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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

ADÉLE CRISTINA BRAGA ARAUJO

ESTÉTICA EM LUKÁCS:
REVERBERAÇÕES DA ARTE NO CAMPO DA
FORMAÇÃO HUMANA

FORTALEZA – CEARÁ
2013
1

ADÉLE CRISTINA BRAGA ARAUJO

ESTÉTICA EM LUKÁCS:
REVERBERAÇÕES DA ARTE NO CAMPO DA FORMAÇÃO
HUMANA

Dissertação apresentada ao Curso de


Mestrado Acadêmico em Educação do
Centro de Educação, da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial
para obtenção do grau de mestre em
Educação. Área de concentração:
Formação de Professores.

Orientadora: Profª. Drª. Ruth Maria de


Paula Gonçalves
Coorientador: Prof. Dr. José Deribaldo
Gomes dos Santos

FORTALEZA – CEARÁ
2013
2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
Bibliotecário Responsável – Francisco Welton Silva Rios - CRB-3/919

A663e Araujo, Adéle Cristina Braga


Estética em Lukács: reverberações da arte no campo da formação
humana / Adéle Cristina Braga Araujo. — 2013.
CD-ROM. 114 f. : il. (algumas color.) ; 4 ¾ pol.

―CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho


acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm)‖.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Fortaleza, 2013.
Área de Concentração: Formação de Professores.
Orientação: Profa. Dra. Ruth Maria de Paula Gonçalves.
Co-orientação: Prof. Dr. José Deribaldo Gomes dos Santos.

1. Estética. 2. Arte. 2. Formação humana. 3. Crise estrutural do


capital. 4. Cotidiano. I. Título.

CDD: 370.1
3
4

―/.../ As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida
prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam
(os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em
que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação‖
Carlos Drummond de Andrade
5

AGRADECIMENTOS

Aos queridos orientadores, pela oportunidade da convivência nesses dois anos e pelos
valiosos ensinamentos. À Profª. Ruth, por me acompanhar desde a graduação, como
pesquisadora de Iniciação Científica, por me fazer entender, de forma mais leve, que toda essa
contradição em que estamos inseridos é passível de mudança; uma transformação radical, a
partir de outra sociabilidade e, também, por toda desmesurada assistência e considerações a
respeito do objeto. Ao Prof. Deri, por me ver engatinhar nos primeiros estudos sobre estética,
a estética marxiano-lukacsiana, por me ver dar tropeços e, em retorno, dar apoio, por acalmar
as angústias e por toda a imensa contribuição com sua leitura mais apurada.

Aos professores que aceitaram o convite para o exame deste trabalho, por todas as
contribuições dadas. À Profª. Susana, por fazer o ―coração desta dissertação bater‖, tendo em
vista a necessidade de inserir na discussão a gênese da estética. À Profª. Betânia, que traz, de
maneira clara e objetiva, dados e questionamentos suficientemente pertinentes e oportunos
para qualquer objeto de estudo. Ao Prof. Valdemarín (Mário), por ter aceito, mesmo sem ter
participado do exame de qualificação, analisar o texto final.

Ao Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO, que, na figura de seus


professores e pesquisadores, desde 2008, confere minha formação no campo do marxismo,
proporcionando-me a compreensão da importância do gênero humano, da emancipação
humana e da luta em favor da classe trabalhadora.

À minha família, por colaborar e entender que o conhecimento é de fundamental necessidade


para o homem. Peço desculpas pelas ausências, agradeço o apoio e a compreensão. Digo,
ainda, que meu amor a eles é irrestrito, assim como a arte é para o desenvolvimento da
humanidade. À Ise e Jabson, meus artistas contemporâneos preferidos, pela inspiração dada
no desenvolvimento deste trabalho e também pelas propícias discussões sobre a política dos
editais de arte, sobre a arte singular e universal.

Aos grandes amigos que fiz durante o decurso de minha vida, especialmente àqueles que
estiveram mais próximos nesses dois anos, que me permitiam as discussões sobre arte,
imersas nesse cotidiano tão embrutecedor, que, contudo, torna-se mais leve quando há pessoas
que primam por uma sociedade efetiva e irrestritamente igualitária a todos, diferente desta em
que estamos inseridos. Não citarei nomes para não correr o risco da ausência momentânea de
algum.

Aos professores, alunos e profissionais do Programa de Pós-Graduação em Educação da


Universidade Estadual do Ceará – PPGE/UECE. À Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela concessão da bolsa de estudos sem a qual seria
menos viável o desenvolvimento do estudo.
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RESUMO

Este trabalho tem como premissa compreender o estudo das relações entre a estética e o processo de
formação humana, a partir da tradição concebida por Marx-Engels-Lenin, recuperada por Lukács, que
reverbera o trabalho como ato-gênese do ser social. Enceta-se a pesquisa, no primeiro capítulo,
intitulado: Gênese, evolução e contexto da Estética I de Lukács: uma síntese, a qual reconhece o
pensamento estético lukacsiano como um contraponto às demais formas de pensar a estética e
considera, ademais, um delineamento da trajetória de Lukács sobre suas elaborações no campo de
reflexão artística. O segundo capítulo apresenta como título: Súmula da estrutura da Estética I: das
condições humanas que se expressam na realidade cotidiana às objetivações superiores, e trata da
cotidianidade como solo de rebatimento das atividades realizadas pelo homem em meio às categorias:
antropomorfização e desantropomorfização; imanência e transcendência; homem inteiro e homem
inteiramente, as quais comprovam que Lukács está tratando de outra estética, uma nova estética, uma
vez que esta é articulada ao complexo histórico e social. Por fim, o terceiro capítulo, denominado: A
arte e a capacidade de refletir: ―o aqui e agora‖ histórico traz elementos sobre a sociedade
contemporânea e sua arte precária na conjuntura capitalista em crise profunda, o qual apresenta como
se desenvolve a fragmentação dos sentidos humanos. O estudo caracteriza-se como bibliográfico-
documental, tendo como base teórica a ontologia marxiano-lukacsiana e alguns de seus interpretes
centrais. Este debate pretende, apoiado nas leituras e na análise da obra lukacsiana, sustentar ser a arte
uma atividade espiritual superior que confirma a humanidade do homem. Em uma conjuntura de crise
aguda do sistema capitalista, vivenciada nos dias atuais, assistimos, a reboque dessa crise, o complexo
artístico se empobrecer fortemente. Apesar de reconhecer que apenas a superação radical da sociedade
dividida em duas classes poderá levar o homem a desfrutar de um estado pleno do desenvolvimento
dos sentidos estéticos e, consequentemente, do deleite artístico, a arte, mesmo que imersa em um
cotidiano tão embrutecido, pode, através de sua reverberação, enriquecer o indivíduo, soerguendo-o a
determinados aspectos que potencializam sua condição de partícipe do gênero humano. Nesse sentido,
a pesquisa intenta, sumariamente, dar um passo em direção ao aclaramento da existência da Estética
Marxista, recuperada e formulada, em grande medida, pelo esteta húngaro Georg Lukács.

Palavras-chave: Estética; Arte; Formação Humana; Cotidiano; Crise Estrutural do Capital.


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ABSTRACT

This work intends to understand the relationships between the study of aesthetics and the process of
human formation, from the tradition conceived by Marx-Engels-Lenin, reclaimed by Lukács,
reverberating work as act-genesis of social being. We Initiate the research, in the first chapter, entitled:
Genesis, evolution and context of the Lukács‘ Aesthetic I: a synthesis, which recognizes the Lukács‘
aesthetic thought as a counterpoint to the other ways of thinking about aesthetics, and considers,
moreover, a delineation of the trajectory of Lukács on their elaborations in the field of artistic
reflection. The second chapter presents the headline: Summary of the structure of Aesthetics I: from
human conditions that are expressed in everyday reality to superior objectivations, and deals with
everyday life as ground of controverting the activities performed by man into the categories:
anthropomorphization and desanthropomorphization; immanence and transcendence; whole man and
man entirely, which show that Lukács is coping with another aesthetic, a new aesthetic, since this is
hinged to the historical and social complex. Finally, the third chapter entitled: Art and the ability to
reflect, historical "here and now" brings elements on the contemporary society and its precarious art
onto the conjuncture of the deep capitalist crisis, which shows how it develops the fragmentation of
the human senses. The study is characterized as bibliographic-documentary research, based on the
theoretical Marxian-Lukacsian ontology and some of its central performers. This discussion aims,
supported by readings and analysis of Lukacsian work, to sustain being arts a superior spiritual activity
that confirms the humanity of man. In a situation of acute crisis of the capitalist system, as it is
experienced nowadays, we watch as consequence of this crisis, the complex of art impoverish
strongly. However, despite the recognition that only a radical overcoming of the society which is
divided into two classes can lead man to enjoy a state of full development of the aesthetic senses and
consequently, the artistic delight, art itself, even when it is immersed in such a brutalized routine, is
able to, through its reverberation, enrich the individuals, raising them to certain aspects which
approach them to the condition of human race participant. In this sense, the research attempts, briefly,
to take a step toward clearing the existence of Marxist Aesthetics, largely recovered and formulated by
Hungarian esthete Georg Lukács.

Keywords: Aesthetics; Art; Human formation; Everyday; Structural Crisis of Capital.


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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS............................................................................................................. 09

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10

2 GÊNESE, EVOLUÇÃO E CONTEXTO DA ESTÉTICA I: UMA SÍNTESE ........ 20


2.1 Reconhecimento da estética marxista como autônoma e universal: um contraponto
às demais formas de pensar a teoria do sensível ...................................................... 22
2.2 Um esboço da gênese da estética lukacsiana ........................................................... 36
2.3 Percurso de Lukács sobre seus estudos estéticos ..................................................... 41

3 SÚMULA DA ESTRUTURA DA ESTÉTICA LUKACSIANA: DAS CONDIÇÕES


HUMANAS QUE SE EXPRESSAM NA REALIDADE COTIDIANA ÀS
OBJETIVAÇÕES SUPERIORES ........................................................................................ 50
3.1 Decurso do conhecimento cotidiano: aproximações preliminares .......................... 51
3.2 Arte e devir na Estética I de Lukács: a imanência humana como ponto modal do ser
social. ....................................................................................................................... 62

4 A ARTE E SUA CAPACIDADE DE REFLETIR: O “AQUI E AGORA”


HISTÓRICO ........................................................................................................................... 76
4.1 Estética e sociedade: notas sobre o realismo ........................................................... 77
4.2 A problemática da estética na conjuntura capitalista: a fragmentação dos sentidos
humanos .................................................................................................................. 85

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 97

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 105

ANEXO ........................................................................................................................ 110

Anexo A – Lei Rouanet aprova Rita Lee e Cláudia Leitte (O POVO) ......................... 111

Anexo B – A arte de valor (ISTOÉ dinheiro) ............................................................... 112


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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – As proporções do corpo humano segundo Vitruvio c. 1490, ponta metálica, bico
de pena e tinta, traços de aquarela sobre papel branco. 34,4 X 24,5. Veneza: Galeria da
Academia .................................................................................................................................. 74

Figura 2 – Gioconda (1503-1505), óleo sobre painel. 77 X 53. Paris: Museu do Louvre ...... 75
10

1 INTRODUÇÃO

A pesquisa constitui um desdobramento das investigações iniciadas na graduação,


nas quais analisamos, ainda que de modo introdutório, categorias presentes na Estética de
Lukács, bem como o ensino da arte na educação brasileira contemporânea, em específico o
documento oficial: Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, volume seis, no que tange ao
ensino da arte, evidenciando os rebatimentos da crise estrutural do capital na formação
humana.

Os substratos das indagações feitas no trabalho monográfico1 nos impulsionaram


a expandir o objeto. Na perspectiva dessa ampliação, apresentamos como proposta de
investigação estudar com mais afinco, a partir da ontologia do ser social, a estética lukacsiana,
visto que se trata de um objeto com amplo terreno para estudos do caráter do que ora
pretendemos desenvolver, uma vez que se situa no projeto coletivo2 de recuperação do legado
marxiano-lukacsiano nesta área da formação humana.

Nossa temática surge e evolui a partir dos questionamentos refletidos para a


produção de nossa monografia de graduação, onde começamos a frequentar grupos de estudos
acerca da arte e seus desdobramentos na educação, nos quais participavam alunos da
graduação, professores de graduação, pós-graduação e de arte do ensino fundamental. Esses
últimos, muitas vezes, apresentavam inquietações relacionadas à desvalorização do professor,
pois se sentiam, perante a comunidade escolar, como decoradores, animadores, etc.
Pensávamos em como deveria ser constituído o ensino da arte e como se dava a formação
desse professor.

Não havíamos, até então, estabelecido relação entre trabalho e arte na formação
do ser social, pois situávamos as indagações no ―como‖ em detrimento do ―o que‖ ensinar. A

1
Monografia intitulada: A arte na educação contemporânea e seus limites à formação humana: um estudo à luz
da ontologia marxiano-lukacsiana, trabalho orientado pela profa. Ruth Maria de Paula Gonçalves, que
impulsionou a escrita desta dissertação, trabalho este que pretendeu se articular e se somar aos estudos coletivos
desenvolvidos no Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.
2
Referimo-nos ao contexto do IMO, com o desenvolvimento de projetos de pesquisas, monografias, dissertações
e teses sobre as categorias: trabalho, alienação, ideologia, dentre outras, bem como estudos que perpassam a
estética lukacsiana, amparados na ontologia marxiano-lukacsiana.
11

partir das leituras e discussões, proporcionadas durante a pesquisa de iniciação científica


―Atividade e formação do ser social: quando os trabalhadores são alunos‖, bem como nos
grupos de estudo e disciplinas abrigados no Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento
Operário – IMO, passamos a compreender os fundamentos de uma formação efetivamente
integral, o estatuto ontológico da humanização dos sentidos, na formação no campo da arte,
alinhada à perspectiva da totalidade, tão cara à apreensão do real e à proposta onto-marxista.

Pela carência de investigações de uma estética nos marcos do marxismo,


sobretudo, alinhado à ontologia do ser social, buscamos cercar-nos de pesquisas e grupos que
se propõem estudar a estética lukacsiana. Desse modo, avaliamos importante apontar um
breve panorama dos estudos que alimentam a pesquisa sobre a estética marxista, o que nos
leva a traçar, a seguir, alguns pesquisadores e/ou grupos que consideramos de maior
relevância.

Optamos por iniciar essa sintética revista pelas elaborações do pesquisador


romeno Nicolas Tertulian, já que ele possui uma considerável produção sobre o filósofo
húngaro, especialmente no tocante aos estudos sobre a estética lukacsiana. Dentre suas
publicações, destacamos Georg Lukács: Etapas do pensamento estético, publicado no Brasil,
em 2008, pela Editora UNESP. A escrita deste livro, de acordo com Tertulian, iniciou-se em
1969, contudo, somente foi publicado em 1980. A longa demora à publicação se deu,
especialmente, pelos seguintes motivos: primeiro, os estudos de Lukács somarem uma obra
elevadamente ampla, ainda com muitos textos inéditos descobertos postumamente. Em
segundo lugar, pelo fato de que o grupo de pesquisadores, junto ao estudioso romeno, ter
acesso à versão manuscrita de Para uma ontologia do ser social, desse modo, o período foi
voltado às pesquisas e estudos, analisando cuidadosamente as principais obras, para compor
uma apreciação mais detalhada do pensamento lukacsiano. O objetivo principal de Tertulian
foi a valoração das obras de síntese desenvolvidas por Lukács, já que o pensamento do
filósofo húngaro foi deturpado no que tange as obras de juventude, sem receber o seu real e
devido reconhecimento.

Enfatizamos as organizações de traduções da obra lukacsiana publicada por


Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, os quais, durante os anos de 1961 e 1970
12

trocaram correspondência3 com o filósofo húngaro, que se dispôs a discutir o marxismo com
os jovens estudiosos brasileiros interessados na teoria que melhor explica a realidade. Durante
a troca de cartas, conseguiram o aval de Lukács para a publicação de algumas obras, dentre as
quais, destacamos: Ensaio sobre literatura (organizada por KONDER, 1965a); Introdução a
uma estética marxista (tradução de COUTINHO e KONDER, 1968a); Marxismo e teoria da
literatura (organizado por COUTINHO, 1968b); Literatura e vida (tradução de COUTINHO
da entrevista concedida por Georg Lukács a Istvan Simon e Erwin Gyertyan. In: Conversando
com Lukács, 1969).

A análise do professor da Escola de Comunicação e Artes - ECA/USP Celso


Frederico, merece destaque nesta síntese, pois seu estudo sobre a obra lukacsiana é
vastíssimo. Relevamos dois livros que nos foi possível analisar, os quais versam sobre a
Estética de Lukács. No primeiro: Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica (2005), no
qual o autor apresenta considerações sobre Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Marx, no
que compete a arte, para em seguida apresentar o percurso de Lukács, explicitando detalhes
da obra Estética do filósofo húngaro; o segundo livro intitula-se Lukács: um clássico do
século XX (1997) que, além de trazer estudos literários, tem um capítulo destinado a examinar
a Estética, entre outros artigos publicados que versam sobre a temática.

Ester Vaisman, docente da Universidade Federal de Minas Gerais vem, desde


1983, desenvolvendo estudos com base na ontologia lukacsiana e presentemente coordena
projeto de pesquisa intitulado: Lukács – Estética e Ontologia, investigação de caráter
interinstitucional, entre a UFMG e a UBA (ARG), objetivando a análise do pensamento de
Lukács, especificamente acerca da última fase de sua obra, de 1961 até sua morte, em 1971.
Foi orientadora da tese: A relação sujeito-objeto na Estética de Georg Lukács: reformulação
e desfecho de um projeto interrompido, defendida por Rainer Câmara Patriota, em 2010, que
teve como escopo principal estudar a Estética madura, ainda que resgate o esboço incompleto
e interrompido da estética de Lukács desenvolvida em Heidelberg (1912-1918).

3
A correspondência pode ser encontrada em dois livros, quais sejam: Lukács e a atualidade do Marxismo
(2002), organizado por Pinassi e Lessa. Além das cartas, os organizadores do livro fazem uma entrevista com
Konder e Coutinho, na qual relatam como sucedeu o processo de inserção da obra lukaciana no Brasil. Outro
livro onde podemos encontrar as cartas é de autoria de Coutinho: Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade
no século XX (2005).
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Os estudos recentes de Newton Duarte, professor da Universidade Estadual


Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, aparam o projeto de pesquisa titulado: Arte e
formação humana em Lukács e Vigotski, apresentando como um dos principais objetos do
projeto referido: avaliar as possíveis proximidades e afastamento entre Lukács e Vigotski no
que tange ao papel formativo da arte.

A pesquisadora Belmira Rita da Costa Magalhães, desde 1995, vem


empreendendo estudos sobre a estética lukacsiana, hoje, professora e coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL), vem escrevendo artigos que perpassam a estética lukacsiana, sobretudo sobre
literatura. Nesse sentido, chamamos atenção para o livro intitulado Os desejos de sinhá
Vitória (2001), que resgata a obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, fazendo circular no
texto, fundamentada pela teoria do filósofo húngaro, a categoria da particularidade.

Nesse contexto, inserimos o interesse pelo estudo da Estética de Lukács, ainda


como aluna da graduação, tendo como preocupação aquelas apresentadas no início deste
texto, bem como a ânsia de estudar pelo viés marxista a busca pela compreensão da totalidade
do complexo da arte. Referimo-nos, desse modo, ao IMO. Especificamente, citamos o grupo
de estudos: Estética de Lukács: Trabalho, educação, ciência e arte no cotidiano do ser social,
o qual se abriga no referido instituto, sob o prisma da crítica marxiana, onde, a partir de 2008,
iniciei meus estudos sobre a Estética de Lukács. O mencionado grupo vem estabelecendo
estudos e traduções, desde 2006, da Estética de Lukács, sob orientação do professor
Deribaldo Santos. Atualmente temos o volume 14, da versão espanhola, traduzido para nosso
idioma, servindo-nos a fins didáticos. A procura pelo grupo de estudos da Estética é bastante
diversificada: alunos da graduação de vários cursos, entre eles, participam ou já participaram,
da Pedagogia, Serviço Social, Educação Física, Ciências Sociais, bem como alunos da Pós-
Graduação em Educação e Filosofia, pois a obra lukaciana dá conta de indagar
questionamentos da grande área da formação humana, onde é possível trazer contribuições
para cada pesquisa de maneira coletiva. Das contribuições aludidas no seio do IMO, foi

4
Anunciamos que trabalharemos com a edição espanhola da Estética I, traduzida por Manuel Sacristán,
autorizada por Lukács, publicada em 1965. A publicação espanhola foi dividida em quatro volumes, pela
Ediciones Grijalbo. A edição que utilizamos para o desenvolvimento desta dissertação foi impressa em 1982.
14

publicado, no ano de 2012, o livro: Ontologia, estética e crise estrutural do capital: uma
coletânea de estudos classistas, organizado por Santos, Costa e Jimenez.

Do grupo de estudos sobredito, podemos destacar, ainda, outros resultados: a


pesquisa A obra de Jackson do pandeiro: o cotidiano na estética do rei do ritmo, coordenada
pelo professor Deribaldo Santos, da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão
Central – FECLESC/UECE, a qual se propõe analisar como se constituiu a trajetória do artista
considerado o rei do ritmo da Música Popular Brasileira. Tal pesquisa é ancorada no método
materialista histórico-dialético. Nesse contexto, destacamos, ademais, trabalhos
monográficos, desenvolvidos na FECLESC, sob o prisma da estética lukacsiana, citamos o
trabalho da recentemente graduada em Pedagogia, Antônia Cleidivania Pinheiro, intitulado A
arte como elemento de humanização: aproximações à luz da estética I de George Lukács,
orientada pelo professor Deribaldo Santos. Santos foi, também, professor da disciplina:
Lukács: Da Estética à Ontologia, ofertada no Programa de Pós-Graduação em Educação, da
Universidade Estadual do Ceará. Presentemente, no semestre 2013.1, o Programa supracitado,
oferta a disciplina Estética, Cotidiano e Formação Humana em Lukács, sob a orientação do
mesmo professor.

Também é oportuno realçarmos Marcus Flávio Alexandre da Silva, professor da


Universidade Estadual Vale do Acaraú UVA/CE, que defendeu em 2011, na Universidade
Federal do Ceará, a tese: Estética e Audiovisual no Ceará: uma aproximação crítica à luz da
ontologia marxiana, além de publicar artigos que tratam da estética lukacsiana.

Consideramos, para efeito deste texto dissertativo, os estudos que concernem à


Estética (1982) de Lukács, as leituras que nos permitiram abarcar o curso do filósofo húngaro,
aqueles traduzidos por Konder e Coutinho (1965a; 1968a; 1968b; 1969; 1999), de modo que
possamos ser rigorosamente fiéis ao pensamento do esteta húngaro; Tertulian (2008), com o
intuito de compor o resgate de alguns elementos que restauram o desenvolvimento dos
estudos de Lukács; Frederico (2005), por entendermos que suas sistematizações se
apresentam concernentes ao que compete o estudo da obra Estética; tendo em vista o
enriquecimento do conjunto de estudos desenvolvidos no Instituto de Estudos e Pesquisas do
Movimento Operário. É necessário enfatizar, ainda, que diversos autores emprestaram
consideráveis contribuições a esta investigação, optamos, pois, por indicar essas necessárias
informações no início da cada capítulo.
15

Após expormos brevemente o propósito do conjunto de estudos, noticiamos


segundo Frederico (2005), que um dos primeiros comentadores da Estética de Lukács, foi o
crítico literário George Steiner, em 1964, logo após sua publicação. O esteta húngaro ficou
lisonjeado pelo interesse e relatou que sua obra, por ser minuciosa, necessitaria de alguns anos
para incubação. Passados quase cinquenta anos, Frederico (2005. p. 91), salienta que a obra
tem poucos estudos dedicados a ela: ―O único livro inteiramente dedicado à Estética de
Lukács, que conheço, foi feito por KIRÂLYFALVI, Béla. The aestheticis of György Lukács.
New Jersey: Princeton University Press, 1975‖.

Desse modo, a presente dissertação encontra sua relevância por contribuir para o
entendimento do papel da atividade criadora/receptora no aprimoramento dos sentidos,
apontando para a possibilidade de elevadas expressões no processo de humanização, a partir
da superação da sociabilidade regida pelo capital, na qual a maioria do conjunto da
humanidade é privada de desenvolver potencialmente suas essenciais capacidades humanas.

Gostaríamos de salientar que as valiosas contribuições dadas pelos avaliadores,


por ocasião do exame de qualificação, fizeram-nos refletir melhor sobre o objeto. Desse
modo, procuramos seguir as orientações no sentido de explicar porque a Estética desenvolvida
por Lukács, no que diz respeito ao entendimento do homem como um ser social, tem a
dimensão da singularidade e que, através da particularidade, se articula com a universalidade.
Por isso, a importância de tratarmos da gênese da atividade estética e, assim, avançar para
uma exposição mais límpida das categorias trabalhadas anteriormente.

Acatamos a orientação da banca, no sentido de elucidarmos melhor o complexo da


estética, trabalhar as categorias de modo mais intenso, entendendo a educação como formação
humana, sem entrar especificamente no complexo da educação em sentido stricto, a não ser
de modo alusivo, com exemplos dos Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte, para
especificarmos a situação atual da arte. É preciso ponderar, ademais, a exclusão dos estudos
sobre o reflexo e a consciência, projetados inicialmente, uma vez que a necessidade de uma
investigação mais detalhada da categoria reflexo, inclusive recorrendo a estudos psicológicos
sobre o tema, demandaria um tempo maior que os dois anos de mestrado.

No entorno dessa discussão, o objetivo dessa pesquisa é estudar das relações entre
a estética e o processo de formação humana, a partir do postulado marxiano-lukacsiano,
16

reverberando o trabalho como ato-gênese do ser social. Para atender a proposta geral,
elencamos nossos objetivos específicos, quais sejam: 1) analisar e resgatar uma síntese das
contribuições da estética lukacsiana no que compete à sua gênese, desenvolvimento e
contexto; 2) descrever a estrutura proposta pelo esteta húngaro, tendo em vista as condições
humanas objetivas, bem como as objetivações superiores; 3) elucidar a forma como a arte
reflete o ―aqui e agora‖ histórico, investigando como e por quais mediações dá-se a
fragmentação dos sentidos, diante da conjuntura capitalista.

Para responder às indagações que cercam o objeto, partimos do entendimento que


considera o trabalho protoforma da atividade humana, e que tem o papel fundamental na
démarche histórica, bem como no desenvolvimento do homem como ser social. Por meio de
uma concepção onto-histórica da essência humana, Marx estabelece a intrínseca relação entre
o surgimento do trabalho e a formação do ser social, relação dialética que se dá entre o
homem e a natureza. Baseando-nos nesse princípio, utilizaremos o método marxiano, uma vez
que, para a compreensão do objeto, partiremos da gênese, onde procuraremos evidenciar as
contribuições da estética lukacsiana para a formação humana. Nesse sentido, como fez Lukács
(1982) em sua grande Estética, buscaremos estabelecer os fundamentos autênticos da
dialética, contemplando o objeto paulatinamente, de modo que possamos penetrar às raízes da
problemática analisada.

Com o intuito de alcançar uma investigação o mais rigorosa possível, já que o


máximo que podemos pleitear é uma maior aproximação ao real, pois devido ao fato de que
―/.../ quanto mais uma coisa é complexa, tanto mais ilimitado, /.../ é o objeto diante do qual se
encontra a consciência do homem, de modo que mesmo o melhor saber só pode ser um
conhecimento relativo ou aproximativo‖ (LUKÁCS, 1969, p. 17, itálico do autor). Isto posto,
optamos por realizar uma pesquisa teórico-bibliográfica, fundamentada no materialismo
histórico-dialético, particularmente, na compreensão do legado marxiano da ontologia do ser
social, o qual traz o trabalho como premissa basilar, entendendo-o como ―/.../ uma posição
teleológica do trabalhador e a colocação em movimento de uma ordem causal‖ (LUKÁCS,
1969, p. 16). O trabalho é, portanto, categoria fundante do mundo dos homens e,
consequentemente, de todos os complexos que o circunscrevem. Dessa maneira, Lukács
(1969), na esteira de Marx, certifica a importância de se compreender a totalidade, a partir da
gênese:
17

/.../ se quero compreender os fenômenos sociais, devo considerar a


sociedade, desde o princípio, como um complexo composto de complexos.
/.../ Não se trata, como disseram alguns, das determinações sociológicas,
etc., que vêm sempre depois, mas da compreensão genética da origem e da
formação destes complexos. (LUKÁCS, 1969, p. 16, itálico do autor).

Como anunciado, nossa proposta investigativa tem como base a ontologia.


Naturalmente, esta exposição traçou seu caminho embasado na tradição clássica que compõe
o marxismo, ou seja, Marx-Engels-Lenin. Por se tratar de um estudo que pretende aprofundar
o debate ontológico sobre o estético, como já ficou claro, teria que priorizar as pesquisas do
pensador húngaro Georg Lukács. No plano inicial, pretendíamos ler criticamente o volume 1,
das quatro partes da edição espanhola. Não obstante, as primeiras aproximações ao objeto
mostraram que teríamos de avançar, mesmo que cotejadamente, sobre alguns traços dos
outros tomos. Portanto, informamos que nosso texto, embora tenha como prioridade o volume
1, acabou, como forma de uma melhor compreensão leitora, lançando mão de pontos
abordados nos demais volumes.

Nesse sentido, pleiteamos, de modo geral, compreender o debate que cerca a


estética marxista, a partir do postulado marxiano-lukacsiano. Optamos por expor a análise dos
objetos específicos divididos nos capítulos da pesquisa. Isto é, para que possamos dar maior
claridade expositiva ao texto e assim, aumentar a compreensão leitora. Adiantamos, a seguir,
a sequência de cada um dos capítulos que, por sua vez, procuram dar conta de cada um dos
objetivos específicos que compõem esta dissertação.

Iniciamos nossa leitura com as categorias discutidas nos espaços que nos
proporcionaram configurar o objeto, tendo em vista a necessidade de um melhor exame
desses conceitos, encetamos nosso trabalho, com o primeiro capítulo, titulado Gênese,
evolução e contexto da Estética I5: uma síntese, reconhecendo a estética lukacsiana como um
contraponto às demais formas de pensar a estética. Em seguida fazemos um esboço da
trajetória de Lukács sob as questões estéticas.

Antes de tudo, julgamos necessário anunciar que Marx não escreveu um tratado
sobre a Estética, mas seu arcabouço teórico deu indicações a uma estética marxista. Lukács,
sustentado pelo lineamento marxiano, pode dar forma a uma nova ontologia e a configuração

5
Mencionamos como Estética I, no decorrer do trabalho, o título da primeira parte da obra de Lukács, única
publicada do projeto inicial, o qual conteria três partes. No Capítulo 1, desta dissertação, explanaremos melhor
esse assunto.
18

de uma estética marxista. Destarte, extraímos do arcabouço marxiano e das formulações de


Lukács, uma nova estética, distinta de todas as estéticas que lhe antecederam e que,
sobretudo, lhe sucederam. A estética marxiano-lukacsiana, por assim dizer, se distingue das
outras porque apanha a atividade estética, articulada ao complexo histórico e social, não como
atividade absolutamente autônoma, embora ele percorra todo o raciocínio para explicar como
essa atividade estética tem sua autonomia na sua base material cotidiana espontânea, onde o
trabalho tem seu devido lugar. E também não como uma atividade auto-fundada, mas como
uma atividade imanentemente e eminentemente vinculada ao homem.

O segundo capítulo apresenta como título: Súmula da estrutura da Estética


lukacsiana: das condições humanas que se expressam na realidade cotidiana às objetivações
superiores, nele tratamos da cotidianidade como solo de rebatimento das atividades realizadas
pelo homem, registrando o trabalho como ato fundante em meio às categorias:
antropomorfização-desantropomorfização; imanência-transcendência; homem inteiro-homem
inteiramente, do primeiro volume da obra Estética, categorias estas que comprovam que
Lukács está tratando de outra estética, uma nova estética, que tem como fundamento uma
compreensão muito distinta desde Aristóteles, passando por Kant, Hegel, além de muitos
outros teóricos que trataremos neste capítulo.

Por fim, o terceiro capítulo, denomindo A arte e sua capacidade de refletir: o


“aqui e agora” histórico traz elementos sobre a sociedade contemporânea e sua arte em
estado de precariedade na conjuntura capitalista, uma vez que apresentamos como se depara a
fragmentação dos sentidos humanos. Aqui consideramos a política perpassada em
Documentos Oficiais, como: a Lei Rouanet, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o
ensino de artes, entre outros contextos, pelos quais a arte e o artista são submetidos. Lukács
(1982) assevera que a atividade estética, na sua peculiaridade, como atividade superior do
espírito, interrompe a marcha do cotidiano fazendo como que haja um processo de elevação.
Entretanto, vivemos em um cotidiano tão embrutecido que não sabemos quais são as
possibilidades embutidas nele, quais são as possibilidades estéticas existentes.

Pretendemos com esse debate, baseados nas leituras e análises lukacsianas,


sustentar, em nossas considerações finais, que um determinado tipo de atividade espiritual
confirma a humanidade do homem. No momento em que nos é dado um cotidiano tão
embrutecido, uma atividade estética pode se deslocar e reverberar no cotidiano de modo que
possa enriquecer o indivíduo, como partícipe do gênero humano. Nesse sentido, almejamos
19

dar um passo na direção do entendimento da Estética Marxista, recuperada e formulada, em


grande medida, por Georg Lukács.
20

2 SÍNTESE GÊNESE, EVOLUÇÃO E CONTEXTO DA

ESTÉTICA I: UMA SÍNTESE

O primeiro capítulo de nossa dissertação consta de elaborações em torno do que é


estética e das primeiras razões que nos despertaram o pensar nessa categoria. Se fizermos uma
pesquisa rápida em sites de busca na internet, encontraremos, de maneira geral, algo
vinculado a produtos de beleza, fitas métricas, clínicas de tratamento, e, até mesmo, cursos de
estética, intitulados ‗Estética e Cosmética‘, presenciais e também à distância, nos quais o
aprendiz de estética se especializará em cuidar do corpo, pois a imagem6, na atualidade, vale
muito.

Nunca Platão foi tão atual7, considerando a valorização do belo8 defendida pela
concepção de estética a que nos referimos no parágrafo anterior, veiculada em larga escala.
No entanto, o ‗cuidar‘ do corpo se aplica aos padrões ditados pela sociabilidade vigente,
irmanados com a grande indústria do comércio. Isso reflete aspectos da crise estrutural9 que
atinge o sistema metabólico do capital, o qual dissimula todas as relações e a totalidade de
complexos, em favor da conservação dos padrões por ele estipulados e do próprio preceito
conduzido pelo capital.

Contudo, a origem do vocábulo estética vem do grego, αισθητική ou aisthésis, que


significa sensível ou aquilo que se relaciona com a sensibilidade. A expressão tem como

6
As teorias pós-modernas tem se apegado às representações, ao simbólico, ao apelo imagético, inóspito,
desvinculado da materialidade, da base histórica e social que engendra a estética, para examinar o que quer que
seja, em nome da pluralidade, advogando que a ontologia marxiana ―já não dá respostas‖.
7
Tonet (2007) afirma que foi entre os gregos e romanos que se iniciou a necessidade de formar o corpo e o
espírito, através de exercícios que visavam possibilitar o completo desenvolvimento das propriedades espirituais.
Entretanto, tal formação estava apenas ao alcance daqueles que podiam dedicar seu tempo integral a essas
atividades, ou seja, o abismo contraditório entre o dedicar-se ao espírito ou ao trabalho material.
8
Platão sintetizou o ensaio do Belo concebido pela cultura até seu tempo, o que deu a esta experiência uma das
mais cabais interpretações filosóficas sobre o tema (NUNES, 2010).
9
De acordo com Mészáros (2000, p.7), o mundo passa por uma crise jamais vista. ―/.../ Sua severidade pode ser
medida pelo fato de que não estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as
vividas no passado, mas a uma crise estrutural, profunda, do próprio sistema do capital‖.
21

fundamento e julgamento o curso do belo, o aprazível e aquilo que causa o deleite. Foi por
volta de 1750, entretanto, ao tornar publico o livro Aesthetica, que Baumgarten10 estabeleceu
a terminação no campo filosófico (SANTOS, 2003). O filósofo alemão Baumgarten, também
professor da Universidade de Frankfurt, sistematizou a Estética, diante das outras disciplinas,
definindo o Belo como ‗percepção do conhecimento sensível‘. Assim, constituiu uma divisão
da Estética em duas partes, a primeira teórica, ―/.../ onde estuda as condições do conhecimento
sensível que corresponde à beleza‖ e a segunda prática, a qual se atribui a ―/.../ criação
poética, chega a esboçar uma espécie de lógica da imaginação, que contem os princípios
necessários à formação do gosto e da capacidade artística‖ (NUNES, 2010, p. 13).

O complexo estético, que pretendemos estudar, parte da análise teórica


fundamentada na estética lukacsiana, de modo que almejamos excursionar, brevemente, pela
história da arte, para que possamos ter elementos que nos possibilitem chegar a Lukács11 e ao
estudo de sua Estética. Faremos uma breve, porém necessária revisão para chegarmos ao
arcabouço marxiano da estética do pensador húngaro.

Para tanto, procuramos resgatar uma síntese dessa história, tendo como guia o
método que nos orienta o filósofo húngaro. Como meta, dar conta ao que o nosso primeiro
capítulo propõe, qual seja, a síntese da gênese e desenvolvimento dos estudos estéticos do
autor. Primeiramente, devemos alertar o leitor de que não encontramos muitos trabalhos que
aclarassem melhor a história da Estética. Todavia, dentro destes limites, utilizamos o livro
Estética Máxima (2003) de Fausto dos Santos, no qual versa sobre a filosofia da estética;
empregamos também o livro Introdução à filosofia da arte (2010), de Benedito Nunes, que
traz um conciso panorama da história da arte. Sobre a carreira literária de Lukács, recorremos
ao próprio filósofo húngaro, em seus textos e entrevistas concedidas (1968a; 1968b; 1969;
1982; 1999; 2000; 2009), bem como em alguns autores que tratam de suas obras, como:
Tertulian (2002; 2007; 2008), pela rica contribuição de seus estudos acerca da obra de

10
Geoffrey Alexander Baumgarten, filósofo alemão nascido em 1714, autor da conhecida obra Metafísica, a qual
foi adotada por Kant como manual para suas aulas acadêmicas. Mas sua obra mais importante foi Aesthetica
(1750-1758), que o converte como fundador da estética alemã e em um dos mais eminentes representantes da
estética do século XVIII (ABBAGNANO, v.2, 1994).
11
Para melhorar a compreensão leitora e evitar repetições textuais, utilizaremos, ao longo do texto, estas quatro
denominações para o trato ao autor principal: Lukács, esteta húngaro, filósofo húngaro, filósofo da Escola de
Budapeste.
22

maturidade de Lukács; no plano nacional, citamos autores que nos ajudaram a traçar um
panorama geral do contexto lukacsiano, são eles: Paulo Netto (1983), Coutinho e Konder
(1968a), Pinassi e Lessa (2002), Frederico (2005), Coutinho e Paulo Netto (2009); Vaisman e
Fortes (2010).

Lukács dedicou-se, desde o início de sua vida, como crítico literário, aos estudos
sobre estética, a partir dos primeiros textos escritos, antes mesmo de 1910, com História do
desenvolvimento do drama moderno, passando pelo desenvolvimento de sua Estética
sistematizada, publicada em 1963, até seus últimos dois escritos literários, acerca do
romancista russo Alexander Soljenitsin, escritos nos anos de 1964 e 1969, ambos publicados
em 1970, trabalhos estes que escreveu concomitante à Ontologia. (COUTINHO; PAULO
NETO, 2009). Para compreender o conjunto de sua obra, faz-se necessário entender o
contexto e mediações nos quais Lukács estava inserido. Para efeito desta dissertação,
reportamo-nos até o período de sua derradeira obra publicada em vida: Estética, na qual o
esteta húngaro teve a faculdade necessária para expor seu pensamento maduro acerca de sua
compreensão de uma teoria geral da gênese de todas as formas do espírito, da arte em
específico.

2.1 Reconhecimento da estética marxista como autônoma e universal: um


contraponto às demais formas de pensar a teoria do sensível

Nesse sentido, fazemos um decurso – reconhecendo que, desde 1908, em meio a


autocríticas e críticas veladas sob ‗citações protocolares‘12– a exemplo do que é visto em sua
primeira obra: História da Evolução do Drama Moderno, já é notável o envolvimento de

12
De acordo com Paulo Netto (1983), ‗citações protocolares‘ referem-se ao recurso utilizado por Lukács, através
do qual podia proteger suas ideias, recorrendo às ‗autoridades‘, assim podia dispor seu pensamento em ensaios,
conferências, debates etc. De acordo com o próprio autor, é preciso levar em conta o contexto que se
desenvolveram seus estudos. Suas considerações só podem ser entendidas se nos atentarmos aos acontecimentos
que rebateram suas ideias, como por exemplo, pelo o uso de citações no período stalinista. Lukács relata que era
uma forma dos textos serem publicados, segundo ele: ―/.../creio que não havia nada publicado sem algumas
citações de Stalin. O leitor advertido de hoje pode certamente perceber o que os censores da época não notavam:
que tais citações pouco tinham a ver com o conteúdo real, essencial dos artigos‖ (LUKÁCS, 2009, p. 28). Como
exemplo, destas citações, podemos ver o artigo A estética de Hegel, publicado no livro: Arte e sociedade:
escritos estéticos 1932-1967(LUKÁCS, 2009).
23

Lukács com as questões estéticas. Ainda que não traga uma leitura ontológica, Lukács já
esboça indícios em seus escritos da sua Estética em germe, a qual teve sua publicação no ano
de 1963.

Antes de tudo, consideramos necessário um breve resgate sobre a filosofia da arte,


especialmente no que se refere à categoria estética. Resguardamos a tradição composta pelo
filósofo alemão Baumgarten, que apresenta a Estética como a teoria da sensibilidade, palavra
derivada do grego, aithetiká, a qual expressa tudo aquilo que é apreendido pelos sentidos
humanos, estes, por sua vez, nos dão a possibilidade de entender o mundo (SANTOS, 2003).
Assim, tomamos o conceito de Estética13 para melhor compreender as orientações e
formulações a respeito dessa categoria nos diversos campos teórico-filosóficos.

De acordo com Nunes (2010), a arte, para Aristóteles, tem como objetivo geral a
imitação da realidade, o ato de imitar com o propósito de apreender o real. O filósofo grego
traz o belo para a esfera mundana, sob o escudo humano. Lukács (1982) já assinalara que
Aristóteles foi o verdadeiro descobridor da peculiaridade do estético e que seu pensamento se
situa longe da concepção mecânica, de modelo e cópia, instituída por Platão. Sua reflexão
surge na dialética da catarse14, a qual se coloca defronte a toda transcendência teológica, pois
―/.../ la fuerza pedagógica social del arte nace de su propia consumación estética, y no, como
en el pensamiento platónico, de la momificación o la simple supresión de los principios
propiamente estéticos‖ (LUKÁCS, 1982, v.4, p. 381).

Lukács (2009), ainda, indica que foi no campo na filosofia clássica alemã que
ocorreu a primeira intenção de se criar uma história da literatura e da arte. Anteriormente,
pautava-se apenas na experiência vivida, sem levar em conta sua fundamentação, o que não
permitia o devido entendimento dos preceitos da arte. No final do século XVII e início do
13
Primeiramente, fazemos uma ressalva com relação aos termos: estética e arte. Estética, do grego Aisthésis, que
significa sensação, segundo a transmissão, anteposta por Baumgartem, designou a ciência que trata do
conhecimento sensorial que chega à apreensão do belo e se expressa nas imagens da arte. A arte é, como bem
esclarecem Santos e Costa (2012), em todos os seus aspectos, ‗fenômeno social‘ e tem como escopo e base a
própria existência humana.
14
Recorremos à Vigotski para melhor explicar a arte como objetivação superior humana, e a catarse, nesse
sentido como encontro do homem com suas emoções mais autênticas, pois a ―arte sempre é portadora desse
comportamento dialético que reconstrói a emoção e, por isso, sempre envolve a mais complexa atividade de uma
luta interna que é resolvida pela catarse‖ (VIGOTSKI, 2003, p. 235).
24

século XVIII, a burguesia passou a reclamar o amparo da nova arte e literatura. Será durante o
Iluminismo, a então chamada ‗Era da razão‘, que surgirão movimentos, no campo teórico, no
que concerne a justificativa dessa nova arte, bem como ideias históricas de concepção da
literatura e da arte.

O esteta húngaro faz um percurso histórico, pretendendo trazer os principais


filósofos e seus fundamentais pensamentos acerca dos conceitos estéticos. Para Lukács
(2009), Rousseau via claramente a existência do equívoco e da incoerência da arte instituída
na propriedade privada, portanto, o filósofo suíço não dava o devido apreço a arte em geral.
Por outro lado, Herder, outro filósofo trazido por Lukács, buscou, ainda, elaborar um
panorama histórico geral da cultura humana, entretanto, não alcançou uma reconstituição de
seu julgamento histórico junto à concepção materialista da própria arte, ou seja, não foi
possível um desenlace metodológico-filosófico.

Immanuel Kant, por sua vez, ao apresentar a divisão entre atividade útil e
atividade estética, se distancia do método de análise lukacsiano. Lukács, segundo Tertulian
(2008), baseia-se na gênese da atividade estética, que lhe permite ultrapassar a cisão inflexível
proposta pelo filósofo prussiano. Lukács esclarece que é pelo processo de trabalho onde se
perde a significação de utilidade para uma dimensão estética e esse processo é mediado pela
consciência. Como explica Tertulian:

/.../ O conceito de consciência de si, verdadeira pedra angular da estética


lukácsiana, é constantemente tomado em sua dupla acepção corrente:
exprime tanto a estabilidade e a autonomia do homem solidamente
estabelecido em seu ambiente concreto com a iluminação da consciência (e
da existência a ele subjacente) por sua própria reflexibilidade interna, por
volta da força mental sobre si mesma (TERTULIAN, 2008, p. 217).

O estudioso romeno, com clara inspiração na Estética de Lukács, aponta que a


‗consciência de si‘ está junto ao sentimento prazeroso – puramente estético, mas que se
desprende de uma satisfação apenas utilitária. O modelo estético lukacsiano elucida que é
possível ver com nitidez o processo de transição do útil ao puramente estético, não
esqueçamos: com a mediação do trabalho, consequente de um procedimento histórico. Essa
transição é o elemento chave que o difere da proposta estética do pensamento kantiano.
25

O exemplo do ritmo15 é bem ilustrativo para esse caso, pois é, para Lukács, uma
forma primária da atividade estética. Inicialmente, o ritmo tinha a função de ‗suavizar o
labor‘16, o movimento contínuo, propriamente dito, torna-se autônomo a partir do momento
que proporciona a sensação de bem-estar, tornando-se, mais tarde, independente, por
exemplo, de modo evocativo, usado em rituais primitivos de dança, magia, etc.

Outro exemplo empregado por Lukács (1969) é o do homem primitivo ao recorrer


ao uso da pedra que pode ser usada para determinado fim ou não. O trabalho permite a
utilidade ou a inutilidade do objeto. Este ó o ponto de vista, sob o qual o filósofo húngaro
estabelece como ―/.../ fonte ontológica daquilo que chamamos de valor‖ (LUKÁCS, 1969, p.
28), pois a partir do momento, em tempos remotos, que a pedra não serve para ser utilizada
como ferramenta, poderá ser agregada a esta um valor estético, por exemplo. Desse modo,
temos o término da atividade de utilidade imediata, já que ―/.../ los elementos estéticos
representan un exceso que no aporta nada a la utilidad efectiva, fáctica, del trabajo‖
(LUKÁCS, 1982, v.1, p. 251).

Destarte, temos elementos para explicar que o surgimento do complexo universal


da arte é tardio e paulatino, com relação ao trabalho, tendo em vista que o estético nos faz
presumir que exista certa elevação técnica, além da ocupação do agradável, no processo de
criação. Ademais, a arte, no sentido ontológico, é uma maneira do homem compreender a
própria vida na natureza e na sociedade. Nos termos de Lukács, é, também, encargo da arte
―/.../ uma continuidade do comportamento do homem em relação à sociedade e à natureza‖
(LUKÁCS, 1969, p. 29).

Kant é considerado por Lukács (2009), como um ‗idealista subjetivo‘ porque sua
elaboração aplica-se ao indivíduo isolado, desse modo, não contempla em sua estética a
função social da arte. Já Hegel, é, para Lukács, um ‗idealista objetivo‘, pois reconhece a
verdade objetiva absoluta das categorias estéticas, o próprio movimento do desenvolvimento
histórico. Hegel supera o dualismo kantiano ao entender que a estética se transforma numa

15
Lukács (1982, v.1) revela as chamadas formas abstratas do reflexo estético, a exemplo do ritmo, supracitado,
aborda, do mesmo modo, simetria, proporção e ornamentação, todos relacionados à realidade objetiva.
16
Vale destacar que, o sistema capitalista extrai tudo o que se dirige ao humano. O ritmo no manejo das
máquinas, na linha de produção, é essencial, uma vez que, por dentro dele, está o tempo de trabalho.
26

expressão de convicções humanistas, e que a grande tarefa objetiva da arte é constituir o


homem: ―/.../ desenvolvido em todas as suas dimensões, não mutilado, não fragmentado pela
desfavorável divisão do trabalho; a expressão do homem harmonioso‖ (LUKÁCS, 2009, p.
56).

Com base nessa discussão, é possível indagar se Hegel elaborou uma síntese
histórica e filosófica do desenvolvimento da arte, baseado nas formulações do que de mais
crítico precedeu sua teoria. É preciso considerar, entretanto, os limites do idealismo objetivo.
Não se trata, com isso, de atear fogo em suas formulações, mas de utilizá-las com base na
ontologia marxiano-lukacsiana. Com efeito, para usarmos uma expressão lukacsiana (1969), é
necessário averiguar sob o aspecto da ‗fossa comum das idéias‘, nesse caso, o pensamento
burguês, cravado em Hegel.

Sem o resguardo do método certificado por Marx, cair-se-ia, como Hegel, no erro
de considerar que há identidade entre objeto e sujeito. Assim, a estética hegeliana entende
―/.../ como uma fase do processo de busca e de encontro de si mesmo do sujeito-objeto
idênticos‖ (LUKÁCS, 2009, p. 62), de modo que significa um nível superior da consciência, a
expressão do ‗Espírito Absoluto‘. É nesse plano elevado que Hegel vai diferenciar três
estágios: a arte, a religião e a filosofia.

Esses estágios irão representar, no sistema hegeliano, um atrelamento ao


desenvolvimento histórico, de modo que determinado período da história receba um estágio
citado. Hegel, por ser um profundo admirador da arte grega clássica, considerava-a como a
única verdadeira. Para Lukács (2009), amparado pela leitura de Marx e Engels, Hegel não
compreendeu que a antiguidade, a arte grega, pertence ao passado.

Segundo Marx (apud Lukács, 2009), a arte e a epopéia da Antiguidade eram


consideradas normas e modelos inacessíveis, mas não se tratava de direcionar a arte do
presente ou do futuro ao imperfeito ou, ainda, de que se devesse reproduzir como modelo, de
modo acadêmico, como proclamava Hegel. Ao contrário, pela ―/.../ perspectiva socialista da
evolução da humanidade, o conhecimento de que a luta de classes leva inevitavelmente à
ditadura do proletariado, ilumina corretamente, pela primeira vez, as perspectivas do passado,
do presente e do futuro da evolução da arte‖ (LUKÁCS, 2009, p. 75). De acordo com a
formulação de Marx, readquiridas por Lukács (1969), podemos compreender Homero e outros
27

poetas antigos como nosso passado e não como os homens de hoje. Nesse sentido, através da
arte, é possível chegarmos ao passado e entendermos o seguimento da conduta do homem,
através de uma apreensão onto-histórica da arte.

Hegel, de acordo com o esteta húngaro (2009), relaciona a manifestação do


‗espírito absoluto‘ a certos períodos históricos, de modo que avalia o período da arte grega
como forma de revelação do espírito no nível da intuição, e que a revelação do espírito
compete ao estágio da arte. De modo semelhante, no período medieval, tal aparição do
espírito tem o nível da representação, que cabe ao estágio da religião. Por fim, no seu
contexto, Hegel estabelece, como manifestação do espírito, o nível do conceito o qual incube
a filosofia.

Hegel, ainda, assinala que a arte oriental ―/.../ não alcançou o nível da intuição, e a
arte medieval e a moderna lhe aparece como aquela na qual o Espírito já ultrapassou o nível
da intuição‖ (LUKÁCS, 2009, p. 63). Há um esforço, por parte de Hegel, de alicerçar e
sistematizar as categorias estéticas, contudo, sua teoria esbarra sempre no idealismo filosófico
– mesmo que objetivo –, limitando a objetividade real e o processo histórico.

Com essa crítica em tela, reafirmamos nossa intenção de considerar qualquer


análise social, sobretudo a estética, na firmeza da leitura marxiano-lukacsiana, dada sob o
exame dialético materialista da história. Para esta investigação, como já afirmamos em outras
ocasiões, a teoria que oferece direção à solução dessas questões e que nos permite desviar do
terreno das simples intuições e adentrar ao tratamento científico é a ontologia.

Sabemos que Marx17 não tem um tratado específico sobre Estética; como relata
Lukács (2009), existiram, apenas, algumas intenções a serem escritas: Sobre a arte religiosa
(1841) e Sobre o romantismo (1842), ―/.../ no entanto, as numerosas anotações e observações
sobre livros de estética e história da arte revelam como ele levava a sério estes projetos‖
(LUKÁCS, 2009, p. 68). Entre esses planos, destaca-se um anseio de escrever um vigoroso
estudo sobre Balzac, um dos autores favoritos de Marx, mas nunca se efetivou. Contudo, na
extensão de sua obra, bem como no conjunto de escritos em parceria com Engels, foi possível

17
Convém destacarmos que a obra de Marx foi sobre a materialidade do mundo, sobre sua totalidade e, qualquer
que seja o assunto, terá que ser procurado na totalidade de sua obra, seja: Filosofia, Economia, Educação, dentre
outros complexos.
28

fazer uma compilação dos que mencionam a arte e a literatura, extraídos de textos sobre
variados temas, cartas e anotações de conversas, organizados por Lifschitz18.

Lukács vai se acercar da teoria marxiana para desenvolver sua Estética e seu
pensamento sazonal. No início da década de 1930, ao estagiar no Instituto Marx-Engels-
Lênin, o filósofo húngaro passa a ter contato com fundamentais obras para rever seu
pensamento com relação a algumas concepções idealistas e a estabelecer algumas
considerações a serem descritas.

O filósofo húngaro assegura que, o filósofo húngaro assegura que, do ponto de


vista marxiano, nem a ciência nem, tampouco, a arte ou qualquer outro complexo, tem uma
história autônoma que dependa apenas de si próprio para se efetivar. O desenvolvimento de
qualquer complexo se desdobra pelo movimento da história, cabe salientar que não consta
aqui, a indeferimento de uma autonomia relativa, mas que ―/.../ a existência e a essência, a
gênese e a eficácia da literatura [por exemplo] só podem ser compreendidas e explicadas no
quadro histórico geral de todo o sistema‖ (LUKÁCS, 2009, p. 89). Desse modo, é necessário
atribuir à dependência ontológica que esses complexos têm perante o trabalho, protoforma da
atividade humana, o que vai diferir o ser social das outras esferas biológicas.

O exame histórico de Marx e Engels, no que compete a arte e a literatura, abarca,


de modo geral, o desenvolvimento do ser social. O campo de estudo volta-se às determinações
contemporâneas, nas quais os teóricos alemães estavam inseridos: o sistema capitalista. A
sociabilidade regida pela égide do capital representava, para eles, a escala econômica mais
enobrecida estabelecida no processo evolutivo do homem até então. No entanto, devido à
exploração de uma classe sobre outra, inerente ao sistema capitalista, o nobre solo de
desenvolvimento econômico é desfavorável à efetivação máxima e irrestrita às objetivações
do gênero humano.

A teoria marxiana, em meio a outras teorias que destacam e até descrevem a


problemática da fragmentação de uma sociedade na qual a maioria das pessoas compõe um
abismo entre a vida espiritual e material, é a única que consegue ir às raízes existentes de
modo integral. Além de assinalar a problemática, repulsa a força que combate, despreza e
18
Falaremos um pouco mais a frente da relação que o crítico literário russo Lifschitz teve com Lukács, por
ocasião do período que ambos estiveram no Instituto Marx-Engels-Lênin, no inicio da década de 1930.
29

corrompe o homem, própria de um sistema de exploração, tal como é, inumano. Inúmeras


tentativas, com representações burguesas e/ou idealistas, foram feitas no sentido de lutar em
nome de uma base humanista, todavia

/.../ só a concepção materialista da história é capaz de reconhecer que a


verdadeira e mais profunda lesão ao princípio do humanismo, a dilaceração e
mutilação da integridade humana, é apenas a conseqüência inevitável da
estrutura econômica, material da sociedade. A divisão do trabalho na
sociedade de classe, a cisão entre cidade e campo, a divisão entre trabalho
físico e trabalho espiritual, a exploração e a opressão do homem pelo
homem, a fragmentação do trabalho nas condições anti-humanas da ordem
capitalista de produção – todos estes processos são processos econômicos,
materiais (LUKÁCS, 2009, p. 116).

Diante disso, só apenas por esse viés, através do entendimento irrestrito ao


desvelamento econômico, social e espiritual proposto pela teoria marxiana e recuperado, em
grande medida, por Lukács, é possível indicar a maneira que poderá se esmerar outra forma
de sociabilidade. Para tanto, é preciso lutar contra o sistema de exploração que não permite a
livre consciência, de modo que se possa almejar um novo homem e uma nova sociabilidade.
Para Lukács,

/.../ o humanismo socialista insere-se no centro da estética marxista, da


concepção materialista da história /.../ é preciso sublinhar com ênfase que, se
esta concepção penetra nas raízes mais profundamente entranhadas no solo,
nem por isso nega a beleza das flores. Ao contrário, é a concepção
materialista da história, a estética marxista, e somente ela, que fornece os
instrumentos para uma justa compreensão deste processo na sua unidade, na
sua orgânica conexão entre raízes e flores (LUKÁCS, 2009, p. 117).

Lukács foi buscar, na teoria e estética marxista, o fundamento para compreender


profundamente o real e, assim, entender que outra sociabilidade é indispensável. O homem é
um ser social, na medida em que tudo de humano existente nele resulta da vida em sociedade,
ou seja, do contexto cultural que vem sendo criado pelos homens em sua prática, e, de acordo
com essa prática, é que os homens poderão abrir caminho para o alcance de outra sociedade,
propriamente humana.

Mesmo com considerações ainda elementares, já podemos indicar que foi


imprescindível o estudo da teoria marxista para que Lukács pudesse elaborar sua Estética.
Infelizmente, foi pouco compreendido em seu tempo, tendo em vista que os teóricos
contemporâneos a ele buscavam seu pensamento inicial. Sobre essa questão, seguimos com as
30

palavras de Tertulian (2008, p. 189) relatando que ―/.../ a Estética permanece o monumento
mais expressivo dos textos publicados durante sua vida‖. Para Tertulian, na década de 1960,
era moda criticar Lukács, as depreciações eram feitas, principalmente, com base em suas
obras iniciais, sem levar em conta sua obra de maturidade fundamentada na teoria marxiana.
A seguir, trazemos a tona alguns exemplos dessas restrições à obra madura do esteta húngaro.

Ernst Bloch, por exemplo, acusou Lukács de se utilizar do sociologismo como


método. Para Bloch, Lukács ―/.../ teria permanecido prisioneiro de uma relação de aderência
estreita demais entre o condicionamento econômico social e a estrutura da obra de arte,
insensível à emergência de sua dimensão utópica‖ (TERTULIAN, 2008, p. 190-191), ou seja,
ele teria prendido a estética ao curso da economia, em última instância, sem tratar essa relação
de autonomia relativa, de autonomização crescente da atividade estética ao posicionamento
econômico. As críticas apontadas sobre a inculpação de sociologismo evidenciam ensaios que
Lukács escrevera anteriores à Estética.

Lukács, no prefácio à Estética, faz um agradecimento à Bloch, e não só a ele, mas


também a Weber e Lask, pelo interesse crítico que esses intelectuais alemães prestaram a seu
trabalho. Faz, entretanto, a ressalva de que sua última obra publicada em vida toma posição
oposta ao idealismo filosófico, distanciando do que foi sua obra juvenil, alvo de críticas
desses autores sobre citados, pois, segundo o esteta húngaro,

/.../ a principios de los años cincuenta, pude pensar en volver, con una
concepción del mundo y un método completamente distintos, a la realización
de mi sueño juvenil, y realizarlo con contenidos completamente distintos y
con métodos totalmente contrapuestos (LUKÁCS, 1982, v. 1, p. 30).

Bloch, ainda censurou Lukács de neoclassicista. Tal repreensão deu-se devido ao


esmero à forma presente na obra inicial do filósofo húngaro, bem como por ele ser leal às
reminiscências da estética clássica. Bertold Brecht, por sua vez, sobre outro aspecto, também
dirigia a Lukács a mesma crítica de Bloch. O teatrólogo alemão não concordava com a
posição do esteta húngaro, pois ―/.../ Brecht, visivelmente, então no que se chamava o
‗segundo período‘ – médio – de sua obra, estava excluído pelos critérios lukacsianos do
realismo‖ (TERTULIAN, 2008, p. 197)19. Não se pode afirmar, tendo em vista a concepção

19
Tendo em vista que, segundo Lukács: ―/.../ toda grande literatura, toda literatura autêntica, é realista. Não se
trata aqui de estilo, mas do ângulo de visão da realidade, da posição tomada diante dela /.../ A questão que se
coloca é a de saber até que ponto pode se qualificar de realistas certas tendências ‗modernistas‘ ou de
31

lukacsiana, de acordo com Tertulian, se os textos de Brecht possuíam o caráter de


universalidade ou se eram escolhas puramente particulares, daí o próprio juízo de gosto.
Assim, Brecht, no término de seu texto, titulado Die Essays Von Georg Lukács, declarou que
para Lukács: mais vale o ‗prazer desinteressado de Kant‘ do que uma arte dita revolucionária.

Tertulian (2008) alega, por outro lado, que Lukács lamentava não ter conseguido
dedicar à obra de Brecht um estudo crítico. O que fez, e, mesmo assim, considerava
insuficiente, foram as poucas páginas dedicadas no seu livro La signification presente du
réalisme critique, bem como no prefácio a uma outra edição da obra Brève histoire de la
littérature allemande, uma ligeira dedicação aos estudos do teatrólogo alemão. Para deixar
mais amena tal polêmica, convém trazer o relato de Tertulian (2008), sobre a visita que Brecht
fez à Lukács, durante sua passagem em Moscou, em 1941:

/.../ naquela ocasião, Brecht lhe teria dito que havia pessoas que tentavam, a
qualquer preço, aumentar suas divergências e semear a discórdia entre eles,
mas que ambos deviam opor-se a tentativas semelhantes e fazer um pacto de
solidariedade (TERTULIAN, 2008, p. 299-300).

Não se sabe ao certo se Lukács tomou conhecimento acerca de tais afirmações


encontradas nos textos do poeta alemão sobre ‗o prazer desinteressado de Kant‘. O que se tem
conhecimento é que ambos tiveram uma relação próxima nos últimos anos de vida de Brecht,
pois foi encontrada, nas correspondências de Lukács, uma carta na qual Hélène Weigel,
esposa de Brecht, o convidava para o enterro de seu marido, expressando o desejo que apenas
os amigos mais íntimos estivessem presentes (TERTULIAN, 2008).

Sobre o modo como a específica mediação artística, especialmente as obras de


vanguarda, influencia, sob os aspectos humanos, Lukács tem uma posição crítica e firme, uma
vez que acreditava que a sucessão artística deveria manter uma posição crítica e acesa com a
tradição. Ressaltamos, ademais, que a estética marxista prima por um alcance da humanidade
ao que de melhor o homem conseguiu constituir. Equivocam-se aqueles que entendem que o
pensamento marxista busca uma inovação irrestrita ou um movimento intelectual de

‗vanguarda‘. Onde eu começo a não estar mais de acordo é quando a literatura, como que desorientada, renuncia
a toda pintura pluridimensional, a toda marca de universalidade; não somente em seu conteúdo, mas também na
forma /.../ Por sua natureza mais profunda, a arte possui várias dimensões. Ora, as ultimas décadas manifestam
uma tendência muito marcada para a arte de uma só dimensão. Sou contra.‖ (LUKÁCS, 1969, p. 185-186).
Falaremos com mais propriedade sobre o realismo no terceiro capítulo desta dissertação.
32

vanguarda artística, mais ainda aqueles que apreendem a emancipação da classe trabalhadora
como uma disposição que deseja renunciar o que foi criado anteriormente, muito pelo
contrário, ―/.../ devem herdar todo o conjunto de valores reais elaborados pela evolução
plurimilenar da humanidade‖ (LUKÁCS, 2009, p. 102).

Já Adorno o acusa de não dar a devida importância a função mediadora da


subjetividade estética e de confundir a lógica do pensamento científico com a lógica da
criação artística. Entretanto, quem teve acesso à leitura da Estética, destaca com louvor tal
querela. Nesse sentido, Tertulian interdita o ataque: ―Ora, o sistema estético de Lukács é
amplamente consagrado a estabelecer, de modo constante, a distinção entre dois tipos de
atividade espiritual‖ (TERTULIAN, 2008, p. 193). O filósofo húngaro se utiliza, no que
compete sua obra Estética, o recurso de aproximação e distanciamento da arte com relação à
religião, como ficará aclarado no decorrer da presente discussão, a luta de libertação da arte
com relação ao complexo religioso.

Mais um ponto a ser destacado, em meio às críticas adornianas, refere-se aos


estudos de Lukács em relação à gênese da arte. Segundo Tertulian (2008), o anexo da obra
póstuma Aesthetische theorie, de Adorno, intitulado ‗Teorias das origens da arte‘, leva a
seguinte afirmação categórica: ―As tentativas que visam fundamentar a estética a partir da
origem da arte como sua essência são necessariamente decepcionantes‖ (TERTULIAN, 2008,
p. 202). Lukács tem como fio condutor de sua teoria, na esteira de Marx, o exame da gênese e
evolução da arte, apresentando o ‗método genético-ontológico‘20. Ademais, no que tange a
sua obra madura, o filósofo húngaro sistematizou um verdadeiro e rigoroso estudo sobre o ser
social; e seu método lhe consentiu entender a condição humana que se expressa na realidade
cotidiana.

Adorno acreditava que Lukács havia renunciado a seu pensamento anterior, assim,
teria imolado o cerne de seu pensamento estético ao recusar sua obra de juventude. Sartre,
pensador marxista de relevo, vai nessa mesma corrente, ao afirmar que ―/.../ um verdadeiro
filósofo que tem seu pensamento em evolução não sente necessidade de renegar suas obras
anteriores‖ (SARTRE, 1949 apud TERTULIAN, 2002, p. 28). Em resposta a Adorno e Sartre,
consideramos o que o filósofo húngaro contestou à Vezér, sobre a unidade de seu

20
Termo utilizado por Tertulian (2008).
33

pensamento. Na obra Pensamento vivido – autobiografia em diálogo, Lukács expôs que não
se deve mudar de opinião constantemente, mas que se houverem motivos para fazê-lo deve-se
estar propenso à alteração, se faltar tal disponibilidade, consequentemente faltará integridade
intelectual, porque sem esse parâmetro, ―/.../ sem isso não há evolução humana‖. (LUKÁCS,
1999, p. 125).

Convém ainda, relatar que Lukács foi apresentado como submisso ao partido
comunista, onde deveria seguir as orientações de um ‗dogmatismo leninista‘. Trazemos como
exemplo dos motes formulados a esse respeito, o jornalista e historiador François Fejtö, o qual
relatou que ―/.../ depois que Lenin identificou traços de idealismo hegeliano em sua História e
consciência de classe, Lukács tratou logo de se ‗deshegelianizar‘, de tirar de seus textos tudo
que poderia escandalizar seus censores‖ (FEJTÖ, 1985 apud TERTULIAN, 2002, p. 28).

O fato é que, mesmo muito tempo depois da escrita de sua obra História e
consciência de classe, já na Estética, como destacado anteriormente, Lukács reconhece o
universalismo e o modo histórico-sistemático hegeliano de sintetizar a arte, todavia, questiona
sua fundamentação baseada no idealismo filosófico. Desse modo, rompe com as
definições/delimitações mecânicas e hierárquicas, propostas pela teoria hegeliana, porém não
deixa de trazer a tona o mérito da teoria.

O filósofo húngaro teve como pretensão evidenciar, através do método genético-


ontológico, ―/.../ a arte como forma autônoma do sincretismo com as outras formas
espirituais‖ (TERTULIAN, 2008, p. 203). O método utilizado por Lukács é profícuo no
sentido de proporcionar, em relação aos outros métodos clássicos da teoria do conhecimento,
o fato de que:

/.../ As propriedades constitutivas da arte e do fato estético apresentam, numa


tal perspectiva vertical, um relevo e uma profundidade bem diferentes;
adquirem um coeficiente de necessidade que as analises estritamente
epistemológicas do idealismo filosófico estavam longe de poder assegurar-
lhes (TERTULIAN, 2008, p. 203).

Lukács não intentava, não intentava, através de seu método, recompor a história
inicial da arte, mas analisar suas articulações consecutivas dos distintos tipos de atividade
espiritual, estudando até sua forma circunspecta. Mais adiante exploraremos melhor essa
questão.
34

Ainda com relação ao pensamento de Sartre, enfatizamos que, na Introdução de


Crítica da visão dialética, o filósofo francês sanciona sua crítica a Lukács tentando evidenciar
que ele teria sacrificado as mediações complexas que ligam as estruturas de certos fenômenos
espirituais a seu substrato sócio-histórico. Tertulian (2008) ratifica que Lukács, ao
desenvolver sua Estética, no que compete à teoria geral da subjetividade estética, desde sua
gênese e estrutura, nos leva a compreender uma teoria geral da origem de todas as formas do
espírito, o que nos permite localizar o próprio método lukacsiano.

Vale destacar que, tanto Sartre quanto Lukács, lutavam para desmascarar a
vulgarização e a dogmatização sofrida pelo marxismo, tendo como objetivo resgatar o legado
original marxiano, apesar de se aterem a métodos distintos. Nas palavras de Tertulian a
respeito dos filósofos: ―/.../ Ambos procedem a um exame radical das categorias fundamentais
do pensamento de Marx, cujo reexame crítico lhes parecia necessário depois da longa
hegemonia do dogmatismo stalinista‖ (TERTULIAN, 2002, p. 36).

Além disso, Sartre e Lukács vibravam considerações positivas um sobre o outro.


Sartre, por exemplo, após ler a obra assinada por Lukács A destruição da razão (1954),
relatou que o filósofo húngaro era ―/.../ o único na Europa que buscava explicar as causas dos
movimentos do pensamento contemporâneo‖ (SARTRE, 1964 apud TERTULIAN, 2002, p.
34). Por outro lado, Lukács se debruçou na obra Crítica da razão dialética e, apesar de
discordar de pontos estruturais da obra, reconheceu resultados alcançados pelo autor francês,
no que compete ao materialismo histórico. Todavia, teve como ressalva a junção indevida da
teoria hegelo-marxista à filosofia kierkegaardiana, indicada por Sartre.

Outras críticas dirigidas a Lukács, mais recentemente, partem do estudioso


literário alemão Hans Mayer, que, embora admitisse que em Lukács fosse fácil compreender
as relações que ligam as correntes literárias à vida social, criticava-o no concernente a sua
visão simplificadora da relação condicionamento sócio-histórico/arte, bem como uma relativa
carência quanto à decifração das particularidades estritamente estéticas das obras. Bernard
Teyssèdre, filósofo e escritor francês, foi o primeiro a bradar contra a ideia de que havia uma
divisão metodológica entre materialismo dialético e materialismo histórico, presente na obra
lukacsiana Introdução a uma estética marxista, pois segundo Teyssèdre, não havia
possibilidade de tratamento da arte dialeticamente sem considerar a história. Todavia, ambos
35

os julgamentos foram feitos sem o acesso a leitura da Estética de Lukács (TERTULIAN,


2008).

No final da década de 1960, alguns dos alunos de Lukács, mais conhecidos por
fazerem parte da então titulada Escola de Budapeste, dentre eles Agnes Heller, Ferenc Feher e
Mihail Vadja, abandonaram o marxismo propalado por Lukács, tendo como escopo a renuncia
da Ontologia (PINASSI; LESSA, 2002). Vaisman e Fortes (2010) seguem a mesma linha de
pensamento de Pinassi e Lessa, ao se referirem ao texto publicado na revista Aut aut, cujo
título Anotações sobre a Ontologia para o companheiro Lukács, de autoria dos três
budapesteanos, além de Márkus, os quais afirmavam que a Ontologia de Lukács permitia
vários problemas não somente em relação a determinados aspectos exatos, mas também
impugnaram o próprio desígnio de Lukács de instituir uma ontologia com embasamentos
materialistas.

Outras polêmicas se fundem nesse imbróglio, porquanto os destacados intérpretes


da obra lukacsiana, e em especial a Estética, discordam em seus julgamentos finais. Frederico
(2005) excursiona sobre eles: para Nicolas Tertulian, há um escopo ontológico em toda
caminho do autor húngaro, isso fica evidente nas últimas obras. Considerando a análise de
Jose Chasin, Lukács apenas conseguiu desfazer a aparência hegeliana, ainda de modo
inacabado, na Ontologia. Miklós Almasí assevera que a Estética proposta por Lukács vai
além da esfera gnosiológica, mesmo que a finalidade ontológica seja inconsciente. Heller,
como já atendemos, engrandece a Estética e danifica a Ontologia. Mészáros aprecia a Estética
como um esboço e não como uma síntese concluída. Por fim, Frederico atesta que, a Estética
se configurou como uma inclinação rumo à ontologia e é exatamente dessa maneira que o
esteta húngaro considera, na entrevista concedida a Vézer: ―A Estética, na verdade, era a
preparação para a Ontologia, na medida em que se trata do estético como momento do ser, do
ser social‖ (LUKÁCS, 1999, p. 139).

Avaliamos, desse modo, que o debate sobre essa questão está longe de terminar, mas é
preciso reconhecer, com base nas leituras feitas no grupo de estudos ‗Estética de Lukács:
Trabalho, educação, ciência e arte no cotidiano do ser social‘, que Lukács já trazia em sua
Estética o germe da Ontologia, destacando, em diversos pontos, o trabalho como ato
fundante. Considerada obra madura pela maior parte dos estudiosos, o que acordamos, a
Estética foi um passo importante para que o filósofo húngaro entendesse que precisaria
36

fundamentar uma Ética, com base nos estudos ontológicos. Infelizmente, não teve o tempo
histórico necessário para a conclusão de seus estudos, apesar de ter seguido incansavelmente
com tal propósito até os derradeiros dias de sua vida.

2.2 Um esboço da gênese da estética lukacsiana

A partir desse breve curso sobre a estética inserida no percurso teórico de Lukács,
damos início ao esforço teórico de Lukács de ir, a partir da gênese da atividade estética, à
elaboração sugerida e indicada por Marx, não só de uma nova Estética, mas também de uma
nova Ontologia. Desse modo, inicialmente nos debruçamos sobre as elaborações referentes a
uma nova Estética fundada em uma nova Ontologia, para, em seguida, problematizarmos e
articularmos algumas categorias de modo que possamos compreender melhor o conceito de
arte em Lukács.

Encetamos a discussão, assumindo que Marx fundou uma nova ontologia, uma
ontologia distinta de todas as outras, fundamentada na história. Marx formulou, nas palavras
de Lukács (1999, p. 145), ―/.../ a tese segundo a qual a categoria fundamental do ser social, e
isto vale para todo o ser, é que ele é histórico‖. Com base nesse pressuposto, consideramos
que o mundo dos homens é marcado por uma série de complexidades desenvolvidas durante o
decurso da história. Compreendemos, a partir da leitura profícua dos estudos de Lukács, na
esteira de Marx, a existência de três representações singulares, as chamadas bases ontológicas
do ser social, que caracterizam a processualidade histórica do homem, as quais, embora se
apresentem distintas no plano ontológico, são articuladas, uma vez que o ser social demanda
uma contínua troca com o natural. Desse modo, como assegura o próprio filósofo húngaro:

/.../ Ora, historicamente, é indubitável que o ser inorgânico aparece primeiro


e que dele – não sabemos como, mas sabemos mais ou menos quando –
provém o ser orgânico, com suas formas animais e vegetais. E desse estado
biológico resulta depois, através de passagens extremamente numerosas,
aquilo que designamos como ser social humano, cuja essência é a posição
teleológica dos homens, isto é, o trabalho (LUKÁCS, 1999, p. 145, grifo
nosso).

Nesse sentido, podemos constatar um salto entre uma forma mais simples e o
início de uma forma mais complexa, pois é através desse salto que se aprimora uma nova
37

forma de ser. Entretanto, há que se levar em conta o fato de que a esfera do ser social é a
única capaz de produzir o novo, àquela que modifica a natureza e a si mesma, através do
trabalho, e, a partir deste, originam-se os demais complexos atrelados à organização da vida.

Consideramos, dessa maneira, que a orientação metodológica marxiano-


lukacsiana atribui ao trabalho um papel preponderante no desenvolvimento histórico do
homem. Para Lukács (2009), o homem cria a si mesmo com a mediação do trabalho, ―/.../
cujas características, possibilidades, grau de desenvolvimento, etc., são, certamente,
determinados pelas circunstancias objetivas, naturais ou sociais‖ (LUKÁCS, 2009, p. 91).

Advertimos ainda que, independente do objeto de estudo, em especial o das


ciências humanas, é indispensável o estudo da ontologia enquanto gênese, pois

/.../ se quisermos compreender os fenômenos no sentido genético, o caminho


da ontologia é inevitável, e que se deve chegar a extrair das várias
circunstancias que acompanham a gênese de um fato qualquer os momentos
típicos necessários para o próprio processo (LUKÁCS, 1969, p. 14, itálico
do autor).

Por conseguinte, seguindo esse método de análise, é pela dialética que, ao


retornarmos aos fatos iniciais da vida, podemos entender os fatos mais complexos. Conforme
expusemos resumidamente, Marx certificou uma compreensão da realidade, radicalmente
nova diante das antecessoras21. Ainda nessa linha de raciocínio, Tertulian (2008) ressalta que
Lukács sustenta a importância de reconhecer as origens da atividade estética como meio
imprescindível à sua explicação, por meio do exame da sucessão lógica que vai se
distinguindo, avançando em sua variedade conferindo às atividades espirituais originais.
Todavia, há que destacar que este trabalho não é isento de dificuldades, visto que, mesmo que
o material facultado pela arqueologia e etnografia seja abastado 22, no que concerne às formas
de arte primitiva, é incomensurável a existência de lacunas.

21
Consideramos, com base no próprio pensamento lukacsiano, que Lukács apesar de afirmar a constituição de
uma estética marxista sistemática, não rejeita o acúmulo anterior ao marxismo, já que ―/.../ também nesse terreno
o marxismo é herdeiro das melhores tradições do passado cultural e não as nega nem as pode negar, se é que
pretende efetivamente superá-las‖ (COUTINHO; PAULO NETTO, 2009, p.13).
22
Alexis Leontiev, em sua obra O desenvolvimento do psiquismo (1978), abrange um riquíssimo conteúdo
acerca da démarche histórica no que tange ao desenvolvimento biológico e sócio-histórico do homem. Podemos
contar também estudos de pesquisadores que tratam da origem da vida, contextualizando com a história social, o
documentário Como nos tornamos humanos (2009), produzido pela NOVA/PBS, mostra a evolução humana,
buscando considerar recentes descobertas sobre o homem primata, por meio de entrevistas com renomados
38

Outro fator que pode ser levado em conta é que posto que haja a ausência de
material histórico, e, embora existam essas brechas no que se refere aos nossos conhecimentos
acerca das origens, ―/.../ elas não são consideráveis o bastante para impedir a reconstituição,
em grandes linhas, das etapas decisivas da evolução do espírito‖. Lukács se utilizará do
lineamento marxiano para autenticar sua própria teoria com ―/.../ a célebre tese de Marx
contida na introdução aos Fundamentos da crítica da economia política: ‗A anatomia do
homem dá a chave da anatomia do macaco‘‖ (TERTULIAN, 2008, p. 201).

Assim como Marx, que partiu da análise da forma de sociabilidade capitalista para
reconstituir o processo de origem e desenvolvimento dos sistemas sociais antecedentes, o
filósofo húngaro teve a pretensão de evidenciar que a origem da atividade estética do homem
foi antecedida, em seu germe, por um movimento que foi se transformando, no qual pôde
examinar os elementos contínuos da atividade estética desde o salto ontológico até as
configurações maturadas de seu tempo.

Isto posto, temos elementos para imputar considerações a respeito de uma nova
estética, uma estética marxiana23. Embora Marx não tenha escrito nenhum tratado sobre
estética, poderíamos extrair do arcabouço marxiano e das formulações de Lukács, uma nova
estética, articulada a essa nova ontologia, distinta de todas as formulações e orientações que a
humanidade conheceu até hoje.

De acordo com Lukács, a concepção marxiana não é apenas uma teoria


econômico-social, no entanto sua ontologia dá conta de uma visão universal do mundo. Nas
palavras do autor:

cientistas e imagens feitas nas escavações em sítios arqueológicos da África e da Europa. Ainda no campo da
sétima arte podemos citar como exemplo o filme A guerra do fogo (1991), de Jean-Jacques Annaud, pois ―A
imagem criada artisticamente a partir de dados científicos da realidade nos leva a refletir diversas dimensões da
reprodução intelectual da realidade que os hominídeos tiveram que realizar até alcançarem a condição de homo
sapiens sapiens. Executando seus atos e refletindo sobre eles os hominídeos conseguem um constante progresso
de iluminação e de riqueza da determinação do que investigam (o fogo) e de sua conexão sistemática‖
(SANTOS, CARMO, FRAGA, 2009).
23
O termo ‗estética marxiana‘ é utilizado por Lukács na entrevista concedida no livro ―Pensamento vivido‖,
edição brasileira de Edições Ad Hominem. Para além dos problemas de tradução, consideramos, baseados em
Paulo Netto, o termo estética marxiana elaborada pelo próprio filósofo alemão, bem como a terminação estética
marxista, feita por outros autores que tratam da teoria marxiana.
39

/.../ devia haver uma estética marxiana própria, que o marxismo não tomava
nem de Kant nem de nenhum outro. Essas idéias foram elaboradas por
Lifchitz e por mim. Naquele tempo eu trabalhava com ele no Instituto Marx-
Engels. Com a elaboração dessas idéias teve início todo o nosso
desenvolvimento subseqüente. A constatação não é comum hoje na historia
da filosofia, no entanto o fato é que fomos os primeiros a falar de uma
estética marxiana específica, e não desta ou daquela estética que completasse
o sistema de Marx /.../ Sobre esta base começamos a desenvolver a idéia de
que existe uma estética marxiana e que para desenvolvê-la era necessário
partir de Marx (LUKÁCS, 1999, p. 87-88).24

Com efeito, a ontologia marxiano-lukacsiana se distingue das outras porque ela


contorna a atividade estética, articulada ao complexo histórico e social. Lukács percorre todo
o raciocínio para explicar que essa atividade estética é autônoma da sua base material
cotidiana espontânea. Porém, não é uma atividade auto-fundada, mas uma atividade imanente
e elevada do homem.

Para melhor explicar a origem da atividade estética, a qual tem seu aparecimento
enquanto complexo tardio, nos apoiamos em Tertulian (2008), ao elucidar que determinada
situação, na qual se compunha um caráter mágico/religioso de cunho prático e factual, passa a
desenvolver certa autonomia, ocasião que estabelece um desprendimento do transcendente e
que principia a realização de um estado de imanência, o principio de uma efetivação
genuinamente do ser social. Destarte, se edifica, de acordo com Tertulian, fundamentado em
Lukács, o

/.../ Momento em que a produção ou a narrativa, dança ritual ou mágica


recebem, além de sua função original, uma nova função, que surge
involuntariamente, a função estética (TERTULIAN, 2008, p. 209).

Nessa ocasião, ocorre o que Lukács considera uma fase distinta da ‗consciência de
si‘ do desenvolvimento humano. Aquilo que é avaliado como necessidade antropomórfica,
todavia, sem o apelo ao transcendente, atinge o estágio da imanência, a dialética entre
objetividade-subjetividade, próprio do complexo da arte. A estética, nos termos de
Baumgarten, é a faculdade do sentir – modo como podemos nos desenvolver na realidade –
pois é da vida cotidiana que se extraem as sensações que mais tarde serão objetivadas na
forma de reflexos superiores. Sendo a arte uma abstração superior, não é produzida de modo

24
Sobre esse período, no qual Lukács teve acesso aos Manuscritos Econômico-Filosóficos, bem como os textos
de Lenin, falaremos com mais afinco adiante.
40

cotidiano. Contudo, tem seu nascedouro neste e volta ao mesmo, quando autêntica25, de
maneira enriquecida.

Não obstante, mesmo sem poder ainda enfrentar com devida profundidade e rigor
o que expressaria ser uma arte autêntica, ousamos, apoiados em Lukács, considerar, mesmo
que de forma assumidamente sintética, nosso entendimento sobre a categoria da autenticidade,
pois nela ancora o enriquecimento do homem enquanto ser social ao retornar ao cotidiano26. O
filósofo húngaro afirma que

/.../ el hecho es que, en la medida en que sus obras son artísticamente


auténticas, nacen de las más profundas aspiraciones de la época en que se
originan; el cotenido y la forma de las creaciones artísticas verdaderas no
pueden separarse nunca – estéticamente – de ese suelo de sus génesis. La
historicidad de la realidad objetiva cobra precisamente en las obras del arte
su forma subjetiva y objetiva (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 25).

Deste modo, vale a pena registrar que toda arte genuinamente profunda, guarda
uma interação recíproca com seu aspecto temporal histórico e universal ou aquilo que Lukács
chamou de hic et nunc, expressão latina que significa, grosso modo o ‗aqui e agora‘, que vai
garantir a autenticidade de uma obra. Ainda de acordo com Lukács (1982, v. 1, p. 260), a arte
―/.../ no se limita a fijar simplemente un hecho en sí, como la ciencia, sino que eterniza un
momento de la evolución histórica del género humano‖. A arte autêntica prende-se ao gênero
humano – aquilo que o homem produziu de mais acabado na historia da humanidade até
então, as objetivações humano-genéricas.

Assim, a arte, produto do desenvolvimento social, institui um patrimônio para o


porvir: a arte mágica dos povos primitivos, expressa nas cavernas, dá conta de explicar como
foi a vida naquele tempo; os templos, os palácios, a arquitetura do oriente; a arte grega e

25
Antes de tudo, é preciso frisar que não compete a esta dissertação fazer apontamentos relacionados ao juízo de
gosto no que se refere à arte autêntica, pois a arte por ser antropomorfica (explicaremos mais adiante essa
categoria) permite individual apreciação, de acordo com o desenvolvimento histórico do sentido/sentimento de
cada indivíduo. Claro que, em tempos propícios ao desenvolvimento de uma arte vazia de sentido, que passe a
largo de seus receptores, só poderá galgar à mediocridade. De todo modo, consideramos que mesmo neste estado
relatado, há possibilidade para que o homem consiga trazer ao solo cotidiano uma arte plena de sentido, pois,
nesta circunstância, a arte pode negar, denunciar, expressar a contradição ou mesmo, apontar o devir, em meio
ao processo do real.
26
Antecipamos que adiante discutiremos a conceitualização da arte a partir das categorias: antropomorfização,
desantropomorfização, imanência e transcendência.
41

romana; os grandes artistas do Renascimento; etc. Com base nesse quadro, acrescentamos as
palavras de Lukács, ao explanar sobre a verdade artística:

/.../ La verdad artística es, pues, como verdad, histórica; su verdadera génesis
converge con su verdadera vigencia, porque ésta no es más que el
descubrimiento y manifestación, el ascenso a vivencia de un momento de la
evolución humana que formal y materialmente merece ser así fijado
(LUKÁCS, 1982, v. 1, p. 260).

Com esse contexto em tela, através do qual Lukács principia seus estudos acerca
das questões estéticas, ressaltamos que sua produção intelectual se aplica sobre a análise das
formas culturais, especialmente a literatura. Desse modo, percorremos o trajeto intelectual de
Lukács, pois este nos ajuda a explicar melhor a importância da estética para o autor, no
sentido de compreensão da realidade. Voltar aos estudos iniciais, tomando por base seu
pensamento de maturidade, é outra maneira de abarcar o método empregado anteriormente.

Nesse sentido, pretendemos resgatar o caminho pelo qual Lukács traçou seus
estudos estéticos, pois dessa forma, acreditamos ser possível apresentar como se dissipa sua
concepção metodológica. Não aspiramos realizar uma biografia, nosso intuito é entrelaçar a
polêmica história do intelectual militante com sua trajetória teórica até o encontro com o
marxismo, que, a nosso ver, foi decisivo para que Lukács formulasse sua concepção estética.
Faremos uma compilação de autores que se debruçaram sobre esse assunto, de modo que
possamos compreender melhor como se estabeleceu as bases para a escrita de uma nova
Estética e, posteriormente, para a inconclusa Ontologia. Cabe afirmar, mais uma vez, que
trataremos apenas de alguns dos textos escritos pelo filósofo húngaro referentes à estética.

2.3 Percurso de Lukács sobre seus estudos estéticos

A primeira grande obra de Lukács, titulada História da Evolução do Drama


Moderno recebeu o prêmio da Sociedade Kisfaludy em 1908, mas passou por uma revisão e
foi editada em 191127. Isso demonstra a grande envergadura intelectual de Lukács aos vinte e

27
Segundo Macedo (2000), essa obra nasceu no contexto e sob influência da companhia teatral Thalia, da qual
Lukács era integrante e fundador. Nesta ocasião, o referido grupo traz em cena peças de Strindberg, Hebbel,
Wedekind, Gorki e Ibsen, e deste último o filósofo húngaro traduziu a peça O pato Selvagem, mantendo contato
pessoal com o dramaturgo norueguês no ano de 1902.
42

três anos de idade. O trabalho supracitado foi dedicado à ―/.../ produção dramática, do século
XVIII ao século XIX, cobrindo o drama alemão clássico (Lessing, Schiller, Goethe), Hebbel,
Ibsen, Strindberg, Hauptmann, Tchecov, Maeterlinck, Shaw, Wilde, D'Annunzio e
Hofmannsthal‖ (PAULO NETTO, 1983, p. 17), obra considerada pelo próprio filósofo
húngaro como opositora de correntes literárias positivistas, impressionista subjetivista, pela
crítica francesa etc. Havia certa influência do marxismo, mas com preponderância de
Simmel28. Para Lukács (2009), seus textos até então, traziam uma característica idealista-
burguesa, pelo fato de não partirem das relações diretas entre a sociedade e a literatura, pois
apenas buscavam apreender e objetivar uma súmula da Sociologia e da Estética que se
ocupavam do objeto.

A obra A Alma e as formas foi publicada em 1910. Nela é evidente a crescente


influencia da filosofia hegeliana, ―/.../ seu esforço de concretização se limitava‖ como
confirma o próprio Lukács (LUKÁCS, 2009, p. 22), ―/.../ ao intento de apreender a estrutura
interna, a essência geral de determinadas formas típicas do comportamento humano, e, em
seguida, vinculá-las às formas literárias, mediante a figuração e a análise dos conflitos da
vida‖. Esses escritos, de acordo com Paulo Netto (1983, p. 20): ―/.../ são textos que se centram
na crítica literária, abordando autores que, em sua maioria, representam o anticapitalismo
romântico‖. A advertência de Paulo Netto sobre essa questão é que o ―/.../ enfoque de Lukács
não é sociológico-estético‖ como em História da Evolução do Drama Moderno, ―/.../ mas
filosófico, ético-estético‖ (PAULO NETTO, 1983, p. 20), o que constitui um salto, pois
Lukács buscava organizar um escólio menos abstrato dos elementos literários.

No ano de 1912, Lukács se desloca para Alemanha, cidade de Heidelberg, onde


passa a manter contato com o grupo de Max Weber. A Primeira Guerra exacerba sua
preocupação com a calamitosa situação mundial e isso reflete em seus escritos. Para Coutinho
e Paulo Netto (2009), esse período é caracterizado, no jovem filósofo húngaro, como uma
clara vinculação entre estética e ética. Tal atrelamento é objeto de estudos que desenvolveu

28
O sociólogo alemão que exerceu influência no pensamento inicial de Lukács. Segundo o esteta húngaro, sobre
o peso de tal influência, ―/.../ Simmel trouxe à baila o caráter social da arte, transmitindo-me um ponto de vista
sobre cuja base tratei da literatura, indo muito além de Simmel. A verdadeira filosofia do meu livro sobre drama
é a filosofia de Simmel‖ (LUKÁCS, 1999, p. 38).
43

entre 1912 e 1917, entre eles destacam-se os incompletos29 Filosofia da arte, de 1912-14 e a
apontada como Estética de Heidelberg, de 1914-1730.

A vinculação entre estética e ética, anteriormente mencionada, deságua no


encanto pela obra de Dostoiévski. Ao estudar a obra do escritor russo, Lukács relata que,
dentro dos limites da literatura burguesa, o realismo russo, tanto de Dostoiévski como de
Tolstoi, o instruíram como na literatura se pode desaprovar em bloco todo o sistema (NETTO,
1983). Nesse debate, segundo o esteta húngaro, não se discute se o capitalismo tenha esta ou
aquela aberração, mas, que, de maneira geral, todo ele é desumano (LUKÁCS, 1969).

O filósofo húngaro escreve Teoria do romance31 entre 1914-1915. Esse livro,


segundo o próprio Lukács, dirige-se mais aos problemas histórico-filosóficos. Em 1916,
publica a obra supracitada na Revista de Estética e de História Geral da Arte – de Max
Dessoir, e, em forma de livro, posteriormente, em 1920, pela editora de P. Cassier. De acordo
com o prefácio, ainda do mesmo livro reeditado, escrito pelo autor em 1962, a obra nasce num
contexto de "/.../ permanente desespero com a situação mundial" (LUKÁCS, 2000, p. 8).
Lukács revela, ainda, que a eclosão da Primeira Guerra, e o que o levou a ser contrário a ela
se distingue da maioria pacifista, se deveu ao fato do esteta húngaro ser avesso ―/.../ tanto às
democracias ocidentais quanto às potencias centrais‖ (LUKÁCS, 2009, p. 24) e que a saída
para toda aquela crise era a via revolucionária. Decerto que a visão de Lukács caia no plano,
segundo o próprio autor, idealista, e foi o que deu base para a escrita do trabalho supracitado.

29
Para Coutinho e Paulo Netto (2009), a insuficiência desses trabalhos se deve a insatisfação do esteta com
relação aos pressuposições metodológicas que orientavam seus estudos, as quais tinham uma preponderância
neokantiana.
30
Patriota (2010) relata que Lukács, nesse momento, buscava ―/.../ transplantar o princípio hegeliano para o
contexto da filosofia transcendental do neokantismo‖ (PATRIOTA, 2010, p.7). Lukács, ao encontrar na obra
marxiana fundamento teórico, ―/.../se despede de seu passado intelectual e desautoriza publicamente textos que
lhe haviam rendido a celebridade‖ (PATRIOTA, 2010, p. 14-15). Todavia, há um resgate por parte do escritor e
historiador de arte budapesteano Arnold Hauser que, na década de 1960, envia à Lukács três capítulos de sua
estética anterior. Durante uma conversa com seus alunos, na década de 1970, o filósofo húngaro pensa na edição
húngara de sua obra de juventude, mas nada se concretiza. Depois de seu falecimento ―/.../ vêm à tona novos
capítulos, sobre os quais o filósofo jamais havia mencionado. Lukács havia sepultado sua obra inacabada sob
camadas profundas de esquecimento‖ (PATRIOTA, 2010, p. 14-15).
31
Esta obra tinha a intenção de ser uma introdução aos estudos sobre Dostoiévski, mas acabou tornando-se um
trabalho independente (COUTINHO; PAULO NETTO, 2009).
44

Lukács relata, ainda, que se encontrava num período de transição do kantismo


para o hegelianismo. Reconhece, inclusive, as limitações do método que constituíra até então
e revela que somente:

/.../ uma década e meia mais tarde me foi possível – já em solo marxista, é
claro – encontrar um caminho para solução. Quando nós com A. Lifschitz,
em repúdio à sociologia vulgar, da mais variada extração, do período
stalinista, tencionávamos desentranhar e aperfeiçoar a genuína estética de
Marx, chegamos a um verdadeiro método histórico-sistemático (LUKÁCS,
2000, p. 13).

No período de 1930-193132, Lukács estagia no Instituto Marx-Engels-Lênin, em


Moscou, onde estabelece uma relação com Mikhail Lifschitz33, que, conforme comenta Paulo
Netto (1983, p. 51), era ―/.../ pesquisador do mesmo Instituto, que estava analisando os textos
em que Marx e Engels tratavam de questões estéticas‖. É nesse momento que Lukács tem seu
primeiro contato com os Manuscritos Econômico-Filosóficos, bem como pelos Cadernos
Filosóficos de Lenin. Paulo Netto (1983) indica que esta leitura fez com que Lukács revisse
algumas posições anteriores e rompesse de vez com algumas concepções hegelianas 34. Sobre

32
De acordo com Vaisman e Fortes (2010, p. 10): ―/.../ Alguns intérpretes de Lukács, como Oldrini e Tertulian,
consideram que a fase de maturidade de Lukács tem início em 1930, data a partir da qual o filósofo passa a se
dedicar aos seus estudos sobre a arte, tendo como orientação uma chave analítica fundada no pensamento de
Marx‖. Vale destacar, segundo Coutinho e Paulo Netto (2009), que, na década de 1920, Lukács dedicou-se aos
estudos literários e estéticos, publicando textos no famoso jornal alemão, criado por Karl Liebknecht e Rosa
Luxemburgo, Rote Fahne, no qual tratou de escritores como Lessing, Balzac, Dostoievski, Bernard Shaw,
Hauptmann, etc, além de temas relacionados ao marximo e teoria da literatura, ―/.../ muitos deles foram
selecionados e publicados por Michael Löwy em G. Lukács, Littérature philosophie marxisme (1922-1923),
Paris, PUF, 1978‖ (COUTINHO; PAULO NETTO, 2009, p. 18).
33
Nesse período, 1930-31, Lukács e Lifschitz se debruçavam sobre os textos de Marx e Engels, concernentes às
questões estéticas. A título de ilustração, alguns textos da obra de Vigotski, os quais tomam como referência a
obra marxiana, foram escritos nesse mesmo período: A transformação socialista do homem (1930) e Historia del
desarrollo de las funciones psíquicas superiores (1931) (CARMO, 2008). Lifschitz, assim como Vigotski, era
russo. Contudo, não encontramos registros de que tenham tido algum contato. Entretanto, vale ressaltar que
Vigotski também teve como base a teoria marxiana e concluiu a tese Psicologia da arte em 1925, e ―/.../
conforme relato de Leontiev (1996, p. 433), procurou realizar duas tarefas, a saber: tanto ‗uma análise objetiva
da obra literária quanto uma análise objetivo-materialista das emoções humanas que surgem ao ler a obra de arte‘
(CARMO, 2008, p. 35). Outra questão que gira em torno do filósofo russo e que julgamos importante destacar
refere-se à entrevista concedida a Eörsi e Vezér, na qual Lukács atribui a ele próprio e a Lifschitz a divulgação
do desenvolvimento da ideia de existir uma estética marxista. A opinião do esteta húngaro sobre Lifschitz ―/.../ é
a de que ele era um dos maiores talentos que vivia naquela época, sobretudo no plano puramente literário. Via
com grande clareza o problema do realismo, mas não o entendeu às outras partes da cultura /.../ Assumi a
posição entre irracionalismo e racionalismo, qualquer que fosse a forma destes, idealista ou materialista, ou seja,
naquela época eu ultrapassei tematicamente a linha de Lifschitz. O pobre Lifschitz ficou na Rússia, não o levei a
mal por isso. O que é que ele podia fazer na Rússia? Apoiou a linha que condenava a literatura moderna. Sua
concepção se tornou totalmente conservadora‖ (LUKÁCS, 1999, p. 88).
34
Celso Frederico em seu livro Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica nos fornece elementos para
compreender, especialmente no Capítulo 3: Sujeito, objeto, totalidade, que o pensamento de Lukács está
45

essa questão, Lukács (2009, p. 27), explica que ―/.../ O reconhecimento da autonomia da
originalidade da estética marxista foi meu primeiro passo na direção da compreensão e da
realização de uma nova inflexão ideológica‖35. E complementa escrevendo:

/.../ O estudo desses materiais contribui para modificar o meu pensamento.


Até então, eu procurara interpretar corretamente Marx à luz da dialética
hegeliana; a partir daquele momento, procurei utilizar para o presente os
resultados de Hegel e do pensamento filosófico burguês – que, com ele,
alcançara seu apogeu –, mas com a crítica dos seus limites, com a base na
dialética materialista de Marx e Lenin (LUKÁCS, 2009, p. 27).

Com efeito, Lukács dedica-se, nas décadas de 1930 a 1950, a larga produção
intelectual atrelada ―/.../ já no campo marxiano, à estética e aos princípios humanizadores da
atividade artística e literária constituindo-se o ponto alto de sua produção‖ (PINASSI;
LESSA, 2002, p. 187). Datam, desse período, publicações como: o ensaio Narrar ou
descrever (1936); o livro O romance histórico (1937); o escrito Marx e o problema da
decadência ideológica (1938); edita estudos sobre o Fausto, de Goethe (1941); Goethe e sua
época, Literatura e democracia, Arte livre ou arte dirigida? (1947); Existencialismo ou
marxismo?, Thomas Mann, O realismo russo na literatura universal (1949); Realistas
alemães do século XIX, Literatura e arte como superestrutura (1951); Balzac e o Realismo
Francês (1952); A Destruição da Razão, Nova História da Literatura Alemã e Contribuições
à História da Estética (1954); Problemas do realismo (1955). (NETTO, 1983; PINASSI e
LESSA, 2002; FREDERICO, 2005)36.

Aqui, cabe uma importante constatação, declarada por Lukács, no prefácio do


livro Problemas do realismo, na edição espanhola de 1965. O filósofo húngaro (1968b)
afirma que seus escritos de 1934-40 e muitos reunidos na obra citada foram divulgados na

articulado ao postulado hegeliano, principalmente em História e Consciência de Classe, e, a partir do contato


com a obra de Marx: Manuscritos Econômico-Filosóficos, o filósofo húngaro reconhece o seu processo de
transição e revisa o alicerce que amparava seu pensamento anterior.
35
Coutinho e Paulo Netto (2009) asseveram que tanto Lukács quanto Lifschitz colocavam-se em oposição a
marxistas como Plekhanov e Mehring, entre outros marxistas da época da Segunda Internacional, já que estes
não acreditavam na criação de uma estética própria, a partir do legado de Marx. A maior parte dos dirigentes da
Segunda Internacional enxergavam apenas a teoria marxiana revolucionária da economia política. A partir de
então, Lukács teceu sua obra baseado no fundamento de uma estética marxista sistemática.
36
Essa larga produção sobre assuntos literários confere o fato do encontro de Lukács com a estética marxista.
46

revista Literaturnii Kritik37, publicação esta que tinha como objetivo barrar as tendências
rappistas38, com intuito contrário ao sectarismo literário e ao modernismo burguês.

Consideramos que esse grande impulso teórico-literário implicou à Lukács o


sentido do encontro com a estética marxista, contudo, deve-se levar em conta que, segundo o
próprio Lukács, em muitos aspectos, se difeririam o que ele escreveria em 1965, não só pelas
citações protocolares39, mas em termos da estrutura do conteúdo. Mas não se pode negar o
caráter rudimentar que os ensaios trouxeram aos textos posteriores.

Em 1957, foi publicada Introdução a uma estética marxista40. No prefácio da


obra, Lukács afirma que o estudo desse livro foi planejado para ser um capítulo da parte
dialético-materialista41 da sua Estética, já que para o projeto inicial, o filósofo húngaro
supunha uma divisão em três partes: I – A peculiaridade do estético; II – A obra de arte e o
comportamento estético; III – A arte como fenômeno histórico-social, das quais apenas a
primeira foi publicada. Introdução a uma estética marxista analisa a gênese filosófica do
princípio estético, tendo como principal categoria: a particularidade – o particular como
mediação (purificação) entre o singular e o universal. Para o filósofo húngaro, o papel da
particularidade na estética é o ato de refletir a realidade objetiva, mediação via reflexão

37
Em 1940 a revista foi dissolvida e Lukács não teve mais acesso à imprensa literária russa, apesar de nada
dizerem sobre ele. A única opção de Lukács foi a contribuição para duas revistas, a Internationale Literatur,
editada em alemão e a Uj Hang, húngara (LUKÁCS, 2009).
38
Lukács (1968b) relata que existiu uma organização oficial chamada RAPP (Associação Russa de Escritores
Proletários), a qual reunia escritores revolucionários da URSS, porém esta foi abolida em 1932, pois seguia uma
tendência sectária. No seu lugar, em 1934, foi criado outro grupo de escritores chamado de União dos Escritores
Soviéticos, que tinha a intenção de abranger outras tendências e ideologias. Todavia vale lembrar que a URSS
estava sob regime stalinista, e não tardou posições partidárias e censura dentro dessa nova organização.
39
Lukács afirma que à época não se publicava nada sem referência à Stalin, e que muitas vezes, tais citações
nada tinham a ver com o conteúdo dos textos.
40
De acordo com Coutinho e Konder (LUKÁCS, 1968a), tradutores da Introdução a uma estética marxista, a
primeira edição do livro foi publicada na Itália em 1957, sob o título: Prolegomeni a un estetica marxista –
Editora Riuniti. O texto em alemão vinha sendo examinado cuidadosamente pela Republica Democrática Alemã.
Por ocasião da participação de Lukács nos acontecimentos que terminaram com a intervenção soviética na
Hungria, a publicação foi suspensa. Apenas em 1967, dez anos depois da edição italiana, apareceu uma edição
integral alemã.
41
Contudo, essa divisão proposta na obra que, posteriormente, viria se tornar a Estética, como explica o tradutor,
não é uma dicotomia entre o materialismo histórico e o materialismo dialético: as duas primeiras partes da obra
tendiam a elaboração de um sistema de categorias do estético e, a última, se propunha estudar a realização dessas
categorias (SACRISTAN, 1982, vol. 3, contracapa).
47

consciente. No prefácio dessa obra, Lukács se convence que tal estudo necessita de uma
publicação a parte, portanto não entraria na obra Estética, pois, segundo ele, principalmente

/.../ por ser o problema da particularidade um dos mais negligenciados, tanto


do ponto de vista lógico como do ponto de vista estético. Ao mesmo tempo,
êste constitui, a meu ver, um dos problemas centrais da estética. O presente
estudo, portanto, só em um sentido bastante limitado há de ser considerado
como um prolegomenon à minha estética: êle contém, todavia, a abordagem
sumária e, no entanto, sempre monográfica de um dos problemas mais
importantes de tôda a estética. E é isso que pode justificar-lhe a publicação
(LUKÁCS, 1968a, p. 3).

Finalmente, é no ano de 196342 que o mundo conhece a primeira das três partes do
projeto inicial da Estética lukacsiana. No prefácio da obra, o esteta húngaro assevera que, de
fato, desde a estética hegeliana, nenhum filósofo tentou sistematizar a essência da estética.
Sobre a divisão de sua Estética, Lukács relata que a primeira parte comporta um esboço geral.
Teve como objeto descobrir, de modo amplo, os dados da vida cotidiana, as categorias do
estético, intitula-se: A peculiaridade do estético. A segunda deveria especificar essas
categorias, com o resultado principal detalhar a estrutura da obra de arte, teve como título
provisório: A obra de arte e o comportamento estético. Por fim, caberia à terceira parte
esclarecer a presença real dessa estrutura na vida cotidiana: A arte como fenômeno histórico
social. (SACRISTAN, 1982, v. 3). Ainda no Prólogo da obra, o autor justifica que a parte
precedente se faz compreensível sem as outras duas, pois ―/.../ esta parte constituye un todo
cerrado, plenamente comprensible sin necesidad de tener en cuenta las partes que le siguen‖
(LUKÁCS, 1982, v.3, p. 11).

Sobre Lukács ter interrompido o ideário de sua obra completa, Frederico indica
que não se deve buscar um esclarecimento na interrupção, pois ―/.../ um dos fatores básicos
explicativos está na própria evolução interna de seu pensamento‖. Para Frederico, as
evidencias dos estudos do esteta húngaro demonstram que a ―/.../ inflexão ontológica presente
em sua estética conduziu o autor às fronteiras da ética e à necessidade de buscar uma
fundamentação teórica para ela (FREDERICO, 2005, p. 92).

42
Segundo Paulo Netto (1983, p. 76), ―/.../ O esforço dedicado à redação desta obra, justifica, em boa medida, o
silêncio lukacsiano entre 1958 e 1961: é neste período que o pensador concentra todas as suas energias para
escrever a suma da sua reflexão estética‖.
48

Quanto à organização dos capítulos nas diferentes publicações, vale ressaltar


primeiramente que a publicação alemã, intitulada: Ästhetik. Die Eigenart des Ästhetischen, foi
impressa no ano de 1963 pela editora Luchterhand Verlag, na cidade de Berlim, e foi dividida
em dois volumes.

Já a edição espanhola, publicada pela editora Grijalbo em 1965, entretanto


composta por quatro tomos, quais sejam: I- Cuestiones preliminares y de principio; II-
Problemas de la mímesis; III- Categorías psicológicas y filosóficas básicas de lo estético e
IV- Cuestiones liminares de lo estético. Os dois primeiros títulos foram propostos pelo
tradutor, Manuel Sacristan, e aceitos por Lukács, já os dois últimos foram indicados pelo
próprio filósofo da Escola de Budapeste. A publicação espanhola foi divida nos quatro livros
supracitados, compreende 1842 páginas, totalizando dezesseis capítulos, os quais seguem uma
ordem numérica no decorrer dos quatro tomos. Vale ressaltar que a redação da obra teve
início em 1957 e, em fevereiro de 1960, Lukács já fazia sua revisão. Lukács relatou à
Tertulian (2008), que encontrou entraves para ter a autorização para enviar a editora alemã,
uma vez que só seria possível a publicação na Alemanha Federal, caso o esteta húngaro
deixasse o país de origem.

A Estética foi sua última obra publicada em vida, entretanto, Lukács com mais de
oitenta anos, almejava escrever a Ética. O filósofo húngaro esclarece, acerca do lineamento da
Ética: ―Na verdade eu planejei a Ontologia como fundamento filosófico da Ética, e nesse
sentido a Ética foi suplantada pela Ontologia, já que se trata da estrutura da efetividade e não
de uma forma separada‖ (LUKÁCS, 1999, p. 139). Com efeito, Lukács buscou uma
fundamentação ontológica para melhor compreender o ser social. Nesse sentido, Tertulian
(2007, p. 227-228) descreve que:

/.../ a Ontologia do ser social nasceu de um vasto campo de pesquisas. Após


vários anos de investigações consagrados aos problemas da ética /.../, ele se
deu conta de que a especificidade da atividade ética não pode ser
estabelecida sem uma reflexão de conjunto, de caráter polifônico, sobre os
principais componentes da vida social (economia, política, direito, religião,
arte, filosofia): a Ontologia do ser social representa a concretização deste
vasto programa totalizante, destinado a preparar a Ética que, infelizmente
não foi escrita.

Destarte, podemos destacar que, na Estética, já há vários indícios da ontologia, na


afirmação constante do trabalho como ato fundante, além da dialética hominização-
49

humanização, desenvolvimento dos sentidos, etc. O filósofo da Escola de Budapeste, assim,


produziu incansavelmente sua Ontologia até o ano de sua morte, 1971. A obra inacabada foi
publicada em italiano, em 1976, a partir das notas em alemão (FREDERICO, 2005).

No próximo capítulo, trataremos especificamente da obra Estética I de Lukács.


Nosso esforço se dará no sentido de sistematizar um conjunto de categorias, quais sejam:
atropomorfização, desantropomorfização, imanência, transcendência, homem inteiro, homem
inteiramente, discutindo o complexo da arte anunciada no cotidiano e, em seguida, elevada à
objetivação superior humana.
50

3 SÚMULA DA ESTRUTURA DA ESTÉTICA LUKACSIANA:

DAS CONDIÇÕES HUMANAS QUE SE EXPRESSAM NA

REALIDADE COTIDIANA ÀS OBJETIVAÇÕES SUPERIORES

Consideramos esmiuçar algumas das principais categorias presentes no texto de


1963, sistematizado por Lukács, de modo que possamos compreender como se desdobra esta
nova estética. Mas, antes, apreciamos necessário, sob pena de uma melhor compreensão das
categorias, um sucinto curso sobre a conjectura do conhecimento do cotidiano, como a
necessidade de aprofundar um pouco mais a relação que se estabelece entre a cotidianidade e
as objetivações superiores do mundo dos homens.

Entendemos, com o esteta húngaro, como vai ficar claro, no decorrer da


argumentação, que as escassas pesquisas sobre o cotidiano levam a diversas interpretações
equivocadas sobre a importância desse campo para o desligamento e evolução das
objetivações que, em essência, confirmam a imanência humana. Para esse campo de estudo,
buscamos fundamentação na Estética de Lukács (1982), bem como em Frederico (2005) e
Paulo Netto (1987), entre outros autores, os quais ingressam na discussão da cotidianidade por
intermédio do esteta húngaro.

Em seguida, com base na cotidianidade, configurada e desenvolvida pelo trabalho,


estudaremos as categorias: antropomorfização e desantropomorfização, imanência e
transcendência, bem como a conceituação dialética entre o homem inteiro e de homem
inteiramente, a partir da caracterização por aproximação e distanciamento entre Arte, Ciência
e Religião. A escolha dessas categorias justifica-se por serem elas as que edificam e
perpassam a obra Estética. Não obstante, há muitas outras, impossíveis de um texto, nos
marcos de nossa investigação, abarcar.
51

3.1 Decurso do conhecimento cotidiano: aproximações preliminares

Se observarmos com atenção o título da derradeira obra lukacsiana publicada em


vida, veremos que ela traz consigo o subtítulo: A peculiaridade do estético, o que segundo o
autor, significa: ―/.../ posição do princípio estético no quadro da atividade espiritual do
homem‖ (LUKÁCS, 1969, p. 12). Contudo, o autor deixa claro que a atividade estética,
considerada por ele como atividade espiritual, suspende o indivíduo do seu cotidiano. Essa
atividade, entretanto, não pode ser entendida, para que fique logo aclarado desde o início,
como algo referente à alma, mas que se relaciona às formas de necessidade e constituição da
vida concreta do homem situado historicamente em seu mundo.

O esteta húngaro considera que sua Estética norteia-se de acordo com o


conhecimento da peculiaridade do estético. Lukács (1982), ademais, tem a convicção de que,
somente a partir da dinâmica da gênese desse complexo, o desligamento, a autonomia e a raiz
da vida humana podem apontar para as peculiares categorias, bem como para as estruturas das
reações científicas e artísticas dos homens à realidade que estão inseridos.

Como já mencionado, a Estética não foi elaborada sobre a égide de um método


original fora do marxismo. Pelo contrário, Lukács (1982) leva em conta que suas
investigações não querem ir além de uma aplicação, o mais completa possível, do legado
clássico do marxismo aos problemas do campo estético.

Para Lukács, antes dos estudos de Lênin43, o marxismo se restringiu quase que
somente aos problemas do materialismo histórico. Com as investigações sistematizadas por
Lifschitz, houve um esclarecimento dessa controvérsia, porém, ainda encontraríamos o
paradoxo de que, segundo Lukács (1982, v.1, p. 16), ―/.../ hay o no hay una estética marxista,
de que hay que conquistarla, creala incluso, mediante investigaciones autônomas‖. Mas esse
paradoxo se dissolve, como já afirmamos, ao consideramos ―/.../ todo el problema a la luz del
método de la dialéctica materialista‖ (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 16)44. Ou seja, somente

43
Lukács cita Plejánov e Mehring como representantes teóricos que se dedicaram aos estudos situados no
materialismo histórico, o que acabou gerando alguns mal entendidos acerca desse questionamento (LUKÁCS,
1982, v.1, p. 15).
44
Santos e Costa (2012), em exegese sobre o Prólogo da Estética de Lukács, sugerem que o esteta resolve tal
paradoxo com o método. Isto é, para aqueles autores ao optar pelo materialismo histórico e dialético, como esse
é o único modelo correto de análise da realidade, Lukács abandona qualquer distanciamento do marxismo
52

realizando e mantendo, mediante a própria pesquisa, tal método, ―/.../ la orientación de esos
caminos, se ofrece la posibilidad de tropezar con lo buscado, de construir correctamente la
estética marxista, o, por lo menos, de acercarse a su esencia verdadera (LUKÁCS, 1982, v.1,
p. 16).

Desse modo, entendemos, sob o escudo do materialismo histórico dialético, que a


verdadeira arte se firma sob o que acontece na própria realidade objetiva. Tertulian, em seus
estudos sobre as etapas do pensamento estético de Lukács, afirma que este apresentou, na sua
obra madura, o axioma de que:

/.../ cada manifestação da subjetividade humana se encontra condicionada, de


múltiplas formas, por suas relações concretas com a realidade objetiva; não
é, simplesmente, o objetivo de uma atividade humana, por mais elementar
que essa atividade seja, a qual é criada pelos problemas surgidos no curso do
processo de produção e reprodução da existência; sua própria realização,
porém, não é possível senão a partir da observação cuidadosa das
propriedades causais objetivas (TERTULIAN, 2008, p. 198).

Com efeito, a arte dá-se de modo concreto, a partir da realidade objetiva.


Considerando, ainda, o modelo lukacsiano apresentado por Tertulian como um ‗método
genético-ontológico‘, isso porque a estrutura de qualquer atividade, segundo o postulado
lukacsiano, na esteira marxiana, tem seu esclarecimento na gênese. Tertulian afirma que:
―Finalmente, nenhum esteta moderno deu tanta atenção às origens da atividade estética do
espírito como único meio válido para sua decifração/.../‖, pois a possibilidade tanto de
conceber, quanto a de apreciar a arte ou a teoria do sensível, não consiste como, prossegue
Tertulian (2008, p. 200), ―/.../ qualidades constitutivas, inatas, do espírito‖, mas nascem no
cotidiano concreto do homem, enquanto ser social, a partir de estações de seu alargamento
histórico.

É o que podemos comprovar, diante da pesquisa do próprio Lukács, perante a qual


é possível avaliar que a verdadeira estrutura categorial de cada fenômeno está vinculada
intimamente à sua gênese. Para o pensador húngaro, ―/.../ sólo es posible mostrar, de un modo
completo y en su proporcionalidad correcta, la estructura categorial si se vincula
orgánicamente el análisis temático con la aclariación genética‖. Desse modo, e aqui

autêntico e, portanto, a estética como é um complexo social, apenas, como os demais complexos fundados pelo
trabalho, pode ser entendida à luz do marxismo ontológico.
53

demonstramos sua base perante os estudos marxianos e registramos que seu método se
justifica, conclui, exemplificando que ―/.../ la deducción del valor al comienzo del Capital de
Marx es el ejemplo modélico de este método histórico-sistemático (LUKÁCS, 1982, v.1, p.
24).

Isto posto, recuperamos a gênese de toda e qualquer atividade do homem, baseada


no método marxista de compreensão da realidade e a importância que o filósofo húngaro dá
ao cotidiano45 para atender a especificidade de seu método, ou seja, para esse autor, a
cotidianidade é começo, bem como fim de toda e qualquer atividade humana, e tem como
base a realidade concreta do ser social. Para melhor esclarecimento, o autor faz uma fina
analogia entre o cotidiano e um rio, com base em Heráclito de Éfeso46:

Si nos representamos la cotidianidad como un gran río, puede decirse que de


él se desprenden en formas superiores de recepción y reproducción de la
realidad, la ciencia y el arte, se diferencian, se constituyen de acuerdo con
sus finalidades específicas, alcanzan su forma pura en esa especificidad –
que nace de las necesidades de la vida social – para luego, a consecuencia de
sus efectos, de su influencia en la vida de los hombres, desembocar de nuevo
en la corriente de la vida cotidiana (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 11-12).

Em decorrência de alguma necessidade que desponta na cotidianidade, e, antes de


tudo, no trabalho, o homem recorre às formas superiores de objetivação, seja na ciência ou na
arte, para que possa, assim, retornar ao cotidiano de maneira enriquecida. Desse modo, vão se
propagando efeitos favoráveis à cotidianidade do ser social. Nas palavras de Lukács (1982,
v.1, p.35), as formas superiores de objetivação precisam dar respostas aos problemas nascidos
na cotidianidade, e ao voltar a esta, ―/.../ hacen a ésta más amplia, más diferenciada, más rica,
más profunda, etc., llevándola constantemente a superiores niveles de desarrollo‖. Com
estudo fundamentado na teoria lukacsiana, Paulo Netto prossegue, asseverando que as
suspensões que ocorrem na vida cotidiana que produzem as objetivações, permitem que o

45
Queremos, aqui, atentar para o fato da importância do cotidiano como solo comum para as objetivações
superiores, visto que o mesmo é tido com preconceito. Como bem expressa o autor húngaro (1982), o
pensamento cotidiano se manifesta impresso ao materialismo espontâneo, pois a vida é material, é concreta,
vivemos o em-si. O cotidiano, dessa forma, não pode ser considerado de modo pejorativo, pois é necessário
edificar esse materialismo (espontâneo), elevá-lo, assim, a uma categoria sistemática, a uma condição filosófica,
sob relação dialética entre sujeito e objeto para compreender a realidade.
46
"Tudo flui como um rio", assim ficou conhecido o famoso preceito do filósofo pré-socrático, no que se refere
ao movimento do devir. Frederico (2005, p. 111) considera essa analogia própria dos dialetas, pois ―/.../ o
cotidiano é visto como um rio em seu permanente fluxo, dentro do qual tudo se movimenta, se transforma, se
espalha e retorna a seu leito‖.
54

homem torne-se ‗humano-genérico‘, ou seja, a ―dialética cotidianidade/suspensão é a dialética


da processualidade da constituição e do desenvolvimento social‖ (PAULO NETTO, 1987, p.
70).

Segundo o marxista húngaro, o cotidiano é um campo de suma importância, pois


abarca a maior parte da vida social. Destarte, o todo que compõe a vida humana, sua prática e
reflexão, necessita de processos de objetivação. Para tanto, é primordial alocarmos o trabalho
como ato que constitui o ser social, assim como uma forma autêntica de objetivação. Mais
adiante, o filósofo húngaro confirma sua tese asseverando que:

/.../ El origen, la formación y el despliegue de las actividades humanas no


pueden entenderse más que en su interación con el desarrollo del trabajo, con
la conquista del mundo circundante, con la transformación del hombre
mismo gracias a esa conquista (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 237).

Com efeito, consideramos o seguinte pensamento elaborado por Marx (1997, p.


21): ―Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem
sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,
legadas e transmitidas pelo passado‖. Desse modo, em concordância ao legado de Marx,
corroboramos com Lukács quando este afirma que há um enriquecimento das atividades
humanas, em consonância ao trabalho, imprimida pelo legado onto-histórico. O trabalho,
portanto, é a primeira ação histórica pela qual o homem diferencia-se dos outros animais, e
também o fato que permitiu o salto ontológico. Pois, como indica o filósofo húngaro,

Sabemos que a base ontológica do salto foi a transformação da adaptação


passiva do organismo ao ambiente em uma adaptação ativa, com o que a
sociabilidade surge como uma nova maneira de generidade e aos poucos
supera, processualmente, seu caráter imediato puramente biológico
(LUKÁCS, 2010, p. 79).

O cotidiano é aqui apresentado como movimento histórico que, também no enceto


da vida social, apresenta-se de modo espontâneo. É categoria relevante, pois é composta de
atividades necessárias para a reprodução humana, além de se encontrar como solo comum
para as objetivações superiores. É necessário deixar claro que não se trata de um discurso
laudatório ao cotidiano. Contudo, é na cotidianidade que os problemas surgem de maneira
imediata, apenas se deve atentar a submissão de ―/.../ uma crítica fundada no ser mesmo as
manifestações mais elaboradas do ser social, precisa mobilizar constantemente esse método
crítico também em relação à vida cotidiana‖ (LUKÁCS, 2010, p. 69).
55

Vale destacar, ainda, de acordo com o exame lukacsiano (1982), o carecimento de


estudos filosóficos acerca da teoria do cotidiano, mesmo sendo extremamente necessária para
entendermos melhor a lógica da vida humana. O que temos, para além do tempo de Lukács,
na perspectiva hegemônica, de modo geral, com raras exceções, são pesquisas rasteiras, que
valorizam o cotidiano em detrimento de uma análise séria e ontológica do mesmo. O filósofo
da Escola de Budapeste considerava que o ponto cardeal dessa insuficiência poderia ser
porque ―/.../ la vida cotidiana no conoce objetivaciones tan cerradas como la ciencia y el arte‖
(LUKÁCS, 1982, v.1, p. 39). A cotidianidade, para Lukács, exige objetivações, porquanto é
na vida cotidiana que os complexos como a ciência, a arte, entre outros, vão se materializar
até alcançar um andarilho culminante.

A vida cotidiana se manifesta nos arquétipos do materialismo espontâneo pela


própria objetividade que a constitui. Lukács (1982) certifica que todo exame circunspecto,
livre de alusão e imparcialidade necessita desvendar que o homem, situado na lógica da vida
cotidiana, contesta sua realidade de modo prontamente materialista. Cabe o exemplo clássico,
tantas vezes retomado por Lukács:

/.../ Quando um automóvel vem ao meu encontro numa encruzilhada posso


vê-lo como um fenômeno tecnológico, como um fenômeno sociológico,
como um fenômeno relativo à filosofia da cultura, etc.; no entanto, o
automóvel real é uma realidade, que poderá me atropelar ou não (LUKÁCS,
1969, p. 14).

O pensador húngaro prossegue, ao destacar que nenhum ponto de vista, em


especial a concepção idealista, consegue barrar a espontaneidade circunscrita na objetividade.

Mas o automóvel existente é, por assim dizer, sempre primário em relação


ao ponto de vista sociológico a seu respeito, já que o automóvel andaria
mesmo que eu não fizesse sociologia alguma sobre ele, ao passo que nenhum
automóvel será posto em movimento a partir de uma sociologia do
automóvel (LUKÁCS, 1969, p. 14).

Sobre a importância do cotidiano, Paulo Netto (1987, p. 65) considera que,


apoiado na proposição lukacsiana, ―/.../ não há sociedade sem cotidianidade, não há homem
sem vida cotidiana‖. A cotidianidade é ineliminável sob qualquer aspecto/contexto da vida
dos homens, pois, como mencionado anteriormente, é nela que se estabelece o solo de
rebatimento para as objetivações elevadas. Paulo Netto segue seu raciocínio, considerando
que
56

/.../ se em toda sociedade existe e se põe a cotidianidade, em cada uma delas


a estrutura da vida cotidiana é distinta quanto ao seu âmbito, aos seus ritmos
e regularidades e aos comportamentos diferenciados dos sujeitos coletivos
(PAULO NETTO, 1987, p. 65).

O cotidiano não se desliga do histórico, mas cada momento de disposição das


sociedades permite suas particularidades. Seguiremos uma breve contextualização histórica
do cotidiano, para compreendermos melhor sua importância no sentido ontológico. De tal
modo, recorreremos ao método seguido por Lukács, o qual permite apossar-se do sentido dos
fenômenos mais complexos partindo dos mais simplórios, presentes na cotidianidade do ser
social.

Validamos o pensamento do filósofo húngaro ao relatar que, nas sociedades


primitivas, o desenvolvimento do cotidiano se deu de forma espontânea. Lukács (1982) expõe
que na condição inicial do ser social, em estado de hominização, aquela na qual o homem
primitivo não produzia ainda suas ferramentas, limitava-se apenas a tomar pedaços de paus,
ou mesmo algumas pedras de determinadas formas para a utilização, seguindo algum fim
guiado por alguma necessidade específica. Nessa situação, é possível perceber, claramente,
que o homem já disponibilizava de um cotidiano espontâneo e material, agindo, assim, de
acordo com suas necessidades.

Lukács persiste, afirmando que o homem primitivo, naquele momento com


inferior nível de desenvolvimento das forças produtivas, considerava "/.../ ya ciertas
observaciones acerca de las piedras que por su dureza, su forma, etc. son adecuadas para
determinadas operaciones" (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 47). Com efeito, é compreensível o fato
de que, no desenvolvimento e na prática das ações do homem em processo de humanização,
imerso no cotidiano primitivo, já se consignava suas finalidades, mesmo que ainda em baixo
nível de objetivações.

Ademais, o filósofo da Escola de Budapeste insere, nessa discussão, o fato de que


a cotidianidade primitiva apresentava um desenvolvimento das forças produtivas muito
rudimentar, criando uma dependência até mesmo aos fenômenos sobrenaturais. Logo, como
indica Lukács, inclusive quando aquela formação social atribui à observação de fenômenos
materiais explicações de caráter alheio ao próprio homem, fazem-na com vivência, a esse
nível de primitividade, de uma forma completamente materialista. Com efeito, esse
57

materialismo é tão próximo da realidade mesma, com baixo nível de sistematização filosófica,
que é espontaneamente materialista.

Portanto, mesmo nesta situação, considerada metafísica, o contexto desses


indivíduos dá-se na própria materialidade. O exemplo ilustrado pelo filósofo húngaro,
relacionando a este período evolutivo do homem é bastante esclarecedor:

/.../ el hombre es más o menos consciente de que tiene que actuar en un


mundo externo que existe independientemente de él y que, por tanto, tiene
que intentar entender y dominar lo más posible con el pensamiento,
mediante la observación, ese entorno que existe independientemente de él,
con objeto de poder existir, de poder sustraerse a los peligros que le
amenazan. También el peligro, como categoría de la vida interior humana,
muestra que el sujeto es más o menos consciente de encontrarse frente a un
mundo externo independiente de su consciencia (LUKÁCS, 1982, v.1, p.
47).

O homem primitivo, como esclarecido, apresentava uma consciência basilar,


entretanto teve que exercer funções imersas no seu cotidiano de maneira espontânea,
relacionando-se aos elementos da prática, de todo modo, restritos. O filósofo húngaro
sublinha que, embora diversos pesquisadores que se ocupam da pré-história indiquem
semelhanças entre os princípios da magia e o materialismo espontâneo, essa menção não tem
validade, na medida em que a objetividade estabelecida no materialismo espontâneo supera o
caráter emocional proposto pela magia.

Quando o ser social deixa de ser nômade e torna-se sedentário, com a


domesticação de animais, de modo que lhe oportuniza aumentar a produção da agricultura, há
um desprendimento dos fenômenos naturais e o homem passa a exercer maior controle e
domínio sobre a natureza. Certamente, esse domínio era ainda incipiente e, decerto,
cambiante, pois, como registra a historiografia confiável, nas sociedades primitivas, e até na
escravista, havia muitos entraves, entre estes, como enumera Lukács (1982, v.1, p. 171), a
causa de tais limitações, a base científica do reflexo desantropomorfizador da realidade ―/.../
tenía que ser desde el principio estrecha, sin la posibilidad social de una ampliación resuelta‖.

Com a sociedade passando para o modo de produção escravista, na qual o homem


passava a dominar outro homem, não era interessante, por exemplo, uma ‗racionalização
científica do trabalho‘, como assevera Lukács (1982, v.1, p. 171):
58

/.../ Esto a su vez tenía que impedir que las geniales generalizaciones de los
primeros estadios consiguieran fecundarse en el contacto con hechos,
conexiones y normalidades particulares, penetrando en los detalles de la
realidad objetiva para poder levantarse hasta el nivel de una universidad
concreta, de una amplia metodología.

Seguindo a linha de pensamento lukacsiano, a economia escravista interrompeu


uma interação abundante entre as atividades produzidas pelo homem e a ciência, razão pela
qual até as conquistas mais extraordinárias que se liberavam do pensamento tiveram que se
limitar a generalizações abstratas e filosóficas, sem poder penetrar às raízes da vida e do
pensamento humano. Por isso, consideramos não ser oneroso ressaltar os grandes
impedimentos que humanidade encontrava nesse período, no que compete ao avanço
científico, bem como a alguns outros complexos inseridos na vida cotidiana.

Somente a partir da Grécia antiga, é que há um alcance de uma nova metodologia


do pensamento científico, ainda que não fosse ao ser genérico, um novo tipo de reflexo da
realidade, ―/.../ mediante el ejercicio, la costumbre, la tradición, etc., se convirtiera en un
modo de comportamiento humano general y de funcionamiento permanente‖ (LUKÁCS,
1982, v.1, p. 148). Um progresso de experiências que resultaram em diversas ciências muito
desenvolvidas, especialmente relacionadas à Matemática, à Geometria e à Astronomia; as
quais, por razão de seus resultados, deveriam ―/.../ influir enriquecedoramente en la vida
cotidiana, permitieran una influencia también de sus métodos y hasta una acción
parcialmente transformadora de los mismos sobre la práctica cotidiana‖ (LUKÁCS, 1982, v.1,
p. 148). Porém, esse avanço, também, foi contraditório, na medida em que impossibilitou a
generalização do método cientifico em forma de concepção de mundo, uma vez que

/.../ si el método científico no se generaliza filosóficamente ni se pone en


contraposición respecto de las concepciones generales mágicas y religiosas,
insertarse en ellas, con lo que el efecto del progreso científico de los diversos
campos especiales sobre la vida cotidiana será prácticamente nulo
(LUKÁCS, 1982, v.1, p. 148).

Com a lenta e também contraditória evolução das forças produtivas, a Idade


Média assiste ao desmoronamento da economia escravista. O que foi chamado pela história de
‗Idade das trevas‘ deu lugar ao Renascimento, envolto em descobrimentos científicos e
técnicos, cuja existência possibilitou, finalmente, uma nova reorientação até a cientificidade.
Destarte, todo desenvolvimento técnico e tecnológico supõe também que haja alterações
básicas na vida cotidiana, no entanto, nesse caso, não se operou uma transformação radical na
59

estrutura essencial da cotidianidade. Visto que, apesar do avanço científico posto na vida dos
homens, isso não se concretizou como uma verdadeira transformação. Melhor, como sintetiza
Lukács (1982, v.1, p. 212-213), não foi ―/.../ universal y completo, capaz de transformar
profundamente la práctica de la vida cotidiana en ciência conscientemente aplicada‖.

Apesar dessa contradição, a história é irreversível47. Não se pode negar o


desenvolvimento das forças produtivas nesse dado momento da evolução humana. Assim,
aproveitamos e registramos outra tese cara ao marxismo: o caráter progressista do
capitalismo. Sobre essa questão, vejamos o diálogo que Lukács, trava com Marx e Engels, ao
assinalar que:

/.../ Marx e Engels jamais negaram o caráter progressista do sistema


capitalista de produção, mas, ao mesmo tempo, desmascararam-lhe
desapiedadamente os aspectos desumanos. Êles compreenderam claramente,
e claramente o exprimiram, que sòmente trilhando tal estrada a humanidade
poderia alcançar as condições materiais básicas para a sua libertação real e
definitiva, no socialismo (LUKÁCS, 1965a, p. 22).

Todavia, a cotidianidade, pautada já na Idade Moderna, segundo Lukács (1965a),


foi propícia à dependência de fenômenos idealistas, religiosos, supersticiosos; porém não do
mesmo modo que foi em tempos iniciais da origem do ser social. O estatuto moderno, e,
sobretudo, o atual – contemporaneidade – se refere a um homem submisso: ―/.../ con
representaciones superticiosas, sin que lo grotesco de esa vinculación llegue a ser en absoluto
consciente‖ (1982, v.1, p. 49), isso porque tal anseio de acatamento místico fundado no medo
ou ignorância acarreta a verificação de falsos deveres ou quimeras.

/.../ Así, por ejemplo, la superstición del hombre moderno - que a veces
puede estar arraigada - suele ir acompañada por una mala consciencia
intelectual, o sea, con la consciencia de que se está tratando con un mero
producto de la consciencia subjetiva, y no con una realidad objetiva y de
existencia independiente, de acuerdo con el materialismo espontáneo de la
cotidianidad (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 49).

De tal modo que, por essas dependências estarem subjetivamente enraizadas, o


que Lukács reconhece como ‗consciência subjetiva‘, deixam de esclarecer importantes
questões do pensamento humano. A vida cotidiana, perpassada pela sociabilidade capitalista,

47
A irreversibilidade da história humana é uma tese cara ao marxismo. Lukács se ocupou alongadamente em sua
comprovação sistemática no Prolegômenos para uma ontologia do ser social (2010).
60

estabelece relações onde os conhecimentos tendem a estar firmados no subjetivismo, a


consciência é apresentada como rainha absoluta e a existência como se estivesse aos seus
pés48.

Autores contemporâneos alegam que a cotidianidade é determinada por uma nova


espécie de irracionalismo, de mistificação da vida. Para Costa (2001, p. 35), a ausência de
conhecimento, bem como a não valorização da origem e causalidade dos processos sociais
advogam uma ―/.../ construção de explicações contraditórias sobre a vida cotidiana‖. Em
tempos de ‗crise estrutural do capital‘49, há uma tendência de desvalorização do conhecimento
universal, historicamente constituído, tendo em vista que, nas palavras de Costa, (2004, p. 72)

/.../ inicia-se o período de liquidação do materialismo e da dialética


espontâneos dos representantes da fase ascensional da burguesia. Destaca-se
cada vez mais a fuga da realidade, o ecletismo, a ideologia "pura", o jogo
dos conflitos formais, a mera reprodução dos fenômenos superficiais, a
depravação das conquistas passadas, a oposição dogmática entre a vida e a
teoria, a negação dos problemas centrais da sociabilidade burguesa e do
capitalismo, o que representa em ultima instância o domínio crescente da
divisão capitalista do trabalho e a deformação do individuo.

Reconhecemos, ademais, a partir das palavras de Lukács, que em um sistema de


exploração, assim como é a sociabilidade regida pelo processo de produção capitalista, as
formas de organização do trabalho e da produção são negadas ao trabalhador, uma vez que
elas priorizam a acumulação de lucro em detrimento da satisfação das necessidades humanas.
Logo, entendemos que o enriquecimento humano, seja intelectual, cultural, espiritual e
material, próprio da humanidade, se faz necessário à máxima assimilação de tudo de melhor
constituído pelo homem, a fim de tornar para si o próprio conhecimento. Por conseguinte,
ainda na esteira marxiano-lukacsiana, Lessa (2005) afirma, conforme já mencionamos:

48
Vale a pena acompanhar a discussão que o filósofo húngaro relata sobre o neo positivismo e o neo
existencialismo, novamente nos Prolegômenos para uma ontologia do ser social (2010), onde as perspectivas
filosóficas passam a abreviar as pesquisas a ―um compêndio puramente prático, meramente eficiente, das
pesquisas singulares, como uma metodologia inteiramente subordinada a elas‖ (LUKÁCS, 2010, p. 140).
49
Mészáros (2008) assevera, que a indisciplinável lógica do capital tem sido vastamente inserida em todos os
percalços da vida humana, desse modo, é necessário ―/.../ o rasgar da camisa de força da lógica incorrigível do
sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo
capital, com todos os meios disponíveis, bem como com todos os meios ainda a ser inventados, e que tenham o
mesmo espírito‖ (MÉSZÁROS, 2008, p. 35).
61

/.../ os homens fazem a sua história de tal forma que nela nada existe que não
seja resultado das ações dos homens. Os homens constroem até mesmo sua
essência. Por isso, a essência humana apenas determina o que nós somos
hoje, mas de modo algum determina o limite ao desenvolvimento futuro dos
homens. Tal como deixamos de ser escravistas e medievais, poderemos
também deixar de ser capitalistas – tudo depende de como nós, a
humanidade, construiremos nossa história a partir das possibilidades e
necessidades históricas do presente (LESSA, 2005, p. 69).

Ao apresentarmos uma síntese excursionada pelo cotidiano de períodos históricos,


destacamos ainda que a cotidianidade é enriquecida pelo trabalho e pelas objetivações
superiores da vida humana, as quais partem das necessidades artísticas, científicas, éticas etc.,
e, dessa maneira, julgamos que tenha estabelecido melhor entendimento do processo de
ampliação do desenvolvimento do homem, a partir do elemento fundante: o trabalho.

Esclarecido, mesmo que sinteticamente, a importância do cotidiano para a vida


humana, partiremos agora para uma nova etapa de nossa exposição. Com essa categoria
exposta, portanto, entendemos ser possível avançar sobre o que propomos. Mas, para que
essa evolução se materialize, precisaremos discutir algumas categorias anunciadas, quais
sejam: antropomorfização, desantropomorfização, imanência, transcendência, e a dialética
homem inteiro e homem inteiramente. Como já adiantado, julgamos importante esse debate,
pois aprofundar essas categorias possibilitar-nos-á uma compreensão mais aproximada do que
é arte para o legado marxiano-lukacsiano. Com efeito, na medida em que acreditamos, na
esteira do marxismo clássico, que o fato artístico contribui para a elevação do homem que
vive imerso em seu cotidiano, conectando-o ao seu ser humano-genérico, precisamos trazer
elementos que possam contribuir para a compreensão da arte para uma formação rica de
sentido, abarcada pela defesa de uma formação humana que seja efetivamente integral,
propriamente humana (no sentido stricto do termo), na qual o homem tenha condições de
desenvolver plenamente todas as suas possibilidades, elevar-se no sentido mais radical e
extenso de sua humanidade.
62

3.2 Arte e devir na Estética I de Lukács: a imanência humana como


ponto modal do ser social

Com base na cotidianidade, configurada e desenvolvida pelo trabalho, Lukács vai


apontar, a partir do recurso de aproximação e distanciamento, características entre a arte e a
ciência, e também a religião. O esteta húngaro procura demonstrar o que faz da arte sua
peculiaridade na vida social. Para essa empreitada, Lukács utiliza-se de algumas categorias
que lhe permitem tal exposição; as principais são: antropomorfização, desantropomorfização,
imanência e transcendência. Para melhorar a compreensão leitora sobre esses conceitos,
tomamos emprestado do autor sua dialética entre homem inteiro e homem inteiramente.

Optamos, portanto, por seguir essa ordem expositiva, fazendo incursões com
outros autores sempre que consideramos enriquecedor para o aclaramento da comunicação.
Dito isso, para que possamos compreender basicamente a diferenciação entre
antropomorfização e desantropomorfização, entremeados pelo autor na sua Estética,
necessitamos levar em conta que os conceitos separam-se no seguinte ponto: "/.../ o se parte
de la realidad objetiva, llevando a consciencia sus contenidos, sus categorías, etc., o tiene
lugar una proyección de dentro hacia afuera, del hombre a la naturaleza"(1982, v.1, p. 227).
Sendo assim, a antropomorfização se expressa no procedimento de compreensão da realidade
objetiva, utilizando-se de princípios subjetivos que tem sua base na cotidianidade, enquanto
que, a desantropomorfização, procura entender o movimento do real, o que está fora do
sujeito, distanciando-se ao máximo dos impulsos puramente subjetivos.

Os complexos presentes na vida social, dos quais Lukács (1982) utiliza-se para
aproximar e distanciar as categorias supracitadas, desenvolvem-se no cotidiano, enriquecendo
o mundo dos homens com base na própria objetivação, tais como Ciência, Arte, Religião etc.
Lukács, já no Prólogo da Estética, certifica que a essência do estético não pode ser definida
em um conceito, nem de modo aproximado, mas por meio de constantes aferições entre
complexos. Nas palavras do esteta húngaro, a mais importante comparação com o estético
―/.../ es con la ciencia; pero también es imprescindible descubrir la relación de lo estético con
la ética y la religión (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 12).

Por esse motivo, Frederico (2005, p. 111) afirma que Lukács privilegia a ciência e
a arte como ―/.../ formas desenvolvidas de reflexo, de recepção, da realidade objetiva na
63

consciência dos homens‖, pois na vida cotidiana são estabelecidos apelos necessários que
clamam a esses complexos, os quais enriquecem a cotidianidade, alcançando uma elevação
refinada na realidade.

Como nossa intenção é a especificação do fato estético e, dentro deste, extrair o


reflexo artístico da realidade, pois precisamos entender como a arte atua nesse processo de
hominização-humanização; adotaremos, para que nossa redação seja melhor compreendida, o
mesmo recurso de aproximação e distanciamento entre as categorias aludidas, como apontada
por Lukács em sua grande Estética. O complexo científico e religioso serão usados com a
finalidade de expor suas especificidades com relação ao complexo artístico e, assim, facilitar
as diferenciações possibilitando, por fim, uma melhor compreensão do que é arte para Lukács.

Evidentemente, como escreve o esteta húngaro, já mencionado aqui, de todas as


formas superiores de objetivação, a que mais deve ser trabalhada para que se compreenda o
funcionamento da arte na vida humana é a ciência. Lukács (1982) caracteriza-a como
desantropomorfizadora, ou seja, uma tentativa consciente de apreensão da realidade. A
ciência é, portanto, em-si; é o sujeito quem faz sistematizações dos fenômenos que observa,
pois os elementos da natureza existem independentes da vontade do homem.

Como exemplo para melhor clarear a questão, o filósofo da Escola de Budapeste


cita a religião, pois em seus argumentos esse complexo é antropomorfizador. Isto é, o homem
está no centro de todo comportamento religioso, refere-se diretamente a sua conduta a
respeito de si mesmo. Na religião, o homem considera seu próximo e o que advém do mundo,
tendo nesse campo uma constante busca pela salvação. A arte, da mesma maneira que a
religião é entendida como antropomorfizadora, pois é o homem que a cria. O princípio
artístico é parte da conduta humana, é um modo peculiar de totalização dos conhecimentos
obtidos historicamente pelo mundo dos homens.

Mesmo havendo essa proximidade, a querela primordial entre a arte e a religião,


no que se refere à antropomorfização, não constitui uma humilde limitação da arte perante a
religião. A finalidade objetiva da arte propõe uma renuncia a toda transcendência – própria da
religião. Em sua intenção objetiva, a arte é tão contrária à religião tal como a ciência é. Desse
modo,
64

La autolimitación a la reproducibilidad cismundana implica, por una parte, el


derecho soberano del criador artístico a tranformar la realidad y los mitos
según sus propias necessidades (Y el que esa necesidad esté determinada y
condicionada socialmente no altera el hecho básico). Por otra parte, el arte
convierte artísticamente en cismundanidad toda trascendencia, la pone, como
cosa a representar, al mismo nivel que lo propiamente cismundano
(LUKÁCS, 1982, v.1, p. 144).

Para posicionar a arte como parte do real, imersa no cotidiano, diferentemente da


religião, esse autor se utiliza do conceito cismundano, ou seja, posição de quem está aqui,
refere-se à vida no mundo (com os pés e pensamentos terrenos), por conseguinte não sagrado,
não serve ao sagrado. Dessa maneira, a arte, diferentemente da religião, alude ao que acontece
na vida terrena, na vida concreta dos seres sociais.

Sobre a distinção entre arte e o complexo da ciência, o autor húngaro diz que
aquela não precisa ser avaliada e comprovada exaustivamente. A ciência, por seu turno, tem
necessidade de total rompimento com a antropomorfização, conferindo o caráter de
desantropomorfização, tanto do objeto quanto do sujeito do conhecimento. Do objeto, no
sentido de ―/.../ limpiar su en-si de todos los añadidos del antropomorfismo (en la medida de
lo posible)‖, e, do sujeito com o intuito de fazer com que o comportamento deste, com relação
à realidade, ateste um exame firme a respeito de ―/…/ sus propias intuiciones,
representaciones y formaciones conceptuales‖ (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 154), de modo que se
possa ―/.../ evitar la penetración de actitudes antropomorfizadoras que deformaran la
objetividad en la captación de la realidad‖ (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 154).

Logo, entende-se por antropomorfização a resposta ao processo de auto


propagação do sujeito, ao passo que a desantropomorfização se empenha em apreender o
objeto, sem tencionar no mesmo, subsídios próprios do sujeito, todavia, isso não significa que
o sujeito não constitua parte, ontologicamente, da composição objetiva do ser social que a
ciência trata de afirmar, pois não se pode eliminar o papel do sujeito na construção da vida
social.

Com esses dois conceitos aclarados, seguimos agora em busca de uma melhor
compreensão, como anunciado, das categorizações imanência e transcendência. Para iniciar o
debate, continuamos com as palavras de Lukács: ―/.../ el inmanentismo es una exigencia
insoslayable del conocimiento científico y de la conformación artística‖ (LUKÁCS, 1982, v.1,
p. 26), pois tanto a ciência, quanto a arte são complexos que se fundam na relação objeto-
65

sujeito50. Todavia, a averiguação relativa apresenta o homem primitivo sob grande vinculação
com a transcendência, atrelamento que se deu sob os estágios iniciais do desenvolvimento
humano51. Ambos os complexos, ciência e arte, com a ampliação das faculdades
intelectuais52, paulatinamente, foram construindo uma independência com relação ao sublime.
Dessa maneira, o autor ressalta sobre o complexo da arte:

La estructura categorial objetiva de la obra de arte hace que todo


movimiento de la consciencia hacia lo trascendente, tan natural y frecuente
en la historia del género humano, se transforme de nuevo en inmanencia al
obligarle a aparecer como lo que es, como elemento de vida humana, de vida
inmanente, como síntoma de su ser-así de cada momento (LUKÁCS, 1982,
v.1, p. 28).

A arte, dessa forma, é um exemplo por excelência da imanência humana, pois é


um fenômeno social, inseparável do sujeito, é um produto da evolução social do homem que
se faz homem mediante seu trabalho. Através da arte, é permitido, a partir da categoria da
particularidade, transitar do singular, purificando-o, ao universal53, e, assim, causar no sujeito

50
A relação objeto-sujeito se dá com base nas necessidades imersas no cotidiano, de onde parte as necessidades
e para onde retornam as soluções e elevações, proporcionadas de um sujeito para o outro.
51
Recorremos aos estudos de Lessa (2005) para expor a disposição que vincula o homem primitivo à
transcendência, a qual se deve ao fato de que naquela ocasião, ―/.../ Em primeiro lugar, de que os homens
dependiam tanto dos eventos naturais que a história era determinada em larga medida por forças não humanas,
pelas forças cegas da natureza. Em segundo lugar, a concepção religiosa é também um reflexo na consciência do
fato de que a história das sociedades é diferente da história dos indivíduos particulares, de tal modo os desejos e
vontades dos indivíduos raramente comparecem diretamente no desenvolvimento histórico‖ (LESSA, 2005, p.
86). Desse modo, ainda de acordo com Lessa, a religião aparece como pano de fundo, o homem e a natureza são
criações de um mundo não real. Apenas com o desenvolvimento das forças produtivas, o homem vai adquirindo
outras capacidades humanas, que as diferem daquele período primitivo, ―/.../ aumenta portanto o poder dos
homens frente a natureza diminuindo, no mesmo grau, a dependência dos homens frente aos processos naturais.
Pense-se, por exemplo, em como a descoberta da agricultura possibilitou aos homens acumularem reservas de
alimentos e, por esta via, como aumentou a possibilidade de sobreviverem a secas, inundações, incêndios, etc. A
agricultura, por sua vez, depende das decisões em se plantar ou não, o que plantar, quando plantar, ou seja,
depende das decisões humanas, enquanto não cabe aos homens decidirem se a estação será chuvosa ou se o
inverno será mais rigoroso‖ (LESSA, 2005, p. 87).
52
Remetemo-nos à Engels (2004), ao expor que com o desenvolvimento dos sentidos e com o aumento da
consciência, justificados pelo trabalho, o ser social passa a alcançar cada vez mais o entendimento sobre si
mesmo. Nas palavras do autor: ―/.../ estamos em condições de prever e, portanto, de controlar cada vez melhor as
remotas consequências naturais de nossos atos na produção, pelo menos dos mais correntes. E quanto mais isso
seja uma realidade, mais os homens sentirão e compreenderão sua unidade com a natureza, e mais inconcebível
será essa ideia absurda e antinatural da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o
corpo‖ (ENGELS, 2004, p. 24-25).
53
Lukács (2009), afirma que as categorias: particularidade, singularidade e universalidade são categorias
objetivas próprias da realidade.
66

uma reflexão elevada, tanto para o criador, que se realiza na criação, quanto para o receptor.
Assim sendo,

/…/ en el terreno de lo estético, no puede tratarse del concepto abstracto de


la especie, sino de hombres individuales concretos, objetos sensibles, en
cuyos carácter y destino estén contenidas concreta y sensiblemente,
individual e inmanentemente, las cualidades de cada caso y nivel evolutivo
alcanzado (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 262).

Sobre o caráter de imanência na ciência, o pensador húngaro relata que para essa
ser considerada imanente precisa ser conceituada em suas propriedades e legalidades, já que
no campo científico há necessidade de comprovação, negação, aferição, superação, etc. De
todo modo, sabemos que, no cotidiano, a grandeza de compreensões se dá de modo
aproximado (teoria e prática estão muito unidas), uma vez que não é possível ―/.../ concebir
como absolutamente definitivo ningún conocimento, en ninguma forma, ni pensar que pueda
estar exento alguna vez de correciones, limitaciones, ampliaciones etc.‖ (LUKÁCS, 1982, v.1,
p. 26).

Destarte, a ciência foi, muitas vezes, submetida a interpretações errôneas, sendo


caracterizada como transcendente. Porém, isso não se aplica de fato, pois as questões
desenvolvidas pela ciência manifestam-se primeiramente, como dito anteriormente, na vida
cotidiana, o que a torna enriquecida, devido à aplicação de soluções elaboradas pelo homem
cientificamente aos outros homens, portanto assinalada como imanente.

Lukács assegura que o verdadeiro campo de batalha entre a imanência e a


transcendência é a ética54. De forma sistemática, o autor explana sobre o materialismo
mecanicista e a doutrina hegeliano-marxiana, relacionando os conceitos citados:

/…/ el viejo materialismo – desde Demócrito hasta Feuerbach – conseguió


concebir la inmanencia del mundo sino de un modo mecanicista, razón por la
cual, por una parte, no podía entender el mundo sino como una maquinaria
de relojería que necesitaba una acción – trascendente – para ponerse en
marcha; y, por otra parte, en una tal imagen del mundo el hombre no podía
presentarse más que como producto necesario y objeto de las legalidades
inmanentes: su subjetividad, su práctica quedaban sin explicar por esas
leyes. La doctrina hegeliano-marxiana de la autoproducción del hombre por

54
Destacamos, mais uma vez, a intenção do filósofo húngaro de desenvolver uma obra sobre a Ética, o que não
foi permitido devido o término de sua vida, apenas dentro do que lhe foi permitido, a elaboração de uma
ontologia do ser social, plano inicial de sua Ética.
67

su propio trabajo – doctrina felizmente formulada por Gordon Childe con la


expresión "man makes himself" – consuma finalmente la inmanencia de la
imagen del mundo, da la base teórica de una ética inmanentista, cuyo
espíritu alentaba ya desde antiguo en las geniales concepciones de
Aristóteles y Epicuro, Spinoza y Goethe (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 27).

A partir do estudo hegeliano-marxiano, segundo Lukács (1982), Gordon Childe


relata que o ato do homem produzir e se desenvolver são provas da imanência, a base teórica
de uma ética imanentista, que fez surgir o pensamento de filósofos admiráveis. Entretanto, o
materialismo mecanicista vinculava o imanente ao transcendente, se utilizando de aspectos
subjetivos e imediatistas do homem. Isso fica claro ao tratar do complexo da religião, visto
que:

/.../ Cuando el comportamiento del hombre está subjetivamente vinculado,


como en la cotidianidad, en la religión, en el idealismo subjetivo, es
inevitable que la frontera concreta del comportamiento, concebida en su
inmediatez y no según su lugar en el proceso histórico del conocimiento, se
absolutice como trascendencia (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 205, grifo nosso).

Nesse sentido, a religião é compreendida como transcendente, e faz com que o


sujeito concreto e sua necessidade imediata, se apresentem não como mero desconhecido, mas
como uma realidade incognoscível. Lukács assinala a religião no que alude ―/.../ El fenomeno
y la esencia se refieren directamente al sujeto en busca de salvación, y sólo a través de esa
referencia cobran su propia objetividad religiosa‖ (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 126).
Consequentemente, é uma necessidade subjetiva, mas que tem sua solicitude na vida prática,
portanto, objetiva. É por esse motivo que:

/.../ Con esto quedan claramente delimitados la objetividad y el ámbito de la


trascendencia: lo trascendente ha dejado de ser lo fácticamente desconocido
y es ya lo incognoscible por principio la trascendencia es ya un absoluto. Es
elemento de la esencia constitutiva de la esfera religiosa el reivindicar para sí
misma, para sus propios modos de comportamiento la posibilidad de una
superación más o menos completa de la trascendencia, y el estabelecer entre
el hombre entero y la trascendencia religiosa – a pesar del sentido mismo de
'trascendencia' – una vinculación inmediata e íntima, y a veces hasta una
unidad (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 128).

Em contraposição à imanência, destarte, a religião recebe o conceito de


transcendência, já que a mesma está além do objeto, em outro patamar de elevação. Assim, na
religião, aquilo que não se pode conhecer, surge na figura de algo fantástico, não-material.
Onde objeto e sujeito se desenvolvem numa hierarquia, na qual há uma superioridade
absoluta, para além do mundo terreno.
68

Comparando os complexos: arte, ciência e religião, temos na arte e na ciência o


conceito de imanência, pois na relação do objeto com o sujeito, o objeto é inseparável, quando
arte e ciência retornam ao cotidiano, ajustam-se suas propriedades imanentes, uma vez que
são do gênero humano, se objetivam para esclarecer questões ou para elevar e fazer refletir a
condição humana, enriquecendo, nesse sentido, o próprio cotidiano. Dessa maneira, na
ciência, há a possibilidade de verificação. Enquanto que, na arte, não há o compromisso de
aferição, mas apenas uma intenção como ponto de partida e não como ponto de chegada na
cotidianidade.

É necessário compreender, como já exposto, que através do salto ontológico, o ser


social deriva da esfera inorgânica/orgânica. Assim, o homem vem da natureza. De tal modo
que não podemos deixar de destacar o sobredito por Marx, na Ideologia Alemã, pois, em
última instância, a existência sobrepõe-se à consciência, a primeira relação objeto-sujeito é a
natureza, ainda que não haja identidade, pois o objeto muda o sujeito e vice-versa. Lukács
(1982, v.1, p. 19), na esteira de Marx, afirma que tal precedência sucede de fato: ―/.../ hay ser
sin consciencia, pero no hay consciencia sin ser‖. O esteta húngaro assegura ainda, que não
há, de modo algum, uma sujeição hierárquica da consciência ao ser, uma vez que

/.../ sino que determina simplemente las condiciones concretas en las cuales
se hace posible una práctica eficaz, con lo que, ciertamente, determina al
mismo tiempo sus límites concretos, aquel ámbito de juego y despliegue que
el ser social de cada situación ofrece a la consciencia. En esa relación se
manifesta, pues, un dialéctica histórica, en modo alguno una estructura
jerárquica (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 20).

Dito isso, já temos elementos suficientes para discorrer sobre a dialética: homem
inteiro e homem inteiramente55. Depois, portanto, de apresentarmos melhor a estruturada arte,
que é, repetimos, imanente e antropomórfica, e para que possamos enfim nos aproximar de
forma mais rigorosa da discussão de como essa objetivação superior se manifesta no mundo
dos homens. Chegamos agora ao momento de um maior aprofundamento ao que Lukács
chama homem inteiro e homem inteiramente. A relação entre esses dois momentos da vida
que se relacionam reciprocamente tem na arte, como graduação elevada por excelência do
gênero humano, a síntese de ocasionar ao ser social a possibilidade de se transferir da

55
No texto escrito em 1936: A fisionomia intelectual dos personagens artísticos, Lukács relata que Ralph Waldo
Emerson, famoso escritor, filósofo e poeta estadunidense, afirmou que ―o homem inteiro deve se mover
inteiramente de uma vez‖ (LUKÁCS, 1968b, p. 213).
69

condição de homem inteiro ao momento de homem inteiramente na interconexão também


recíproca entre criador e receptor. A arte, na medida em que acessa os elementos constitutivos
da elevação humana, soergue o homem em sua forma superior de abstração, pois o distancia,
mesmo que seja somente em poucos instantes, da forma de ser da vida cotidiana. Isso bem
entendido, que o trabalho, repetimos, é o complexo que contorna todas as categorias, o que
não é diferente com a arte.

Com o escopo de esclarecer melhor aquela relação, entendemos que a vida


cotidiana se manifesta sob o materialismo espontâneo, pois a mesma é imediata, na união
quase inseparável de teoria e prática. Nessa perspectiva, processo pelo qual se desenvolve os
complexos perante o cotidiano. Nas palavras de Lukács:

Todo análisis serio y algo libre de prejuicios tiene que mostrar que el hombre
de la vida cotidiana reacciona siempre a los objetos de su entorno de un
modo espontáneamente materialista, independientemente de cómo se
interpreten luego esas reacciones del sujeto de la práctica (LUKÁCS, 1982,
v.1, p. 46).

A vida cotidiana é imediata, repetimos, une teoria e prática, e por mais dialética
que seja, vivemos no materialismo espontâneo porque a própria vida é material. Assim, o
homem inteiro está centrado nessa realidade. O autor húngaro, em diálogo com Leibniz56,
relata que ―/.../ otro importante rasgo esencial de la vida cotidiana, a saber: que el que está
comprometido en ella es siempre el hombre entero‖ (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 65). De tal
modo, o homem inteiro,

/.../ el cual vive en sociedad con sus semejantes, desarrolla en esa sociedad
sus más elementales manifestaciones vitales, y consiguientemente tiene en
sus sentidos elementos y tendencias profundamente comunes con las de esos
otros hombres (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 245).

Consideramos importante a relação do homem inteiro e do homem inteiramente


para a arte, tendo em vista que o homem inserido no meio homogêneo, ou seja, ―/.../ depurado
das ‗impurezas‘ e acidentes da heterogeneidade próprias do cotidiano‖ (FREDERICO, 2005,
p. 113) é capaz de estabelecer uma ascensão do cotidiano, assim, o sujeito é fincado ao gênero
humano, de modo inteiramente, acercado pelo conhecimento, que uma vez estabelecido,

56
Leibniz foi um filósofo alemão do século XVII. Lukács afirma, que as argumentações de Leibniz clareiam o
problema do pensamento e da linguagem e indicam alguns apontamentos sobre o homem no cotidiano, porém
faz algumas ressalvas a respeito de suas ideias serem, muitas vezes, confusas (LUKÁCS, 1965a).
70

institui a fruição intelectual e espiritual. Entretanto, enfatizamos que o homem inteiro e o


homem inteiramente vivem em uma dialética insuprimível no imediato do cotidiano.

O homem inteiro amplia, nessa coletividade, suas mais incipientes manifestações


fundamentais, quando vive em condições favoráveis ao desenvolvimento dos sentidos. Assim,
o homem inteiro elevava-se ao homem inteiramente e retorna ao inteiro enriquecido. Nas
palavras de Lukács, ―/.../ el comportamiento del hombre entero pasa al del 'hombre
enteramente', sino que, además, se precisa la fundamentación de éste en aquél, su recíproca
fecundación y elevación evolutiva‖ (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 80).

Em relação desses dois momentos, Lukács exemplifica:

Piénsese, por ejemplo, en el deporte como simple ejercicio somático, en el


cual esa relación puede tener un carácter puramente inmediato, según ocurre
en la marcha o el mero paseo, y, al mismo tiempo, en las mediaciones
complicadas, y a veces muy amplias, que se presentan en el entrenamiento
sistemático comparado con aquellas formas simples (LUKÁCS, 1982, v.1, p.
80).

Para indicar outro exemplo, com base na leitura lukacsiana, no qual o homem
inteiro se eleva a inteiramente, por ocasião sobrevinda da cotidianidade, recorrendo ao sentido
da audição, isolando o sentido da visão:

/.../ por ejemplo, en la vida cotidiana, el hombre cierra los ojos para percibir
mejor determinados matices audibles de su mundo circundante, esa
eliminación de una parte de la realidad a reflejar puede permitirle captar el
fenómeno que en aquel momento le interesa dominar más exacta, más
plenamente y con más aproximación que la que habría podido conseguir sin
ese prescindir del mundo visual (LUKÁCS, 1982, v.1, p. 36).

Os exemplos mencionados por Lukács revelam que o homem inteiro desenvolve


atividades genuinamente imediatas. No caso do esportista, ao desenvolver atividades
elevadas, se desprende da esfera do cotidiano, de modo inteiramente, este traz consigo
elementos que o diferenciam do homem inteiro. Da mesma maneira, o homem que necessita
capturar um momento, eleva-se ao concentrar-se plenamente em um só sentido.

A respeito da diferenciação entre inteiro e inteiramente, Lukács (1982) afirma que


a separação de ambos, ainda que desfocada por situações de mediação, leva em conta o
direcionamento da vida cotidiana do homem inteiro, para que se possa fazer perceptível em
um mundo qualitativamente distinto. O salto de origem a esse outro modo de comportamento
71

é considerado por ele, de homem inteiramente. Patriota, de acordo com as elaborações de


Lukács, esclarece, nesse sentido que o

/.../ homem inteiro da vida cotidiana – isto é, com interesses práticos que
brotam da totalidade de sua personalidade – surge o homem inteiramente
entregue à vivência homogênea, concentrada, delimitada formal e
conteudisticamente, da obra de arte. Uma entrega que redunda em nova
posse espiritual (PATRIOTA, 2010, p. 266).

No entanto, é necessário ter claro que o homem inteiramente nunca deixa de ser
inteiro, quer dizer, isso bem entendido sob efeito da natureza dialética dessa relação. As duas
configurações convivem no mesmo indivíduo, em alguns momentos uma pode se destacar
com relação à outra. Vale ressaltar que, nos tempos atuais, trafegar entre o homem inteiro e o
inteiramente é um momento raríssimo, dada as condições objetivas que fragmentam o
homem, desferindo profundos golpes em sua humanização.

Com intuito de melhor esclarecer as aproximações e distanciamentos entre os


complexos da arte e da ciência, deixando mais evidentes seus pontos modais como as
categorias da antropomorfização, desantropomorfização e imanência, transcendência, pra que,
por fim, possamos melhor exemplificar o momento de transição do homem-inteiro para
homem-inteiramente, escolhemos a obra de Leonardo Da Vinci57.

A nossa escolha por esse homem-inteiro do Renascimento dar-se por ele ter sido
cientista e artista. Assim, podemos citar seu exemplo, que enquanto cientista foi responsável
por grande avanço do conhecimento nos campos da ciência, matemática, engenharia,
anatomia, etc. Nesse sentido, os objetos de interesse independem da consciência humana, são
desantropomórficas, mesmo dependendo da imanência humana para sua revelação; há um
compromisso com a verdade, uma vez que a ciência, ao voltar para o cotidiano, deve ser
comprovada. O clássico trabalho As proporções do corpo humano segundo Vitruvio (figura
1), de Da Vinci, esquematiza tal complexo58.

57
Leonardo di Ser Piero da Vinci, ou simplesmente Leonardo da Vinci, nasceu em 1452, foi um polímata
italiana, um dos maiores representantes do Renascimento. Destacou-se como cientista, matemático, engenheiro,
inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico.
58
Como modo de ilustrar melhor essa evidência no campo científico, o conteúdo e o estilo dos manuscritos não
explicam por si só a verdadeira paixão do artista ante os novos conhecimentos, revelam também, seu interesse
por escrevê-los e expô-los. Recorremos ao trabalho As proporções do corpo humano segundo Vitruvio. Este
72

Na posição de pintor, escultor, poeta, músico etc, esse homem-inteiro transmuta-


se, agora, para sua condição homem-inteiramente por intermédio de outra abstração superior:
a arte, capaz de elevar o ser do cotidiano para uma privilegiada condição de artista, onde este
complexo revela a condição de se fazer uma reflexão para que se possa criar elementos dessa
elevação. Como no caso científico, o artístico também é imanente, pois depende dos homens e
das contradições sociais existentes em seu entorno para que possa ser existência e propagação.
Entretanto, por ser a arte um complexo que trafega do homem para o homem, sua
conformação é antropomórfica, diferentemente do campo científico que, repetindo, independe
das consciências humanas. Com efeito, o reflexo artístico da realidade não carece de aferição,
no sentido de que não possui uma verificação, como é o caso da ciência. Para continuar com a
obra davinciana, exemplificamos sua tão conhecida criação Gioconda (figura 2)59.

Finalizamos o segundo capítulo, em tom de resumo, considerando que a arte é


obra do ser social, da necessidade nascida deste. A esfera artística, como um incremento do
trabalho, desprende-se deste, mantendo com ele uma dependência ontológica e uma
autonomia relativa. É considerada imanente, uma vez que é próprio do gênero humano, e
dirige-se ao espírito deste, além de guardar em si elementos onde há comprovação das
propriedades, mesmo que não precise provar, como é o caso da ciência. Ademais é
antropomórfica, visto que é o homem que cria e depende, exclusivamente, de sua vontade.

Adiantamos que o capítulo seguinte tem como escopo apresentar a arte e sua
capacidade de refletir o hinc et nunc, expressão latina muito utilizada por Lukács, que quer
dizer, grosso modo, aqui e agora. Procuramos expor, as barreiras, pelas quais, a arte e o artista

desenho ilustra a interpretação de Leonardo da Vinci, com base no texto do terceiro livro de De Architectura de
Vitruvio, que examinou as proporções do corpo humano usando como unidade de medida o dedo, o palmo, o pé
e o antebraço, e representou a imagem do homem bene figuratus, em pé, com os braços e as pernas estendidos,
cuja posição se inscreve exatamente nas formas geométricas mais perfeitas, quer dizer, a circunferência, cujo
centro coincide com o umbigo, e o quadrado, cujo centro é a altura dos genitais. Nesta ilustração, ele corrigiu
inconsistências nas medições de Vitruvio da figura humana, guiado por suas próprias observações e deduções
com base no estudo de modelos vivos (SÁNCHEZ, 2007).
59
Pouco se sabe a respeito da pintura enigmática Mona Lisa, iniciada em 1503 e provavelmente concluída anos
mais tarde, possivelmente em 1516. A modelo é identificada como Lisa Gherardini, esposa de um proeminente
comerciante florentino de seda Francesco del Giocondo, que pode ter encomendado por ocasião do nascimento
de seu filho (Louvre). A intensidade atmosférica obtida através do efeito esfumaçado adiciona o tom de mistério
que permeia todos os elementos da pintura. Sorriso de Mona Lisa ou Gioconda – em alusão ao esposo – tem
intrigado os estudiosos por séculos e seu verdadeiro significado continua a iludir-nos (UNIVERSAL
LEONARDO, 2012).
73

se veem acuados no curso de uma sociedade que obstaculariza a elevação do homem-inteiro,


enquanto ser genérico, a plenitude de homem-inteiramente. Como exemplo da problemática
analisada, utilizaremos os Parâmetros Curriculares Nacionais, diretrizes elaboradas pelo
Estado brasileiro para orientar a educação, separados por disciplina. No caso, nos atemos ao
documento que versa sobre a arte, bem como os editais de arte, Lei Rouanet etc. Contudo, não
podemos deixar de ressaltar, que a arte, por ser universal, guardará, enquanto existir o
homem, a capacidade de refletir a vida, mas, se as condições objetivas dispostas na sociedade
forem miseráveis, a maioria do conjunto dos homens ficará colada ao homem inteiro, sem
elevar-se ao homem inteiramente.
74

FIGURA 1 – As proporções do corpo humano segundo Vitruvio (SÁNCHEZ, 2007, p.14).


75

FIGURA 2 – Gioconda (SÁNCHEZ, 2007, p.68).


76

4 A ARTE E SUA CAPACIDADE DE REFLETIR: O “AQUI E

AGORA” HISTÓRICO

A função social da arte atua como um fenômeno histórico-social, não apenas na


gênese, mas em todo o seu desenvolvimento, com seu conteúdo e forma imanentes. Para o
esteta húngaro, a veracidade da arte ―/…/ es la verdad de la autoconsciencia del género
humano, o sea, una verdad que siempre y en todas las partes /…/ tiene que quedar
inseparablemente vinculada al hic et nunc histórico‖ (LUKÁCS, 1982, v. 4, p. 370-371).
Explicitamos, no capitulo anterior, que a arte, enquanto complexo universal, tem sua
veracidade no ―aqui e agora‖ histórico e retomamos pela importância da arte ser inteiramente
vivenciada no mundo do ser social, compreendendo que a arte é criação do homem, portanto é
antropomórfica, e nasce das relações humanas, consequentemente, é imanente.

Também, há que se levar em conta, como assevera Lukács, na esteira de Marx e


Engels, que ―/.../ não é de maneira alguma necessário que a cada florescimento econômico e
social corresponda infalivelmente um florescimento da literatura e da arte‖ (LUKÁCS, 2009,
p. 93), ou seja, não necessariamente o fato de uma sociedade ser mais desenvolvida
proporcionará uma arte mais evoluída, se comparada a uma sociedade desprovida
economicamente. O esteta húngaro cita Marx, ao afirmar que algumas obras só foram
possíveis dentro de contextos específicos, pois não há como definir mecanicamente que uma
ou outra sociedade possa desenvolver ou não uma arte autêntica. Contudo, é óbvio que em um
contexto histórico favorável a um melhor desenvolvimento do homem, poderá proporcionar
aos seres genéricos melhores condições de fazer da arte suas melhores expressões.

A concepção de arte e literatura em Marx e Engels, de acordo com o filósofo da


Escola de Budapeste, se eleva ao entendimento integral de uma sociedade propriamente
humana, abrindo possibilidades para a compreensão concreta das circunscrições efetivas desta
sociedade, da própria evolução da mesma e, se assim for apreendido, teremos mais nitidez
para analisar uma discussão acerca da desigualdade do desenvolvimento da arte no que toca o
socialmente histórico.

Ao final deste capítulo, procederemos a uma breve análise de alguns documentos


destacados à título de ilustração, o ―aqui e agora‖ histórico: Os Parâmetros Curriculares
77

Nacionais (1997); A Lei Rouanet (1991) e os Editais de arte em geral60. Em termos de


tragédia da arte, essa política tende a estar colada ao pragmatismo, utilitarismo, subjetivismo.
Para análise teórica dos documentos citados, teremos como base os estudos de Lukács
(1965b) sobre a tragédia da arte inserida no capitalismo. Vigotski (2003) sobre a importância
da educação estética. A discussão profícua de Mészáros (2000; 2003; 2006) sobre a crise
estrutural do capital, bem como a respeito de seus escritos estéticos em Marx. Tonet (2002;
2005; 2009), que nos traz uma belíssima reflexão sobre o socialismo, sobre arte elevada às
formas superiores de objetivação. Trazemos também as contribuições de Simon e Dantas
(1985), que descrevem que, se a poesia é ruim, a sociedade se reflete e torna-se pior.

4.1 Estética e sociedade: notas sobre o realismo

Tendo em vista a discussão perpassada no primeiro e segundo capítulos desta


dissertação, consideramos que a ontologia marxiano-lukacsiana atribui ao trabalho uma
função preponderante no desenvolvimento histórico do homem. Recuperamos e insistimos na
centralidade do trabalho, considerando que, apenas a partir deste complexo, foi dada a
condição primeira para a hominização-humanização do homem, ocasionando, posteriormente,
a modificação do cérebro e dos outros órgãos dos sentidos.

As formas superiores de comportamento formaram-se graças ao desenvolvimento


histórico da humanidade, fundado no trabalho, e, consequentemente, nas formas de relações
entre os homens. De acordo com Lukács, tal compreensão serve tanto ao entendimento do
sujeito no sentido histórico e social, bem como à elucidação de como o marxismo dá conta de
explicar cada momento distinto da historia do ser social.

Todavia, o trabalho, inserido na lógica capitalista, derivado de uma crise


profunda61, caracteriza-se por apresentar determinações62 que se afastam cada vez mais da

60
Vale destacar a tese desenvolvida por Silva (2011), que teve objeto a análise critica da imposição de modelos
de política cultural baseado em editais de cinema e vídeo no estado do Ceará, os quais são subordinados aos
interesses da sociabilidade capitalista.
61
O capitalismo, envolto a uma crise estrutural, que ―/.../ deverá tornar-se mais profunda. E, também, deverá
reverberar através do planeta, até mesmo nos mais remotos cantos do mundo, afetando cada aspecto da vida,
desde as dimensões reprodutivas diretamente materiais às mais mediadas dimensões intelectuais e culturais‖
78

base da atividade humana. Trata-se de um trabalho que não potencializa a atividade do


homem e de uma formação que se dá de maneira aligeirada e fragmentada. Nesse sentido,
evidenciamos que as formas de organização do trabalho e da produção na forma social-capital
apresentam-se ariscas ao proletário, primando pelo amontoamento de capital em avaria ao
contentamento do ser social.

Entendemos que esse não é o fim, o homem não está fadado ao desprazer de não
ter um efetivo atendimento em todos os seus aspectos. Pelo contrário, a situação atual é
passível de mudança, com vistas ao afloramento do sujeito revolucionário, em outra forma de
sociabilidade, o socialismo. Como afirma Tonet (2009), tendo como alicerce a filosofia
marxiana, a batalha pelo socialismo é a batalha pela permanência da vida humana 63. Assim,
nos é dada a alternativa de reverter tal situação, qual seja: encerrar a exploração do homem
pelo homem.

Com base nos estudos marxianos, Lukács (1982) assevera que a sociedade
capitalista é aquela que antecede a sociedade socialista e, para tanto, aquela que apresentará à
nova sociedade qualidades precedentes para que se efetivem mudanças urgentes, assim:

/.../ Como última sociedad basada en la explotación, como la sociedad que


no sólo produce las condiciones previas económico-materiales del
socialismo, sino que suscita además a sus propios enterradores, la sociedad
capitalista tiene que producir, en el seno de las fuerzas que deforman y
desfiguran al hombre, también aquellas otras fuerzas que se orientan al
futuro, las cuales se vuelven cada vez más conscientemente contra ella
(LUKÁCS, 1982, v.1, p. 68).

Instruídos pelo arcabouço marxista ontológico lukacsiano, consideramos que o


modo de produção capitalista é o passo economicamente mais evoluído no decurso das
sociedades divididas em classes. Não quer dizer com isso, que chegamos ao fim da história!

(MÉSZÁROS, 2000, p. 15). Voltaremos a expor mais claramente a este respeito no item seguinte, pois nos
ocuparemos ao tratamento da estética diante da crise profunda do capitalismo.
62
Marx (2004), em sua obra Manuscritos Econômico-Filosóficos, nos apresenta a base material, na qual se
caracteriza o estranhamento da sociedade capitalista em quatro determinações do trabalho, quais sejam: 1) o
produto que decorre do trabalho é estranho ao homem; 2) o homem não tem domínio sobre o processo do
trabalho; 3) o homem não reconhece a natureza como seu corpo inorgânico e 4) o homem vê no outro homem
seu maior obstáculo.
63
Além do esclarecimento que o texto de Ivo Tonet traz a respeito da crise do capitalismo e a alternativa que é o
socialismo, indicamos, outro livro, do mesmo pesquisador, que elucida melhor as questões acerca de outra
sociabilidade: Sobre o socialismo, publicado pela HDLivros, no ano de 2002.
79

Com o decorrer do capitalismo, o desenvolvimento das forças produtivas deu-se de maneia


inimaginável: os recursos, as técnicas, a educação, o conhecimento, enfim, o próprio
desenvolvimento humano, com vistas a um progresso universal da humanidade alcançou
patamares inigualáveis64.

Contudo, na medida em que esse desenvolvimento foi se firmando, mais


fortemente foi ratificando a distinção entre os interesses de classes. É preciso frisar que a
barbárie humana atinge a todas as pessoas, independente da classe social. Todavia, em
proporções diferenciadas, pois a maioria dos homens, a classe trabalhadora, não tem acesso ao
progresso historicamente acumulado e permanece encurralada ao infortúnio.

De acordo com a tradição clássica do marxismo, não há apologia referente a um


suposto retorno ao mundo igualitário primitivo, próprio do que é proposto pelos
anticapitalistas românticos, a exemplo, cada um ao seu modo, de Georg Simmel e Martin
Heidegger, para ficarmos apenas com esses dois nomes em uma lista bastante extensa. O que
defendemos, no sentido ontológico, é a divisão irrestrita do que de melhor foi e será
produzido pela humanidade a proveito de todos.

Nossa advertência deve ser entendida precisamente assentada na assertiva de que,


sem o desenvolvimento das forças produtivas, o ócio, a tecnologia, bem como a arte não
alcançariam as estupendas alternativas apresentadas hoje. Sobre a importância da
contraditória evolução social produzida pelo conjunto humano, o filósofo da Escola de
Budapeste, em erudito diálogo com o historiador M. L. Gothein, que descreve a história da
jardinaria, indica a interessante passagem do jardim à horta. Escreve Lukács (1982, v.2):

Alrededor de la habitación surgen - pública y privadamente - fragmentos de


naturaleza primero simplemente elegidos, luego incluso formados
intencionadamente, en los cuales la naturaleza misma aparece ya tan
sometida que empieza a desempeñar el papel dominante, el aspecto por el
cual la naturaleza se convierte en portadora de vivencias, sentimientos, etc.,
humanos (setos, jardines, etc.). Aunque probablemente en tiempos de
Homero incluso los jardines más lujuosos hayan sido esencialmente huertos,
sus descripciones homéricas muestran que las relaciones del hombre con
ellos no se limitan ya al aprovechamiento material de los frutos; esas

64
Santos (2013), com base nas pesquisas do filósofo brasileiro Vieira Pinto, debate a importância crescente da
técnica e da tecnologia para a vida dos homens. Aquele autor indica que posterior a criação das primeiras
ferramentas, os homens tornaram-se socialmente técnicos, depois desse momento, cada fase histórica posterior,
necessariamente, terá que possuir um construto tecnológico mais rico que a anterior.
80

descripciones evocan vivencias diversísimas. (LUKÁCS, 1982, v.2, p. 164-


165).

Avaliamos que apenas através de um elevado nível de desenvolvimento das forças


produtivas é possível o aparecimento de uma sociedade que prime pelo melhor
desenvolvimento social. Uma sociabilidade que satisfaça as necessidades humanas e permita
ao indivíduo desenvolver de maneira livre suas mais autênticas possibilidades. Não se pode
negar que a sociedade capitalista tem altivo grau do desenvolvimento das forças produtivas,
capaz de proporcionar ao homem uma liberdade plena, entretanto, como ratifica Tonet,
apoiado em Marx, nesse modo de produção ―/.../ quem é livre efetivamente não é o homem,
mas o capital‖ (TONET, 2005, p. 176). Não obstante ao caráter de desenvolvimento
progressista, proposto nessa lógica nefária, é, sem sombra de dúvida, o que menos pode
proporcionar a criação e o deleite artístico, tendo em vista o esmagamento e a exploração do
homem pelo homem que este sistema exige e cultua.

Retomamos aqui, de maneira breve, a questão acerca do desenvolvimento


histórico do homem e seus desdobramentos até os percalços da sociabilidade contemporânea,
por entender, embasados no estudo marxiano-lukacsiano, que outros complexos, apesar de
manterem sua dependência ontológica em relação ao trabalho, conduzem, do mesmo modo,
uma autonomia relativa65, como é o caso da arte.

O filósofo húngaro revela que ―/.../ cada esfera de atividade se desenvolve


espontaneamente – por obra do sujeito criador – vinculando de modo imediato às suas
criações precedentes e desenvolvendo-as ulteriormente‖ (LUKÁCS, 2009, p. 92). A
autonomia é para a arte, conforme Lukács (1965b), categoria imprescindível à sua essência.

Lukács situa, ainda, que a autonomia, disposta em uma sociedade que extingue o
amor pela vida, contrai-se uma inditosa independência diante da vida, de modo que podem
emergir duas funções, a saber: ―/.../ a que é um momento da vida, que é a exaltação da sua
riqueza e de sua contraditória unidade, e a que é um enrijecer-se, um estéril dobrar-se sôbre si
mesmo, um apartar-se da móvel conexão do todo‖ (LUKÁCS, 1965b, p. 271). Percebemos
que a arte, disposta na sociabilidade do capital, pode, por um lado, registrar a contradição,

65
Já abordamos anteriormente os termos: dependência ontológica e autonomia relativa (capítulo 2). Para uma
melhor compreensão recomendamos a leitura da dissertação: Trabalho, reprodução social e educação, de
Marteana Ferreira Lima, defendida em 2007, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Estadual do Ceará.
81

denunciar e perspectivar o devir, e, por outro, perder-se do atrelamento com a totalidade,


esmiuçando-se em fragmentos que não alcançam a generidade humana. Expressamos a
importância que Lukács confere a grande arte, no sentido de expressar a totalidade dos
complexos das relações sociais, de modo que, uma autonomia da arte que não abarque tal
integridade está fadada a adormecer ante o fio condutor da realidade.

Partindo do que de mais puro constitui uma arte autêntica, Lukács (2009) relata a
importância de um estudo da essência humana, a humanitas, contudo, além da precisa
consideração do curso da arte, é necessário, como afirmado anteriormente, a defesa da
integridade do ser social, contrária a toda e qualquer disposição que agrida a essência da
humanidade, e, por conseguinte, a essência da arte. Para tanto, faz-se necessário um desenlace
que contorne o real de modo integral e verdadeiro, que consista numa representação universal
da vida, ou seja, nos termos do esteta húngaro, uma criação artística realista.

Com efeito, vale ressaltar que a arte aplicada ao realismo, de acordo com Lukács,
nada tem a ver com estilo artístico, mas com a reprodução artística da realidade, à fidelidade
ao real, ―/.../ o esforço apaixonado para reproduzi-lo na sua integridade e totalidade‖
(LUKÁCS, 2009, p. 102). Este é um princípio basilar asseverado por Lukács, embasado pela
concepção marxiana. A arte realista batalha contra a reprodução mecânica, vazia e superficial
da realidade.

O realismo é ponto chave para entendermos a estética marxista, fato recorrente na


obra de Lukács, isso porque, para Marx, nas palavras de Mészáros:

/.../ o realismo não é apenas uma entre as inúmeras tendências artísticas,


confinadas a um período ou outro (como ‗romantismo‘, ‗imagismo‘, etc.),
mas o único modo de reprodução da realidade adequado aos poderes e meios
específicos postos à disposição do artista (MÉSZÁROS, 2006, p. 180).

Mészáros ratifica, como exemplo, fazendo uma menção ao juízo de gosto dos
filósofos Marx e Engels, que os artistas gregos são grandes realistas, do mesmo modo que foi
considerado Balzac. Estes são arquétipos de distintos períodos históricos, mas o que faz deles
grandes realistas se deve ao fato de que obtiveram uma abrangência artisticamente apropriada
das relações humanas essenciais de cada momento histórico.

A arte, quando autêntica, aponta para uma maior apreensão da existência em sua
totalidade, de modo que, para o esteta húngaro, a legítima arte procura compreender o
82

andamento mais essencial dos fenômenos, porém não de modo abstrato. É um processo
dialético, pelo qual a arte pode proporcionar a realidade de modo integral, demonstrando todo
seu desenvolvimento. A essência se revela em fenômeno e este se manifesta em movimento,
em sua essência, tendo em vista que ambos – fenômeno e essência – são desenvolvidos e
membros no cerne da realidade objetiva.

Ainda de acordo com o pensamento de Mészáros (2006), o realismo desvenda


aquilo que está camuflado na superfície falaz da realidade cotidiana, mas que é essencial para
compreensão do ser social no decurso da história. Por esse motivo, compreende-se não ser
possível a qualquer indivíduo que dispõe de envergaduras e recursos artísticos, principalmente
inseridos na sociabilidade do capital em crise, tornarem-se artistas realistas. O que faz de um
artista realista é o fato do mesmo conseguir destacar, em meio a uma série de experimentos
particulares, a representação da realidade em sua plena totalidade ―humanamente
significativa‖ (MÉSZÁROS, 2006).

Distinta da concepção marxista, a estética burguesa, segundo Lukács (2009),


preza por uma ‗pseudounidade‘ entre fenômeno e essência, compondo uma nebulosa
combinação que vitima a essência, ao colocar no lugar desta uma superficialidade mistificada.
Por outro lado, a filosofia idealista da arte permite entender a antítese entre fenômeno e
essência, porém não consegue distinguir a dialética que existe entre ambos, como esclarece o
esteta húngaro, ao citar como exemplo os ensaios estéticos e a prática poética de Schiller, que
apesar de apresentar ensaios densos e importantes, peca por seguir uma linha de generalização
idealizante.

Vale destacar, novamente, o fato de que todo grande artista realista é circunscrito
pela ―/.../ tentativa apaixonada e espontânea de captar e reproduzir a realidade tal como ela é,
objetivamente, na sua essência‖ (LUKÁCS, 2009, p. 108). Sendo assim, a estética marxista,
prima por uma arte que ostenta o processo social universal a ponto de torná-lo sensível e
apreensível, por meio da dialética do fenômeno e da essência. Nesse sentido, o artista deve ser
incorruptível com a realidade, devendo levar a cabo até as últimas conseqüências, ―/.../ sem se
perturbar com o fato de que suas mais profundas convicções viram fumaça por estarem em
contradição com a autêntica e profunda dialética da realidade‖ (LUKÁCS, 2009, p. 113).

Tendo em vista escritores, considerados por Marx e Engels, como grandes


realistas, a exemplo de Balzac, como já o citamos, e que se afastou de uma posição política de
83

esquerda, ao contrário, de acordo com Engels, assumiu uma posição política legitimista, e,
apesar de seu encanto pela classe abastada, o escritor francês não deixou de escrever contra
seus cômodos fascínios. Sobre tal declarado mérito de Balzac, Engels afirmou que conheceu
muito mais a história da sociedade francesa em seus escritos do que em considerações de
especialistas e considerou, a respeito de sua obra, que ―/.../ sua sátira nunca é tão aguda, nem a
sua ironia é mais amarga, como quando faz agir os homens que mais o atraem: os
aristocratas‖ (MARX; ENGELS, 2010, p. 69). Assim, entendemos que o realismo pode se
desenvolver independentemente dos fascínios de quem o emprega.

A arte, autenticamente realista, para Lukács, repele a concepção trivial da


importância da obra a partir da visão política do criador, todavia, isso não quer dizer que o
sistema de ideias proposto pelo artista seja indiferente. O que deve ser levado em conta, como
é o caso de Balzac e muitos outros grandes nomes da literatura mundial, citados por Lukács,
como o próprio Shakespeare, ou Cervantes, Goethe e Tolstoi, cada qual com suas
peculiaridades, é a preservação da inteireza humana.

Aqui vale um parêntese a respeito do desenvolvimento da humanidade do


particular ao universal. Com base nos estudos de Lukács e conforme o pensamento
vigotskiano, a arte é própria do gênero humano, portanto objetivação humana. Nas palavras
de Vigotski ―/.../a arte não é um complemento da vida, mas o resultado daquilo que excede a
vida no ser humano‖. Nesse sentido, para lembrarmos os termos utilizados por Lukács, a arte
é antropomórfica e imanente, pois ―/.../ toda obra de arte é portadora de algum tema material
real ou de alguma emoção totalmente corrente no mundo‖ (VIGOTSKI, 2003, p. 233). A
partir do exposto, compreendemos que é possível aos homens o desenvolvimento da inteireza
humana e que as mais amplas possibilidades inventivas estão presentes no gênero humano.
Como assevera Vigotski, é provável a cada um de nós a transformação em coparticipantes nas
tragédias de Shakespeare ou nas sinfonias de Beethoven. Deste modo, temos ―/.../ o indicador
mais claro de que em cada um de nós existe potencialmente tanto um Shakespeare quanto um
Beethoven‖ (VIGOTSKI, 2003, p. 244).

Um exemplo que nos permite observar um verdadeiro artista realista é


Shakespeare, ao traduzir de modo sublime ―/.../ a integridade e a indivisibilidade do homem,
isto é, a absoluta primazia do que se passa no interior do homem sobre todas as suas
84

realizações objetivas‖ (LUKÁCS, 1965a, p. 140) e a conseguir desvelar as querelas das


ordens desiguais de sua época. O esteta húngaro descreve a ideia da seguinte maneira:

A trágica sabedoria que permitiu a um Shakespeare criticar com a mesma


eqüidade tanto o feudalismo em declínio quanto o atribulado nascer do
capitalismo, indicando naquele a trágica faustosidade, e neste as forças
demoníacas a chafurdarem no sangue e na imundice, tem profundas raízes na
vida popular de seu tempo (LUKÁCS, 1965b, p. 269).

O dramaturgo inglês só conseguiu seu reconhecimento como tal, relativamente


tarde, sendo ―/.../ na época burguesa que, pela primeira vez, o tornou um escritor de renome
mundial‖ (LUKÁCS, 1965a, p. 142) e seu reconhecimento vivo até os dias atuais, devido à
complexidade e clareza do alcance irrefutável de sua grandiosa obra.

Iniciamos essa breve inserção do realismo no texto por compreendermos sua


importância no que toca a uma arte efetivamente autêntica, sobretudo, por entendermos que
essa discussão torna-se imprescindível ao abordamos uma sociedade precária, a sociedade
capitalista, por ser cada vez mais difícil um artista refletir sua realidade de modo integral.
Nesse sentido, o realismo penetra nas aberrações da ordem econômica do sistema capitalista,
em favor de disposições abstratas e parciais, e, em grande medida, envolto em uma profunda
contradição, inserido na crise do sistema do capital.

O amor pela vida, no artista, torna-se indiferente, os problemas de seu tempo


histórico são apáticos a ele, o recurso inspirador está turvo ―/.../ de sentimentos dúbios e
mesclados, de caos e paixão, gozo e horror, sedução e solidão, simpatia e rancor, vitalidade
pessoal e anonimato geral‖ (SIMON; DANTAS, 1985, p. 54). Segundo os autores
supracitados, em meio a esses anseios, pode-se constatar um discurso improfícuo e genérico,
―/.../ uma espécie de figuração poética de um fenômeno objetivo (histórico?), estilizado com
descompromisso e futilidade, um certo gosto hedonista de brincar com a desqualificação da
própria sensibilidade‖ (SIMON; DANTAS, 1985, p. 54-55).

Com efeito, entendemos, a partir dos estudos do esteta húngaro, que o modo de
produção capitalista é hostil à arte e compreende uma divisão da totalidade concreta do
homem em ―especializações abstratas‖66 (LUKÁCS, 2009, p. 28 Conforme afirma Lukács
(1982, v.1, p. 181), o ―/…/ ser social, especialmente en las condiciones del capitalismo

66
Lukács (2009) confere ao termo ‗especializações abstratas‘ à ausência de direção à integridade humana, tendo
em vista o caráter minimizante proposto pela falta de objetividade que lhe é dado.
85

decadente, produce una creciente opacidad de la vida (de la vida social) como totalidad‖. O
homem é condenado a um processo de deformação humana em favor da desumanização dos
sentidos.

Não podemos deixar de explicitar que o programa filosófico de Marx tem, como
um dos eixos principais, a emancipação dos sentidos humanos, desse modo, Mészáros (2006)
posiciona filosoficamente o lugar da sensibilidade. Mészáros questiona: qual é o local que os
sentidos humanos devem ocupar na escala de valores humanos? O mesmo responde que é
necessária uma restituição dos sentidos humanos, tendo em vista o que se dissipa na
sociedade cindida em classes. O homem não consegue desenvolver plenamente seus sentidos,
na relação homem-natureza, homem-homem, o ser social torna-se cada vez mais
desumanizado.

4.2 A problemática da estética na conjuntura capitalista: a fragmentação


dos sentidos humanos

Vivemos um momento histórico de intensa barbárie, para usarmos os termos de


Mészáros (2003), a crise estrutural que se difere, em contraste com períodos anteriores de
crises cíclicas, tendo em vista a gravidade de problemas sociais vividos pela humanidade. O
início da crise estrutural incide na década de 1970, a busca por equacionar o problema da
baixa das taxas de lucro estendeu-se por todas as esferas da vida social. De lá pra cá as
condições objetivas de desenvolvimento humano se encontram cada vez mais deterioradas. É
cada vez mais difícil conciliar ―/.../ o desenvolvimento universal das forças produtivas com o
desenvolvimento abrangente das capacidades e potencialidades dos indivíduos sociais‖
(MÉSZÁROS, 2003, p. 17).

Fincada pela própria lógica da sociabilidade capitalista, a crise que a atravessa


conduz incisivas coronhadas à classe trabalhadora, engendradas pelas relações sociais de
dominação de uma classe sobre a outra. Fundamentalmente antagônico, o capital busca, diante
da crise de seu sistema, reformar não só o domínio produtivo, mas também as esferas
ideológica e política, que implicam no aumento das condições de opressão ao trabalhador; no
acréscimo colossal dos espaços de mercantilização, etc.
86

No que diz respeito à forma de sociabilidade hodierna, na qual se estabelece na


bifurcação de classes, há um obstáculo para que a maioria dos homens desenvolva suas
potencialidades de maneira livre e criadora. O ser social sofre sucessivamente o indeferimento
da faculdade do sentir, enfrentando diariamente entraves ao desenvolvimento de uma vida
plena de sentido. Supomos que a arte, inserida nesta lógica, sobretudo em sua crise estrutural,
pode compactuar com desenlaces desumanizadores e embrutecedores, de modo a distanciar a
humanização dos sentidos na perspectiva do gênero humano.

Verificamos, nesse sentido, que, no campo educacional, essas relações apresentam


as mesmas configurações, cujas deliberações educativas hegemônicas colaboram, em larga
medida, para a desumanização, já que não admitem a apreensão do real em sua totalidade. As
determinações das práticas educativas hegemônicas contribuem, em grande medida, para a
alienação humana, uma vez que não permitem a compreensão do real na sua inteireza. A
educação, circunscrita às penúrias locais, sustenta sua evidência no cotidiano localizacionista.
Em específico, a arte, inserida nessa lógica alienante, contribui no mesmo sentido. Podemos
citar o exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)67 – volume que versa sobre a
arte, o qual aborda a questão da função da arte na educação. Segundo o referido documento,

Dentre as várias propostas que estão sendo difundidas no Brasil na transição


para o século XXI, destacam-se aquelas que têm se afirmado pela
abrangência e por envolver ações que, sem dúvida, estão interferindo na
melhoria do ensino e da aprendizagem de arte. Trata-se de estudos sobre a
educação estética, a estética do cotidiano, complementando a formação
artística dos alunos (BRASIL, 1997, p. 31, grifo nosso).

A educação para o século XXI, de acordo com o documento oficial, tem como
ponto relevante ‗a estética do cotidiano‘ enquanto proposta de progresso na transformação do
homem. No entanto, a base do cotidiano, constantes das políticas educacionais hegemônicas,
equivale a uma apelação ao mais puro e rebaixado nível do cotidiano, na qual, este perde seu
poder de soerguer e afixar a memória da humanidade, focalizando em uma direção rasteira,

67
Durante a graduação no curso de Pedagogia, como já descrito anteriormente, fizemos, por ocasião do trabalho
monográfico, uma análise do ensino da arte na educação brasileira contemporânea, evidenciando os rebatimentos
da crise estrutural do capital. Para tanto, além do estudo teórico sobre a gênese e a processualidade histórica do
ser social e o exame bibliográfico de algumas das principais categorias presentes na obra Estética I de Georg
Lukács, apresentamos uma breve contextualização das diretrizes do Movimento de Educação para Todos,
examinando, outrossim, a filiação dos princípios que norteiam os PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais –
como documento oficial em foco, especificamente o volume seis, intitulado: arte. Nele discutimos aspectos
como: mercantilização, pragmatismo, economicismo, subjetivismo, flexibilidade do ensino da arte na sociedade
contemporânea. Neste texto, consideramos preliminarmente, que esses aspectos priorizam a acumulação de
capital em detrimento da satisfação das necessidades humanas.
87

sem qualquer tipo de elevação do homem. O cotidiano, disposto pelo sistema do capital, não
serve como solo de rebatimento para que o gênero humano se enriqueça.

A maioria do conjunto dos homens tem sido privada da ascensão do conhecimento


e retirada do processo de fruição, pois a ordem do capital defende a oferta de conhecimentos
imediatos, pragmáticos e aligeirados. Simon e Dantas (1985) discutem acerca do tema ‗se a
arte é ruim, a sociedade é pior‘ e, nesse sentido, colaboram com nossa discussão ao relatarem
que ―/.../ o princípio de prazer da poesia rende-se ao princípio de realidade do cotidiano, e a
banalização é a sua mais literal e satisfeita ilustração‖ (SIMON e DANTAS, 1985, p. 60).
Compreendemos que a formação absoluta do homem, em todos os seus aspectos, repetimos,
tem seu rebatimento no solo da vida cotidiana, no entanto, é necessário um processo de
elevação, uma vez que as objetivações da vida não-cotidiana são elementos constitutivos de
uma efetiva compreensão do real em todos os seus feitios.

Ainda de acordo com Simon e Dantas (1985), ―/.../ a expressão poética hoje não
toma qualquer distância da experiência e da linguagem cotidianas, nem mais aspira a
idealizações formais‖ (SIMON; DANTAS, 1985, p. 48). O conhecimento primoroso, aquilo
que de melhor o homem conseguiu elaborar é deixado de lado em favor do imediato, do
conhecimento raso, aquele que não ultrapassa a esfera cotidiana. No sentido de complementar
o que dissertamos sobre a relevância da riqueza constituída pela humanidade, apoiamos-nos
em Vigotski (2003) ao versar sobre a importância da educação estética da criança associada
ao que foi melhor organizado pelo ser social. Segundo o psicólogo russo:

/.../ quando se fala de educação estética dentro do sistema da formação geral,


sempre se deve levar em conta, sobretudo, essa incorporação da criança à
experiência estética da humanidade. A tarefa e o objetivo fundamentais são
aproximar a criança da arte e, através dela, incorporar a psique da criança ao
trabalho mundial que a humanidade realizou no decorrer de milênios,
sublimando seu psiquismo na arte (VIGOTSKI, 2003, p. 238).

Para o esteta húngaro, o ―/.../ profundo conhecimento da vida jamais se limita à


observação da realidade cotidiana‖. É necessário apreender elementos fundamentais, ―/.../ à
luz da suprema dialética das contradições, as tendências e as fôrças operantes, cuja ação é
dificilmente perceptível na penumbra da vida de todos os dias‖ (LUKÁCS, 1968b, p. 175).

Direcionamos nosso enfoque, agora, ao artista, pois quanto mais intenso for seu
conhecimento tão menos rasteiro será o nível de sua expressão. O artista, inserido também
88

nessa lógica conveniente ao sistema capitalista, tende a estagnar no cotidiano paupérrimo,


sendo cada vez mais difícil a possibilidade de elevação.

A sociedade conduzida sob o amparo do capital exige do artista formas de


adequação, de modo que o mesmo se especialize ―/.../ na arte de criar tensão e o interesse, de
anestesiar e tranqüilizar‖, assim, portanto, torna-se ―/.../ um produto da divisão capitalista do
trabalho‖ (LUKÁCS, 1965b, p. 265). Em súmula, a arte transforma-se em instrumento da
burguesia a fim de confirmar o sistema que exclui, e, este decreta uma arte configurada por
uma: ―Adaptação ornada de excitação, mortificação tornada saborosa pelo desvario‖
(LUKÁCS, 1965b, p. 265), com o objetivo simples de mistificar o real.

Nesse sentido, temos a arte e o artista como artefatos de uso quase que exclusivo
da burguesia. Mesmo apresentando essas considerações de Lukács do século passado,
poderíamos citar muitos exemplos do que acontece no século XXI. Apresentamos a lei nº
8.313 – Lei de incentivo à cultura, também conhecida como Lei Rouanet, a qual surgiu com a
intenção de captar recursos de pessoa física ou jurídica com a finalidade de patrocinar a
cultura e a empresa por meio de incentivo fiscal e divulgação da marca empresarial junto ao
público. Confirmando o exposto, citamos o que o Art. 18 da referida lei, referente ao
incentivo a projetos culturais, apresenta:

Com o objetivo de incentivar as atividades culturais, a União facultará às


pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto
sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a
projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas
de natureza cultural /.../ (BRASIL. Lei nº 9.874, 1999, art.18).

Como podemos perceber a lógica de mercado dita os meios pelos quais a cultura
será estabelecida, ou seja, a arte é usada para fins mercadológicos, ou como bem afirmou
Lukács, um produto da divisão capitalista do trabalho. Em matéria publicada pelo Jornal O
Povo (ANEXO A), no dia 25 de fevereiro de 2013, lê-se que a Lei Rouanet aprovou mais de
500 projetos para o ano de 2013, isso em diversas áreas culturais. O que é destaque neste
tópico do jornal confere no tocante à área musical, uma vez que, a avaliação propalada pela
Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) relata que:

/.../ o maior valor da área musical é destinado para shows de Claudia Leitte.
Após ajuste orçamentário que diminuiu R$ 594 mil do projeto original, a
cantora de axé poderá captar R$ 5.883.100,00 para apresentações pelo Brasil
em uma turnê prevista para maio, junho e julho de 2013 (LEAL, 2013, s/p).
89

Apesar da aprovação do projeto, ainda não se constitui o patrocínio, tendo em


vista que esta aceitação serve de apoio para que o artista passe a deter recursos junto às
empresas, as quais terão o valor do patrocínio descontado em impostos. O que não é muito
difícil de ser efetivado, tendo em vista as regalias que a lei dispõe a essas empresas.
Permanece, portanto, nas mãos de empresários, a decisão sobre quais projetos culturais devem
chegar ao público e, é claro, que projetos que façam uma mínima crítica profunda ao que é
posto não passam nem à margem desses patrocínios.

Como podemos observar, vivemos a mercê das avarias do mercado, do que é mais
rentável ao capitalista, nesse contexto, há uma limitação em torno da arte. Apropriadamente
Mészáros afirma que ―/.../ a falta de um consumo estético adequado é um sintoma do
empobrecimento humano em geral‖ (MÉSZÁROS, 2006, p. 190). A carência da estética
significa, cada vez mais, não só o estranhamento da arte, como também o estranhamento do
público em relação ao artista, ou ainda, o estranhamento recíproco entre todos os elementos
constitutivos da arte.

A presente discussão não tem intenção, de maneira alguma, apresentar juízo de


gosto ou de valor do que seja arte, até porque, como já explicamos, o artista, acuado em um
especialismo apelativo, imerso no cotidiano com base na sua aparência, não consegue ir às
raízes da problemática, não entende o complexo de determinações e objetivações superiores e
fica a mercê da lógica capitalista. Não é a toa que a ―/.../ experiência vivida, a ‗nota pessoal‘,
tornou-se o valor de uso absolutamente indispensável para que a obra literária possa
conquistar um mercado e adquirir um valor de troca‖ (LUKÁCS, 1965b, p. 266), sob pena de
expirar, caso não acate o mercado de trabalho explorador. Denota-se aqui uma das muitas
artimanhas da sociabilidade do capital, a tal ―nota pessoal‖, a experiência vivida, constitui
uma face do subjetivismo, não da elevação das formas superiores da humanidade, uma vez
que o artista e sua arte estão cada vez mais sufocados pela teia mercantil da arte, numa prova
contundente que o cotidiano de exploração, decorrente do modo de produção material da
existência, repercute na fragmentação da subjetividade. A propósito de tal aspecto,
recorremos novamente a Mészáros, ao afirmar que:

/.../ As necessidades que se desenvolvem nessas condições são aquelas que


correspondem diretamente ao imediatismo da utilidade privada. O resultado
geral é o empobrecimento humano em escala maciça, correndo
paralelamente ao enriquecimento material do indivíduo isolado
(MÉSZÁROS, 2006, p. 184).
90

A ordem societal do capital suga tudo o que pode da arte, do artista e do receptor a
seu favor, renunciando, desse modo, a totalidade e primando pela ordem privada. O
desenvolvimento estético em todos os seus aspectos, sob essa lógica, se converte a uma
satisfação limitada. O sistema de exploração capitalista estilhaça a juntura entre subjetividade-
objetividade.

A fruição estética, em meio à arte aprisionada ao mercado, fica a mercê desta


lógica nefasta, fazendo com que o gênero humano quase não tenha alcance às objetivações
superiores nesse campo da formação humana. O acesso ao melhor da riqueza produzida, seja
ela material ou cultural é restrito e a fruição estética fica longe da aquisição da maioria dos
homens.

Especificamente no campo estético-artístico, o artista não consegue desenvolver-


se integralmente, este é vinculado às ―/.../piores qualidades das ‗ciências particulares‘ da
decadência ideológica: um empirismo rastejante, um especialismo burocrático, um
desligamento, um alheamento completo do vivente tecido da totalidade‖ (LUKÁCS, 1965b, p.
266). Entendemos que é pelo amplo processo de humanização dos sentidos, orientado no
trabalho, que temos a evolução do ser social. Sabemos que o homem tem possibilidade real de
desenvolvimento efetivamente integral, no campo objetivo e subjetivo. Nas palavras de Marx
(2004, p. 110),

/.../ apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que a


riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido musical, um olho
para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se tornam
sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais
humanas, em parte recém cultivados, em parte recém engendrados. Pois não
só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os
sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra o sentido humano, a
humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu
objeto, pela natureza humanizada. A formação dos sentidos é um trabalho de
toda a história do mundo até aqui.

Sobre essa questão, afirma Mészáros (2006, p. 182): ―/.../ os sentidos humanos
não podem ser considerados como simplesmente dados pela natureza. O que é
especificamente humano neles é uma criação do próprio homem‖. Isto posto, avaliamos que o
modo como o indivíduo é disposto na sociedade, a partir de como se desenvolve através do
trabalho, é que terá condição ou não para um pleno desenvolvimento dos sentidos. Para que o
homem possa alargar inteiramente suas potencialidades é imprescindível, de acordo com
Mészáros (2006, p. 185, negrito e itálico do autor), a ―/.../ ‗emancipação completa de todas as
91

qualidades e sentidos humanos‘ a raizon d’être do socialismo‖. A plenitude dos sentidos só


pode ser contemplada em outra forma de sociabilidade, baseada em princípios igualitários e
na abolição do privado.

O desenvolvimento dos sentidos humanos, quando não imersos à lógica inumana,


tem a possibilidade de estabelecer uma imensa variedade de riqueza. Os sentidos humanos
não são apenas conectados entre si, mas também com as demais potencialidades humanas, as
objetivações superiores – raciocínio, por exemplo. O homem, quando se desenvolve na sua
integridade, pode se apropriar facilmente de sua totalidade (MÉSZÁROS, 2006).

O cerne da problemática na sociedade de classes é que toda a possibilidade


integral de fruição dos sentidos é obstacularizada, negada à grande maioria dos homens.
Homens que poderiam tornar-se grandes artistas (produtor-receptor) ficam à margem do
desenvolvimento integral de sua humanidade (os sentidos), pois o homem é apartado ―/.../ do
processo de conjunto da sociedade‖ (LUKÁCS, 1965b, p. 268), relativo ao contrário do que
expressamos anteriormente, acerca da integridade do homem.

Apesar disso, de acordo com o esteta húngaro, dentro da mais perversa barbárie
burguesa, é possível manifestar-se ―/.../ esplêndidas ilhas de civilização humana‖ (LUKÁCS,
1965b, p. 265), o que pode ser considerado, em meio a toda contradição expressa no seio da
crise, um papel privilegiado da arte, pois são considerados dignos e engenhosos atos de
audácia que se fincam no imbróglio do sistema capitalista, mas que tendem a estar afastados
da totalidade, visto que o sistema capitalista, ―/.../ vitorioso economicamente, abate cada vez
mais a resistência dos autênticos paladinos da civilização‖ (LUKÁCS, 1965b, p. 265). A arte
travada sob o crivo do capital tende a degenerar-se cada vez mais.

/.../ Nos germes espontâneos de onde surge a arte desta espécie pode, por
vezes, conter-se uma vontade de oposição. Mas quando quedamos
prisioneiros da espontaneidade e a exaltamos na teoria e na crítica, nenhuma
outra solução é possível além da monótona e estéril gangorra entre o
desvario e a insensibilidade (LUKÁCS, 1965b, p. 279).

Os efeitos do capitalismo para a vida do artista são os piores possíveis. De acordo


com Mészáros (2006), o artista é cada vez mais apartado de sua arte ao ter que se submeter,
como já abordamos, ao mercado vendável. Segundo o autor supracitado, ―/.../ a própria
produção de mercadorias – que deve ser eliminada, porque ela desumaniza todas as atividades
92

– inclusive, é claro, a atividade artística, degradando-a a condição de meio subordinado aos


fins da economia capitalista de mercado‖ (MÉSZÁROS, 2006, p. 192, itálico do autor).

Essa discussão torna-se atualíssima, tendo em vista as políticas de editais, outro


exemplo no qual a arte, para fins particulares, visa o lucro. Em um texto, intitulado A arte de
valor, escrito por Guerra (2010), publicado pelo site Isto é dinheiro (ANEXO B), é descrito
que o cenário das artes plásticas brasileiras tem ganhado fundos de investimentos. Isso porque
um grupo de empresários criou o Brazil Gonden Art Investimentos, com o intuito de investir
no mercado da arte, uma vez que o negócio de aquisições de obras em leilões está aquecido,
principalmente fora do país. Na matéria supracitada há um quadrinho, com dicas de como
comprar uma obra de arte, a saber: 1) Gostar da obra que está comprando; 2) Analisar se a
carreira do artista terá relevância no futuro; 3) Ver se o artista está inserido em uma vertente
ou tendência de vanguarda e 4) Saber que se trata de um investimento de longo prazo.

O que fica claro nas dicas dadas é o pragmatismo afeito a lógica capitalista, onde
―gostar da obra de arte‖ sugere o mais puro subjetivismo, ―analisar a carreira do artista
levando em conta sua relevância futura‖ transborda o utilitarismo, a ―tendência de vanguarda‖
colada ao pós-modernismo vazio de sentido, ―saber que o investimento se dará em longo
prazo‖ afinal de contas, tempo é dinheiro. Cada vez mais a arte se encontra inserida a essas
condições perversas. O Governo quer saber se a verba destinada aos editais terá retorno aos
cofres, tanto do estado, quanto dos empresários. Ambos questionam o que vale mais a pena?
Daí a expressão da matéria ―Arte de valor‖ (GUERRA, 2010). O que os artistas realistas
autênticos entendem como arte de valor passa ao largo dessa lógica. A finalidade da arte
realista tem outra essência. Como tudo é bem alinhado, põem as comissões avaliadoras, os
artistas e a arte, tudo, em um mesmo balcão, para que o pragmatismo se alimente da lógica
mercantil.

De acordo com as considerações apresentadas, entendemos que a finalidade da


arte torna-se alheia ao artista, pois pertence ao capital. A arte está subjugada às ―leis gerais de
comercialização‖ (MÉSZÁROS, 2006, p. 187). No que tange a escolha do assunto a ser
abordado em uma obra, o artista atualmente tem mais ‗liberdade‘ do que tinham os artistas da
época renascentista, por exemplo. Porém, liberdade sob pena da suspeita da importância da
obra. O receptor, nessa conjuntura, é privado de entender o procedimento de criação,
assumindo o papel de ―consumidor passível‖ (MÉSZÁROS, 2006, p. 186). A arte, cuja
93

principal função é firmar o lucro da grande burguesia, no curso dessa circunstância, ―/.../
desemboca toda no rio cujas águas deveriam proteger as periclitantes fortalezas do
imperialismo contra a sublevação dos trabalhadores. (LUKÁCS, 1965b, p. 279).

Quanto mais a burguesia se fortalece, os bens culturais se desenvolvem em


mercadorias, e quem as produz, na maioria das vezes, é considerado perito, dependente da
divisão capitalista do trabalho. Para ilustrar, recordemos novamente os PCNs, ao atribuir à
arte, um papel preponderante que visa atender ao mercado de trabalho explorador, a saber:

A arte também está presente na sociedade em profissões que são exercidas


nos mais diferentes ramos de atividades; o conhecimento em artes é
necessário no mundo do trabalho e faz parte do desenvolvimento
profissional dos cidadãos (BRASIL, 1997, p. 20).

Longe de ater-se em favor do desenvolvimento plenamente humano, o


conhecimento é necessário para alastrar a exploradora sociedade vigente. Nesse sentido, a
formação em artes, segundo os PCNs, embasados nas políticas hegemônicas, visa ao
atendimento ao mercado de trabalho, às necessidades do capital, em prejuízo de uma
formação integral dos sentidos, própria do gênero humano, uma vez que, o desenvolvimento
material e cultural produzido historicamente tem sido negado àqueles que sempre ocuparam
uma colocação de grande valor no processo de desenvolvimento histórico da humanidade: os
trabalhadores.

O esgotamento dos sentidos humanos, nessa lógica de exploração da sociedade


contemporânea se deve ao fato do homem estar inserido na esfera da utilidade 68, de onde são
oportunos aspectos utilitaristas ao sistema capitalista, como bem relatou Marx em seu notável
argumento, ao relatar a perda de sentido do mais belo mineral, pelo minerador, que só
reconhece seu valor comercial. Em consonância ao pensamento de Marx, Mészáros (2006, p.
184) afirma que ―/.../ a significação geral do gozo humano é substituída pelo imediatismo
bruto da auto-satisfação privada‖. Portanto, entendemos que o desenvolvimento capitalista
priva o homem da humanização integral das propriedades mais evoluídas do ser social.

O que sobra à maioria dos homens é o conhecimento fragmentado, que serve à


roldana ajustada à corda capitalista. O sentido é perdido da totalidade e a formação encontra-
se dependente das forças econômicas, as quais priorizam a acumulação do capital em

68
Utilidade esta, que de acordo com Mészáros (2010) não é de uso social, mas de uso individual.
94

detrimento da aquisição do conhecimento histórico cultural produzido pela humanidade. A


conjuntura posta pela sociabilidade capitalista, na contemporaneidade, traz à tona a
flexibilidade, decidindo que é necessário estar atento às transformações de acordo com os
ditames vigentes, ―/.../ é preciso mudar referências a cada momento, ser flexível. Isso quer
dizer que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para
aprender‖ (Brasil, 1997, p. 21).

Entendemos que qualquer formação envolta pelo aligeiramento, afeta à


fragmentação e a flexibilização do processo educativo proposto pela lógica hegemônica
vigente, não acolhe, definitivamente, as necessidades humanas, mas sim à reprodução do
capital em crise, colaborando para a disseminação da mercantilização, do pragmatismo, do
economicismo, do subjetivismo e do objetivismo, presentes no ensino da arte. É cada vez
mais notória a premente mercantilização dos sentidos e dos significados, por conseguinte a
agudização da mercantilização da arte.

Embora haja esforço por parte de avulsos artistas, com vistas a eliminar o
alheamento à vida, lutando pela recomposição da integridade, a tragédia da arte, como nos
esclarece Lukács (1965b) toma corpo em tempos de crise do capital. A arte transforma-se em
mercadoria e lesiona o universalismo, uma vez que a sociedade do capital é contrária a um
desenvolvimento estético pleno, ao contrário, prima por uma abstração subjetivista-
objetivista, às piores qualidades que pode oferecer. Daí, torna-se mais difícil apreender o
conhecimento historicamente acumulado, a ordem das coisas, a concretude. O que está mais
alto no pedestal são um devaneio surreal do conhecimento e uma intensa decomposição da
arte.

O complexo da arte, por ser antropomórfico e imanente, parte da necessidade


humana e se influencia fortemente de acordo com o tempo histórico. Devido ao fato de
estarmos inseridos em um sistema que explora o homem de tal maneira que as necessidades
que surgem nessas circunstâncias ―/.../ são aquelas que correspondem diretamente ao
imediatismo da utilidade privada e da apropriação privada‖ (MÉSZÁROS, 2006, p. 184), o
que temos, nesse contexto, é a pauperização humana para a grande maioria. No entanto, como
já mencionamos, baseados na teoria marxiano-lukacsiana, as alterações das necessidades
humanas têm sua preponderância de acordo com os fenômenos históricos, e, portanto, a
95

humanidade não está predestinada a perecer no mal capitalista. O homem requer mudanças, a
emancipação dos sentidos, em meio a essa crise profunda, se faz urgentemente necessária.

Com efeito, apenas o entendimento concreto da história, proposto pela teoria


marxiano-engelsiana, e recuperada por Lukács no complexo da estética, permite o
desvendamento do estrago que ocorre em conseqüência de um estado que retalha a
integridade do homem, consequente do sistema brutal capitalista. Somente em uma sociedade
distinta da atual, que preze por outros valores, que não o egoísmo, o desamor e o ódio, será
possível, para o artista, ampliar horizontes mais largos e mais distantes da superfície.

Através das laborações indicadas por Marx e Engels, por trazerem à tona as raízes
da problemática analisada, foi possível evidenciar, segundo o filósofo húngaro, ―/.../ de onde
provém e para onde se dirige o processo geral, bem como o modo pelo qual será possível
salvaguardar realmente a integridade humana, a integridade do homem real‖ (LUKÁCS,
2009, p. 116). Ademais, segundo a linha de pensamento lukacsiana, é possível apontar como
se fará uma alteração das bases materiais que hostilizam o homem em favor de uma
sociabilidade que prime por uma efetiva formação humana integral.

Cercados pela teoria desenvolvida por Lukács, com todo o mérito da teoria
marxiana, entendemos que a efetiva história da humanidade se dará a partir do momento em
que estivermos livres da propriedade privada e isso só se dará com o findar do capitalismo.
Apenas dessa forma, o ―humanismo socialista‖ permitirá ―/.../ à estética marxista a unificação
do conhecimento histórico e do conhecimento puramente estético‖ (LUKÁCS, 2009, p. 118),
união esta que não pode ser apartada.

Discorrer sobre a arte na sociedade capitalista é pensar em um degrau a mais na


vida da humanidade, para além da pré-história humana. Falar em aprimoramento dos sentidos,
arte, estética, o desenvolvimento das melhores e mais desenvolvidas faculdades humanas é
vislumbrar outro patamar de sociabilidade, uma vez que hoje, temos, para a gritante maioria
das pessoas, o mínimo: a barbárie estética.

Vivemos em uma sociedade miserável, que não prioriza condições objetivas para o
desenvolvimento estético. Sociedade esta que não nos permite vivenciar a dança, a pintura, a
escultura, as artes plásticas de maneira geral, a música, a não ser de forma mínima. Vale
ressaltar que se este grau ínfimo de elevação das formas superiores do humano não serve para
96

a minoria detentora do poder, também não atende a maioria sufocada pelo sistema metabólico
do capital. Nesse sentido, o pleno evolver estético permanece fora do contexto da classe
trabalhadora. O desenvolvimento artístico tende a adormecer sob a lógica metabólica
capitalista, com isso, perdem-se ―Pinxinguinhas‖, "Zezinhos", ―Shakespeares‖, ―Tarcilas‖,
―Goethes‖, "Marias", ―Gonzagas‖, ―Buarques‖, ―Da Vincis‖, ―Machados‖, ―Clarices‖ e
muitos outros que, em meio à seleção classista e, por isso excludente, em que estamos
inseridos, pela crise profunda do capitalismo contemporâneo, são obstruídos da maravilhosa
viagem através da ascensão do homem inteiro ao homem inteiramente.
97

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

/.../ As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a
vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o
espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não
adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem
mistificação (Carlos Drummond de Andrade, 2006, p. 80).

Nossa pesquisa apresentou como objeto de estudo as contribuições da Estética I


de Lukács para a formação humana, na firmeza da leitura marxiano-lukacsiana, dada sob o
exame dialético materialista da história. Para esta investigação, como já sobredito, a teoria
que oferece direção e que nos permite desviar do terreno das simples intuições e adentrar
profundamente ao tratamento científico é a ontologia. As leituras feitas nesse campo de
estudo nos permitiram uma reflexão consciente da realidade objetiva em torno das seguintes
questões: Como se compõe a gênese, o desenvolvimento e a conjuntura da estética
lukacsiana? Como se estrutura a estética proposta pelo esteta húngaro, tendo em vista as
condições humanas objetivas e as objetivações superiores? Em que sentido o complexo da
arte reverbera sobre os seres sociais na sociedade contemporânea em crise profunda?

Procuramos problematizar as indagações, no desenvolvimento desta dissertação,


organizando nossas elaborações em três capítulos, o que nos possibilitou uma profícua
discussão sobre gênese, evolução e estrutura da estética lukacsiana e sua reverberação na
formação do ser social, bem como nos permitiu discutir a arte traspassada pela lógica
capitalista, diante da fragmentação dos sentidos, imposta ao homem dentro deste contexto.
Buscamos destacar, a partir de então, alguns resultados avaliados por nós, de exímia
relevância para o objeto em foco.

Partimos do pressuposto que entende o trabalho como protoforma da atividade


humana, e que tem a importância fundamental na démarche histórica, por conseguinte, no
desenvolvimento do ser social. Desse modo, apreendemos com escopo na teoria marxiana
propalada por Lukács, que é pelo processo de trabalho onde se perde a significação de
utilidade para uma dimensão estética e esse processo é mediado pela consciência. Há um
desprendimento do utilitário ao agradável. Nesse sentido, o complexo universal da arte é
tardio e paulatino com relação ao trabalho, uma vez que o estético nos faz prever que exista
uma ascensão técnica, além do emprego do aprazível no processo de criação. A arte é o modo
98

que faz com que o homem entenda a própria vida na natureza e na sociedade, assim,
consideramos a maior prova da imanência humana.

Amparados na ontologia marxiano-lukacsiana, compreendemos que nenhum


complexo, nem a ciência e tampouco a arte, tenha uma história independente do trabalho.
Como já dito, os complexos nascem por necessidade do trabalho. O desenvolvimento de
qualquer complexo se desdobra pelo movimento da história, consequentemente, é necessário
atribuir à dependência ontológica, que os complexos têm perante o trabalho, protoforma da
atividade humana, e o que vai diferir o ser social das outras esferas naturais.

Consideramos ademais, sob base da teoria marxiana, seguir nossa análise por
considerar esta direção a que melhor explicar a realidade, tendo em vista que esta teoria é a
única, até o momento, que abre possibilidades objetivas no sentido de apreender o real em sua
totalidade, sem deixar de lado o processo de subjetividade. Designadamente ao tratamento do
nosso objeto, Lukács reafirma: ―/.../ esta concepção penetra nas raízes mais profundamente
entranhadas no solo, nem por isso nega a beleza das flores‖. De modo oposto, é através do
entendimento da totalidade, que ―/.../ a estética marxista, e somente ela, que fornece os
instrumentos para uma justa compreensão deste processo na sua unidade, na sua orgânica
conexão entre raízes e flores‖ (LUKÁCS, 2009, p. 117).

A realidade objetiva se entrelaça à esfera particular do indivíduo, a unidade entre


raízes e flores, o que configura a relação entre objetividade e subjetividade. A teoria
marxiano-lukacsiana, atende aos aspectos subjetivos da existência humana, diferentemente de
outras correntes, as quais ajuízam erroneamente que aquela teoria apenas dá conta de explicar
a economia, às questões concernentes à objetividade.

Advertimos junto à Lukács (1982) a preocupação constante com o objeto e o


sujeito no campo da ontologia e também da estética, diversamente do que está estabelecido na
contemporaneidade, onde a interpretação sobre a realidade despreza a totalidade e o que
impera é o mais denso subjetivismo, vinculado ao pragmatismo e ao utilitarismo, envolto à
sociedade capitalista, apregoada ao pós-modernismo, se rende às representações, ao alegórico,
e que se desvincula, cada vez mais, da base histórica e social que engendra a estética. O que
temos no campo da arte, quando muito, são ―especializações abstratas‖, para usarmos os
termos do filósofo húngaro.
99

Tendo como base os estudos sistematizados de Lukács (1982), avaliamos que a


necessidade antropomórfica, contudo, sem o apelo ao transcendente, atinge o estágio da
imanência, a dialética entre objetividade-subjetividade, que é própria do complexo da arte.
Com efeito, a historicidade da realidade objetiva cobra precisamente nas obras de arte sua
forma subjetiva e objetiva, na medida em que a autentica arte nasce da mais profunda
aspiração da época em que se origina.

A arte autêntica prende-se ao gênero humano e o que de melhor o homem


produziu artisticamente tem estreita ligação com sua gênese. É importante salientar que as
objetivações humano-genéricas são tomadas pela configuração objetiva e subjetiva da arte.
Contudo, advertimos que o homem apenas tem acesso à apropriação do patrimônio artístico
produzido pela humanidade dentro de limites drasticamente rebaixados, fato decorrente do
modo de produção da vida material próprio da sociedade cindida em classes, na qual o
interesse é apenas o lucro, sem dar a devida importância à fruição e à formação artístico-
estética. Na situação do sistema de classes, a minoria tem acesso restrito à riqueza cultural
historicamente acumulada, enquanto a maioria sobrevive à margem desta.

Dito isto, para melhor expor as considerações sobre o pensamento estético lukacsiano,
vale reapresentar, brevemente, o exame atento que explicitamos nesta dissertação, o encontro
de Lukács com a literatura, sobretudo, a partir daquela, feita no Instituto Marx-Engels-Lênin,
onde o filósofo húngaro passou a ter contato com essenciais obras formando, a partir de então,
seu pensamento maduro, a partir do qual foi possível descartar suas concepções idealistas,
uma vez que o esteta húngaro dedicou-se, nas décadas de 1930 a 1950, a uma vasta
contribuição intelectual alinhada à teoria marxiana. É importante lembrar o quanto essa
produção sugere o sentido do encontro com a estética marxista. Datam deste período,
publicações como: o ensaio Narrar ou descrever (1936); o livro O romance histórico (1937);
o escrito Marx e o problema da decadência ideológica (1938); edita estudos sobre o Fausto,
de Goethe (1941); Goethe e sua época, Literatura e democracia, Arte livre ou arte dirigida?
(1947); Existencialismo ou marxismo?, Thomas Mann, O realismo russo na literatura
universal (1949); Realistas alemães do século XIX, Literatura e arte como superestrutura
(1951); Balzac e o Realismo Francês (1952); A Destruição da Razão, Nova História da
Literatura Alemã e Contribuições à História da Estética (1954); Problemas do realismo
(1955).
100

Aproximando-se da teoria marxiana, Lukács desenvolve sua Estética e seu


pensamento maduro. Assim como Marx, que partiu da análise da forma de sociabilidade
capitalista para reconstituir o processo de origem e desenvolvimento dos sistemas sociais
antecedentes, o filósofo húngaro teve o anseio de evidenciar que a origem da atividade
estética do homem foi antecedida, em seu germe, por um movimento que foi se
transformando, no qual pode examinar os elementos contínuos da atividade estética desde o
salto ontológico até as configurações maturadas de seu tempo. Ainda que Marx não tenha
escrito nenhum estudo sobre estética, poderíamos retirar do lineamento marxiano e das
formulações de Lukács, uma nova estética, articulada a essa nova ontologia distinta de todas
as direções estéticas que a humanidade apreciou até os dias atuais.

A Estética foi a última obra de Lukács publicada em vida, entretanto, o esteta


húngaro, com mais de oitenta anos, almejava escrever a Ética. Na medida em que a Estética
foi, segundo Lukács, a preparação para a Ontologia, pois é possível encontrar na primeira, em
muitos pontos, o estético como momento do ser social. A possibilidade de conceber, de
apreciar a arte ou a teoria do sensível nasce no cotidiano concreto do homem, enquanto ser
social, a partir de estações de seu alargamento histórico.

Incluímos, portanto, nesse debate, que cotidianidade é a fornecedora dos reflexos


posteriormente transformados em objetivações superiores. Isso ocorre por ser o cotidiano o
solo de rebatimento das atividades realizadas pelo homem. É da vida cotidiana que se extraem
as sensações que mais tarde serão objetivadas na forma de reflexos superiores. Sendo a arte
uma abstração superior, não é produzida de modo cotidiano, contudo, deriva-se neste e volta
ao mesmo, quando autêntica, de maneira engrandecida.

Não obstante, Lukács deixa claro em sua obra madura, que a atividade estética,
considerada por ele como atividade espiritual, suspende o indivíduo do seu cotidiano. Essa
atividade, entretanto, não pode ser entendida, como algo referente à alma, mas que se
relaciona às formas de necessidade e constituição da vida concreta do homem situado
historicamente em seu mundo.

A arte se dá de modo concreto, a partir da realidade objetiva, uma vez que a


estrutura de qualquer atividade, segundo o postulado lukacsiano, na esteira marxiana, tem seu
esclarecimento na gênese. Destarte, sumariando, a arte é atividade propriamente humana,
101

imanente e antropomórfica. Por conseguinte, como escreveu Lukács, de todas as formas


superiores de objetivação, a ciência é o complexo que melhor se dispõe em comparação para
que se possa compreender o funcionamento da arte na vida humana.

Lukács (1982) caracterizou a ciência como desantropomórfica, ou seja, é o sujeito


quem faz sistematizações dos fenômenos que observa, mas os elementos da natureza existem
independentes da vontade do homem. Já a arte, ao contrário, depende exclusivamente a
existência humana, portanto antropomórfica. O esteta húngaro também considera a religião,
passível de comparação com o complexo da arte, ao apresentar que a querela primordial entre
esta e aquela, no que se refere à antropomorfização, não constitui uma humilde limitação da
arte perante a religião. A finalidade objetiva do complexo artístico propõe uma renuncia a
toda transcendência – própria da religião. Em sua intenção objetiva, a arte é tão antagônica à
religião tal qual a ciência. O que vai diferir os aspectos antropomórficos de ambos os
complexos, arte e religião, será o caráter cismundano que a arte possui, ou seja, a arte está no
plano terreno, material, logo, não serve ao sagrado, diferente da religião.

Categorizamos, como sugere Lukács (1982), as definições dadas às categorias


imanência e transcendência, uma vez que a imanência é uma exigência tanto do conhecimento
científico quanto da conformação artística, pois tanto a ciência quanto a arte são complexos
que se fundam na relação objeto-sujeito, com base na objetividade. Todavia, a averiguação
relativa apresenta o homem primitivo sob grande vinculação com a transcendência com
relação aos complexos ciência e arte, dependência que se deu sob os estágios iniciais do
desenvolvimento humano. Ambos os complexos, ciência e arte, com a ampliação das
faculdades intelectuais, paulatinamente, foram construindo uma independência com relação
ao sublime. Dessa maneira, o complexo da arte faz que todo o movimento da consciência ao
transcendente se transforme em imanência ao entendê-lo como elemento essencialmente da
vida humana, imanente, próprio do homem.

A arte, bem como a ciência, desse modo, é exemplo por excelência da imanência
humana, pois é fenômeno social, inseparável do sujeito, é produto da evolução social, do
homem que se faz homem mediante seu trabalho. Através da arte, é permitido, a partir da
categoria da particularidade, transitar do singular, purificando-o ao universal, acessando o
privilegiado espaço de exacerbação da subjetividade humana e assim causar no sujeito uma
102

reflexão elevada, tanto para o criador, que se realiza na criação, quanto para o receptor, que
aprecia o produto do artista.

Tal reflexão elevada pode ser explicada, baseado na estética lukacsiana, tendo
como apoio a relação dialética entre o homem inteiro e o homem inteiramente. A relação
entre esses dois momentos se dá pela possibilidade de se deslocar da circunstância de homem
inteiro ao andamento de homem inteiramente. A arte, na medida em que acessa os elementos
constitutivos da elevação humana, soergue o homem em sua forma superior de abstração, pois
o distancia, mesmo que seja somente em poucos instantes, apenas no espaço-temporal da
catarse, da forma de ser da vida cotidiana.

No entanto, é necessário ter claro que o homem inteiramente nunca deixa de ser
inteiro, dito de forma que fique muito bem entendido, sob efeito da natureza dialética dessa
relação. Vale ressaltar que as duas configurações convivem no mesmo indivíduo, em alguns
momentos, devido, sobretudo ao efeito catártico produzido pela arte, o homem inteiramente
pode destacar-se com relação ao seu homônimo do cotidiano. Com efeito, nos tempos atuais,
trafegar entre o homem inteiro e o inteiramente é um momento raríssimo, dada as condições
objetivas que fragmentam o ser social e sua relação com a realidade, desferindo profundos
golpes em sua humanização.

Presentemente, imersos em uma crise profunda, sem precedentes, a sociedade


capitalista e suas poderosas formas de opressão, raramente vai permitir uma suspensão
cotidiana. Muito dificilmente, permite ao indivíduo se apropriar do interesse da própria
condição humana historicamente situada. Situando nosso pensamento ao ―aqui e agora‖
histórico, vivemos numa imensa barbárie, no campo estético sob o amparo de políticas
hegemônicas educacionais, pelo resguardo de investimentos do Brasil Golden Art, debaixo de
incentivos como o da Lei Rouanet etc. Estamos imersos em uma cotidianidade tão
embrutecida que não sabemos quais são as possibilidades embutidas nesse cotidiano, o que
afeta diretamente as possibilidades estéticas.

Entendemos, nesse sentido, que o desígnio da arte torna-se alheio ao artista,


pertencendo primordialmente ao capital. A arte está subjugada às ―leis gerais de
comercialização‖. Aos apreciadores da arte, nessa conjuntura, designa a privação de entender
o procedimento de criação, assumindo o papel de ―consumidor passível‖ (MÉSZÁROS, 2010,
p. 186-7).
103

Direcionamos nosso enfoque agora ao artista, uma vez que quanto menos intenso
for seu conhecimento tão mais rasteiro será o nível de sua expressão. O artista, inserido
também nessa lógica conveniente ao sistema capitalista, tende a estagnar no cotidiano
paupérrimo, sendo cada vez mais difícil a possibilidade de elevação, pois a sociedade,
conduzida sob o amparo do capital, exige do artista formas de adequação, tendo em vista sua
própria lucratividade.

Por outro lado, analisamos, com base nos estudos de Lukács, que mesmo neste
estado relatado, há possibilidade para que o homem consiga trazer ao solo cotidiano uma arte
plena de sentido, pois, na circunstância que nos encontramos, a arte pode negar, denunciar,
expressar a contradição ou mesmo, apontar o devir, inserido nessa realidade desumana. Para o
esteta húngaro, o ―/.../ profundo conhecimento da vida jamais se limita à observação da
realidade cotidiana‖. É necessário apreender elementos fundamentais, ―/.../ à luz da suprema
dialética das contradições, as tendências e as forças operantes, cuja ação é dificilmente
perceptível na penumbra da vida de todos os dias‖ (LUKÁCS, 2010, p. 196). Desse modo, é
possível pensar numa outra forma de sociabilidade.

Com efeito, de maneira sintética, repetimos as insuficientes possibilidades para a


realização de uma formação humana integral sob a forma capitalista, uma vez que a lógica de
exploração nega o acesso de todos à riqueza espiritual e material da sociedade, atendendo
minimamente às necessidades de reprodução humana, sob a lógica do capital. Pensar sobre o
complexo da arte perpassado pela lógica societal do capital é conjeturar outra forma de
sociabilidade, alicerçada na plena igualdade e efetiva formação humana no mundo dos
homens. Uma sociedade que tenha como prioridade condições humano-objetivas para o
desenvolvimento humano íntegro dos sentidos humanos.

Defendemos, aqui, uma proposição de estética voltada para o desenvolvimento


efetivamente integral dos sentidos humanos, que contemple a formação humana integral da
classe trabalhadora, no sentido da abrirmos possibilidades para a riqueza da faculdade do
sentir, tão limitada por força do capital, o qual, em nome de sua reprodução, atinge o homem
naquilo que ele tem de mais singular, fragmentando a inteireza humana.

Por fim, no estágio constrangedor de produção destrutiva de mercadorias, não


poderia ser possível à arte, bem como a nenhum outro complexo social, escapar a
pauperização sofrida pelas relações humanas regidas, em primeira ordem pela cobiça,
104

individualismo, imediatismo e fragmentação, entre inúmeras outras formas sórdidas de


convivência humana. Na melhor das condições, quando muito, como muito bem mostrou a
obra monumento de Georg Lukács, a produção artística, das sempre bem vindas exceções
existentes, graças a independência relativa conquistada pela arte do complexo do trabalho
inserida na crise estrutural do capital (2000), poderá apenas refletir a desilusão dos grandes
artistas contra o estado de barbárie presenciado hoje, ou, como sensivelmente sintetizou nosso
poeta maior ―/.../achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer‖.
105

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110

ANEXOS
111

ANEXO A – LEI ROUANET APROVA RITA LEE E CLÁUDIA LEITTE (O POVO)


112

ANEXO B – A ARTE DE VALOR (ISTOÉ dinheiro)


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