios igualmente
brilhante.” (NICKLAUS, 1956:5)109.
Ao entrar em contato com a arqueologia do personagem e da
sua máscara, vamos perceber aspectos que ligam o personagem aos
servos africanos presentes no antigo teatro da antiga Roma, que por
sua vez também remetiam às relações mitológicas gregas assumidas
pelos romanos. Se algumas leituras nos levam a associar Arlequim
com elementos da tradição africana, não é esta a percepção dos
principais pesquisadores sobre s origem do personagem, embora em
seus discursos deem pistas para reforçar os meus argumentos sobre
a presença africana entre as suas características principais.
O impacto ao encontrar num museu uma máscara das primeiras
representações de Arlequim deixou Thelma Nicklaus, autora do livro
Harlequin Phonexix: The Rise and the Fall of a Bergamask Rogue,
bastante confusa:
Eu me encontrei olhando pela primeira vez na direção dos buracos dos
olhos do tamanho de uma cabeça de alfinete da máscara mais antiga
de Arlequim, olhando com horror fascinado pelas feições astutas e
brutais, as duas verrugas extravagantes, o pelo de animal desse rosto
de couro escuro. Foi um choque conhecer sem aviso prévio o ancestral
feroz do Arlequim resplandecente, sempre associado na minha mente
com a pequena máscara negra, as lantejoulas e o babado branco..”
(NICKLAUS, 1956:14)

109 NICKLAUS, Thelma. Harlequin Phonexix: The Rise and the Fall of a Bergamask Rogue. London: The Bodley
Head, 1956.

248 | TEATRO DAS ORIGENS


Algumas coisas que chamaram atenção da autora ao se deparar
com uma das mais antigas máscaras de Arlequim parecem-me im-
portantes de destacar: 1) as duas protuberantes verrugas na testa; 2)
a presença do pelo de animal em uma máscara feita de couro escuro;
e 3) a ferocidade que a imagem projeta, mais do que a comicidade
que ganhou em suas versões romanceadas posteriores.

Máscara antiga de Arlequim do século XV.

Em relação às duas verrugas enormes, Venício Fonseca, diretor do


grupo teatral Moitará, pondera que podem ser decorrentes da proi-
bição de usar cornos em cenas – tais representações eram proibidas
pela igreja na época110. Desta forma, podemos perceber a forte ligação
de Arlequim com o próprio diabo. Já o segundo ponto, a presença
de pelos de animais, reforça própria identidade ou “origem da sua
alma”, como têm reivindicado os grandes pesquisadores e criadores
de máscaras da família Sartori, que pensam que a cada máscara tem
uma alma de animal. Donato Sartori destacou que a máscara do
Arlequim contém a alma do macaco, o que também é atestado por
Thelma Nicklaus. Algo problemático para comprovar o ponto de vista

110 Comunicação com o autor em 11/03/2019.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 249


da maioria dos pesquisadores sobre este personagem, como a família
Sartori, que tem procurado a sua origem nórdica. Já a terceira questão,
sobre a ferocidade que mistura terror e força excessiva, também pode
ser entendida a partir das pesquisas do grande herdeiro da tradição
Sartori, Donato Sartori111, em cuja pesquisa vamos perceber que o
personagem sai do plano terrestre para liderar hordas de mortos.
Sartori procurou traçar a origem da máscara de Arlequim a partir
da sua primeira referência escrita, na História Eclesiástica vol. XIII,
realizada por Ordorico Vitale, abade anglo-normando de Saint-Evroul
(monastério da Normandia), em dados colhidos entre os anos de
1123 a 1137. No relato do abade, “Hellequin” ou “mesnie Hellequin”,
o “diabólico condutor” e sua manada selvagem de mortos112 vem do
inferno com uma clava, absolutamente identificado com o próprio
diabo para caçar no mundo dos viventes:
Na Normandia, na gélida e luminosa noite de São Silvestre, em 1091,
Gauchelin, o jovem padre, atravessando um campo quando voltava
da visita a um doente, foi quase arrastado por uma grande multidão
de seres fragorosa, lamentosa e gemente, em louca corrida. A armada
era comandada por um gigante demoníaco que ameaçava com uma
enorme clava. A manada selvagem desfilava numa procissão de
mortos, como reconheceu Gauchelin. Infantes que carregavam todo
tipo de instrumentos metálicos que produziam grande fragor, e então:
carregadores que transportavam féretros cheios de anões monstruosos
com cabeças grandes como barris, demônios e etíopes perseguiam
as criaturas danadas com golpes de lança e queimando-os, e depois
mulheres descompostas cavalgando cavalos negros cujas selas estavam
retesadas de pontas incandescentes. O padre continuava a ver o séquito

111 Donato Sartori, um dos grandes criadores de máscaras de commedia dell’arte, filho de Amleto Sartori
(1915-1962), escultor e poeta de Pádua, que ficou famoso por seus estudos sobre a máscara teatral. Donato
fez grandes contribuições à arte da criação de máscaras, tendo trabalhado com importante nomes do teatro
mundial, como Lecok, Ariane Mnouchkine, Eugenio Barba e Dario Fo. Domenico deu continuidade ao trabalho
do pai. http://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/teatro-perde-o-italiano-donato-sartori-artifice-das-mascaras,
visto em 13/03/2019.
112 SARTORI, Domenico. A arte Mágica de Amleto e Donato Sartori. Editora E Realizações, 2013.

250 | TEATRO DAS ORIGENS


gemente de padres, monges e frades e bispos, incitados por um grande
armada de seres diabólicos que cavalgavam entre sulfúrea fumaça e
chamas avermelhadas, grandes e negros corcéis foram reconhecidos
pelo aterrorizado padre como a banda de Herlechin (Haece sine dubio
família Harlechini). (SARTORI:2013, p. 81-82)

Na descrição acima, Arlequim é o comandante em chefe da


manada de mortos e diabos. Ele é feroz, cruel, como um guerreiro.
O ponto nevrálgico deste relato talvez passe despercebido. Inte-
ressante que Sartori, chame atenção para a presença de africanos
(etíopes), que são igualmente identificados como diabo, e ressalte
dados históricos, mas não quis indicar que a própria imagem de
Arlequim, descrita inicialmente no norte da Europa, no começo do
segundo milênio, adquiriu uma melanina que jamais foi retirada de
sua máscara, a elasticidade e malemolência africanas foram também
incorporadas em seu corpo flexível, e até mesmo a sua roupa com
losangos colorido, cria a musicalidade rítmica/percussiva vista
por Robert Farris Thompson nas tapeçarias africanas,113 ao passo
que nenhum dos outros personagens da commedia dell’arte seguiu
o “axé, nem a maleabilidade do diabólico negro líder do “exército
peripatético” de mortos, anões e etíopes da narrativa. Mas Sartori
percebe nitidamente a presença africana, como pode ser destacado
em seu texto:
Torna-se evidente a tentativa de Orderico de colocar no mesmo plano
dos diabos os etíopes, populações africanas, objeto de extermínio por
parte dos exércitos das cruzadas. Ao longo do percurso da primeira
cruzada, no final do século XI, forma-se uma longa mancha de sangue
que através dos Balcãs, Península da Anatólia e Síria, estende-se ainda
sobre toda a parte africana (Magrebe) que beira o Mediterrâneo.

113 THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy, Randon
House, 1984.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 251


Etíopes, mouros, portanto africanos, são considerados descrentes e,
assim, merecedores de santa punição, reunindo-os aos habitantes do in-
ferno cristão, como diabos, são arrastados pelo deus no mais profunda
das vísceras da terra entre as chamas eternas. (SARTORI:2013, p. 82)

Representação medieval bem humorada do diabo que


lembra a Commedia dell’arte. Autor desconhecido.

A interessante pesquisa de Sartori sobre os primeiros registro de


Arlequim na Normandia atesta a sua origem literária mas não necessa-
riamente localiza historicamente seu nascimento como pertencente ex-
clusivamente à cultura daquela região, o imaginário medieval se mistura
com outras tradições, como o próprio pesquisador admite ao enfatizar
o momento da invasão dos Cruzados e os primeiros contatos europeus
com o mundo africano. Percebemos, já nessa época o desenvolvimento
por abades e teóricos católicos de uma visão estereotipada ao tratar o
africano como um ser malévolo, infiel por natureza, ligado ao inferno.
Ao mesmo tempo, podemos,ver que esta identificação arlequim-diabo-
-africano possivelmente se estabelece no plano simbólico, ainda que no

252 | TEATRO DAS ORIGENS


discurso oficial não seja assumido necessariamente. Chamo a atenção
para a dubiedade ao longo dos séculos do personagem, que a partir do
Renascimento vai assumir o seu lado mais humano, abandonando as
características místicas reveladas por Sartori, e ainda detectadas por
Nicklaus em épocas ainda mais remotas, quando encontrou vestígios
da identificação de Arlequim com o deus romano Mercúrio (o Her-
mes do grego), naturalmente quando o Cristianismo ainda não tinha
começado sua perseguição às religiões ditas pagãs.
Conta-se que o deus Mercúrio tomou Arlequim sob sua proteção especial,
como tempos remotos, ele tinha sido patrono dos que... pertenciam... à
tradicional família dos palhaços. Mercúrio concedeu poderes mágicos ao
seu protegido. Arlequin era capaz de se tornar invisível quando quisesse:
transportar-se de um extremo ao outro da terra num um piscar de
olhos: alcançar as alturas do Olimpo, ou penetrar no reino das trevas
de Plutão. Ele foi, além de tudo, privilegiado com os dons voadores do
próprio Mercúrio e inescrutabilidade divina: e com o ar enigmático
semelhante ao deus, de maneira que todos soubessem que ele estava
sob a proteção de deus, ele usava o emblema de Mercúrio, como os
palhaços romanos haviam feito antes dele. Assim, Arlequim adquiriu
sua túnica multicolorida, símbolo da instabilidade temperamental e da
ambiguidade personalidade dos protegidos de Mercúrio, e carregava um
bastão enquanto Mercúrio carregava seu caduceu. (NICKLAUS, 1956: 22)

A apresentação do palhaço Arlequim ora como diabo ora como


divino pagão coloca-o de qualquer modo no rol dos palhaços sagrados
que procuramos analisar neste artigo. Se, por um lado, ele apresenta
uma ligação com o demo, e inesperadamente se emparelha com os
africanos, por outro, parece ter assimilado também elementos de
culturas pagãs do sul do Mediterrâneo, anteriores ao predomínio
cristão na região, sobretudo a comédia romana.
Interessante notar também a coincidência do simbolismo de
Mercúrio, o deus da venda, lucro e comércio, divindade associada
ao deus grego Hermes, mensageiro entre humanos e o deus supremo

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 253


Júpiter (Zeus) com a divindade singular, nossa conhecida, Exu Elegba.
Ele é também, para muita gente, o mensageiro entre os homens e as
divindades conhecidas como orixás ou voduns. Enquanto Mercúrio
escolheu Arlequim, dando-lhe a esperteza, a malícia, o amor des-
vairado por uma mulher e a sagacidade para se defender com um
porrete, Exu escolhe Zé Pelintra, dando-lhe as mesmas características,
uma bengala ou a navalha e, de sobra, o dom da cura. A encruzilhada
entre vida e morte, o interesse por sexo, e os prazeres mundanos, a
destreza na arte da subversão, a astúcia e a malandragem, pertencem
a ambos, em todos os tempos e na prorrogação também.

Exu e Zé Pelintra: Entre brincadeiras e conhecimentos


ancestrais
Os mitos de Exu aparecem em seus orikis, os seus cantos e histórias
extraordinárias. Exu é o mensageiro, responsável pela comunicação
deste mundo (Aye) com o mundo dos deuses (Orum). Assim, como
Mercúrio ou Hermes, embora não tenha asas nos calcanhares, ele
se transporta e se redimensiona ao seu bel prazer. “Aborrecido, ele
senta-se na pele de uma formiga”, “Ele matou um pássaro ontem, com
uma pedra que somente hoje atirou. Se ele se zanga, pisa nesta pedra
e ela se põe a sangrar.” “Sentado, sua cabeça bate no teto, de pé não
atinge nem a altura do fogareiro. (VERGER, 1997:78). Ele é o senhor
de todos os caminhos e de todas as direções Por isso, as oferendas que
lhe são dirigidas devem ser colocadas nas encruzilhadas.
Encontramos a figura de Exu originalmente na costa oeste da
África, entre as culturas iorubá e fon localizadas respectivamente na
Nigéria e na República Popular de Benin, antigo Reino de Daomé. Na
Nigéria, os iorubás o chamam de Exu-Elegba, e entre os fons recebe
o nome de Legba. Através da diáspora africana, ele foi trazido pelos
iorubas/fons para quase todos os países do continente americano,
dos Estados Unidos à Argentina. Podemos notar sua presença sobre-
tudo em grandes comunidades afro descendentes como no Harlem
hispânico de Nova York ou em Miami, onde a religião dos orixás é

254 | TEATRO DAS ORIGENS


chamada de santeria ou lukumi, e sincretizada com as outras tradi-
ções africanas. Na América Central e Caribe, sobretudo Cuba, Exu é
adorado num culto denominado Regla de Ocha; no Haiti, os fiéis da
religião dos voduns o chamam carinhosamente de Papa Légua. Ele
está presente também em vários países da América da Sul, princi-
palmente nas costas do Peru e da Colômbia e em alguns núcleos do
Uruguai, países que, como o Brasil, receberam grande quantidade de
africanos durante o período colonial.

Estatueta representando Exu de acor- Estatueta popularizada de Exu do


do com a tradição iorubá, Nigéria. candomblé. Desenho de Zeca Ligiéro.

Dentro da tradição do candomblé, Exu tem poderes especiais e


exerce uma espécie de juízo final sobre as questões mundanas. Sua
energia tanto está na natureza como dentro de cada um dos seres
humanos. De forma alguma ele poderia ser identificado com o es-
pírito de uma pessoa morta, ainda que fosse um importante espírito

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 255


ancestral africano. Tem características humanas, senso de humor
e compaixão, e não depende de ninguém para viver. Robert Farris
Thompson assim o define: Exu é o mestre de cerimônias do “teatro
das sanções espirituais” – a encruzilhada.114
Cenário de trocas, mudanças, perdas, ganhos, confusões, reencontros…
A encruzilhada marca um ponto de encontro entre diferentes mundos.
Mundano e brincalhão, Exu assiste de camarote às idas e vindas da
vida humana, rindo-se de nós quando tropeçamos em nossos próprios
instintos básicos, não domesticados, ou nos deixamos ludibriar por
nossas miudezas diárias e sentimentos mesquinhos.115

Em um dos mitos iorubás conta-se a história de que todos os ori-


xás, para saberem quem era o supremo diante de Deus, levaram ricos
sacrifícios ao céu, sobre suas respectivas cabeças, para oferecê-los a
Olorum. Exu foi o único que havia consultado previamente o oráculo
de Ifá, sabia exatamente o que Olorum, o Deus Supremo, gostaria de
receber. Em vez de ricos presentes sobre a cabeça, colocou apenas
uma pena do papagaio vermelho africano (ekodide), como dizendo
que a sua cabeça (ori) não era para carregar nada mais, e que a Deus
não se importa com coisas ricas e pesadas mas apenas com a fé que
a ele devotavam. Exu ornara a sua cabeça apenas com aquela pena
vermelha cujo brilho e cor simbolizam as forças divinas. Deus não
hesitou em escolhê-lo para guardar as forças do axé, o poder de fazer
as coisas acontecerem e se multiplicarem. Uma vez tendo recebido
seus poderes, porém, Exu não quis se subordinar ninguém. Em vez
disso, deu uma grande festa, convidando a todos para dividir com
ele o seu novo prestígio, bem como para honrar a Olorum pela graça
recebida, o tesouro incomensurável do axé. Mas preveniu a todos
aqueles que não reconhecessem o seu novo status, que ele os entortaria
como uma “corda estica o arco”, ou os trituraria como uma “concha”.116

114 THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy, Randon
House, 1984, p.20.
115 LIGIÉRO, Zeca e DANDARA. Umbanda: paz, liberdade e cura. Pallas: 2017: p.91.
116 SANTOS, Joana Elbein. Os nagô e a morte: Pade, Asese e o culto Egun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1972, p.13.

256 | TEATRO DAS ORIGENS


Na mitologia, Exu é descrito ora como uma criança com um apetite
insaciável, ora como um mágico capaz de criar problemas, sempre
para desmontar e desmascarar a mesquinhez e o egoísmo humanos.
Ele procura combater a inveja e o ciúme com a generosidade. Por ser
temperamental e inesperado, antes de qualquer ritual, em qualquer
país da Diáspora Africana, tanto no vodun do Haiti como na Regla de
Ocha em Cuba ou no candomblé do Brasil, ele recebe um padê. Essa
oferenda mostra que reconhecemos o seu valor de grande provoca-
dor e de grande mensageiro, agradando-o para que ele permita que
tudo possa correr sem problemas no ritual e em nossas vidas. Uma
vez homenageado com propriedade, Exu passa a ser um guardião,
não deixando que nada de fora possa a vir atrapalhar a cerimônia ou
ritual que está se oficiando.
É sobretudo como Legba, entre os fons provenientes do antigo
Reino do Daomé, que encontramos a representação de Exu mais
explícita do ponto de vista sexual – como um montículo de terra de
onde parte um enorme falo ereto. Muitos estudiosos e missionários
que visitaram os seus assentamentos, nos primórdios da colonização
da África, acreditaram que ele fosse o deus da fornicação. Mas, como
nota Pierre Verger, “este falo ereto nada mais é que a afirmação do
seu caráter truculento, atrevido e sem vergonha e do seu desejo de
chocar o decoro.”

A presença do Exu na umbanda se dá de forma diferente, embora


alguns dos seus atributos, como a concentração do princípio sexual
masculino e sua energia eminentemente telúrica, permaneçam.
Só que, na umbanda, Exu passa a ser um espírito desencarnado,
um ser humano que já viveu algum dia entre nós e que, mesmo
desencarnado, continua subjugado aos sentidos. Para eles sexo, jogo,
bebida e fumo são elos ainda indissolúveis com o plano material.
Eles passam, portanto, a governar estes caminhos entre os dois
mundos, ou encruzilhadas, como muitos consideram. (LIGIÉRO e
DANDARA.2017:92)

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 257


Estatueta de Exu da umbanda. Foto Zeca Ligiéro.

O dinheiro, como energia física e símbolo do poder transfor-


mador na matéria, é também muito característico do seu universo.
Fazem parte de suas atribuições reger todo tipo de jogo e de disputa
financeira. Neste sentido, a sua associação com o Diabo católico é
irreversível, pois ele gosta de tudo que o famoso chifrudo aprecia,
e não é à toa que um dos seus pontos cantados revela, sem meias
palavras, a força desta conexão:
Exu tem chifre
Exu tem rabo
Exu na encruza
Ele é diabo117.

117 Ponto cantado registrado pelo autor durante uma gira para o Povo de Rua no Templo de Magia Cigana,
Rio de Janeiro, 1992.

258 | TEATRO DAS ORIGENS


A figura original do Exu iorubano não tem chifre. Quando é
apresentado com uma espada ou faca saindo do topo de sua cabeça,
trata-se do Exu Odara, aquele que é capaz de trabalhar o milagre
da transformação e da criação. Mas, no Brasil, o Exu iorubá vem
de certo forma substituir ou mesmo somar-se a outras divindades
equivalentes, trazidas por africanos de outras regiões; como os bantos
(Congo, Angola, Camarum, Moçambique) que chegaram ao conti-
nente americano pelo menos trezentos anos antes, também trazendo
os seus deuses e suas culturas na bagagem virtual.
No Brasil, encontramos ainda resquícios de uma outra entidade
africana banto de suma importância no ritual das antigas macumbas
e quimbandas, hoje assimiladas pelos rituais umbandistas para o
Povo de Rua: a Pomba-gira, cujo nome seria derivado de mpomba
nizilila, que em quicongo significa encruzilhada. Ela é uma figura
que concentra a energia feminina ativa e que representa o outro polo
da sexualidade de Exu. Elas são também diversas, com atribuições
distintas e têm suas próprias histórias e elementos ritualísticos como
danças, adereços, linguajar e comportamentos.

Zé Pelintra: típico malandro carioca vindo do nordeste


Conga de Zé Pelintra

Seu Zé Pelintra é quem chegou agora


Seu Zé Pelintra vem pra trabalhar
Seu Zé Pelintra mestre de Aruanda
Afirma seu ponto neste congá          
Mas ele veio foi de Alagoas
Mas ele veio pra me ajudar
Seu Zé Pelintra mestre de Aruanda
Afirma seu ponto neste conga118.

118 MOLINA, N. M. Saravá Seu Zé Pelintra. Editora Espiritualista. S/D. p. 83

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 259


Zé Pelintra representa uma figura singular e transgressora, his-
tórica e ficcional, que pertence a vários universos a um só tempo.
Zé Pelintra se identifica com o mundo do Exu do panteão iorubá,
de modo guerreiro e provocador, assim como se encaixa dentro da
categoria de “povo de rua”, onde tem como companheiros os exus, as
pombas giras, toda a sorte de malandros e gente que vive na noite e
nos becos das grandes cidades. Em outras ocasiões especiai, aparece
como um líder espiritual, que vem curar, junto com outros ancestres
piedosos, em sessões de pretos velhos e/ou caboclos.

Zé Pelintra, desenho de Zeca Ligiéro.

Zé Pelintra não chega a ser um exu principal da umbanda, posto


ocupado por “Tranca-Rua, Tiririri, Sete-Encruzilhadas e Marabú, en-
quanto que a encruzilhada fêmea é de Maria Padilha, Maria Mulambo,
Cigana”. Os devotos da umbanda acreditam que os exus guardam as
encruzilhadas, as interseções, as porteiras, os umbrais, as portas dos
cemitérios (simbolicamente, a encruzilhada entre a vida e a morte).
É nesses lugares que se acredita que Zé Pelintra vive com seu seleto
grupo de companheiros do povo da rua. Eles habitam o chamado
“rabo da encruza”, ou seja, a esquina interna do cruzamento, prefe-

260 | TEATRO DAS ORIGENS


rencialmente um lugar onde exista um poste. Este é o cenário ideal
do Seu Zé, onde podemos visualizá-lo espreitando, sempre encostado
no poste e pitando o seu fumo.
Culturalmente falando, nosso personagem descende de antigas
populações bantos (Angola, Congo, Moçambique). Mas alguns
elementos de sua atuação, como apetite por bebida e fumo, a sexua-
lidade exacerbada e a seu comportamento matreiro também podem
ser observados no caráter ambivalente e telúrico do Exu ioruba-fon.
Assim, nosso Zé comunga dos mesmos elementos dessa dupla tradi-
ção na qual se destaca a vertente banto, presente também nos antigos
catimbós nordestinos ou nas antigas macumbas cariocas ou paulistas.

Colagem com a estatueta tradicional de Zé Pelintra de Zeca Ligiéro.

São inúmeras as entidades que se apresentam como o legendário


Zé Pelintra. Assim, espalhados por este Brasil afora, na sexta-feira
da gira, eles vem em legiões: são Camisa Preta, Zé Malandro, Terno
Branco, Carioquinha, Zé das Mulheres, Gargalhada, Zé do Morro, Zé
Pretinho, entre tantos outros. Dançam, cantam, bebem, aconselham
os necessitados , jogam cartas como o original e divino malandro

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 261


de tantas histórias. Muitos deles se modernizam e, em vez do terno
branco, pedem roupas coloridas e incorporam também as novas
tecnologias para se comunicar, como demonstra esse ponto de Exu
Malandrinho:

Drim-drim-drim
Telefona pra mim
Amorzim…
Drim-drim-drim Drim-drim-drim
Arô, quem fara?
É Exu Malandrim,
Malandrim119.

Aqui, a comunicação com o espírito se dá inusitadamente, via


telefônica. O som da campainha do aparelho é transformado numa
espécie de refrão onomatopaico do ponto cantado. A vitalidade do
culto se exprime no modo como as tradições são redimensionadas
atendendo às novas demandas e facilidades criadas pelos meios de
comunicações contemporâneos.
Entretanto, são os pontos cantados mais tradicionais que explici-
tam mais as principais referências sobre a ascendência congo-angolesa
de Zé Pelintra. É sobretudo, nos pontos de abertura e de fechamento
dos seus trabalhos que observamos claramente as referências da sua
relação com a espiritualidade banto.
De acordo com nossas pesquisas, Zé Pelintra tornou-se famoso
primeiramente no Nordeste, seja como frequentador assíduo fosse
já como uma das entidades dos catimbós de Pernambuco, Paraíba,
Alagoas ou Bahia. Conta-se que, ainda muito jovem, era um caboclo
violento que brigava por qualquer coisa, mesmo sem ter razão. No
Nordeste, teria também adquirido a fama de herbalista, um sábio
curandeiro capaz de descobrir e receitar chás medicinais, bem como
de arrefecer, com o emprego de folhas poderosas e da benzedura com

119 Ponto citado pelo ator Josias da Costa em entrevista com autor, 1995.

262 | TEATRO DAS ORIGENS


tabaco, os males provocados por feitiçaria. É o que atesta o seguinte
ponto cantado:
Eu bem que disse a vocês
Mas parece que eu advinho
O feitiço que tu tinha Seu Zé tirou
Deu meia noite na Lua
Deu meio dia no Sol
Mas sustente o ponto, Seu Zé,
Que o ponto é de catimbó120.

A questão do seu aparecimento no Rio nunca foi esclarecida de


forma convincente. Teria o Zé, a pessoa física que segundo algumas
fontes atendia pelos nomes de José dos Anjos ou José Gomes, real-
mente migrado para o Rio de Janeiro na década de 1920? Alguns
autores afirmam categoricamente que não, jurando que ele foi en-
terrado no famoso cemitério dos catimbozeiros, em Pernambuco.
Outros, porém, respaldados pelo relato de muitos pontos cantados
(alguns já publicados) em uso atualmente nos terreiros de umbanda,
evocam passagens de sua saga, ainda em vida, pelas ruas do Rio de
Janeiro boêmio do começo do século XX. Nenhuma prova concreta
sustenta nenhuma dessas versões, que, nem por isso deixam de ser
verdadeiras, compondo uma história múltipla de um mito. O fato é
que a figura mística de Zé Pelintra, gerada primeiramente nos catim-
bós do Nordeste, adquire imensa popularidade no Rio de Janeiro. Para
entendermos a complexidade destas transformações, examinaremos
primeiramente a sua presença no catimbó.
Embora as pesquisas de Câmara Cascudo e Mário de Andrade
não o mencionem entre as entidades mais conhecidas do catimbó,
Zé Pelintra será documentado nas pesquisas subsequentes, feitas pela
equipe da Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF) em 1938, sob a
orientação do próprio Mário de Andrade. Mestre Zé Pelintra, como é
chamado no catimbó, está também presente nos relatos de Octaviano

120 “Catimbó do Seu Zé” ponto cantado do CD Zé Pelintra, do Babalorixá José de Aluá, São Paulo.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 263


Lopes e José Ribeiro, autores e estudiosos nordestinos que migraram
para o Grande Rio onde abriram centros de cultos afro, dando con-
tinuidade às práticas religiosas desenvolvidas na região de origem.

Capa do livro de José Ribeiro, Editora Espiritualista, s/d.

O catimbó se insere num quadro nacional de religiões populares


provenientes do Norte e Nordeste, relacionando-se com a pajelança
indígena e os e candomblé-de-caboclos muito presentes na Bahia.
Estes cultos são formas religiosas animistas “intimamente aparenta-
das, em que se fundem elementos tomados à feitiçaria afro-brasileira,
ao catolicismo, ao espiritismo e principalmente, às reminiscências
de costumes ameríndios, que constituem a sua parte principal e
caracterizadora.121.
Oneida Alvarenga aponta ainda que o catimbó seria um culto aos
Mestres, entidades sobrenaturais que são geralmente chamados de

121 ALVARENGA Oneida, citada por CARLINI Álvaro, Cachimbo e Maraca: O catimbó da Missão, 1993, p.57.

264 | TEATRO DAS ORIGENS


“caboclos”122 ou divinizações de falecidos chefes do culto. Os chefes
dos catimbós, que organizam o ritual e lideram a comunidade dos
fiéis, são igualmente chamados de “mestres”. Utilizam-se maraca e
chocalhos, mas a coreografia, quando existe, é bem mais simplifica-
da que a dos rituais de predominância afro-brasileira. Os catimbós
cumprem uma função mágico-curativa, e dois dos seus elementos
caracterizadores mais importantes, e seguramente de fonte ameríndia,
são a defumação exorcística por meio do cachimbo e a quase fitolatria
de que é cercada a jurema. Esta árvore brasileira fornece aos catimbós
uma bebida estimulante usada como estupefaciente místico, fumada
em vez de bebida.123.
Além da parte musical dos cânticos do Zé Pelintra, a equipe do
MPF registrou também a primeira fase da incorporação dos Mestres
e seus primeiros diálogos com o ajudante do ritual.
Mestre (Zé Incorporado): Hum!…Já veio (?) O nêgo já chegô! Cum
Deus e Nossa Senhora se sente o diabo!
Ajudante: Não! Fique com Deus! Peço um auxílio a você para
acomodá estas matérias que precisa muito uns bons auxílios dado pela
providência divina cum Deus e a Virge Maria protegeres a mim e a
todos qui istá a presença im nome de Deus puderoso, Deus crescente
suas luze divina (?).
Mestre: Cadê a bicada do Zé Pilintra?124

É o próprio Mestre quem anuncia a sua ligação com o diabo, mas


o Ajudante do ritual lhe indica que necessita dos seus serviços apenas
para o bem. É comum dizer que, quando se convoca o Seu Zé para
fazer o bem o cachimbo (a fumaça) deve estar para o lado direito, e
quando é para o mal,opara o lado contrário. Na gravação, Mestre Zé
parece concordar com o que foi proposto e pede então a sua bicada,
provavelmente um gole da bebida sagrada do catimbó – o ajucá, feita

122 De acordo com Alvarenga, denominação usada para significar índios. Ibidem p.57
123 Ibidem, p.58.
124 Ibidem, p. 165.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 265


da raiz da Jurema, observada naquele mesmo ano (1938) entre índios
pancarus, de Pernambuco,125, e amplamente utilizada entre inúmeros
catimbós do Nordeste. Em alguns casos, a bebida se resume à popular
infusão de cascas ou raízes da árvore Jurema.
Entre as anotações de Luiz Saia, do MPF, encontramos preciosas
informações sobre Zé Pelintra: “é um Mestre com pruridos de ele-
gância, palrador e muito interessado pelas moças, a quem galanteia
quando se manifesta: Zé Pelintra é prosista que é um horror: Oh!
Que tantas moças por aqui! Moças bonitas!”126 Mesmo naquele
contexto humilde e provinciano, Seu Zé se destaca dos demais pela
sua preocupação com a própria elegância. Uma vez incorporado, ele
solicita sua vestimenta apropriada, mesmo que esta seja bem simples,
conforme as possibilidades do médium.

O humor ameríndio: Makunaima dos taulipang, o hotxuá


dos krahô e o contador de histórias ianomami
O interesse pelas tradições ameríndias me levou a aproximar-me
de pajés e lideranças tradicionais por meio de encontros esporádicos.
Em 1993, fundei o Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ame-
ríndias (NEPAA) na UNIRIO e comecei a reunir materiais sobre
as tradições nativas brasileiras. Possivelmente, dentro do universo
ameríndio a divindade que mais se aproxima de Exu e de Zé Pelin-
tra é Makunaima. Não o do romance, o sem caráter. Mas o do povo
taulipang ou penon visitado entre 1911 e 1912 pelo etnólogo Theodor
Koch-Grunberg que recolheu grande informação sonora e fílmica,
e revelou ao mundo em língua nativa da região e em alemão as mi-
tologias de Makunaima, que Mario de Andrade leu em alemão para
criar o seu personagem que revolucionou o modernismo brasileiro.
Por meio dos narradores indígenas Akuli e Mayuluaipu, o
etnólogo teve acesso à rica mitologia dessa parte da Amazônia.

125 Informe de ALVARENGA Oneida, ibidem, p.193.


126 Ibidem, p.165.

266 | TEATRO DAS ORIGENS


Eram nativos de grupos dispersos na região do norte do estado
de Roraima, mais precisamente na região que avançava até o Vale
do Rio Orinoco, na Venezuela, e por parte do território da Guiana
Inglesa, do outro lado do Monte Roraima. Lá ele conheceu o Deus
menino, glutão, cheio de apetite sexual, mágico, às vezes malvado,
brincalhão, aventureiro.
Muitos pesquisadores têm colocado Makunaima na categoria
de“trickster”, termo identificado pelo psiquiatra C. G. Jung como
um dos mais importantes arquétipos, geralmente representado
por personagens da mitologia, de diversas tradições presentes no
mundo das artes visuais, da música e da literatura. Em português
isto o aproximaria ainda mais das figuras de Exu e Pelintra, consi-
derados malandros, cheios de ginga e malicia. Não diria que, neste
caso, t­ rickster seja um trapaceiro, mas uma figura inesperada e com
reações às vezes desastrosas. Podemos observar sempre um caráter
dúbio em suas atuações:
O trickster é um ser ligado aos caminhos, capaz de abri-los e fechá-
los, pois, por pertencer a mais de um mundo, aponta diferentes
possibilidades de rotas, dentre as quais se incluem as que transgridem
e as que se mantêm de acordo com a ordem vigente, pois, como um ser
ambíguo, ele é simultaneamente um transgressor e um garantidor da
ordem; não à toa, em muitas mitologias, é considerado um guardião.
Se Exu é um grande transgressor, ao mesmo tempo pune quem deixa
de cumprir mandamentos divinos, sobretudo de Olorum, o deus
suprem.127.

Em“As façanhas de Makunaima”, Grunberg reconta a história tal


qual lhe foi contada pelos indígenas. E podemos perceber a atuação
dupla do nosso herói: uma criança inocente e um homem com muito
apetite sexual sem escrúpulos para abusar da própria cunhada:

127 BARRETO, Renato Amado e OLIVEIRA, Ana Lúcia Machado “Makunaima e Makunaima: dois tricksters”.
In: Caderno de Letras, no. 16, 2016, p. 4. Disponivel em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/
cadernodeletras/article/view/8518/6082

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 267


Quando Makunaima ainda era menino, chorava a noite inteira e pedia
à mulher do irmão mais velho para ir com ela para fora de casa. Ele
queria agarrar e abusar dela. Sua mãe decidiu levar ele pra fora, mas
ele não quis. Então a mãe pediu a nora: ela o carregou para fora. Ele
pediu para levar para mais longe. Então a mulher o levou para mais
longe, para trás de um morro. Makunaima ainda era menino. Mas
quando lá chegaram, ele se tornou um homem e abusou dela. Passou
a proceder sempre assim com a mulher e a usava cada vez que seu
irmão ia caçar. O irmão porém nada sabia. Em casa Makunaima era
uma criança, mas quando saía, logo se transformava num homem.

Quando o irmão Jiguê finalmente descobre que está sendo traído,


dá uma coça no pequeno. Makunaima “aborreceu-se desta vida” e
resolveu se vingar de Jiguê, fazendo uma mágica e levando a casa
com a mãe para a montanha, com todas as comidas. Depois de um
tempo, vendo Jiguê passando fome, a mãe convenceu Makunaima a
retroceder.

Então ele colocou a casa outra vez em baixo, num lugar novo, perto da
casa de seu irmão. Mas o irmão estava muito fraco: quando dançaram,
ele ficou tonto e caiu. Makunaima riu dele, pois estava muito magro
e os ossos, inclusive os do traseiro, estavam salientes. Depois o irmão
comeu muito e engordou outra vez.
Makunaima continuou abusando da cunhada e dessa vez o irmão mais
velho sabia de tudo, mas preferiu ignorar, porque pensou na fome que
tinha passado e também porque não podia viver sem o irmão mais
moço. Por isso não quis mais brigar com ele.

Os comentários de Grunberg trazem uma visão dos taulipang e


de outros grupos indígenas que visitou na sua viagem pela Amazônia
que muito se aproxima de uma visão lúdica, sexualizada do mundo,
que aparecem nas brincadeiras e histórias populares brasileiras:
Nos mitos sérios dos índios desta região encontramos lendas
intencionalmente obscenas que dão às vezes especial prazer tanto

268 | TEATRO DAS ORIGENS


ao narrador como ao ouvinte. As manchas da Lua são resquícios de
sangue de menstruação. Uma velha emite o primeiro fogo pelo ânus.
Makunaima passou a fruta de irajá em seu pênis e entregou depois ao
irmão Jiguê, para que a comesse. Mas nada se compara à narração de
Puíto, o ânus, que anda soltando traques na cara dos homens.

Koch Grunberg em sua viagem de campo na Amazônia.

Há uns dez anos atrás, quando comecei a pensar sobre a pesquisa


sobre o humor indígena, os materiais sobre palhaços sagrados indí-
genas eram raros. Soube do projeto de um vídeo que a atriz Leticia
Sabatella estava fazendo com o hotxuá, o palhaço sagrado khraô. Mas
não tive acesso ao material na ocasião, cheguei a ver apenas o teaser
do mesmo. Fiquei atento, esperando a hora de encontrar esse tal de
palhaço sagrado khraô, pensei em organizar uma ida à aldeia, mas
não logrei êxito. Finalmente, em 2016, na visita à Aldeia Multiétnica

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 269


na Chapada dos Veadeiros com um grupo de estudantes da UNIRIO,
tive a chance de encontrar o palhaço indígena.
Foi realmente algo extraordinário, pois eu não estava esperando, a
viagem para lá foi decidida na última hora. No dia em que chegamos
à vila de São Jorge, onde ficamos hospedados, a poucos quilômetros
da Aldeia Multiétnica onde ocorre anualmente Encontro de Culturas
Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, os estudantes da UNIRIO
decidiram explorar as cachoeiras da região enquanto eu consegui
uma carona com duas estudantes da UNB que iam fazer entrevistas
na Aldeia. Não sabia que etnias estavam presentes lá, mas uma delas,
por coincidência, a foi entrevistar uma liderança khraô. Ao final da
entrevista, perguntei a ele se por acaso o hotxuá tinha vindo com seu
grupo. Ele afirmou que sim, e indicou o caminho. E ainda disse um
nome, “Sebastião”. Caminhei um pouco, seguindo a indicação, e ao me
aproxima, reconheci o hotxuá do teaser do vídeo da Leticia Sabatella.
E fui logo chamando: “Sebastião!…” Ele riu e me disse: “Meu nome é
Ismael Aprak.” Ou seja, o seu amigo estava fazendo troça de mim…
Um jeito de brincar. A partir daí, fizemos uma pequena entrevista e
me deixei fascinar por sua figura extraordinária.

Encontro de Zeca Ligiéro com Ismael Aprak, Aldeia Multiétinica. Fotos de Chico Rota, 2016.

Eu estava muito interessado em saber como era a tradição do ho-


txuá, se ele era o único da aldeia que brincava como palhaço, como
era a tradição dos khraô. Pouco a pouco, foi se apresentando, como o
hotxuá, o “palhaço” sagrado. Ele define a sua atuação no dia e no ritual

270 | TEATRO DAS ORIGENS


de que participa na aldeia como “brincadeira”. Não destaca a palavra
“ritual”. Às vezes, fala no ritual da festa das batatas... que é quando
tradicionalmente acontecem as brincadeiras dos vários hotxuás em
volta do fogo. É a tradição oral transmitida aos mais jovens, que de
alguma forma já nascem escolhidos para ser desempenhar este papel
na tribo, o de palhaço sagrado:

Assim, quando meu tio morreu e botou eu no lugar, e não é pra perder,
mesmo, nossa cultura dentro da comunidade com os khraô, nós tem
que manter isso aí toda vida e sempre. Eu já tenho um neto. O meu já
tá um rapaizão grande. Ele brinca também comig128.

Realizei algumas pequenas entrevistas com Ismael e pude assistir


à sua performance na arena central da Aldeia Multiétnica. Era tudo
improvisado. Acompanhado por dois assistentes não índios, ele brin-
cou com um jovem que insistia em acender uma fogueira no meio
da arena, fazendo uma pantomima própria. Foi uma interferência
rápida, ele agradeceu o aplauso e depois se dirigiu à plateia e falou da
associação de hotxuás que estava fundando. Na entrevista, chamou
sua apresentação de “mostração”, uma vez que não era um ritual,
nem um número como concebemos no circo, armado. Era algo que
ia surgindo na medida em que ele e seus auxiliares se relacionavam
com o rapaz que parecia ignorar o jogo, tão entretido estava em
acender o fogo que não pegava. E Ismael procurava brincar e abusar
da seriedade do rapaz.

128 Entrevista com o autor. Vídeo: “Performance ameríndia: memória e identidade”. Produção NEPAA, 2018.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 271


Ismael Aprak em Hotxuá, o riso da Terra, de Leticia Sabatella e Gringo Cardia.

No filme de Leticia Sabatella e Gringo Cardia, percebemos o


cotidiano de Ismael e os outros hotxuás em contraste com seriedade
da tribo e suas dificuldades em sobreviver tão perto do perímetro
urbano. Ismael exibe sua técnica de palhaçaria sagrada, aprendida e
depois por ele desenvolvida de maneira única, que consiste em uma
absoluta disponibilidade corporal. Seu picadeiro, seu terreiro, ora é
árvore, ora o rio. De tudo extrai graça, invertendo sempre as relações
com as pessoas, os objetos, o que lhe cruzar o caminho. Ele pinta o
seu rosto de branco, como os outros palhaços ocidentais, mas, em
vez de seguir lógica conhecida do picadeiro, Ismael Aprak pinta o seu
próprio rosto sem utilizar espelho. A tinta é da polpa de uma fruta
macerada, e aplica no corpo urucum e tinta de jenipapo ou carvão,
usa um short curto tipo adidas e amarra cipós e fibras recolhidas na
natureza tanto no corpo como na cabeça. Ele brinca com as crianças,
ou com os outros palhaços em volta da fogueira, num ritual em que
imita animais. Depois se esmera para criar com o corpo a própria flor
de abóbora, miticamente quem ensinou ao primeiro hotxuá a brincar
e a dançar em volta da fogueira para o ritual das batatas. No filme,
um antigo hotxuá explica como estufar a barriga para parecer mais

272 | TEATRO DAS ORIGENS


a abóbora e poder recriar a dança da flor de abóbora quando sopra o
vento. Puro Teatro das Origens. Não usa voz, toda a comunicação é
estabelecida como uma pantomima própria, um andar desengonçado
que lembra mais um animal se locomovendo do que um ser pensante.
A aproximação com o trabalho de Ismael Aprak e os hotxuá nos
levou a querer conhecer e rever em vídeo materiais de outras perfor-
mances indígenas, já que não nos era possível fazer uma pesquisa de
campo. Foi aí que encontrei o documentário 1976 sobre a viagem de
Eugenio Barba com o Odin Theatre à Venezuela, quando foi convi-
dado para o Festival de Caracas.
O vídeo “Teatro encontra o Ritual, Teatro Odin na Amazônia”
(Theatre meets Ritual– Odin Teatre in Amazonia)129 mostra frag-
mentos do grupo Odin encenando “O Livro das Danças”, além de
“Venha! E o dia será nosso” e sendo assistido pelos ianomâmi. Em
seguida, assistimos a uma performance dos ianomâmi, uma espécie
de encenação para a guerra. Por último, é um solo performance, o
xamã ianomâmi conta uma história, sobre a qual somos informado,
anteriormente, no próprio vídeo, que se trata de uma lenda em que
a tartaruga mata a onça. Em sua performance, toda executada de
cócoras, ele começa a história com gestos largos e de maneira bem
humorada, que se torna dramática ao final, e encerra a contação
com um final imprevisto, rolando e gritando como se lutasse con-
tra a onça. Para finalizar, dá uma cusparada de lado. Em ambos os
vídeos, mais do que momentos ritualísticos, parece florescer entre
os dois grupos um momento de pura descoberta, de jogo livre,
descontraído, permeado por uma curiosidade mútua e ponteado
por um humor que cria pontes seguras sobre os grandes abismos
culturais que os separam.
Duas culturas distintas, a dos khraô e dos ianomâmi, que coloco
lado a lado. Bem distinto do hotxuá, é a performance falante do pajé/
contador de histórias ianomâmi que aparece no filme de Eugenio

129 O filme foi produzido pela Cooperativa Kurare e pela Cochano Films para o Odin Teatret, 1976. disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=hqWHh-WitSU>. Acesso em 1 de abril de 2015.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 273


Barba. Como um griô africano, ele conta histórias para o grupo. Ao
contrário do narrador ocidental, nunca fica de pé, permanece o tempo
todo de cócoras. O que dá uma enorme projeção para seus braços, e
agilidade nos movimentos laterais, pois os joelhos estão dobrados, e
na última parte, quebra a comicidade de forma surpreendente ao se
atracar com a onça no chão, numa cena quase realista, mesmo não
havendo nenhum animal para lutar. Ele não usa nenhuma roupa e
nenhum objeto, tudo é construído com seu corpo, a narrativa em
língua ianomâmi, e os sons onomatopaicos da tartaruga e da onça, a
incorporação do pajé personagem que morre no final, perseguido em
sonhos pela onça que foi morta pela tartaruga com a ajuda dele. Ao
final, brechtianamente, o contador abandona o personagem e volta
à figura do narrador, encerrando a performance com uma cuspidela
de lado. Não poderia chamá-lo de palhaço, mas sua função teatral
de contador de histórias sagradas é clara. A pouca informação que
temos sobre o incrível trabalho de corpo dos ianomâmis, que contam
toda a história de cócoras, numa expressão que vai do mais dramá-
tico ao mais cômico detalhando cada passagem, não deixa dúvida, é
uma tradição complexa desenvolvida com uma técnica apurada de
contar, imitar, criar ações, e envolvimento com o público. Abrindo
uma discussão sobre as desconhecidas performances ameríndias das
Américas, mitos se mesclam com o cotidiano das tribos, como suas
vidas enredadas por uma cosmovisão particular como entendida pela
linda leitura do perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro130.

Sociedade secreta dos palhaços de Mali


Em 2 de abril de 2017 recebi uma mensagem de Talita Flori-
pes, estudante de atuação da Escola de Teatro da UNIRIO: “Zeca,
já estudou sobre palhaços de tribos africanas? Sabe se existe?”
Lembrei automaticamente do trabalho de Jean Michel Fickinger e
Dany Lariche, fotógrafos que conheci no Togo, cobrindo o Festival

130 CASTRO, Eduardo Viveiros. Metafisicas canibais. Rio de Janeiro: Ubu Editora, s.d.

274 | TEATRO DAS ORIGENS


de Divindades Negras em 2011. Em encontros posteriores eles me
falaram dos koredugas e exibiram fotos incríveis. Eu respondi para
Talita que existia sim. Ela reclamou que “é quase impossível achar
informações sobre.” Então prometi que iria procurar o material dos
meus amigos na web e enviaria para ela. “Tá beeem! É que eu queria
fazer um número de palhaçaria ritualístico afro, e o material é quase
zero, hahaha. Obrigadaaaa vai me salvar.”
No começo do semestre seguinte, inspirado pelo pedido da aluna,
criei um Laboratório do Palhaço Sagrado na Escola de Teatro, dando
início a uma nova pesquisa sobre os diversos palhaços sagrados de
que tinha notícia, e lá estava Talita acompanhando o trabalho que
culminou no ano seguinte com um espetáculo experimental chamado
Sociedade Secreta dos Palhaços Sagrados Sucupira. Um dos primeiros
materiais a que consegui acesso foram as fotos tiradas por Jean Michel
e Dany, e depois uma entrevista realizada na residência com o casal
e alguns vídeos documentando o trabalho, agora objeto da pesquisa.
A sociedade secreta dos koreduga são grupos de mestres (sábios)
populares que ocupam um lugar central dentro da identidade cultural
dos povos de Mali. A pesquisadora Male nos dá mais informações
sobre essa sociedade em vias de extinção que aparece em diversos
grupos étnicos, com destaque para os bambara, entre os quais estão
ligados a processos de iniciação masculina:
Onde quer que o Korè existisse, todos os meninos tinham que ser
“mortos no Korè”, isto é, viver a “morte simbólica”, segundo um ciclo
de sete anos. O Korè é o estágio final de um verdadeiro currículo
educacional destinado a construir, ao nível do sujeito e do grupo, a
identidade masculina e coletiva.131

De acordo com Male, os iniciados no Korè pertenciam a várias ca-


tegorias, cada uma com seus próprios símbolos: Suruku (hienas), Jaraw

131 MALE, Salia. Koredugaw: des initiés, symbols de une philosophy de de vie au Mali. In d https://www.
parisglobalforum.org/2019/03/03/koredugaw-des-inities-symboles-dune-philosophie-de-la-vie-au-mali/
consultado em 21/09/2019.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 275


(leões), Dugaw (abutres) e Sulaw (macacos). Mas somente os Koregaw
(Abutres) resistiram em uma sociedade autônoma e se mantêm ativos,
intervindo na vida social das populações no interior de Mali.
Valores como dignidade, retidão de caráter e decência estão bem
fortes na sociedade tradicional que resistiu bravamente, ao longo
da história, ao Islo e ao Cristianismo, mas a Sociedade Secreta dos
Palhaços Sagrados tem permissão de transgredir todos os compor-
tamentos sociais:
Os koreduga são de fato uma categoria de homens sábios que têm
o privilégio de zombar de todos. Por suas paródias, ridicularizam
todas as figuras de conhecimento e poder associadas a ele, comem
indiscriminadamente alimentos acumulados em um único recipiente.
Eles têm o privilégio de se comportar como crianças. (...)
O comportamento aparentemente aberrante de koreduga tem uma
virtude catártica: permite que todos recebam críticas e zombarias
que, se emanassem de outra pessoa, seriam consideradas infracções
graves. Esta forma de humor é muito mais profunda do que parece à
primeira vista. Não é apenas uma ocupação frívola: é uma forma de
criatividade vital, que envolve não apenas a brincadeira, mas uma visão
do mundo a partir da pureza da natureza humana, que às vezes parece
corrompida pela cultura, daí a oposição das práticas de koreduga às
normas sociais.132

Adotado em 2011 pela UNESCO como Patrimônio Cultural Ima-


terial coa necessidade urgente de salvaguarda, a inquieta e bufônica
sociedade é pouco conhecida fora de Mali, apesar da sua importância
como assegura o próprio texto da site da UNESCO:
Para os povos do Mali, a sociedade secreta dos koreduga é um rito de
sabedoria realizado em festivais e muitas outras ocasiões. Os iniciados
provocam o riso com comportamento caracterizado pela gula, humor
cáustico e inteligência, mas também possuem grande inteligência e
sabedoria. A sociedade educa, treina e prepara as crianças para lidar

132 Ibidem.

276 | TEATRO DAS ORIGENS


com a vida e lidar com problemas sociais. Os koreduga simbolizam
generosidade, tolerância, inofensividade e domínio do conhecimento,
incorporando as regras de conduta que eles defendem para os outro133.

Conforme pudemos observar, a partir do material colhido em


fotos e vídeos por Jean Michel Fickinger e Dani Leriche, trata-se
de performances processionais espetaculares não somente pelo seu
caráter histriônico como também pela forma dinâmica em que se
processa, combinando cortejos com rodas de apresentação em que
se destaca o trio elementar da tradição africana negra: o batucar/can-
tar/dançar. Outro elemento que chama a atenção é a caracterização
dos palhaços: ao invés de um traje típico, característico, existe uma
profusão de possibilidades em que se mesclam elementos naturais
como sementes, cacimba ou palhas com resíduos da sociedade de
consumo, como bem descreve Salia Male, pois existe sempre uma
preocupação crítica, nada parece ser aleatório:
Altamente coloridos personagens, os koreduga distinguem-se por
cavalos de madeira que eles montam, rifles de madeira com os quais
atiram no vazio como para imitar os caçadores ou guerreiros a cavalo
(sofá), apetrechos geralmente consistindo de uma túnica esfarrapada,
calças com a perna esquerda encurtada, um colar de feijões vermelhos
e branco) como ornamento ou rosário. A túnica é coberta com uma
rede que é pendurada com conchas de caracóis, amuletos, fragmentos
de cabaças, varas, penas e bicos de pássaros, aos quais se somam hoje
resíduos da sociedade de consumo: saquinhos vazios de chá ou água,
caixas de fósforo, isqueiros antigos, latas, armações de óculos, garrafas
de gás usadas, fachada telefônica ou telefones celulares antigos... Esse
arsenal de equipamentos extravagantes faz com que eles se pareçam
no contexto de manifestação a uma cavalaria estranha134.

133 “Secret society of the Kôrêdugaw, the rite of wisdom”. In: Mali UNESCO: List of Intangible Cultural Heritage
in Need of Urgent Safeguarding, 2011 < https://www.youtube.com/watch?v=X2rcBlT87UQ> .
Visto em 20/03/2019.
134 Ibidem, ibidem.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 277


Foto do Koreduga Abdoulaye Koné © D. Leriche J.M. Fickinger.

Em entrevista, Michel Fickinger conta que ouviu em Mali a


explicação de um professor chamado Timô Kosselodô sobre o que
seria o mito de origem da Sociedade Secreta dos Palhaços Sagrados
Koreduga, que, por sua vez, remete à história da criação do mundo
na visão bambara. E assim narrou:
Deus havia criado todos os seres vivos e em seguida, distribuiu
todas as funções e as responsabilidades, tinha uma função que nin-
guém queria, esta função era a sabedoria, e finalmente o abutre disse:
Eu posso ficar com a sabedoria”. Mas Deus lhe preveniu, “Atenção, é
um fardo! É muito pesado de carregar”. Ele disse “Não tem nada não,
eu fico com a sabedoria!”. E Deus lhe deu a sabedoria. E após meia
jornada, era tão pesado de carregar que ele ficou careca. E é por isso
que se diz que todo careca é sábio e inteligente. Mas Deus lhe disse:

278 | TEATRO DAS ORIGENS


Você queria a sabedoria você fica com ela, agora tem que ensiná-la
aos seres humanos.” Em troca, Deus prometeu proteção aos seus
descendentes. E assim as sociedades secretas dos palhaços koredugas
existem até hoje em Mali135.

Foto do Koreduga Moussa Coulibaly © D. Leriche J.M. Fickinger

No Brasil, aprendemos com Sotigui Koyaté sobre a força do griô


e o exemplo de uma interpretação épica baseada na contação de his-
tórias, que nos encantou da mesma forma que havia influenciado a
estética de Peter Brook, trazendo uma forma límpida de narrar e nos
transportar para a sinceridade de suas histórias. Se antes dele nunca
havíamos ouvido falar da cultura, depois dele ainda não sabíamos
desta outra face tão brilhante das tradições daquela região. Aqui há
apenas uma pequena amostra dessa verdadeira arma atômica do
humor cáustico e comprometido, demolidor, coletivo, que reflete o

135 Entrevista de Jean-Michel Fickinger e Dany Leriche ao autor em Pontoise, França, 2016.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 279


caldeirão de transformações e o caos contemporâneo em que estamos
mergulhados. Os Koredugas, como aves de rapina, devoram tudo que
encontram pela frente, inclusive o podre, reciclam o lixo ocidental
que invade suas vilas e aldeias e, através do humor, desconstroem os
falsos valores, “educando e denunciando em um teatro ao ar livre as
falhas das suas comunidades”136. E comentando a diferença entre os
griôs e os koredugas, Tiètèmalo Dembélé acrescenta: “Nesta pintura,
quem melhor que o koreduga poderia desempenhar esse papel, nem
mesmo os griôs. Porque os reis são os mestres dos griôs e os koredu-
gas, os loucos dos mestres”137.

Cantando para subir


Seu Zé fecha a porteira

Seu Zé feche a porteira,


cancelas e tronqueira!
Não deixe o mal entrar
Seu Zé feche a porteira,
cancelas e tronqueira!
Não deixe o mal entrar
Olha que o galo já cantou na aruanda
Farofa na fundanga eu quero ver queimar!
Olha que o galo já cantou na aruanda
Farofa na fundanga eu quero ver queimar!138

Na umbanda, quando se aproxime o momento de encerramento,


os médiuns cansados, os querentes satisfeitos, os ogans já preocupa-
dos com a hora do último ônibus ou trem, o chefe do terreiro pontua:
“Vamos cantar para subir!”. Ou seja, é hora de os espíritos desencar-
narem e de encerrar a sessão.

136 Ibidem.
137 Ibidem.
138 https://www.youtube.com/watch?v=xOD_OiZpbqc&feature=youtu.be&fbclid=IwAR2rXjD2xKXCFrfqzG
ajwUE7_BsNgU8PYJ0IvA8GGlvoUfaG3l8eOOWxMDU, consultado em 17/03/2019.

280 | TEATRO DAS ORIGENS


O verdadeiro acadêmico, no final de tudo, sente-se na obrigação de
concluir algo, e mesmo que não tenha uma conclusão satisfatória, quer
fazê-lo com toda a firmeza que se espera, talvez da mesma maneira
que o palhaço só se sente completo quando extrai a última gargalhada
de quem o vê. O ponto do acadêmico encerra o caminho e fecha a
porteira do texto, o riso do palhaço limpa o caminho e abre a sensi-
bilidade, desobstrui as artérias descartando os materiais duvidosos.
A verdade é ninguém ri porque acha alguma coisa, ri porque ri. O
riso é sincero em qualquer circunstância, mesmo inapropriada como
num velório de parente ou quando o nosso sisudo chefe escorrega e
inesperadamente cai e quica.
Mas o palhaço sagrado não espera nem o riso, nem a conclusão.
Não que seja zen-budista por natureza, ele cumpre seu rito com prazer
e alegria. Sempre. Não é um funcionário; um xamã, às vezes. Ele cura
se tiver que curar, e cura mesmo sem saber que está curando, traz
conhecimento, distribui abraços se for o caso, dá passes, faz terapia ou
apenas brinca por brincar. Li a respeito de uma cura que Seu Zé fez,
sabendo que a mulher estava tuberculosa: para não chamar atenção
sobre a sua doença, pediu à orquestra que tocasse um samba, e tirou
a dama para dançar. Seu passe foi através da dança enlaçada.139. Se a
mulher se curou rapidamente, não obtive informação – mas Seu Zé
fez a sua parte, do seu jeito inusitado.
Para desespero do pesquisador que quer descobrir os segredos,
o pulo do gato, ele não deixa pista sobre a sua preparação para a
performance, seu treinamento, dá um muxoxo para pré-expressi-
vidade, etnocenologia e outros academicismos difíceis de entender
no terreiro. Como diz o hotxuá, ele começou a ser hotxuá quando
era pequeno, porque o tio começou a passar as brincadeiras que,
por sua vez, aprendeu com outro tio hotxuá. Mei Lafang começou
a fazer ópera chinesa quando tinha oito anos, era de uma família
de várias gerações de atores da ópera chinesa. Como saber o que

139 LIGIÉRO, Zeca. Relato de Octaviano Silva Lopes in Malandro Divino: a vida e a lenda de Zé Pelintra,
personagem mítico da Lapa Carioca. Rio de Janeiro, Ed. Record, Nova Era, 2002, p.96

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 281


maduro performer fazia aos quarenta e poucos quando Brecht lhe
viu pela primeira vez? Quanto conhecimento técnico acumulado?
“Distanciamento”, “efeito de alienação”, como chamar aquilo? O
homem dançava teatro, cantava dança, teatralizava a palavra en-
carnando uma mulher, como era a tradição chinesa daquele teatro
dança canto que o Ocidente passou a chamar de “ópera de Pequim”.
Uma tradição oral, não se aprende em escola, já dizia Noel Rosa
sobre o samba. Mesmo que o pesquisador conviva muitos anos
com a tribo, aprenda a língua, se inicie nos ritos locais, não saberá
profundamente do que se trata realmente a performance desses
palhaços. Rimos das suas graças, admiramos a estética e escolha dos
materiais utilizados na confecção das suas máscaras, aprendemos
sobre as histórias que representam e estudamos textos de colegas
do primeiro mundo que tiveram mais recursos para permanecer
mais tempo com eles, ainda assim o que sabemos é pouco, o que de
alguma maneira nos frustra por não poder participar plenamente
do ritual e da cultura como um espectador sagrado. Somos turistas
aprendizes ou artistas solidários. Mas devemos então prestar atenção
no que pode ser a nossa função.
Ao nos aproximar e documentar, testemunhar, passamos a com-
partilhar lutas, desejos, conhecimentos, e a fortalecer uma rede de
resistência. Em entrevista, Leticia Sabatella fala sobre a sua aproxi-
mação com o hotxuá e os khraô, num momento em que eles queriam
a aproximação com ela:
Eu já tinha uma relação, acho que de uns oito anos com osôkhra,
quando eles me procuraram, e eu já tinha feito algumas coisas.
Já tinha colocado eles dentro de um teatro, porque tinham muita
vontade de se apresentar num teatro. Quando eles me procuraram,
estavam num movimento de recuperação da cultura. Tinham perdido
sementes antigas, sementes ancestrais que eles conheciam. Sementes
crioulas, sementes extremamente adaptadas ao Cerrado, de raízes,
batatas, milhos. Quando o governo os colocou para plantar arroz para
exportação, e nesse momento eles estavam recuperando, querendo

282 | TEATRO DAS ORIGENS


recuperar tudo isso, tanto a cultura, quanto essas sementes ancestrais.
Dentre os vários temas, que eram riquíssimos, a música, a pintura, não
tinha como você falar só de um tema, mas um tema que me era caro
e que para eles também era muito importante, a gente, em conjunto,
decidiu que era o Hotxuá, com princípio, que era o palhaço sagrado,
que não existia registro disso.140

Graças a essa iniciativa, temos acesso a este fantástico material e,


por sua vez, percebemos a importância do filme para fortalecer os
movimentos culturais dos khraô segundo relato do próprio Ismael
Aprak.141
Mesmo que apenas consigamos apreender parcialmente os sím-
bolos, fortalecemos laços, abrimos espaços, num momento crucial
de opressão sobre as populações negras e indígenas. Não devemos
desprezar nosso papel, somos ainda pálidos sob a luz de néon de
nossos laptops mas estamos em rede, desobstruindo canais entupidos
por comerciais e ideias mercenárias de consumo. Como acrescentam
Jean Michel e Dany Lariche:
Riso e sátira estão intimamente ligados à liberdade de expressão,
à criação. Eles são mantenedores de uma sociedade livre e uma
porta aberta para a vida. Nosso trabalho é um apelo à manutenção
dessas culturas. Ao dar-lhes maior visibilidade através das nossas
imagens, esperamos contribuir para preservação dessa riqueza,
mostrando que não vivemos em num mundo homogêneo, feito de
uma cultura genérica, disforme e sem competição. Queremos que
a imaginação humana não seja contida dentro dos limites de uma
modalidade intelectual e espiritual única, geralmente hegemônica
e eurocêntrica.142

140 Letícia Sabatetella, em entrevista com o autor no vídeo Performance ameríndia: memoria e identidade.
Direção Zeca Ligiéro, Produção NEPAA, 2018.
141 Entrevista com o autor em 2016, aldeia Multiétnica, Goiás.
142 FICKINGER, Jean-Michel e LERICHE, Dany. A la croisée des chemins passeurs de cultures, https://www.
berville-editions.com/trav/leriche/dossierK.pdf

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 283


O grande risco que temos ao investigar um tema tão complexo
como este é fazer um juízo final só a partir dos primeiros dados
colhidos. Uma outra performance que acontece do outro lado da
África, Mapiko, de Moçambique, cujas máscaras e a própria forma
de dançar lembram tanto o koreduga como o palhaço de Folia de
Reis, levou-me equivocadamente a chamá-lo de “palhaço”. Só depois
que terminei meu artigo publicado em capítulo deste livro foi que
encontrei com Vintani Nafassi, o dançarino músico/pesquisador da
etnia makonde, que me revelou novos dados sobre a performance
do Mapiko e seu contexto étnico – e me esclarece, que não se trata
de um palhaço. Mapiko é um espírito da floresta, também surge na
iniciação masculina da etnia makonde em uma sociedade matriarcal,
e Mapiko encerra segredos masculinos nesse grupo. Basicamente sua
performance acontece em um cortejo, em que é acompanhado de
músicos itinerantes. O público não tem acesso à relação de ensino
e aprendizado que os jovens que se iniciam têm com ele. Apenas
vemos uma demonstração pública do cantar/dançar/batucar. Cada
nova informação, nos ajuda a entender mais a complexidade das
tradições africanas como esta e, de igual maneira, as nossas tradições
afro-ameríndias e ameríndias, tão pouco estudadas sob a ótica dos
estudos das performance.
O jogo maravilhoso do macaco e do tamanduá com as másca-
ras dos kaiapó é um dos espetáculos mais divertidos que assisti
ultimamente, jamais teria intenção de catalogá-los como palhaços.
Mas não tenho dúvida de que se trata de um Teatro das Origens em
que os mitos se entrelaçam com a representação de animais míticos
que brincam de representar as suas próprias histórias. Quem são
os performers? Pajés, iniciados, dançarinos da tribo? A brincadeira
transforma o corpo em uma grande máscara cônica, em alguns
casos, os performers são tamanduás em outros são macacos. A
interação deles provavelmente registra um grande encontro mítico
que remete a um outro plano de vida dos kaiapó. A dança é abso-
lutamente sincronizada com o ritmo de pequenos sinos de metal e,

284 | TEATRO DAS ORIGENS


possivelmente, um canto com algum instrumento de sopro externo.
Assisti a uma performance deles na Aldeia Multiétnica. Incompleto,
possivelmente, e fora do calendário de festas, “mostração”, como de-
finiria Ismael Aprak sobre a sua própria performance. Só que, como
eram quatro performers mascarados, que dançavam e interagiam
numa rítmica própria, se não era ritual, a mecânica do espetáculo
funcionava brilhantemente, não parecia algo improvisado mas uma
técnica madura e sofisticada de manipulação da máscara se rela-
cionando com o espaço do terreiro, os outros animais, a música e o
público. Estavam espectadores de vários estados e países, assistindo
com respeito e admiração, dispostos em círculo, banhados pela
mesma lua no céu amplo e azul anil da Chapada dos Veadeiros.
E por momento, experimentamos algo inusitado, o silêncio total,
intercalado com o sininho no focinho do tamanduá de palha que
comandava nossa respiração.

Mascara do tamanduá Kayapó Mascara do tamanduá Kayapó


Desenho de Zeca Ligiéro Desenho de Zeca Ligiéro

Não havia palavra, apenas sons, risos de crianças indígenas que


assistiam. No coração do Brasil, isolados, experimentávamos a ausên-
cia de um urbanismo, o gritante som do silêncio, e nos esquecemos

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 285


de perguntar o que era aquilo e para que servia. Apenas o tamanduá,
conversava com o macaco, por meio do movimento, do som com-
passado e da dança. Talvez a conversa girasse em torno da criação
do mundo no qual iremos viver algum dia, ou talvez já tivéssemos
vivido e nos esquecemos de alguma origem perdida.

Referências bibliográficas
BARRETO, Renato Amado e OLIVEIRA, Ana Lúcia Machado “Makunaima e
Makunaima: dois tricksters”. In: Caderno de Letras, no. 16, 2016,
p. 4. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/
cadernodeletras/article/view/8518/6082
BARROSO, Oswald. A máscara e sua performance no Nordeste brasileiro.
Inédito.
CARLINI, Álvaro, Cachimbo e Maraca: O catimbó da Missão, 1993.
CASTRO, Eduardo Viveiros. Metafisicas canibais. Rio de Janeiro: Ubu
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FICKINGER, Jean-Michel e LERICHE, Dany. A la croisée des chemins
passeurs de cultures, https://www. berville-editions.com/trav/leriche/
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LIGIÉRO, Zeca. Malandro Divino: a vida e a lenda de Zé Pelintra, perso-
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LIGIÉRO, Zeca e DANDARA. Umbanda: paz, liberdade e cura. Pallas: 2017.
LOPES, Octaviano da Silva Catimbó no Brasil, S/D.
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Dois anos entre os indígenas: viagens ao
noroeste do Brasil (1903– 1905). Manaus: EDUA e FSDB, 2005.
______.Mitos e lendas dos grupos Taulipang, Macuxi e Wapishana de
Roraima. Revista do Museu Paulista.1953.
NICKLAUS, Thelma. Harlequin Phonexix: The Rise and the Fall of a Ber-
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MALE, Salia. Koredugaw: des initiés, symbols de une philosophy de de vie
au Mali. In d https://www. parisglobalforum.org/2019/03/03/koredugaw-
des-inities-symboles-dune-philosophie-de-la-vie-au-mali/ consultado em
21/09/2019.

286 | TEATRO DAS ORIGENS


SARTORI, Domenico. A Arte Mágica de Amleto e Donato Sartori. Editora
Realizações, 2013.
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: African and Afro-American
Art and Philosophy, Randon House, 1984.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Salvador: Corrupio, 1997.

Filmes
Hotxuá, o Palhaço Sagrado, de Leticia Sabatella e Gringo Cardia, 2012.
Produzido por Pedra Corrida Produções e Letícia Sabatella
Performance ameríndia: memória e identidade”. Produção NEPAA, 2018.
Ritual meets Theatre. filme foi produzido pela Cooperativa Kurare e pela
Cochano Films para o Odin Teatret, 1976. disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=hqWHh-WitSU>. Acesso em 1 de abril
de 2015.

Sites
“Secret society of the Kôrêdugaw, the rite of wisdom”. In: Mali UNESCO: List
of Intangible Cultural Heritage in Need of Urgent Safeguarding, 2011 < https://
www.youtube.com/watch?v=X2rcBlT87Uq> , consultado em 17/03/2019.
https://www.youtube.com/watch?v=xOD_OiZpbqc&feature=youtu.
be&fbclid=IwAR2rXjD2xKXCFrfqzG ajwUE7_BsNgU8PYJ0IvA8GGlvoUf
aG3l8eOOWxMDU, consultado em 17/03/2019.

CD
CD Zé Pelintra, do Babalorixá José de Aluá, São Paulo.

Palhaço Sagrado e Santo Brincalhão: a origem do principio ao fim | 287


Dança dos Pankararu. Foto de Caio Richard Macedo, 2018.

288 | TEATRO DAS ORIGENS


Posfácio

Este livro é fruto de um longo projeto de estudos comparativos, aqui


sintetizado e exemplificado, são os primeiros apontamentos de uma
reflexão que, apesar de décadas de observação, é ainda embrionária,
cujos resultados não devem ser tomados como conclusivos, mas como
indicadores de possibilidades, desta vez com um considerável material
de pesquisa de campo e bibliográfica examinando tanto rituais, fol-
guedos, narrativas orais, brincadeira e danças de roda como teatro de
rua. A pesquisa se refere tanto a grupos estritamente de performances
religiosas, como a brincantes de folguedos tradicionais ou mesmo a
atores e dançarinos que trabalham com as tradições.
Com Diana Taylor aprendemos o largo sentido da definição de
“performances” que, segundo ela, “funcionam como atos de trans-
ferência vitais” – um pensamento articulado, primeiramente, por
Paul Connerton, em 1989, como ela mesma notou – transmitindo
o conhecimento, a memória e um sentido de identidade social por
meio do que Richard Schechner denomina como “comportamento
reiterado” (comportamento duas vezes atuado – twice behaved-
-behaviour) (SCHECHNER, 1985:36”143. Por ser o conceito de
performance, aqui tomado de Richard Schechner, muito amplo,
reunindo uma sequência de eventos anteriores, concomitantes e pos-
teriores144, foi preciso, então, fazer um recorte, percebendo dentro
do grande círculo das performances culturais um segundo círculo

143 TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2013. p. 27
144 SCHECHNER, Richard. Performance Theory. New York and London: Routledge, 1982.

Posfácio | 289
menor, onde teríamos o ritual. No limite entre o desenvolvimento
do ritual e a sua própria prática, encontraríamos então um outro
teatro, que poderia ter características de folguedo ou brincadeira,
e, dentro deste círculo menor, teríamos ainda uma encenação com
elementos comuns, presentes principalmente na África, Américas
e Ásia, que estou conceituando como Teatro das Origens. Portanto,
ocupei-me de algumas performances/rituais, como estudos de caso,
no bojo dos quais aparecem um tipo de encenação característica que
inclui o dançar-cantar-batucar-contar. Nascidos dentro do contexto
do ritual, mas apresentando elementos do jogo cênico, disponibili-
zam tipos de representação de divindades e ancestre, para melhor
invocar as suas forças espirituais, incorporam estas forças e encenam
episódios marcantes das respectivas passagens pelo planeta, suas
lutas e conquistas junto às comunidades em épocas remotas, ou
ainda demonstrando o seu convívio com outras divindades durante
o seu percurso terrestre. Refutamos, porém, a ideia simplória de
comparar as divindades com personagens teatrais e seus dramas, os
dramas de um teatro nascido do texto teatral. Estamos atentos ao
fato de que os deuses “incorporados” não são “personagens”, mas
que dentro do contexto da representação eles são vestidos e mesmo
“desenhados” com um propósito de melhor representarem a força
ancestral que incorporam.
Nos primeiros anos de vida acadêmica voltada para as pesquisas
antropológicas, sempre que um orientando começava a pesquisar o
ritual afro e/ou ameríndio e procurava compará-lo com o teatro, eu
imediatamente sugeria abandonar este conceito por se tratar de algo
datado e referenciado no desenvolvimento de uma arte modelada na
Grécia e com toda uma descendência europeia. Para, desta forma, en-
corajá-lo a penetrar na essência do ritual sem se deixar contaminar por
ideias preconcebidas sobre representação, drama, ato e personagem,
que remetiam imediatamente a outro campo cognitivo, afastando-se
do objeto pesquisado. Recentemente, tenho procurado rever estes
limites restritivos, na medida em que passo agora a compreender

290 | TEATRO DAS ORIGENS


mais claramente a essência de outras teatralidades não eurocêntricas
presentes em diversos rituais assistidos e pesquisados.
Portanto, o presente estudo se concentrou, primeiramente, em dis-
criminar os elementos comuns do universo das performances africanas
e ameríndias e entender melhor as suas afinidades e aproximações em
variadas práticas performativas afro-ameríndias, cujos elementos de
ambas as origens se interpenetraram ou se amalgamaram, constituindo
uma categoria híbrida, já que seus elementos formadores passaram a ser
indissociáveis, o que não chegamos a abordar aqui de forma exaustiva
e que tencionamos desenvolver em um próximo estudo. Poderíamos
citar as pesquisas realizadas sobre a encantaria do Tambor de Mina
presentes nos estados do Maranhão e Pará, com ênfase na presença
da cabocla Dona Mariana afro-ameríndia e turca ou moura.
Após mais de trinta anos de convívio com as performances culturais
no Brasil, e em visitas mais esporádicas a alguns países da América La-
tina, da África e da Ásia, criei uma considerável quantidade de artigos
em que procurei entender a interrelações entre tradições, diásporas e
respectivas presenças no mundo contemporâneo, a ponto de me esque-
cer que era uma pessoa de teatro – fui até, equivocadamente, chamado
de “antropólogo” por pessoas de teatro como o ator Sérgio Brito.
Com este livro, volto também às minhas origens de pessoa de
teatro. No bojo dessas inúmeras expressões, examinei e destaquei os
elementos das performances, não importa se afro ou ameríndias, que
estão profundamente calcados no universo da artes cênicas, mesmo que
provenientes de lugares díspares e de origens distintas. Neste sentido,
pude compreender em minhas revisões que as encenações conhecidas
como populares ou religiosas presentes no cotidiano de comunidades
sob forma de brincadeiras, folguedos, ou rituais se estabelecem e se
constituem na força do inseparável quarteto “percutir-cantar-dançar-
-contar”. Procuramos, assim, perceber a construção da cena em uma
diversidade de situações, mas agrupando determinados princípios
comuns que fundamentam um teatro que não abre mão do seu aspecto
do entretenimento mas, ao mesmo tempo, está mais próximo do ritual,

Posfácio | 291
do compartilhamento de tradições orais, das histórias exemplares, e no
emprego de “comportamentos reiterados” na tessitura de identidades e
redesenho de culturas que insistem em permanecer vivas na contem-
poraneidade apesar de todas as opressões econômicas, sociais e muitas
vezes religiosas dos tempos totalitários em que vivemos.
A partir de Diana Taylor, poderíamos, em vez do termo “perfor-
mance”, usar palavras outras, ameríndias, para entender processos que
compreendem a arte, mas que avançam também em outras direções,
atraindo e absorvendo outros conteúdos e sentidos que, como temos
observados ao longo deste livro, pertencem ao Teatro das Origens,
sem, contudo, perder a sua essência:
Olin, que significa movimento em nauatle [...] é o motor por trás de
tudo o que acontece na vida, o movimento repetido do sol, das estrelas,
da terra e dos elementos. Olin, que também significa“hul” ou borracha,
era aplicado nas vítimas sacrificiais para facilitar a transição do reino
terrestre para o divino. [...] O termo capta simultaneamente a natureza
mais ampla e abrangente da performance como processo reiterativo e
de ajuda, bem como seu potencial para a especificidade histórica, para
a transição e a agência cultural e individual. Também poderíamos,
talvez, adotar areito, termo que designa música e dança. Areitos,
do arauaque aririn, era usado pelos conquistadores para descrever
um ato coletivo que envolvia canto, dança, celebração e culto, que
reivindicava legitimidade não só estética, mas também sociopolítica
e religiosa. O termo me atrai porque embaralha todas as noções
aristotélicas de gêneros, públicos e afins, desenvolvidos distintamente.
Ele reflete claramente a suposição de que as manifestações culturais
excedem a compartimentalização, seja ela por gênero (música-dança)
ou por participantes/atores, seja pelo efeito pretendido (religioso,
sociopolítico, estético) em que se baseia o pensamento cultural
ocidental. Ele também questiona nossas taxonomias, mesmo ao
apontar para novas possibilidades interpretativa.145.

145 Idem, ibidem, p. 43.

292 | TEATRO DAS ORIGENS


Penso o quanto os termos ameríndios olin, do grupo nauatle do
México“ (movimento, elasticidade, transição) e areitos “canto, dança, mú-
sica”), dos arauaques (América Central e do Sul), embora desconhecidos
no Brasil, e por mim nunca dantes usados, se encaixam perfeitamente
no conceito de Teatro das Origens que venho defendendo há algum
tempo, ao estabelecerem pontos de contato entre as manifestações
espetaculares dos diversos continentes, como Ásia, Américas e África,
por meio do percurtir/cantar/dançar/contar. Mais do que a própria
palavra “performance”, tão contaminada por suas analogias com o
mundo da ação midiática e do esporte contemporâneo, as palavras de
origem ameríndia trazem uma melhor sintonia entre a experiência
individual expressiva, o gesto social e seu contexto histórico, além da
dimensão cósmica, tão importante para civilizações em que a teatra-
lidade floresceu e floresce em uma diversidade impensada, que não
passaram necessariamente pela visão daquilo que conhecemos como
“arte teatral”.
É verdade, também, que desde que comecei a me aproximar das
linguagens do teatro asiático, onde a arte do teatro, tão distinta da
europeia, o tem um parentesco tão evidente com as performances
culturais ameríndias e africana e, passei a reconhecer suas especifi-
cidades e peculiaridades, revendo-os sob a ótica abrangente de um
“Outro Teatro”. E, por outro lado, também busquei novos horizontes
para entender o fenômeno teatral longe das amarras do texto (ponto
de partida para a montagem do espetáculo teatral ocidental) e do es-
paço cênico determinado pela burguesia (tradicionalmente conhecido
como “palco italiano”).
Se emprego genericamente o termo “Outro Teatro, para tratar de
uma diversidade de expressões, abro pela primeira vez, uma discussão
sobre o conceito mais restrito, localizando dentre suas manifestações
espetaculares, o “Teatro das Origens”, geralmente realizado dentro dos
templos, terreiros ou espaços consagrados para tal fim por sacerdotes,
adeptos e simpatizantes.

Posfácio | 293
Não quero me referir especificamente ao teatro dos povos origi-
nários, como pode parecer à primeira vista, tampouco tem ligação
direta com uma hipotética pré-história da origem humana. Nada de
evolucionismo, por favor. Mas o conceito se centraliza em determi-
nada cosmovisão, na qual o próprio grupo étnico, ou comunidade se
percebe como originário desse fundamento, desse princípio. Neste
sentido, poderíamos aplicar o termo, a outra tradição não euro-
cêntrica, desde que baseada no que se concebe como sua origem e
desenvolvida de acordo com estéticas e fabulações próprias. Neste
estudo, mais do que conclusões, pretendemos abrir uma discussão
sobre a eloquente presença do Teatro das Origens em comunidades
tradicionais em pleno século XXI, em detrimento ao pouco caso que
estudiosos do teatro têm dado a essas antigas tradições africanas e
ameríndias, já que na Ásia elas se encontram imbricadas no próprio
teatro tradicional local, como no caso de países como Coreia, China,
Japão, Indonésia e Índia, para citar apenas alguns que incorporaram
expressões autóctones nacionais, suas cosmovisões e, em muitos
casos, também seus rituais nas encenações.
Essas encenações, emergentes do ritual, e que se aproximam de
formas muito antigas de teatro, que remontam a períodos muito an-
teriores ao que conhecemos no Ocidente, passei a chamá-las, na falta
de outro nome, de “Teatro das Origens”, pois mesmo surgindo dentro
do ritual, passam da situação de culto devocional para a situação de
execução de um determinado roteiro de encenação, que em muitos
casos, mesmo aberta às modificações individuais e locais, passam
a fazer parte de uma determinada tradição cênica evidenciada em
dramas litúrgicos. Isto está presente em algumas performances cultu-
rais africanas, como as de Moçambique ou do Togo, em consonância
com as co-irmãs da diáspora classificadas como afro-brasileiras,
afro-latinas (em todos os países das diásporas africanas), e dispõem
de elementos comuns com as performances ameríndias das quais me
ocupo, principalmente, das desenvolvidas na Guatemala, pertencente
à grande tradição maia, mas também de algumas tradições indígenas

294 | TEATRO DAS ORIGENS


brasileiras. Este Teatro das Origens também dará nome às perfor-
mances afro-ameríndias, caracterizadas pelo amálgama de elementos
provenientes dos dois vetores afro e ameríndio, reprocessados em
espetáculos híbridos a serem analisados em um próximo livro.
Como elementos comuns das tradições afro-ameríndas destaca-
mos o cantar/dançar/batucar/contar articulados dentro de uma di-
nâmica própria e contínua, tratada em outros artigos como “motrizes
culturais”. Embora esta dinâmica seja o que mais chama a atenção,
por evidenciar o corpo e a relação do performer com a ancestrali-
dade, bem como com o espaço, sua relação com o espectador etc., é
importante também apontar para o lugar dos elementos visuais na
construção de figurinos, objetos e toda a concepção do desenho cênico
da performance. Torna-se fundamental, também, entender a relação
da performance com o próprio espaço onde ela acontece, pois nada
é concebido arbitrariamente, constituindo-se uma relação concreta
tanto como simbólica, já que a sua relação com o ritual é intrínseca e
aqui passei a chamar indistintamente de “terreiro”, apropriando-me da
definição exemplar de uma pesquisa irmã. (SIMAS:2017). Podemos
mesmo dizer, que a encenação emerge do ritual, o jogo cênico é uma
continuidade dentro do espaço da representação, o microcosmo de
uma cosmogonia ulterior à própria vida do performer, que em sua
performance catalisa forças e mitos que pertencem não somente à
sua vida pessoal, à sua própria ancestralidade, mas também à vida
da comunidade à qual ele pertence.

Posfácio | 295
Este livro foi composto em Minion Pro 11/14,
impresso em offset 75gr pela Psi7, para
editora Garamond em julho de 2019.

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