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Curso Especialização: Pastoral numa Igreja em saída

Diagnóstico teológico do tempo presente


Olhar o mundo com os textos do Papa Francisco
Evangelii gaudium (2013)
Capítulo II
NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes de falar de algumas questões fundamentais relativas à acção evangelizadora,
convém recordar brevemente o contexto em que temos de viver e agir. É habitual hoje
falar-se dum «excesso de diagnóstico», que nem sempre é acompanhado por propostas
resolutivas e realmente aplicáveis. Por outro lado, também não nos seria de grande
proveito um olhar puramente sociológico, que tivesse a pretensão, com a sua
metodologia, de abraçar toda a realidade de maneira supostamente neutra e asséptica. O
que quero oferecer situa-se mais na linha dum discernimento evangélico. É o olhar do
discípulo missionário que «se nutre da luz e da força do Espírito Santo».
51. Não é função do Papa oferecer uma análise detalhada e completa da realidade
contemporânea, mas animo todas as comunidades a «uma capacidade sempre vigilante
de estudar os sinais dos tempos». Trata-se duma responsabilidade grave, pois algumas
realidades hodiernas, se não encontrarem boas soluções, podem desencadear processos
de desumanização tais que será difícil depois retroceder. É preciso esclarecer o que pode
ser um fruto do Reino e também o que atenta contra o projecto de Deus. Isto implica não
só reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas também –
e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar as do espírito mau.
Pressuponho as várias análises que ofereceram os outros documentos do Magistério
universal, bem como as propostas pelos episcopados regionais e nacionais. Nesta
Exortação, pretendo debruçar-me, brevemente e numa perspectiva pastoral, apenas sobre
alguns aspectos da realidade que podem deter ou enfraquecer os dinamismos de
renovação missionária da Igreja, seja porque afectam a vida e a dignidade do povo de
Deus, seja porque incidem sobre os sujeitos que mais directamente participam nas
instituições eclesiais e nas tarefas de evangelização.
1. Alguns desafios do mundo actual
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos constatar
nos progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que
contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação
e da comunicação. Todavia não podemos esquecer que a maior parte dos homens e
mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências.
Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras
pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se
desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada
vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade.
Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos,
velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações
tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida.
Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum poder
muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor
da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e
da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por
enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois
pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no
lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no
jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em
consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e
marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é
considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar
fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já
não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade
nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois
quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos
não são «explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que
pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue
por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que
nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade
daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema
económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar
um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta,
desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos
incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do
drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma
responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos,
a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos,
enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero
espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque
aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise
financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise
antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A
adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão
no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo
verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a
descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação
antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se
cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de
ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira.
Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do
bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma
unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos
juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu
real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão
fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não
conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios,
qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses
do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.
Não a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a
ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada
contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida
como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última
instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida que está fora das
categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não
manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena
realização e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não
ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste
sentido, animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem
as palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus próprios
bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança
de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com
determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada
contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas
tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres,
respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um
regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar
a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível
desarreigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres,
mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra
encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão.
Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si
mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam
garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade
social provoca a reacção violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o
sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se,
assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e
a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido
que pareça. Se cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma
sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas
estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor.
Estamos longe do chamado «fim da história», já que as condições dum desenvolvimento
sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do consumo, mas
sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente
daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera
uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais.
Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje
não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos
e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os
pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução
numa «educação» que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos.
Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social
que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos,
empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes.
Alguns desafios culturais
61. Evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes desafios que se nos podem
apresentar. Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à liberdade religiosa
ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que, nalguns países, atingiram níveis
alarmantes de ódio e violência. Em muitos lugares, trata-se mais de uma generalizada
indiferença relativista, relacionada com a desilusão e a crise das ideologias que se
verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário. Isto não prejudica só a Igreja, mas
a vida social em geral. Reconhecemos que, numa cultura onde cada um pretende ser
portador duma verdade subjectiva própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram
inserir-se num projecto comum que vai além dos benefícios e desejos pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível,
rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência. Em muitos países, a
globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de
tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente
debilitadas. Assim se exprimiram, em distintos Sínodos, os Bispos de vários continentes.
Há alguns anos, os Bispos da África, por exemplo, retomando a Encíclica Sollicitudo rei
socialis, assinalaram que muitas vezes se quer transformar os países africanos em meras
«peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca. Isto verifica-se com
frequência também no domínio dos meios de comunicação social, os quais, sendo na sua
maior parte geridos por centros situados na parte norte do mundo, nem sempre têm na
devida conta as prioridades e os problemas próprios desses países e não respeitam a sua
fisionomia cultural». De igual modo, os Bispos da Ásia sublinharam «as influências
externas que estão a penetrar nas culturas asiáticas. Vão surgindo formas novas de
comportamento resultantes da orientação dos mass-media (…). Em consequência disso,
os aspectos negativos dos mass-media e espectáculos estão a ameaçar os valores
tradicionais».
63. A fé católica de muitos povos encontra-se hoje perante o desafio da proliferação de
novos movimentos religiosos, alguns tendentes ao fundamentalismo e outros que parecem
propor uma espiritualidade sem Deus. Isto, por um lado, é o resultado duma reacção
humana contra a sociedade materialista, consumista e individualista e, por outro, um
aproveitamento das carências da população que vive nas periferias e zonas pobres,
sobrevive no meio de grandes preocupações humanas e procura soluções imediatas para
as suas necessidades. Estes movimentos religiosos, que se caracterizam pela sua
penetração subtil, vêm colmar, dentro do individualismo reinante, um vazio deixado pelo
racionalismo secularista. Além disso, é necessário reconhecer que, se uma parte do nosso
povo baptizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de
estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou
à atitude burocrática com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da
vida dos nossos povos. Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o
pastoral, bem como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O processo de secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo.
Além disso, com a negação de toda a transcendência, produziu-se uma crescente
deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e social e um
aumento progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma desorientação generalizada,
especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da adolescência e juventude. Como
justamente observam os Bispos dos Estados Unidos da América, enquanto a Igreja insiste
na existência de normas morais objectivas, válidas para todos, «há aqueles que
apresentam esta doutrina como injusta, ou seja, contrária aos direitos humanos básicos.
Tais alegações brotam habitualmente de uma forma de relativismo moral, que se une
consistentemente a uma confiança nos direitos absolutos dos indivíduos. Nesta
perspectiva, a Igreja é sentida como se estivesse promovendo um convencionalismo
particular e interferisse com a liberdade individual». Vivemos numa sociedade da
informação que nos satura indiscriminadamente de dados, todos postos ao mesmo nível,
e acaba por nos conduzir a uma tremenda superficialidade no momento de enquadrar as
questões morais. Por conseguinte, torna-se necessária uma educação que ensine a pensar
criticamente e ofereça um caminho de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a corrente secularista que invade a sociedade, em muitos países –
mesmo onde o cristianismo está em minoria – a Igreja Católica é uma instituição credível
perante a opinião pública, fiável no que diz respeito ao âmbito da solidariedade e
preocupação pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões, ela serviu de medianeira na
solução de problemas que afectam a paz, a concórdia, o meio ambiente, a defesa da vida,
os direitos humanos e civis, etc. E como é grande a contribuição das escolas e das
universidades católicas no mundo inteiro! E é muito bom que assim seja. Mas, quando
levantamos outras questões que suscitam menor acolhimento público, custa-nos a
demonstrar que o fazemos por fidelidade às mesmas convicções sobre a dignidade da
pessoa humana e do bem comum.
66. A família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e
vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial
gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a
conviver na diferença e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus
filhos. O matrimónio tende a ser visto como mera forma de gratificação afectiva, que se
pode constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada
um. Mas a contribuição indispensável do matrimónio à sociedade supera o nível da
afectividade e o das necessidades ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos franceses,
não provém «do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da profundidade do
compromisso assumido pelos esposos que aceitam entrar numa união de vida total».
67. O individualismo pós-moderno e globalizado favorece um estilo de vida que debilita
o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos
familiares. A acção pastoral deve mostrar ainda melhor que a relação com o nosso Pai
exige e incentiva uma comunhão que cura, promove e fortalece os vínculos interpessoais.
Enquanto no mundo, especialmente nalguns países, se reacendem várias formas de
guerras e conflitos, nós, cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar
as feridas, de construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a carregar as cargas
uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos hoje surgir muitas formas de agregação
para a defesa de direitos e a consecução de nobres objectivos. Deste modo se manifesta
uma sede de participação de numerosos cidadãos, que querem ser construtores do
desenvolvimento social e cultural.
Desafios da inculturação da fé
68. O substrato cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é uma realidade viva. Aqui
encontramos, especialmente nos mais necessitados, uma reserva moral que guarda valores
de autêntico humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade não pode deixar de
reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não ter confiança na sua acção
livre e generosa pensar que não existem autênticos valores cristãos, onde uma grande
parte da população recebeu o Baptismo e exprime de variadas maneiras a sua fé e
solidariedade fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais que «sementes do Verbo»,
visto que se trata duma autêntica fé católica com modalidades próprias de expressão e de
pertença à Igreja. Não convém ignorar a enorme importância que tem uma cultura
marcada pela fé, porque, não obstante os seus limites, esta cultura evangelizada tem,
contra os ataques do secularismo actual, muitos mais recursos do que a mera soma dos
crentes. Uma cultura popular evangelizada contém valores de fé e solidariedade que
podem provocar o desenvolvimento duma sociedade mais justa e crente, e possui uma
sabedoria peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido.
69. Há uma necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para inculturar o Evangelho.
Nos países de tradição católica, tratar-se-á de acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza
que já existe e, nos países de outras tradições religiosas ou profundamente secularizados,
há que procurar novos processos de evangelização da cultura, ainda que suponham
projectos a longo prazo. Entretanto não podemos ignorar que há sempre uma chamada ao
crescimento: toda a cultura e todo o grupo social necessitam de purificação e
amadurecimento. No caso das culturas populares de povos católicos, podemos reconhecer
algumas fragilidades que precisam ainda de ser curadas pelo Evangelho: o machismo, o
alcoolismo, a violência doméstica, uma escassa participação na Eucaristia, crenças
fatalistas ou supersticiosas que levam a recorrer à bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de
partida para curar e ver-se livre de tais fragilidades é precisamente a piedade popular.
70. Certo é também que, às vezes, se dá maior realce a formas exteriores das tradições de
grupos concretos ou a supostas revelações privadas, que se absolutizam, do que ao
impulso da piedade cristã. Há certo cristianismo feito de devoções – próprio duma
vivência individual e sentimental da fé – que, na realidade, não corresponde a uma
autêntica «piedade popular». Alguns promovem estas expressões sem se preocupar com
a promoção social e a formação dos fiéis, fazendo-o nalguns casos para obter benefícios
económicos ou algum poder sobre os outros. Também não podemos ignorar que, nas
últimas décadas, se produziu uma ruptura na transmissão geracional da fé cristã no povo
católico. É inegável que muitos se sentem desiludidos e deixam de se identificar com a
tradição católica, que cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos nem os
ensinam a rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades de fé. Algumas causas
desta ruptura são a falta de espaços de diálogo familiar, a influência dos meios de
comunicação, o subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado que o mercado
incentiva, a falta de cuidado pastoral pelos mais pobres, a inexistência dum acolhimento
cordial nas nossas instituições, e a dificuldade que sentimos em recriar a adesão mística
da fé num cenário religioso pluralista.
Desafios das culturas urbanas
71. A nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta para onde peregrina toda
a humanidade. É interessante que a revelação nos diga que a plenitude da humanidade e
da história se realiza numa cidade. Precisamos de identificar a cidade a partir dum olhar
contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas casas, nas
suas ruas, nas suas praças. A presença de Deus acompanha a busca sincera que indivíduos
e grupos efectuam para encontrar apoio e sentido para a sua vida. Ele vive entre os
citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de
justiça. Esta presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada. Deus não
Se esconde de quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam tacteando, de
maneira imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento religioso é mediado por diferentes estilos de vida, por costumes
ligados a um sentido do tempo, do território e das relações que difere do estilo das
populações rurais. Na vida quotidiana, muitas vezes os citadinos lutam para sobreviver e,
nesta luta, esconde-se um sentido profundo da existência que habitualmente comporta
também um profundo sentido religioso. Precisamos de o contemplar para conseguirmos
um diálogo parecido com o que o Senhor teve com a Samaritana, junto do poço onde ela
procurava saciar a sua sede (cf. Jo 4, 7-26).
73. Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias humanas onde o
cristão já não costuma ser promotor ou gerador de sentido, mas recebe delas outras
linguagens, símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações de vida,
muitas vezes em contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está
em elaboração na cidade. O Sínodo constatou que as transformações destas grandes áreas
e a cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização. Isto
requer imaginar espaços de oração e de comunhão com características inovadoras, mais
atraentes e significativas para as populações urbanas. Os ambientes rurais, devido à
influência dos mass-media, não estão imunes destas transformações culturais que também
operam mudanças significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar
com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É
necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a
Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. Não se deve esquecer
que a cidade é um âmbito multicultural. Nas grandes cidades, pode observar-se uma trama
em que grupos de pessoas compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões
semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios culturais, em
cidades invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem
muitas vezes práticas de segregação e violência. A Igreja é chamada a ser servidora dum
diálogo difícil. Enquanto há citadinos que conseguem os meios adequados para o
desenvolvimento da vida pessoal e familiar, muitíssimos são também os «não-citadinos»,
os «meio-citadinos» ou os «resíduos urbanos». A cidade dá origem a uma espécie de
ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes
infinitas possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades ao pleno
desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes.
Em muitas partes do mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares
de habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não
forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas.
75. Não podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de drogas
e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e doentes, várias
formas de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço de
encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e proteger do
que para unir e integrar. A proclamação do Evangelho será uma base para restabelecer a
dignidade da vida humana nestes contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades vida
em abundância (cf. Jo 10, 10). O sentido unitário e completo da vida humana proposto
pelo Evangelho é o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que
um programa e um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para
esta realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos desafios
como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o
cristão e fecunda a cidade.
Laudato si’ (2015)

CAPÍTULO I
O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA
17. As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da humanidade e do mundo
podem soar como uma mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente
a partir dum confronto com o contexto actual no que este tem de inédito para a história
da humanidade. Por isso, antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e
exigências face ao mundo de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos
brevemente a considerar o que está a acontecer à nossa casa comum.
18. A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à
intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por
«rapidación». Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a
velocidade que hoje lhe impõem as acções humanas contrasta com a lentidão natural da
evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objectivos desta mudança
rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um
desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-
se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida
de grande parte da humanidade.
19. Depois dum tempo de confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas,
uma parte da sociedade está a entrar numa etapa de maior consciencialização. Nota-se
uma crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e
cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer ao nosso planeta.
Façamos uma resenha, certamente incompleta, das questões que hoje nos causam
inquietação e já não se podem esconder debaixo do tapete. O objectivo não é recolher
informações ou satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar
transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a
contribuição que cada um lhe pode dar.
1. Poluição e mudanças climáticas
Poluição, resíduos e cultura do descarte
20. Existem formas de poluição que afectam diariamente as pessoas. A exposição aos
poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente
dos mais pobres, e provocam milhões de mortes prematuras. Adoecem, por exemplo, por
causa da inalação de elevadas quantidades de fumo produzido pelos combustíveis
utilizados para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a poluição que afecta a todos,
causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas descargas de substâncias que
contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, insecticidas,
fungicidas, pesticidas e agro-tóxicos em geral. Na realidade a tecnologia, que, ligada à
finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das
múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema
criando outros.
21. Devemos considerar também a poluição produzida pelos resíduos, incluindo os
perigosos presentes em variados ambientes. Produzem-se anualmente centenas de
milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos
e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, electrónicos e industriais, resíduos
altamente tóxicos e radioactivos. A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais
num imenso depósito de lixo. Em muitos lugares do planeta, os idosos recordam com
saudade as paisagens de outrora, que agora vêem submersas de lixo. Tanto os resíduos
industriais como os produtos químicos utilizados nas cidades e nos campos podem
produzir um efeito de bioacumulação nos organismos dos moradores nas áreas limítrofes,
que se verifica mesmo quando é baixo o nível de presença dum elemento tóxico num
lugar. Muitas vezes só se adoptam medidas quando já se produziram efeitos irreversíveis
na saúde das pessoas.
22. Estes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afecta tanto os
seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo. Note-se,
por exemplo, como a maior parte do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado.
Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas naturais é exemplar: as
plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros; estes, por sua vez,
alimentam os carnívoros que fornecem significativas quantidades de resíduos orgânicos,
que dão origem a uma nova geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no
final do ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e
reutilizar resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu adoptar um modelo circular de
produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar,
o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o seu consumo,
maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. A
resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do descarte que acaba
por danificar o planeta inteiro, mas nota-se que os progressos neste sentido são ainda
muito escassos.
O clima como bem comum
23. O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível global, é um sistema
complexo, que tem a ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um
consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante
aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi
acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar
ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa
atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenómeno particular. A
humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de
vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as
causas humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros factores (tais
como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar), mas
numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das
últimas décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa (dióxido de
carbono, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da actividade
humana. Concentrando-se na atmosfera, estes gases dificultam a evasão do calor que a
luz do sol produz sobre a superficie da terra. Isto é particularmente agravado pelo modelo
de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro
do sistema energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a
utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.
24. Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que
agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais
como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará
a extinção de parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e dos
glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e a
decomposição da matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de
dióxido de carbono. Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas
ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo dióxido de carbono
aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência
actual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e
duma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos
nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se
se considera que um quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele,
e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras.
25. As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais,
sociais, económicas, distributivas e políticas, constituindo actualmente um dos principais
desafios para a humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas
próximas décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em
lugares particularmente afectados por fenómenos relacionados com o aquecimento, e os
seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados
serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais. Não possuem
outras disponibilidades económicas nem outros recursos que lhes permitam adaptar-se
aos impactos climáticos ou enfrentar situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso
a serviços sociais e de protecção. Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a
migrações de animais e vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua
vez, afecta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar
com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o aumento
de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo
reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua
vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma
indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em
diferentes partes do mundo. A falta de reacções diante destes dramas dos nossos irmãos
e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes,
sobre o qual se funda toda a sociedade civil.
26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder económico ou político parecem
concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas,
procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas
muitos sintomas indicam que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos
com os modelos actuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso
o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão
de dióxido de carbono e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por
exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia
renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis. Mas
ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação. Entretanto,
nalguns países, registaram-se avanços que começam a ser significativos, embora estejam
longe de atingir uma proporção importante. Houve também alguns investimentos em
modalidades de produção e transporte que consomem menos energia exigindo menor
quantidade de matérias-primas, bem como em modalidades de construção ou
restruturação de edifícios para se melhorar a sua eficiência energética. Mas estas práticas
promissoras estão longe de se tornar omnipresentes.
2. A questão da água
27. Outros indicadores da situação actual têm a ver com o esgotamento dos recursos
naturais. É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível actual de consumo dos
países mais desenvolvidos e dos sectores mais ricos da sociedade, onde o hábito de
desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites
máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza.
28. A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é
indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos.
As fontes de água doce fornecem os sectores sanitários, agro-pecuários e industriais. A
disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas
agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves
consequências a curto e longo prazo. Grandes cidades, que dependem de importantes
reservas hídricas, sofrem períodos de carência do recurso, que, nos momentos críticos,
nem sempre se administra com uma gestão adequada e com imparcialidade. A pobreza
da água pública verifica-se especialmente na África, onde grandes sectores da população
não têm acesso a água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil a produção de
alimento. Nalguns países, há regiões com abundância de água, enquanto outras sofrem de
grave escassez.
29. Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os
pobres, que diariamente ceifa muitas vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças
relacionadas com a água, incluindo as causadas por microorganismos e substâncias
químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água
inadequados, constituem um factor significativo de sofrimento e mortalidade infantil. Em
muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas
actividades extractivas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de
regulamentação e controles suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes
das fábricas; os detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes
do mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares.
30. Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares
cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria
sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito
humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este
mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água
potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável.
Esta dívida é parcialmente saldada com maiores contribuições económicas para prover de
água limpa e saneamento as populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício
de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de
desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é,
em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes
comportamentos num contexto de grande desigualdade.
31. Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários
produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma
aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas
urgentes. Os impactos ambientais poderiam afectar milhares de milhões de pessoas, sendo
previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das
principais fontes de conflitos deste século.[23]
3. Perda de biodiversidade
32. Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas
de entender a economia e a actividade comercial e produtiva. A perda de florestas e
bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro,
recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura
de doenças e vários serviços. As diferentes espécies contêm genes que podem ser
recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou regular algum
problema ambiental.
33. Entretanto não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais «recursos»
exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem
milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos
filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por
razões que têm a ver com alguma actividade humana. Por nossa causa, milhares de
espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a
sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer.
34. Possivelmente perturba-nos saber da extinção dum mamífero ou duma ave, pela sua
maior visibilidade; mas, para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são
necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insectos, os répteis e a variedade
inumerável de microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente
nos passam despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para
estabelecer o equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano deve intervir quando um
geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de intervenção humana numa realidade
tão complexa como a natureza é tal, que os desastres constantes causados pelo ser humano
provocam uma nova intervenção dele de modo que a actividade humana torna-se
omnipresente, com todos os riscos que isto implica. Normalmente cria-se um círculo
vicioso, no qual a intervenção humana, para resolver uma dificuldade, muitas vezes ainda
agrava mais a situação. Por exemplo, muitos pássaros e insectos, que desaparecem por
causa dos agro-tóxicos criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o
seu desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica que
possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às vezes, admiráveis os
esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos problemas criados pelo ser
humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de que este nível de intervenção
humana, muitas vezes ao serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra
onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta,
enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo
continua a avançar sem limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma
beleza insuprível e irrecuperável por outra criada por nós.
35. Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer iniciativa económica, costuma-se
olhar para os seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo
cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de
grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os novos cultivos,
as reservas, as barragens e outras construções vão tomando posse dos habitats e, por
vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as populações de animais já não podem migrar
nem mover-se livremente, pelo que algumas espécies correm o risco de extinção. Existem
alternativas que, pelo menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de
corredores biológicos, mas são poucos os países em que se adverte este cuidado e
prevenção. Quando se explora comercialmente algumas espécies, nem sempre se estuda
a sua modalidade de crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e consequente
desequilíbrio do ecossistema.
36. O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do
imediato, porque, quando se busca apenas um ganho económico rápido e fácil, já ninguém
se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela
negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício económico que se possa obter.
No caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de valores que excedem todo
e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas
desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo pagar ao resto
da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental.
37. Alguns países fizeram progressos na conservação eficaz de certos lugares e áreas – na
terra e nos oceanos –, proibindo aí toda a intervenção humana que possa modificar a sua
fisionomia ou alterar a sua constituição original. No cuidado da biodiversidade, os
especialistas insistem na necessidade de prestar uma especial atenção às áreas mais ricas
em variedade de espécies, em espécies endémicas, raras ou com menor grau de efectiva
protecção. Há lugares que requerem um cuidado particular pela sua enorme importância
para o ecossistema mundial, ou que constituem significativas reservas de água
assegurando assim outras formas de vida.
38. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que
são a Amazónia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares.
A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade
não se pode ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade
de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando
estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos
perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos.
Todavia, ao falar sobre estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é
possível ignorar também os enormes interesses económicos internacionais que, a
pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há
«propostas de internacionalização da Amazónia que só servem aos interesses
económicos das corporações internacionais».[24] É louvável a tarefa de organismos
internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e
colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para
que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio ambiente
e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou
internacionais.
39. Habitualmente também não se faz objecto de adequada análise a substituição da flora
silvestre por áreas florestais com árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode
afectar gravemente uma biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se
implantam. Também as zonas húmidas, que são transformadas em terrenos agrícolas,
perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante, nalgumas áreas
costeiras, o desaparecimento dos ecossistemas constituídos por manguezais.
40. Os oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas também a maior
parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para nós e
ameaçados por diversas causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que
nutre grande parte da população mundial, é afectada pela extracção descontrolada dos
recursos ictíicos, que provoca drásticas diminuições dalgumas espécies. E no entanto
continuam a desenvolver-se modalidades selectivas de pesca, que descartam grande parte
das espécies apanhadas. Particularmente ameaçados estão organismos marinhos que não
temos em consideração, como certas formas de plâncton que constituem um componente
muito importante da cadeia alimentar marinha e de que dependem, em última instância,
espécies que se utilizam para a alimentação humana.
41. Passando aos mares tropicais e subtropicais, encontramos os recifes de coral, que
equivalem às grandes florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de
espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos
dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo de
declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos
despojados de vida e de cor?»[25] Este fenómeno deve-se, em grande parte, à poluição
que chega ao mar resultante do desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das
descargas industriais e de métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam
cianeto e dinamite. É agravado pelo aumento da temperatura dos oceanos. Tudo isso nos
ajuda a compreender como qualquer acção sobre a natureza pode ter consequências que
não advertimos à primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se obtêm
à custa duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos.
42. É preciso investir muito mais na pesquisa para se entender melhor o comportamento
dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer
modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas,
deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres
criados, precisamos uns dos outros. Cada território detém uma parte de responsabilidade
no cuidado desta família, pelo que deve fazer um inventário cuidadoso das espécies que
alberga a fim de desenvolver programas e estratégias de protecção, cuidando com
particular solicitude das espécies em vias de extinção.
4. Deterioração da qualidade de vida humana e degradação social
43. Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem
direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos
deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo actual de
desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas.
44. Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e descontrolado de muitas
cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente
de emissões tóxicas mas também ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição
visiva e acústica. Muitas cidades são grandes estruturas que não funcionam, gastando
energia e água em excesso. Há bairros que, embora construídos recentemente,
apresentam-se congestionados e desordenados, sem espaços verdes suficientes. Não é
conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de cimento,
asfalto, vidro e metais, privados do contacto físico com a natureza.
45. Nalguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos espaços tornou difícil o acesso
dos cidadãos a áreas de especial beleza; noutros, criaram-se áreas residenciais
«ecológicas» postas à disposição só de poucos, procurando-se evitar que outros entrem a
perturbar uma tranquilidade artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e cheia
de espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas «seguras», mas não em áreas menos
visíveis, onde vivem os descartados da sociedade.
46. Entre os componentes sociais da mudança global, incluem-se os efeitos laborais
dalgumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no fornecimento e
consumo da energia e doutros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e
o aparecimento de novas formas de agressividade social, o narcotráfico e o consumo
crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de identidade. São alguns sinais, entre
outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois séculos não significou, em
todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso integral e uma melhoria da qualidade de
vida. Alguns destes sinais são ao mesmo tempo sintomas duma verdadeira degradação
social, duma silenciosa ruptura dos vínculos de integração e comunhão social.
47. A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do mundo digital, que, quando
se tornam omnipresentes, não favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver
com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os
grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do
ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se
traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração
da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do
encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados,
que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo tempo
tendem a substituir as relações reais com os outros, com todos os desafios que implicam,
por um tipo de comunicação mediada pela internet. Isto permite seleccionar ou eliminar
a nosso arbítrio as relações e, deste modo, frequentemente gera-se um novo tipo de
emoções artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as
pessoas e a natureza. Os meios actuais permitem-nos comunicar e partilhar
conhecimentos e afectos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar contacto directo
com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua experiência
pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o facto de, a par da oferta sufocante destes
produtos, ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais
ou um nocivo isolamento.
5. Desigualdade planetária
48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos
enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas
que têm a ver com a degradação humana e social. De facto, a deterioração do meio
ambiente e a da sociedade afectam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto
a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que
os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais
pobres».[26] Por exemplo, o esgotamento das reservas ictíicas prejudica especialmente
as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir,
a poluição da água afecta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de
comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afecta principalmente as
populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos
desequilíbrios actuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos
conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço
suficiente nas agendas mundiais.[27]
49. Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que
afectam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões
de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas
com frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma
questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não são
considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta,
permanecem frequentemente no último lugar. Isto deve-se, em parte, ao facto de que
muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder
estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contacto directo com os
seus problemas. Vivem e reflectem a partir da comodidade dum desenvolvimento e duma
qualidade de vida que não está ao alcance da maioria da população mundial. Esta falta de
contacto físico e de encontro, às vezes favorecida pela fragmentação das nossas cidades,
ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas.
Isto, às vezes, coexiste com um discurso «verde». Mas, hoje, não podemos deixar de
reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem
social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o
clamor da terra como o clamor dos pobres.
50. Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns
limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre
os países em vias de desenvolvimento, que condicionam as ajudas económicas a
determinadas políticas de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual
distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento
e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é
plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário».[28] Culpar o
incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e selectivo de alguns é uma
forma de não enfrentar os problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo
actual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria
impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal
consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos
alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa
do pobre».[29] Em todo o caso, é verdade que devemos prestar atenção ao desequilíbrio
na distribuição da população pelo território, tanto a nível nacional como a nível mundial,
porque o aumento do consumo levaria a situações regionais complexas pelas
combinações de problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de
resíduos, à perda de recursos, à qualidade de vida.
51. A desigualdade não afecta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar
numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida
ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com
consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais
efectuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas matérias-primas
para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais, como, por
exemplo, a contaminação com mercúrio na extracção minerária do ouro ou com o dióxido
de enxofre na do cobre. De modo especial é preciso calcular o espaço ambiental de todo
o planeta usado para depositar resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de
dois séculos e criaram uma situação que agora afecta todos os países do mundo. O
aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos
lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura,
juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto
acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos
para os países em vias de desenvolvimento e pela actividade poluente de empresas que
fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes
dão o capital: «Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são
multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou
do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas actividades e se
retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem
vida, esgotamento dalgumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da
agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra
social que já não se pode sustentar».[30]
52. A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas
não se dá o mesmo com a dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de
desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam
a alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro. A
terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o acesso à propriedade de bens
e recursos para satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por um sistema de
relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso. É necessário que os países
desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando significativamente o
consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos países mais necessitados
para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável. As regiões e os
países mais pobres têm menos possibilidade de adoptar novos modelos de redução do
impacto ambiental, porque não têm a preparação para desenvolver os processos
necessários nem podem cobrir os seus custos. Por isso, deve-se manter claramente a
consciência de que a mudança climática tem responsabilidades diversificadas e, como
disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente sobre
as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado
pelos interesses mais poderosos».[31] É preciso revigorar a consciência de que somos
uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que
permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da
indiferença.
6. A fraqueza das reacções
53. Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos
abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca
maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos. Mas somos
chamados a tornar-nos os instrumentos de Deus Pai para que o nosso planeta seja o que
Ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projecto de paz, beleza e plenitude. O
problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há
necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às
necessidades das gerações actuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações futuras.
Torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e
assegure a protecção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do
paradigma tecno-económico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também
com a liberdade e a justiça.
54. Preocupa a fraqueza da reacção política internacional. A submissão da política à
tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio
ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse
económico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não
ver afectados os seus projectos. Nesta linha, o Documento de Aparecida pede que, «nas
intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos
económicos que arrasam irracionalmente as fontes da vida».[32] A aliança entre
economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos seus
interesses imediatos. Deste modo, poder-se-á esperar apenas algumas proclamações
superficiais, acções filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar sensibilidade para
com o meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das organizações sociais
para alterar as coisas será vista como um distúrbio provocado por sonhadores românticos
ou como um obstáculo a superar.
55. Pouco a pouco alguns países podem mostrar progressos significativos, o
desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a corrupção.
Cresceu a sensibilidade ecológica das populações, mas é ainda insuficiente para mudar
os hábitos nocivos de consumo, que não parecem diminuir; antes, expandem-se e
desenvolvem-se. É o que acontece – só para dar um exemplo simples – com o crescente
aumento do uso e intensidade dos condicionadores de ar: os mercados, apostando num
ganho imediato, estimulam ainda mais a procura. Se alguém observasse de fora a
sociedade planetária, maravilhar-se-ia com tal comportamento que às vezes parece
suicida.
56. Entretanto os poderes económicos continuam a justificar o sistema mundial actual,
onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a
ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente.
Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a
degradação humana e ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar acções
imorais, porque a constante distracção nos tira a coragem de advertir a realidade dum
mundo limitado e finito. Por isso, hoje, «qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em
regra absoluta».[33]
57. É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário
favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa
sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos
avolumam-se quando se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito,
«não obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química, bacteriológica
e biológica, subsiste o facto de continuarem nos laboratórios as pesquisas para o
desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios
naturais».[34] Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e resolver as causas
que podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder, ligado com a finança, é o
que maior resistência põe a tal esforço, e os projectos políticos carecem muitas vezes de
amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela
sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?
58. Nalguns países, há exemplos positivos de resultados na melhoria do ambiente, tais
como o saneamento de alguns rios que foram poluídos durante muitas décadas, a
recuperação de florestas nativas, o embelezamento de paisagens com obras de
saneamento ambiental, projectos de edifícios de grande valor estético, progressos na
produção de energia limpa, na melhoria dos transportes públicos. Estas acções não
resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de
intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam
inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo.
59. Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial ou aparente que consolida um certo
torpor e uma alegre irresponsabilidade. Como frequentemente acontece em épocas de
crises profundas, que exigem decisões corajosas, somos tentados a pensar que aquilo que
está a acontecer não é verdade. Se nos detivermos na superfície, para além de alguns
sinais visíveis de poluição e degradação, parece que as coisas não estejam assim tão
graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições actuais.
Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de
produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os
vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões
importantes, age como se nada tivesse acontecido.
7. Diversidade de opiniões
60. Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis soluções, que se
desenvolveram diferentes perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos,
alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os problemas
ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas, sem
considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o
ser humano, com qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o
ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe
todo o tipo de intervenção. Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis
cenários futuros, porque não existe só um caminho de solução. Isto deixaria espaço para
uma variedade de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se chegar a
respostas abrangentes.
61. Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra
definitiva e entende que deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas,
respeitando a diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade,
para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos
a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos
fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia parece notar-se sintomas dum
ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação, que se
manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo
financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se podem analisar nem explicar de
forma isolada. Há regiões que já se encontram particularmente em risco e, prescindindo
de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o actual sistema mundial é insustentável
a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da acção
humana: «Se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de
que a humanidade frustrou a expectativa divina».[35]

Amoris laetitia (2016)

CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS FAMÍLIAS
31. O bem da família é decisivo para o futuro do mundo e da Igreja. Inúmeras são as
análises feitas sobre o matrimónio e a família, sobre as suas dificuldades e desafios
actuais. É salutar prestar atenção à realidade concreta, porque «os pedidos e os apelos do
Espírito ressoam também nos acontecimentos da história» através dos quais «a Igreja
pode ser guiada para uma compreensão mais profunda do inexaurível mistério do
matrimónio e da família».[8] Não tenho a pretensão de apresentar aqui tudo aquilo que
poderia ser dito sobre os vários temas relacionados coma família no contexto actual. Mas,
dado que os Padres sinodais ofereceram um panorama da realidade das famílias de todo
o mundo, considero oportuno recolher algumas das suas contribuições pastorais,
acrescentando outras preocupações derivadas da minha própria visão.
A situação actual da família
32. «Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a realidade actual da família em toda a sua
complexidade, nas suas luzes e sombras. (...) Hoje, a mudança antropológico-cultural
influencia todos os aspectos da vida e requer uma abordagem analítica e
diversificada».[9] Já no contexto de várias décadas atrás, os bispos da Espanha
reconheciam uma realidade doméstica com mais espaços de liberdade, «com uma
distribuição equitativa de encargos, responsabilidades e tarefas (...). Valorizando mais a
comunicação pessoal entre os esposos, contribui-se para humanizar toda a vida familiar.
(...) Nem a sociedade em que vivemos nem aquela para onde caminhamos permitem a
sobrevivência indiscriminada de formas e modelos do passado».[10] Mas «estamos
conscientes da direcção que vão tomando as mudanças antropológico-culturais, em razão
das quais os indivíduos são menos apoiados do que no passado pelas estruturas sociais na
sua vida afectiva e familiar».[11]
33. Por outro lado, «há que considerar o crescente perigo representado por um
individualismo exagerado que desvirtua os laços familiares e acaba por considerar cada
componente da família como uma ilha, fazendo prevalecer, em certos casos, a ideia dum
sujeito que se constrói segundo os seus próprios desejos assumidos com carácter
absoluto».[12] «As tensões causadas por uma cultura individualista exagerada da posse e
fruição geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e
agressividade».[13] Gostaria de acrescentar o ritmo da vida actual, o stresse, a
organização social e laboral, porque são factores culturais que colocam em risco a
possibilidade de opções permanentes. Ao mesmo tempo, encontramo-nos perante
fenómenos ambíguos. Por exemplo, aprecia-se uma personalização que aposte na
autenticidade em vez de reproduzir comportamentos prefixados. É um valor que pode
promover as diferentes capacidades e a espontaneidade, mas, se for mal orientado, pode
criar atitudes de permanente suspeita, fuga dos compromissos, confinamento no conforto,
arrogância. A liberdade de escolher permite projectar a própria vida e cultivar o melhor
de si mesmo, mas, se não se tiver objectivos nobres e disciplina pessoal, degenera numa
incapacidade de se dar generosamente. De facto, em muitos países onde diminui o número
de matrimónios, cresce o número de pessoas que decidem viver sozinhas ou que
convivem sem coabitar. Podemos assinalar também um louvável sentido de justiça; mas,
mal compreendido, transforma os cidadãos em clientes que só exigem o cumprimento de
serviços.
34. Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender a família, esta pode
transformar-se num lugar de passagem, aonde uma pessoa vai quando lhe parecer
conveniente para si mesma ou para reclamar direitos, enquanto os vínculos são deixados
à precariedade volúvel dos desejos e das circunstâncias. No fundo, hoje é fácil confundir
a liberdade genuína com a ideia de que cada um julga como lhe parece, como se, para
além dos indivíduos, não houvesse verdades, valores, princípios que nos guiam, como se
tudo fosse igual e tudo se devesse permitir. Neste contexto, o ideal matrimonial com um
compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências
contingentes ou pelos caprichos da sensibilidade. Teme-se a solidão, deseja-se um espaço
de protecção e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa
relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais.
35. Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimónio, para não contradizer
a sensibilidade actual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao
descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e
devemos oferecer. É verdade que não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos
males actuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer
impor normas pela força da autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e
generoso, que consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimónio
e a família, de modo que as pessoas estejam melhor preparadas para responder à graça
que Deus lhes oferece.
36. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a
nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas
ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma
salutar reacção de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentámos de tal maneira o
matrimónio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua
ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação. Também não
fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com
propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais
concretas. Outras vezes, apresentámos um ideal teológico do matrimónio demasiado
abstracto, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das
possibilidades efectivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização, sobretudo
quando não despertámos a confiança na graça, não fez com que o matrimónio fosse mais
desejável e atraente; muito pelo contrário.
37. Durante muito tempo pensámos que, com a simples insistência em questões
doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos
suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de
sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em apresentar o matrimónio
mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a
carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que
muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e
são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem
todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-
las.
38. Devemos dar graças pela maioria das pessoas valorizar as relações familiares que
querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo outro. Por isso, aprecia-se que
a Igreja ofereça espaços de apoio e aconselhamento sobre questões relacionadas com o
crescimento do amor, a superação dos conflitos e a educação dos filhos. Muitos estimam
a força da graça que experimentam na Reconciliação sacramental e na Eucaristia, que
lhes permite enfrentar os desafios do matrimónio e da família. Nalguns países,
especialmente em várias partes da África, o secularismo não conseguiu enfraquecer
alguns valores tradicionais e, em cada matrimónio, gera-se uma forte união entre duas
famílias alargadas, onde se conserva ainda um sistema bem definido de gestão de
conflitos e dificuldades. No mundo actual, aprecia-se também o testemunho dos cônjuges
que não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projecto comum
e conservam o afecto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna
possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. No entanto, muitas
vezes agimos na defensiva e gastámos as energias pastorais multiplicando os ataques ao
mundo decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade.
Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um reflexo
claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal
exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a
samaritana ou a mulher adúltera.
39. Isto não significa deixar de advertir a decadência cultural que não promove o amor e
a doação. As consultações que antecederam os dois últimos Sínodos trouxeram à luz
vários sintomas da «cultura do provisório». Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que
as pessoas passam duma relação afectiva para outra. Crêem que o amor, como acontece
nas redes sociais, se possa conectar ou desconectar ao gosto do consumidor e inclusive
bloquear rapidamente. Penso também no medo que desperta a perspectiva dum
compromisso permanente, na obsessão pelo tempo livre, nas relações que medem custos
e benefícios e mantêm-se apenas se forem um meio para remediar a solidão, ter protecção
ou receber algum serviço. Transpõe-se para as relações afectivas o que acontece com os
objectos e o meio ambiente: tudo é descartável, cada um usa e joga fora, gasta e rompe,
aproveita e espreme enquanto serve; depois… adeus. O narcisismo torna as pessoas
incapazes de olhar para além de si mesmas, dos seus desejos e necessidades. Mas quem
usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser usado, manipulado e abandonado
com a mesma lógica. Faz impressão ver que as rupturas ocorrem, frequentemente, entre
adultos já de meia-idade que buscam uma espécie de «autonomia» e rejeitam o ideal de
envelhecer juntos cuidando-se e apoiando-se.
40. «Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que vivemos numa cultura que
impele os jovens a não formarem uma família, porque privam-nos de possibilidades para
o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas opções que também eles são
dissuadidos de formar uma família».[14] Nalguns países, muitos jovens «são
frequentemente levados a adiar o matrimónio por problemas de tipo económico, laboral
ou de estudo. Às vezes também por outros motivos, tais como a influência das ideologias
que desvalorizam o matrimónio e a família, a experiência do fracasso de outros casais a
que eles não se querem expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e
sagrado, as oportunidades sociais e os benefícios económicos derivados da convivência,
uma concepção puramente emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e
a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e
burocrático».[15] Precisamos de encontrar as palavras, as motivações e os testemunhos
que nos ajudem a tocar as cordas mais íntimas dos jovens, onde são mais capazes de
generosidade, de compromisso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a
aceitar, com entusiasmo e coragem, o desafio de matrimónio.
41. Os Padres sinodais aludiram a certas «tendências culturais que parecem impor uma
afetividade sem qualquer limitação, (…) uma afetividade narcisista, instável e mutável
que não ajuda os sujeitos a atingir uma maior maturidade». Preocupa a «difusão da
pornografia e da comercialização do corpo, favorecida, entre outras coisas, por um uso
distorcido da internet» e pela «situação das pessoas que são obrigadas a praticar a
prostituição». Neste contexto, por vezes os casais sentem-se inseguros, indecisos,
custando-lhes a encontrar as formas para crescer. Muitos são aqueles que tendem a ficar
nos estádios primários da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família
e pode chegar, através das separações e dos divórcios, a ter sérias consequências para os
adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais».[16] As
crises conjugais são «enfrentadas muitas vezes de modo apressado e sem a coragem da
paciência, da averiguação, do perdão recíproco, da reconciliação e até do sacrifício. Deste
modo os falimentos dão origem a novas relações, novos casais, novas uniões e novos
casamentos, criando situações familiares complexas e problemáticas para a opção
cristã».[17]
42. «A própria queda demográfica, causada por uma mentalidade anti natalista e
promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva, não só determina uma situação
em que a sucessão das gerações deixa de estar garantida, mas corre-se o risco de levar,
com o tempo, a um empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro. O
avanço das biotecnologias também teve um forte impacto sobre a natalidade».[18] Podem
juntar-se outros factores, como «a industrialização, a revolução sexual, o temor da
superpopulação, os problemas económicos (...). A sociedade de consumo também pode
dissuadir as pessoas de ter filhos, só para manter a sua liberdade e estilo de vida».[19] É
verdade que a consciência recta dos esposos, quando foram muito generosos na
transmissão da vida, pode orientá-los para a decisão de limitar o número dos filhos por
razões suficientemente sérias; e também «por amor desta dignidade da consciência, a
Igreja rejeita com todas as suas forças as intervenções coercitivas do Estado a favor da
contracepção, da esterilização e até mesmo do aborto».[20] Estas medidas são
inaceitáveis mesmo em áreas com alta taxa de natalidade, mas é notável que os políticos
as incentivem também nalguns países que sofrem o drama duma taxa de natalidade muito
baixa. Como assinalaram os bispos da Coreia, isto é «agir de forma contraditória e
negligenciando o próprio dever».[21]
43. O enfraquecimento da fé e da prática religiosa, nalgumas sociedades, afecta as
famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas dificuldades. Os Padres disseram que
«uma das maiores pobrezas da cultura actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na
vida das pessoas e da fragilidade das relações. Há também uma sensação geral de
impotência face à realidade socioeconómica que, muitas vezes, acaba por esmagar as
famílias. (...) Frequentemente as famílias sentem-se abandonadas pelo desinteresse e a
pouca atenção das instituições. As consequências negativas sob o ponto de vista da
organização social são evidentes: da crise demográfica às dificuldades educativas, da
fadiga em acolher a vida nascente ao sentir a presença dos idosos como um peso, até à
difusão dum mal-estar afectivo que às vezes chega à violência. O Estado tem a
responsabilidade de criar as condições legislativas e laborais para garantir o futuro dos
jovens e ajudá-los a realizar o seu projecto de formar uma família».[22]
44. A falta duma habitação digna ou adequada leva muitas vezes a adiar a formalização
duma relação. É preciso lembrar que «a família tem direito a uma habitação condigna,
apropriada para a vida familiar e proporcional ao número dos seus membros, num
ambiente fisicamente sadio que proporcione os serviços básicos para a vida da família e
da comunidade».[23] Uma família e uma casa são duas realidades que se reclamam
mutuamente. Este exemplo mostra que devemos insistir nos direitos da família, e não
apenas nos direitos individuais. A família é um bem de que a sociedade não pode
prescindir, mas precisa de ser protegida.[24] A defesa destes direitos é «um apelo
profético a favor da instituição familiar, que deve ser respeitada e defendida contra toda
a agressão»,[25] sobretudo no contexto actual em que habitualmente ocupa pouco espaço
nos projectos políticos. As famílias têm, entre outros direitos, o de «poder contar com
uma adequada política familiar por parte das autoridades públicas no campo jurídico,
económico, social e fiscal».[26] Às vezes as angústias das famílias tornam-se dramáticas,
quando têm de enfrentar a doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde
adequados, ou quando se prolonga o tempo sem ter conseguido um emprego decente. «As
coerções económicas excluem o acesso das famílias à educação, à vida cultural e à vida
social activa. O actual sistema económico produz várias formas de exclusão social. As
famílias sofrem de modo particular com os problemas relativos ao trabalho. As
possibilidades para os jovens são poucas e a oferta de trabalho é muito selectiva e
precária. As jornadas de trabalho são longas e, muitas vezes, agravadas pelo tempo gasto
na deslocação. Isto não ajuda os esposos a encontrar-se entre si e com os filhos, para
alimentar diariamente as suas relações».[27]
45. «Há muitos filhos nascidos fora do matrimónio, especialmente nalguns países, e
muitos são os que, em seguida, crescem comum só dos progenitores e num contexto
familiar alargado ou reconstituído. (...) Por outro lado, a exploração sexual da infância
constitui uma das realidades mais escandalosas e perversas da sociedade actual. Além
disso, nas sociedades feridas pela violência da guerra, do terrorismo ou da presença do
crime organizado, acabam deterioradas as situações familiares, sobretudo nas grandes
metrópoles, e nas suas periferias cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua».[28] O
abuso sexual das crianças torna-se ainda mais escandaloso, quando se verifica em
ambientes onde deveriam ser protegidas, particularmente nas famílias e nas comunidades
e instituições cristãs.[29]
46. As migrações «constituem outro sinal dos tempos, que deve ser enfrentado e
compreendido com todo o seu peso de consequências sobre a vida familiar».[30] O último
Sínodo atribuiu grande importância a esta problemática ao reconhecer que, «sob
modalidades diferentes, atinge populações inteiras em várias partes do mundo. A Igreja
desempenhou, neste campo, papel de primária grandeza. A necessidade de manter e
desenvolver este testemunho evangélico (cf. Mt 25, 35) aparece hoje mais urgente do que
nunca. (...) A mobilidade humana, que corresponde ao movimento histórico natural dos
povos, pode revelar-se uma verdadeira riqueza tanto para a família que emigra como para
o país que a recebe. Caso diferente é a migração forçada das famílias, em consequência
de situações de guerra, perseguição, pobreza, injustiça, marcada pelas vicissitudes duma
viagem que, muitas vezes, põe em perigo a vida, traumatiza as pessoas e destabiliza as
famílias. O acompanhamento dos migrantes exige uma pastoral específica dirigida tanto
às famílias que emigram como aos membros dos núcleos familiares que ficaram nos
lugares de origem. Isto deve ser feito respeitando as suas culturas, a formação religiosa e
humana da sua origem, a riqueza espiritual dos seus ritos e tradições, inclusive através
dum cuidado pastoral específico. (...) As migrações revelam-se particularmente
dramáticas e devastadoras tanto para as famílias como para as pessoas, quando têm lugar
à margem da legalidade e são sustentadas por circuitos internacionais do tráfico de
pessoas. O mesmo se pode dizer quando envolvem mulheres ou crianças não
acompanhadas, forçadas a estadias prolongadas nos locais de passagem entre um país e
outro, nos campos de refugiados, onde não é possível iniciar um percurso de integração.
A pobreza extrema e outras situações de desintegração induzem, por vezes, as famílias
até mesmo a vender os próprios filhos para a prostituição ou o tráfico de órgãos».[31] «As
perseguições dos cristãos, bem como as de minorias étnicas e religiosas, em várias partes
do mundo, especialmente no Médio Oriente, constituem uma grande prova: não só para
a Igreja mas também para toda a comunidade internacional. Devem ser apoiados todos os
esforços para favorecer a permanência das famílias e das comunidades cristãs nas suas
terras de origem».[32]
47. Os Padres dedicaram especial atenção também «às famílias das pessoas com
deficiência, já que tal deficiência, ao irromper na vida, gera um desafio profundo e
inesperado e transtorna os equilíbrios, os desejos, as expectativas. (...) Merecem grande
admiração as famílias que aceitam, com amor, a prova difícil dum filho deficiente. Dão à
Igreja e à sociedade um valioso testemunho de fidelidade ao dom da vida. A família
poderá descobrir, juntamente com a comunidade cristã, novos gestos e linguagens, formas
de compreensão e identidade, no percurso de acolhimento e cuidado do mistério da
fragilidade. As pessoas com deficiência são, para a família, um dom e uma oportunidade
para crescer no amor, na ajuda recíproca e na unidade. (...) A família que aceita, com os
olhos da fé, a presença de pessoas com deficiência poderá reconhecer e garantir a
qualidade e o valor de cada vida, com as suas necessidades, os seus direitos e as suas
oportunidades. Tal família providenciará assistência e cuidados e promoverá companhia
e carinho em cada fase da vida».[33] Quero sublinhar que a atenção prestada tanto aos
migrantes como às pessoas com deficiência é um sinal do Espírito. Pois ambas as
situações são paradigmáticas: põem especialmente em questão o modo como se vive,
hoje, a lógica do acolhimento misericordioso e da integração das pessoas frágeis.
48. «A maioria das famílias respeita os idosos, rodeia-os de carinho e considera-os uma
bênção. Um agradecimento especial deve ser dirigido às associações e movimentos
familiares que trabalham a favor dos idosos, sob o aspecto espiritual e social (...). Nas
sociedades altamente industrializadas, onde o seu número tende a aumentar enquanto
diminui a taxa de natalidade, os idosos correm o risco de ser vistos como um peso. Por
outro lado, os cuidados que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes
queridos».[34] «A valorização da fase conclusiva da vida é, hoje, ainda mais necessária,
porque na sociedade actual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o momento da
passagem. Às vezes, a fragilidade e dependência do idoso são iniquamente exploradas
por mero proveito económico. Muitas famílias ensinam-nos que é possível enfrentar os
últimos anos da vida, valorizando o sentido de realização e integração de toda a existência
no mistério pascal. Um grande número de idosos é acolhido em estruturas da Igreja, onde
podem viver num ambiente sereno e familiar a nível material e espiritual. A eutanásia e
o suicídio assistido são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A sua prática
é legal em muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais
práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros idosos e
doentes».[35]
49. Quero assinalar a situação das famílias caídas na miséria, penalizadas de tantas
maneiras, onde as limitações da vida se fazem sentir de forma lancinante. Se todos têm
dificuldades, estas, numa casa muito pobre, tornam-se mais duras.[36] Por exemplo, se
uma mulher deve criar o seu filho sozinha, devido a uma separação ou por outras causas,
e tem de ir trabalhar sem a possibilidade de o deixar com outra pessoa, o filho cresce num
abandono que o expõe a todos os tipos de risco e fica comprometido o seu
amadurecimento pessoal. Nas situações difíceis em que vivem as pessoas mais
necessitadas, a Igreja deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar,
evitando impor-lhes um conjunto de normas como se fossem uma rocha, tendo como
resultado fazê-las sentir-se julgadas e abandonadas precisamente por aquela Mãe que é
chamada a levar-lhes a misericórdia de Deus. Assim, em vez de oferecer a força sanadora
da graça e da luz do Evangelho, alguns querem «doutrinar» o Evangelho, transformá-lo
em «pedras mortas para as jogar contra os outros».[37]
Alguns desafios
50. As respostas recebidas nas duas consultações, efectuadas no caminho sinodal,
mencionaram as mais diversas situações que colocam novos desafios. Além das situações
já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que acaba dificultada porque, entre
outras causas, os pais chegam a casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas
famílias, já não há sequer o hábito de comer em juntos, e cresce uma grande variedade de
ofertas de distracção, para além da dependência da televisão. Isto torna difícil a
transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente
padecem duma enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por prevenir
problemas futuros do que por compartilhar o presente. Isto, que é uma questão cultural,
vê-se agravado por um futuro profissional incerto, pela insegurança económica ou pelo
medo quanto ao futuro dos filhos.
51. Mencionou-se também a toxicodependência como um dos flagelos do nosso tempo
que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las. Algo semelhante acontece
com o alcoolismo, os jogos de azar e outras dependências. A família poderia ser o lugar
da prevenção e das boas regras, mas a sociedade e a política não chegam a perceber que
uma família em risco «perde a capacidade de reacção para ajudar os seus membros (...).
Observamos as graves consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos
desenraizados, idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens
desorientados e sem regras». [38] Como apontaram os bispos do México, há tristes
situações de violência familiar que são terreno fértil para novas formas de agressividade
social, porque «as relações familiares explicam também a predisposição para uma
personalidade violenta. As famílias que influem nesta direcção são aquelas em que há
uma comunicação deficiente; aquelas em que predominam as atitudes defensivas e os
seus membros não se apoiam entre si; onde não há actividades familiares que favoreçam
a participação; as famílias onde as relações entre os pais costumam ser conflituosas e
violentas, e as relações pais-filhos se caracterizam por atitudes hostis. A violência no seio
da família é escola de ressentimento e ódio nas relações humanas básicas».[39]
52. Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural
fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade. Antes pelo contrário,
prejudica o amadurecimento das pessoas, o cultivo dos valores comunitários e o
desenvolvimento ético das cidades e das aldeias. Já não se adverte claramente que só a
união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social
plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Devemos
reconhecer a grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa
regra de vida, mas as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não
podem ser simplistamente equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou
fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem se preocupa
hoje com fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que os ameaçam,
acompanhá-los no seu papel educativo, incentivar a estabilidade da união conjugal?
53. «Nalgumas sociedades, vigora ainda a prática da poligamia; noutros contextos,
permanece a prática dos matrimónios combinados. (...) Em muitos contextos, e não
apenas ocidentais, está a difundir-se largamente a prática da convivência que precede o
matrimónio e também a prática de convivências não orientadas para assumir a forma dum
vínculo institucional».[40] Em vários países, a legislação facilita o avanço de várias
alternativas, de modo que um matrimónio com as características de exclusividade,
indissolubilidade e abertura à vida acaba por aparecer como mais uma proposta antiquada
entre muitas outras. Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família,
que tende a adoptar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da autonomia
da vontade. Embora seja legítimo e justo rejeitar velhas formas de família «tradicional»,
caracterizadas pelo autoritarismo e inclusive pela violência, todavia isso não deveria levar
ao desprezo do matrimónio, mas à redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua
renovação. A força da família «reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar
a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do
amor».[41]
54. Neste relance sobre a realidade, desejo salientar que, apesar das melhorias notáveis
registadas no reconhecimento dos direitos da mulher e na sua participação no espaço
público, ainda há muito que avançar nalguns países. Não se acabou ainda de erradicar
costumes inaceitáveis; destaco a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as
mulheres, os maus-tratos familiares e várias formas de escravidão, que não constituem
um sinal de força masculina, mas uma covarde degradação. A violência verbal, física e
sexual, perpetrada contra as mulheres nalguns casais, contradiz a própria natureza da
união conjugal. Penso na grave mutilação genital da mulher nalgumas culturas, mas
também na desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares onde as
decisões são tomadas. A história carrega os vestígios dos excessos das culturas
patriarcais, onde a mulher era considerada um ser de segunda classe, mas recordemos
também o «aluguer de ventres» ou «a instrumentalização e comercialização do corpo
feminino na cultura mediática contemporânea».[42]Alguns consideram que muitos dos
problemas actuais ocorreram a partir da emancipação da mulher. Mas este argumento não
é válido, «é falso, não é verdade! Trata-se de uma forma de machismo».[43] A idêntica
dignidade entre o homem e a mulher impele a alegrar-nos com a superação de velhas
formas de discriminação e o desenvolvimento dum estilo de reciprocidade dentro das
famílias. Se aparecem formas de feminismo que não podemos considerar adequadas, de
igual modo admiramos a obra do Espírito no reconhecimento mais claro da dignidade da
mulher e dos seus direitos.
55. O homem «desempenha um papel igualmente decisivo na vida da família,
especialmente na protecção e sustentamento da esposa e dos filhos. (...) Muitos homens
estão conscientes da importância do seu papel na família e vivem-no com as qualidades
peculiares da índole masculina. A ausência do pai penaliza gravemente a vida familiar, a
educação dos filhos e a sua integração na sociedade. Tal ausência pode ser física, afectiva,
cognitiva e espiritual. Esta carência priva os filhos dum modelo adequado do
comportamento paterno».[44]
56. Outro desafio surge de várias formas duma ideologia genericamente chamada gender,
que «nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade
sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a
projectos educativos e directrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e
uma intimidade afectiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre
homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que
também muda com o tempo».[45] Preocupa o facto de algumas ideologias deste tipo, que
pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-
se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso
não esquecer que «sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-
se distinguir, mas não separar».[46]Por outro lado, «a revolução biotecnológica no campo
da procriação humana introduziu a possibilidade de manipular o acto generativo,
tornando-o independente da relação sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana
bem como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e
decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos
casais».[47]Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida,
e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da
realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos
criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um
dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa,
antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.
57. Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se considerarem
perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam para diante embora caiam
muitas vezes ao longo do caminho. Partindo das reflexões sinodais, não se chega a um
estereótipo da família ideal, mas um interpelante mosaico formado por muitas realidades
diferentes, cheias de alegrias, dramas e sonhos. As realidades que nos preocupam, são
desafios. Não caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamentações autodefensivas,
em vez de suscitar uma criatividade missionária. Em todas as situações, «a Igreja sente a
necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. (...) Os grandes valores do
matrimónio e da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência
humana».[48]Se constatamos muitas dificuldades, estas são – como disseram os bispos
da Colômbia – um apelo para «libertar em nós as energias da esperança, traduzindo-as
em sonhos proféticos, acções transformadoras e imaginação da caridade».[49]
Gaudete et exsultate (2018)

Capítulo II
DOIS INIMIGOS SUBTIS DA SANTIDADE
35. Neste contexto, desejo chamar a atenção para duas falsificações da santidade que
poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o pelagianismo. São duas heresias que surgiram
nos primeiros séculos do cristianismo, mas continuam a ser de alarmante atualidade.
Ainda hoje os corações de muitos cristãos, talvez inconscientemente, deixam-se seduzir
por estas propostas enganadoras. Nelas aparece expresso um imanentismo
antropocêntrico, disfarçado de verdade católica.[33] Vejamos estas duas formas de
segurança doutrinária ou disciplinar, que dão origem «a um elitismo narcisista e
autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez
de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos,
nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente».[34]
O gnosticismo atual
36. O gnosticismo supõe «uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma
determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente
confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência
da sua própria razão ou dos seus sentimentos».[35]
Uma mente sem Deus e sem carne
37. Graças a Deus, ao longo da história da Igreja, ficou bem claro que aquilo que mede a
perfeição das pessoas é o seu grau de caridade, e não a quantidade de dados e
conhecimentos que possam acumular. Os «gnósticos», baralhados neste ponto, julgam os
outros segundo conseguem, ou não, compreender a profundidade de certas doutrinas.
Concebem uma mente sem encarnação, incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos
outros, engessada numa enciclopédia de abstrações. Ao desencarnar o mistério, em última
análise preferem «um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo».[36]
38. Em suma, trata-se duma vaidosa superficialidade: muito movimento à superfície da
mente, mas não se move nem se comove a profundidade do pensamento. No entanto,
consegue subjugar alguns com o seu fascínio enganador, porque o equilíbrio gnóstico é
formal e supostamente asséptico, podendo assumir o aspeto duma certa harmonia ou
duma ordem que tudo abrange.
39. Mas atenção! Não estou a referir-me aos racionalistas inimigos da fé cristã. Isto pode
acontecer dentro da Igreja, tanto nos leigos das paróquias como naqueles que ensinam
filosofia ou teologia em centros de formação. Com efeito, também é típico dos gnósticos
crer que eles, com as suas explicações, podem tornar perfeitamente compreensível toda a
fé e todo o Evangelho. Absolutizam as suas teorias e obrigam os outros a submeter-se aos
raciocínios que eles usam. Uma coisa é o uso saudável e humilde da razão para refletir
sobre o ensinamento teológico e moral do Evangelho, outra é pretender reduzir o
ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar tudo[37].
Uma doutrina sem mistério
40. O gnosticismo é uma das piores ideologias, pois, ao mesmo tempo que exalta
indevidamente o conhecimento ou uma determinada experiência, considera que a sua
própria visão da realidade seja a perfeição. Assim, talvez sem se aperceber, esta ideologia
autoalimenta-se e torna-se ainda mais cega. Por vezes, torna-se particularmente
enganadora, quando se disfarça de espiritualidade desencarnada. Com efeito, o
gnosticismo, «por sua natureza, quer domesticar o mistério»,[38] tanto o mistério de Deus
e da sua graça, como o mistério da vida dos outros.
41. Quando alguém tem resposta para todas as perguntas, demonstra que não está no bom
caminho e é possível que seja um falso profeta, que usa a religião para seu benefício, ao
serviço das próprias lucubrações psicológicas e mentais. Deus supera-nos infinitamente,
é sempre uma surpresa e não somos nós que determinamos a circunstância histórica em
que O encontramos, já que não dependem de nós o tempo, nem o lugar, nem a modalidade
do encontro. Quem quer tudo claro e seguro, pretende dominar a transcendência de Deus.
42. Nem se pode pretender definir onde Deus não Se encontra, porque Ele está
misteriosamente presente na vida de toda a pessoa, na vida de cada um como Ele quer, e
não o podemos negar com as nossas supostas certezas. Mesmo quando a vida de alguém
tiver sido um desastre, mesmo que o vejamos destruído pelos vícios ou dependências,
Deus está presente na sua vida. Se nos deixarmos guiar mais pelo Espírito do que pelos
nossos raciocínios, podemos e devemos procurar o Senhor em cada vida humana. Isto faz
parte do mistério que as mentalidades gnósticas acabam por rejeitar, porque não o podem
controlar.
Os limites da razão
43. Só de forma muito pobre, chegamos a compreender a verdade que recebemos do
Senhor. E, ainda com maior dificuldade, conseguimos expressá-la. Por isso, não podemos
pretender que o nosso modo de a entender nos autorize a exercer um controlo rigoroso
sobre a vida dos outros. Quero lembrar que, na Igreja, convivem legitimamente diferentes
maneiras de interpretar muitos aspetos da doutrina e da vida cristã, que, na sua variedade,
«ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. [Certamente,] a quantos
sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá
parecer uma dispersão imperfeita».[39] Por isso mesmo, algumas correntes gnósticas
desprezaram a simplicidade tão concreta do Evangelho e tentaram substituir o Deus
trinitário e encarnado por uma Unidade superior onde desaparecia a rica multiplicidade
da nossa história.
44. Na realidade, a doutrina, ou melhor, a nossa compreensão e expressão dela, «não é
um sistema fechado, privado de dinâmicas próprias capazes de gerar perguntas, dúvidas,
questões (…); e as perguntas do nosso povo, as suas angústias, batalhas, sonhos e
preocupações possuem um valor hermenêutico que não podemos ignorar, se quisermos
deveras levar a sério o princípio da encarnação. As suas perguntas ajudam-nos a
questionar-nos, as suas questões interrogam-nos».[40]
45. Com frequência, verifica-se uma perigosa confusão: julgar que, por sabermos algo ou
podermos explicá-lo com uma certa lógica, já somos santos, perfeitos, melhores do que a
«massa ignorante». São João Paulo II advertia, a quantos na Igreja têm a possibilidade de
uma formação mais elevada, contra a tentação de cultivarem «um certo sentimento de
superioridade relativamente aos outros fiéis».[41] Na realidade, porém, aquilo que
julgamos saber sempre deveria ser uma motivação para responder melhor ao amor de
Deus, porque «se aprende para viver: teologia e santidade são um binómio
inseparável».[42]
46. São Francisco de Assis, ao ver que alguns dos seus discípulos ensinavam a doutrina,
quis evitar a tentação do gnosticismo. Então escreveu assim a Santo António de Lisboa:
«Apraz-me que interpreteis aos demais frades a sagrada teologia, contanto que este estudo
não apague neles o espírito da santa oração e devoção».[43] Reconhecia a tentação de
transformar a experiência cristã num conjunto de especulações mentais, que acabam por
nos afastar do frescor do Evangelho. São Boaventura, por sua vez, advertia que a
verdadeira sabedoria cristã não se deve desligar da misericórdia para com o próximo: «A
maior sabedoria que pode existir consiste em dispensar frutuosamente o que se possui e
que lhe foi dado precisamente para o distribuir (...). Por isso, como a misericórdia é amiga
da sabedoria, assim a avareza é sua inimiga».[44] «Há atividades, como as obras de
misericórdia e de piedade, que, unindo-se à contemplação, não a impedem, antes
favorecem-na».[45]
O pelagianismo atual
47. O gnosticismo deu lugar a outra heresia antiga, que está presente também hoje. Com
o passar do tempo, muitos começaram a reconhecer que não é o conhecimento que nos
torna melhores ou santos, mas a vida que levamos. O problema é que isto foi subtilmente
degenerando, de modo que o mesmo erro dos gnósticos foi simplesmente transformado,
mas não superado.
48. Com efeito, o poder que os gnósticos atribuíam à inteligência, alguns começaram a
atribuí-lo à vontade humana, ao esforço pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos e os
semipelagianos. Já não era a inteligência que ocupava o lugar do mistério e da graça, mas
a vontade. Esquecia-se que «isto não depende daquele que quer nem daquele que se esfoça
por alcançá-lo, mas de Deus que é misericordioso» (Rm 9, 16) e que Ele «nos amou
primeiro» (1 Jo 4, 19).
Uma vontade sem humildade
49. Quem se conforma a esta mentalidade pelagiana ou semipelagiana, embora fale da
graça de Deus com discursos edulcorados, «no fundo, só confia nas suas próprias forças
e sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser
irredutivelmente fiel a um certo estilo católico».[46] Quando alguns deles se dirigem aos
frágeis, dizendo-lhes que se pode tudo com a graça de Deus, basicamente costumam
transmitir a ideia de que tudo se pode com a vontade humana, como se esta fosse algo
puro, perfeito, omnipotente, a que se acrescenta a graça. Pretende-se ignorar que «nem
todos podem tudo»,[47] e que, nesta vida, as fragilidades humanas não são curadas,
completamente e duma vez por todas, pela graça.[48] Em todo o caso, como ensinava
Santo Agostinho, Deus convida-te a fazer o que podes e «a pedir o que não podes»;[49] ou
então a dizer humildemente ao Senhor: «dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que
quiserdes».[50]
50. No fundo, a falta dum reconhecimento sincero, pesaroso e orante dos nossos limites
é que impede a graça de atuar melhor em nós, pois não lhe deixa espaço para provocar
aquele bem possível que se integra num caminho sincero e real de crescimento.[51] A
graça, precisamente porque supõe a nossa natureza, não nos faz improvisamente super-
homens. Pretendê-lo seria confiar demasiado em nós próprios. Neste caso, por trás da
ortodoxia, as nossas atitudes podem não corresponder ao que afirmamos sobre a
necessidade da graça e, na prática, acabamos por confiar pouco nela. Com efeito, se não
reconhecemos a nossa realidade concreta e limitada, não poderemos ver os passos reais e
possíveis que o Senhor nos pede em cada momento, depois de nos ter atraído e tornado
idóneos com o seu dom. A graça atua historicamente e, em geral, toma-nos e transforma-
nos de forma progressiva.[52] Por isso, se recusarmos esta modalidade histórica e
progressiva, de facto podemos chegar a negá-la e bloqueá-la, embora a exaltemos com as
nossas palavras.
51. Quando Deus Se dirige a Abraão, diz-lhe: «Eu sou o Deus supremo. Anda na minha
presença e sê perfeito» (Gn 17, 1). Para poder ser perfeitos, como é do seu agrado,
precisamos de viver humildemente na presença d’Ele, envolvidos pela sua glória;
necessitamos de andar em união com Ele, reconhecendo o seu amor constante na nossa
vida. Há que perder o medo desta presença que só nos pode fazer bem. É o Pai que nos
deu vida e nos ama tanto. Uma vez que O aceitamos e deixamos de pensar a nossa
existência sem Ele, desaparece a angústia da solidão (cf. Sal 139/138, 7). E, se deixarmos
de pôr Deus à distância e vivermos na sua presença, poderemos permitir-Lhe que examine
os nossos corações para ver se seguem pelo reto caminho (cf. Sal 139/138, 23-24). Assim
conheceremos a vontade perfeita e agradável ao Senhor (cf. Rm 12, 1-2) e deixaremos
que Ele nos molde como um oleiro (cf. Is 29, 16). Dissemos tantas vezes que Deus habita
em nós, mas é melhor dizer que nós habitamos n’Ele, que Ele nos possibilita viver na sua
luz e no seu amor. Ele é o nosso templo: «Uma só coisa (…) ardentemente desejo: é
habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida» (Sal 27/26, 4). «Um dia em teus
átrios vale por mil» (Sal 84/83, 11). N’Ele, somos santificados.
Um ensinamento da Igreja frequentemente esquecido
52. A Igreja ensinou repetidamente que não somos justificados pelas nossas obras ou
pelos nossos esforços, mas pela graça do Senhor que toma a iniciativa. Os Padres da
Igreja, já antes de Santo Agostinho, expressavam com clareza esta convicção primária.
Dizia São João Crisóstomo que Deus derrama em nós a própria fonte de todos os dons,
«antes de termos entrado no combate».[53] São Basílio Magno observava que o fiel se
gloria apenas em Deus, porque «reconhece estar privado da verdadeira justiça e que é
justificado somente por meio da fé em Cristo».[54]
53. O II Sínodo de Orange ensinou, com firme autoridade, que nenhum ser humano pode
exigir, merecer ou comprar o dom da graça divina, e que toda a cooperação com ela é
dom prévio da mesma graça: «até o desejo de ser puro se realiza em nós por infusão do
Espírito Santo e com sua ação sobre nós».[55] Sucessivamente o Concílio de Trento,
mesmo quando destacou a importância da nossa cooperação para o crescimento espiritual,
reafirmou tal ensinamento dogmático: «Afirma-se que somos justificados gratuitamente,
porque nada do que precede a justificação, quer a fé, quer as obras, merece a própria graça
da justificação; porque, se é graça, então não é pelas obras, caso contrário, a graça já não
seria graça (Rm 11, 6)».[56]
54. Também o Catecismo da Igreja Católica nos lembra que o dom da graça «ultrapassa
as capacidades da inteligência e as forças da vontade humana»[57] e que, «em relação a
Deus, não há, da parte do homem, mérito no sentido dum direito estrito. Entre Ele e nós,
a desigualdade é sem medida».[58] A sua amizade supera-nos infinitamente, não pode ser
comprada por nós com as nossas obras e só pode ser um dom da sua iniciativa de amor.
Isto convida-nos a viver com jubilosa gratidão por este dom que nunca mereceremos, uma
vez que, «depois duma pessoa já possuir a graça, não pode a graça já recebida cair sob a
alçada do mérito».[59] Os santos evitam de pôr a confiança nas suas ações: «Ao anoitecer
desta vida, aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que
conteis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas aos vossos olhos».[60]
55. Esta é uma das grandes convicções definitivamente adquiridas pela Igreja e está tão
claramente expressa na Palavra de Deus que fica fora de qualquer discussão. Esta verdade,
tal como o supremo mandamento do amor, deveria caraterizar o nosso estilo de vida,
porque bebe do coração do Evangelho e convida-nos não só a aceitá-la com a mente, mas
também a transformá-la numa alegria contagiosa. Mas não poderemos celebrar com
gratidão o dom gratuito da amizade com o Senhor, se não reconhecermos que a própria
existência terrena e as nossas capacidades naturais são um dom. Precisamos de
«reconhecer alegremente que a nossa realidade é fruto dum dom, e aceitar também a nossa
liberdade como graça. Isto é difícil hoje, num mundo que julga possuir algo por si mesmo,
fruto da sua própria originalidade e liberdade».[61]
56. Só a partir do dom de Deus, livremente acolhido e humildemente recebido, é que
podemos cooperar com os nossos esforços para nos deixarmos transformar cada vez
mais.[62] A primeira coisa é pertencer a Deus. Trata-se de nos oferecermos a Ele que nos
antecipa, de Lhe oferecermos as nossas capacidades, o nosso esforço, a nossa luta contra
o mal e a nossa criatividade, para que o seu dom gratuito cresça e se desenvolva em nós:
«por isso, vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos
como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus» (Rm 12, 1). Aliás, a Igreja sempre ensinou
que só a caridade torna possível o crescimento na vida da graça, porque, «se não tiver
amor, nada sou» (1 Cor 13, 2).
Os novos pelagianos
57. Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas
próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz
numa autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-
se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de
exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do
prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas
dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial. É nisto que alguns cristãos gastam
as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem guiar pelo Espírito no caminho do
amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os
afastados nessas imensas multidões sedentas de Cristo.[63]
58. Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se numa peça
de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos
dão excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos.
Assim se habituam a reduzir e manietar o Evangelho, despojando-o da sua simplicidade
cativante e do seu sabor. É talvez uma forma subtil de pelagianismo, porque parece
submeter a vida da graça a certas estruturas humanas. Isto diz respeito a grupos,
movimentos e comunidades, e explica por que tantas vezes começam com uma vida
intensa no Espírito, mas depressa acabam fossilizados... ou corruptos.
59. Sem nos darmos conta, pelo facto de pensar que tudo depende do esforço humano
canalizado através de normas e estruturas eclesiais, complicamos o Evangelho e tornamo-
nos escravos dum esquema que deixa poucas aberturas para que a graça atue. São Tomás
de Aquino lembrava-nos que se deve exigir, com moderação, os preceitos acrescentados
ao Evangelho pela Igreja, «para não tornar a vida pesada aos fiéis, [porque assim] se
transformaria a nossa religião numa escravidão».[64]
O resumo da Lei
60. Para evitar isso, é bom recordar frequentemente que existe uma hierarquia das
virtudes, que nos convida a buscar o essencial. A primazia pertence às virtudes teologais,
que têm Deus como objeto e motivo. E, no centro, está a caridade. São Paulo diz que o
que conta verdadeiramente é «a fé que atua pelo amor» (Gal 5, 6). Somos chamados a
cuidar solicitamente da caridade: «quem ama o próximo cumpre plenamente a Lei. (...)
Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm 13, 8.10). «É que toda a Lei
se resume neste único preceito: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”» (Gal 5, 14).
61. Por outras palavras, no meio da densa selva de preceitos e prescrições, Jesus abre uma
brecha que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do irmão. Não nos dá mais duas
fórmulas ou dois preceitos; entrega-nos dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se
reflete em muitos, porque em cada irmão, especialmente no mais pequeno, frágil, inerme
e necessitado, está presente a própria imagem de Deus. De facto, será com os descartados
desta humanidade vulnerável que, no fim dos tempos, o Senhor plasmará a sua última
obra de arte. Pois, «o que é que resta? O que é que tem valor na vida? Quais são as riquezas
que não desaparecem? Seguramente duas: o Senhor e o próximo. Estas duas riquezas não
desaparecem».[65]
62. Que o Senhor liberte a Igreja das novas formas de gnosticismo e pelagianismo que a
complicam e detêm no seu caminho para a santidade! Estes desvios manifestam-se de
formas diferentes, segundo o temperamento e as caraterísticas próprias. Por isso, exorto
cada um a questionar-se e a discernir diante de Deus a maneira como possam estar a
manifestar-se na sua vida.
Christus vivit (2019)

Capítulo III
VÓS SOIS O AGORA DE DEUS
64. Depois de observar a Palavra de Deus, não podemos limitar-nos a dizer que os jovens
são o futuro do mundo: são o presente, estão a enriquecê-lo com a sua contribuição. Um
jovem já não é uma criança, encontra-se num momento da vida em que começa a assumir
várias responsabilidades, participando com os adultos no desenvolvimento da família, da
sociedade, da Igreja. Mas os tempos mudam, colocando-se a questão: Como são os jovens
hoje? Que sucede agora aos jovens?
Em positivo
65. O Sínodo reconheceu que os fiéis da Igreja nem sempre têm o comportamento de
Jesus. Em vez de nos dispormos a escutá-los profundamente, «prevalece a tendência de
fornecer respostas pré-fabricadas e receitas prontas, sem deixar assomar as perguntas
juvenis na sua novidade e captar a sua interpelação».[24]Mas, quando a Igreja abandona
esquemas rígidos e se abre à escuta pronta e atenta dos jovens, esta empatia enriquece-a,
porque «permite que os jovens deem a sua colaboração à comunidade, ajudando-a a
individuar novas sensibilidades e colocar-se perguntas inéditas».[25]
66. Hoje nós, adultos, corremos o risco de fazer uma lista de desastres, de defeitos da
juventude atual. Alguns poderão aplaudir-nos, porque parecemos especialistas em
encontrar aspetos negativos e perigos. Mas, qual seria o resultado deste comportamento?
Uma distância sempre maior, menos proximidade, menos ajuda mútua.
67. A clarividência de quem foi chamado a ser pai, pastor ou guia dos jovens consiste em
encontrar a pequena chama que continua a arder, a cana que parece quebrar-se (cf. Is 42,
3) mas ainda não partiu. É a capacidade de individuar percursos onde outros só veem
muros, é saber reconhecer possibilidades onde outros só veem perigos. Assim é o olhar
de Deus Pai, capaz de valorizar e nutrir os germes de bem semeados no coração dos
jovens. Por isso, o coração de cada jovem deve ser considerado «terra santa», diante da
qual nos devemos «descalçar» para poder aproximar-nos e penetrar no Mistério.
Muitas juventudes
68. Poderíamos procurar descrever as caraterísticas dos jovens de hoje, mas, antes de mais
nada, quero registar uma observação dos Padres Sinodais: a própria «composição do
Sínodo tornou visível a presença e a colaboração das diferentes regiões do mundo,
evidenciando a beleza de ser Igreja universal. Embora num contexto de crescente
globalização, os Padres Sinodais pediram para salientar as múltiplas diferenças entre
contextos e culturas, inclusive dentro do mesmo país. Existe uma pluralidade de mundos
juvenis, a ponto de se tender, nalguns países, a usar o termo “juventude” no plural. Além
disso, a faixa etária considerada pelo presente Sínodo (16-29 anos) não representa um
todo homogéneo, mas compõe-se de grupos que vivem situações peculiares».[26]
69. Partindo do ponto de vista demográfico, alguns países têm muitos jovens, enquanto
outros possuem uma taxa de natalidade muito baixa. «Outra diferença deriva da história,
que torna distintos os países e continentes de antiga tradição cristã, cuja cultura é
portadora duma memória que não deve ser perdida, dos países e continentes marcados
por outras tradições religiosas e onde o cristianismo tem uma presença minoritária e, por
vezes, recente. Além disso, noutros territórios, as comunidades cristãs e os jovens que
fazem parte delas são objeto de perseguição».[27]Deve-se distinguir também os jovens
«que têm acesso às crescentes oportunidades oferecidas pela globalização de quantos, ao
contrário, vivem à margem da sociedade ou no mundo rural suportando os efeitos de
formas de exclusão e descarte».[28]
70. Existem muitas outras diferenças, que seria complexo referir aqui em detalhe. Por
isso, não me parece oportuno demorar-me a oferecer uma análise exaustiva dos jovens no
mundo atual, de como vivem e do que lhes sucede. Mas, como também não posso deixar
de observar a realidade, assinalarei brevemente algumas contribuições que chegaram
antes do Sínodo e outras que pude recolher durante o mesmo.
Algumas coisas que sucedem aos jovens
71. A juventude não é algo que se possa analisar de forma abstrata. Na realidade, «a
juventude» não existe; o que há são jovens com as suas vidas concretas. No mundo atual,
cheio de progresso, muitas destas vidas estão sujeitas ao sofrimento e à manipulação.
Jovens dum mundo em crise
72. Os Padres Sinodais assinalaram, com tristeza, que «muitos jovens vivem em contextos
de guerra e padecem a violência numa variedade incontável de formas: raptos, extorsões,
criminalidade organizada, tráfico de seres humanos, escravidão e exploração sexual,
estupros de guerra, etc. Outros jovens, por causa da sua fé, têm dificuldade em encontrar
um lugar nas suas sociedades e sofrem vários tipos de perseguição, que vai até à morte.
Numerosos são os jovens que, por constrangimento ou falta de alternativas, vivem
perpetrando crimes e violências: crianças-soldado, gangues armados e criminosos, tráfico
de droga, terrorismo, etc. Esta violência destroça muitas vidas jovens. Abusos e
dependências, bem como violência e extravio contam-se entre as razões que levam os
jovens à prisão, com incidência particular nalguns grupos étnicos e sociais».[29]
73. Muitos jovens são mentalizados, instrumentalizados e utilizados como carne de
canhão ou como força de choque para destruir, intimidar ou ridicularizar outros. E o pior
é que muitos se transformam em sujeitos individualistas, inimigos e difidentes para com
todos, tornando-se assim presa fácil de propostas desumanizadoras e dos planos
destrutivos elaborados por grupos políticos ou poderes económicos.
74. «Ainda mais numerosos no mundo são os jovens que padecem formas de
marginalização e exclusão social, por razões religiosas, étnicas ou económicas.
Lembramos a difícil situação de adolescentes e jovens que ficam grávidas e a praga do
aborto, bem como a propagação do SIDA/HIV, as várias formas de dependência (drogas,
jogos de azar, pornografia, etc.) e a situação dos meninos e adolescentes de rua, que
carecem de casa, família e recursos económicos».[30]E quando se trata de mulheres, estas
situações de marginalização tornam-se duplamente dolorosas e difíceis.
75. Não podemos ser uma Igreja que não chora à vista destes dramas dos seus filhos
jovens. Não devemos jamais habituar-nos a isto, porque, quem não sabe chorar, não é
mãe. Queremos chorar para que a própria sociedade seja mais mãe, a fim de que, em vez
de matar, aprenda a dar à luz, de modo que seja promessa de vida. Choramos ao recordar
os jovens que morreram por causa da miséria e da violência e pedimos à sociedade que
aprenda a ser uma mãe solidária. Esta dor não passa, acompanha-nos, porque não se pode
esconder a realidade. A pior coisa que podemos fazer é aplicar a receita do espírito
mundano, que consiste em anestesiar os jovens com outras notícias, com outras
distrações, com banalidades.
76. Talvez «aqueles de nós que levamos uma vida sem grandes necessidades não
saibamos chorar. Certas realidades da vida só se veem com os olhos limpos pelas
lágrimas. Convido cada um de vós a perguntar-se: Aprendi eu a chorar, quando vejo uma
criança faminta, uma criança drogada pela estrada, uma criança sem casa, uma criança
abandonada, uma criança abusada, uma criança usada como escravo pela sociedade? Ou
o meu não passa do pranto caprichoso de quem chora porque quereria ter mais alguma
coisa?»[31]Procura aprender a chorar pelos jovens que estão pior do que tu. A
misericórdia e a compaixão também se manifestam chorando. Se o pranto não te vem,
pede ao Senhor que te conceda derramar lágrimas pelo sofrimento dos outros. Quando
souberes chorar, então serás capaz de fazer algo, do fundo do coração, pelos outros.
77. Às vezes o sofrimento dalguns jovens é lacerante, um sofrimento que não se pode
expressar com palavras, um sofrimento que nos fere como um soco. Estes jovens só
podem dizer a Deus que sofrem muito, que lhes custa imenso continuar para diante, que
já não acreditam em ninguém. Mas, neste grito desolador, fazem-se ouvir as palavras de
Jesus: «Felizes os que choram, porque serão consolados» (Mt 5, 4). Há jovens que
conseguiram abrir caminho na vida, porque lhes chegou esta promessa divina. Junto dum
jovem atribulado, possa haver sempre uma comunidade cristã para fazer ressoar aquelas
palavras com gestos, abraços e ajuda concreta!
78. É verdade que os poderosos prestam alguma ajuda, mas muitas vezes por um alto
preço. Em muitos países pobres, a ajuda económica dalguns países mais ricos ou dalguns
organismos internacionais costuma estar vinculada à aceitação de propostas ocidentais
relativas à sexualidade, ao matrimónio, à vida ou à justiça social. Esta colonização
ideológica prejudica de forma especial os jovens. Ao mesmo tempo, vemos como certa
publicidade ensina as pessoas a estar sempre insatisfeitas, contribuindo assim para a
cultura do descarte, onde os próprios jovens acabam transformados em material
descartável.
79. A cultura atual promove um modelo de pessoa estreitamente associado à imagem do
jovem. Sente-se belo quem se apresenta jovem, quem realiza tratamentos para cancelar
as marcas do tempo. Os corpos jovens são constantemente usados na publicidade
comercial. O modelo de beleza é um modelo juvenil, mas estejamos atentos porque isto
não é um elogio para os jovens. Significa apenas que os adultos querem roubar a
juventude para si mesmos, e não que respeitam, amam e cuidam dos jovens.
80. Alguns jovens «sentem as tradições familiares como opressivas e abandonam-nas sob
a pressão duma cultura globalizada que às vezes os deixa sem pontos de referência.
Entretanto, noutras partes do mundo, entre jovens e adultos não há um verdadeiro e
próprio conflito geracional, mas um alheamento recíproco. Por vezes, os adultos não
procuram ou não conseguem transmitir os valores basilares da existência ou então
assumem estilos próprios dos jovens, transtornando o relacionamento entre as gerações.
Assim, a relação entre jovens e adultos corre o risco de se deter no plano afetivo, sem
tocar a dimensão educativa e cultural».[32]Quanto dano faz isto aos jovens, embora
alguns não se deem conta! Os próprios jovens nos fizeram notar que isto dificulta imenso
a transmissão da fé, «nalguns países, onde não há liberdade de expressão vendo-se
impedidos de participar na vida da Igreja».[33]
Desejos, feridas e buscas
81. Os jovens reconhecem que o corpo e a sexualidade são essenciais para a sua vida e
para o crescimento da sua identidade. Mas, num mundo que destaca excessivamente a
sexualidade, é difícil manter uma boa relação com o próprio corpo e viver serenamente
as relações afetivas. Por esta e outras razões, a moral sexual é frequentemente «causa de
incompreensão e alheamento da Igreja, pois é sentida como um espaço de julgamento e
condenação». Ao mesmo tempo, os jovens expressam de maneira explícita o desejo de se
confrontar sobre «as questões relativas à diferença entre identidade masculina e feminina,
à reciprocidade entre homens e mulheres, e à homossexualidade».[34]
82. No nosso tempo, «os progressos da ciência e das tecnologias biomédicas incidem
fortemente na perceção do corpo, induzindo a pensar que se pode modificar sem limites.
A capacidade de intervir no DNA, a possibilidade de inserir elementos artificiais no
organismo (cyborg) e o desenvolvimento das neurociências constituem um grande
recurso, mas ao mesmo tempo levantam questões antropológicas e éticas».[35]Podem
levar-nos a esquecer que a vida é um dom, que somos seres criados e limitados, podendo
facilmente ser instrumentalizados por quem detém o poder tecnológico.[36] «Além disso,
em alguns contextos juvenis, difunde-se a atração por comportamentos de risco como
instrumento para se explorar a si mesmo, procurar emoções fortes e obter
reconhecimento. (…) Estes fenómenos, a que estão expostas as novas gerações,
constituem um obstáculo para o amadurecimento sereno».[37]
83. Nos jovens, encontramos também, gravados na alma, os golpes recebidos, os
fracassos, as recordações tristes. Muitas vezes «são as feridas das derrotas da sua própria
história, dos desejos frustrados, das discriminações e injustiças sofridas, de não se ter
sentido amado ou reconhecido». Além disso, temos «as feridas morais, o peso dos
próprios erros, o sentido de culpa por ter errado».[38]Jesus faz-Se presente nestas cruzes
dos jovens, para lhes oferecer a sua amizade, o seu alívio, a sua companhia sanadora, e a
Igreja quer ser instrumento d’Ele neste percurso rumo à cura interior e à paz do coração.
84. Nalguns jovens, reconhecemos um desejo de Deus, embora não possua todos os
delineamentos do Deus revelado. Noutros, podemos vislumbrar um sonho de
fraternidade, o que já não é pouco. Em muitos, existe um desejo real de desenvolver as
capacidades de que são dotados para oferecerem algo ao mundo. Nalguns, vemos uma
sensibilidade artística especial, ou uma busca de harmonia com a natureza. Noutros, pode
haver uma grande necessidade de comunicação. Em muitos deles, encontramos o desejo
profundo duma vida diferente. Trata-se de verdadeiros pontos de partida, energias
interiores que aguardam, disponíveis, uma palavra de estímulo, luz e encorajamento.
85. O Sínodo tratou de maneira especial três temas de grande importância, cujas
conclusões desejo acolher textualmente, embora nos exijam ainda avançar numa análise
mais ampla e desenvolver uma capacidade de resposta mais adequada e eficaz.
O ambiente digital
86. «O ambiente digital carateriza o mundo atual. Largas faixas da humanidade vivem
mergulhadas nele de maneira ordinária e contínua. Já não se trata apenas de “usar”
instrumentos de comunicação, mas de viver numa cultura amplamente digitalizada que
tem impactos muito profundos na noção de tempo e espaço, na perceção de si mesmo,
dos outros e do mundo, na maneira de comunicar, aprender, obter informações, entrar em
relação com os outros. Uma abordagem da realidade, que tende a privilegiar a imagem
relativamente à escuta e à leitura, influencia o modo de aprender e o desenvolvimento do
sentido crítico».[39]
87. A internet e as redes sociais geraram uma nova maneira de comunicar e criar vínculos,
sendo «uma “praça” onde os jovens passam muito tempo e se encontram facilmente,
embora nem todos tenham acesso igual, particularmente nalgumas regiões do mundo. Em
todo o caso, constituem uma oportunidade extraordinária de diálogo, encontro e
intercâmbio entre as pessoas, bem como de acesso à informação e ao saber. Além disso,
o mundo digital é um contexto de participação sociopolítica e de cidadania ativa, podendo
facilitar a circulação duma informação independente capaz de tutelar eficazmente as
pessoas mais vulneráveis, revelando as violações dos seus direitos. Em muitos países,
a web e as redes sociais já constituem um lugar indispensável para se alcançar e envolver
os jovens nas próprias iniciativas e atividades pastorais».[40]
88. Mas, para entender este fenómeno na sua totalidade, é preciso reconhecer que possui
– como toda a realidade humana – limites e deficiências. Não é salutar confundir a
comunicação com o simples contacto virtual. De facto, «o ambiente digital é também um
território de solidão, manipulação, exploração e violência, até ao caso extremo da dark
web. Os meios de comunicação digitais podem expor ao risco de dependência, isolamento
e perda progressiva de contacto com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento
de relações interpessoais autênticas. Difundem-se novas formas de violência através das
redes sociais, como o cyberbullying; a web é também um canal de difusão da pornografia
e de exploração de pessoas para fins sexuais ou através do jogo de azar».[41]
89. Não se deve esquecer que «há interesses económicos gigantescos que operam no
mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas,
criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. O
funcionamento de muitas plataformas acaba frequentemente por favorecer o encontro
entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o confronto entre as diferenças. Estes
circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando
preconceitos e ódio. A proliferação das notícias falsas é expressão duma cultura que
perdeu o sentido da verdade e sujeita os factos a interesses particulares. A reputação das
pessoas é comprometida através de processos sumários on-line. O fenómeno diz respeito
também à Igreja e seus pastores».[42]
90. Num documento preparado por trezentos jovens de todo o mundo antes do Sínodo,
indicava-se que «as relações on-line podem tornar-se desumanas. Os espaços digitais não
nos deixam ver a vulnerabilidade do outro e dificultam a reflexão pessoal. Problemas
como a pornografia distorcem a perceção que o jovem tem da sexualidade humana. A
tecnologia usada desta maneira cria uma realidade paralela ilusória que ignora a dignidade
humana».[43]A imersão no mundo virtual favoreceu uma espécie de «migração digital»,
isto é, um distanciamento da família, dos valores culturais e religiosos, que leva muitas
pessoas para um mundo de solidão e autoinvenção chegando ao ponto de sentir a falta de
raízes, embora fisicamente permaneçam no mesmo lugar. A vida nova e transbordante
dos jovens, que impele a buscar a afirmação da própria personalidade, enfrenta
atualmente um novo desafio: interagir com um mundo real e virtual no qual se entra
sozinho como num continente desconhecido. Os jovens de hoje são os primeiros a fazer
esta síntese entre o pessoal, o específico de cada cultura e o global. Mas isto requer que
eles consigam passar do contacto virtual a uma comunicação boa e saudável.
Os migrantes como paradigma do nosso tempo
91. Como não lembrar os inúmeros jovens diretamente envolvidos nas migrações? Os
fenómenos migratórios não representam uma emergência transitória, mas são estruturais.
«As migrações podem verificar-se dentro do mesmo país ou entre países diferentes. A
preocupação da Igreja visa, em particular, aqueles que fogem da guerra, da violência, da
perseguição política ou religiosa, dos desastres naturais – devidos também às alterações
climáticas – e da pobreza extrema: muitos deles são jovens. Em geral, andam à procura
de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam
criar as condições para que se realize».[44]Os migrantes lembram-nos «a condição
primordial da fé, ou seja, a de sermos “estrangeiros e peregrinos sobre a terra” (Heb 11,
13)».[45]
92. Outros migrantes são «atraídos pela cultura ocidental, nutrindo por vezes expetativas
irrealistas que os expõem a pesadas deceções. Traficantes sem escrúpulos,
frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos
migrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico
de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico, e tribulações indescritíveis. Há
que assinalar a particular vulnerabilidade dos migrantes menores não acompanhados, e a
situação daqueles que são forçados a passar muitos anos nos campos de refugiados ou
que permanecem bloqueados muito tempo nos países de trânsito, sem poderem continuar
os seus estudos nem expressar os seus talentos. Nalguns países de chegada, os fenómenos
migratórios suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para
fins políticos. Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em
si mesmos, a que é necessário reagir com decisão».[46]
93. «Os jovens que migram experimentam a separação do seu contexto de origem e,
muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura tem a ver
também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos e
empreendedores, e as famílias, particularmente quando migra um ou ambos os
progenitores, deixando os filhos no país de origem. A Igreja tem um papel importante
como referência para os jovens destas famílias divididas. Mas as histórias dos migrantes
são histórias também de encontro entre pessoas e entre culturas: para as comunidades e
as sociedades de chegada são uma oportunidade de enriquecimento e desenvolvimento
humano integral de todos. As iniciativas de hospitalidade, que têm como ponto de
referência a Igreja, desempenham um papel importante deste ponto de vista e podem
revitalizar as comunidades capazes de as praticar».[47]
94. «Graças à variada proveniência dos Padres [Sinodais], o Sínodo permitiu o encontro
de muitas perspetivas relativamente ao tema dos migrantes, sobretudo entre países de
partida e países de chegada. Além disso, ressoou o grito de alarme das Igrejas cujos
membros são forçados a fugir da guerra e da perseguição, vendo, nestas migrações
forçadas, uma ameaça para a própria existência delas. O próprio facto de englobar dentro
de si mesma todas estas distintas perspetivas coloca a Igreja em condições de exercer, em
relação à sociedade, um papel profético sobre o tema das migrações».[48]Peço
especialmente aos jovens que não caiam nas redes de quem os quer contrapor a outros
jovens que chegam aos seus países, fazendo-os ver como sujeitos perigosos e como se
não tivessem a mesma dignidade inalienável de todo o ser humano.
Acabar com todas as formas de abuso
95. Nos últimos tempos, temos sido fortemente instados a escutar o grito das vítimas dos
vários tipos de abuso cometidos por alguns bispos, sacerdotes, religiosos e leigos. Estes
pecados provocam nas suas vítimas «sofrimentos que podem durar a vida inteira e aos
quais nenhum arrependimento é capaz de pôr remédio. Este fenómeno, muito difuso na
sociedade, toca também a Igreja e representa um sério obstáculo à sua missão».[49]
96. É verdade que o «flagelo dos abusos sexuais contra menores é um fenómeno
historicamente difuso, infelizmente, em todas as culturas e sociedades», especialmente
dentro das próprias famílias e em várias instituições, cuja extensão foi ressaltada
sobretudo «graças à mudança de sensibilidade da opinião pública». Mas, «a
universalidade de tal flagelo, ao mesmo tempo que confirma a sua gravidade nas nossas
sociedades, não diminui a sua monstruosidade dentro da Igreja» e, «na ira justificada das
pessoas, a Igreja vê o reflexo da ira de Deus, traído e esbofeteado».[50]
97. «O Sínodo reitera o firme empenho na adoção de rigorosas medidas de prevenção que
impeçam a sua repetição, começando pela seleção e formação daqueles a quem serão
confiadas tarefas de responsabilidade e educativas».[51]Ao mesmo tempo, não mais deve
ser abandonada a decisão de aplicar as necessárias «medidas e sanções».[52] Em tudo,
contando com a graça de Cristo. Não se pode voltar atrás.
98. «Existem diferentes tipos de abuso: abusos de poder, económicos, de consciência,
sexuais. Torna-se evidente a tarefa de erradicar as formas de exercício da autoridade nas
quais se entroncam aqueles, e de contrastar a falta de responsabilidade e transparência
com que foram geridos muitos casos. O desejo de dominação, a falta de diálogo e
transparência, as formas de vida dupla, o vazio espiritual, bem como as fragilidades
psicológicas constituem o terreno onde prospera a corrupção».[53]O clericalismo é uma
tentação permanente dos sacerdotes, que interpretam «o ministério recebido mais como
um poder a ser exercido do que como um serviço gratuito e generoso a oferecer; e isto
leva a julgar que se pertence a um grupo que possui todas as respostas e já não precisa de
escutar e aprender mais nada».[54] Sem dúvida, o clericalismo expõe as pessoas
consagradas ao risco de perderem o respeito pelo valor sagrado e inalienável de cada
pessoa e da sua liberdade.
99. Quero, juntamente com os Padres Sinodais, expressar com afeto a minha «gratidão a
quantos têm a coragem de denunciar o mal sofrido: ajudam a Igreja a tomar consciência
do que aconteceu e da necessidade de reagir com decisão».[55]Mas também merece um
reconhecimento especial «o compromisso sincero de inumeráveis leigas e leigos,
sacerdotes, consagrados, consagradas e bispos que diariamente se consomem, honesta e
dedicadamente, ao serviço dos jovens. O seu trabalho é como uma floresta que cresce
sem fazer barulho. Também muitos dos jovens presentes no Sínodo manifestaram
gratidão àqueles que os têm acompanhado e reafirmaram a grande necessidade de
modelos».[56]
100. Graças a Deus, os sacerdotes que caíram nestes crimes horríveis não constituem a
maioria; esta mantém um ministério fiel e generoso. Peço aos jovens que se deixem
estimular por esta maioria. Em todo o caso, quando virdes um sacerdote em risco, porque
perdeu a alegria do seu ministério, porque busca compensações afetivas ou está a tomar
um rumo errado, tende a ousadia de lhe lembrar o seu compromisso para com Deus e o
seu povo, anunciai-lhe vós mesmos o Evangelho e animai-o a permanecer no caminho
certo. Assim, prestareis uma ajuda inestimável num ponto fundamental: a prevenção que
permite evitar a repetição destas atrocidades. Esta nuvem negra torna-se também um
desafio para os jovens que amam Jesus Cristo e a sua Igreja, porque podem contribuir
muito para curar esta ferida, se puserem em campo a sua capacidade de renovar, reclamar,
exigir coerência e testemunho, voltar a sonhar e reinventar.
101. Este não é o único pecado dos membros da Igreja, cuja história apresenta muitas
sombras. Os nossos pecados estão à vista de todos; refletem-se, impiedosamente, nas
rugas do rosto milenário da nossa Mãe e Mestra. Com efeito, desde há dois mil anos que
ela caminha compartilhando «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
homens».[57]E caminha como é, sem cirurgias estéticas. Não tem medo de mostrar os
pecados dos seus membros, que às vezes alguns deles procuram esconder, perante a luz
ardente da Palavra do Evangelho que limpa e purifica. E não cessa de repetir cada dia,
envergonhada: «tem compaixão de mim, ó Deus, pela tua bondade; (...) tenho sempre
diante de mim os meus pecados» (Sal 51/50, 3.5). Lembremo-nos, porém, que não se
abandona a Mãe quando está ferida, mas acompanhamo-la para que tire fora de si mesma
toda a sua força e capacidade de começar sempre de novo.
102. No meio deste drama que justamente nos fere a alma, «o Senhor Jesus, que nunca
abandona a sua Igreja, dá-lhe a força e os instrumentos para um caminho
novo».[58]Assim, este momento sombrio, com «a ajuda preciosa dos jovens, pode
verdadeiramente ser uma oportunidade para uma reforma de alcance histórico»,[59] para
se abrir a um novo Pentecostes e começar um período de purificação e mudança que dê à
Igreja uma renovada juventude. Entretanto os jovens poderão ajudar muito mais, se de
coração se sentirem parte do «santo e paciente Povo fiel de Deus, sustentado e vivificado
pelo Espírito Santo», porque «será precisamente este santo Povo de Deus que nos libertará
do flagelo do clericalismo, que é o terreno fértil para todos estes abomínios».[60]
Há uma via de saída
103. Neste capítulo, detive-me a ver a realidade dos jovens no mundo atual. Outros
aspetos aparecerão nos capítulos seguintes. Como já disse, não pretendo ser exaustivo
com esta análise. Exorto as comunidades a fazerem, com respeito e seriedade, um exame
da sua realidade juvenil mais próxima, para poderem discernir os percursos pastorais mais
apropriados. Mas não quero terminar este capítulo, sem dirigir algumas palavras a cada
um de vós.
104. Recordo-te a boa notícia que nos deu a manhã da Ressurreição, ou seja, que, em
todas as situações escuras ou dolorosas mencionadas, há uma via de saída. Por exemplo,
é verdade que o mundo digital pode expor-te ao risco de te fechares em ti mesmo, de
isolamento ou do prazer vazio. Mas não esqueças a existência de jovens que, também
nestas áreas, são criativos e às vezes geniais. É o caso do jovem Venerável Carlos Acutis.
105. Ele sabia muito bem que estes mecanismos da comunicação, da publicidade e das
redes sociais podem ser utilizados para nos tornar sujeitos adormecidos, dependentes do
consumo e das novidades que podemos comprar, obcecados pelo tempo livre, fechados
na negatividade. Mas ele soube usar as novas técnicas de comunicação para transmitir o
Evangelho, para comunicar valores e beleza.
106. Não caiu na armadilha. Via que muitos jovens, embora parecendo diferentes, na
verdade acabam por ser iguais aos outros, correndo atrás do que os poderosos lhes
impõem através dos mecanismos de consumo e aturdimento. Assim, não deixam brotar
os dons que o Senhor lhes deu, não colocam à disposição deste mundo as capacidades tão
pessoais e únicas que Deus semeou em cada um. Na verdade, «todos nascem – dizia
Carlos – como originais, mas muitos morrem como fotocópias». Não deixes que isto te
aconteça!
107. Não deixes que te roubem a esperança e a alegria, que te narcotizem para te usar
como escravo dos seus interesses. Ousa ser mais, porque o teu ser é mais importante do
que qualquer outra coisa; não precisas de ter nem de parecer. Podes chegar a ser aquilo
que Deus, teu Criador, sabe que tu és, se reconheceres o muito a que estás chamado.
Invoca o Espírito Santo e caminha, confiante, para a grande meta: a santidade. Assim,
não serás uma fotocópia; serás plenamente tu mesmo.
108. Para isso, precisas de reconhecer uma coisa fundamental: ser jovem não significa
apenas procurar prazeres transitórios e sucessos superficiais. Para a juventude
desempenhar a finalidade que lhe cabe no curso da vida, deve ser um tempo de doação
generosa, de oferta sincera, de sacrifícios que custam, mas tornam-nos fecundos. É como
dizia um grande poeta:
«Se, para recuperar o que recuperei,
tive de perder primeiro o que perdi,
se, para obter o que obtive,
tive de suportar o que suportei,
se, para estar agora enamorado,
tive que ser ferido,
considero justo ter sofrido o que sofri,
considero justo ter chorado o que chorei.
Porque no fim constatei
que não se goza bem do gozado
senão depois de o ter padecido.
Porque no fim compreendi
que quanto a árvore tem de florido
vive do que ela tem de enterrado».[61]
109. Se és jovem em idade, mas te sentes frágil, cansado ou desiludido, pede a Jesus que
te renove. Com Ele, não se extingue a esperança. E o mesmo podes fazer, se te sentires
imerso nos vícios, em maus hábitos, no egoísmo ou na comodidade morbosa. Cheio de
vida, Jesus quer ajudar-te para que valha a pena ser jovem. Assim, não privarás o mundo
daquela contribuição que só tu – único e irrepetível, como és – lhe podes dar.
110. Mas quero recordar-te também que «é muito difícil lutar contra a própria
concupiscência e contra as ciladas e tentações do demónio e do mundo egoísta, se
estivermos isolados. A sedução com que nos bombardeiam é tal que, se estivermos
demasiado sozinhos, facilmente perdemos o sentido da realidade, a clareza interior e
sucumbimos».[62]Isto é válido sobretudo para os jovens, porque vós, unidos, tendes uma
força admirável. Quando vos entusiasmais por uma vida comunitária, sois capazes de
grandes sacrifícios pelos outros e pela comunidade; ao passo que o isolamento vos
enfraquece e expõe aos piores males do nosso tempo.
Querida Amazônia (2020)
Injustiça e crime
9. Os interesses colonizadores que, legal e ilegalmente, fizeram – e fazem – aumentar o
corte de madeira e a indústria minerária e que foram expulsando e encurralando os povos
indígenas, ribeirinhos e afrodescendentes, provocam um clamor que brada ao céu:
«São muitas as árvores
onde morou a tortura
e vastas as florestas
compradas entre mil mortes»[3].
«Os madeireiros têm parlamentares
e nossa Amazónia não tem quem a defenda (…)
Mandam em exílio os papagaios e os macacos (…)
Já não será igual a colheita da castanha»[4].
10. Isto favoreceu os movimentos migratórios mais recentes dos indígenas para as
periferias das cidades. Aqui não encontram uma real libertação dos seus dramas, mas as
piores formas de escravidão, sujeição e miséria. Nestas cidades caraterizadas por uma
grande desigualdade, onde hoje habita a maior parte da população da Amazónia, crescem
também a xenofobia, a exploração sexual e o tráfico de pessoas. Por isso o clamor da
Amazónia não brota apenas do coração das florestas, mas também do interior das suas
cidades.
11. Não é necessário repetir aqui as análises tão abrangentes e completas que foram
apresentadas antes e durante o Sínodo. Mas lembremos ao menos uma das vozes ouvidas:
«Estamos sendo afetados pelos madeireiros, criadores de gado e outros terceiros.
Ameaçados por agentes económicos que implementam um modelo alheio em nossos
territórios. As empresas madeireiras entram no território para explorar a floresta, nós
cuidamos da floresta para nossos filhos, dispomos de carne, pesca, remédios vegetais,
árvores frutíferas (…). A construção de hidroelétricas e o projeto de hidrovias têm
impacto sobre o rio e sobre os territórios (…). Somos uma região de territórios
roubados»[5].
12. Já o meu antecessor, Bento XVI, denunciava «a devastação ambiental da Amazónia
e as ameaças à dignidade humana das suas populações»[6]. Desejo acrescentar que muitos
dramas tiveram a ver com uma falsa «mística amazónica»: é sabido que, desde os últimos
decénios do século passado, a Amazónia tem sido apresentada como um enorme vazio
que deve ser preenchido, como uma riqueza em estado bruto que se deve aprimorar, como
uma vastidão selvagem que precisa de ser domada. E, tudo isto, numa perspetiva que não
reconhece os direitos dos povos nativos ou simplesmente os ignora como se não
existissem e como se as terras onde habitam não lhes pertencessem. Nos próprios
programas educacionais de crianças e jovens, os indígenas apareciam como intrusos ou
usurpadores. As suas vidas e preocupações, a sua maneira de lutar e sobreviver não
interessavam, considerando-os mais como um obstáculo de que nos temos de livrar do
que como seres humanos com a mesma dignidade que qualquer outro e com direitos
adquiridos.
13. Para aumentar esta confusão, contribuíram alguns slogans, nomeadamente o de «não
entregar»[7], como se a citada sujeição fosse provocada apenas por países estrangeiros,
quando os próprios poderes locais, com a desculpa do progresso, fizeram parte de alianças
com o objetivo de devastar, de maneira impune e indiscriminada, a floresta com as formas
de vida que abriga. Os povos nativos viram muitas vezes, impotentes, a destruição do
ambiente natural que lhes permitia alimentar-se, curar-se, sobreviver e conservar um
estilo de vida e uma cultura que lhes dava identidade e sentido. A disparidade de poder é
enorme, os fracos não têm recursos para se defender, enquanto o vencedor continua a
levar tudo, «os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais
ricos»[8].
14. Às operações económicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazónia e
não respeitam o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à
autodeterminação e ao consentimento prévio, há que rotulá-las com o nome
devido: injustiça e crime. Quando algumas empresas sedentas de lucro fácil se apropriam
dos terrenos, chegando a privatizar a própria água potável, ou quando as autoridades
deixam mão livre a madeireiros, a projetos minerários ou petrolíferos e outras atividades
que devastam as florestas e contaminam o ambiente, transformam-se indevidamente as
relações económicas e tornam-se um instrumento que mata. É usual lançar mão de
recursos desprovidos de qualquer ética, como penalizar os protestos e mesmo tirar a vida
aos indígenas que se oponham aos projetos, provocar intencionalmente incêndios
florestais, ou subornar políticos e os próprios nativos. A acompanhar tudo isto, temos
graves violações dos direitos humanos e novas escravidões que atingem especialmente as
mulheres, a praga do narcotráfico que procura submeter os indígenas, ou o tráfico de
pessoas que se aproveita daqueles que foram expulsos de seu contexto cultural. Não
podemos permitir que a globalização se transforme num «novo tipo de colonialismo»[9].
O poliedro amazónico
29. Na Amazónia, vivem muitos povos e nacionalidades, sendo mais de cento e dez os
povos indígenas em isolamento voluntário (PIAV)[31]. A sua situação é fragilíssima; e
muitos sentem que são os últimos depositários dum tesouro destinado a desaparecer,
como se lhes fosse permitido sobreviver apenas sem perturbar, enquanto avança a
colonização pós-moderna. Temos que evitar de os considerar como «selvagens não-
civilizados»; simplesmente criaram culturas diferentes e outras formas de civilização, que
antigamente registaram um nível notável de desenvolvimento[32].
30. Antes da colonização, os centros habitados concentravam-se nas margens dos rios e
lagos, mas o avanço da colonização expulsou os antigos habitantes para o interior da
floresta. Hoje, a crescente desertificação obriga a novas deslocações muitos, que acabam
por ocupar as periferias ou as calçadas das cidades por vezes numa situação de miséria
extrema, mas também de dilaceração interior devido à perda dos valores que os
sustentavam. Neste contexto, habitualmente perdem os pontos de referência e as raízes
culturais que lhes conferiam uma identidade e um sentido de dignidade e vão alongar a
fila dos descartados. Assim interrompe-se a transmissão cultural duma sabedoria que,
durante séculos, foi passando de geração em geração. As cidades, que deveriam ser
lugares de encontro, enriquecimento mútuo e fecundação entre diferentes culturas,
tornam-se palco dum doloroso descarte.
31. Cada povo, que conseguiu sobreviver na Amazónia, possui a sua própria identidade
cultural e uma riqueza única num universo multicultural, em virtude da estreita relação
que os habitantes estabelecem com o meio circundante, numa simbiose – de tipo não
determinista – difícil de entender com esquemas mentais alheios:
«Havia outrora uma paisagem que despontava com seu rio,
seus animais, suas nuvens e suas árvores.
Às vezes, porém, quando não se via em lado nenhum
a paisagem com seu rio e suas árvores,
competia a tais coisas assomar à mente dum
garotinho»[33].
«Do rio, fazes o teu sangue (…).
Depois planta-te,
germina e cresce
que tua raiz
se agarre à terra
mais e mais para sempre
e, por último,
sê canoa,
barco, jangada,
solo, jarra,
estábulo e homem»[34].
32. Os grupos humanos, seus estilos de vida e cosmovisões são tão variados como o
território, pois tiveram que se adaptar à geografia e aos seus recursos. Não são iguais as
aldeias de pescadores às de caçadores, nem as aldeias de agricultores do interior às dos
cultivadores de terras sujeitas a inundações. Além disso, na Amazónia, encontram-se
milhares de comunidades de indígenas, afrodescendentes, ribeirinhos e habitantes das
cidades que, por sua vez, são muito diferentes entre si e abrigam uma grande diversidade
humana. Deus manifesta-Se, reflete algo da sua beleza inesgotável através dum território
e das suas caraterísticas, pelo que os diferentes grupos, numa síntese vital com o ambiente
circundante, desenvolvem uma forma peculiar de sabedoria. Quantos de nós observamos
de fora deveríamos evitar generalizações injustas, discursos simplistas ou conclusões
elaboradas apenas a partir das nossas próprias estruturas mentais e experiências.
Culturas ameaçadas, povos em risco
39. A economia globalizada danifica despudoradamente a riqueza humana, social e
cultural. A desintegração das famílias, que resulta das migrações forçadas, afeta a
transmissão dos valores, porque «a família é, e sempre foi, a instituição social que mais
contribuiu para manter vivas as nossas culturas»[43]. Além disso, «diante duma invasão
colonizadora maciça dos meios de comunicação», é necessário promover para os povos
nativos «comunicações alternativas, a partir das suas próprias línguas e culturas», e que
«os próprios indígenas se façam protagonistas presentes nos meios de comunicação já
existentes»[44].
40. Em qualquer projeto para a Amazónia, «é preciso assumir a perspetiva dos direitos
dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento
dum grupo social (...) requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a
partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor,
mas deve ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo
humano»[45]. E se as culturas ancestrais dos povos nativos nasceram e se desenvolveram
em estreito contacto com o ambiente natural circundante, dificilmente podem ficar ilesas
quando se deteriora este ambiente.
Esse sonho feito de água
43. Na Amazónia, a água é a rainha; rios e córregos lembram veias, e toda a forma de
vida brota dela: «Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares
parados, as últimas lufadas de leste, o termómetro é substituído pelo higrómetro na
definição do clima. As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e
enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O
Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas. A enchente
é uma paragem na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com
estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de
temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos
que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza que se excede em
manifestações dispares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços»[53].
44. A água encanta no grande Amazonas, que abraça e vivifica tudo ao seu redor:
«Amazonas,
capital das sílabas d'água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta
das fecundações,
chegam-te rios como pássaros»[54].
45. Além disso é a coluna vertebral que harmoniza e une: «O rio não nos separa; mas une-
nos, ajudando-nos a conviver entre diferentes culturas e línguas»[55]. Embora seja
verdade que, neste território, há muitas «Amazónias», o seu eixo principal é o grande rio,
filho de muitos rios: «Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água
se desprende, e traça trémula um risco na pele antiga da pedra: o Amazonas acaba de
nascer. A cada instante ele nasce. Desce devagar, para crescer no chão. Varando verdes,
faz o seu caminho e se acrescenta. Aguas subterrâneas afloram para abraçar-se com a
água que desceu dos Andes. De mais alto ainda, desce a água celeste. Reunidas elas
avançam, multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície (...). É a
Grande Amazónia, toda ela no trópico húmido, com a sua floresta compacta e atordoante,
onde ainda palpita, intocada pelo homem, a vida que se foi urdindo nas intimidades da
água (...). Desde que o homem a habita, ergue-se das funduras das suas águas e dos altos
centros de sua floresta um terrível temor: a de que essa vida esteja, devagarinho, tomando
o rumo do fim»[56].
46. Os poetas populares, enamorados da sua imensa beleza, procuraram expressar o que
este rio lhes fazia sentir e a vida que ele oferece à sua passagem, com uma dança de
delfins, anacondas, árvores e canoas. Mas lamentam também os perigos que a ameaçam.
Estes poetas, contemplativos e proféticos, ajudam a libertar-nos do paradigma
tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência
verdadeiramente digna: «Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das
pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço (...). Sofre o mundo da
transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que
semeia na do autómato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões. A
esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz»[57].
O grito da Amazónia
47. A poesia ajuda a expressar uma dolorosa sensação que muitos compartilhamos hoje.
A verdade ineludível é que, nas condições atuais, com este modo de tratar a Amazónia,
tanta riqueza de vida e de tão grande beleza estão «tomando o rumo do fim», embora
muitos pretendam continuar a crer que tudo vai bem, como se nada acontecesse:
«Aqueles que pensavam que o rio fosse uma corda para jogar, enganavam-se.
O rio é uma veia muito subtil sobre a face da terra. (…)
O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores.
Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar.
Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue»[58].
48. O equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazónia. Juntamente com os
biomas do Congo e do Bornéu, deslumbra pela diversidade das suas florestas, das quais
dependem também os ciclos das chuvas, o equilíbrio do clima e uma grande variedade de
seres vivos. Funciona como um grande filtro do dióxido de carbono, que ajuda a evitar o
aquecimento da terra. Em grande parte, o solo é pobre em húmus, de modo que a floresta
«cresce realmente sobre o solo e não do solo»[59]. Quando se elimina a floresta, esta não
é substituída, ficando um terreno com poucos nutrientes que se transforma num território
desértico ou pobre em vegetação. Isto é grave, porque, nas entranhas da floresta
amazónica, subsistem inúmeros recursos que poderiam ser indispensáveis para a cura de
doenças. Os seus peixes, frutos e outros dons sobreabundantes enriquecem a alimentação
humana. Além disso, num ecossistema como o amazónico, é incontestável a importância
de cada parte para a conservação do todo. As próprias terras costeiras e a vegetação
marinha precisam de ser fertilizadas por aquilo que o rio Amazonas arrasta. O grito da
Amazónia chega a todos, porque a «conquista e exploração de recursos (...) hoje chega a
ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como “recurso” corre
o perigo de ameaçar o ambiente como “casa”»[60]. O interesse de algumas empresas
poderosas não deveria ser colocado acima do bem da Amazónia e da humanidade inteira.
49. Não basta prestar atenção à preservação das espécies mais visíveis em risco de
extinção. É crucial ter em conta que, «para o bom funcionamento dos ecossistemas,
também são necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e
a variedade inumerável de micro-organismos. Algumas espécies pouco numerosas, que
habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória
fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar»[61]. E isto facilmente se ignora na
avaliação do impacto ambiental dos projetos económicos de indústrias extrativas,
energéticas, madeireiras e outras que destroem e poluem. Além disso a água, que abunda
na Amazónia, é um bem essencial para a sobrevivência humana, mas as fontes de poluição
vão aumentando cada vez mais[62].
50. Com efeito, além dos interesses económicos de empresários e políticos locais, existem
também «os enormes interesses económicos internacionais»[63]. Por isso, a solução não
está numa «internacionalização» da Amazónia[64], mas a responsabilidade dos governos
nacionais torna-se mais grave. Pela mesma razão, «é louvável a tarefa de organismos
internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e
colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos sistemas de pressão, para que
cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio ambiente e os
recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou
internacionais»[65].
51. Para cuidar da Amazónia, é bom conjugar a sabedoria ancestral com os
conhecimentos técnicos contemporâneos, mas procurando sempre intervir no território de
forma sustentável, preservando ao mesmo tempo o estilo de vida e os sistemas de valores
dos habitantes[66]. A estes, especialmente aos povos nativos, cabe receber, para além da
formação básica, a informação completa e transparente dos projetos, com a sua amplitude,
os seus efeitos e riscos, para poderem confrontar esta informação com os seus interesses
e com o próprio conhecimento do local e, assim, dar ou negar o seu consentimento ou
então propor alternativas[67].
52. Os mais poderosos nunca ficam satisfeitos com os lucros que obtêm, e os recursos do
poder económico têm aumentado muito com o desenvolvimento científico e tecnológico.
Por isso, todos deveríamos insistir na urgência de «criar um sistema normativo que inclua
limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de
poder derivadas do paradigma tecno-económico acabem por arrasá-los não só com a
política, mas também com a liberdade e a justiça»[68]. Se a chamada por Deus exige uma
escuta atenta do grito dos pobres e ao mesmo tempo da terra[69], para nós «o grito da
Amazónia ao Criador é semelhante ao grito do Povo de Deus no Egito (cf. Ex 3, 7). É um
grito desde a escravidão e o abandono, que clama por liberdade»[70].
Fratelli tutti (2020)
Capítulo I
AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO
9. Sem pretender efetuar uma análise exaustiva nem tomar em consideração todos os
aspetos da realidade que vivemos, proponho apenas manter-nos atentos a algumas
tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal.
Sonhos desfeitos em pedaços
10. Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos
e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração. Por exemplo, avançou
o sonho duma Europa unida, capaz de reconhecer raízes comuns e regozijar-se com a
diversidade que a habita. Lembremos «a firme convicção dos Pais fundadores da União
Europeia, que desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para superar
as divisões e promover a paz e a comunhão entre todos os povos do continente».[7] E
ganhou força também o anseio duma integração latino-americana, e alguns passos
começaram a ser dados. Noutros países e regiões, houve tentativas de pacificação e
reaproximações que foram bem-sucedidas e outras que pareciam promissoras.
11. Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se
consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e
agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada
por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social
mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que «cada
geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas
ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não
se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível
contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta
situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de
injustiça que nos interpelam a todos».[8]
12. «Abrir-se ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as
finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade
dos poderes económicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países.
Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela
economia global para impor um modelo cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas
divide as pessoas e as nações, porque «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos
vizinhos, mas não nos faz irmãos».[9] Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste
mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão
comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas
desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo
favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas
procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais
vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante
os poderes económicos transnacionais que aplicam o lema «divide e reinarás».
O fim da consciência histórica
13. Pelo mesmo motivo, favorece também uma perda do sentido da história que desagrega
ainda mais. Nota-se a penetração cultural duma espécie de «desconstrucionismo», em que
a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a
necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo
sem conteúdo. Neste contexto, colocava-se um conselho que dei aos jovens: «Se uma
pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, não aproveitardes da
experiência dos mais velhos, desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro
que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a
fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós vazios, desenraizados,
desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas promessas e vos submeterdes aos
seus planos. Assim procedem as ideologias de variadas cores, que destroem (ou
desconstroem) tudo o que for diferente, podendo assim reinar sem oposições. Para isso,
precisam de jovens que desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que
se foi transmitindo através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu».[10]
14. São as novas formas de colonização cultural. Não nos esqueçamos de que «os povos
que alienam a sua tradição e – por mania imitativa, violência imposta, imperdoável
negligência ou apatia – toleram que se lhes roube a alma, perdem, juntamente com a
própria fisionomia espiritual, a sua consistência moral e, por fim, a independência
ideológica, económica e política».[11] Uma maneira eficaz de dissolver a consciência
histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é
esvaziar de sentido ou manipular as «grandes» palavras. Que significado têm hoje
palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e
desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de
conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação.
Sem um projeto para todos
15. A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar
uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores.
Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar.
Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso,
recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não
se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e
acaba reduzida à prepotência do mais forte. Desta forma, a política deixou de ser um
debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem
comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na
destruição do outro. Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado
para o manter no estado de controvérsia e contraposição.
16. Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna
sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar
ao lado de quem está caído na estrada? Hoje, um projeto com grandes objetivos para o
desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio. Aumentam as distâncias
entre nós, e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e
drástico revés.
17. Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas
precisamos de nos constituirmos como um «nós» que habita a casa comum. Um tal
cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam dum ganho rápido.
Frequentemente as vozes que se levantam em defesa do ambiente são silenciadas ou
ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de interesses particulares.
Nesta cultura que estamos a desenvolver, vazia, fixada no imediato e sem um projeto
comum, «é previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um
cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações».[12]
O descarte mundial
18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece
a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, «as pessoas já não são vistas
como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes,
se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos).
Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que
aparece entre os mais deploráveis».[13]
19. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o
abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba
connosco, que só contam os nossos interesses individuais. Assim, «objeto de descarte não
são apenas os alimentos ou os bens supérfluos, mas muitas vezes os próprios seres
humanos».[14] Vimos o que aconteceu com as pessoas de idade nalgumas partes do
mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer assim. Na realidade, porém, tinha
já acontecido algo semelhante devido às ondas de calor e noutras circunstâncias:
cruelmente descartados. Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à
responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila
e empobrece a própria família. Além disso, acaba por privar os jovens daquele contacto
que lhes é necessário com as suas raízes e com uma sabedoria que a juventude, sozinha,
não pode alcançar.
20. Este descarte exprime-se de variadas maneiras como, por exemplo, na obsessão por
reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o
desemprego daí resultante tem como efeito direto alargar as fronteiras da
pobreza.[15] Além disso, o descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas,
como o racismo que se dissimula mas não cessa de reaparecer. De novo nos envergonham
as expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade não
são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas.
21. Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo
para o desenvolvimento humano integral.[16] Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e
assim «nascem novas pobrezas».[17] Quando dizem que o mundo moderno reduziu a
pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade
atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era
considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza sempre se
analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico
concreto.
Direitos humanos não suficientemente universais
22. Muitas vezes constata-se que, de facto, os direitos humanos não são iguais para todos.
O respeito destes direitos «é condição preliminar para o próprio progresso económico e
social de um país. Quando a dignidade do homem é respeitada e os seus direitos são
reconhecidos e garantidos, florescem também a criatividade e a audácia, podendo a
pessoa humana explanar suas inúmeras iniciativas a favor do bem comum».[18] Mas,
«observando com atenção as nossas sociedades contemporâneas, deparamos com
numerosas contradições que induzem a perguntar-nos se deveras a igual dignidade de
todos os seres humanos, solenemente proclamada há 70 anos, é reconhecida, respeitada,
protegida e promovida em todas as circunstâncias. Persistem hoje no mundo inúmeras
formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo
económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem.
Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade
não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados
ou violados».[19] Que diz isto a respeito da igualdade de direitos fundada na mesma
dignidade humana?
23. De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe
de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos
direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam
outra. Com efeito, «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de
exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de
defender os seus direitos».[20]
24. Reconhecemos igualmente que, «apesar de a comunidade internacional ter adotado
numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado
diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas –
crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e
constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura. (…) Hoje como
ontem, na raiz da escravatura, está uma conceção da pessoa humana que admite a
possibilidade de a tratar como um objeto. (…) Com a força, o engano, a coação física ou
psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da
liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não
como fim». As redes criminosas «utilizam habilmente as tecnologias informáticas
modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo».[21] E a
aberração não tem limites quando são subjugadas mulheres, forçadas depois a abortar;
um ato abominável que chega mesmo ao sequestro da pessoa, para vender os seus órgãos.
Isto torna o tráfico de pessoas e outras formas atuais de escravatura num problema
mundial que precisa de ser tomado a sério pela humanidade no seu conjunto, porque
«assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus
objetivos, assim também a ação para vencer este fenómeno requer um esforço comum e
igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade».[22]
Conflito e medo
25. As guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas
afrontas contra a dignidade humana são julgados de maneira diferente, segundo
convenham ou não a certos interesses fundamentalmente económicos: o que é verdade
quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de o ser quando já não a beneficia. Estas
situações de violência vão-se «multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a
ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma “terceira guerra
mundial por pedaços”».[23]
26. Isto não surpreende, se atendermos à falta de horizontes capazes de nos fazer
convergir para a unidade, pois em qualquer guerra o que acaba destruído é «o próprio
projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana», pelo que «toda a situação
de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada».[24] Assim, o nosso mundo avança numa
dicotomia sem sentido, pretendendo «garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa
segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança».[25]
27. Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados pelo progresso
tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas
tecnologias. Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território
do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não
familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do território do que é «bárbaro», do qual há que
defender-se a todo o custo. Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa,
de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos
deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser
apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os
muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas,
com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo
dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».[26]
28. A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas
pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias. Com efeito, estas
impõem-se apresentando-se como «protetoras» dos esquecidos, muitas vezes através de
vários tipos de ajuda, enquanto perseguem os seus interesses criminosos. Há uma
pedagogia tipicamente mafiosa que, com um falso espírito comunitário, cria laços de
dependência e subordinação, dos quais é muito difícil libertar-se.
Globalização e progresso sem um rumo comum
29. O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços positivos que se
verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na indústria e no bem-estar, sobretudo
nos países desenvolvidos. Todavia «ressaltamos que, juntamente com tais progressos
históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a
atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de
responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração,
solidão e desespero, (…) nascem focos de tensão e se acumulam armas e munições, numa
situação mundial dominada pela incerteza, pela deceção e pelo medo do futuro e
controlada por míopes interesses económicos». Assinalamos também «as graves crises
políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais (…). A
respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a
esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio
internacional».[27] Perante tal panorama, embora nos fascinem os inúmeros avanços, não
descortinamos um rumo verdadeiramente humano.
30. No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o
sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos. Vemos
como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão
que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser
omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que
deixa para trás os grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a
tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da
desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses
nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a
proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do
confronto, não; cultura do encontro, sim».[28]
31. Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma atmosfera em que «a
distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada
parece aumentar: até fazer pensar que entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja
em curso um cisma. (...) Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é
apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas
e cultivadas em conjunto».[29] A tecnologia regista progressos contínuos, mas «como
seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondesse
também uma equidade e uma inclusão social cada vez maior! Como seria bom se,
enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as
necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»[30]
As pandemias e outros flagelos da história
32. É verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por
algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo
barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva
sozinho, que só é possível salvar-nos juntos. Por isso, «a tempestade – dizia eu –
desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças
com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e
prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que
mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a
descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos
subtrair: a pertença como irmãos».[31]
33. O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os
progressos tecnológicos, procurava reduzir os «custos humanos»; e alguns pretendiam
fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Mas, o golpe
duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres
humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns. Hoje podemos reconhecer que
«alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração,
fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da
fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela
impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da
realidade».[32] A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que
a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as
nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa
existência.
34. Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre mundial não tenha a ver
com a nossa maneira de encarar a realidade, pretendendo ser senhores absolutos da
própria vida e de tudo o que existe. Não quero dizer que se trate duma espécie de castigo
divino. Nem seria suficiente afirmar que o dano causado à natureza acaba por se cobrar
dos nossos atropelos. É a própria realidade que geme e se rebela… Vem à mente o
conhecido verso do poeta Virgílio evocando as lágrimas das coisas, das vicissitudes da
história.[33]
35. Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da vida».[34] Passada
a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas
formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas
um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos
capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de
respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo
desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado
um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos
devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as
mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.
36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de
pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará
ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do
vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo
de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá
provocar violência e destruição recíproca».[35] O princípio «salve-se quem puder»
traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma
pandemia.
Sem dignidade humana nas fronteiras
37. Tanto na propaganda dalguns regimes políticos populistas como na leitura de
abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a todo o custo a chegada
de pessoas migrantes. Simultaneamente argumenta-se que convém limitar a ajuda aos
países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se
dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas
dilaceradas. Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros,
com pleno direito, «andam à procura de oportunidades para si e para a sua família.
Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize».[36]
38. Infelizmente, outros são «atraídos pela cultura ocidental, nutrindo por vezes
expetativas irrealistas que os expõem a pesadas deceções. Traficantes sem escrúpulos,
frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos
imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico
de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações
indescritíveis».[37] As pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto
de origem e, muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura
tem a ver também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais
vigorosos e empreendedores, e as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos
os progenitores, deixando os filhos no país de origem».[38] Por conseguinte, também
deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na
própria terra».[39]
39. Ainda por cima, «nalguns países de chegada, os fenómenos migratórios suscitam
alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para fins políticos. Assim se
difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em si mesmos».[40] Os
migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como
os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer
pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os «protagonistas da sua própria
promoção».[41] Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões
e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos
importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e
estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das
profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana,
independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno.
40. «As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo».[42] Hoje,
porém, são afetadas por uma «perda daquele sentido de responsabilidade fraterna, sobre
o qual assenta toda a sociedade civil».[43] A Europa, por exemplo, corre sérios riscos de
ir por este caminho. Entretanto, «ajudada pelo seu grande património cultural e religioso,
possui os instrumentos para defender a centralidade da pessoa humana e encontrar o justo
equilíbrio entre estes dois deveres: o dever moral de tutelar os direitos dos seus cidadãos
e o dever de garantir a assistência e o acolhimento dos imigrantes».[44]
41. Compreendo que alguns tenham dúvidas e sintam medo à vista das pessoas migrantes;
compreendo-o como um aspeto do instinto natural de autodefesa. Mas também é verdade
que uma pessoa e um povo só são fecundos, se souberem criativamente integrar no seu
seio a abertura aos outros. Convido a ultrapassar estas reações primárias, porque «o
problema surge quando [estas dúvidas e este medo] condicionam de tal forma o nosso
modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos
apercebermos – racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar
o outro».[45]
A ilusão da comunicação
42. Paradoxalmente se, por um lado, crescem as atitudes fechadas e intolerantes que, à
vista dos outros, nos fecham em nós próprios, por outro, reduzem-se ou desaparecem as
distâncias, a ponto de deixar de existir o direito à intimidade. Tudo se torna uma espécie
de espetáculo que pode ser espiado, observado, e a vida acaba exposta a um controle
constante. Na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto
de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente. Dilui-
se o respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho
afastado, posso despudoradamente invadir até ao mais recôndito da sua vida.
43. Entretanto os movimentos digitais de ódio e destruição não constituem – como alguns
pretendem fazer crer – uma ótima forma de mútua ajuda, mas meras associações contra
um inimigo. Além disso, «os meios de comunicação digitais podem expor ao risco de
dependência, isolamento e perda progressiva de contacto com a realidade concreta,
dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas».[46] Fazem falta
gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o
tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação
humana. As relações digitais, que dispensam da fadiga de cultivar uma amizade, uma
reciprocidade estável e até um consenso que amadurece com o tempo, têm aparência de
sociabilidade, mas não constroem verdadeiramente um «nós»; na verdade, habitualmente
dissimulam e ampliam o mesmo individualismo que se manifesta na xenofobia e no
desprezo dos frágeis. A conexão digital não basta para lançar pontes, não é capaz de unir
a humanidade.
Agressividade despudorada
44. Ao mesmo tempo que defendem o próprio isolamento consumista e acomodado, as
pessoas escolhem vincular-se de maneira constante e obsessiva. Isto favorece o
pululamento de formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação,
afrontas verbais até destroçar a figura do outro, num desregramento tal que se existisse
no contacto pessoal acabaríamos todos por nos destruir entre nós. A agressividade social
encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos
computadores.
45. Isto permitiu que as ideologias perdessem todo o respeito. Aquilo que ainda há pouco
tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje
pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar
impune. Não se pode ignorar que «há interesses económicos gigantescos que operam no
mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas,
criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. O
funcionamento de muitas plataformas acaba frequentemente por favorecer o encontro
entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o confronto entre as diferenças. Estes
circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando
preconceitos e ódios».[47]
46. Deve-se reconhecer que os fanatismos, que induzem a destruir os outros, são
protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem «fazer
parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de
intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites,
tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela
fama alheia».[48] Agindo assim, qual contribuição se dá para a fraternidade que o Pai
comum nos propõe?
Informação sem sabedoria
47. A verdadeira sabedoria pressupõe o encontro com a realidade. Hoje, porém, tudo se
pode produzir, dissimular, modificar. Isto faz com que o encontro direto com as
limitações da realidade se torne insuportável. Em consequência, implementa-se um
mecanismo de «seleção», criando-se o hábito de separar imediatamente o que gosto
daquilo que não gosto, as coisas atraentes das desagradáveis. A mesma lógica preside à
escolha das pessoas com quem se decide partilhar o mundo. Assim, as pessoas ou
situações que feriam a nossa sensibilidade ou nos causavam aversão, hoje são
simplesmente eliminadas nas redes virtuais, construindo um círculo virtual que nos isola
do mundo em que vivemos.
48. Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de
atitude recetiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe
lugar no próprio círculo. Mas «o mundo de hoje, na sua maioria, é um mundo surdo (…).
Às vezes a velocidade do mundo moderno, o frenesi impede-nos de escutar bem o que
outro diz. Quando está a meio do seu diálogo, já o interrompemos e queremos replicar
quando ele ainda não acabou de falar. Não devemos perder a capacidade de escuta». São
Francisco de Assis «escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do
enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida. Desejo
que a semente de São Francisco cresça em tantos corações».[49]
49. Ao desaparecer o silêncio e a escuta, transformando tudo em cliques e mensagens
rápidas e ansiosas, coloca-se em perigo esta estrutura básica duma comunicação humana
sábia. Cria-se um novo estilo de vida, no qual cada um constrói o que deseja ter à sua
frente, excluindo tudo aquilo que não se pode controlar ou conhecer superficial e
instantaneamente. Por sua lógica intrínseca, esta dinâmica impede aquela reflexão serena
que poderia levar-nos a uma sabedoria comum.
50. Podemos buscar juntos a verdade no diálogo, na conversa tranquila ou na discussão
apaixonada. É um caminho perseverante, feito também de silêncios e sofrimentos, capaz
de recolher pacientemente a vasta experiência das pessoas e dos povos. A acumulação
esmagadora de informações que nos inundam, não significa maior sabedoria. A sabedoria
não se fabrica com buscas impacientes na internet, nem é um somatório de informações
cuja veracidade não está garantida. Desta forma, não se amadurece no encontro com a
verdade. As conversas giram, em última análise, ao redor das notícias mais recentes; são
meramente horizontais e cumulativas. Mas, não se presta uma atenção prolongada e
penetrante ao coração da vida, nem se reconhece o que é essencial para dar um sentido à
existência. Assim, a liberdade transforma-se numa ilusão que nos vendem, confundindo-
se com a liberdade de navegar frente a um visor. O problema é que um caminho de
fraternidade, local e universal, só pode ser percorrido por espíritos livres e dispostos a
encontros reais.
Sujeições e autodepreciação
51. Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como modelos
culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que cada um cresça
com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos
valores da sua própria cultura. Esta nostalgia superficial e triste, que induz a copiar e
comprar em vez de criar, gera uma baixa autoestima nacional. Nos setores acomodados
de muitos países pobres e às vezes naqueles que conseguiram sair da pobreza, nota-se a
incapacidade de aceitar caraterísticas e processos próprios, caindo num desprezo da
própria identidade cultural como se fosse a causa de todos os seus males.
52. Uma maneira fácil de dominar alguém é destruir-lhe a autoestima. Por detrás destas
tendências que visam uniformizar o mundo, afloram interesses de poder que se
aproveitam da baixa autoestima, ao mesmo tempo que, através dos media e das redes,
procuram criar uma nova cultura ao serviço dos mais poderosos. Disto tiram vantagem o
oportunismo da especulação financeira e a exploração, onde aqueles que sempre ficam a
perder são os pobres. Por outro lado, ignorar a cultura dum povo faz com que muitos
líderes políticos não sejam capazes de promover um projeto eficaz que possa ser
livremente assumido e sustentado ao longo do tempo.
53. Esquece-se de que «não há alienação pior do que experimentar que não se tem raízes,
não se pertence a ninguém. Uma terra será fecunda, um povo dará frutos e será capaz de
gerar o amanhã apenas na medida em que dá vida a relações de pertença entre os seus
membros, na medida em que cria laços de integração entre as gerações e as diferentes
comunidades que o compõem, e ainda na medida em que quebra as espirais que
obscurecem os sentidos, afastando-nos sempre uns dos outros».[50]
Esperança
54. Apesar destas sombras densas que não se devem ignorar, nas próximas páginas desejo
dar voz a tantos percursos de esperança. Com efeito, Deus continua a espalhar sementes
de bem na humanidade. A recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos
companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida.
Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas
comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história
compartilhada: médicos, enfermeiros e enfermeiras, farmacêuticos, empregados dos
supermercados, pessoal de limpeza, cuidadores, transportadores, homens e mulheres que
trabalham para fornecer serviços essenciais e de segurança, voluntários, sacerdotes,
religiosas... compreenderam que ninguém se salva sozinho.[51]
55. Convido à esperança que «nos fala duma realidade que está enraizada no mais fundo
do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos
históricos em que vive. Fala-nos duma sede, duma aspiração, dum anseio de plenitude,
de vida bem-sucedida, de querer agarrar o que é grande, o que enche o coração e eleva o
espírito para coisas grandes, como a verdade, a bondade e a beleza, a justiça e o amor.
(…) A esperança é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas
seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que
tornam a vida mais bela e digna».[52] Caminhemos na esperança!

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