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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

ALAN DUARTE ARAÚJO

DIALÉTICA E PRÁXIS EM GEORG LUKÁCS: UM ESTUDO SOBRE HISTÓRIA E


CONSCIÊNCIA DE CLASSE

FORTALEZA – CEARÁ
2019
ALAN DUARTE ARAÚJO

DIALÉTICA E PRÁXIS EM GEORG LUKÁCS: UM ESTUDO SOBRE HISTÓRIA E


CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Filosofia do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de
bacharel em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. José Expedito


Passos Lima

FORTALEZA – CEARÁ
2019
ALAN DUARTE ARAÚJO

DIALÉTICA E PRÁXIS EM GEORG LUKÁCS: UM ESTUDO SOBRE HISTÓRIA E


CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Filosofia do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de
bacharel em Filosofia.

Aprovado em: 30 de outubro de 2019.


AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho não teria sido possível sem a orientação do Prof. Dr.
José Expedito Passos Lima, que com atenção e paciência acompanhou a minha
pesquisa, bem como estimulou o meu aperfeiçoamento intelectual, sobretudo no
meu contato com a língua italiana e com outros autores da História da Filosofia,
normalmente, tão esquecidos no universo filosófico atual.
Destaco, também, a importância que o Prof. Dr. Daniel Camurça Correia, meu antigo
e primeiro orientador, exerceu para a execução deste trabalho, ou seja, as suas
primeiras lições a respeito do universo de pesquisa e docência acadêmica, relativas
às melhores formas de estudar e pesquisar, me acompanharão por toda minha
formação e aperfeiçoamento acadêmico.
Agradeço aos professores Mr. Sérgio Borges Néry, Drª. Danielle Maia Cruz, Mr.
Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato. Todos, de alguma maneira, me ilustraram a
importância do esforço, dedicação e rigor intelectual. Contribuíram ainda para a
minha decisão de interromper a minha graduação em Direito, a fim de concluir a
minha formação no curso de Filosofia. Serei eternamente grato.
Agradeço, ainda, as professoras Drª Viviane Magalhães Pereira e Mrª Eliana Sales
Paiva, por gentilmente consentirem participar da banca de avaliação desta
monografia.
A todos amigos, colegas e mestres, pelos diálogos, pela confiança depositada e pelo
carinho. Agradeço, em especial, à minha namorada Isadora Paiva de Almeida, e aos
meus amigos Hellen Olympia Freitas Uchoa, Gustavo Lourenço e João Victor, pela
motivação e inspiração que me ofereceram. À minha família pelo suporte financeiro.
Por fim, agradeço à UECE pelo fomento à pesquisa, por criar espaços de debate e
intercâmbio acadêmico e pôr à disposição de discentes, docentes e funcionários
uma estrutura adequada ao desenvolvimento do ensino e da pesquisa.
“[…] para o proletariado, e somente para
o proletariado, uma noção correta da
essência da sociedade é um fator de
poder de primeiríssima ordem, talvez até
a arma decisiva”.
(Georg Lukács)

“Quando o proletariado anuncia a


dissolução da ordem social existente
apenas declara o mistério da sua própria
existência, uma vez que é a efetiva
dissolução desta ordem. Quando o
proletariado exige a negação da
propriedade privada, apenas estabelece
como princípio da sociedade o que a
sociedade já elevara a princípio do
proletariado e o que este já
involuntariamente encarna enquanto
resultado negativo da sociedade”.
(Karl Marx)
RESUMO

Esta monografia tem como tema a relação entre dialética e práxis na reflexão de
Georg Lukács (1885 – 1971), com base na sua obra História e Consciência de
Classe (1923). Este tema se inscreve no horizonte da filosofia social e política, e
reconhece, em Lukács, a sua vasta produção teórica, na qual se verificam
contribuições, igualmente, para a estética, ontologia e ética. O destaque conferido às
reflexões políticas de Lukács justifica-se em razão da problemática, aqui, enfrentada:
pensar a retomada lukácsiana da relação entre filosofia e marxismo, a preocupação
em resgatar o procedimento histórico-dialético, na medida em que ele se reporta a
diferentes pensadores e categorias, de orientação não dialética, mas, também,
distantes da elaboração teórica marxiana. Para abordar tal problemática, valeu-se de
certa hipótese interpretativa, qual seja: para uma devida compreensão, de História e
Consciência de Classe, é preciso considerar a articulação entre compromisso teórico
e prático lukácsiano e as razões de sua insistência na importância do tratamento
histórico-dialético da realidade, como uma forma de enfrentamento, quer teorético,
representado pela Segunda Internacional, quer das possibilidades de uma revolução
proletária, em face da estagnação capitalista experimentada na década de ’20.
Ademais, nesta investigação, considerou-se o procedimento histórico-dialético, com
base no qual se busca articular o universo histórico, em que se inseria a experiência
intelectual e política de Lukács, com a particularidade de sua intervenção teórica.
Para a exposição do conteúdo, dividiu-se, este trabalho, em quatro capítulos,
explicitando os principais conceitos, mas, igualmente, questões relevantes, desde a
formação e desenvolvimento intelectual de Lukács, em sua juventude; ao problema
de certa leitura, da obra marxiana, realizada na Segunda Internacional e, em
especial, as fontes do seu pensamento, e a especificidade delas, em História e
Consciência de Classe. Por fim, discutiu-se os limites da elaboração dialética
lukácsiana, intencionando responder à problemática proposta. Deste estudo, conclui-
se a inadequação de se reportar à História e Consciência de Classe como uma obra,
meramente, hegeliana ou subjetivista, pois se trata de compreender as tendências e
orientações intelectuais contraditórias, presentes nela, de modo que os resultados
acertados e equivocados se apresentam articulados à sua constituição e exposição.

Palavras-chave: Dialética. Práxis. História. Proletariado.


ABSTRACT

This monograph has as its theme the relationship between dialectic and praxis in the
reflection of Georg Lukács (1885 – 1971), based on his work History and Class
Consciousness (1923). This theme fits into the horizon of social and political
philosophy, and recognizes, in Lukács, its vast theoretical production, in which
contributions can also be made to aesthetics, ontology and ethics. The prominence
given to Lukács's political reflections is justified by the problematic here faced:
thinking about the Lukácsian resumption of the relationship between philosophy and
Marxism, the concern with rescuing the historical-dialectical procedure, as it refers to
different non-dialectical thinkers and categories, but also distant from the Marxian
theoretical elaboration. To address this problem, it was based on a certain
interpretative hypothesis, namely: for a proper understanding of History and Class
Consciousness, one must consider the articulation between Lukácsian theoretical
and practical commitment and the reasons for his insistence on the importance of
historical treatment. -dialetic of reality, as a form of confrontation, both theoretical,
represented by the Second International, and the possibilities of a proletarian
revolution, in the face of the capitalist stagnation experienced in the '20s. Moreover,
in this investigation, the historical-dialectical procedure was considered, based on
which one seeks to articulate the historical universe, in which Lukács's intellectual
and political experience is inserted, with the particularity of his theoretical
intervention. For the exposition of the content, this work was divided into four
chapters, explaining the main concepts, but also relevant issues, since the formation
and intellectual development of Lukács in his youth; to the problem of a certain
reading of the Marxian work done at the Second International and, in particular, the
sources of his thinking, and their specificity in History and Class Consciousness.
Finally, the limits of the Lukácsian dialectic elaboration were discussed, intending to
answer the proposed problem. This study concludes the inadequacy of referring to
Class History and Consciousness as a work, merely Hegelian or subjectivist,
because it is about understanding the contradictory intellectual tendencies and
orientations present in it, so that the right and wrong results are articulated to its
constitution and exposition.

Keywords: Dialectic. Praxis. Story. Proletariat.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................... 10

2 AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIZAÇÃO NA HUNGRIA E AS


SUAS EXPRESSÕES NO PENSAMENTO DO JOVEM
LUKÁCS...................................................................................……... 16
2.1 HUNGRIA NA VIRADA DO SÉCULO XX E A POSTURA DO
JOVEM LUKÁCS...........................……………………………………... 16

2.2 OS DOIS GRANDES ACONTECIMENTOS DO INÍCIO DO


SÉCULO XX: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO
RUSSA…………………………………………………………………….. 24
2.3 A “CONVERSÃO” E “RUPTURA” DE LUKÁCS PARA O
COMUNISMO COMO QUESTÃO……………………………………… 30

2.4 SOBRE A COMUNA HÚNGARA E O “PRÉ-MARXISMO” DE


LUKÁCS…………………………………………………………………… 37

3 O MARXISMO NA VIRADA DO SÉCULO XX: POSTURA DE


LUKÁCS NOS EMBATES TEÓRICO-PRÁTICOS EM TORNO DO
SIGNIFICADO DA OBRA MARXIANA.....................………………... 45
3.1 A SEGUNDA INTERNACIONAL E O MOMENTO HISTÓRICO DO
MARXISMO........................................................................................ 33

3.2 O MARXISMO “CRÍTICO” E O SEU MÉTODO: ALGUMAS


FORMULAÇÕES CRÍTICAS DE LUKÁCS……………..…………….. 50

3.3 O MARXISMO CRÍTICO ANTE O CAPITALISMO: OPOSIÇÃO


LUKACSIANA..................................................................................... 57
3.4 LUKÁCS E A DEFESA DO “MARXISMO ORTODOXO” EM
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE……………………………. 63

4 HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE E SEU TEMPO:


PRINCIPAIS CATEGORIAS E CONCEITOS FORMULADOS……… 75
4.1 A REIFICAÇÃO NA SOCIEDADE CAPITALISTA: A
INTERPRETAÇÃO LUKACSIANA……………………………………... 75
4.2 CONSCIÊNCIA DE CLASSE E SUA EXPRESSÃO IDEOLÓGICA
NA BURGUESIA: ABORDAGEM LUKÁCSIANA……………………… 83

4.3 “FALSA CONSCIÊNCIA” E “CRISE IDEOLÓGICA DO


PROLETARIADO”: A OPOSIÇÃO LUKÁCSIANA AO
ECONOMICISMO MECÂNICO………….…………………………. 92

4.4 O PROLETARIADO COMO “SUJEITO-OBJETO IDÊNTICO”: A


NOVIDADE TEÓRICA LUKÁCSIANA…….……………………………. 100
5 EM TORNO DE HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE:
PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS E SITUAÇÃO DA DIALÉTICA……….. 109

5.1 A ESPECIFICIDADE DAS MEDIAÇÕES EM HISTÓRIA E


CONSCIÊNCIA DE CLASSE: DISCUSSÃO PRELIMINAR SOBRE
A DIALÉTICA LUKACSIANA……………………………………………. 109

5.2 DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ AO MATERIALISMO


HISTÓRICO E DIALÉTICO: A CATEGORIA DE TOTALIDADE
FORMAL EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE………….... 123
O CONCEITO DE TOTALIDADE CONCRETA EM HISTÓRIA E
5.3
CONSCIÊNCIA DE CLASSE: ELABORAÇÃO MATERIALISTA DE
132
LUKÁCS E OS SEUS LIMITES………………………………………….
5.4 A DIALÉTICA DA NECESSIDADE E DA LIBERDADE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS QUESTÕES DA ORGANIZAÇÃO
PROLETÁRIA EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE…… 150
6 CONCLUSÃO…………………………………………………………….. 165

REFERÊNCIAS…………………………………………………………... 169
10

1 INTRODUÇÃO

A presente monografia tem por tema a relação entre dialética e práxis na


reflexão de Georg Lukács (1885 – 1971), com base na sua obra História e
Consciência de Classe (1923). Tal tema se inscreve no horizonte da filosofia social e
política, apresentando conceitos e categorias, não só pertencentes ao universo
filosófico puro, mas, igualmente, a outros domínios do conhecimento e à realidade
histórico-social e cultural. Disso resulta certa especificidade temática e, também,
teórico-metodológica, em virtude tanto da obra de Lukács, aqui investigada, quanto
ao seu pensamento, pois são expressões de um acontecimento filosófico e político:
necessidade de retornar à reflexão sobre a relação filosofia e marxismo. Trata-se, ao
mesmo tempo, do primado eminentemente político da orientação de sua filosofia,
não obstante se identificar, ao longo de seus estudos, a presença de contribuições
para a ontologia, estética e ética: algo que não se pode aqui desconsiderar, pois
constitui um dado relevante de seu pensamento e de sua formação filosófica.
A formação intelectual de Lukács pressupõe certa realidade histórica
específica, ou seja, a realidade histórica e socioeconômica da Hungria, local de
nascimento. Em virtude de certo atraso de seu país, quer econômico, quer do
desenvolvimento político e social do proletariado, Lukács, que desde cedo
manifestou aspirações românticas e anticapitalistas, busca complementar a sua
formação na Alemanha. Desse modo, ao entrar em contato com diferentes
orientações filosóficas, Lukács revelou, desde cedo, uma ampla erudição e formação
filosófica, pois lhe orientaram no desenvolvimento de certa postura, influenciada,
também por dois grandes acontecimentos que marcaram o início do século XX: A
Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro. Portanto, ambos
acontecimentos foram responsáveis por certa reconfiguração do pensamento de
Lukács, ou seja, de uma aproximação cada vez mais do horizonte intelectual
dialético e marxiano, visando assim responder a certas inquietações teóricas as
quais caracterizaram o seu desenvolvimento cultural e filosófico juvenil.
À época da elaboração de História e Consciência de Classe, Lukács
encontrou-se diante de um universo histórico-concreto muito específico. Se, por um
lado, verificava-se em certos marxistas uma esperança de que a revolução, ocorrida
na Rússia, universalizar-se-ia para além do território russo, realizando, por fim, a
revolução mundial do proletariado; por outro, o que se constava na realidade era
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uma estagnação cada vez maior das perspectivas revolucionárias, em consonância


com o fato de que o proletariado em toda a Europa aproximava-se, de forma
significativa, às posturas revisionistas e filopositivistas, cujas posturas Lukács, ao
longo de sua obra marxista, buscou enfrentar. Dessa forma, História e Consciência
de Classe revela a primeira postura, a saber, aquela que defendia a atualidade da
revolução proletária, procurando assim fundamentar tal perspectiva revolucionária,
bem como o papel que o proletariado assumiria nessa revolução. Daí Lukács expôr,
nessa obra, uma compreensão da sociedade capitalista, de sua configuração e
possibilidades de sua superação.
Em razão da preocupação exposta por Lukács, em fundamentar a
revolução, buscando articular, de forma dialética, teoria e práxis revolucionária,
apresenta-se, aqui, a seguinte problemática, a qual orienta o presente trabalho:
como pensar a dimensão dialética de História e consciência de classe, na medida
em que Lukács por vezes reporta-se a autores e categorias não marxianas ou,
sequer, dialéticas? Justifica-se a elaboração de tal problemática em razão do
objetivo, exposto no Prefácio da obra, de conferir atualidade à dimensão dialética
dos escritos marxianos, por causa das vulgarizações e revisionismos, constatáveis
em certos autores marxistas, os quais secundarizam ou até desprezam a
importância da dialética marxiana.
Na contramão de tal tendência, Lukács busca acentuar a devida relação
entre as obras de Hegel e Marx, sobretudo, no que diz respeito ao procedimento
teórico-metodológico, presente em ambos os pensadores, qual seja, a dialética,
defendendo o retorno à dialética, conforme se apresenta em Marx, explicitando
assim uma compreensão diversa de ortodoxia. Para Lukács, com Marx a dialética se
torna o procedimento que possibilita o conhecimento adequado do presente, bem
como a solução para diversos problemas teórico-práticos da sociedade capitalista.
Não obstante tal reconhecimento, Lukács, ao avaliar a constituição da sociedade
capitalista, bem como as possibilidades revolucionárias, termina se reportando a
autores não-dialéticos. Daí se buscar, neste trabalho, investigar a elaboração teórica
de Lukács, concernente à dialética histórico-materialista, a fim de se pensar se
Lukács realiza o seu intento ou permanece, ainda, aquém das possibilidades de sua
pretensão, demonstrando, assim, os seus limites.
No tocante a esse objetivo, a presente monografia se estrutura em quatro
capítulos, os quais, sem abstrair da argumentação lukacsiana, pretendem responder
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a problemas específicos, concernentes ao itinerário intelectual de Lukács, sobretudo,


em História e Consciência de Classe. O primeiro capítulo, intitulado As contradições
da modernização na Hungria e as suas expressões no pensamento do jovem
Lukács, procura, justamente, apresentar o universo histórico-prático no qual se
gestou o pensamento juvenil de Lukács. Trata-se de uma retomada dos elementos
teórico-práticos, presentes na formação filosófica e cultural de Lukács, a fim de uma
compreensão de que certos elementos desse período permaneceram no horizonte
teórico de Lukács e ao longo de sua formação intelectual. Destaca-se, sobretudo, a
importância que tiveram a constituição econômico-social contraditória, da Hungria e
os grandes acontecimentos, do início do século XX, ou seja, a Primeira Guerra
Mundial e a Revolução de Outubro, conforme aludido anteriormente, na formação de
seu pensamento. Assinala-se ainda no mesmo capítulo, como Lukács busca
responder às suas inquietações teórico-práticas, relativas a esse período, até a
culminação de sua adesão ao Partido Comunista húngaro e à sua consequente
adesão ao marxismo. Ademais, busca-se também pensar a validade, no sentido
hermenêutico e interpretativo, da categoria de conversão/ruptura, a fim de uma
compreensão do desenvolvimento intelectual lukácsiano.
O segundo, intitulado O marxismo na virada do século XX e a postura de
Lukács nos embates teórico-práticos em torno do significado da obra marxiana,
busca destacar o universo teórico da Segunda Internacional. Para tanto, tal capítulo
já adentra nos argumentos apresentado por Lukács, em História e Consciência de
Classe. Trata-se, com efeito, de uma exposição de certa compreensão do marxismo,
a qual, segundo Lukács, representa uma vulgarização e banalização da importância
da dialética para o corpo teórico marxiano. Conforme será exposto, a Segunda
Internacional representa, para Lukács, uma deformação filopositivista do marxismo,
na medida em que os seus membros se reportam ao procedimento teórico-
metodológico das ciências empírico-analíticas, julgando obter assim uma maior
precisão científica da realidade, recortando-a em “fatos puros”, regido por leis
eternas da natureza. Em contrapartida a essa perspectiva teórica, no interior do
marxismo, Lukács defende uma concepção particular de ortodoxia marxista, a qual
expressa a centralidade da dialética, em sua elaboração histórico-materialista, para
a investigação da realidade. Por fim, são explicitados os dois conceitos
fundamentais da dialética lukacsiana, a saber, totalidade e mediação. Ao insistir no
tratamento dialético da realidade, Lukács pode, por fim, apresentar uma articulação
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entre teoria e práxis revolucionária, defendendo assim a centralidade do proletariado


nesse processo de superação da sociedade capitalista.
O terceiro capítulo, intitulado História e Consciência de Classe e seu
tempo: principais categorias e conceitos formulados por Lukács, busca assinalar as
principais categorias e conceitos presentes em História e Consciência de Classe.
Para tanto, tal capítulo pressupõe o momento anterior, no qual foi abordado o
universo histórico-social de Lukács, bem como os embates teórico-práticos
presentes na formulação da problemática central da História e consciência de
classe. Retoma-se, no mesmo capítulo, certas noções, já apresentadas na
exposição dos capítulos anteriores, mas agora articulando-as com outras mediações
fundamentais de História e Consciência de Classe. Inicia-se com a apresentação do
conceito lukacsiano, de reificação, destacando a relação desse fenômeno com a
estruturação da sociedade capitalista e os seus efeitos, quer objetivos, quer
subjetivos. Ao compreender o capitalismo como um sistema econômico-ideológico,
que concebe formas de vida específicas, Lukács articula tal compreensão com o
problema da consciência das classes modernas. Nesse sentido, ele se propõe
realizar um estudo concreto da consciência, reconduzindo-a ao seu fundamento
histórico-concreto e articulando-a com as classes sociais presentes no capitalismo.
Daí ele expor os conceitos de falsa consciência, quer na burguesia, quer no
proletariado. Trata-se de ele explicitar a razão pela qual, em certas situações
revolucionárias, nas quais o capitalismo encontra-se comprometido, em virtude de
suas contradições imanentes, não conduzir a uma revolução proletária. Ao contrário,
Lukács observa que, a despeito do acirramento das contradições, um número cada
vez maior de proletários terminou aderindo às posturas social-democratas e
reformistas. A despeito de tal reconhecimento, Lukács sustenta ainda a possibilidade
revolucionária, em virtude de o proletariado poder superar, de forma efetiva, a
reificação e sua condição, de mera mercadoria, ao assumir o seu papel como sujeito
da história, ou seja, como Sujeito-objeto idêntico.
O quarto, por fim, realiza, em vista do que foi discutido ao longo da
monografia, uma avaliação relativa ao estatuto da dialética em História e
Consciência de Classe, ou seja, responder à problemática do presente trabalho.
Nesse sentido, retorna-se a certos conceitos e argumentos da obra lukacsiana, já
apresentados na exposição deste trabalho, a fim de investigar os limites deles, mas
agora expondo-os com base em uma nova orientação. Retoma-se assim os
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conceitos centrais da dialética, de Lukács, a saber, totalidade e mediação, para


investigar, por um lado, a especificidade das mediações em História e Consciência
de Classe, por outro, as diferentes concepções de totalidade dispostas na obra.
Expõe-se de que maneira Lukács se reporta aos diferentes pensadores e conceitos
filosóficos, não somente marxianos, ou seja, dialéticos, a fim de responder às suas
inquietações teórico-práticas, sobretudo com respeito à revolução proletária, isto é,
as possibilidades de superar a dinâmica capitalista da reificação, origem da crise
ideológica do proletariado. Daí, em virtude do problema relativo à possibilidade da
revolução, em meio a um universo histórico-concreto reificado, se indagar se a
tentativa lukacsiana de superar a contradição entre o “reino da necessidade” e o
“reino da liberdade”, foi respondida.
Como procedimento de investigação assumido, nesta monografia,
destaca-se o tratamento histórico-dialético, orientado pela obra central desta
pesquisa. Nesse sentido, buscou-se articular o horizonte histórico-social da
experiência de Lukács com a particularidade de sua intervenção teórica. Daí se
evitar supervalorizar as suas influências teóricas juvenis, que contribuíram para a
sua formação e o desenvolvimento intelectual, assim como evita-se, igualmente,
todo “condicionalismos”, no sentido de justificar certos limites de seu pensamento
como mera determinação do momento histórico. Considera-se assim certa
articulação e interação dialética entre o pensamento do autor e a sua situação
histórico-social particular, não obstante se admita que a sua situação história se
apresente como um “momento predominante”, desta interação.
Nesse procedimento investigativo, consideram-se algumas fontes que
auxiliaram de forma relevante esta abordagem do pensamento de Lukács e, em
particular, o tema específico apresentado nesta monografia, ou seja, a questão
concernente à relação entre dialética e práxis em História e Consciência de Classe
de Georg Lukács. Ademais, dispôs-se, a fim de uma melhor exposição das fontes,
em primárias e secundárias: as primeiras compreendendo as obras de Lukács e de
Marx; e as segundas, aquelas de comentaristas, estudiosos, isto é, de outros
filósofos ou especialistas. Ainda, como fonte secundária, indica-se a obra de
pensadores que foram fundamentais para o desenvolvimento intelectual de Lukács,
a saber: Kant, Fichte, Hegel e Max Weber.
Em consonância ainda com o procedimento teórico-metodológico
adotado, nesta pesquisa, a saber, interação dialética entre a particularidade da
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intervenção teórica de um autor e o seu horizonte histórico-social, adotou-se a


seguinte hipótese orientadora: sustenta-se que a especificidade e atualidade de
História e Consciência de Classe, ou seja, a defesa lukacsiana da dialética, em sua
elaboração histórico-materialista, deve ser compreendida segundo o universo
histórico-prático relativo ao início da década de 20. Compreende-se, aqui, por um
lado, as deformações filopositivistas do marxismo, reportando-se a certos marxistas
pertencentes à Segunda Internacional. Por outro, História e Consciência de Classe
foi escrita em um período marcado por tendências opostas, ou seja, aquelas que
indicam, ainda que parcialmente, a atualidade da revolução proletária e a
universalização da revolução gestada na Rússia, ao passo que, em contrapartida,
um estreitamento das condições revolucionárias começam a ser observados. Nesse
sentido, História e Consciência de Classe articula um problema teorético, no quadro
do marxismo, com uma inquietação prática, a saber, com o destino da revolução
proletária geral, a qual Lukács julgava iminente.
Como resultado desta investigação, pode-se defender, pelo menos em
uma forma alusiva, a insustentabilidade de julgar História e Consciência de Classe,
valendo-se de certas determinações redutoras e unilaterais. Daí se refutar, no
presente trabalho, certas conclusões exposta por alguns comentadores da obra de
Lukács, que reduzem História e Consciência de Classe a um escrito hegeliano e
idealista, ou mesmo, subjetivista. Compreende-se que, em virtude das diferentes
tendências filosóficas, presentes nessa obra de Lukács, reduzi-la a seus aspectos
problemáticos é um tratamento hermenêutico unilateral. Na realidade, tal obra
apresenta por vezes formulações acertadas, do ponto de vista de uma dialética
histórico-materialista, mas, igualmente, equivocadas, expostas, simultaneamente, e
dispostas, lado a lado. Trata-se de algo que exige, do leitor, um árduo trabalho
hermenêutico e interpretativo, a fim de separar as formulações problemáticas,
daquelas acertadas, na abordagem e reflexão sobre essa obra, destacando, assim,
as tendências filosóficas, e historico-materialisticamente corretas, que possibilitam
outra leitura de Marx, em oposição àquelas prevalentes na sua época, contribuindo
para um “renascimento do marxismo” ante a vulgarização deste último.
16

2 AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIZAÇÃO NA HUNGRIA E AS SUAS


EXPRESSÕES NO PENSAMENTO DO JOVEM LUKÁCS

O presente capítulo busca expor o universo histórico-social, no qual se


gestou a formação intelectual de Georg Lukács, destacando igualmente certas
influências culturais e intelectuais, que influenciaram a sua compreensão do seu
presente histórico, contribuindo assim para a elaboração de sua filosofia. Para tanto
é preciso, antes de mais, problematizar certas leituras de comentadores, da sua
obra, os quais se valem da noção de conversão/ruptura na avaliação do
desenvolvimento do seu pensamento. Daí se buscar aqui explicitar os limites de tais
interpretações e as suas orientações hermenêuticas, a fim de defender a
possibilidade de se pensar uma “unidade” dialética, presente na formação e
desenvolvimento intelectual de Lukács: pressuposto fundamental para uma
investigação imanente de suas obras. Por fim, aborda-se a especificidade do
marxismo juvenil de Lukács, à luz de certos acontecimentos histórico-mundiais e da
recepção de tais acontecimentos por parte de certo segmento intelectual marxista.
Compreende-se que tais elementos, bem como os pressupostos desenvolvidos ao
longo deste primeiro capítulo, são fundamentais para a elucidação de alguns
momentos da obra História e Consciência de classe, publicada em 1923: fonte
principal da investigação deste trabalho.

2.1 HUNGRIA NA VIRADA DO SÉCULO XX E A POSTURA DO JOVEM LUKÁCS

Lugar de nascimento de Georg Lukács, a Hungria, pode ser considerada,


na virada do século XX, em relação aos seus elementos econômico-sociais, como
uma nação cujo desenvolvimento é contraditório. Para a devida compreensão do
desenvolvimento peculiar húngaro, Michael Lowy se vale da comparação com a
Rússia, cujo conceito de desenvolvimento desigual e combinado 1 é utilizado para

1 Michael Löwy retoma a expressão de Trotsky, para elucidar a realidade histórica e social dessas
duas nações, quais sejam, a húngara e a russa. Ver, nesse sentido: LÖWY, Michael. Para uma
sociologia dos intelectuais revolucionários: A evolução política de Lukács (1909 – 1929).
Tradução de Heloísa Mello e Agostinho Martins. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1979, p. 65. Ainda nesse sentido, destaca-se que o estudioso da obra lukacsiana, George
Lichtheim, também apresenta um paralelo entre o desenvolvimento histórico e socioeconômico
russo e húngaro. Ver, a esse respeito: LICHTHEIM, George. LUKÁCS. Tradução de Jacobo Muñoz.
Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1972, p. 74.
17

explicar a idiossincrasia de sua formação socioeconômica. 2 No contexto russo do


início do século XX, observa-se um amálgama desigual entre formas,
predominantemente, arcaicas, marcadas pela agricultura, e formas modernas, em
que já é possível observar a presença da indústria capitalista nos países mais
avançados, do ponto de vista econômico.
De igual forma, na Hungria, também se destacam tais elementos
contraditórios, em que se observa dois modos de produção distintos, mas
combinados. Por um lado, o desenvolvimento socioeconômico húngaro é,
essencialmente, agrário e semifeudal, ao passo que, por outro, o desenvolvimento
industrial moderno, com a presença do grande capital monopolista estrangeiro,
também compõe o quadro econômico da nação. Assim como na Rússia, o
desenvolvimento industrial, que rapidamente se articulou em ambas as nações, a
partir sobretudo de investimentos do capital estrangeiro, possibilitou o surgimento de
um proletariado moderno e fortemente concentrado, o qual, em seu fortalecimento,
pôs em risco o status quo aristocrático, em primeiro lugar, na Rússia 3 e,
posteriormente, na Hungria.4
A burguesia, por sua vez, em ambos os países, não acompanhou o
desenvolvimento proletário, ou seja, apresentou uma incapacidade de firmar uma
posição antiabsolutista: algo que na Hungria foi ainda mais evidente. Ao contrário,
diante da ameaça que o rápido crescimento do proletariado representou, para os
interesses econômicos da burguesia, esta última se viu impelida a firmar parceria
com a aristocracia rural húngara, tornando-se assim, como assinala Lowy, “um dos
pilares da conservação do regime semifeudal e monárquico” (LOWY, 1979, p. 67-

2 A comparação com o desenvolvimento socioeconômico da Rússia não é despropositada. Mais à


frente, será possível observar qual o impacto que as lutas revolucionárias, do proletariado russo,
exerceram sobre os húngaros, em especial, na sua camada sindical e intelectual, influenciando,
assim, os rumos da revolução proletária na Hungria. Cf. LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos
intelectuais revolucionários: A evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 153-154.
3 A esse respeito, Lukács esclarece o seguinte: “A insustentabilidade das condições russas já haviam
se mostrado muito tempo antes do verdadeiro desenvolvimento do capitalismo e da existência de
um proletariado industrial. Já desde muito cedo a dissolução do feudalismo agrário e a implantação
do absolutismo burocrático haviam se tornado não apenas fatos incontestáveis da realidade russa,
como também haviam produzido, na turbulência do campesinato e no revolucionamento da
chamada intelectualidade marginal, camadas socias que, embora de modo ainda um tanto confuso,
conturbado e elementar, levantavam-se de tempos em tempos contra o czarismo”. Não obstante
esses elementos, Lukács sustenta que a evolução do capitalismo russo foi um impulsionador para a
desintegração do czarismo russo. Cf. LUKÁCS, György. Lênin: Um estudo sobre a unidade de seu
pensamento. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 35.
4 Ao logo da exposição, discutir-se-á como o atraso do desenvolvimento do proletariado húngaro, em
comparação com o proletariado russo, será fundamental para o itinerário intelectual do jovem
Lukács, que observa, atento, a situação de seu país.
18

68). A burguesia não apenas deixa de manifestar qualquer oposição liberal e


democrática, mas também busca imitar a aristocracia húngara, ilustrando, desse
modo, a sua faceta reacionária.
Não obstante a incapacidade da burguesia húngara em assumir um
caráter antifeudal e democrata liberal consequente, bem como responder à certa
demanda popular e da intelligentsia húngara, o movimento operário, na Hungria,
antes de 1918, não podia ainda responder a tais anseios, nem desempenhar este
papel histórico revolucionário. Diferentemente da Rússia, na Hungria, o Partido
Social-Democrata húngaro, o qual concentrava em seu seio a camada proletária do
país, era profundamente reformista e legalista, não pautando a sua orientação
política e tática para fins revolucionários (LOWY, 1979, p. 70-71). Tal partido se
encontrava, pois, em conformidade com as tendências da época, as quais, segundo
Konder: “No plano internacional, a social-democracia se afastava cada vez mais
claramente da linha de ação revolucionária e deslizava para posições agudamente
reformistas: sua política assumia tons suave, respeitosos, resignados” (KONDER,
1980, p. 23).
Lukács vivencia, portanto, esse contexto de imobilismo húngaro, quanto
às possibilidades de transformação da situação histórico-prática da Hungria, para a
saída do atraso político e social de seu país. 5 Cria-se assim para Lukács, certa
dificuldade, em virtude de sua “rebeldia”, 6 presente já na sua juventude, a qual ele
comenta: “Tinha ambições de mudar as coisas, isto é, minhas ambições estavam
voltadas para a transformação do velho feudalismo húngaro. Naturalmente, porém,
não podiam tornar-se um objetivo político concreto, porque na Budapest, de então,

5 Ao longo do primeiro capítulo, deste trabalho, observar-se-á uma busca constante em situar o
itinerário intelectual de Lukács no momento histórico, vivenciado por ele, quer húngaro, quer
histórico-universal. Tal perspectiva se inscreve na orientação teórico-metodológica aqui assumida,
segundo a qual uma compreensão aprofundada dos momentos do pensamento de Lukács exige
uma articulação entre o horizonte histórico-universal, em que se desenvolveu o seu pensamento,
com a particularidade da sua intervenção teórica. Esse argumento será retomado no ponto 1.3
deste estudo, quando será problematizado a adequação da categoria conversão/ruptura para a
compreensão do pensamento lukácsiano. Ver, a esse respeito: NETTO, José Paulo. Apresentação.
In: MÉSZÁROS, István (Org.). O conceito de dialética em Lukács. Tradução de Rogério Bettoni.
São Paulo: Boitempo, 2013, p. 13. Sobre a dificuldade de separar os elementos filosóficos e
políticos, ou seja, os “compromissos teórico e práticos” na obra de Lukács, ver: LICHTHEIM,
George. LUKÁCS, p. 30.
6 “Rebeldia” é, de fato, o termo que Leandro Konder se vale para definir, não apenas a trajetória
intelectual do jovem Lukács, mas do seu pensamento como um todo. Não se deve enganar com o
aspecto juvenil que este termo parece revelar, pelo contrário, em Lukács, a sua “rebeldia”, possui,
desde a juventude, uma densidade teórica muito acentuada, bem como um forte reconhecimento
das limitações da sociedade húngara, na qual ele estava inserido. Cf. KONDER, Leandro. Lukács,
p. 32.
19

não existia um movimento deste tipo” (LUKÁCS, 1986, p. 23). Em consonância com
essa postura inconformista, Lukács, em sua juventude, também não postulava a
democracia liberal burguesa como solução para o atraso feudal húngaro (KONDER,
1980, p. 29-30). Nesse período, Lukács buscava outra solução, ainda não verificada
em seu país de origem.
Pode-se sustentar que Lukács tinha a pretensão de se aproximar das
correntes que, na Hungria, dialogavam, de certo modo, com as suas aspirações
subversivas juvenis. Foi nesse contexto que ele entrou em contato com a poesia de
Endre Ady (1877 – 1919), cuja poesia provocou, nele, um efeito “perturbador”, de
modo que ele pôde sentir-se em casa e reconhecer-se nos versos desse poeta. 7
Tamanha identificação se explica em razão do “tom” de inconformismo, presente nos
versos de Ady, pois marcados por traços, não somente antifeudais, mas também
anticapitalistas, como se observa com a defesa do poeta por uma “revolução
democrática”.8
A burguesia húngara apresentava certa incapacidade, já assinalada, de
contestar e se opor, de forma radical, à estrutura feudal do seu país. Ao contrário,
essa burguesia se aproximou da aristocracia húngara, visando assim garantir uma
posição social de destaque. Na medida em que essa burguesia não assumiu um
papel “democrático subversivo”, com relação ao feudalismo, Ady buscou tais
agentes subversivos no movimento operário. Ady postulou, assim, uma revolução
que combinasse o caráter democrático, a saber, como desmonte da estrutura feudal
húngara, com o caráter socialista, vislumbrado no movimento operário húngaro
(LOWY, 1979, p. 76). Todavia, como já argumentado, o movimento operário e
sindical húngaro ainda estava bastante influenciado pelas tendências reformistas do
período. Diante do imobilismo social húngaro, nada restava a Ady senão pensar a
revolução como mero “desejo, esperança e sonho”, ou seja, mero “dever ser”
(MÉSZÁROS, 2013, p. 37). Na prática, todavia, quer Ady, quer Lukács, assumiram
uma postura trágica diante da constatação do imobilismo social húngaro.

7 Esse primeiro contato de Lukács com as poesias de Ady é tão marcante para o seu
desenvolvimento intelectual posterior, que ele chegou a afirmar, em sua velhice: “Mas em todo
caso, mesmo independentemente do seu valor literário, o encontro com a poesia de Ady foi uma
das experiências mais decisivas da minha vida. Não foi uma descoberta ao acaso, como
frequentemente acontece com os jovens, ao contrário, […], permaneci fiel à obra de Ady por toda
minha vida”. Ver, a esse respeito: LUKÁCS, Georg. Diálogo sobre o “Pensamento vivido”. São
Paulo: Ensaio, 1986, p. 24-26.
8 Nesse sentido, ver: MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács. Tradução de Rogério
Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 36.
20

Ainda nesse universo húngaro, Lukács se aproxima do sindicalista Ervin


Szabó (1877 – 1918), o então “guia espiritual do socialismo espiritual na Hungria”, 9
cuja tendência anticapitalista e “ultraesquerdista” 10 é marcada por uma
contraposição à orientação marxista ortodoxa advinda da II Internacional Socialista. 11
O caráter “espiritual” desse socialismo de Szabó se explica, dentre outros motivos,
pela ausência de condições históricas e concretas para uma revolução de caráter
socialista, na Hungria, ao menos no início do século: algo que confere, igualmente, o
caráter trágico à obra de Ady. A intelligentsia húngara de então, da qual Lukács
rapidamente se associa, apresentava-se, portanto, isolada, angustiada e
prejudicada, quanto à sua formação e maturidade, em face de tamanho
enrijecimento social húngaro. Lukács não vê alternativa, senão a de se associar à
orientação dominante da filosofia alemã da época. 12
Em seguida, Lukács ingressa no círculo de Max Weber, de Heidelberg,
pois caracterizado por um anticapitalismo romântico, mas, na recepção lukácsiana,
assumiu um tom de crítica propriamente cultural do capitalismo. 13 Nesse contexto,
9 LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A evolução política de
Lukács (1909 – 1929), p. 80. Nesse sentido, ver ainda: LUKÁCS, Georg. Diálogo sobre o
“Pensamento vivido”. São Paulo: Ensaio, 1986, p. 27.
10 Tal postura “ultraesquerdista” de Szabó deve ser compreendida como uma postura de combate à

social-democracia, ao burocratismo e a tendência evolucionista no pensamento socialista. É com


respeito a tal postura, que se pode sustentar o interesse de aproximação de Lukács com relação
ao sindicalista. Cf. LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 69-70.
11 Somente no segundo capítulo, deste trabalho, será realizada uma abordagem mais aprofundada

da leitura que a II Internacional realizou, acerca das obras de Marx e Engels, contra a qual Lukács
irá se opor extensamente em História e Consciência de classe.
12 MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács, p. 35. Ainda nesse sentido, Andrew

Arato e Paul Breines assinalam: “[…] la vida de Lukács sería particularmente inestable y se
caracterizaría por una serie de asimilaciones, nunca bien consumadas, en diversas culturas [a vida
de Lukács seria particularmente instável e se caracterizaria por uma série de assimilações, nunca
bem consumadas, em diversas culturas]”. Entretanto, mais à frente na exposição, os dois autores
sustentam a inadequação hermenêutica que é pensar o itinerário intelectual de Lukács unicamente
remetendo aos autores da tradição filosófica ou sociológica, dos quais o Lukács poderia ter
extraído certas ideias. Para Arato e Breines, tal concepção mecânica das “influências intelectuais”
pode conduzir o leitor da obra lukacsiana a perder de vista seus momentos particulares e
essenciais, bem como a originalidade de sua obra. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven
Lukács y los orígenes del marxismo occidental. Tradução de Jorge Aguilar Mora. México:
Fondo de Cultura Económica, 1986, p. 18; p. 24.
13 Deve-se, sobretudo, esclarecer o sentido de “romântico”, na postura anticapitalista de Lukács, pois

tal étimo pode gerar confusão. Para tanto, vale-se aqui da indicação de Mauro Iasi, segundo a
qual: “Aqui o termo ‘romântico’ pode servir a interpretações equivocadas, uma vez que em Lukács
sempre houve uma crítica ao romantismo. Assim, o anticapitalismo dito romântico deve ser
compreendido como aproximação ético-moral de posições idealistas e não no sentido que é dado
ao termo na crítica literária”. A transição da postura crítica e romântica contra o capitalismo,
presente no círculo de Weber, para uma crítica de teor, eminentemente, cultural, em Lukács, deve-
se, em parte, às circunstâncias socioeconômicas e histórica da Hungria de então. Como o primeiro
momento desta exposição enfatizou, a Hungria ainda era profundamente marcada pelo modo de
produção agrário e semifeudal. O “retorno” a um passado “natural”, em que os sintomas deletérios
capitalistas ainda não estão presentes, só faz sentido em uma nação, como a Alemanha, que
deixou para trás o seu passado feudal. O caso da Hungria era diverso, e Lukács bem o sabia.
21

ainda, o jovem filósofo húngaro pôde entrar em contato com outros pensadores
relevantes, tais como Max Weber (1864 – 1920), Ernst Bloch (1885 – 1977), Georg
Simmel (1858 – 1918).14 Desde cedo, Lukács entrou em contato com interpretações
da filosofia de Kant, em uma perspectiva irracionalista.15 A síntese que se verificou
desse encontro, em um primeiro momento, pode ser observada com a sua primeira
obra, a saber, A história da evolução do drama moderno (1909), em que as suas
preocupações anticapitalistas e culturais encontraram expressão.
Para a elaboração dessa obra, Lukács também viu a necessidade de

Todavia, ainda que ele dirigisse a sua crítica para a produção cultural, a postura romântica e
anticapitalista ainda persistia, mas com algumas modificações em relação aos intelectuais
alemães. Por outra parte, a transição de Lukács para uma postura de crítica cultural, deve ser
compreendida como uma oposição à natureza mesma do “anticapitalismo romântico” apresentado
por Weber, o qual ainda apresentava traços de um “evolucionismo trágico”. De acordo com o
modelo trágico e evolucionista, apresentado por Weber, a “barbárie” se manifestava, nas
sociedades da época, em razão da renúncia ao “homem da racionalidade dos fins”. O
anticapitalismo romântico de Lukács é, portanto, o contraposto do evolucionismo trágico de Weber.
Somente em História e Consciência de Classe, Lukács poderá articular concretamente tais
posturas críticas, formulando, para isso, conceitos como “reificação” e “consciência de classe
proletária”, bem como contrapor-se-á, de forma mais evidente, a noção de “evolucionismo” na
história. Ver, ainda: LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A
evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 85-86; FEHÉR, Ferenc. Al bivio dell'anticapitalismo
romantico: Tipologia e contributo alla storia dell'ideologia tedesca a proposito del carteggio tra Paul
Ernst e György Lukács. In: FEHÉR, Ferenc; HELLER, Ágnes; MÁRKUS, György; RADNÓTI,
Alexander. La Scuola di Budapest: sul giovane Lukács. Tradução de Elena Franchetti. Firenze: La
Nuova Italia, 1978, p. 170-172.
14 A relação de Lukács com Simmel é bastante fecunda, como pôde ser observado na primeira obra
de Lukács acerca do drama, bem como é possível constatar certos reflexos do pensamento
simmeliano até mesmo em História e Consciência de Classe. Nesse sentido, ver aqui: SIMONE,
Antonio. Lukács e Simmel: il disincanto della modernita e le antinomie della ragione dialletica.
Leece: Edizioni Milella, 1985.
15 Para compreender esta afirmação, deve-se situar o universo cultural filosófico no qual se
encontrava a Alemanha no período em questão. Segundo Lichtheim, em 1870 se verificou um
renascimento da filosofia neokantiana, conferindo nova “vida” à filosofia, ainda que isso implicasse
em reduzir a filosofia à “lógica da ciência”, a saber, a uma investigação dos “fenômenos” passíveis
de serem conhecidos cientificamente, de modo que tudo o que ultrapassasse o âmbito fenomênico,
como “coisa em si” inacessível à investigação, restaria descartado da filosofia neokantiana. Esta
interpretação da filosofia foi difundida, sobretudo, pela Escola de Maburgo. No polo oposto, mas
ainda como interpretação neokantiana, a Escola de Heidelberg buscou ultrapassar esse limite à
investigação puramente científica, configurado na “coisa em si”. Para tanto, autores como Dilthey e
Simmel, influênciados por Heinrich Rickert, Wilhelm Windelband e Henri Bergson, intencionavam
pensar a filosofia de Kant em um outro sentido. Desse modo, já no início do século XX, verifica-se,
de acordo com Lichtheim, o predomínio, mediante a Escola de Heidelberg, da Lebensphilosophie,
“uma forma de vitalismo ou intuicionismo que militava no polo oposto do racionalismo científico”.
Mediante tal interpretação, a “coisa em si” já não é mais a barreira intransponível do pensamento,
que deveria portanto restar excluída das ciências, mas, ao contrário, pode ser compreendida por
meio de um “ato de intuição intelectual”. Neste mesmo sentido, Guiseppe Bedeschi avalia o clima
cultural alemão do período: “[…] il clima culturale tedesco del principio del secolo: quella 'spinta
antiintellettualistica e irrazionalistica', quella svolta della teoria dei valori verso l'elaborazione di una
metafisica della vita, che ha in Windelband uno dei suoi esponenti più significativi [o clima cultura
alemão do princípio do século: aquele ‘impulso antiintelectual e irracionalista’, aquele giro da teoria
dos valores em direção a elaboração de uma metafísica da vida, que se verifica em Windelband
como um dos seus mais significativos expoentes]”. Cf. LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 33-34;
BEDESCHI, Guiseppe. Introduzione a Lukács. 3. ed. Roma: Editori Laterza, 1982, p. 12.
22

certos fundamentos “sociológicos” a fim de responder à problemática presente em


tal escrito. Daí ele se reportar às obras de Marx e Engels, caracterizando, assim, o
seu primeiro encontro com Marx, tendo lido obras como o Manifesto Comunista; O
18 Brumário; O Capital – somente o primeiro volume – e A Origem da Família, de
Engels. Nesse estudo, Lukács se convenceu, de forma rápida, de alguns elementos
do marxismo, tais como a teoria da mais-valia e a concepção da história como luta
de classes. Essa influência se limitou, porém, à economia e à “sociologia”. Nesse
sentido, Lukács comenta:

Naquele momento, essa influência se limitou à economia e à “sociologia”.


Considerava a filosofia materialista – não distinguia o materialismo dialético
do não dialético – completamente superada, enquanto teoria do
conhecimento. A tese neokantiana da “imanência da consciência” ajustava-
se perfeitamente à minha posição de classe na época; não a submetia a
qualquer exame crítico, mas aceitava-a passivamente como ponto de
partida de toda e qualquer colocação do problema gnosiológico (LUKÁCS,
1987, p. 92).

Já nesse período, Lukács suspeitou do extremado idealismo subjetivo,


dessa orientação filosófica neokantiana da Escola de Marburgo e da teoria de Mach,
mas que não o conduziu ao materialismo propriamente dito. Lukács destaca que tal
suspeita o conduziu, ao contrário, para formas filosóficas irracionalista e relativistas,
a saber, de Simmel e Dilthey, de modo que o seu primeiro contato, com a obra
marxiana, esteve profundamente marcado por tal corrente irracionalista. 16 Segundo
escreve Lukács: “A filosofia do Dinheiro de Simmel e os escritos sobre o
protestantismo de Weber foram os meus modelos para uma ‘sociologia da literatura’,
na qual os elementos derivados de Marx estavam mais uma vez presentes, mas tão
diluídos e empalidecidos que eram quase irreconhecíveis”. 17
É fundamental destacar que, nesse período, a cultura marxista era
16 Sobre a utilização do termo “irracionalismo”: Ver nota 15.
17 LUKÁCS, Georg. Meu caminho para Marx [1933], p. 92. Nesse tocante, é, ainda, interessante
destacar a interpretação de Arato e Breines, segunda a qual, na obra de Lukács, A história da
evolução do drama moderno (1909), a influência de Marx é mais acentuada do que parece. Para
Arato e Breines, nessa obra de 1909, Lukács operou uma modificação e correção das sociologias
de Weber e Simmel, mediante a teoria de Marx. O que não significa que, já nesse período, Lukács
apresentava uma interpretação correta da obra marxiana, mas assina a paulatina assimilação que
Lukács realizou dos escritos de Marx. Ademais, a interpretação de Arato e Breines revela um
importante elemento teórico-metodológico, no sentido de se evitar “determinismos” mecanicistas,
com respeito à tradição intelectual da qual Lukács pertencia. Ou seja, o fato de Lukács se
aproximar das interpretações weberianas e simmelianas, não implica que o filósofo húngaro se
limite a tal tradição alemã, nem mesmo implica que a obra de Lukács falte originalidade. Ao longo
da exposição, quando destacarmos as críticas que História e Consciência de Classe recebeu, por
certa tradição marxista, essa indicação teórico-metodológica será fundamental. Cf. ARATO,
Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 37.
23

escassa, de modo que Marx não assumia esse papel de destaque na história
intelectual.18 Isso explica a razão de o primeiro contato de Lukács com Marx ter sido
tão sutil, além de uma recepção parcial da obra marxiana, já bastante depurada por
outros autores, quer por leituras irracionalistas, como visto, quer por leituras
revisionistas.19 A ausência de condições históricas e concretas, na Hungria, como a
ausência de um proletariado organizado e revolucionário, contribuiu para que Lukács
não reconhecesse a devida importância de Marx.
Face ao imobilismo húngaro, Lukács compreendeu então que o caminho,
para a subversão estaria na crítica cultural. Lukács dá continuidade a essas
investigações, de modo que ele escreve A alma e as formas (1910), ainda na esteira
das influências neokantianas e irracionalistas. 20 É preciso também destacar que A
alma e as formas é expressão de um período no qual Lukács se sente cada vez
mais desesperado com respeito às possibilidades de solução para os seus dilemas
juvenis.
Ademais, nada indicava que, em breve tempo, a Hungria superasse o
imobilismo no qual se encontrava inserida, nem que, em um contexto histórico-
mundial, as formas democrático-liberais seriam suplantadas. Isso explica o tom
dessa obra, de 1910, marcado pela visão trágica de seu autor. 21 Até mesmo a falta
18 Um dos autores de destaque que compunha o círculo de Weber, e que rapidamente se aproximara
de Lukács, foi Ernst Bloch. Em entrevista, comentando sobre o ingresso de Lukács no círculo e as
tendências intelectuais do período, Bloch aduz: “Por esta época, o marxismo não tinha o papel que
tem hoje; era considerado como um modelo entre outros, uma realidade literária entre outras, e,
portanto, não era objeto de polêmica”. Cf. BLOCH, Ernst. Entrevista com Ernst Bloch. In: LÖWY,
Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A evolução política de Lukács
(1909 – 1929), p. 282; Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. Diálogo sobre o “Pensamento vivido”, p. 32.
19 Somente no próximo capítulo, desta monografia, abordar-se-á o sentido de “revisionismo” da teoria
marxiana. No momento, basta indicar que a recepção, da parte de Lukács, dessa teoria, está de
acordo com o seu momento teórico, a saber, com seu anticapitalismo romântico. Ver, a esse
respeito: OLDRINI, Guido. György Lukács e os Problemas do Marxismo do Século 20. Maceió:
Coletivo Veredas, 2017, p. 97.
20 Ainda que, em virtude do escopo deste trabalho monográfico, não seja possível uma análise
exegética do conjunto da obra lukacsiana, deve-se destacar quais elementos presentes em A alma
e as formas (1910) se relacionam com o universo cultural alemão, no qual Lukács estava inserido.
Tais elementos se apresentam, sobretudo, com a distinção, operada por Lukács, entre arte e
ciência, entre “mundo da natureza” e “mundo do espírito”. Como já assinalado, na Nota 22, certa
tradição neokantiana, a saber, aquela da Escola de Heidelberg, operava, também com a distinção
entre “ciências da natureza” e “ciências do espírito”. De acordo com essa releitura da obra
kantiana, pensar as “ciências do espírito”, em conexão com a “filosofia da vida”, significava a busca
por uma “visão supra-empírica da totalidade vivente e um movimento da história mundo”. Dessa
forma, buscava-se superar às limitações de restringir a filosofia ao mundo “fenomênico”, ignorando,
de um ponto de vista científico, a realidade da “coisa em si”. Cf. BEDESCHI, Guiseppe.
Introduzione a Lukács, p. 9; LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 52-53
21 Na obra, o caráter trágico aparece, dentre outros momentos, na oposição entre valores autênticos
e absolutos e valores inautênticos, próprios do cotidiano capitalista. Tal conflito assume um caráter
eterno e imutável, a saber, metafísico. Nesse sentido, ver: LÖWY, Michael. Para uma sociologia
dos intelectuais revolucionários: A evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 115.
24

de conclusão dos ensaios, presentes na obra, é indicativo do desespero de


Lukács.22
Deste breve excurso no itinerário intelectual do jovem Lukács, pode-se
destacar o momento histórico húngaro, vivenciado por Lukács, na juventude. De um
lado, a realidade atrasada, da Hungria, a qual apresentou limites objetivos para o
desenvolvimento intelectual lukásciano, de outro, a possibilidade de contato com
diferentes orientações filosóficas, observáveis, em especial, na Alemanha. Daí se
compreender, com base nesse entrelaçamento, o caráter da “recepção” 23 dessas
diversas doutrinas e da síntese original realizada, por Lukács, ainda nesse período.
A atenção com a totalidade histórica e social, articulada com a sua intervenção
teórica, será fundamental ao se abordar, mais adiante, a noção problemática de
“conversão”, no itinerário intelectual de Lukács, assim como possibilitará pensar o
“amálgama de teorias internamente contraditório”, 24 ao qual o Lukács, da
maturidade, reputou em suas obras de juventude.

2.2 OS DOIS GRANDES ACONTECIMENTOS DO INÍCIO DO SÉCULO XX:


PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA

Ainda com relação ao “círculo de Weber”, do qual Lukács fazia parte, é


importante enfatizar que este último sempre se encontrou marginalizado no grupo.
Isto se deu, em parte, por causa da sua recusa ao capitalismo ser mais acentuada

22 Para Vaisman, é problemático atribuir, simplesmente, um caráter de mero pathos trágico para essa
obra lukácsiana. Todavia, a estudiosa está de acordo com o desespero vivenciado, por Lukács, na
época. Vaisman argumenta: “Para ele, já naquele momento, a incapacidade de concluir é uma
debilidade muito grande e muito desconfortável, que confessa, ao mesmo tempo que anseia por
ultrapassar”. Cf. VAISMAN, Ester. O “jovem” Lukács: trágico, utópico e romântico? Kriterion. Belo
Horizonte, v. 46, n. 112, p. 299, dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_abstract&pid=S0100-512X2005000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 28 ago.
2019.
23 Sobre o caráter da “recepção” de uma doutrina, Löwy comenta o seguinte: “a ‘recepção’ de uma
doutrina é, ela mesma, um fato social que deve ser compreendido em sua relação com a realidade
histórica concreta”. Cf. LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A
evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. XIV. Todavia, deve-se assinalar que este caráter de
“recepção social” não deve ser compreendido mecanicamente. Como visto, o contato de Lukács
com outra realidade cultural e filosófica não representou uma “assimilação” completa e acrítica
dessas teorias húngaras e alemãs, mas possibilitou a Lukács operar uma “síntese” original de tais
teorias, buscando, cada vez mais, compreender o universo cultural e histórico no qual ele estava
inserido. Para tanto, a compreensão da obra marxiana, aos poucos, torna-se uma tarefa
indispensável para Lukács.
24 Cf. LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: LUKÁCS, Georg (Org.) História e Consciência de
Classe: Estudos sobre a dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 4.
25

do que nos demais membros do grupo. Ademais, Lukács se sentia retraído ante os
elementos positivistas e antidialéticos do pensamento de Weber. 25 Em decorrência
da deflagração, da Primeira Guerra Mundial, o distanciamento de Lukács aumentou,
uma vez que a sua postura firme contra a guerra e o imperialismo divergia das
opiniões, por exemplo, de Weber, um “militarista entusiasta”.26
Nesse universo cultural, Lukács se aproxima cada vez mais de Bloch, de
modo que o contato entre ambos os pensadores se torna fundamental para o
desenvolvimento intelectual um do outro. 27 Por meio de Bloch, Lukács pôde, então,
se afastar de certo positivismo do “círculo de Weber”, aproximando-se do
pensamento de Hegel e desenvolvendo tendências filosófico-messiânicas, já
presentes no seu pensamento.28 Tal aproximação foi decisiva, para Lukács, tendo
em vista que, com o desenrolar da Guerra, o desespero relativo ao presente foi se
tornando cada vez mais sufocantes, bem como Lukács se viu impelido a realizar
uma “abertura” em seu pensamento para a história.
Com base em tal abertura, foi-lhe possível pensar os aspectos
imperialistas da Guerra, assim como as perspectivas de resolução. Daí, então, o
papel fundamental da aproximação com o pensamento hegeliano,
concomitantemente ao seu afastamento das perspectivas neokantianas e formais,
vislumbradas em A alma e as formas. Não se pode esquecer que, em 1933, Lukács
esclarece a “crise filosófica” vivenciada na sua juventude. Ele comenta:

25 Cf. KONDER, Leandro. Lukács, p. 25. Em igual medida, Lukács recusava, como visto, a natureza
mesma do “anticapilismo romântico” e evolucionista de Weber. A esse respeito: Ver nota 13.
26 BLOCH, Ernst. Entrevista com Ernst Bloch. In: LÖWY, Michael (Org.). Para uma sociologia dos
intelectuais revolucionários: A evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 282. Arato e Breines
destacam, nesse tocante, que na correspondência entre Lukács e Paul Ernst, a recusa do filósofo
hungáro à Guerra também é motivada por sua compreensão de que a guerra é a “alienação
capitalista levada ao nível do seu próprio conceito”. O que indica, novamente, a assimilação de
certos elementos da doutrina marxiana, ainda que por mediação de Simmel. Cf. ARATO, Andrew;
BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 105.
27 Ao ser perguntado se era, na verdade, Lukács que foi o discípulo de Bloch, como alguns
comentavam na época, Bloch responde: “[…] quando nos separávamos por alguns meses, e nos
encontrávamos depois, descobríamos que ambos havíamos trabalhado exatamente no mesmo
sentido; éramos como vasos comunicantes; a água estava sempre na mesma altura de ambos os
lados”. Bloch indica, assim, que a influência era recíproca e durou por algum período. Cf. BLOCH,
Ernst. Entrevista com Ernst Bloch. In: LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais
revolucionários: A evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 284.
28 De acordo com Bloch: “Nossa relação sempre foi de aprendizagem recíproca. Desta forma, com
Lukács, conheci Kierkegaard e o místico alemão Mestre Eckart; por outro lado, eu lhe ensinei, por
assim dizer, a conhecer mais profundamente Hegel”. Cf. BLOCH, Ernst. Entrevista com Ernst
Bloch. In: LÖWY, Michael (Org.). Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A
evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 285.
26

Ao leitor não interessam as singularidades e as diferentes fases deste


desenvolvimento, através do qual este idealismo subjetivo me conduziu a
uma crise filosófica. Mas esta crise – sem que de imediato eu o soubesse –
foi determinada objetivamente pela manifestação mais intensa das
contradições imperialistas e foi precipitada com a eclosão da Guerra
Mundial. Decerto, esta crise se manifestou, de início, apenas na minha
passagem do idealismo subjetivo ao idealismo objetivo (Teoria do Romance,
escrita entre 1914 – 15), e, naturalmente, Hegel adquiriu para mim uma
importância cada vez maior, em particular, a Fenomenologia do Espírito
(LUKÁCS, 1987, p. 93).

Dessa crise filosófica decorre, como citado, a obra lukacsiana intitulada A


teoria do Romance (1916), a qual marca a passagem, de Lukács, de uma visão
trágica de mundo para uma perspectiva messiânica. Trata-se de uma obra que
nasce do desespero com relação ao presente, a saber, com a Guerra e os seus
desdobramentos.29 Para enfrentar as contradições da época, Lukács se vale não
somente do pensamento de Hegel, mas também do pensamento de Soren
Kierkegaard (1813 – 1855), assim como recebe influências de Fiódor Dostoiévski
(1821 – 1881) e de Liev Tolstói (1828 – 1910): ambos pertencentes à literatura russa.
Nesse cenário, mediante a abertura para uma perspectiva histórica, bem como pelo
messianismo de Dostoiévski, surge, para Lukács, uma alternativa de esperança,
ainda que distante.30
A despeito da mudança de perspectiva, no que concerne à sua obra
anterior, marcada pelo neokantismo, Lukács mantém a postura “rebelde” 31 e
anticapitalista. A aproximação com as obras de Dostoiévski e Tolstói ocorre na
medida em que Lukács percebe que, por meio da obra de tais autores russos, nega-
se, em bloco, todo um sistema, qual seja, o capitalista. Nesse sentido, A teoria do
romance apresenta uma orientação subversiva e revolucionária, ainda que não no
sentido da revolução bolchevique.32
29 No posfácio à obra, A teoria do romance, escrito décadas após a publicação desse livro, Lukács
comenta: “Nessa época, ao tentar alçar à consciência minha atitude emocional, cheguei
aproximadamente ao seguinte resultado: as Potências Centrais provavelmente baterão a Rússia;
isso pode levar à queda do czarismo: de acordo. Há também certa probabilidade de que o
Ocidente triunfe sobre a Alemanha; se isso tiver como conseqüência a derrocada dos Hohenzollern
e dos Habsburgos, estou igualmente de acordo. Mas então surge a pergunta: quem nos salva da
civilização ocidental?”. Cf. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico
sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Ed.
34, 2000, p. 7-8. Ainda, nesse sentido, Lichtheim comenta: “Acaso fuera más justo decir que su
angustia espiritual era el espejo de una civilización que sufría su primera gran crisis [Talvez fosse
mais justo dizer que sua angústia espiritural era o espelho de uma civilização que sofria sua
primeira grande crise]”. Cf. LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 67.
30 Ver, nesse sentido: NETTO, José Paulo. Lukács: um guerreiro sem repouso. São Paulo: Ed.
Brasiliense S.A., 1983, p. 23-24.
31 Ver nota 6.
32 LUKÁCS, Georg. Diálogo sobre o “Pensamento vivido”. São Paulo: Ensaio, 1986, p. 30. Ver,
27

Com a proximidade do fim da guerra, e com o estado de fragmentação e


subsequente necessidade de reconstrução dos países destruídos, Lukács passa a
se interessar, cada vez mais, por questões políticas. Se, antes, o grupo de
intelectuais que se reunia na sua casa podia denominar-se como “apolítico”, 33 mais
tarde, em virtude de exigências histórico-práticas, Lukács percebe não ser mais
possível. Não obstante a frágil esperança que ele concebe, em A teoria do romance,
dado que o estado de espírito da obra é ainda o “desespero”, com a situação da
guerra, um acontecimento na Rússia marcará de vez a concretização dessas
esperanças, bem como a inserção de Lukács nas questões propriamente políticas.
Em outubro, de 1917, o proletariado russo toma o poder e dá início à Revolução.
Não obstante, em sua obra anterior, de 1916, Lukács tenha postulado
uma esperança messiânica, relativa ao futuro, nada indicava que, naquela obra,
fosse previsto uma revolução proletária, cujo impacto não estava restrito apenas à
Rússia. Se, como já assinalado, o caráter subversivo daquela obra não se
reportasse, propriamente, ao proletariado, em 1933, Lukács esclarece a surpresa e
o impacto que lhe proporcionou a descoberta da Revolução Russa (LUKÁCS, 1987,
p. 94), o que indica, uma vez mais, que ele, a despeito de sua genialidade, não
antecipou esse resultado.
Deve-se destacar que Lukács se informou sobre os acontecimentos
revolucionários russo a partir dos húngaros, sobretudo Béla Kun, que retornavam da
Rússia, agora adeptos do comunismo. Portanto, o primeiro contato lukácsiano, com
os acontecimentos, de Outubro, de 1917, foram mediados por terceiros. Ademais, é
significativo ainda assinalar que Lukács interpretou, em um primeiro momento, a
tomada do poder pelo proletariado russo à luz de suas perspectivas teóricas
anteriores, a saber, messiânicas. Disso decorre que ele atribuiu, de forma
acentuada, um caráter teológico à Revolução Russa (KONDER, 1980, p. 30).
Se sob o impacto da Primeira Guerra Mundial, Lukács já operou uma
mudança de perspectiva teórica, abrindo o seu horizonte de reflexão a questões
históricas e travando contato com a filosofia de Hegel, mas tamanha mudança não
foi capaz de torná-lo socialista. Foi preciso o forte impacto causado pela Revolução
ainda: LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da
grande épica, p. 16-17.
33 O grupo, ao qual se faz aqui alusão, denomina-se “círculo de domingo”, pois este era o dia no qual
um conjunto de intelectuais se reunia, na casa de Lukács, para discutir os mais variados temas. As
questões relativas à “política” estavam fora do interesse dos membros desse grupo. A esse
respeito, ver: LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A evolução
política de Lukács (1909 – 1929), p. 89-90.
28

Russa para que Lukács realizasse, uma vez mais, uma mudança de orientação
teórica, ainda que gradual. 34 Tal mudança esteve condicionada à compreensão de
que a realidade poderia ser diversa: algo que implica uma diferença efetiva ante o
imobilismo social anterior e o desespero que essa constatação proporcionava. 35
Embora uma abordagem acerca da noção de “conversão” só será
possível mais à frente, ao se expor o itinerário intelectual de Lukács, no entanto, já é
possível adiantar, neste momento, que, após o impacto proporcionado pela
Revolução de Outubro, Lukács muda gradativamente de orientação teórica, sem,
contudo, romper de vez com os seus trabalhos anteriores. Nesse processo de
mudança, para assumir perspectivas cada vez mais socialistas, pode-se destacar
que, já na sua obra A teoria do romance, o interesse por questões éticas não está
desassociado, por completo, de certo interesse político (LUKÁCS, 1986, p. 31). É
possível sustentar que, com o desenrolar da Revolução de Outubro e os
desdobramentos dos acontecimentos históricos húngaros, o interesse de Lukács por
questões de matriz política ganharam cada vez mais espaço, até tornar-se
predominante.
Como início dessa transição intelectual de Lukács, qual seja, de sua
mudança de perspectiva em direção a temas políticos, bem como o aumento
exponencial de seu interesse pelo socialismo, é indicativo o seu artigo, escrito no
início de 1918, de título Idealismo conservador e idealismo progressista. Tal artigo
permite repensar não somente a reorientação intelectual de Lukács, já anteriormente
mencionada, mas, também, certos temas e autores do seu passado, que ainda
persistem na sua reflexão, indicando que não foram de todo superados. Tal aspecto
é observável na expressão significativa que Kant e Fichte ainda possuem, para
Lukács, embora sob uma nova matriz interpretativa. 36
34 Em uma entrevista, Lukács, já na sua maturidade, comenta sobre os dois impactos diferentes que
lhe proporcionaram a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro: “[…] oggi non saprei,
non potrei dire se sarebbe stata sufficiente la prima guerra mondiale, l'esperienza personale di
guerra totalmente negativa a fare di me un socialista. È noto che è stata la rivoluzione russa ed il
movimento rivoluzionario ungherese che ne è seguito a fare di me un socialista, e lo sono rimasto
nel corso di tutta la mia vita [hoje não saberia, não poderia dizer se teria sido suficiente a primeira
guerra mundial, a experiência pessoal da guerra totalmente negativa a fazer de mim um socialista.
Reconheço que foi a revolução russa e o movimento revolucionária húngaro que o seguiu a fazer
de mim um socialista, e o permaneci no curso de toda a minha vida]”. Cf. LUKÁCS, György.
Cultura e potere: a cura di Carlo Benedetti. Roma: Editori Riuniti, 1970, p. 133.
35 Comenta Lukács: “Naquele tempo, porém, não via nada que pudesse colocar no lugar daquilo que
existia. É desse ponto de vista que a revolução de 1917 me atingiu tão fortemente, porque de
repente aparecia no horizonte que as coisas podiam também ser diversas”. Cf. LUKÁCS, Georg.
Diálogo sobre o “Pensamento vivido”, p. 29.
36 Ver, a esse respeito: LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A
evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 138.
29

Nesse artigo, Lukács ainda na esteira das distinções unilaterais de sua


juventude, vale-se da disjunção entre “autêntico” e “metafísico”, a fim de contestar a
tese de que o idealismo filosófico seria necessariamente conservador. Nesse
sentido, Lukács sustenta: “[…] a atitude metafísica consiste sempre na pesquisa de
uma realidade mais real do que todas as realidades, enquanto a autenticidade se
caracteriza justamente pela independência total das formas de significação em
relação à toda existência, seja ela física, espiritual ou metafísica” (LUKÁCS, 1979, p.
296).
Em vista disso, Lukács argumenta que o problema, para a autenticidade,
está em saber quais ações são justas ou injustas, independentemente de suas
causas e consequências no mundo real. Essa independência com relação ao
existente implica que toda ação, no nível de sua “essência” (LUKÁCS, 1979, p. 297-
298), traz em si uma estrutura de “dever-ser” - Sollen. É mediante tal estrutura ética,
independente do existente, que se pode defender que não há contradição no fato de
diferentes visões de mundo, quer idealistas, quer positivistas, ligarem-se à mesma
norma de ação ética. Tais visões de mundo, se bem orientadas, ligam-se ao
“conteúdo” do Sollen, e este é transcendente em relação à facticidade.
Valendo-se dessas considerações iniciais, torna-se possível pensar a
noção de “instituição”, bem como a diferença entre ética e política, sem que tal
diferença inviabilize o diálogo recíproco. No entender de Lukács, é por se sustentar
que ética e política são impermeáveis entre si, que certos teóricos postulam ser, o
idealismo, com o seu objetivo ético, por demais abstrato e a priori: algo que
inviabilizaria pensar a noção de progresso. Porém, Lukács defende, nesse momento
de seu desenvolvimento intelectual, o contrário, ou seja:

O idealismo ético, à medida que se orienta para a política, não quer senão
criar instituições que correspondam o melhor possível aos ideais éticos, e
fazer desaparecer outras que constituem obstáculo à realização desses
ideais. E toda política que se baseia no idealismo ético é, a todo momento,
consciente de que o que pode realizar é somente política, isto é, a criação
de instituições destinadas a favorecer, positiva ou negativamente, esse
progresso; nenhuma política pode produzir aquilo que na ética é
verdadeiramente essencial: o aperfeiçoamento interior do homem, o homem
ético; pode apenas afastar os obstáculos do caminho do progresso. A ação
ética, ao contrário, desprezando o desvio da política e das instituições, está
voltada para a transformação da alma dos homens (LUKÁCS, 1979, p. 299-
300).
30

Com base em tal argumento, neste breve excurso no pensamento do


jovem Lukács, antes de sua adesão ao comunismo, constata-se que há certa
continuidade de temas e questões que lhe preocupam. Se, como assinalado
anteriormente, em A teoria do romance, certas questões ética já levam consigo
problemas políticos – basta pensar que Lukács, naquele momento, inclinava-se para
autores da literatura russa, os quais contestavam a totalidade do mundo existente –
após a Revolução Russa, as questões políticas inquietam ainda mais Lukács, ainda
que subordinadas a temas éticos. O desprezo da Realpolitik, em virtude de
preocupações idealistas, marcará um período significativo da obra lukácsiana, da
mesma forma que os autores acima destacados, a saber, Kant e Fichte. A
recuperação de tais elementos, do itinerário intelectual de Lukács, permite avaliar,
com maior precisão, a “unidade” de seu pensamento, algo que será relevante,
quando for abordado, mais adiante, dialética e práxis, como estão articuladas em
História e Consciência de Classe,37 bem como as eventuais limitações dessa
articulação.

2.3 A “CONVERSÃO” E “RUPTURA” DE LUKÁCS PARA O COMUNISMO COMO


QUESTÃO

Como já abordado, a Primeira Guerra Mundial, por si só, não foi


responsável pela inclinação de Lukács para o socialismo, mas contribuíram,
igualmente, a eclosão da Revolução Russa, assim como situação histórico-prática
da Hungria, que enfrentava uma crise profunda. 38 Atrelado a isso, Béla Kun e outros
húngaros retornavam da Rússia profundamente impactos pelos acontecimentos
revolucionários lá verificados, decidindo, então, fundar o Partido Comunista húngaro,
no dia 24 de novembro de 1918.
37 Vale destacar que História e Consciência de Classe é uma obra de Lukács, composta de 8 ensaios,
escritos entre os anos de 1919 e 1923. Muito embora três, dos oito ensaios tenham sido escritos
para a revista Kommunismus, Lukács os reescreveu, sem que, com isso, tais ensaios perdessem
seu núcleo essencial. Na realidade, somente os ensaios “A reificação e a consciência do
proletariado” e “Observações metodológicas sobre a questão da organização” foram escritos
exclusivamente para o volume intitulado História e Consciência de Classe. A despeito da variedade
de ensaios e temáticas trabalhas, todos possuem um núcleo comum, qual seja, pensar a “dialética
marxista”, conferindo a ela atualidade teórico-prática para solução dos mais variados problemas.
Ao longo desta exposição, serão desenvolvidos argumentos que sustentem essa intenção de
Lukács.
38 A título de ilustração dessa crise, Konder assinala: “[…] em dezembro de 1918, havia mais de um
milhão de desempregados numa área cuja população talvez não ultrapassasse dez milhões de
habitantes”. Cf. KONDER, Leandro. Lukács, p. 30-31.
31

A criação do Partido Comunista não foi suficiente para demarcar a


transição definitiva, de Lukács, ao socialismo. Antes disso, ele experimentou certa
“hesitação”, atrelada a preocupações prévias, relativas a questões de cunho ético,
em especial, com respeito ao papel da violência, na história, e quanto a justeza dos
meios em relação aos fins.39 Dessa “hesitação” e conflito moral interno, nasce o
artigo, cujo título é O bolchevismo como problema moral, escrito em dezembro de
1918 (LUKÁCS, 1979, p. 304-310). Nesse artigo, Lukács se confronta com os
argumentos, os quais sugerem que a tomada de poder dos bolcheviques foi “cedo
demais” e que, por essa razão, dada à “imaturidade” das condições objetivas para a
revolução, ela falharia. Ademais, ele combate, igualmente, as teses que defendem
uma possível destruição dos valores culturais e “civilizados”, em virtude da vitória
bolchevique na Rússia.
Tais são os problemas que se apresentam, nesse seu escrito, como ponto
de partida para a reflexão do jovem Lukács, cuja reflexão tem como cerne o
problema da conciliação entre socialismo e compromissos. Disso resulta ser a
questão central, a dos meios pelos quais o proletariado deve levar adiante a
revolução proletária (LUKÁCS, 1979, p. 305). Decisivo, nessa problemática, é o
sentido que ele atribui à figura histórica do proletariado, bem como o “querer” dessa
classe. Segundo escreve Lukács:

Porque é esta vontade que faz do proletariado o portador da redenção


social da humanidade, a classe messias da história do mundo. E sem o
pathos desse messianismo, a marcha triunfal sem paralelo da social-
democracia teria sido inconcebível. E se Engels via no proletariado o
herdeiro da filosofia clássica alemã, o fez com razão, porque desse modo se
transformou finalmente em ação o idealismo ético de Kant e de Fichte, que
suprimia todo apego terrestre e que queria arrancar de seus eixos –
metafisicamente o velho mundo (LUKÁCS, 1979, p. 307).

Em consonância com a concepção do proletariado como classe


messiânica, Lukács defende uma separação entre realidade empírica e a vontade
ética, utópica e humana. Cabe ao proletariado o papel de redenção do mundo, por
meio do socialismo, na medida em que ele é o portador dessa vontade ética. É,
justamente, o papel da redenção do mundo que distingue os interesses do
proletariado, dos interesses das demais classes, por demais ideológicos.
Nesse momento de seu pensamento, o centro de preocupação, do jovem

39 Ver, a esse respeito: LUKÁCS, Georg. Diálogo sobre o “Pensamento vivido”, p. 31-32; Ver,
ainda: LUKÁCS, Georg. Meu caminho para Marx [1933], p. 94.
32

Lukács, se encontra no “dilema ético” que surge para a classe redentora da história.
Tal conflito é oriundo do fato de que “cada atitude contém em si mesma a
possibilidade de crimes monstruosos e de erros incomensuráveis, mas que deverão
ser assumidos com plena consciência e responsabilidade por aquele que se sinta
obrigado a escolher” (LUKÁCS, 1979, p. 308). Em outras palavras, pode a pureza
dos objetivos do proletariado, a quem Lukács reconhece como classe redentora,
justificar a escolha de maus procedimentos, meios arbitrários e compromissos com
as classes e camadas reacionárias da sociedade?
Para o Lukács de então tal escolha, da parte dos bolcheviques, é uma
questão de fé. Diante disso, ele aduz, em seguida, ser “incapaz de partilhar essa fé,
e isto porque vê um dilema moral insolúvel na raiz mesma da atitude bolchevique,
enquanto a democracia […] não exige daqueles que a querem realizar […] até o fim
senão uma renúncia sobre-humana e o sacrifício de si” (LUKÁCS, 1979, p. 310).
Com base em tais argumentos, é possível inferir que Lukács aproxima-se cada vez
mais de temas políticos e que compreende o bolchevismo como uma questão
fundamental de sua época. Na elaboração de sua linha de raciocínio, percebe-se,
todavia, um “amálgama” de conceitos e autores, com os quais Lukács trabalha,
assim como a continuidade de alguns temas passados, a saber: messianismo, ética,
dualismos neokantianos. Não obstante tal continuidade, pode-se observar que se
opera uma lenta mudança na sua orientação de pensamento.
A mudança, acima descrita, torna-se mais perceptível quando, uma
semana após a publicação do seu artigo sobre o bolchevismo, Lukács adere ao
Partido Comunista. Alguns tomaram tal adesão como abrupta, em razão, sobretudo,
da descrença que ele, na semana anterior, manifestou com respeito à “justeza” dos
meios empregados pelo proletariado revolucionário russo. Nesse sentido, é
ilustrativa a caracterização que alguns amigos próximos, a Lukács, descreveram a
sua “conversão”, a saber, como se de Saulo, transformara-se em Paulo, aludindo à
passagem bíblica.40

40 Ver, nesse sentido: KONDER, Leandro. Lukács, p. 31. Ademais, a adesão de Lukács ao Partido
Comunista não foi encarada apenas como algo surpreendente. Certos integrantes do Partido
manifestaram repúdio à adesão de Lukács, em virtude de suas orientações teóricas prévias.
Comentam, nesse sentido, Arato e Breines: “Uno de los principales funcionarios del partido, por
ejemplo, ha recordado la inquietud y el repudio suyos y de outros camaradas ante lo que
consideraban el marxismo opaco e irrelevantemente metafísica de Lukács, Révai y Fogarsi [Um
dos principais funcionários do partido, por exemplo, recordou a inquietude e o rupúdio seus e de
outros camaradas ante o que consideravam o marxismo opaco e irrelevantemente metafísico de
Lukács, Révai e Fogarsi]”. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes
del marxismo occidental, p. 132.
33

Para esta monografia, interessa sobretudo como certo grupo de


comentadores da fase juvenil, de Lukács, recebeu e interpretou o sentido dessa sua
pretensa “conversão” ao comunismo. Deve-se, em primeiro lugar, assinalar que a
noção de “conversão”, assim como a noção correlata de “ruptura”, não apresenta o
mesmo sentido para os comentadores que se abordou aqui. Quanto a essa noção,
há, portanto, certo embate em relação ao sentido correto. Ricardo Musse, por
exemplo, vale-se da noção de “ruptura” para contestar a pretensa continuidade entre
os textos pré-marxistas, de Lukács, e a sua obra de 1923, qual seja, História e
consciência de classe.41 Da mesma forma, Musse questiona aqueles que tentam
buscar as raízes do marxismo ocidental no Lukács da juventude, a saber, nas obras
anteriores a 1923. Para Musse, a noção de ruptura e descontinuidade formal e
metodológica é fundamental para que se possa compreender o itinerário intelectual
lukacsiano.42
Já em outros autores, a noção de “conversão” e “ruptura” são
reconhecidas, mas ponderadas e “dialetizadas”, na medida em que se admite certa
continuidade e condicionamentos que impossibilitaram uma ruptura completa. Um
exemplo disto é Leadro Konder, para quem Lukács, ao ingressar no Partido
Comunista, operou uma ruptura radical. No entanto, o reconhecimento de Konder
não secundariza traços de continuidade, no itinerário intelectual lukacsiano, quando
postula uma dialética entre continuidade e ruptura, como fio condutor para uma
exegese da obra completa de Lukács. Além disso, reconhece as condições
históricas externas a Lukács, as quais influenciaram a sua adesão ao Partido
Comunista húngaro, tais como a ascensão do movimento de massas, na Hungria,
bem como a falência das forças conservadoras e a incompetência dos moderados
de então (KONDER, 1980, p. 32).
Em um sentido semelhante, Löwy admite que a devida compreensão
desse período do pensamento de Lukács, a saber, período que tem início com a
adesão de Lukács ao Partido Comunista até 1921, 43 inscreve-se na categoria
41 Se há, de fato, uma ruptura ou uma continuidade entre os escritos juvenis de Lukács, a saber, os
escritos compreendidos como “pré-marxistas”, e História e Consciência de classe, é algo que só
poderá ser avaliado no último capítulo desta monografia. Todavia é fundamental compreender o
valor teórico-crítico das categorias de “conversão” e “ruptura” antes de avaliar o que em História e
consciência de classe pode ser fruto de influências intelectuais e histórico-práticas prévias.
42 Nesse sentido, ver: MUSSE, Ricardo. Antes de História e consciência de classe. Estudos
avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 291-300, 21 maio 2013.
43 É importante destacar esta periodização, na qual, segundo Löwy, o pensamento de Lukács se
configuraria como uma “superação conservante”. Entende-se, aqui, que para Löwy, esta categoria
dialética deixa de ser um fio condutor para uma suposta “unidade” do pensamento lukacsiano
34

dialética Aufhebung: “ao mesmo tempo, preservação, negação e superação” (LOWY,


1979, p. 156). Löwy insiste, portanto, que o “salto qualitativo” de Lukács, qual seja, o
da passagem de uma visão de mundo dostoievskyana para uma visão bolchevique,
foi preparada por um desenvolvimento anterior. Trata-se, nesse desenvolvimento
anterior, desde questões morais, isto é, o problema do jovem Lukács em relação ao
“terrorismo”, ou relativo à violência observável nos “meios” injustos, até o encontro
de Lukács com Béla Kun, cuja lógica “realista”, de um verdadeiro revolucionário,
pode ter contribuído para a decisão de Lukács (LOWY, 1979, p. 151-153). A despeito
do reconhecimento desses elementos, Löwy destaca: “Longe de ser o resultado de
uma análise ‘científica’, a passagem para o comunismo ressalta em Lukács um ato
de fé ético-político” (LOWY, 1979, p. 157). É possível sustentar que um “ato de fé” é
bastante próximo à noção de “conversão”: algo que termina pondo em suspeita os
elementos dialéticos e de processo que conduziram Lukács a aderir ao comunismo.
Não se pretende, aqui, estabelecer uma pretensa verdade objetiva, nos
moldes historiográficos,44 acerca de um momento relevante da vida de Lukács, mas,
na realidade, abordar o valor teórico da noção de “conversão” e “ruptura” para uma
compreensão mais aprofundada do itinerário intelectual lukacsiano. Se se prescindir,
dessa abordagem, tornar-se-á problemática um tratamento da especificidade da
obra, História e Consciência de classe, mas, igualmente, uma reflexão mais rigorosa
da relação entre dialética e práxis, nessa obra, uma vez que, para essa reflexão,
torna-se necessário certo conhecimento da relação de Lukács com o seu tempo
histórico, compreendido ao longo de certo período, o qual não se limita ao ano de
1923.
Ainda em relação ao étimo “conversão”, Oldrini recorda que se trata de
um termo capcioso, ambíguo e equívoco, na medida em que indica simples
imediatismo próprio daqueles que observam a situação de fora, à distância. No seu
entender, uma compreensão mais adequada de uma “conversão” seria, na verdade,
a de um “processo mediado” (OLDRINI, 2017, p. 94). Daí ele retomar, assim como
Konder o fez, as circunstâncias histórico-práticas nas quais Lukács se encontrou, na

quando aparece a obra História e Consciência de classe, bem como no período após 1929. Daí em
diante, Löwy volta a operar com a noção de “ruptura”. Muito embora a análise exegética do
pensamento de Lukács, depois da publicação de História e Consciência de classe, não seja
realizada, posto que ultrapassaria o escopo deste trabalho, no capítulo 4 teremos a oportunidade
de analisar o argumento de Löwy com respeito a pretensa ruptura operada por Lukács com sua
obra de 1923.
44 Sobre a relação entre verdade e historiografia, ver: HELLER, Agnes. Uma teoria da História.
Tradução de Dilson Bento de Faria Ferreira Lima. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1993.
35

época, destacando que a crise interior, na qual Lukács se encontrava, ocorria por ele
ser um “cidadão de uma nação sem independência, em seguida estilhaçada
completamente com a catástrofe da guerra” (OLDRINI, 2017, p. 94). Nesse sentido,
a adesão lukacsiana, ao Partido Comunista húngaro, seria, em realidade, fruto de
uma aceleração dos tempos, e não uma decisão “repentina” e resultante da fé dele.
Mediante a problematização da noção de “conversão”, Oldrini pôde
sustentar que esse período, do pensamento lukacsiano, vem identificado como
“protomarxismo”, posto que representaria, não um giro em relação às suas obras
anteriores, mas como uma “etapa derivada logicamente das premissas dos seus
ensaios juvenis”.45 Desse modo, ao articular pensador e a sua situação histórica
concreta, sem cair em determinismos, Oldrini oferece uma importante indicação,
teórico-metodológica, sobre como proceder na investigação do pensamento de um
filósofo.
Não se pode aqui desconsiderar os esclarecimentos que Lukács oferece,
em sua maturidade, sobre o seu período de juventude, os quais impossibilitam,
igualmente, postular uma “conversão” plena e não mediada. Ele se expressa, de
forma clara, ao assinalar que a sua adesão, ao Partido Comunista, foi um
“processo”,46 cujo início é observável já em suas inquietações éticas e políticas dos
seus escritos anteriores: como já se expôs nesta monografia. É compreensível,
portanto, Lukács, mesmo após a sua adesão ao comunismo, ainda manifestar
dúvidas e reservas quanto aos “meios” empregados na luta revolucionária. 47

45 Ibidem, p. 93. Em um sentido similar, Arato e Breines sustentam: “[…] el sentido fundamental de la
própria obra de Lukács: la crítica indagadora de las tensiones y contradicciones internas del
pensamiento y el arte alemanes. Cuando en 1918 Lukács consideró que el movimiento
internacional comunista era el único medio concreto de reemplazar la pobreza espiritual y material
de la vida em la sociedad capitalista, se convirtió em el apóstol más crítica y el apóstata más
obediente del comunismo por más de 50 años [o sentido fundamento da própria obra de Lukács: a
crítica indagadora das tensões e contradições internas do pensamento e da arte alemãs. Quando
em 1918 Lukács considerou que o movimento internacional comunista era o único meio concreto
de substituir a pobreza espiritual e material da vida na sociedade capitalista, se converteu no
apóstolo mais crítico e no apóstata mais obediente do comunismo por mais de 50 anos]”. Cf.
ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p.
18.
46 O mesmo pode ser inferido pela afirmação de Bloch, acerca do seu amigo: “O Partido Comunista
foi para Lukács a realização de uma antiga aspiração; em sua juventude ele quis entrar para um
monastério: o Partido era um substituto para este desejo secreto. Ele era atraído pelo catolicismo
não como sistema ou doutrina, mas pelo modo de vida, a solidariedade, a ausência de
propriedade, a existência monacal, tão diversa e oposta à da grande burguesia a que pertencia por
sua família, a seu pai, diretor de banco”. Cf. BLOCH, Ernst. Entrevista com Ernst Bloch. In: LÖWY,
Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A evolução política de Lukács
(1909 – 1929), p. 288; Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. Diálogo sobre o “Pensamento vivido”, p. 32.
47 Será ainda preciso considerar, na próxima seção, escritos, de 1919 em diante, em que Lukács
expressa essa preocupação.
36

Neste momento da exposição, cumpre, ainda, destacar que a utilização


da noção de “ruptura”, como instrumento analítico, termina obscurecendo a
investigação acerca da continuidade do desenvolvimento intelectual de um autor. Da
mesma forma, ao valer-se de “periodizações” estanques, como a distinção arbitrária
entre “jovem” e “velho” Lukács,48 perde-se de vista o processo de luta interior,
verificado, em especial, nesse período de sua obra, qual seja, 1918 a 1921. 49
Para uma devida abordagem da linha evolutiva, a qual circunscreve certa
continuidade do pensamento lukacsiano, vale-se aqui da noção de “mudança de
perspectiva”, empregada por István Mészáros. Com base nessa noção, torna-se
possível um tratamento criterioso e adequado, segundo Mészáros, da “mesma
estrutura de pensamento”,50 na obra de Lukács. Para tanto, destaca-se, de novo, o
caráter dialético do seu itinerário intelectual, marcado pela unidade e síntese de
“continuidade e descontinuidade”. Daí Mészáros sustentar:

[…] “ruptura radical” não é o mesmo que “mudança qualitativa”. Esta pode
caracterizar a totalidade do desenvolvimento do sujeito, enquanto aquela
está confinada a certos aspectos desse desenvolvimento, por mais
importantes que sejam em alguns pontos – por exemplo, sociologicamente.
Uma “conversão total”, desde que não se confine ao conteúdo ideológico do
pensamento do sujeito, mas supostamente abarque a estrutura geral de seu
pensamento, é bastante duvidosa, mesmo no que se refere aos “fanáticos
religiosos”. Não é por acaso que comunistas religiosos, quando
desapontados, transformam-se em anticomunistas religiosos. A “conversão
total” é privilégio de uma segunda infância intelectual que deve suceder a
uma amnésia completa (MÉSZÁROS, 2013, p. 34).

No contexto, portanto, de mudanças qualitativas, a investigação da


mesma estrutura de pensamento de um autor a “unidade” dialética de sua obra não
deve ser buscada, no entender Mészáros, em uma “entidade psicológica atemporal”
(MÉSZÁROS, 2013, p. 34): algo que equivaleria a priorizar as influências intelectuais

48 Como já ressaltado, anteriormente, em virtude das limitações que o escopo deste trabalho se
inscreve, não será possível avaliar a obra de maturidade do Lukács, objetivando destacar os
elementos de continuidade em sua reflexão. Não obstante tal limitação, a devida compreensão
desta postulação teórico-metodológica será, de grande importância, para o desenvolvimento desta
monografia.
49 Nesse sentido, Netto sustenta: “Frequentemente, no entanto, a prática das periodizações faz-se de
forma a obscurecer o fato capital de que elas devem captar modificações inseridas numa linha
evolutiva que circunscreve um campo de continuidade; frequentemente, as periodizações tendem à
hipostasia de rupturas”. Cf. NETTO, José Paulo (Org.). Lukács: tempo e modo. São Paulo: Ática,
1992, p. 27.
50 Segundo a original interpretação de Mészáros, os contornos da mesma estrutura de pensamento
de Lukács, devem ser buscados em uma “ideia sintetizadora fundamental” que abarca as suas
obras. De acordo com Mészáros, tal ideia consiste na dualidade dialética entre “Ser” (Sein) e
“Dever-se” (Sollen). A esse respeito, ver: MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em
Lukács, p. 33.
37

recebidas. Trata-se, na realidade, de uma interação constante e recíproca entre o


“horizonte histórico universal”,51 no qual se move o pensamento de um autor,
incluindo as limitações de determinados momentos históricos e a “particularidade de
sua intervenção teórica”.52

2.4 SOBRE A COMUNA HÚNGARA E O “PRÉ-MARXISMO” DE LUKÁCS

Certas expressões da reconfiguração histórico-mundial, em decorrência


da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, podem ser vislumbradas na
Hungria. Tais expressões, na realidade prática húngara, motivaram, em parte, a
decisão de Lukács de ingressar no Partido Comunista, como já assinalado. Durante
e após o período em que Lukács adere ao comunismo, novas configurações de
forças políticas são observáveis, atualizando-se, de forma rápida, na Hungria. Em
outubro, de 1918, cai o velho regime aristocrático húngaro, e uma coalização social-
democrata de radicais burgueses assume o poder. 53 No entanto, tal coalizão dura
pouco, pois, em virtude de suas instabilidades e pressões externas, forma-se, em 21
de março de 1919, uma nova coalizão entre os sociais-democratas e os comunistas,
criando assim a “República Proletária dos Conselhos (socialistas)” ou,
simplesmente, a “Comuna húngara” (KONDER, 1980, p. 33).
Lukács assume um posto no Conselho Popular para Educação, iniciando
a sua práxis política, pois ele se depara com problemas práticos e com a
necessidade de orientar o pensamento, para além das suas perspectivas
messiânicas e abstratas anteriores.54 Trata-se de um período em que Lukács se

51 Ver nota 5.
52 NETTO, José.Paulo. Apresentação. In: MÉSZÁROS, István (Org.). O conceito de dialética em
Lukács, p. 13. Ainda, nesse sentindo, Mészáros comenta: “Aqui, mais uma vez, é claro, a relação
é dialética: seria tolice negar que as influências assimiladas são influências e exercem seu efeito
na orientação posterior do filósofo como elementos constitutivos – por mais que sejam
'aufgehoben' [suprassumidos] – de seu princípio de seleção e síntese. Nessa relação, não
obstante, a própria situação histórica tem primazia sobre as influências intelectuais. O que separa o
filósofo importante do eclético inteligente é a irrelevância histórica da síntese puramente acadêmica
do segundo, quando comparada à máxima importância prática do primeiro”. Cf. MÉSZÁROS,
István. O conceito de dialética em Lukács, p. 35.
53 Com o desencadeamento da Primeira Guerra Mundial, aprofundaram-se as contradições sociais e
possibilitou o surgimento de radicais burgueses na Hungria. Todavia, apesar do aparente
radicalismo, tal classe ainda apresentava resquícios conversadores, o que pode ser vislumbrado
na insustentabilidade que essa “coalizão” com a social-democracia apresentou, vindo,
rapidamente, a desmoronar. Ver, a esse respeito: KONDER, Leandro. Lukács, p. 30-31.
54 Dentre os problemas práticos, com os quais Lukács se depara, pode-se, aqui, mencionar a
necessidade de “compatibilização entre uma prática dirigida por uma consciência de vanguarda e o
estado de espírito das massas, condicionado pelo atrasado”, assim como a escassez de produtos
38

aproxima, pela segunda vez, da obra de Marx, em razão de sua compreensão cada
vez maior do caráter imperialista da Guerra Mundial, bem como da necessidade de
responder a tais questões práticas concretas. Tal aproximação se deu, de início, pelo
aprofundamento do estudo de Hegel, no decorrer do qual Lukács se aproximou de
Feuerbach, terminando por se dedicar às obras de Marx, em especial, aos escritos
juvenis marxianos, além da obra Introdução à Crítica da Economia Política (1857).
Não se trata mais, porém, do recorte anterior, em relação à sua recepção da obra
marxiana, no sentido de uma “sociologia”. Ademais, ele buscou, não sem
dificuldades, superar Hegel por meio de Marx, em virtude de seu interesse prático de
condução das questões da revolução proletária.55
O período da Comuna húngara representou, no entender de Lukács, uma
direção para a realização de seu pensamento. Significativo é, portanto, a
aproximação com o pensamento de Lênin, cujo destaque se deve em razão,
sobretudo, de seu “realismo” político. 56 Ao tentar responder aos problemas
concretos, os quais aparecem na Comuna, Lukács é obrigado a afastar-se, cada vez
mais, das posturas idealistas e românticas de sua juventude. 57 Em síntese, e ainda
na esteira da argumentação teórico-metodológica, desenvolvida na seção anterior, a
afirmação de Netto é significativa: “Não há a menor dúvida de que, em todos os
diferentes estágios da sua evolução, Lukács foi motivado por questões práticas

no mercado, agravada pela crise revolucionária, e ainda problemas relativos à disciplina do


trabalho na Comuna. Cf. KONDER, Leandro. Lukács, p. 38-39.
55 LUKÁCS, Georg. Meu caminho para Marx [1933], p. 33-34. Com base em tal declaração de Lukács
relativa a seus escritos juvenis e seu segundo contato com Marx, refuta-se a periodização da obra
lukacsiana proposta por Henri Avron. Essa periodização pressupõe que a fase compreendida entre
1914 a 1924, da produção intelectual de Lukács, possui, como via analítica dominante, a filosofia
hegeliana. De modo que, para Avron, História e Consciência de classe seria o “triunfo da dialética
hegeliana”. Defende-se que tal periodização, sustentada por Avron, cairia no erro que se descreveu
na terceira parte do primeiro capítulo deste trabalho, a saber, como uma periodização estanque,
que não levaria em consideração “mudanças de perspectivas” qualitativas no pensamento de
Lukács. Entre A teoria do romance e História e Consciência de classe, atravessando o período
tratado na quarta parte deste primeiro capítulo, há uma tentativa consciente de Lukács de
aproximar-se, cada vez mais, da obra marxiana, como sinalizado por ele, no que diz respeito ao
seu segundo contato com Marx. Caso se perca de vista tais mudanças, no itinerário intelectual de
Lukács, acompanhadas de mudanças histórias significativas, quer na Hungria, quer nos demais
países, o trato crítico e imanente da obra lukacsiana perde a sua força. C f. AVRON, Henri. Lukács:
la vita, il pensiero, i testi esemplari. Tradução de Edoardo Gasparetto. Milano: Edizioni Accademia,
1970.
56 A recepção de Lukács do pensamento de Lênin, restringiu-se, por um lado, àquilo que os
húngaros, que voltavam da Rússia, lhe comunicava; por outro lado, a leitura da única obra de Lênin
disponível naquele período, na Hungria, qual seja, O Estado e a Revolução. Todavia, as bases
idealistas do Lukács da juventude impossibilitaram a devida compreensão do pensamento
leniniano. Ver, a esse respeito: KONDER, Leandro. Lukács, p. 36. Ainda nesse sentido, ver:
LUKÁCS, Georg. Diálogo sobre o “Pensamento vivido”, p. 33.,
57 Sobre os problemas práticos que Lukács lidava, na função de Comissário da Comuna, considerar:
KONDER, Leandro. Lukács, p. 37.
39

imediatas – em nenhum momento sua reflexão se descompromissou dos problemas


colocados na ordem do dia pela dinâmica social”.58
Nesse ínterim, a Comuna húngara teve os seus breves dias, ou seja,
apenas cento e trinta e três dias, resultando em uma violenta perseguição aos
comunistas que fizeram parte dela, incluindo Lukács, o qual foi obrigado a se exilar
em Viena. Com o fim da Comuna e o seu exílio, termina o seu período intensivo de
aprendizado político e prático: algo que não significa um afastar-se, teoricamente,
das perspectivas socialistas. Ao contrário, é durante o período do exílio, que Lukács
aprofunda os seus estudos sobre Marx e Lênin. Não obstante tal aprofundamento, a
aproximação com a perspectiva marxiana é marcada ainda por lutas internas, em
relação às influências intelectuais passadas, bem como problemas pessoais e
morais que acompanharam Lukács ao longo de seu itinerário intelectual.
No que concerne à luta interior de Lukács, o que uma vez mais põe em
suspeita a noção “conversão”, revela-se, no seu artigo, Tática e Ética. Tal artigo,
escrito por Lukács no início de 1919, após a sua adesão ao Partido Comunista,
ainda dispõe de certos elementos que ilustram a sua indecisão, quanto à sua
reorientação intelectual. Trata-se, como Lukács esclareceu, de um “acerto de
contas” (LUKÁCS, 1986, p. 32) consigo mesmo, no que concerne à sua decisão de
ingressar no Partido.
Entre as questões abordadas, no artigo acima indicado, destaca-se,
ainda, o operante dualismo, tão característico de sua postura neokantiana juvenil.
Em contrapartida, tal dualismo, agora, destina-se a pensar os problemas da
organização proletária e da tática comunista, não mais do ponto de vista de alguém
que se encontra fora do Partido – conforme o artigo, já abordado, O bolchevismo
como problema moral –, mas de um intelectual que reflete, internamente, sobre os
problemas partidários. A questão de qual “tática” o partido deve assumir, relaciona-
se, diretamente, com o “objetivo final”,59 ao qual esse partido almeja.

Para todos os partidos e classes a posição e o significado de tática no


campo de ação político difere bastante de acordo com a estrutura e o papel
histórico-filosófico peculiar para aqueles partidos e classes. Se nós
definimos tática como os meios por meio dos quais grupos ativos
58 Cf. NETTO, José Paulo (Org.). Lukács: tempo e modo, p. 45.
59 Ao longo do segundo e do terceiro capítulos, deste trabalho, poder-se-á observar como a relação
entre o “movimento” e o “objetivo final”, da luta proletária, continuou assumindo um papel central,
na reflexão de Lukács, em sua obra de 1923. O destaque e a argumentação, desenvolvidos em
História e Consciência de classe, no que concerne a esse tema, assumem, todavia, um outro
caráter, conforme será abordado.
40

politicamente alcançam seus objetivos declarados, como a união entre


objetivo final e realidade, diferenças fundamentais se apresentam,
dependendo se o objetivo final é categorizado como um momento dentro da
realidade social dada ou como um que o transcende. A principal diferença
entre o imanente e o transcendente objetivo final é que o primeiro aceita a
existência da ordem legal como um princípio dado que necessariamente e
normativamente determina a finalidade de qualquer ação, enquanto que no
caso do objetivo sócio-transcendente essa ordem legal é vista como pura
realidade, como poder real, que devem ser levadas em consideração para,
no máximo, razões de conveniência.60

Em suma, de acordo com o papel histórico-filosófico da classe proletária e


o caráter transcendente de seus objetivos, Lukács conduz a sua argumentação no
sentido de negar aquelas táticas partidárias, que tomam a existência factual como o
limitante da ação. Por essa razão, nesse ensaio, nega-se a função revolucionária da
Realpolitik, e de acordos e compromissos com os setores não revolucionários da
sociedade, como “meios” impuros que inviabilizariam a libertação da humanidade.
De acordo com Lukács (2014, p. 5), o problema da correção da tática não se
desvencilha de certa questão ética, na medida em o proletariado, em sua luta por
libertação, possui uma “motivação puramente ética”, bem como histórico-filosófica. A
separação dessas duas esferas, a saber, tática e ética, terminaria dificultando o
empreendimento revolucionário.
Desataca-se, na linha argumentativa desenvolvida por Lukács, nesse
ensaio, a sua compreensão da teoria de Marx, em sua relação com Hegel. No seu
entender: “A teoria marxista da luta de classes, que a este respeito é completamente
derivada do sistema conceitual de Hegel, transforma o objetivo transcendente em
um [objetivo] imanente; a luta de classe do proletariado é de uma vez só o objetivo
em si mesmo e sua realização”.61 O que interessa aqui no momento, não é um
tratamento exegético das obras de Lukács, desse período de sua vida, mas enfatizar
a tentativa de Lukács de aprofundar temáticas relativas à luta proletária, bem a sua
60 LUKÁCS, Georg. Tactics and Ethics. In: MCCOLHAN, Michael (Org.). Tactics and Ethics (1919-
1929): The question of Parliamentarianism and Other Essays. New York: Verso, 2014, p. 3: “For all
parties and classes the position and significance of tactics in the field of political action differ greatly
in accordance with the structure and historico-philosophical role peculiar to those parties and
classes. If we define tactics as a means by which politically active groups achieve their declared
aims, as a link connecting ultimate objective with reality, fundamental differences arise, depending
on whether the ultimate objective is categorized as a moment within the given social reality or as
one that transcends it. The principal difference between the immanent and the transcendent
ultimate objective is that the former accepts the existing legal order as a given principle which
necessarily and normatively determines the scope of any action, where as in the case of a socio-
transcendent objective that legal order is seen as pure reality, as real power, to be taken into
account for, at most, reasons of expediency”.
61 Ibidem, p. 5: “The Marxist theory of class struggle, which in this respect is wholly derived from
Hegel's conceptual system, changes the transcendent objective into an immanent one; the class
struggle of the proletariat is at once the objective itself and its realization”
41

aproximação do pensamento de Marx, traçando, igualmente, as relações da obra


marxiana com outros autores, a saber, Hegel e outras temáticas, como a “ética”,
não, com frequência, associadas ao marxismo. 62 Tal questão, uma vez mais,
confirma a “mudança de perspectiva” realizada por Lukács, assim como oferece
elementos para se pensar a natureza de seu segundo contato com Marx, conforme
já indicado.
O outro ensaio de Lukács, que permite avaliar o seu contato preliminar
com as obras marxianas, intitula-se The question of Parliamentarianism (1920),
escrito para a revista Kommunismus.63 Esse artigo foi escrito quando Lukács já se
encontrava no exílio, apresentando que a separação forçada de Lukács, com
relação as condições práticas políticas, de seu país de origem, não foram suficientes
para afastá-lo das reflexões em torno do socialismo. Nesse escrito, de novo, o seu
incomodo diz respeito a questões de “tática”. Segundo ele, a tática do Partido
Comunista não pode ser separada de problemas da ordem dos “princípios”,
argumentando que a tática, bem como as suas variações e flexibilizações – ora uma
tática, ora outra – não pode contradizer os princípios, rigidamente estruturados, do
socialismo.
Nessa linha argumentativa, pode-se sustentar, valendo-se desse artigo,
que, com base em princípios, a tática do proletariado revolucionário deve se separar
da tática da burguesia, restrita à mera Realpolitik. Desse modo, explicita Lukács:

Entretanto, não se deve esquecer que a luta de classe proletária pode


apenas raramente se desenvolver nessa forma totalmente pura. Isto é
primariamente porque o proletariado, muito embora por virtude dessa
missão histórico-filosófica engaje-se em constante luta contra a existência
mesma da sociedade burguesa, frequentemente encontre a si mesmo na

62 É interessante destacar que, já em sua velhice, Lukács retoma o seu projeto j uvenil de enfatizar as
relações da obra de Marx com a Ética. Para tanto, foi preciso um trabalho preliminar, a saber, a
construção de seus pressupostos ontológicos, os quais foram expostos em sua Para uma ontologia
do ser social, que explicitasse certas questões primordiais, dentre as quais, o estatuto do ser
social, a autêntica e falsa ontologia de Hegel, o neopositivismo contemporâneo e assim por diante.
O projeto da Ética, infelizmente, nunca se concretizou, uma vez que Lukács morreu antes. Ver,
nesse sentido: LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
63 Deve-se sublinhar que três, dos oito ensaios que compõem História e Consciência de Classe se
encontram na revista Kommunismus – ainda que esses três ensaios sofreram modificações para
compor a obra de 1923 de Lukács. Segundo Arato e Breines, a revista Kommunismus é a
“expressão das esperanças e das perspectivas de um grupo de comunistas revolucionários
internacionalistas frente aos primeiros sinais dos fenômenos que logo se conheceriam como
‘socialismo em um só país’.” Com isso, Arato e Breines buscam expor as tendências messiânicas e
revolucionárias presentes nos autores que compunham a revista, dentre eles, o próprio Lukács. Cf.
ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p.
159-160.
42

situação histórica defensiva vis-a-vis a burguesia. A ideia da luta de classe


proletária é tremendamente ofensiva contra o capitalismo; história faz essa
ofensiva aparecer como se fosse imposta ao proletariado.
Consequentemente, a posição tática que o proletariado ocupa em qualquer
tempo pode simplesmente ser descrita em termos de natureza ofensiva ou
defensiva. A conclusão autoevidente é que em situações defensivas meios
táticos devem ser empregados em fundamental contradição com a ideia de
luta proletária. O emprego de tais meios, apesar de necessário, é portanto
constantemente carregada com o perigo de que possa comprometer o
propósito para o qual eles estão sendo utilizados, a luta de classe do
proletariado.64

Entre os meios “defensivos”, os quais entrariam em contradição com as


“formas puras” da ofensiva proletária, apresenta-se a atuação parlamentar, a qual,
segundo Lukács, é um instrumento da burguesia. Em síntese, segundo ele escreve,
nesse período, a verdadeira luta e ofensiva proletária não pode se desenrolar, de
forma concreta, em um instrumento de controle burguês. 65 Nota-se pois que certas
preocupações do Lukács da juventude permaneceram, em seu pensamento, não
obstante as “mudanças de perspectiva” realizadas por ele. Embora ainda idealista, o
caráter das exigências éticas de Lukács, deve-se compreender tais exigências no
contexto histórico-mundial que o cercava.
O pano de fundo, de certa elaboração teórica, com respeito ao socialismo,
nesse período, a despeito de suas especificidades, diz respeito à crença na
atualidade da revolução proletária mundial. Tal crença pode ser observada em um
escrito de Lênin, publicado no mesmo ano que o de Lukács sobre o
Parlamentarismo, em 1920. Lênin, em sua obra, Esquerdismo, doença infantil do
comunismo, buscou destacar o que, na revolução russa, constituiu um elemento
exemplar para o restante das nações, de forma que a “transcendência mundial” 66 de
tais elementos possibilitariam a revolução em um “futuro próximo e inevitável”. 67
64 Cf. LUKÁCS, Georg. The question of Parliamentarianism (1920). In: MCCOLHAN, Michael (Org.).
Tactics and Ethics (1919-1929): The question of Parliamentarianism and Other Essays. New York:
Verso, 2014, p. 55: “However, it must not be forgotten that the proletarian class struggle can only
seldom develop in this totally pure form. This is primarily because the proletariat, although by virtue
of its historico-philosophical mission engaged in constant struggle against the very existence of
bourgeois society, very often finds itself in given historical situations on the defensive vis-a-vis the
bourgeoisie. The idea of the proletarian class struggle is a tremendous offensive against capitalism ;
history makes this offensive appear as if it were imposed on the proletariat. Hence, the tactical
position which the proletariat occupies at any one time can most simply be described in terms of its
offensive or defensive nature. The self-evident conclusion is that in defensive situations tactical
means must be employed which fundamentally contradict the idea of the proletarian class struggle.
The employment of such means, though necessary, is therefore constantly fraught with the danger
that they might jeopardize the purpose for which they are used, the class struggle of the proletariat”.
65 Ibidem, p. 56.
66 Cf. LÊNIN, Vladimir Ilitch. Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920). 6. ed. Tradução
de Luiz Fernando. Rio de Janeiro: Global editora, 1989, p. 9.
67 Ibidem, p. 10. O mesmo “espírito”, quanto à atualidade da revolução, pode ser observado, ainda,
43

Em contrapartida, mesmo compartilhando o mesmo “espírito” e crença,


quanto à atualidade da revolução proletária, Lênin não deixou de criticar o artigo do
Lukács sobre o Parlamentarismo. Lênin, em um sentido mais realista, e com a
devida compreensão dos fundamentos materialistas da obra de Marx e Engels,
sabia que, para a realização da finalidade última do socialismo, a tomada de poder é
apenas o primeiro passo. Ele compreendeu ainda que, mesmo após tal tomada de
poder, a burguesia continuaria, por muitos anos ainda, sendo a classe mais
poderosa da sociedade, em virtude de sua relação internacional com as demais
classes burguesas, além do fato de que os pequenos produtores, que não
simplesmente desaparecem da sociedade, continuaram recriando e reproduzindo
relações capitalistas (LÊNIN, 1989, p. 78).
Daí Lênin (1989, p. 31) sustentar que o proletariado deve conduzir a sua
luta por todos os meios e compromissos possíveis, igualmente, nos espaços mais
reacionários, tais como os Parlamentos e os sindicatos, sem que, com isso, a
vanguarda do Partido Comunista renuncie a seus objetivos finais, mas, ao contrário,
articule, de forma concreta e dialética, tais objetivos finais do socialismo com todos
os meios possíveis. De acordo com os argumentos de Lênin, uma postura contrária
a isso, termina por ser demasiada “esquerdista”, 68 adjetivo que também é
empregado na sua crítica ao Lukács, do período, que escrevia sobre “formas puras”
de luta e rechaçava a luta parlamentar.
Com base na crítica de Lênin, além da investigação e excurso na obra de
Lukács, no período entre 1919 e 1920, bem como a situação histórica-mundial e
seus reflexos no estado de espírito de certa camada intelectual da época, que se
torna possível avaliar o estatuto do segundo contato de Lukács com a obra de Marx.
Trata-se, na verdade, de um “pré-marxismo”, uma vez que, como visto, muito de
seus argumentos ainda estão formulados com anteriores perspectivas intelectuais,
de Lukács, o que, uma vez mais, refuta a defesa de uma “ruptura” plena no itinerário
intelectual deste autor. Porém, isso não significa que não houvesse uma clara
mudança de perspectiva em direção a questões mais fundamentais da luta
socialista. Em contrapartida, como Lênin enfatizara, tal mudança ainda é expressa

em Lukács, quando, em 1924, ele escreve, uma obra, para abordar a unidade do pensamento de
Lênin. Nessa obra, comenta Lukács: “[…] o materialismo histórico tem como pressuposto – já como
teoria – a atualidade histórico-mundial da revolução proletária”. Cf. LUKÁCS, György. Lênin: Um
estudo sobre a unidade de seu pensamento. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2012, p. 31.
68 Cf. KONDER, Leandro. Lukács, p. 29.
44

por um acentuado “esquerdismo”: algo que confirma a hipótese, assumida nesta


exposição, de que tal período é marcado por uma luta intelectual interna, de Lukács,
em sua tentativa consciente de se apropriar da análise marxiana dos homens e da
sociedade.
Ante as críticas de Lênin, Lukács reconhece a exatidão delas, e busca
corrigir a sua postura.69 Ainda em seu período de exílio, ele aprofunda a sua leitura
das obras de Lênin e de Rosa Luxemburgo, e investiga, de forma mais aprofundada,
a obra marxiana, igualmente, no que concerne às suas relações internas com os
escritos de Hegel. Segundo ele expôs: “superar e ‘eliminar’ Hegel através de Marx”
(LUKÁCS, 1987, p. 94). Nesse universo, História e Consciência de classe surge
como luta interna de aproximação com as perspectivas marxianas e socialistas, bem
como, atrelado a isso, com a tentativa de superar limites histórico-práticos e
intelectuais de sua formação anterior. Resta ainda investigar em que medida, em
1923, Lukács realiza ou não o seu intento. Todavia, deve-se, primeiramente,
confrontar-se, a título de exposição e argumentação, neste trabalho, com outro
“espírito”, ou postura – que não aquela revolucionária, já descrita –, a qual
predominava, nesse período, entre os movimentos socialistas, contra o qual Lukács
também viu a necessidade de combater, a saber, a Segunda Internacional Socialista.

69 A mudança de postura de Lukács, ante as críticas que recebera, é característico em todas as suas
mudanças de perspectiva. Nesse sentido, é decisiva a autocrítica e humildade, de Lukács, sempre
buscando reconhecer os seus erros e, rapidamente, corrigi-los. Daí ele, já com idade avançada,
assinalar: “Sempre quando eu costumava cometer erros ou tomar direções falsas, eu sempre
estive disposto a reconhecer isto, não me custou muito, então pego outros caminhos”. Cf.
LUKÁCS, György. Entrevista com György Lukács por Perry Anderson. LavraPalavra, 2016.
Disponível em: <https://lavrapalavra.com/2016/05/19/entrevista-com-gyorgy-lukacs-por-perry-
anderson/>. Acesso em: 20 jun. 2019.
45

3 O MARXISMO NA VIRADA DO SÉCULO XX: POSTURA DE LUKÁCS NOS


EMBATES TEÓRICO-PRÁTICOS EM TORNO DO SIGNIFICADO DA OBRA
MARXIANA

O presente capítulo busca destacar a situação do legado intelectual de


Marx e Engels dentre os pensadores que compunham a Segunda Internacional.
Para tanto, investiga-se a situação histórico-concreta da virada do século XX, quer
da classe trabalhadora, quer do desenvolvimento do capitalismo, destacando as
diferenças e os traços comuns entre os marxistas historicamente reconhecidos como
“revisionistas”. Trata-se aqui de um excurso histórico e, igualmente, uma orientação
metodológica, pois contribuem para melhor compreender um dos embates basilares
que constituem a obra de Lukács, a saber, História e Consciência de Classe.
Investiga-se, com efeito, do ponto de vista dessa obra, a compreensão de Lukács
acerca do caráter “crítico” e “científico” dos marxistas, pertencentes à Segunda
Internacional, buscando explicitar as implicações metodológicas e práticas, da
postura assumida por eles nesse momento histórico. Por fim, destaca-se a defesa
lukacsiana relativa à “ortodoxia” marxista, como um modo de se contrapor a essas
posturas revisionistas, destacando, assim, o valor, teórico-prático, de conceitos
como: dialética materialista, totalidade, mediação, e assim por diante, na tradição
marxista.

3.1 A SEGUNDA INTERNACIONAL E O MOMENTO HISTÓRICO DO MARXISMO

Em conformidade com o que foi exposto, no capítulo anterior, 70 defende-


se que a compreensão relativa à iminência da revolução proletária não é geral. Por
mais que tal compreensão marque as obras de Lênin e Lukács, como visto, outros
setores, aliados à luta do proletariado, elaboraram uma interpretação distinta da
situação histórica. O núcleo de tais embates teóricos acerca da compreensão
adequada do processo histórico, no período anterior à adesão de Lukács ao
comunismo, pode ser observado na Segunda Internacional. Daí ser preciso agora
expor, historicamente, a relevância e a gênese desse agrupamento, ou dos mais
destacados teóricos que pensavam, em tal período, a situação do proletariado.

70 Ver nota 7.
46

Um importante instrumento na luta do proletariado contra a exploração


econômica e política da burguesia, foi a formação da Associação Internacional dos
Trabalhadores, cujos diferentes momentos históricos foram reconhecidos como
Primeira Internacional, Segunda Internacional e assim por diante. 71 Em tal
agrupamento, os trabalhadores puderam se reunir, independentemente da língua e
da nação da qual eles eram oriundos, o que representou um significativo
amadurecimento do proletariado, como classe, concretizando a elaboração
internacionalista que Marx atribuiu ao proletariado, em diferentes momentos de sua
obra.72
A Primeira Internacional foi fundada, na cidade de Londres, em 28 de
setembro de 1864. Apesar da predominância dos marxistas em seu seio, por causa
do centralismo de tal organização, em sua primeira formulação, e dos embates
teóricos ocorridos entre importantes figuras, como Proudhon, Lassale, Bakunin,
Mazzini, Marx e outros, a associação terminou desfeita alguns anos depois. 73
Somente em 14 de julho, de 1889, se formou a Segunda Internacional, em um
contexto diverso e mais favorável do que a Primeira, uma vez que, durante a década
de 80, notou-se uma difusão das ideias socialistas, 74 bem como o crescimento
71 A diferenciação dos momentos que marcaram as Associações dos Trabalhadores nasceu em meio
a uma luta política e ideológica entre os seus membros, sobretudo, a partir da ruptura de Lênin
com a Segunda Internacional. Seguiu-se, a tal ruptura, o ensejo para a criação da Terceira
Internacional, cuja diferenciação numérica funcionou como demarcador de uma fratura ideológica
com a Internacional anterior, assim como uma aproximação com a Primeira Internacional, aquela
de Marx. Ver, a esse respeito: ANDREUCCI, Franco. A difusão e a vulgarização do marxismo. In:
HOBSBAWM, Eric. (Org.). História do marxismo: O marxismo na época da Segunda
Internacional. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 16.
72 No que concerne ao caráter internacional da luta do proletariado, Marx sustenta: “Os comunistas
se distinguem dos outros partidos operários somente em dois pontos: 1) Nas diversas lutas
nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado,
independentemente da nacionalidade; 2) Nas diferentes fases de desenvolvimento por que passa a
luta entre proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os interesses do
movimento em seu conjunto”. Cf. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto Comunista.
Tradução de Álvaro Pina e Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 51. Já em relação ao
caráter internacional da própria classe proletária, Marx, após expor o movimento imanente de
formação do “mercado mundial”, argumenta: “O proletariado só pode, portanto, existir histórico-
mundialmente, assim como o comunismo; sua ação só pode se dar como existência 'histórico-
mundial'; existência histórico-mundial dos indivíduos, ou seja, existência dos indivíduos diretamente
vinculada à história mundial”. Cf. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã: crítica da
mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo
alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider,
Luciano Cavini Martonaro. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 39, nota a.
73 Cf. CARONE, Edgar. As origens da III Internacional Comunista. Revista Estudos de Sociologia,
Araraquara, SP, v. 5, nº. 8, 2000, p. 130. Disponível em:
<https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/article/view/835>. Acesso em: 18 ago. 2019.
74 Nesse sentido, Andreucci comenta: “A expansão e o empobrecimento, a ampliação e a
sistematização, tais parecem ser os dois extremos da experiência do marxismo no final do Séc.
XIX e no começo do novo século”. Cf. ANDREUCCI, Franco. A difusão e a vulgarização do
marxismo. In: HOBSBAWM, Eric (Org.). História do marxismo: O marxismo na época da Segunda
47

significativo do número de trabalhadores industriais,75 do número de sindicatos, 76


além da formação e consolidação dos partidos formados por trabalhadores. Isso não
ocorreu mais sob a forma centralizadora, visto que, de novo, a associação contava
com uma multiplicidade ideológica, dentre as quais se poderia destacar marxistas,
socialistas, anarquistas, guedistas – partidários de Blanque –, e os possibilistas –
reformistas da época.77
Portanto, tal forma de organização era federativa e não mais
centralizadora. De acordo com essa forma organizativa, a Internacional pautava-se
pelas “resoluções”78 aprovadas, nos diferentes Congressos, realizados pelos
delegados, os quais representavam as diversas linhas ideológicas e setores do
proletariado. Todavia, tamanha multiplicidade ideológica incorreu, de novo, em
impasses para a Internacional Socialista. Se, no final do século XIX, a percepção da

Internacional, p. 15-16.
75 Nesse sentido, Annie Kriegel apresenta os seguintes dados: “Por una parte, el número de
trabajadores industriales aumenta en proporciones considerables: en Alemania, entre 1882 y 1895,
la mano de obra industrial pasa de 7300000 a 10200000 (aumento del 40%). Por outra parte, los
obreros se concentran en las grandes empresas: en Alemania, en este período, el personal
empleado en las fábricas de más de 1 000 obreros pasa de 213 000 a 448 000 (aunque la
categoría de los asalariados de las pequeñas empresas artesanas sigue siendo preponderante).
Aparecen, también, nuevas categorías profesionales (trabajadores ferroviarios, del gas, etc.) que,
en Inglaterra, por ejemplo, provocarán profundas modificaciones en las estructuras del movimiento
obrero [Por um lado, o número de trabalhadores industriais aumenta em proporções consideráveis:
na Alemanha, entre 1882 e 1895, a mão de obra industrial passa de 7300000 para 10200000
(aumento de 40%). Por outro lado, os trabalhadores estão concentrados em grandes empresas: na
Alemanha, durante este período, o pessoal empregado nas fábricas de mais de 1 000
trabalhadores vai de 213.000 para 448.000 (embora a categoria de empregados de pequenas
empresas artesãs permanece preponderante). Há também novas categorias profissionais
(ferroviários, trabalhadores do gás, etc.) que, na Inglaterra, por exemplo, causarão profundas
mudanças nas estruturas do movimento sindical]”. Cf. KRIEGEL, Annie. Las internacionales
obreras (1864-1943). Tradução de Antonio G. Valiente. Barcelona: Ediciones Orbis, 1986, p. 17.
76 De acordo com Kriegel: “El incremento de las fuerzas obreras se traduce, ante todo, en el aumento
del número de sindicados: en Alemania, las organizaciones profesionales bajo influencia
socialdemócrata que en 1879 sólo tenían 50 000 miembros, alcanzan em 1900 la cifra de 700000
adherentes. Ahora bien, el desarrollo del movimiento sindical no es solamente cuantitativo, sino
también cualitativo, pues las federaciones comenzaron a formarse sobre la base, no ya del oficio,
sino de la industria en general [O aumento da força de trabalho traduz-se, em primeiro lugar, no
aumento do número de sindicatos: na Alemanha, organizações profissionais sob influência social-
democrata que em 1879 tinham apenas 50.000 membros, atingiram em 1900 o número de 700.000
aderentes. No entanto, o desenvolvimento do movimento sindical não é apenas quantitativo, mas
também qualitativo, pois as federações começaram a se formar com base não apenas no
comércio, mas também na indústria em geral]”. Cf. KRIEGEL, Annie. Las internacionales obreras
(1864-1943), p. 17.
77 Cf. CARONE, Edgar. A II Internacional e seus congressos (1889-1891). Revista Novos Rumos,
Marília, SP, v. 6, n. 20, 1991. Disponível em:
<http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/2088>. Acesso em: 12
ago. 2019.
78 A exemplo destas resoluções, ou medidas, que pautariam a luta internacional do proletariado,
pode-se mencionar: Legislação Internacional do Trabalho, Regulamentação da jornada de trabalho,
abolição dos exércitos permanentes, fixação do dia 1º de maio como o Dia Internacional do
Proletariado etc. Ver, a esse respeito: CARONE, Edgar. A II Internacional e seus congressos (1889-
1891), p. 51-52.
48

maioria do proletariado e dos dirigentes socialistas era que a revolução seria


iminente, com a virada do século a percepção não permaneceu mesma (KRIEGEL,
1986, p. 21-23).
Com o decorrer dos anos, a revolução, antes compreendida como
iminente, parecia “atrasada” historicamente, isto é, não teria se concretizado.
Associado a esse problema, com a difusão, já mencionada, das ideias socialistas na
Europa, bem como o ingresso dos representantes do proletariado nos Parlamentos,
os objetivos, os quais deveriam guiar a luta do proletariado, tornaram-se foco de
debate e discordância. A revolução proletária, e a tomada de poder da burguesia,
não constituíam um objetivo consensual.
Em razão disso, e em conflito direto com os anarquistas e os marxistas,
que lutavam pelo fim do Estado – ainda que discordassem quanto ao meio de se
alcançar tal objetivo,79 a polêmica estabelecida reenviava, em especial, ao meio de
luta. Uma camada significativa dos membros dos Congressos defendia o meio de
ação política parlamentar, mediante a qual buscar-se-ia melhorias materiais, quer
econômicas, quer políticas, para o proletariado. Nessa mesma linha argumentativa,
defendia-se a relevância do Partido para se alcançar tais reivindicações. 80
Nesse período, o abandono, cada vez mais evidente, da postura clássica
marxista,81 acentua-se com o desenvolvimento econômico do capitalismo. Por causa
do imperialismo e do colonialismo, os quais marcaram esse período capitalista,
disparou a produção e a acumulação de riquezas. Tal fato foi interpretado, por certos
membros da Segunda Internacional, como uma autorregulação natural e orgânica
das forças capitalistas, algo que, com o transcorrer do tempo, beneficiaria também o
proletariado, inviabilizando buscar alternativas para além do capitalismo. Tal postura
foi denominada “revisionismo”.82
79 Ver, a esse respeito: LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a Revolução. Tradução de Aristides Lobo.
São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 80-84.
80 Ver, aqui, ainda: KRIEGEL, Annie. Las internacionales obreras (1864-1943), p. 22; Ver também:
CARONE, Edgar. A II Internacional e seus congressos (1889-1891), p. 53.
81 Em razão do abandono das posturas clássicas marxistas, os membros da Terceira Internacional
negaram aos membros, da Segunda Internacional, o direito de se definirem como marxistas.
Assim, de acordo com Andreucci: “Surgiram definições caricaturais; e surgiram as aspas em torno
da palavra ‘marxismo’ quando ela aparecia ligada à Segunda Internacional”. Cf. ANDREUCCI,
Franco. A difusão e a vulgarização do marxismo. In: HOBSBAWM, Eric. (Org.). História do
marxismo: O marxismo na época da Segunda Internacional, p. 17.
82 Ao longo da segunda e da terceira seção, deste capítulo, abordar-se-á a natureza do revisionismo
e de seus argumentos, em primeiro lugar, conforme a reflexão de Lukács, e de outros autores
clássicos do marxismo, como fontes secundárias. No momento, o excurso de Kriegel, ainda que
breve, sobre a prática revisionista, é suficientemente preciso. Segundo ele comenta: “La génesis
del reformismo se explica en efecto, ante todo/por la práctica de los partidos socialistas convertidos
en partidos nacionales replegados en sí mismos, contaminados por la democracia representativa.
49

Com a morte de Engels, que até então era considerado uma autoridade
entre aqueles que lutavam em defesa do proletariado, acentuaram-se as tendências
revisionistas no interior do movimento. A figura de Eduard Bernstein (1850 – 1932)
desponta como o novo grande teórico, mas, em virtude do seu caráter revisionista,
abandonou os princípios marxistas, aliando-se à corrente neokantiana de
pensamento. Bernstein sustenta, pois, a natural atenuação das lutas de classes,
bem como o caráter de adaptação e flexibilização do capitalismo, cuja evolução
naturalmente conduziria para o socialismo, sem a necessidade de uma revolução
proletária violenta (KRIEGEL, 1986, p. 24).
O início da Primeira Guerra Mundial acirrou ainda mais o conflito
ideológico dos membros da Segunda Internacional, uma vez que a sua postura foi
de defesa da paz e, portanto, recusa da guerra espoliativa em favor da burguesia.
Não obstante tal resolução, certos socialistas alemães e franceses aderem à guerra,
defendendo a luta dos interesses nacionais. No meio àqueles favoráveis ou
contrários à guerra, desponta a postura bolchevique, impulsionada por Lênin, de
transformar a guerra imperialista, cujo benefício era da burguesia, em “guerra civil”,
em que a ordem e a dominação capitalista são postas em questão como o inimigo a
ser combatido.83
A postura dos revisionistas, em especial aquela assumida por Bernstein,
diante da tradição marxista, ilustra a peculiar situação na qual se encontrava a teoria
de Marx naquele período histórico. A ausência de elaboração da parte de Marx e
Engels, de um “sistema filosófico marxista”, 84 implicou em uma série de problemas
para os marxistas posteriores, os quais receberam críticas a partir de outras

Al luchar a menudo con la izquierda de la democracia burguesa para obtener reformas inmediatas,
se integraron en el sistema, relegando a un último plano el programa socialista de conquista del
poder. Así aparece el oportunismo, del que Lenin decía que «es sacrificar los intereses vitales y a
largo plazo del Partido a sus intereses temporales, efímeros, secundarios» [A gênese do
reformismo é explicada com efeito, em primeiro lugar e acima de tudo, pela prática de partidos
socialistas transformados em partidos nacionais em si mesmos, contaminados pela democracia
representativa. Lutando frequentemente com a esquerda da democracia burguesa para obter
reformas imediatas, eles [os reformistas] foram integrados ao sistema, relegando o programa
socialista de conquista do poder ao último plano. É assim que surge o oportunismo, do qual Lênin
disse que ‘é sacrificar os interesses vitais e de longo prazo do Partido aos seus interesses
temporários, efêmeros e secundários’]”. Cf. KRIEGEL, Annie. Las internacionales obreras (1864-
1943), p. 31.
83 Cf. CARONE, Edgar. As origens da III Internacional Comunista, p. 131-133.
84 Não cabe, aqui, discutir a postura de Marx e Engels, em face da Filosofia, ou mesmo se ambos
possuíam a pretensão de elaborar um “sistema filosófico”. Entretanto, ressalta-se a importância
que desempenhou, História e Consciência de Classe, para o marxismo, na medida em que tal
obra, de Lukács, buscou refletir, de forma mais ampla e profunda, as relações da obra de Marx
com a filosofia, em especial, a hegeliana, bem como suas implicações práticas. Cf. OLDRINI,
Guido. György Lukács e os Problemas do Marxismo do Século 20, p. 110.
50

posturas teoréticas. Em função disso, Oldrini defende que tais marxistas se viram
impelidos a “completar”, de fora e ecleticamente, a obra marxiana com outras
doutrinas filosóficas ou não. Desse modo, buscou-se articular a teoria econômica de
Marx com Mach, no plano físico, ou mesmo com Kant, no plano ético. 85
A despeito da multiplicidade ideológica, a qual marcou a Segunda
Internacional, sobretudo, em sua origem, a sua figura histórica permaneceu marcada
pelos traços revisionistas, resultado das deformações da obra marxiana. No âmbito
filosófico, o marxismo foi reduzido ao economicismo, em que é possível verificar
teses deterministas e não-dialéticas. Por sua vez, no âmbito político, o determinismo
converte-se em “fatalismo”, no que concerne à ordem capitalista, distanciando-se,
assim, de qualquer pathos revolucionário (OLDRINI, 1999, p. 69).

3.2 O MARXISMO “CRÍTICO” E O SEU MÉTODO: ALGUMAS FORMULAÇÕES


CRÍTICAS DE LUKÁCS

Tal é o contexto histórico-mundial, no qual se inscreve o marxismo e


contra o qual Lukács se depara à época de seu ingresso, no Partido Comunista, e
dos anos seguintes. Em tal cenário, Lukács (2003, p. 63) sustenta que se tornou “de
bom tom científico” contestar o assim chamado “marxismo ortodoxo”, 86 como se
fosse uma mera profissão de fé acrítica da parte de certos marxistas, os quais
tomavam a obra de Marx como um livro sagrado, aplicando-a, de forma mecânica,
85 Segundo Lubomir Sochor, nas duas primeiras décadas do século XX, os marxistas não supunham
necessitar reelaborar as questões fundamentais do marxismo. Isto em razão das duas acepções
de marxismo do período, a saber: por um lado, o marxismo “restrito”, formulado como uma teoria
científica particular, quer como ciência econômica, quer como ciência história, mas que, por isso,
era indiferente ao esforço de “completar o marxismo” com uma teoria do conhecimento, ética,
filosofia da natureza, e assim por diante; por outro lado, o marxismo “amplo”, que se supunha como
uma teoria completa e autônoma, que não necessitava de complementação. Segundo Sochor, a
necessidade de “completar o marxismo”, reelaborando suas questões fundamentais, só surgiu “[…]
não em consequência de uma necessidade interior ao próprio marxismo, ou seja, em função da
consciência dos pontos obscuros e das lacunas existentes ou dos problemas novos e não
resolvidos que se estavam colocando, mas sim em decorrência da pressão exercida por seus
adversários, quer se tratasse de filosofias ‘burguesas’, quer de egressos das fileiras dos
revisionistas, neokantianos, seguidores de Dietzgen ou empirocriticistas”. Cf. SOCHOR, Lubomir.
Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20. In: HOBSBAWM, Eric. (Org.). História do
marxismo: O marxismo na época da Terceira Internacional: problemas da cultura e da ideologia.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 13-14. Ver, ainda: OLDRINI, Guido. Gramsci e Lukács,
adversários do marxismo da Segunda Internacional. Crítica Marxista, São Paulo, n. 8, p. 67-80,
1999. Disponível em:
<http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo56critica8parte5oldrini.pdf>.
Acesso em: 13 jun. 2019.
86 Somente na quarta seção, deste capítulo, será conduzida uma discussão mais aprofundada acerca
da noção de “marxismo ortodoxo”, com base na perspectiva lukacsiana.
51

às diferentes situações concretas.87 No sentido contrário, os marxistas, os quais


compunham o quadro revisionista, descrito acima, defendiam uma postura crítica 88 e
científica com relação à obra marxiana. Tal postura supunha ater-se
“imparcialmente” ao estudo dos “fatos”, ultrapassando assim a interpretação
escolástica e exegética de frases marxianas que, aparentemente, foram consideras
ultrapassadas pela pesquisa científica moderna (LUKÁCS, 2003, p. 63).
Nesse sentido, a postura “crítica” confrontava-se com a orientação
dialética, julgando-a como um mero ornamento, a saber, uma construção exterior e
vazia em relação aos fatos “puros”, o que inviabilizaria um estudo “imparcial” da
realidade (LUKÁCS, 2003, p. 63). Daí ser duas as posturas teoréticas clássicas que
fundamentam essa orientação. Por um lado, o “empirismo limitado” contestava o
estudo dos fatos mediante a elaboração de um “método”, algo que terminava
“violentando” tais fatos, em razão de uma aplicação exterior, pois supunham
87 Lukács revela, em 1924, que Marx foi acusado de generalizar acriticamente, para o todo da
sociedade, a situação específica vivenciada pelo proletariado inglês nas fábricas. Posteriormente,
Lênin também foi acusado de generalização, mas de determinada situação histórica da Rússia de
seu tempo. Contra tal acusação, Lukács esclarece que a diferença entre o “gênio” e o mero
“burocrata” é a capacidade, da parte do gênio, de perceber a essência e as tendências de toda
uma época a partir de um local histórico determinado. Daí esclarecer Lukács: “Hoje, sabemos que
a grandeza de Marx estava precisamente nisso. Ele identificou e esclareceu, na estrutura da
fábrica inglesa, todas as tendências decisivas do capitalismo moderno. Tendo sempre diante dos
olhos a totalidade do desenvolvimento capitalista, Marx pôde vislumbrar seu conjunto em cada um
de seus fenômenos e, em sua estrutura, pôde observar seu movimento”. Cf. LUKÁCS, György.
Lênin: Um estudo sobre a unidade de seu pensamento, p. 30.
88 No decorrer desta e da próxima seção, aprofundar-se-á a compreensão de Lukács, em relação ao
estatuto do “marxismo crítico”, representado pelos revisionistas. Entretanto, deve-se atentar para o
fato de que a denominação de “marxismo crítico” não é utilizada exclusivamente para descrever
certas posturas revisionistas. Há autores que se valem desta denominação “crítica” para descrever
a postura de figuras importantes do marxismo dos anos 20, como a de Korsch e a do próprio
Lukács. Nesse sentido, Furio Cerutti sustenta, como cerne do “marxismo crítico”: “[…] è il marxismo
che ha radice diretta nella critica dell'economia politica, intesa non come dottrina economica meno
borguese e più di sinistra, ma come disvelamento dell'interno squilibrio e contraddittorietà, e quindi
dell'intima tendenza alla crisi própria dell'intero modo capitalistico di produrre e riprodurre la vita
degli uomini. La critica non riguarda allora le sole forme economiche, ma insieme le forme di
pensiero che da quelle non già derivano – come vorrebbe il materialismo volgare – ma che alle
forme economiche sono imanenti come condizione della loro stessa esistenza e riproduzione. In
altri termini, la teoria del soggetto e la stessa critica dell'ideologia non è un derivato secondario
(magari nei termini di una Wissenssoziologie ammantata di marxismo), ma è momento costitutivo
della Critica dell'economia politica [é o marxismo que tem uma raiz direta na crítica da economia
política, entendida não como uma doutrina econômica menos burguesa e mais à esquerda, mas
como um desvelamento do desequilíbrio e contradição interna e, portanto, da tendência interna à
crise do inteiro modo capitalista de produção e reprodução da vida dos homens. A crítica, portanto,
não diz respeito apenas às formas econômicas, mas igualmente às formas de pensamento que
daquelas [formas econômicas] já não derivam - como sustentaria o materialismo vulgar –, mas que
em relação às formas econômicas são imanentes, como condição de sua [as formas de
pensamento] própria existência e reprodução. Em outros termos, a teoria do sujeito e a própria
crítica da ideologia não é uma derivação secundária (talvez em termos de uma Wissenssoziologie
camuflada de marxismo), mas é um momento constitutivo da Crítica da economia política]”. Cf.
CERUTTI, Furio. Un modello di marxismo critico. In: VALENTE, Mario (Org.). Lukács e il suo
tempo: la costanza della ragione sistematica. Roma: Tullio Pironti Editore, 1984, p. 67-68.
52

encontrar “em todo dado, em toda cifra estatística, em todo factum brutum da vida
econômica um fato importante para si”. Por outro, mas em estreita correlação com a
visão acima descrita, os “oportunistas mais refinados”, de acordo com espirituosa
descrição de Lukács (2003, p. 71), não contestavam a elaboração dos fatos por
meio de teorias. Entretanto, eles defendiam que somente mediante o método das
ciências naturais, qual seja, observação, abstração e experimentação, seria possível
apreender fatos “puros”.
Motivados pela negação de fundamentos filosóficos para a doutrina
marxista, como já explicitado, os adeptos do marxismo crítico realizaram uma
transposição do ideal de conhecimento científico das ciências naturais para a teoria
socialista. Pensavam a mecânica de funcionamento da sociedade e da economia,
mediante os “sistemas formalmente fechados de leis parciais e especiais” (LUKÁCS,
2003, p. 229), tais como se manifestam nas ciências empíricas. Desse modo, e em
estreita relação com a divisão do trabalho intelectual, observado no desenvolvimento
das sociedades capitalistas, estudava-se a factualidade social em núcleos
separados e autônomos, uns em relação aos outros, via ciências específicas, tais
como o Direito, a Economia Política, a Sociologia e assim por diante.
Em vista disso, os fenômenos da vida são isolados e reduzidos à
essência quantitativa, reduzidos, pois, a meros dados numéricos, em ordem de se
alcançar os fatos em sua “pureza” científica. Por essa via, os fatos eram
apreendidos somente em sua imediaticidade dada, conforme critica Lukács (2003, p.
77): “O materialismo vulgar, ao contrário – mesmo quando adquire, em Bernstein e
em outros, um aspecto mais moderno –, contenta-se em reproduzir as
determinações imediatas e simples da vida social”. Assim, a perspectiva “crítica” do
materialismo almejava alcançar a exatidão científica, não deformada por
“exterioridades” dialéticas, mediante o isolamento abstrato do material factual
avaliado, explicando-o por leis científicas abstratas, a saber, leis jurídicas,
econômicas, naturais e assim por diante.
A tal “fragmentação”, consequência formal do método científico operado
pelo marxismo vulgar, Lukács (2003, p. 110) denominava-a “ponto de vista
monográfico”. Esse ponto de vista é compreendido, no sentido lukacsiano, como um
estudo de aspectos isolados da existência social, valendo-se de uma ciência
específica. Desse modo, toda consideração filosófica, a qual implique o todo da
sociedade, é deixada de lado, posto que a ênfase recai nos seus aspectos isolados
53

e específicos. Trata-se assim de uma elaboração crítica, a qual remete à orientação


teórico-metodológica da economia vulgar, enfrentando os problemas teórico-práticos
da sociedade com base no ponto de vista do capitalista individual. 89
Do caráter fragmentário e abstrato, do material factual analisado, assim
como do ponto de vista individual, resulta, além de um abandono do sentido de
totalidade da realidade, a impossibilidade de compreensão histórica deste material.
No que concerne a este aspecto do método do materialismo vulgar, Lukács
argumenta:

A abstração formal desse sistema de leis transforma continuamente a


economia num sistema parcial fechado que, por um lado, não é capaz nem
de penetrar em seu próprio substrato material, nem de encontrar a partir
dele a via para o conhecimento da totalidade social, e, por outro,
compreende essa matéria como um ‘dado’ imutável e eterno. Com isso, a
ciência perde a capacidade de compreender o nascimento e o
desaparecimento, o caráter social de sua própria matéria, bem como o das
possíveis atitudes a seu respeito e a respeito do seu próprio sistema de
formas (LUKÁCS, 2003, p. 230-231).

Na busca de obter exatidão científica e “imparcial” dos fatos isolados, o


revisionismo se pauta pelas diretrizes das ciências naturais. Dessa orientação
resulta o caráter eterno e imutável dos fatos analisados, uma vez que as avaliações
históricas e, portanto, transitórias fogem ao escopo de exatidão dessas ciências. 90
Tais ciências se dedicam, ao contrário, à compreensão das leis naturais e eternas
que fundamentariam os fatos. Cabe, pois, àquele que se situa em meio a esses
fatos, adaptar-se a eles. Ainda quando, na ciência burguesa, se toma em
consideração os “predecessores” literários e históricos de certo problema, o que
resulta de tal procedimento é uma separação, teórico-metodológica, de teoria e
história.91 Dessa forma, no entender de Lukács, “ao eliminar, portanto, o problema
89 No desenvolvimento, deste trabalho monográfico, serão expostas as consequências práticas de tal
ponto de vista. Todavia, é válido, desde já, deixar claro a articulação entre as teorias revisionistas
do marxismo e a economia burguesa vulgar. Nesse sentido, a argumentação de Rosa Luxemburgo
é esclarecedora. Conforme ela escreve: “Em suma, a teoria bernsteiniana da adaptação nada mais
é do que uma generalização teórica do ponto de vista do capitalista isolado. Mas o que exprime
esse ponto de vista teoricamente senão o caráter da vulgar economia burguesa? Todos os erros
econômicos dessa escola repousam precisamente no mal-entendido que resulta de se tomar os
fenômenos da concorrência, considerados do ponto de vista do capital isolado, como fenômeno do
conjunto da economia capitalista”. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução? 3. ed.
Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 70-71.
90 Ainda que, posteriormente, parte da comunidade científica tenha repensado os seus conceitos e
teorias, levando em consideração o caráter histórico de seu material, isto não foi realizado sem
reprovação e desacordo. Ver aqui: KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 9.
ed. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2005.
91 Da separação entre teoria e história, bem como da desconsideração, já enunciada, com respeito
ao procedimento dialético, os revisionistas não foram capazes de pensar o “novo” com
54

da totalidade por razões de exatidão científica, a ciência burguesa faz da história do


problema um peso morto na exposição e no estudo do problema, algo que só pode
ter interesse para os especialistas”,92 favorecendo, assim, uma especialização
insensata.
Deriva, também, desse procedimento científico, a incompreensão das
possíveis “contradições” que possam constituir o material analisado em questão. O
ideal de exatidão, de tal saber científico, o conduz à constante renovação para
superar as contradições “aparentes” que possam surgir e, desse modo, elaborar e
compreender fatos “puros” em si mesmos. Nesse sentido, esclarece Lukács:

O método das ciências da natureza, que constitui o ideal metódico de toda


ciência fetichista e de todo revisionismo, não conhece contradição nem
antagonismos em seu material; se, no entanto, houve alguma contradição
entre as diferentes teorias, isso é somente um indício do caráter inacabado
do grau do conhecimento atingido até então. As teorias que parecem se
contradizer devem encontrar seus limites nessas próprias contradições;
devem, portanto, ser modificadas e subsumidas a teorias mais gerais, nas
quais as contradições desaparecem definitivamente (LUKÁCS, 2003, p. 79).

Diante do procedimento adotado pelo marxismo vulgar, a saber, a-


histórico e parcial, pois oriundo das ciências naturais, caso ainda se possa falar de
filosofia, isso ocorre em um sentido muito específico. Como já enunciado, na seção
anterior, no período da Segunda Internacional, em decorrência da ausência de um
“sistema filosófico marxista”, muitos tentaram “completar” a teoria marxiana com
outras perspectivas teóricas. O que há de comum no resultado de tais tentativas é
uma elaboração eclética, não-dialética, e subordinada às ciências particulares. Daí
Lukács (2003, p. 239) dizer que o desenvolvimento filosófico visa “reconhecer os

propriedade. Daí afirmar Lukács: “[…] na medida em que os revisionistas se negam a reconhecer a
existência efetiva da dialética com seu movimento por contradições – que, por isso, produz sempre
o novo –, desaparece de seu pensamento o elemento histórico, o concreto, o novo. A realidade que
eles vivem está submetida a ‘leis eternas, brônzeas’, que agem de modo mecânico e esquemático,
produzindo incessantemente – e segundo sua essência – o mesmo, e às quais os homens estão
submetidos de modo fatalista como se fossem leis da natureza”. LUKÁCS, György. Lênin: Um
estudo sobre a unidade de seu pensamento, p. 73.
92 LUKÁCS, Georg. Rosa Luxemburgo como marxista [1921]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 118. Ainda com respeito ao abandono das perspectivas propriamente
históricas, em virtude da adoção do método das ciências naturais, por parte dos marxistas
revisionistas, Lichtheim comenta: “Conviene no perder de vista que quien primero abrió los ojos a
Lukács sobre la radical diferencia existente entre la ciencia natural y la historia fue Dilthey [Convém
não perder de vista que quem primeiro abriu os olhos de Lukács sobre a radical diferença existente
entre a ciência natural e a história foi Dilthey”. Com este argumento, reforça-se, portanto, a
hipótese de que se valer da noção de conversão/ruptura para pensar o itinerário intelectual de
Lukács é problemático, visto que certas temáticas e certos autores ainda manifestam certas
expressões no pensamento lukacsiano em 1923. Cf. LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 43;
BEDESCHI, Guiseppe. Introduzione a Lukács, p. 28-33.
55

resultados e os métodos das ciências particulares como necessários, como dados e


atribuir à filosofia a tarefa de desvendar e justificar a base da validade dos conceitos
assim formados”.
Torna-se claro então o motivo pelo qual, do ponto de vista teórico, a
orientação contrária, a qual tomou o desenvolvimento do marxismo científico em
relação à doutrina de Hegel. Isso se conclui, na medida em que a filosofia hegeliana
é aquela que dispõe, de forma clara, o valor filosófico que possui os conceitos de
totalidade e história – em seu desenvolvimento racional –, bem como a importância
do procedimento dialético ao conferir cientificidade à filosofia. 93 Com base na
perspectiva hegeliana, seria um contrassenso, para a filosofia, limitar-se ao material
oriundo das ciências empíricas, assim como se pautar, valendo-se na fragmentação
factual do existente.94 Não à toa, Lukács, após perceber anos de vulgarização da
teoria marxiana, bem como da sua devida relação com as obras de Hegel, julgou
fundamental retomar a relação entre Hegel e Marx, não somente do ponto de vista
“estilístico”, ou seja, exterior.
Mediante o distanciar-se da filosofia hegeliana e das considerações
dialéticas, ainda que no sentido histórico-materialista, elaborado por Marx, os
revisionistas aproximaram-se cada vez mais das perspectivas “filopositivistas”
(OLDRINI, 2017, p. 111). Em razão de tal aproximação, a tradição marxista, da
Segunda Internacional, eminentemente, determinista e economicista, abstraiu-se de
considerar temáticas relativas à consciência de classe, a saber, aos aspectos
subjetivos da luta proletária, a exemplo da relação do materialismo histórico com a
93 Hegel sustenta: “O mesmo desenvolvimento do pensar, que é exposto na história da filosofia,
expõe-se na própria filosofia, mas liberto da exterioridade histórica – puramente no elemento do
pensar. O pensamento livre e verdadeiro é em si concreto, e assim é ideia, e em sua
universalidade total é a ideia ou o absoluto. A ciência [que trata] dele é essencialmente sistema,
porque o verdadeiro, enquanto concreto, só é enquanto desdobrando-se em si mesmo, e
recolhendo-se e mantendo-se junto na unidade – isto é, como totalidade; e só pela diferenciação e
determinação de suas diferenças pode existir a necessidade delas e a liberdade do todo”. HEGEL,
Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas [1830]. Tradução de Paulo
Menezes. São Paulo: Edições Loyola, 2005, §14, p. 55.
94 Mais adiante, será explicitada a diferença de objetos que há, no entender de Hegel, entre a filosofia
e as demais ciências. Desde já é importante destacar que, segundo Hegel, a filosofia não pode se
valer do método das ciências subordinadas a ela, a exemplo da matemática, posto que, somente
um procedimento que não pressupunha uma separação abstrata entre conteúdo e forma pode
orientar a filosofia. Nesse sentido, Hegel insiste na diferença entre filosofia e demais ciências
empíricas, seja em relação ao seu objeto e seja em relação ao seu procedimento. Daí Hegel
criticar a tendência, de sua época, de banalização da filosofia, atribuindo, o predicado “filosófico”, a
conteúdos da empiria mais imediata, a exemplo do livro inglês, citado por Hegel: The Art of
preserving the Hair on philosophical principles. Ver aqui: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.
Enciclopédia das ciências filosóficas [1830], §7, p. 47; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência
da Lógica: a doutrina do ser [1812]. Tradução de Christian Iber, Marloren Miranda e Federico
Orsini, Petrópolis, RJ: Vozes, 2016, p. 28.
56

consciência do proletariado.95 Aos poucos, abandonou-se, igualmente, as


orientações associadas à articulação entre “movimento” e a meta final de tais lutas.
O enfoque dos revisionistas situava-se na multiplicidade, fragmentárias, das
diferentes lutas cotidianas, ignorando, cada vez mais, as discussões e medidas
relativas à meta final da luta socialista, isto é, o fim da dominação econômica do
capitalismo. A busca por exatidão científica, nos moldes das ciências naturais
tradicionais, impedia que os marxistas críticos pensassem algo tão distante e,
aparentemente, tão utópico em relação à cotidianidade do trabalhador.96
Como já observado, na seção anterior, os revisionistas assumiram
posturas prevalentemente “reformistas”. O método de investigação, que tais
marxistas críticos se valeram para analisar os “fatos” da vida social, impossibilitou-
lhes ultrapassar certa postura fatalista ante a dinâmica econômica da sociedade.
Diante de seus objetos de investigação, elaborados pelo método das ciências
naturais, o revisionismo não poderia mais ultrapassar a dimensão “contemplativa”
(LUKÁCS, 2003 p. 68), relativa a esses objetos. Se as leis naturais que sustentam
tais objetos, são eternas, os objetos mesmo assumem um caráter de imutabilidade
que lhes é inerente. Caso ainda exista algum descontentamento, com algumas
consequências da dinâmica capitalista, certos revisionistas buscavam uma solução
no plano abstratamente “ético”, isto é, interior. Daí Lukács (2003, p. 122) enunciar:
“Fatalismo econômico e nova fundamentação ética do socialismo estão
estreitamente ligados”. Resta, pois, esclarecer os vínculos imanentes que articulam
as posturas revisionistas com o capitalismo.

95 Em razão da abstração dos fatores “subjetivos”, associados à consciência do proletariado, na luta


revolucionária, Rosa Luxemburgo sustenta que Bernstein considera tão somente os “pressupostos
objetivos” em suas reflexões “socialistas”. Na próxima seção, veremos quais são esses
“pressupostos”. Nesse sentido, ver: LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?, p. 62.
96 A dualidade que dá título ao escrito de Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução?, é uma
abstração operada, por Bernstein, na medida em que ele separa “movimento” e “meta final”. Dessa
separação, resulta, de acordo com o revisionista, que o meio, a saber, as reformas sociais, devem
se tornar a nova finalidade dos socialistas: algo que implica o esquecimento da revolução
proletária. Todavia, para Luxemburgo, a lógica revisionista termina por relativizar a necessidade da
existência da própria social-democracia (partido revolucionário alemão), visto que a finalidade
revolucionária era o que distinguia esse partido dos demais. Ver aqui: LUXEMBURGO, Rosa.
Reforma ou revolução?, p. 17-18.
57

3.3 O MARXISMO CRÍTICO ANTE O CAPITALISMO: OPOSIÇÃO LUKACSIANA

Se a seção anterior se dedicou à abordagem do estatuto da “crítica” do


marxismo, o qual se estabeleceu na Segunda Internacional, além do seu
procedimento adotado e de suas consequências metodológicas, resta, agora,
investigar as consequências práticas dessa postura ante o capitalismo. Para tanto,
deve-se aqui remeter, mais uma vez, a Lukács (2003, p. 70), ao postular a seguinte
questão: em que medida os fatos podem orientar a ação do proletariado em luta?
Trata-se de uma questão, a qual já indica que a sua intenção, em História e
Consciência de classe, é empreender certos debater teoréticos, quer com o
marxismo revisionista, quer com a filosofia burguesa, articulando teoria e práxis
revolucionária.97
Não obstante Lukács reconheça que todo o conhecimento da realidade
parte de fatos, porém, o que importa é saber em que domínio metódico os fatos
devem ser considerados importantes para o conhecimento. Disso decorre a
discordância com relação ao procedimento, adotado pelos empiristas e pelos
“oportunistas”, como visto, de levar em consideração tão somente os “fatos puros”.
Em oposição a essa perspectiva, Lukács (2003, p. 71) sustenta que todo fato já é,
em si, fruto de uma “interpretação” e assim extraído do contexto cotidiano da vida e
introduzido em uma teoria mediante um método específico.
No que concerne aos “oportunistas refinados”, os quais buscam mediar os
fatos cotidianos pelo método das ciências naturais, pensando assim obter uma maior
exatidão científica e “pureza” para tais fatos, o problema torna-se ainda mais grave.
Isso ocorre, na medida em que os fatos “puros”, das ciências naturais, são obtidos
por meio da abstração e isolamento de um fenômeno da vida, a fim de que sejam
possíveis estudar as leis que regem tais fatos, sem a perturbação dos demais
fenômenos externos. Daí a redução de tais fenômenos à sua essência quantitativa e
numérica, algo que atestaria, em tese, a cientificidade desse procedimento. Se os
marxistas críticos se valem do método das ciências naturais, é porque tal

97 Na medida em que as questões, postuladas por Lukács, em sua obra de 1923, não se encerram
em si mesmas, pois o debate teorético visa a fins práticos, ele se inscreve na tradição marxiana,
resumida no seguinte enunciado: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes
maneiras; o que importa é transformá-lo”. MARX, Karl. Ad Feuerbach [1845]. In: ENGELS,
Friedrich; MARX, Karl (Org.). A ideologia alemã, p. 535, tese 11. Nesse sentido, deve-se destacar
a tese de Arato e Breines, segundo a qual as primeiras obras marxistas de Lukács são, em boa
parte, um comentário à Teses sobre Feuerbach, de Marx. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El
joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 142.
58

procedimento se encontra no núcleo da dinâmica capitalista, ou seja: “faz parte da


essência do capitalismo produzir fenômenos dessa maneira” (LUKÁCS, 2003, p. 72),
mediante um processo de abstração e de desconsideração da formação histórica de
tais fatos.
Em O que é marxismo ortodoxo?, pertencente à História e consciência de
classe, Lukács esclarece a tendência capitalista de ir ao encontro de tais fatos
“puros” da seguinte maneira:

O caráter fetichista da forma econômica, a reificação de todas as relações


humanas, a extensão sempre crescente de uma divisão do trabalho, que
atomiza abstratamente e racionalmente o processo de produção, sem se
preocupar com as possibilidades e capacidades humanas dos produtores
imediatos, transformam os fenômenos da sociedade e, com eles, sua
apercepção. Surgem ‘fatos’ isolados, conjuntos de fatos isolados, setores
particulares com leis próprias (teoria econômica, direito etc.) que, em sua
aparência imediata, mostram-se largamente elaborados para esse estudo
científico. Sendo assim, pode parecer particularmente ‘científico’ levar até o
fim e elevar ao nível de uma ciência essa tendência já inerente aos próprios
fatos (LUKÁCS, 2003, p. 72).

Portanto, os “fatos” são compreendidos, por Lukács, como um produto da


situação histórica determinada do capitalismo. Isso na medida em que é uma
tendência, inerente ao capitalismo: o isolacionismo e a abstração de seus
elementos. Nesse sentido, a despeito da pretensão “científica” dos revisionistas, a
saber, de buscar “fatos puros”, tais fatos, na verdade, se revelam produtos históricos
determinados. Desse modo, com base no método das ciências naturais, vem
engendrado um saber que se destina a justificar a realidade presente, 98 ao aceitar o
imediatamente dado dos fatos, de modo dogmático e acrítico, na sua exteriorização
e abstração, supondo que tais “fatos” constituem o fundamento imutável, com as
suas leis eternas e naturais pertencentes à ciência deles. Daí ser insuficiente
compreender a oposição lukacsiana ao método “crítico”, como uma questão
puramente teorética, por se tratar de um “problema social”, tendo em vista que ao
aplicar, de forma externa, o método de tais ciências à realidade, pois elas estão

98 É importante recordar-se da crítica que Marx tece em relação a Feuerbach, o qual busca tão
somente compreender com “exatidão” a realidade ao seu redor, sem articular tal conhecimento
com a práxis. Segundo explicita Marx: “Ele [Feuerbach] quer estabelecer a consciência desse fato
e, portanto, como os demais teóricos, quer apenas instaurar uma consciência correta sobre um fato
existente, ao passo que, para o verdadeiro comunista, trata-se de derrubar o existente”. Logo,
pode-se concluir que a busca por “exatidão” e “pureza”, por parte dos revisionistas, termina
assumindo um conformismo ante a realidade e, assim, justificando-a. Na continuidade desta seção
buscar-se-á desenvolver tal argumento. Cf. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã, p.
46, nota a.
59

atuando como um “instrumento de combate ideológico da burguesia”, a sociedade


burguesa termina justificada e naturalizada. 99
No entender de Lukács, tal “problema social” se agrava, à medida que se
continua a investigar a natureza desse método, o qual incide sobre o material
fragmentário estudado por tais ciências. O abandono da categoria da totalidade e da
dimensão histórica do fundamento dos fatos da sociedade capitalista não possibilita
articular, esse material, de forma necessária, pois termina traçando, apenas,
“relações reflexivas”100 entre eles. Disso resulta o fato de “o caráter histórico e
passageiro da sociedade capitalista fica obscurecido, e essas determinações se
manifestam como categorias intemporais, eternas, comuns a todas as formas de
vida social” (LUKÁCS, 2003, p. 77).
Com o obscurecimento do caráter histórico das formas de objetividade da
sociedade capitalista, apresentando-as como essências supra-históricas, perde-se o
caráter real do substrato material em questão, a saber, a sociedade capitalista
mesma e as suas inerentes contradições. Se, como já apresentando, o caráter
metódico da ciência fetichista, do revisionismo, não apreende antagonismo, em seu
material, isso se revela como limite metodológico à compreensão das “crises” 101 no
capitalismo. Nesse sentido, sustenta Lukács (2003, p. 77), as contradições
“pertencem, de maneira indissolúvel, à essência da própria realidade, à essência da
sociedade capitalista”. No capitalismo, a contradição se apresenta, então, em uma
99 Aqui, Lukács retoma uma consideração de Marx, relativa ao procedimento dos economistas
burgueses, em especial, Adam Smith e Ricardo, os quais julgavam que a produção material
decorresse da atividade de indivíduos isolados, ilustrando assim as ficções de suas
“robinsonadas”, bem como defendiam uma concepção unilateral do processo produtivo, que tende
a destacar o momento da produção como o mais relevante. Conforme Marx, ao não
estabelecerem, cientificamente, as diferenças que compõem o processo de desenvolvimento da
produção social da vida material dos homens, tais economistas: “[…] pretendem provar a
eternidade e a harmonia das relações sociais existentes no seu tempo. Por exemplo, não há
produção possível sem um instrumento de produção; seja esse instrumento apenas a mão. Não
há produção possível sem trabalho passado, acumulado; seja esse trabalho a habilidade que o
exercício repetido desenvolveu e fixou na mão do selvagem. Entre outras coisas, o capital é
também um instrumento de produção, é também trabalho passado e objetivado. Logo, o capital é
uma relação natural, universal e eterna. Mas o é com a condição de deixar de lado precisamente o
que é específico […]”. Daí a relevância, do procedimento de Lukács, de destacar a importância do
tratamento histórico e dialético da realidade: algo que será observado na próxima seção. Cf.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 27.
100 Sobre a natureza das “relações reflexivas” e a sua relação com o procedimento teórico-
metodológico das “filosofias do entendimento”, ver: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.
Enciclopédia das ciências filosóficas [1830], §§26-36, p. 89-101.
101 A definição que Rosa Luxemburgo oferece, para a determinação histórica de “crise” no
capitalismo, é a seguinte: “[…] choque periódico das forças contraditórias da economia capitalista”.
Tais forças contraditórias podem ser apreendidas como as “[…] contradições entre a capacidade
de expansão, a tendência à expansão da produção e a capacidade de consumo restrita do
mercado”, ou, ainda, entre o modo de produção e o modo de troca capitalista. Ver então:
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?, p. 30-31.
60

de suas formas, a da necessidade das crises, a saber, entre o modo de produção


burguês e as forças produtivas. Diante do limite teórico-metodológico desses
marxistas, Lukács conclui:

Aos olhos do marxista vulgar, as bases da sociedade burguesa são tão


inabaláveis que, mesmo nos momentos em que sofrem um abalo mais
visível, ele deseja apenas o retorno a sua situação “normal”, vê em suas
crises episódios passageiros e considera tal luta [proletária] uma revolta
temerária e irracional contra o capitalismo inexpugnável. Para ele, os
combatentes nas barricadas são homens perdidos, a revolução derrotada é
um “erro” e os construtores do socialismo numa revolução vitoriosa – aos
olhos dos oportunistas, não mais do que provisoriamente – são até mesmo
criminosos (LUKÁCS, 2012, p. 31).

Daí o marxismo vulgar não apreender nem o caráter necessário das


crises do capitalismo, nem, igualmente, toda a dimensão contraditória e histórica da
sociedade capitalista, resultando na possibilidade do fim do capitalismo. Isso porque,
como afirmava Marx, a burguesia forjou “as armas que lhe trarão a morte”: 102 algo
que pode ser constatado, de diferentes maneiras, as quais, todavia, não são
compreendidas pela crítica revisionista. Dentre tais elementos, os quais indicam a
impossibilidade do caráter eterno da dominação capitalista, apresenta-se a luta de
classe,103 a impossibilidade de uma acumulação capitalista infinita (LUKÁCS, 2003,
p. 111), as guerras imperialistas daí decorrentes,104 e assim por diante.
Lukács (2003, p. 439) compreende, portanto, que a impossibilidade de
conhecer a totalidade da sociedade capitalista, e do seu caráter histórico, mas
conhecer apenas aspectos isolado e autônomos da existência social, é uma
“expressão intelectual da estrutura social e objetiva da sociedade capitalista”. Disso
resulta que a relação entre o oportunismo e a burguesia não é apenas algo exterior,
ou seja, decorrência de uma capitulação de acordo com os interesses particulares
102 Cf. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto Comunista, p. 46.
103 É, portanto, sintomático, da capitulação do revisionismo ante a burguesia, o fato de Bernstein
criticar a teoria marxiana, como se ela fosse uma “ciência de partido” e representar apenas o
ponto de vista do proletariado: algo que implica na perda de sua imparcialidade científica. Em
contrapartida, Bernstein propõe, então, representar uma “ciência abstrata, geral, humana, um
liberalismo abstrato, uma moral abstrata”. A consequência prática desta capitulação é, sobretudo,
a justificação da sociedade burguesa e da impossibilidade de sua superação. Ver aqui:
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?, p. 116.
104 Como visto, na primeira seção deste capítulo, a Primeira Guerra Mundial representou um
importante elemento nos conflitos ideológicos internos à Segunda Internacional. Lênin percebeu
uma aproximação do marxismo vulgar, a saber, oportunista com a burguesia, no período da
Grande Guerra, justamente pelo fato dos “social-chauvinistas” terem se convertido ao marxismo, e
vice-versa. A tentativa, que daí se originou, qual seja, de transformar Marx no fundador de uma
teoria “nacional-alemã” visava, sobretudo, justificar, ideologicamente, o fato da burguesia e dos
oportunistas se apossarem dos lucros obtidos com a guerra. Ver, nesse sentido: LÊNIN, Vladimir
Ilitch. O Estado e a Revolução, p. 25-26.
61

desse grupo. Trata-se, ao contrário, de uma relação imanente e necessária, na


medida em que o marxismo vulgar se vale de noções e categorias que nada mais
são do que expressões da sociedade capitalista, sobretudo, orientadas com base no
ponto de vista do capitalista individual.105
Por conseguinte, quando se vale da metodologia da economia burguesa
vulgar, todas as consequências práticas, acima elencadas, decorrem da
compreensão, em última instância, do caráter orgânico do desenvolvimento da
sociedade capitalista: algo que remete ao “economicismo” e ao “fatalismo
econômico” (LUKÁCS, 2003, p. 122), mencionado, anteriormente, nas seções
prévias desta monografia. De acordo com o economicismo do materialismo vulgar, o
desenvolvimento da sociedade capitalista está de acordo com as “leis naturais”, quer
da natureza, quer da razão humana (LUKÁCS, 2003, p. 440). Daí decorrer,
necessariamente, do ponto de vista teórico vulgar, o caráter eterno e natural das
relações capitalistas.106
Na linha argumentativa das consequências práticas da postura
revisionista, sobretudo do ponto de vista da tática, concernente à luta do
proletariado, pode-se sustentar que tal postura acarreta uma série de implicações
importantes. Se o desenvolvimento do capitalismo é orgânico e necessário, de
acordo com leis da razão, a sua relação com a “violência” é ignorada, aquela que
está na gênese das relações capitalistas, ou seja, remete-se, aqui, à “acumulação
primitiva”107 e ao seu modo de funcionamento, via gerenciamento estatal. Ignora-se,
igualmente, a violência que é necessária para o proletariado derrubar as forças
burguesas e tomar o poder.108
Diante da abstração em relação à revolução proletária, cuja abstração se

105 Cf. LUKÁCS, Georg. Rosa Luxemburgo como marxista [1921]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 108.
106 Em sua reflexão, Rosa Luxemburgo recorda a argumentação bernsteiniana acerca do caráter
orgânico do desenvolvimento capitalista e a improbabilidade de seu desmoronamento. No seu
entender, Bernstein sustenta esse ponto de vista em virtude da capacidade de adaptação do
capitalismo, que se valeria do “sistema de crédito” – visando, em última instância, aumentar a
capacidade de extensão da produção e facilitar as trocas, o que, em tese, acabaria com os
“choques”, acima descritos – e das “associações patronais” - destinadas a pôr fim à anarquia da
produção, regulamentando à produção e impedindo o aparecimento de crises de “superprodução”.
Nesse tocante, ver: LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?, p. 29-33.
107 Ver, a esse respeito: MARX, Karl. O capital: O processo de produção do capital (Livro I). Tradução
de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, cap. 24 (“A assim chamada acumulação
primitiva”).
108 Lênin analisou, extensamente, em O Estado e a Revolução [1917], o caráter do Estado como uma
“força especial de repressão”, a saber, um instrumento a favor da exploração burguesa. Além
disso, ele investigou também, nessa mesma obra, a necessidade de uma revolução proletária
armada para a tomada do poder e, assim, superar a dominação burguesa.
62

conforma com a lógica revisionista, a forma de atuação primária dos oportunistas


torna-se a via legal, ou seja, aquela parlamentar e partidária. 109 Desse modo, os
métodos ilegais, como luta armada, greves, boicote ao Parlamento, e assim por
diante, são repudiados, vistos como um atraso infantil ao desenvolvimento orgânico
do capitalismo, de onde se poderia extrair benefícios para o proletariado. Esse modo
de proceder incorre no ponto de vista que considera o Estado, não como um “fator
de poder”,110 isto é, um instrumento em favor da burguesia.111
Ao contrário, o procedimento revisionista pensa o Estado como uma
instituição acima das massas, isto é, um objeto a que se disputa, e não um
adversário na luta, que deve ser derrubado, igualmente, por meios ilegais. 112 Por
causa dessa perspectiva argumentativa, conclui Lukács (2003, p. 471): “Mas, ao
conceber o Estado como objeto de combate e não como adversário na luta, os
últimos já se colocam espiritualmente no solo na burguesia e perdem metade da
batalha antes de iniciá-la”. Em um escrito de 1924, a saber, Lênin: um estudo sobre
a unidade de seu pensamento, Lukács aprofunda ainda mais essa questão:

O oportunismo de todas as tendências dominantes na Segunda


Internacional revela-se com maior nitidez no fato de que ninguém se ocupou
com o problema do Estado; nesse ponto, que é o ponto fundamental, não há
nenhuma diferença entre Kautsky e Bernstein. Todos, sem exceção,
assumiram simplesmente o Estado da sociedade burguesa. E, quando o
criticavam, sua única preocupação era combater formas de manifestações
ou exteriorização do Estado prejudiciais ao proletariado. O estado foi
considerado exclusivamente do ponto de vista dos interesses particulares
imediatos, e sua essência nunca foi investigada e valorizada do ponto de
vista da totalidade da classe proletária (LUKÁCS, 2012, p. 77-78).

Em virtude de todos esses elementos, os quais atestam, igualmente, a


capitulação, do ponto de vista teórico-metodológico, do marxismo crítico em relação
à burguesia, existiam ainda aqueles que se consternavam com as “excrescências”,
ou seja, com o “lado ruim” do capitalismo. Ante o “fatalismo econômico”, da teoria
revisionista, o modo de se contrapor às mazelas do capitalismo se deslocou para o
109 O que indica que a opção de Lukács, poucos anos após ter ingressado no Partido Comunista
Húngaro, de sustentar tão somente formas ilegais de ação, está relacionada ao seu
reconhecimento das deformações revisionistas. Todavia, a forma de ação privilegiada, indicada por
Lukács, revela, ainda, um limite de conhecimento, de sua parte, relativo à teoria marxista, bem
como ao procedimento dialético. Tal questão será abordada no próximo capítulo.
110 Ver nota 108.
111 Cf. LUKÁCS, Georg. A mudança de função do materialismo histórico [1919]. In: LUKÁCS, Georg
(Org.). História e Consciência de Classe, p. 471.
112 Somente na quarta seção do quarto capítulo serão abordadas as formas de ação do proletariado,
expondo, assim, as devidas mediações com os conceitos de totalidade, dialética e consciência de
classe.
63

âmbito abstrato e subjetivo, qual seja, aquele da ética,113 e ante as “leis eternas e
imutáveis”, as quais regem a ordem social existente, segundo a lógica reformista,
leis estranhas ao homem, cuja ação não pode influenciá-las, restou apenas deslocar
a ação humana para o seu interior. Desse modo, perdeu-se de vista, de uma vez por
todas, a finalidade de revolucionar o existente (LUKÁCS, 2003, p. 122).

3.4 LUKÁCS E A DEFESA DO “MARXISMO ORTODOXO” EM HISTÓRIA E


CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Em História e Consciência de classe, Lukács busca se opor à


vulgarização que acometeu o marxismo da Segunda Internacional, quer de um ponto
de vista teórico-metodológico, quer em virtude de suas consequências
metodológico-práticas. Em oposição à tentativa do marxismo, pretensamente
científico, o qual considerava a ortodoxia marxista como uma profissão de fé acrítica,
Lukács define-se como ortodoxo.114 Tal postura ortodoxa, no seu entender, justificar-
se-ia ainda que as novas investigações científicas apontassem para o erro de todas
as teses particulares das obras de Karl Marx. Isto não implica um reconhecimento
acrítico da teoria marxiana, pois, conforme argumenta Lukács: “Em matéria de
marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método”,115 a saber, a
113 Ainda que nem toda “ética” possa ser compreendida como abstrata e subjetiva, a crítica de Lukács
se torna verdadeira e pertinente quando os postulados éticos estão correlacionados com uma
postura fatalista no âmbito econômico.
114 Deve-se destacar que a noção de “ortodoxia”, no período dos marxismos, da Segunda
Internacional, era utilizada para descrever o núcleo da teoria kautskista-plekhanoviana. Ainda que
Kautsky tenha recusado a denominação de “ortodoxia” para descrever o seu marxismo, alertando
que o “método” do materialismo é o elemento permanente da doutrina marxiana, as suas obras
revelam o contrário. Do ponto de vista teórico-crítico, Kautsky foi responsável por uma síntese,
eclética, entre marxismo e darwinismo – resultando em um “materialismo evolucionista” –, ao
passo que “a dialética permaneceu sempre, para ele, algo abstruso e, em última instância,
secundário, até o final de sua obra”, como expõe Salvadori. Nesse sentido, a retomada, por parte
de Lukács, da noção de “ortodoxia”, implica sua ressignificação, bem como a efetivação do ideal
teórico-metodológico preconizado por Kautsky. Ver, nesse sentido: LÖWY, Michael. Para uma
sociologia dos intelectuais revolucionários: A evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 82;
SALVADORI, Massimo L. Kautsky entre ortodoxia e marxismo. In: HOBSBAWM, Eric (Org.).
História do marxismo: O marxismo na época da Segunda Internacional, p. 301-305; Ver, ainda:
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I, p. 298-299.
115 LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 64; Nesse sentido, Arato e Breines destacam que, em 1915, Lukács
elaborou uma resenha criticando o escrito Teoría e historia de la historiografia, de Benedetto
Croce. Tal crítica já consistia em um sinal de aproximação, da parte de Lukács, com a obra
marxiana, bem como uma compreensão, ainda que prévia e não articulada, da importância do
método dialético na obra de Marx. Com base em tal compreensão, Lukács, já em 1915, pôde
criticar a leitura que Croce realizou da obra marxiana, bem como Lukács criticou, igualmente, o
marxismo “metafísico” da Segunda Internacional, por se ater à “filosofia da história” de Marx, em
desfavor do seu método dialético. Ainda que, posteriormente, Lukács se distanciará da crítica de
64

dialética, em sua elaboração histórico-materialista, presente nas obras de Marx e


Engels.116
Como visto, o marxismo vulgar desprezou a dialética materialista, como
um procedimento a ser adotado na investigação científica. Por essa razão, Lukács
buscou, com História e consciência de classe, tornar o método dialético, de novo,
uma questão viva e atual, um objeto de discussão entre os marxistas. 117 Isso ocorre
na medida em que ele se vale da hipótese diretriz, segundo a qual “a doutrina e o
método de Marx trazem, enfim, o método correto para o conhecimento da sociedade
e da história”, cuja “meta mais eminente é o conhecimento do presente”.118 Este é o
motivo pelo qual Lukács, em sua investigação da dialética materialista, vê-se
impelido a retornar, constantemente, ao legado intelectual hegeliano, traçando as
suas devidas relações com a obra de Marx. 119 Nesse retorno, ressalta-se, não uma
relação exterior e meramente estilística que Marx, eventualmente, possa fazer da
terminologia de Hegel (LUKÁCS, 2003, p. 56), mas aquilo que o procedimento
dialético significa de fato para a obra marxiana.120
uma suposta “filosofia da história” metafísica imaginada em Marx, o valor e a importância atribuída
ao método dialético tornar-se-á cada vez mais presente e concreto na obra lukacsiana. Cf.
ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p.
96-97.
116 Sochor sustenta que a importância, atribuída por Lukács, ao método dialético marxiano, deve ser
compreendida como uma busca por uma “definição não ortodoxa de ortodoxia”. O conceito de
ortodoxia de Lukács, portanto, deve ser compreendido em um contexto no qual muito marxistas
elaboravam uma tese, cuja observância era o critério para saber se uma teoria era marxista ou
burguesa. O exemplo oferecido por Sochor é da tese de Lênin, segundo a qual verdadeiramente
marxista é aquele que reconhece que, da luta de classes, deve advir a “ditadura do proletariado”.
Lukács, para Sochor, buscou evitar o risco de formular um manual esquemático marxista,
“ortodoxo” no sentido da “rigidez” teórica, esquemática e não dialética. Nesse sentido, para
Sochor, a ortodoxia de Lukács é o “instrumento de defesa contra toda interpretação rigidamente
dogmática” do marxismo. Cf. SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos
20, p. 19-20; Cf. LÊNIN, Vladimir, O Estado e a Revolução, p. 54.
117 Em razão do escopo deste trabalho, não serão abordas outras obras do itinerário intelectual
lukacsiano, mas deve-se aqui sustentar que a busca de ressaltar, a importância da dialética
materialista, marcou a sua produção teórica posterior à História e Consciência de Classe.
118 LUKÁCS, Georg. Prefácio [1922]. In: LUKÁCS, Georg (Org.) História e Consciência de Classe,
p. 54.
119 O objetivo, adotado por Lukács, de priorizar o papel que a dialética materialista possui para o
itinerário intelectual marxiano, é o que atesta a elaboração filosófica conferida ao marxismo, em
História e Consciência de Classe. A esse respeito, ver nota 54.
120 Ao se retornar à obra O capital, o leitor de imediato se depara com as palavras de Marx acerca de
sua relação com Hegel. Tais palavras indicam, por um lado, que o desprezo à filosofia hegeliana e
à dialética é antigo e, por outro, atesta que a relação entre ambos os pensadores alemães não é
meramente exterior ou formal. Nesse sentido, sustenta Marx: “Critiquei o lado mistificador da
dialética hegeliana há quase trinta anos, quando ela ainda estava na moda. Mas quando eu
elaborava o primeiro volume de O capital, os enfadonhos, presunçosos e medíocres epígonos que
hoje pontificam na Alemanha culta acharam-se no direito de tratar Hegel como o bom Meses
Mendelssohn tratava Espinosa na época de Lessing: como um ‘cachorro morto’. Por essa razão,
declarei-me publicamente como discípulo daquele grande pensador e, no capítulo sobre a teoria
do valor, cheguei até a coquetear aqui e ali com seus modos peculiares de expressão”. Cf. MARX,
Karl. O capital: O processo de produção do capital (Livro I), p. 91.
65

Com efeito, Lukács se confronta com a abstração e fragmentação,


observada no material do qual se vale o marxismo científico, cujo tratamento e
relações ocorrem apenas de forma “reflexiva”, ou seja, exterior e não necessária.
Em contrapartida, ele insiste no procedimento dialético, por ser único procedimento
capaz de compor a “unidade concreta do todo” (LUKÁCS, 2003, p. 72-73). No que
concerne a essa unidade, Lukács inicia recompondo aquilo que foi desconsiderado
pelos revisionistas, em decorrência da limitação teórico-metodológica do marxismo
vulgar, anteriormente, apresentada.
Não obstante a pretensa cientificidade, reclamada pelo marxismo crítico,
Lukács sustenta, em contrapartida, a natureza não científica do modo de proceder
revisionista. Tal não-cientificidade é decorrente da incapacidade, desse método
vulgar, de “perceber o caráter histórico dos fatos que lhe servem de base e de levá-
lo em conta” (LUKÁCS, 2003, p. 73). Na defesa da “exatidão”, já contestada, o
método das ciências naturais se detém em um material fragmentado e
imediatamente dado, isto é, detém-se na consideração dos “fatos”. Todavia, já fora
demonstrado que assentar a ciência sobre tais fatos, sem destacar os elementos
imanentes, que os articulam com o desenvolvimento do capitalismo, termina se
configurando como um procedimento dogmático e acrítico.
Ao contrário, Lukács (2003, p. 74-75) busca destacar o “condicionamento
histórico” desses fatos, visando assim elucidar as tendências e articulações
inerentes a eles. Daí ele se valer de um “tratamento histórico-dialético”. Contra o
predomínio do método científico, no marxismo vulgar, da época, Lukács se vale do
“tratamento histórico-dialético” da realidade, o qual defende a “unidade concreta do
todo”, integrando, assim, os diferentes fatos da vida social, até então isolados, na
totalidade da sociedade no seu desenvolvimento histórico.
Daí o procedimento dialético reconduzi-los, conforme a exposição e
argumentação de Lukács, ao seu caráter histórico e unitário, às suas precisões
verdadeiramente científicas, a saber, separando a “existência real”, e a
“representação”, do “núcleo interior” e do “conceito” da realidade. Para tanto, Lukács
se vale da indicação teórico-metodológica presente nas obras de Marx, segundo a
qual a sua crítica da economia política “[…] seria supérflua se a manifestação e a
essência das coisas coincidissem imediatamente”. 121 Nesse sentido, para Lukács,
121 LUKÁCS, Georg. O que é marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.) História e
Consciência de Classe, p. 75. Esta afirmação de Marx, atesta, uma vez mais, o nexo imanente
com a filosofia hegeliana. Hegel sustenta que a filosofia detém uma especificidade e cientificidade
66

uma investigação verdadeiramente científica pressupõe a separação entre essência


e fenômeno.
Além de destacar os fenômenos de sua forma dada e imediata, por meio
de mediações, até o seu núcleo e essência, apresenta-se, ainda, na defesa de
Lukács do procedimento dialético, a necessidade de se compreender a “aparência
de fenômeno” como manifestação necessária, tendo em vista a realidade histórica
na qual ela se constitui. É essa, pois, a “dupla tarefa da relação dialética”, 122 a qual,
ao insistir no conhecimento da “totalidade concreta”, 123 possibilita a “reprodução
intelectual da realidade”. Nesse sentido, acrescenta Lukács:

Somente nesse contexto, que integra os diferentes fatos da vida social


(enquanto elementos do desenvolvimento histórico) numa totalidade, é que
o conhecimento dos fatos se torna possível enquanto conhecimento da
realidade. Esse conhecimento parte daquelas determinações simples,
outras, imediatas e naturais (no mundo capitalista) que acabamos de
caracterizar, para alcançar o conhecimento da totalidade concreta enquanto
reprodução intelectual da realidade. Essa totalidade concreta não é de
modo algum dada imediatamente ao pensamento (LUKÁCS, 2003, p. 76).

A distinção que Lukács estabelece entre “fatos” e “realidade” 124 só é

que lhe é própria, distinta, portanto, das demais ciências empíricas. A filosofia não pode, como as
ciências empíricas, “pressupor seus objetos como imediatamente dados pela representação; e
também como já admitido o método do conhecer – para começar e ir adiante”. Somente o
movimento, dialético e imanente, de saída da representação em direção ao “conhecer e conceber
pensantes” é o que possibilita tomar a filosofia cientificamente. Nesse sentido, ver: HEGE L, Georg
Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas [1830], §1, p. 39.
122 LUKÁCS, Georg. O que é marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.) História e
Consciência de Classe, p. 76; Sochor define da seguinte maneira essa dupla tarefa dialética:
“Trata-se de uma atividade que, por um lado é negativa, já que consiste na destruição do objeto do
conhecimento na sua condição de algo dado imediatamente; por outro lado, é positiva, na medida
em que opera uma construção e reconstrução intelectual do objeto em conceitos teóricos. A
destruição da pseudoconcretude fetichizada, da aparência fetichista, significa também a revelação
das relações sociais que se ocultam por trás dessa aparência”. Cf. SOCHOR, Lubomir. Lukács e
Korsch: a discussão filosófica dos anos 20, p. 26.
123 A categoria de “totalidade concreta”, tal como aparece em História e Consciência de Classe, é
descrita da seguinte maneira por Sochor: “[…] complexo dinâmico, estruturado, continuamente em
processo de criação e de desenvolvimento, de movimentos entre os quais se estabelece uma
tensão dialética; como complexo que é unidade de produção e reprodução, dos resultados e de
sua gênese; como complexo que tem um sentido e, portanto, é capaz de conferi-lo também aos
seus momentos e às suas partes”. Cf. SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a discussão filosófica
dos anos 20, p. 20.
124 Em 1924, Lukács volta a insistir, nesta questão, esclarecendo, melhor, a diferença entre “fato” e
“realidade”, ou “efetividade”. Segundo ele argumenta: “Para aqueles que não entendem – o que
Marx aprendeu com Hegel e que, em sua teoria, foi desenvolvido livre de qualquer mitologia e
idealismo – que o reconhecimento de um fato ou tendência como realmente existente está longe
de significar que tal fato ou tendência tenha de ser reconhecido como a efetividade que serve de
medida para nossa ação. Que o dever sagrado de todo marxista autêntico consiste em observar
os fatos com olhar impassível e desprovido de ilusões; mas que, para os marxistas autênticos, há
sempre algo que é mais efetivo e, por isso, mais importante do que os fatos ou tendência
singulares: a efetividade do processo geral, a totalidade do desenvolvimento social”. LUKÁCS,
Georg. Lênin: Um estudo sobre a unidade de seu pensamento, p. 38-39.
67

possível após o tratamento histórico-dialético da existência social, isto é, após a


articulação dos conceitos de totalidade e mediação.125 Valendo-se então de tal
compreensão unitária do processo histórico, torna-se possível, de acordo com a
exposição lukácsiana, conceber, com Marx, a “inteligibilidade da histórica”, mediante
a qual os diferentes eventos históricos, podem ser efetivamente compreendidos, se
articulados nessa “totalidade”.126 Sem tal determinação, qual seja, a da concepção
dialética da totalidade, não é possível compreender os principais elementos de um
acontecimento histórico, não se compreende, seja a sua função no processo
histórico, seja a sua finitude, quando historicamente constituído. Isso explica a
incompreensão do materialismo vulgar em relação aos temas clássicos do
marxismo, como a essência do Estado moderno e da luta de classes.
Segundo a exposição de Lukács, só mediante o tratamento histórico-
dialético dos fatos, traçando as mediações que conduzem até a realidade mesma,
que é possível uma compreensão do estatuto das “contradições”, como imanentes à
realidade. Tal orientação conduz, por fim, à compreensão da necessidade das
“crises” periódicas, que surgem no capitalismo, bem como as demais contradições
que marcam tal sociedade, e que impossibilitam a sua extensão ao infinito:
pressuposto por aqueles que veem, na sociedade atual, a manutenção de leis
eternas, imutáveis e racionais. Como esclarece Lukács, essa é a razão pela qual
Rosa Luxemburgo só pôde compreender a impossibilidade da acumulação
capitalista infinita, após tomar esse problema “em seu meio social, como um todo”
(LUKÁCS, 2003, p. 120).
Com base nos argumentos de Lukács, não se deve confundir essa
“totalidade concreta” com um todo indiferenciado ou uma simples uniformidade, em
que os elementos, os quais a compõem, tornar-se-iam indiscerníveis. Tal totalidade,
125 Segue-se, aqui, a interpretação de Mészáros, segundo a qual: “As categorias centrais da dialética
de Lukács são os conceitos intimamente inter-relacionados de ‘totalidade’ e ‘mediação’”.
MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács, p. 57.
126 Em Marx, a preponderância da categoria de “totalidade” torna-se, evidente, quando, na sua
Introdução à obra Para a crítica da economia política (1857), ele se contrapõem aos economistas
burgueses, os quais insistiam em tomar a “produção” de modo abstrato e não histórico, como se
eterno a fosse, ou, ao contrário, considerando exclusivamente a “distribuição” como objeto da
economia política. Em oposição aos economistas, Marx sustenta: “O resultado a que chegamos
não é que a produção, distribuição, o intercâmbio, o consumo são idênticos, mas que todos eles
são elementos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade”, cuja relação entre estes
diferentes momentos é recíproca, uma vez que se trata de um “todo orgânico”. Ver aqui: MARX,
Karl. Para a crítica da economia política, p.38-39. Em 1847, Marx já destacava o papel
fundamental do conceito de “totalidade”, do ponto de vista teórico-metodológico, quando ele
afirma: “As relações de produção de qualquer sociedade constituem um todo”. MARX, Karl.
Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon. Tradução de José Paulo
Netto. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 102.
68

ao contrário, constitui-se como uma “inter-relação dialética e dinâmica” em um “todo


igualmente dialético e dinâmico” (LUKÁCS, 2003, p. 84), cuja ação recíproca entre
os seus elementos é fundamental. Além disso, como assevera Lukács (2003, p. 84),
essa “ação recíproca” não se dá entre objetos imutáveis, como quando uma “bola de
bilhar” é atingida por outra, mudando assim a sua trajetória, mas conservando a sua
estrutura fundamental. Na verdade, a própria ação, em relação ao todo, condiciona a
“forma de objetividade do objeto”, cuja inteligibilidade apenas se dá mediante a
compreensão de sua função na totalidade determinada. Isso justifica a afirmação de
Marx, como recorda Lukács (2003, 84), que um negro é um negro, mas que apenas
em “certas condições” ele se torna um escravo.
Para se compreender a forma de objetividade deste objeto, ou seja, do
escravo, é preciso constituir uma totalidade concreta e nela inseri-lo, a fim de que a
gênese do objeto seja possível. 127 Nesse sentido, a realidade, por meio do
“tratamento histórico-dialético”, passaria a ser reconhecida como um “devir social”
(LUKÁCS, 2003, p. 85), em oposição às formas fetichistas de objetividade,
meramente “ilusórias”, engendradas no seio da sociedade capitalista, pois quando
se desconsidera as contradições e antagonismos, dessa sociedade, jamais poder-
se-ia conceber o seu caráter histórico, portanto, seu fim. Lukács sintetiza, assim,
essas considerações:

[…] as determinações reflexivas das formas fetichistas de objetividade têm


por função justamente fazer aparecer os fenômenos da sociedade
capitalista como essências supra-históricas. O conhecimento da verdadeira
objetividade de um fenômeno, o conhecimento de seu caráter histórico e o
conhecimento de sua função real na totalidade social formam, portanto, um
ato indiviso do conhecimento. Essa unidade é quebrada pelo método
pseudocientífico (LUKÁCS, 2003, p. 86).

Com a superação das ilusões, que as determinações reflexivas do


procedimento analítico das ciências naturais impõem, o tratamento dialético pode
vislumbrar as categorias econômicas da sociedade capitalista sem o véu de
eternidade que as recobre. Torna-se possível, então, compreender o que há de
oculto em tais categorias, ou seja, a sua essência mais íntima ou formas de
objetividade de relações entre os homens (LUKÁCS, 2003, p. 87). Tais relações que,
sob a forma ilusória anterior, aparecem como relações entre objetos e entre coisas.

127 Caso contrário, poder-se-á afirmar, como alguns o fizeram, que a escravidão – ou a “pobreza”,
contemporaneamente – é uma determinação natural da sociedade humana.
69

Em resumo, de acordo com Lukács, o conhecimento da realidade social possibilita


compreender que as leis internas da sociedade estão em relação dialética e
dinâmica, inseridas em um todo social, cuja origem se encontra nas relações
humanas.
Conforme explicita Lukács, é justamente, nessa compreensão da
realidade relativa ao caráter de unidade do seu processo histórico, que Marx tece
críticas ao pensamento de Hegel, em virtude da retomada da dualidade e da
abstração, tão combatidas pela filosofia especulativa em relação às filosofias do
entendimento, ou seja, as de Kant e de Fichte. 128 Para Marx, argumenta Lukács
(2003, p. 90), Hegel terminaria separando pensamento e ser, método e história, na
medida em que elabora um conhecimento sobre uma matéria, e de forma exterior, a
saber, em relação à história humana. Daí a fabricação da história, em Hegel, só
existiria na consciência do filósofo, apenas post festum, como conclui Marx.129
Nesse sentido, o procedimento dialético hegeliano terminaria
problemático, na medida em que não possibilitaria um conhecimento adequado da
realidade, em razão do dualismo nele presente. Marx, então, com a sua nova
elaboração da dialética, agora em um sentido histórico-materialista, transformaria
todos os fenômenos da sociedade e do homem socializado em “problemas
históricos” (LUKÁCS, 2003, p. 91). Nesse procedimento seriam eliminados qualquer
resquício de “valores eternos”, ou seja, a-históricos, que ainda existiam na filosofia
hegeliana, resquícios, estes, oriundos da filosofia do entendimento. Daí Lukács
(2003, p. 91) acrescentar: “a crítica de Marx a Hegel é, portanto, a sequência e a
continuação direta da crítica que Hegel exerceu contra Kant e Fichte”.
Lukács (2003, p. 92) defende, ainda, que o ponto de ruptura entre Hegel
e Marx reside na realidade mesma, a saber, na incapacidade de Hegel compreender
as “forças verdadeiramente motrizes da história”. O que pode ser explicado, por um
lado, na manutenção, por parte da filosofia hegeliana, das “formas de pensamento
128 Ver nota 77.
129 De acordo com Marx: “[…] em Hegel vemos que o espírito absoluto da História tem na massa o
seu material, e a sua expressão adequada tão só na filosofia. Enquanto isso, o filósofo apenas
aparece como o órgão no qual o espírito absoluto, que faz a História, atinge a consciência
posteriormente, depois de passar pelo movimento. A participação do filósofo na História se reduz a
essa consciência posterior, pois o espírito executa o movimento real inconsciência. O filósofo vem,
portanto, post festum. […] o espírito absoluto, na condição de espírito absoluto, apenas faz a
História em aparência. Uma vez que o espírito absoluto, com efeito, apenas atinge a consciência
no filósofo post festum, na condição de espírito criador universal, sua fabricação da História existe
apenas consciência, na opinião e na representação do filósofo, apenas na imaginação
especulativa”. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A sagrada família: ou A crítica da Crítica crítica
contra Bruno Bauer e consortes. Tradução de Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 103.
70

platônico-kantiana” (LUKÁCS, 2003, p. 91), as quais insistiriam na dualidade entre


pensamento e ser; por outro, no fato de que, à época de Hegel, tais forças motrizes
não estavam suficientemente claras para o filósofo especulativo. 130 Em virtude dessa
incompreensão, Hegel atribui, então, aos povos e à consciência deles, o verdadeiro
impulsionador do desenvolvimento histórico. Daí Lukács concluir:

Ainda que tenha sido o verdadeiro descobridor do significado da totalidade


concreta, ainda que seu pensamento tenha tido sempre por fim superar
todas as abstrações, a matéria permaneceu para ele (e nisso é bastante
platônica) manchada pela “nódoa da determinação”. E essas tendências
contraditórias e conflitantes não puderam ser esclarecidas em seu sistema.
Com frequência, elas são justapostas sem mediação, apresentam-se
contraditoriamente e não se equilibram; o equilíbrio final (aparente) que elas
encontram no sistema devia, por conseguinte, estar mais voltado para o
passado que para o futuro (LUKÁCS, 2003, p. 92-93).

Ademais, por causa das tendências contraditórias, justapostas sem


mediação, como ocorre na filosofia de Hegel, este último foi capaz apenas de
conceber “forças motrizes transcendentes” (LUKÁCS, 2003, p. 93) para o processo
histórico, ao passo que Marx, valendo-se do tratamento histórico-dialético da
realidade, pode se desfazer de toda mitologia e “mistério especulativo” 131 anterior,
compreendendo, por fim, que a força determinante da história é a produção e
reprodução da vida real e material dos homens. 132
Da compreensão de Marx, concernente à força motriz real do
desenvolvimento histórico, pode-se inferir duas importantes consequência. Por um
lado, Marx redireciona os seus estudos para uma “Crítica da economia política”; 133
por outro, a orientação hegeliana não é afastada, por completo, do horizonte
filosófico marxiano, mas, ao contrário, é reelaborada em um sentido histórico-
materialista. No entender de Lukács, isso permite dizer:

130 No próximo capítulo, será abordado o fato dessas forças se tornarem claras para o investigador,
depende do desenvolvimento do capitalismo.
131 Ver, a esse respeito: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A sagrada família: ou A crítica da Crítica
crítica contra Bruno Bauer e consortes, cap. V, 2. “O mistério da construção especulativa”, p. 72.
132 Em 1858, refletindo sobre o seu itinerário intelectual, Marx sustentava: “[…] na produção da
própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua
vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. […] O modo de produção da vida material
condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual”. Cf. MARX, Karl. Prefácio
[1958]. In: MARX, Karl (Org.). Para a crítica da economia política, p. 52.
133 Ver nota 40.
71

Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que


distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto
de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o domínio universal e
determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que
Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira origina no fundamento de
uma ciência inteiramente nova.134

Nesse sentido, a ciência desenvolvida por Marx é revolucionária, não


somente por se contrapor à sociedade burguesa conteúdos revolucionários, quais
sejam, a revolução proletária, o fim do Estado burguês e assim por diante. A ciência
marxiana é revolucionária em razão da essência revolucionária de seu método. Daí
Lukács (2003, p. 106) defender: O domínio da categoria da totalidade é o portador
do princípio revolucionário na ciência. Para Lukács (2003, p. 106), aquilo que
justifica que a dialética hegeliana, em Marx, torne-se uma “álgebra da revolução”,
não é a inversão materialista marxiana. Na realidade, este princípio revolucionário é
efetivado em virtude da manutenção da essência da dialética, a saber, a categoria
da totalidade, sem as deformações mitológicas da filosofia do entendimento, que,
como visto, ainda operava no pensamento hegeliano.
Portanto, ao salvaguardar a essência do procedimento dialético, isto é, a
unidade entre pensamento e ser, filosofia da história e história da filosofia, Marx
pôde conceber, como objeto da dialética, o “conhecimento da sociedade como
totalidade” (LUKÁCS, 2003, p. 106). Trata-se assim de um conhecimento
concretizável, não por meio de ciências parciais e abstratas, a exemplo do Direito e
da Economia, mas via uma “ciência histórico-dialética”, a qual supera tais abstrações
e tem por objeto o todo social (LUKÁCS, 2003, p. 107).
Pode-se aqui sustentar, com base em História e consciência de classe,
que são esses elementos, reconfigurados na teoria marxiana, que permitem a
Lukács (2003, p. 64) sustentar: “A dialética materialista é uma dialética
revolucionária”. Desse modo, esse procedimento possibilitaria articular, de forma
concreta, teoria e práxis: algo que implica a necessidade de investigar as

134 LUKÁCS, Georg. Rosa Luxemburgo como marxista [1921]. In: LUKÁCS, Georg (Org.) História e
Consciência de Classe, p. 105. Lênin, já em 1902, contrariava à perspectiva que se alastrava
pela Rússia de até então, isto é, a perspectiva dos defensores da “liberdade de crítica” relativa aos
fundamentos do marxismo, tendência oportunista no interior da social-democracia russa que
terminava justificando posições controversas e deletérias, para a prática revolucionária, como a
negação do fundamento científico do marxismo, do ponto de vista materialista da história, negando
a miséria presente, a proletarização crescente e o agravamento das contradições capitalistas, em
resumo, negando a necessidade revolucionária em virtude de meras “reformas sociais”. Contra tal
ecletismo e vulgarização do marxismo, Lênin é imperativo: “Sem teoria revolucionária, não há
movimento revolucionário”. Ver, nesse sentido: LÊNIN, Vladimir. Que fazer?. São Paulo: Editora
Hucitec, 1978, p. 18.
72

determinidades que fazem a teoria de Marx ser o “veículo da revolução”. Para isso, é
fundamental destacar a relação entre consciência e realidade, ou seja, como
explicita Marx, na Introdução da Crítica à filosofia do direito de Hegel, escrita em
1843: é a realidade que deve tender para o pensamento, e não o contrário, como se
julgou até então.135
Quanto à articulação entre teoria e práxis, Lukács (2003, p. 65) esclarece,
na sua obra de 1923, que o papel fundamental, desempenhado pela categoria de
“conscientização”, a qual deve ser compreendida como um passo decisivo dado pelo
“processo histórico”, não é, portanto, um procedimento arbitrário e contingente,
circunscrito ao voluntarismo dos sujeitos implicados em tais questões. Daí a
necessidade de se compreender o caráter limitado e ingênuo do movimento dos
trabalhadores, que quebravam as máquinas ao se rebelarem contra as condições as
quais eles eram submetidos, sem, todavia, compreenderem a totalidade do processo
econômico, e sem se rebelarem com as reais causas de sua miséria. 136 Esse limite
não deve ser atribuído aos sujeitos implicados, nesse processo, uma vez que diz
respeito à incipiência do desenvolvimento histórico no qual eles estavam implicados.
Para Lukács, esse processo histórico, cujo passo fundamental é a
conscientização, visa a seu próprio objetivo, à sua “meta final”, a qual não prescinde
da vontade humana, porém, não é fruto do simples “livre-arbítrio” ou da “invenção
intelectual”. Portanto, não implica que essa “meta”, a qual se encaminha o processo
histórico e que conta com a atuação revolucionária de sujeitos historicamente
constituídos, cuja relação com a realidade, o objeto a ser transformado, não é
meramente epistemológica. Não se trata, portanto, de “ideais” ou mesmo de uma
ética subjetiva marcada pela vontade individual. Daí a necessidade de se investigar
as determinações históricas, dessa atuação não-arbitrária dos sujeitos
revolucionários, em direção à “meta final” historicamente posta.
De acordo com a argumentação de Lukács, na investigação das
determinações históricas, é preciso considerar, ainda, uma determinação de ordem

135 Cf. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e
Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 152.
136 Posteriormente, nesse mesmo ensaio, Lukács retorna a Marx para sustentar que é somente em
certas condições que uma máquina de tecer algodão, por exemplo, torna-se capital. Faltou a tal
movimento dos trabalhadores a compreensão da gênese das formas de objetividade, na
sociedade capitalista, a qual só é possível se situarem os objetos na função que eles
desempenham na totalidade determinada da sociedade, compreendida como processo. Ver aqui:
LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Gerog (Org.) História e
Consciência de Classe, p. 85.
73

teórico-metodológica.137 Trata-se, aqui, da essência do procedimento dialético, a


saber, o ponto de vista da totalidade, adotado na investigação luckasiana, uma vez
que não determina apenas o objeto em questão, mas determina, também, o sujeito
do conhecimento. Nesse sentido, a superação da fragmentação do material, tratado
pela ciência burguesa, dá-se na medida em que a totalidade é determinada por um
sujeito que é, em si mesmo, uma totalidade, isto é, pelas classes sociais (LUKÁCS,
2003, p. 107).
A despeito disso, a classe burguesa, como visto, não expressa o ponto de
vista da totalidade. Se, por um lado, ela não tem interesse prático em um ponto de
vista que é, em sua essência revolucionário;138 por outro, a burguesia, em virtude de
seu procedimento teórico adotado, aquele das ciências naturais, só pode
compreender a realidade por meio das suas supostas leis eternas e naturais, isto é,
com base em um ponto de vista meramente contemplativo, o qual jamais converte-
se em prático-revolucionário.139 Esse papel do conhecimento cabe ao proletariado,
pois, como esclarece Lukács:

Isso só foi possível porque, para o proletariado, conhecer com a máxima


clareza sua situação de classe é uma necessidade vital, uma questão de
vida ou morte; porque sua situação de classe só é compreensível quando
toda a sociedade pode ser compreendida; porque seus atos têm essa
compreensão como condição prévia, inelutável. A unidade da teoria e da
práxis é, portanto, apenas a outra face da situação social e histórica do
proletariado. Do ponto de vista do proletariado, o autoconhecimento
coincide com o conhecimento da totalidade; ele é, ao mesmo tempo, sujeito
e objeto do seu próprio conhecimento (LUKÁCS, 2003, p. 97).

Em função disso, Lukács sustenta que o ponto de vista da totalidade é um


produto histórico em um duplo sentido. Isso, antes de qualquer coisa, por causa da
evolução econômica da sociedade, mediante a qual nasce o proletariado; em
segundo, pelo fato do desenvolvimento histórico do proletariado assumir feições
cada vez mais complexas e maduras, igualmente, do ponto de vista da sua
consciência.140 No seu entender, o proletariado maduro se vale do ponto de vista da

137 Como, agora, já se sabe, pensamento e ser não são universos unilaterais ou completamente
distintos um do outro. Pelo menos isso não ocorre no tratamento dialético.
138 A ausência de interesse prático, da parte da burguesia, por um ponto de vista revolucionário só
pode ser compreendido na medida em que esta mesma burguesia assumiu o poder. Na condição
de classe dominante, portante, a burguesia torna-se uma classe, essencialmente, conservadora.
Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon, p. 111.
139 Somente no próximo capítulo, quando será apresentado a relação entre método de pensamento,
consciência de classe e ser social de uma classe, tal argumento tornar-se-á mais claro.
140 Ver nota 39.
74

totalidade, para compreender os condicionamentos históricos, a essência e as


tendências que sustentam os fatos sociais (LUKÁCS, 2003, p. 413).
Em posse do materialismo histórico, o proletariado pode, enfim, conhecer
a totalidade da sociedade como um processo histórico e, assim, ultrapassar os
limites do ponto de vista do marxismo vulgar, o qual é, em última instância, o da
burguesia. Nesse sentido, destaca Lukács (2003, p. 413), o materialismo histórico
torna-se uma “arma espiritual” importante, para o proletariado, sobretudo, em sua
relação com as estruturas sociais burguesas, ou seja, Estado, Direito, Fábricas, e
assim por diante, bem como em relação as táticas de luta (LUKÁCS, 2003, p. 421).
Pode-se, por fim, articular o movimento real, as lutas cotidianas da classe
proletária, com a “meta final” desta luta, isto é, o fim da sociedade capitalista,
traçando as devidas mediações entre tais polos. Daí se poder sustentar, com
Lukács, que a meta final da luta proletária não é um objetivo utópico, um dever ou
uma ideia que conduz as lutas. Ao contrário, explicita Lukács (2003, p. 101): “A meta
final é, antes essa relação com a totalidade (com a totalidade da sociedade
considerada como processo), pela qual cada momento da luta adquire seu sentido
revolucionário”. Por meio do tratamento histórico-materialista, torna-se claro as
“tendências”141 contraditórias, e historicamente imanentes, presentes no cerne do
cotidiano, as quais conduzem à totalidade, a saber, até a meta final do proletariado.

141 Cf. LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 103.
75

4 HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE E SEU TEMPO: PRINCIPAIS


CATEGORIAS E CONCEITOS FORMULADOS

O capítulo anterior teve o seu término com uma exposição relativa à


compreensão lukacsiana do procedimento histórico-dialético, bem como abordou
esse procedimento reportando-se às suas duas noções centrais, a saber: Totalidade
e mediação. O presente capítulo busca assim completar a exposição anterior,
destacando as categorias centrais, as quais constituem a especificidade teórica da
obra lukacsiana História e Consciência de Classe: fonte primordial deste estudo.
Pode-se aqui sustentar que, nesse momento, a exposição lukacsiana adquire maior
concretude, na medida em que relaciona os argumentos apresentados, inicialmente,
ou seja, aqueles relativos aos diferentes métodos de compreensão da realidade,
quer aquele da burguesia, quer aquele concernente ao proletariado, com o
tratamento relativo ao procedimento teórico, histórico-dialético, e com as questões
concernentes à totalidade da sociedade, das classes sociais e camadas que as
compõem. Daí se destacar categorias lukacsianas como reificação, falsa
consciência, ideologia, crise ideológica do proletariado, sujeito-objeto idêntico,
dentre outras, pois necessárias à compreensão da função do proletariado nos
processos revolucionários, como, já, antecipado no capítulo precedente.

4.1 A REIFICAÇÃO NA SOCIEDADE CAPITALISTA: A INTERPRETAÇÃO


LUKACSIANA

No momento anterior desta exposição, buscou-se destacar o fundamento


histórico dos “fatos puros”,142 reivindicados, quer pela reflexão marxista “vulgar”,
quer pelas ciências “monográficas” 143 burguesas. Em oposição a esse modo de
proceder, Lukács explicitou a importância de conceitos como totalidade e mediação,
no tratamento histórico e dialético de certa realidade, por se tratar de algo
fundamental para a retomada da ideia de revolução proletária e superação do modo
de produção capitalista. Todavia, um tratamento correto da problemática lukacsiana
não se resume a uma oposição teorética entre procedimentos teórico-metodológicos
distintos, quais sejam, aqueles da burguesia em oposição ao procedimento histórico-
142 Ver, a esse respeito, ver notas 41, 43 e 44.
143 Sobre o termo “monográfico”, com relação às ciências burguesas: Ver nota 36.
76

dialético marxista. De igual modo, a questão de Lukács não se esgota no fato de ele
destacar certos conceitos, pois a reflexão “vulgar” se valeria, igualmente, de outros
conceitos.
Nesse sentido, pode-se sustentar que tanto para Lukács quanto para
Marx, as categorias exprimem “formas de modos de ser, determinações de
existência”.144 Isso explica a razão do estudo da sociedade capitalista, onde se
gestaram certos fenômenos sociais e culturais, realizados em História e Consciência
de Classe. Ademais é recorrente, nessa obra, Lukács definir o materialismo histórico
em sua forma clássica, e não vulgarizada, concebendo-o como o autoconhecimento
da sociedade capitalista.145 Daí, na abordagem de Lukács dos problemas
concernentes à sociedade capitalista e dos impasses relativos ao desenvolvimento
do proletariado revolucionário, a categoria de reificação146 se apresentar como
central nessa obra.147
Nesse sentido, pode-se dizer que, para Lukács (2003, p. 194), “[…] não
há problema nessa etapa de desenvolvimento da humanidade que, em última
144 Cf. MARX, Karl. Para a crítica da economia política, p. 44. Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. O que é
o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.) História e Consciência de Classe, p.
69.
145 Cf. LUKÁCS, Georg. A mudança de função do materialismo histórico [1919]. In: LUKÁCS, Georg
(Org.). História e Consciência de Classe, p. 422.
146 Segundo Arato e Breines, os conceitos de “reificação” e “consciência de classe” são centrais em
História e Consciência de Classe, pois remetem aos problemas concernentes à relação entre
liberdade e necessidade: relação esta, de acordo com esses comentadores, que é a força diretriz
nesse escrito de Lukács. Ademais, eles defendem, ainda: “Lukács introduce, […], el concepto de
cosificación para dar cuenta de la ausencia de conciencia de clase em el proletariado em todo el
largo período del desarrollo y de la inminente crisis del capitalismo [Lukács introduz o conceito de
reificação para dar conta da ausência de consciência de classe no proletariado em todo o longo
período de desenvolvimento e da crise iminente do capitalismo]”. Daí no ensaio central de História
e consciência de classe, intitulado “A reificação e a consciência do proletariado”, Lukács inicia a
exposição da forma histórica e concreta da “reificação”, nas sociedades capitalistas modernas,
para explicar certos impasses na libertação do proletariado, que, como visto em seções anteriores,
é um problema, igualmente, metodológico que lhe angustiava já antes de sua adesão ao Partido
Comunista, pois remetia àquilo que Marx descrevera como uma distinção e inversão entre “modo
de exposição” e “modo de investigação”. Ainda que Lukács inicie a sua investigação pelos
impasses objetivos e subjetivos à libertação do proletariado, em sua exposição ele se reporta, em
primeiro lugar, ao fenômeno histórico da “reificação”, para, em seguida, avaliar as suas
consequências. Este detalhe metodológico e de exposição pode ocasionar certa confusão nos
leitores de História e Consciência de Classe. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven
Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 169-170. Ver, ainda: MARX, Karl. O capital:
O processo de produção do capital (Livro I), p. 90.
147 Lowy destaca a especificidade e a novidade do conceito de “reificação”, exposto em História e
Consciência de Classe, em oposição ao modo que o próprio Lukács, e certa tradição sociológica
alemã, abordou tal conceito anteriormente. Lowy assinala que: “A diferença é que, para Lukács,
em 1923, a reificação é analisada em termos rigorosamente marxistas, como um aspecto do modo
de produção capitalista, e não como um ‘destino trágico’ da cultura”. Somente no último capítulo
será investigado se, de fato, o tratamento realizado por Lukács, relativo a esse conceito, é
rigorosamente marxista. Todavia, desde já, destaca-se a novidade expressa por Lukács, em seu
tratamento. Cf. LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A
evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 200.
77

análise, não se reporte a essa questão e cuja solução não tenha de ser buscada na
solução do enigma da estrutura da mercadoria”. É, com respeito a essa estrutura da
mercadoria, que o problema da reificação inicia a se delinear, na medida em que a
essência da estrutura da mercadoria consiste no fato de uma relação entre pessoas
se apresentar como uma coisa ou uma relação entre coisas acabadas e imediatas,
com legalidade própria e fechada. Desse modo, oculta-se a essência verdadeira e
não reificada dessa relação mercantil, a saber, de se tratar de relação entre os
homens. Lukács, aqui, vale-se do conceito marxiano de “fetichismo da
mercadoria”,148 exposto por Marx da seguinte maneira:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente,


no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio
trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como
propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete
também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma
relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por
meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias,
coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais (MARX, 2013, p. 147).

Com base na elaboração marxiana do conceito de fetichismo, Lukács


identificou e explicitou as consequências da generalização da estrutura da
mercadoria na sociedade capitalista. Ainda segundo Lukács (2003, p. 193), a
estrutura mercantil contém “o protótipo de todas as formas de objetividade e de
todas as formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa”,
apresentando-se em todas as suas manifestações vitais. Mediante a conformação
subjetiva, nas sociedades capitalista, em relação à estrutura mercantil, Lukács
(2003, p. 194) pôde avaliar os problemas ideológicos e culturais de sua época.
Nesse sentido, o autor compreende que “a questão do fetichismo da
mercadoria é específica da nossa época, do capitalismo moderno” (LUKÁCS, 2003,
p. 194). Daí ele buscar se contrapor à possibilidade de se generalizar certas
consequências do modo de produção capitalista para outros períodos históricos, nos
quais predominavam outras relações de produção. Não obstante a existência, em
certas sociedades primitivas, de relações mercantis, Lukács (2003, p. 195) destaca

148 Segundo Sochor, a retomada que Lukács opera com o conceito marxiano de “fetichismo da
mercadoria” é fundamental, uma vez que a maioria dos economistas soviéticos, da Segunda
Internacional, consideravam o momento da obra O Capital, relativo ao “fetichismo”, como uma
“digressão literária não essencial, um típico exemplo do modo de flertar de Marx com o estilo de
Hegel”. Lukács, por meio da retomada desse conceito marxiano, esclarece a centralidade da
análise marxiana do “fetichismo” no interior da estrutura conceitual de O Capital. Ver, a esse
respeito: SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20, p. 46-47.
78

que somente no capitalismo, ou seja, na sociedade burguesa, as consequências


estruturais mercantis “são capazes de influenciar toda a vida exterior e interior da
sociedade”.
No seu entender, não se trata de uma diferença meramente quantitativa,
com respeito às trocas mercantis, mas de diferenças qualitativas relativas à
sociedade burguesa, tornando-a polo, por excelência, dos processos reificadores.
Tais diferenças qualitativas podem ser identificadas, por um lado, com a ação
desagregadora que a estrutura da mercadoria proporciona para as sociedades
antigas, reestruturando-as no sentido das modernas formas sociais. Por outro, a
alteração qualitativa se apresenta, sobretudo, com a universalização da forma
mercantil, de modo que ela possa constituir a sociedade, remodelando e
conformando todas as suas manifestações vitais à relação mercantil. Daí Lukács
(2003, p. 197) argumentar: “E esse desenvolvimento da forma mercantil em forma
de dominação efetiva sobre o conjunto da sociedade surgiu somente com o
capitalismo moderno”.
Quanto às sociedades pré-capitalistas, sustenta Lukács, a generalização
da forma mercantil, bem como a conformação que ela opera de toda a sociedade,
não ocorre por características específicas desses períodos históricos. No seu
entender, em tais sociedades não há propriamente uma unidade coerente do ponto
de vista econômico, ou seja, “os elementos econômicos se unem inextricavelmente
aos elementos políticos, religiosos etc” (LUKÁCS, 2003, p. 149). Desse modo, o
papel da circulação das mercadorias desempenha pouco ou, até mesmo, nenhuma
função propriamente econômica nessas sociedades. O que explica, por sua vez, a
separação que se observa, nas sociedades pré-capitalistas, entre os aspectos
singulares do processo econômico (LUKÁCS, 2003, p. 425).
Em contrapartida, nas sociedades burguesas, com a generalização da
estrutura mercantil, observa-se a reificação operando em toda a sua potencialidade.
Por um lado, ao se tomar os caracteres sociais da produção como caracteres
naturais das coisas, como a passagem acima indicada de Marx esclarece, o homem
é confrontado com o seu próprio trabalho como algo que lhe é exterior, quer no
aspecto objetivo, quer no aspecto subjetivo. Isto ocorre em razão de que, no sentido
objetivo, os produtos do trabalho humano aparecem, de acordo com Lukács, como
um “mundo de coisas acabadas e de relações entre coisas”, cujas leis se
apresentam para os homens como intransponíveis e independentes. Por outro, no
79

subjetivo, a própria atividade humana se lhe apresenta como uma mercadoria, torna-
se objetiva em relação ao trabalhador. Daí nada mais restar ao trabalhador senão
vender a sua força de trabalho, que lhe é “estranha”. 149
Quanto à determinação objetiva que se verifica, mediante a
universalidade da forma mercantil, pode-se afirmar com Lukács (2003, p. 200) que
os objetos se tornam “formalmente iguais”, estabelecendo a condição da
permutabilidade geral e a igualdade formal, ainda que de objetos qualitativamente
distintos.150 Subjetivamente, verifica-se, também, que a igualdade formal conduz o
processo efetivo de produção de mercadorias, na qual o trabalhador se submete, no
processo laborativo, a uma “divisão do trabalho”. Disso resulta, conforme Lukács
(2003, p. 201): “[…] o processo de trabalho é fragmentado, numa proporção
continuamente crescente, em operações parciais abstratamente racionais, o que
interrompe a relação do trabalhador com o produto acabado e reduz seu trabalho a
uma função especial que se repete mecanicamente”.
Para o autor, o princípio que conduz todo esse processo da reificação,
sobretudo em suas consequências imediatas para o trabalhador, é “o princípio da
racionalização baseada no cálculo, na possibilidade do cálculo”.151 Nesse sentido,
observa Lukács (2003, p. 202), rompe-se a “unidade orgânica irracional”,

149 Deve-se destacar que a primeira obra de Marx, que trata de modo sistemático a temática do
“estranhamento”, a saber, os Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, ainda não havia sido
publicada, logo Lukács não teve acesso a ela, ao abordar o fenômeno da “reificação”. Ademais,
pode-se afirmar que ele destaca o seu tratamento, a essa problemática, como um dos méritos de
sua obra de 1923, pois “[…] pela primeira vez desde Marx, foi tratado como questão central da
crítica revolucionária do capitalismo, e cujas raízes histórico-teóricas e metodológicas remontam à
dialética de Hegel”. Cf. LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 23. Já em relação à diferença entre os conceitos de “estranhamento” e
“alienação”, na obra de Marx, ver: LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II.
Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013, cap.
4 (“O estranhamento”).
150 Valendo-se da análise dos diferentes modos de produção, como momentos históricos distintos,
Marx argumenta que, somente no capitalismo, o valor venal, ou seja, o “valor de troca”, se elevou
à última potência, de modo que se observa uma “corrupção geral” e uma “venalidade universal”
dos bens. Assim, argumenta Marx, o que, em épocas passadas, era inalienável – “virtude, amor,
opinião, ciência, consciência etc.” –, no capitalismo, tornou-se objeto de troca, portanto,
permutáveis. Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr.
Proudhon, p. 47.
151 Ibidem, p. 202. Segundo Arato e Breines, certa originalidade do conceito de “reificação”, em
Lukács, está no fato de ele se reportar à teoria da racionalidade ocidental, em Weber, buscando
assim estabelecer um diálogo entre essa reflexão weberiana com algumas categorias centrais da
crítica da economia política em Marx. Para Arato e Breines: “[…] Lukács funde la categoría de
Marx del trabajo abstracto com la categoría de Weber de la racionalidad formal que se apoya em
la cuantificación y la posibilidad de ser calculada [Lukács funde a categoria de Marx do trabalho
abstrato com a categoria de Weber da racionalidade formal que se apoia na quantificação e na
possibilidade de ser calculada]”. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los
orígenes del marxismo occidental, p. 183; p. 186.
80

qualitativamente fundada, tanto pelo produto, como “valor de uso”, quanto pelas
experiências concretas do trabalho, nas quais se unem os diferentes autores do
processo de produção entre si, bem como à certa tradição laborativa de produção de
determinados produtos, como tributários dessa tradição. 152 De acordo com Lukács:

Só se pode alcançar a racionalização, no sentido de uma previsão e de um


cálculo cada vez mais exatos de todos os resultados a atingir, pela análise
mais precisa de cada conjunto complexo em seus elementos, pelo estudo
de leis parciais específicas de sua produção. Portanto, a racionalização
deve, por um lado, romper com a unidade orgânica de produtos acabados,
baseados na ligação tradicional de experiência concretas do trabalho: a
racionalização é impensável sem a especialização. O produto que forma
uma unidade, como objeto do processo de trabalho, desaparece. O
processo torna-se a reunião objetiva de sistemas parciais racionalizados,
cuja unidade é determinada pelo puro cálculo, que por sua vez devem
aparecer arbitrariamente ligados uns aos outros. […] A unidade do produto
como mercadoria não coincide mais com sua unidade como valor de uso. 153

Logo, a contribuição das ciências empírico-analíticas, como já destacado,


de forma ainda parcial, no capítulo anterior, 154 é fundamental para o estudo das leis
abstratas e formulação dos sistemas parciais racionalizados. 155 Ademais,
acompanhando a relação entre objetividade e subjetividade, indicada até aqui por
Lukács (2003, p. 203), possibilita sustentar que a implicação subjetiva desse
processo moderno de racionalização pode ser compreendida na “fragmentação do
sujeito”: fragmentação com relação as propriedades e particularidades dos
trabalhadores, as quais, para o moderno processo produtivo, aparecem como
152 Exemplo da tradição que une os diferentes trabalhadores entre si pode ser verificado no saber
laborativo transmitido de pais a filhos, ou mesmo entre os “mestres” e os artesões aprendizes.
153 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 202-203. No que concerne ainda à relação entre a possibilidade do
cálculo e o capitalismo racionalizado, Weber defende o seguinte: “A moderna organização racional
da empresa capitalista não teria sido viável sem a presença de dois importantes fatores no seu
desenvolvimento: a separação da empresa do trabalho doméstico, que domina por completo a
vida econômica moderna, e, associada a esta, a criação de uma contabilidade racional”. Em razão
do escopo deste trabalho monográfico, não se investigará a totalidade dos argumentos de Weber
relativos ao capitalismo moderno. Todavia, no próximo capítulo, dedicar-se-á um momento para
avaliar se, do ponto de vista da “dialética marxista”, do qual parte as reflexões presentes de
Lukács, o diálogo com Weber contribuiu ou prejudicou a dimensão dialética de História e
Consciência de Classe. Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2. ed.
São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, p. 11.
154 Ver nota 38.
155 Sobre a relação entre “ciência” e “capitalismo ocidental moderno”, Weber aduz o seguinte: “A
forma peculiar do capitalismo moderno foi, à primeira vista, muito influenciada pelo
desenvolvimento das possibilidades técnicas. Sua racionalidade depende atualmente do cálculo
de seus fatores técnicos mais importantes. Isso implica principalmente uma dependência das
peculiaridades da ciência moderna, em especial das ciências naturais com base na matemática e
no experimento exato e racional. O desenvolvimento de tais ciências e das técnicas baseadas
nelas, por sua vez, recebeu importantes impulsos dos interesses capitalistas ligados à sua
aplicação prática na economia”. Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do
capitalismo, p. 12-13.
81

simples fontes de erro (LUKÁCS, 2003, p. 2003). Disso resulta o fato de o


trabalhador ser inserido como uma parte mecanizada, no processo produtivo, o qual
funcionaria de forma independente em relação ao trabalhador.
É, nesse sentido, que a atitude do trabalhador, seja em relação aos seus
produtos, seja em relação a sua própria atividade, vem reduzida ao mero caráter
contemplativo.156 Para melhor expor esse processo reificador e redutor do
trabalhador, Lukács se vale da análise marxiana da relação do homem com o tempo,
nas fábricas modernas. Conforme escreve Marx:

Supõe que os trabalhos se igualaram pela subordinação do homem à


máquina ou pela divisão extrema do trabalho; supõe que os homens se
apagaram diante do trabalho; supõe que o movimento do pêndulo tornou-se
a exata medida da atividade relativa de dois operários […]. Então não há por
que dizer que uma hora de um homem equivale a uma hora de outro
homem; deve-se dizer, ao contrário, que um homem de uma hora vale tanto
quanto outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem não é mais
nada; quando muito, ele é a carcaça do tempo. Não se trata mais da
qualidade. A quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jornada
(MARX, 2017, p. 61).

No entender de Lukács (2003, p. 206), esse processo de reificação,


observável no interior da empresa industrial, não poderia ser possível se no seio,
dessa empresa, “já não se revelasse nela, de maneira concentrada, a estrutura de
toda a sociedade capitalista”. Daí ele destacar, também, que o aprofundamento da
estrutura mercantil, no interior da sociedade, assim como a maior possibilidade de
pleno rendimento pela empresa industrial, não seria possível sem outras estruturas
objetivas submetidas aos processos de racionalização reificadora. 157 Nesse sentido,
o sistema de leis e o Estado, ambos submetidos à dinâmica capitalista, atuam como
agentes facilitadores no processo de racionalização para garantia dos
rendimentos.158
156 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 204.
157 Uma vez mais, Arato e Breines revelam a semelhança das análises de Weber e Lukács. Segundo
estes comentadores ingleses: “En el fondo de este análisis, se percibe la insistencia de Weber de
que una economía racional (capitalista) no es posible sin la administración racional de la ley, de la
política y, em última instancia, de la vida cotidiana. Para Weber, la administración racional es la
burocracia. La admnistración del Estado y de la ley, que éste considera el destino inevitable del
hombre occidental, se identifica, según él, com la organización capitalista de la fábrica [No fundo
desta análise, percebe-se a insistência de Weber de que uma economia racional (capitalista) não é
possível sem uma administração racional da lei, da política e, em última instância, da vida
cotidiana. Para Weber, a administração racional é a burocracia. A administração do Estado e da
lei, que este considera o destino inevitável do homem ocidental, identifica-se, segundo ele, com a
organização capitalista da fábrica]”. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los
orígenes del marxismo occidental, p. 188.
158 Sobre a especificidade do Estado moderno, Weber comenta: “O próprio ‘Estado’, como entidade
82

Para Lukács (2003, p. 216), surge, portanto, “uma sistematização racional


de todas as regulamentações jurídicas da vida, sistematização que representa, pelo
menos em sua tendência, um sistema fechado e que pode se relacionar com todos
os casos possíveis e imagináveis”. De modo que Lukács (2003, p. 217) acrescenta
ainda: “E é claro que essa necessidade de sistematização, de abandono do
empirismo, da tradição, da dependência material, foi uma necessidade do cálculo
exato”. A esse processo de racionalização formal do Estado e do ordenamento
jurídico, acompanha ainda, como expressões da reificação nas sociedades
capitalistas, o problema da burocracia moderna. De acordo com Lukács (2003, p.
219), a burocracia “implica uma adaptação do modo de vida e do trabalho e
paralelamente também da consciência aos pressupostos socioeconômicos gerais da
economia capitalista”, tal como se observa na empresa capitalista, mas agora,
também, na totalidade das dinâmicas sociais.
Com isso, acentua-se cada vez mais, pode-se sustentar com Lukács
(2003, p. 221), o processo de abstração e especialização do trabalho, a saber, a
divisão entre “força de trabalho” e “personalidade” do operário. Tal divisão é
conduzida ao extremo, posto que certas faculdades mentais, do trabalhador, se lhe
opõe como uma mercadoria. A burocratização das condições de vida torna tal
processo de reificação ainda mais evidente, na medida em que certas virtudes,
características do gênero burocrático, quais sejam, a probidade, a honra, o senso de
responsabilidade, a objetividade e assim por diante, tornam-se momentos
fundamentais da composição da estrutura da consciência na sociedade. Conforme
Lukács (2003, p. 221), a divisão do trabalho penetra na “ética” 159 dos indivíduos,
sobretudo dos operários, mas, igualmente, das demais camadas sociais. Daí Lukács

política, com uma constituição racionalmente redigida, um direito racionalmente ordenado e uma
administração orientada por regras racionais ou as leis, tudo administrado por funcionários
treinados, é conhecido, nessa combinação de características, somente no Ocidente, apesar de
todas as outras formas que dele se aproximaram”. Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o
espírito do capitalismo, p. 9.
159 Ainda que Marx não utilize o termo “ética” ou desenvolva a sua argumentação no sentido de uma
crítica do processo de burocratização social, certos momentos de sua análise vão ao encontro da
interpretação lukacsiana. Pode-se indicar como exemplo, quando Marx afirma que a redução dos
trabalhadores a uma expressão quantitativa, cujo marcador é o tempo, não é absoluta, posto que
certas diferenças qualitativas podem ser, ainda, estabelecidas entre os trabalhadores. Tais
diferenças, todavia, reduzem-se a diferenças materiais (“como a constituição física, a idade, o
sexo”) ou diferenças morais (“como a paciência, a impassibilidade, a assiduidade”). Entretanto,
Marx, em seguida, completa: “[…] se há uma diferença de qualidade no trabalho dos operários, é
no máximo uma qualidade da pior qualidade”. Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia: Resposta à
Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon, p. 61; Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. A reificação e a
consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p.
221.
83

inferir: “Foi o capitalismo a produzir pela primeira vez, com uma estrutura econômica
unificada para toda a sociedade, uma estrutura de consciência – formalmente –
unitária para o conjunto dessa sociedade”. 160

4.2 CONSCIÊNCIA DE CLASSE E SUA EXPRESSÃO IDEOLÓGICA NA


BURGUESIA: ABORDAGEM LUKÁCSIANA

A retomada lukacsiana dos problemas, relativos à estrutura da


consciência, em seu meio social, deve ser compreendida, nesse universo de História
e consciência de classe, como uma forma de se contrapor aos “atrasos
filopositivistas do marxismo”,161 como já assinalado antes neste estudo. Para tanto,
Lukács se reporta a certas formulações de Engels, as quais permitem avaliar, de
forma correta, o papel da consciência dos homens com respeito ao processo de
desenvolvimento histórico. Conforme Engels sustenta:

Os homens fazem sua história, quaisquer que sejam os rumos desta, na


medida em que cada um busca seus fins próprios, com a consciência e a
vontade do que fazem; e a história é, precisamente, o resultado dessas
numerosas vontades projetadas em direções diferentes e de sua múltipla
influência sobre o mundo exterior. […] Já vimos, porém, por um lado, que as
muitas vontades individuais que atuam na história acarretam quase sempre
resultados muito diferentes – e às vezes, inclusive, opostos – aos objetivos
visados, e, portanto, os fins que os impelem têm uma importância
puramente secundária no que diz respeito ao resultado total. Por outro lado,
deve-se indagar que forças propulsoras agem, por seu turno, por trás
desses objetivos e quais as causas históricas que, na consciência dos
homens, se transformam nesses objetivos (ENGELS, 1990, p. 198).

Interessa a Lukács, sobretudo, a distinção que Engels estabelece entre a


consciência dos homens e as forças propulsoras que agiriam, na argumentação
engelsiana, por trás dessa consciência. Daí Lukács (2003, p. 134-135) defender: “A
essência do marxismo científico consiste, portanto, em reconhecer a independência
das forças motrizes reais da história em relação à consciência (psicológica) que os
homens têm delas”. Além disso, como já abordado parcialmente, o pensamento
160 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 221. Ao longo da exposição deste capítulo, abordar-se-á os limites,
apresentados por Lukács, da racionalização presente na reificação, assim como aqueles da
estrutura de consciência formalmente unificada.
161 Ver, a esse respeito: OLDRINI, Guido. György Lukács e os Problemas do Marxismo do Século
20, p. 109-110. Ainda nesse sentido, Lichtheim esclarece que o procedimento de Lukács, ao
acentuar o papel histórico decisivo da consciência, nas lutas políticas, contrapõe-se ao
evolucionismo darwinista de Kaustky, o qual teria desprezado as temáticas “subjetivas” no interior
do marxismo. Cf. LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 105.
84

burguês não compreende, de forma adequada, essas forças motrizes da história,


postulando-as, antes, como leis naturais e eternas, independentes dos homens. 162
Acrescenta ainda Lukács (2003, p. 135), o marxismo realizaria uma “filosofia crítica,
uma teoria da teoria, uma consciência da consciência”, permitindo-o, assim,
dissolver “o caráter fixo, natural e não realizado das formações sociais”, mas,
igualmente, desvelando-as como surgidas historicamente e, portanto, submetidas a
um devir e declínio histórico.
No entanto, esse limite observável no pensamento burguês não lhe
impede de realizar “estudos concretos” do material histórico e social (LUKÁCS,
2003, p. 140). O procedimento da ciência burguesa histórica, afirma Lukács, postula
que o concreto pode ser encontrado somente no “indivíduo empírico e histórico (quer
se trate de uma pessoa, de uma classe ou de um povo) e em sua consciência dada
empiricamente (isto é, psicológica ou psicológica de massas)”. Não obstante tal
tentativa do pensamento burguês de apreender o material concreto, o seu
procedimento teórico-metodológico expressa uma redução do significado da noção
de “concreto”, àquilo que é o mais imediato e fragmentário possível. Já na reflexão
marxiana, cujo método se vale do tratamento histórico-dialético da realidade, bem
como da centralidade da noção de totalidade, torna-se possível superar essa
imediaticidade e formular outra noção de concreto.163 Daí Lukács (2003, p. 140) ter
afirmado que justamente quando a reflexão burguesa “acreditou esta ter encontrado
o que há de mais concreto que ela está mais longe do concreto: a sociedade como
totalidade concreta”.
Em virtude da noção correta de “estudo concreto”, em uma perspectiva
histórico-materialista e dialética, Lukács (2003, p. 140) se propõe a analisar as
relações da consciência, com a sociedade, valendo-se da totalidade. No seu
entender, a consciência que os homens possuem de sua existência se apresenta,
por um lado, como subjetivamente correta, em virtude da situação social e histórica
dos indivíduos, a saber, o local que eles ocupam no processo moderno de produção.
Por outro, essa mesma consciência, objetivamente considerada, é passageira em
relação à essência do desenvolvimento social, de modo que ela não se conhece
nem se exprime adequadamente como “falsa consciência” (LUKÁCS, 2003, p. 141).
162 Ver nota 38.
163 Segundo Marx: “O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade
do diverso”. Um aprofundamento da diferença existente entre o conceito marxiano de “concreto” e
aquele hegeliano, bem como as tentativas de formulações burguesas da filosofia de Hegel,
escapam ao escopo deste trabalho. Cf. MARX, Karl. Para a crítica da economia política, p. 39.
85

Na mesma relação, todavia, a consciência pode não ter conseguido


alcançar subjetivamente os fins desejados, mas promoveu, objetivamente, o
desenvolvimento social.164 Lukács (2003, p. 141) expõe esses momentos da
consciência com respeito, tanto aos fins subjetivos propostos, quanto aos fins
objetivos históricos, como uma “determinação duplamente dialética da falsa
consciência”. O estudo concreto do significado da falsa consciência permite a
Lukács sustentar:

Essa determinação duplamente dialética da “falsa consciência” permite não


tratá-la mais como uma análise que se limita a descrever o que os homens
pensaram, sentiram e desejaram efetivamente sob condições históricas
determinadas, em situações de classe determinadas etc. Temos, então,
apenas o material […] dos estudos históricos propriamente ditos. A relação
com a totalidade concreta e as determinações dialéticas dela resultantes
superam a simples descrição e chega-se à categoria da possibilidade
objetiva. Ao se relacionar a consciência com a totalidade da sociedade,
torna-se possível reconhecer os pensamentos e os sentimentos que os
homens teriam tido numa determinada situação da sua vida, se tivessem
sido capazes de compreender perfeitamente essa situação e os interesses
dela decorrentes, tanto em relação à ação imediata, quanto em relação à
estrutura de toda a sociedade conforme esses interesses (LUKÁCS, 2003,
p. 141).

Ao estabelecer a relação da consciência com a totalidade da sociedade,


explicita o autor, investiga-se a “possibilidade objetiva” 165 de certos pensamentos se
apresentarem em conformidade com sua situação social objetiva: situação, cuja
tipologia é determinada pela posição ocupada pelos homens no processo produtivo.
Daí inferir Lukács: “Ora, a reação racional adequada, que deve ser adjudicada166 a
uma situação típica determinada no processo de produção, é a consciência de
classe”.167 Tal consciência complementa e não deve ser confundida com a soma ou

164 Ao longo desta exposição serão apresentados exemplos que ilustram melhor o conceito de “falsa
consciência”, proposto por Lukács.
165 Cerutti assinala a origem weberiana do conceito de “possibilidade objetiva” e, igualmente, do
conceito de “consciência atribuída”, apresentado logo em seguida na exposição. Cf. CERUTTI,
Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe. Firenze: La
Nuova Italia, 1980, p. XIII.
166 Como esse étimo pode gerar certa confusão nos leitores, destaca-se que, na edição italiana de
História e Consciência de Classe, o tradutor se valeu do termo “atribuída” [attribuita], ou seja,
como “consciência atribuída”: “Ora, la coscienza di classe è la reazione razionalmente adeguata
che viene in questo modo attribuita di diritto ad una determinata situazione tipica nel processo di
produzione”. LUKÁCS, György. Coscienza di Classe. In: Storia e Coscienza di Classe. Tradução
de Giovanni Piana. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1973, p. 66.
167 LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.) História e
Consciência de Classe, p. 142. Sobre o sentido do conceito de “consciência atribuída”, Sochor
comenta: “É uma consciência idealmente típica, imputada, objetivamente possível, ou seja, um
conceito limite. […] O maximum de que a classe pode conhecer sobre sua posição e sobre a
totalidade da realidade social, sem se pôr em conflito com a própria posição de classe e com seus
próprios interesses econômicos e sociais. A classe não pode ultrapassar esses limites da
86

com a média da consciência de cada um dos indivíduos que formam as classes.


Lukács (2003, p. 142), assim, diferencia o seu conceito de consciência de classe,
com relação ao conceito de consciência, meramente, empírica e psicológica,
mediante a qual os homens, tão somente, descrevem as suas situações de vida
objetiva e imediata. Ao contrário, a consciência de classe não se limita ao âmbito
empírico e cotidiano, quer da vida de um indivíduo isolado, quer da vida de um
agrupamento de indivíduos. A consciência de classe “adjudicada” determina, na
verdade, “a ação historicamente decisiva da classe como totalidade” (LUKÁCS,
2003, p. 142).
Lukács (2003, p. 148), então, delimita historicamente o aparecimento da
consciência de classe. No seu entender, a consciência de classe não é clara nas
sociedades pré-capitalistas, o que implica, por sua vez, que a consciência de certas
camadas sociais não é capaz de influenciar, decisivamente, a ação desta mesma
camada, nem mesmo influenciar os acontecimentos históricos. Isso ocorre em razão
dos interesses de classe, nas sociedades pré-capitalistas, não se distinguirem em
relação ao aspecto econômico, pois “a divisão da sociedade em castas, em
estamentos etc. implica que, na estrutura econômica objetiva da sociedade, os
elementos econômicos se unem inextricavelmente aos elementos políticos,
religiosos etc” (LUKÁCS, 2003, p. 1481-149). Logo, em tais sociedades, há uma
unidade menos coerente,168 do ponto de vista econômico, se relacionadas às
sociedades capitalistas modernas.
Não somente os elementos políticos e religiosos influenciavam, nas
sociedades pré-capitalistas, todas as manifestações sociais dos homens, mas,
sobretudo, as “barreiras naturais”, 169 conforme Lukács, responsáveis também por
essas determinações próprias do modo de ser dessas sociedades. Em tais períodos
históricos, o núcleo das dinâmicas sociais, bem como de suas formações ideais –
consciência”. Sochor destaca, ainda, a origem weberiana de tal conceito, mais, especificamente,
aos “tipos ideais” presentes em sua sociologia. Cf SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a
discussão filosófica dos anos 20, p. 39.
168 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 149. Mais à diante, na exposição do mesmo ensaio, Lukács destaca,
como expressão da menor unidade e coerência do ponto vista econômico, nas sociedades pré-
capitalistas, uma união entre as categorias econômicas e jurídicas. Conforme ele explicita: “As
categorias econômicas e jurídicas são objetiva e substancialmente inseparáveis e entrelaçadas
uma nas outras”. Isto implica que as relações jurídicas não são expressões do modo de produção
de mercadorias, mas que, ao contrário, tanto o direito como a economia podem determinar o
funcionamento de certas relações sociais. Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In:
LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 152-153.
169 Cf. LUKÁCS, Georg. A mudança de função do materialismo histórico [1919]. In: LUKÁCS, Georg
(Org.). História e Consciência de Classe, p. 430.
87

arte, religião e filosofia –, está nas relações que o homem estabelecia com a
natureza.170 Somente com o advento do capitalismo, nas sociedades modernas, que
se verificou uma modificação relativas às épocas anteriores. Para Lukács (2003, p.
436), o capitalismo realizou um processo de “socialização de todas as relações” e,
com isso, verificou-se um “recuo das barreiras naturais”, iniciando, assim, a reduzir
tudo a um nível puramente social. Com isso, deu-se, conforme o seu argumento, a
possibilidade do “autoconhecimento verdadeiro e concreto do homem como ser
social”, não mais limitado às relações, predominantemente, naturais (LUKÁCS,
2003, p. 436-437).
A dificuldade da gênese da consciência de classe, em toda sua unidade e
clareza, não se restringe, todavia, às sociedades pré-capitalistas. Mesmo nas
sociedades capitalistas modernas, certas “camadas sociais” 171 não apresentam uma
consciência de classe propriamente dita. Ao afirmar isso, Lukács se reporta à
pequena burguesia e ao campesinato, na medida em que tais camadas não se
constituíram em conformidade com a gênese do capitalismo, mas a existência delas
está ligada, ao contrário, aos “vestígios da sociedade dividida em estamentos”. 172
Isso explica não se verificar, em tais camadas, uma consciência de classe atribuída,
que ultrapassaria o âmbito imediato dos indivíduos e se relacionaria com a totalidade
da classe e da sociedade.
Em contrapartida, o que se observa, nessas camadas sociais, são
interesses particularistas que sequer compõem unidade. Tais interesses estão,
portanto, em oposição contraditória em relação à consciência de classe (LUKÁCS,
170 Na continuidade, Lukács assinala que não se deve considerar a distinção entre “natureza” e
“sociedade” de forma mecânica. Daí ele argumentar: “A natureza é uma categoria social”. No
próximo capítulo, aprofundar-se-á as consequências teórico-práticas de tal afirmação, bem como a
recepção de tal tese por certa camada intelectual marxista. Cf. LUKÁCS, Georg. A mudança de
função do materialismo histórico [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de
Classe, p. 431.
171 Lukács se vale da noção de “camadas sociais” para diferenciá-la do conceito de “classes sociais
puras”, cuja gênese se encontra, propriamente, no momento histórico do capitalismo. No próximo
capítulo, ver-se-á como a noção de “camadas sociais” assume uma função determinante nos
problemas relativos à organização e à tática dos partidos comunistas. Cf. LUKÁCS, Georg.
Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p.
156.
172 LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg. (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 156. Ainda nesse sentido, Lukács assinala que, nessas “camadas
sociais”, o que se verifica é, na realidade, uma “consciência do próprio status”. Aduz Lukács: “Pois
a relação com o todo, criada pela ‘consciência do próprio status’, não se dirige à totalidade da
unidade econômica real e viva, mas à fixação passada da sociedade que constituiu em sua época
os privilégios dos estamentos. A consciência do próprio status, como fato histórico real, mascara a
consciência de classe, impede que esta última possa mesmo se manifestar”. Cf. LUKÁCS, Georg.
Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p.
154.
88

2003, p. 159). Somente a burguesia e o proletariado, acrescenta Lukács (2003, p.


156), são as “classes puras da sociedade”, cuja existência baseia-se,
exclusivamente, no desenvolvimento do modo capitalista de produção. Tais classes
aparecem pela primeira vez, no capitalismo, como realidades imediatas e históricas,
cujas condições de existências – e suas expressões nos interesses dessas classes
– “permitem imaginar um plano para a organização de toda a sociedade” (LUKÁCS,
2003, p. 156).
Assim como para a pequena burguesia e o campesinato, nos quais se
verifica uma contradição entre interesses particulares e consciência de classe, na
burguesia ocorre algo semelhante. Segundo escreve Lukács, também na burguesia
há uma relação de oposição entre interesse e consciência de classe. Todavia, não
se trata de uma oposição contraditória, mas dialética.173 A diferença consiste no fato
de que a oposição dialética, presente na burguesia, não a impede de que venha a
desenvolver uma consciência de classe, antes, estimula o seu desenvolvimento.
Não obstante tal desenvolvimento, a oposição dialética conduz a consciência
burguesa a “entrar em contradição insolúvel consigo mesma e, portanto, a suprimir a
si mesma no auge do seu desenvolvimento” (LUKÁCS, 2003, p. 160).
Como classe pura, o nascimento da burguesia se relaciona, de forma
imanente, com a gênese do capitalismo e, portanto, com o recuo das barreiras
naturais, pois nas sociedades pré-capitalistas as relações sociais assumem, ainda,
um caráter natural, os homens não podem tomar consciência de si mesmos como
seres sociais.174 Porém, na medida em que, no capitalismo, as barreiras naturais são
afastadas e a separação jurídica entre os estamentos é ultrapassada, um universo
de igualdade formal aparece entre os homens. 175 Daí concluir Lukács (2003, p. 96):
“[…] desaparecem cada vez mais aquelas relações econômicas que regularam as
trocas materiais imediatas entre o homem e a natureza. O homem torna-se – no
verdadeiro sentido da palavra – ser social. A sociedade torna-se a realidade para o
homem”.
Portanto, em tal momento histórico, a burguesia possui, em seu
fundamento, uma unidade econômica objetiva, originada desse processo de

173 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 160.
174 Cf. LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 95.
175 Como já visto, na seção anterior, o processo de igualdade formal é fruto da reificação capitalista e
de sua necessidade de “cálculo exato” e racionalizado.
89

socialização. Entretanto, em que consiste a contradição insolúvel que a consciência


burguesa entra consigo mesma? Lukács responde, no fato de a sociedade ainda
permanecer, para a burguesia, como uma “segunda natureza” 176 e, como tal, regida
por leis imutáveis e eternas, cuja única relação possível com os sujeitos históricos e
cognoscentes é a contemplação.177 Logo, a possibilidade objetiva que se apresentou
com a consciência de classe burguesa, de reconhecer adequadamente a situação
histórica objetiva da qual ela resulta, não se concretiza. Permanece, somente, uma
possibilidade.
Isso se explica, em parte, pelo procedimento teórico-metodológico
assumido pela investigação burguesa. Trata-se de um procedimento que, como já
abordado, reduz os objetos históricos a mônadas imutáveis, isto é, decompõe e
torna fragmentário o seu material de estudo, para melhor apreender as leis formais e
abstratas que se encontram no fundamento de tais materiais. Desse modo,
relaciona-se com os acontecimentos históricos em sua “facticidade bruta”, 178
separando-os de suas funções na totalidade do processo de desenvolvimento
histórico. Nesse sentido, o pensamento burguês atém-se, tão somente, à
“imediaticidade” dos acontecimentos históricos e, ao fazê-lo, termina por deformar a
objetividade real dos objetos, representando-os como núcleo essencial e eterno das
relações capitalistas. Tal procedimento torna-se claro na maneira burguesa de tratar
as “máquinas” no processo produtivo. Segundo esclarece Lukács:

Vemos então que a concepção burguesa, que considera a máquina em sua


unicidade isolada, em sua “individualidade” de puro fato […], deforma a sua
objetividade real, representando sua função no processo de produção
capitalista como se fosse seu núcleo essencial “eterno”, parte constituinte e
inseparável da sua “individualidade”. Em termos de método, essa
concepção faz de todo objeto histórico tratado uma mônada imutável,
excluída de toda interação com as outras mônadas – concebidas da mesma
maneira –, e à qual as características que ela possui em sua existência
imediata parecem estar ligadas como propriedades essenciais
simplesmente insuperáveis. Embora tal mônada conserve uma unicidade
individual, ela é apenas uma mera facticidade, um simples modo de ser. 179

176 Cf. LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 96.
177 Ver, aqui, nota 147.
178 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 313.
179 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 315. Em um sentido semelhante, Marx critica a concepção pequena
burguesa de Proudhon a respeito da maquinaria. Marx sustenta: “As máquinas, assim como o boi
que puxa o arado, não são uma categoria econômica. São apenas uma força produtiva. A fábrica
moderna, fundada na utilização de máquinas, é uma relação social de produção, uma categoria
econômica”. Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr.
90

Nesse sentido, não somente o pensamento burguês deforma a


objetividade de certos objetos, mas, igualmente, não compreende o próprio presente
histórico. No entender de Lukács: “Essa essência anistórica e anti-histórica do
pensamento burguês apresenta-se a nós da maneira mais flagrante quando
consideramos o problema do presente como problema histórico”.180 O procedimento
contemplativo, segundo o qual se verifica a separação, que as categorias reflexivas
burguesas estabelecem, entre sujeito e objeto, pensamento e ser, impossibilita a
adequada compreensão do presente.
Não obstante certas tentativas do pensamento burguês de ultrapassar a
imediaticidade dos fatos, tais tentativas resultam inadequadas ao conhecimento
mais apropriado da estrutura de objetividade e função dos objetos na totalidade
social. Isso ocorre em razão de que o “distanciamento” (LUKÁCS, 2003, p. 351),
relativo à imediaticidade, que a reflexão burguesa busca é, tão somente, com a
finalidade de incluir tais objetos no “cálculo racional”, conforme abordado
anteriormente. Trata-se, portanto, de uma homogeneização dos objetos, seja os
mais distantes, seja aqueles mais próximos, com o escopo de torná-los igualmente
racionalizados, quantificados e calculáveis. 181 Desse modo, a apreensão dos
fenômenos, mesmo os mais distantes, logo, não imediatos, significa, ainda,
circunscrevê-los em leis naturais independentes dos homens.
A apreensão do presente histórico se torna ainda mais impensável para a
burguesia, na medida em que ela, não conseguindo superar definitivamente a
imediaticidade factual, vale-se da teoria do conhecimento para alcançar tal
compreensão adequada. Nesse sentido, Lukács (2003, p. 319) esclarece que “na
medida em que essa forma abstrata do mundo imediatamente dado […] é superada
com o auxílio da ‘teoria do conhecimento’, essa estrutura se eterniza e se justifica
coerentemente como ‘condição de possibilidade’ necessária a essa apreensão do

Proudhon, p. 118.
180 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 322. A necessidade da retomada de certos argumentos do capítulo
anterior, sustenta-se em razão de novas mediações e determinações estabelecidas com a
finalidade de concretizar o problema apresentado, anteriormente. Segue-se, aqui, a compreensão,
marxiana, segundo a qual o concreto é síntese de múltiplas determinações. Assim, a problemática
anterior, relativa ao método do pensamento burguês, aquele “contemplativo”, articula-se, agora,
com a questão da “consciência de classe” e com o ser da classe burguesa, ou seja, com a sua
posição no processo produtivo.
181 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 351.
91

mundo”. A conclusão dessa tentativa burguesa de superar os limites da


imediaticidade factual é, justamente, um retorno ao mesmo imediatismo –
conceitualizado, mas apenas de forma direta – com o qual o homem comum da
sociedade burguesa depara em sua vida cotidiana (LUKÁCS, 2003, p. 319).
Do procedimento teórico-metodológico, assumido pelo pensamento
burguês, decorre, em parte, da impossibilidade de compreender adequadamente o
processo de socialização. Assim, a sociedade se apresenta, ainda, como uma
“segunda natureza”182 para a burguesia. Segundo a crítica de Lukács, considerar a
inadequação do conhecimento burguês como um resultado, tão somente, do seu
método de investigação, seria algo demasiado unilateral, por se tratar de uma
relação imanente entre o procedimento teórico-metodológico adotado por um
membro de uma classe social e o próprio ser social desta classe. 183
Ademais, a oposição dialética184 que se verifica, segundo Lukács, na
consciência burguesa é, antes, uma expressão das contradições mais profundas do
capitalismo.185 Daí o autor afirmar que “os limites objetivos da produção capitalista
tornam-se os limites da consciência de classe burguesa” (LUKÁCS, 2003, p. 164). O
que conduz Lukács a concluir:

Sendo assim, essa necessidade de os limites econômicos objetivos do


sistema permanecerem inconscientes manifesta-se como uma contradição
interna e dialética na consciência de classe. Dito de outra forma, a
consciência de classe da burguesia está formalmente preparada para uma
consciência econômica. Com efeito, o grau mais elevado de inconsciência,
a forma mais crassa da “falsa consciência” manifesta-se sempre na ilusão
exacerbada de dominar conscientemente os fenômenos econômicos. Do
ponto de vista da relação da consciência com o conjunto dos fenômenos
sociais, essa contradição se exprime na oposição insuperável entre
ideologia e fundamento econômico. A dialética dessa consciência de classe
baseia-se na oposição insuperável entre o indivíduo (capitalista), o indivíduo
segundo o esquema do capitalista individual e o processo “natural” e
inevitável de desenvolvimento, isto é, não passível por princípio de ser
dominado pela consciência (LUKÁCS, 2003, p. 164-165).

No seu entender, a impossibilidade que se verifica para a burguesia


compreender, de forma adequada, a sua situação social e o presente, origina-se na
sua falsa consciência. Esta última, por sua vez, justifica-se, historicamente, como
uma consequência necessária da posição adotada pela burguesia no processo de
182 Ver nota 147.
183 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 332.
184 Ver nota 142.
185 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 161.
92

produção capitalista.186 Daí o fato de toda mudança histórica real e toda produção de
novos187 elementos históricos aparecerem para a burguesia, imersa em seu
imediatismo factual, como uma “catástrofe”, 188 sobretudo, no que diz respeito às
crises do capitalismo.
De acordo com Lukács, no desenvolvimento histórico capitalista, a
medida que as crises estruturais se aprofundam, e já não são tão inapreensíveis
para a consciência, posto que se tornam, praticamente, imediatas, a postura
burguesa torna-se ainda mais problemática. A contradição em sua falsa consciência
se aprofunda, tornando-se, no entender de Lukács (2003, p. 166), uma “falsidade
consciente”. Com isso, Lukács se reporta ao fato de que a consciência burguesa já
não mais é falsa apenas objetivamente, mas, igualmente, subjetivamente. 189 Isso
porque: “o problema teórico transforma-se também em comportamento moral que
influencia decisivamente todas as decisões práticas da classe em todas as situações
e questões da vida”.190

4.3 “FALSA CONSCIÊNCIA” E “CRISE IDEOLÓGICA DO PROLETARIADO”: A


OPOSIÇÃO LUKÁCSIANA AO ECONOMICISMO MECÂNICO

O agravamento das crises objetivas do capitalismo conduziu, por um lado,


a burguesia a um estágio de consciência descrito por Lukács como “falsidade
consciente”, com respeito a compreensão social adequada da totalidade social. Por
outro, a situação histórica e economicamente crítica conduziu também certos
pensadores, da tradição marxista, a pensarem um processo de revolução

186 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 333.
187 Ver nota 138.
188 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 336.
189 Ver notas 157 e 158.
190 LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 166-167. Nesse sentido, Marx, em diferentes momentos de suas
obras, destacou os limites de compreensão presentes para a burguesia e seus representantes
teóricos. Por exemplo, quando em sua polêmica com Proudhon, Marx esclarece que o fundamento
das sociedades modernas é o antagonismo social e assinala que tal princípio não é compreendido
pela burguesia. Conforme Marx argumenta: “O burguês não pode impedir-se de ver nessa relação
de antagonismo uma relação de harmonia e justiça eterna, que não permite que ninguém se faça
valer à custa dos outros. Para o burguês, a troca individual pode subsistir sem o antagonismo das
classes: para ele, trata-se de coisas totalmente diferentes. A troca individual, tal como a imagina o
burguês, não se parece em nada com a troca individual tal como ele a prática”. Cf. MARX, Karl.
Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon, p. 78.
93

proletária.191 Dentre tais pensadores, Lukács (2003, p. 536) destaca Rosa de


Luxemburgo e a doutrina da “revolução ‘orgânica’, puramente proletária”. Segundo
tal doutrina, em decorrência do agravamento da situação econômica e da guerra
mundial imperialista, verifica-se uma necessidade histórica-social, mediante a qual o
proletariado agiria, de forma espontânea, como uma resposta a essa situação
histórica (LUKÁCS, 2003, p. 536).
De acordo com Lukács, se a questão da revolução proletária se reduzisse
a um aspecto meramente orgânico e determinado, exclusivamente, pelas condições
econômicas,192 então as expressões ideológicas, implícitas nesse processo, seriam
um falso problema, uma mera especulação. A despeito de certas teorias
economicistas, Lukács sustenta que a consciência do proletariado não se
desenvolve paralelamente às crises econômicas objetivas, de maneira linear e
homogênea.193 Daí ele admitir a possibilidade de que a consciência proletária se
manifeste como aquém em relação ao desenvolvimento econômico. 194
Com isso, retorna-se ao problema da reificação e à universalização da
forma mercantil na sociedade. Como já exposto, a reificação é um processo de
universalização da forma mercantil, presente no capitalismo, que reestrutura as
manifestações vitais da sociedade, sejam elas objetivas ou subjetivas. Nesse
sentido, Lukács (2003, p. 184) argumenta: “Como produto do capitalismo, o
proletariado está necessariamente submetido às formas de existência do seu
produtor. Essa forma de existência é a inumanidade, a reificação”. Daí ser natural
sustentar que a consciência do proletariado também está submetida às formas
reificadoras de existência, assim como a consciência burguesa. 195 Isso porque,
191 Lênin já sustentara que uma das condições fundamentais que descrevem uma situação
revolucionária é uma “crise nacional geral (que afete explorados e exploradores)”. Cf. LÊNIN,
Vladmir Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920), p. 97. Daí o porquê de Lukács,
em 1924, defender que Lênin, ao sustentar a “atualidade da revolução”, retornaria a um dos
pressupostos fundamentais da teoria marxiana: “[…] o materialismo histórico tem como
pressuposto – já como teoria – a atualidade histórico-mundial da revolução proletária”. Cf.
LUKÁCS, György. Lênin: Um estudo sobre a unidade de seu pensamento, p. 31-32.
192 A esta concepção, a qual afirma que as condições econômicas determinam, pura e
mecanicamente, as lutas proletárias, Lukács denominou “economicismo”. Cf. LUKÁCS, Georg.
Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 540. Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. Notas críticas sobre a Crítica da
Revolução Russa, de Rosa Luxemburgo. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de
Classe.
193 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 538.
194 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 540.
195 Daí Arato e Breines destacarem, também, a relação causal entre reificação e alienação: “La
coisificación de la conciencia es la reproducción pasiva, contemplativa, intelectual de la
94

conforme já explicitado, o capitalismo produziu uma estrutura formalmente unificada


de consciência.196
Para o autor, quer proletariado, quer burguesia, são afetados pela
reificação em todas as manifestações de vida de ambas as classes, por se
encontrarem imersos na realidade histórica em sua imediaticidade: pelo menos no
primeiro momento.197 Isso implica que, embora a sociedade na qual estão inseridos
as diferentes classes e camadas sociais, apresente-se como unidade do ponto de
vista econômico,198 o mesmo não se pode afirmar sobre as suas expressões na
consciência. Na consciência, reificada, o desenvolvimento econômico objetivo não
se apresenta como uma unidade, mas, antes, como uma “multiplicidade de coisas e
forças independentes umas das outras”, a exemplo da separação efetuada entre
lutas econômicas e lutas políticas (LUKÁCS, 2003, p. 175).
Nesse sentido, na medida em que a consciência atribuída nada mais é do
que a consciência do próprio processo dialético da história, ela é, igualmente, um
“conceito dialético”.199 Sobre a consciência no proletariado, Lukács (2003, p. 356)
escreve: “Quando sua consciência manifesta-se como consequência imanente da

inmediación de la coisificación [A reificação da consciência é a reprodução passiva, contemplativa,


intelectual da imediatez da reificação]”. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y
los orígenes del marxismo occidental, p. 191.
196 Ver nota 281.
197 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 309-310.
198 Lukács defende a existência de um “fundamento econômico objetivo”, nas sociedades, até mesmo
naquelas sociedades pré-capitalistas, as quais, como já visto, não apresentam uma plena
coerência e unidade econômica. Com base em tal argumento, infirma-se os argumentos
sustentados por certos críticos de Lukács. Tais críticos concebem História e Consciência de
Classe como resultado de uma concepção teórica “idealista subjetiva”, em Lukács. Porém, apenas
no próximo capítulo avaliar-se-á tais argumentos dos críticos de Lukács, bem como certas
posturas apresentadas em História e Consciência de Classe que ensejaram tais críticas. Cf.
LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 153. Ver, ainda: RUDAS, László. Marxismo ortodosso? In: BOELLA,
Laura (org.). Intellettuali e coscienza di classe: il dibattito su Lukács 1923-1924. Tradução de
Laura Boella. Milano: Feltrinelli Editore, 1977, p. 63.
199 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 127. Arato e Breines sustentam, ainda, que Lukács, ao destacar a
dialética e as gradações presentes na consciência do proletariado, busca evitar uma determinação
mecânica dessa consciência. Para tanto, ele concebe a teoria leniniana da “aristocracia
trabalhadora” como uma explicação parcial para o problema da “alienação” presente no
proletariado. Com isso, Lukács sustenta que certas posturas que alguns membros do proletariado
assumem, que vão na contramão dos interesses de sua classe, não podem ser explicadas apenas
pelas gradações econômicas que se apresentam entre os proletários, a saber, pelo fato de certos
trabalhadores assumirem posições no processo objetivo ou institucional, por exemplo, assumirem
um cargo no governo, ou um cargo de destaque nos sindicatos, que lhes permitam lucrar com a
exploração capitalista, sem que, com isso, deixem de ser proletários. Para Lukács, o problema real
diz respeito aos processos reificadores da consciência que acometem, sobretudo, os
proletariados. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del
marxismo occidental, p. 230.
95

dialética histórica, ela mesma se manifesta dialética”. No seu entender, as


contradições do movimento social se apresentam diretamente na consciência do
proletariado, como contradições internas a essa consciência. 200 Com isso, o
problema da superação da imediaticidade se apresenta, de forma interna, para o
proletariado, sem a qual as abstrações e unilateralidades, típicas da consciência
burguesia, não são ultrapassadas. Tal processo, Lukács denomina de “crise
ideológica do proletariado”,201 pois fruto da “falsa consciência”202 que apresentam
certos membros da classe trabalhadora. Daí, não necessariamente, como postulava
Luxemburgo, uma crise econômica objetiva determina, de forma paralela, o
desenvolvimento da consciência proletária até o seu último estágio, posto que certas
gradações ainda são observáveis na consciência falsa e reificada de certos
proletários.
Ademais, como já apresentado, também a consciência da burguesia se
expressa como uma “falsa consciência”. Entretanto, para a burguesia, a sua “falsa
consciência” está de acordo com interesses econômicos, apresentados por essa
classe, isto é, em conformidade com a posição ocupada pela burguesia no processo
produtivo capitalista.203 É do interesse de classe burguês não compreender, de
forma adequada, as tendências e o sentido do desenvolvimento histórico, posto que
o sentido, em questão, ilustra as contradições presentes no capitalismo e a
necessidade de sua superação. Logo, a consciência social adequada, ou seja, o
reconhecimento adequado do sentido imanente da história, terminaria por inviabilizar
a existência da própria burguesia, cuja existência está submetida à gênese e
manutenção da sociedade burguesa. Daí a falsa consciência se revelar, por vezes,
como uma “falsidade da consciência”.204 Segundo esclarece Lukács:

Portanto, a barreira que faz da consciência de classe da burguesia uma


“falsa” consciência é objetiva; é a situação da própria classe. É a
consequência objetiva da estrutura econômica da sociedade, e não algo
arbitrário, subjetivo ou psicológico. Pois a consciência de classe da
burguesia, embora possa refletir com clareza sobre todos os problemas da
organização dessa dominação, da revolução capitalista e de sua penetração
no conjunto da produção, deve necessariamente se obscurecer no momento
200 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 333.
201 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 547.
202 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 178.
203 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 181.
204 Ver nota 182.
96

em que surgem problemas, cuja solução remete para além do capitalismo,


mesmo no interior da experiência da burguesia (LUKÁCS, 2003, p. 147).

Não obstante a falsa consciência esteja em conformidade com a situação


objetiva da burguesia, quando tal consciência reificada se apresenta no proletariado,
lhe é fatal.205 Isso porque fá-lo retroceder ao ponto de vista burguês, ou seja, às
categorias da reflexão e à imediaticidade factual histórica. Disso resulta a “crise
ideológica do proletariado”,206 cujo resultado é uma desconsideração da atualidade
revolucionária, posto que, com o retorno ao modo de proceder burguês, a saber, o
proceder contemplativo, o movimento e a meta final da luta proletária, são, de novo,
separados.207
No entender do autor, tal processo de falsa consciência proletária remete
ao problema, anteriormente abordado, da reificação nas sociedades capitalistas,
indicando que o processo de universalização das mercadorias é absoluto e, como
tal, não há alternativas. No entanto, Lukács está atento no sentido de evitar tal
impressão. Por isso ele reconhece que “nem toda faculdade mental é suprimida pela
mecanização, apenas uma faculdade ou um complexo de faculdades destaca-se do
conjunto da personalidade e se coloca em oposição a ela, tornando-se uma coisa,
uma mercadoria” (LUKÁCS, 2003, p. 221).
Lukács (2003, p. 223) compreende, em um primeiro momento, que a
racionalização, própria da reificação, que se observa com a universalização da
forma mercantil, é eficaz, tão somente, de um ponto de vista formal. Tal formalidade
é o que, justamente, demarca os limites da racionalidade expressa na reificação.
Trata-se de uma racionalidade que se opera, meramente, nos elementos isolados da

205 LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 173.
206 Sobre esse conceito, Arato e Breines comentam o seguinte: “Para él, el desarrollo económico y
social del mundo capitalista ofrecía la posibilidad objetiva de la revolución socialista; pero la
jerarquización, la falta de unidad (o la frecuente fragmentación) y la falta de conciencia de clase
del proletariado había impedido la aparición de la subjetividad revolucionaria. Lukács insuye estos
factores em su concepto de la crisis ideológica [Para ele, o desenvolvimento econômico e social
do mundo capitalista oferecia a possibilidade objetiva da revolução socialista; mas a
hierarquização, a falta de unidade (ou a frequente fragmentariedade) e falta de consciência de
classe do proletariado havia impedido a aparição da subjetividade revolucionária. Lukács inclui
esses fatores em seu conceito de crise ideológica]”. Arato e Breines destacam, ainda, que com tal
conceito, Lukács pôde retornar, teoricamente, e avaliar a situação do proletariado, tanto da Rússia
como da Hungria, que, como destacou-se no primeiro capítulo desta monografia, era uma temática
recorrente no Lukács da juventude. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los
orígenes del marxismo occidental, p. 225; 229.
207 Retoma-se, aqui, certos argumentos apresentados anteriormente, mas relacionando-os, agora, à
“crise ideológica do proletariado”. Ver a seção, do segundo capítulo, intitulada Lukács e a defesa
do “marxismo ortodoxo” em História e consciência de classe.
97

vida, constituindo, para tais elementos, um conjunto de leis formais e abstratas. De


acordo com Lukács (2003, p. 223), essa racionalização se apresenta limitada, em
virtude do “desprezo pelo elemento concreto na matéria das leis”, isto é, com o
fundamento real, histórico e unitário no qual se gesta a factualidade imediata e
cotidiana da vida.208
Segundo Lukács, o limite da racionalidade formal evidencia-se em três
momentos, inter-relacionados, a saber: na incoerência do sistema de lei; na
contingência das relações dos sistemas parciais entre si; e na autonomia,
relativamente grande, que esses sistemas apresentam entre si. 209 Tal incoerência,
prossegue o autor, torna-se patente nos momentos de crise, em que a
interdependência e o caráter contingente de tais sistemas parciais se impõem à
consciência dos homens.210 Trata-se, nada mais, que uma intensificação quantitativa
e qualitativa da vida cotidiana da sociedade burguesa.
A esse universo, no qual escapa a racionalidade formal das leis abstratas,
presentes no capitalismo, Lukács concebe como uma “irracionalidade relativa do
processo como um todo”.211 Daí, como um limite às leis abstratas e reflexivas do
pensamento burguês, que tão somente produzem uma “totalidade contingente”, 212
apresenta-se essa irracionalidade. Conforme argumenta Lukács:

208 Ver nota 29.


209 A essa busca por autonomia, cada vez mais ampla, nas ciências formais burguesas, pode-se
reportar ao exemplo das doutrinas neopositivistas do Direito. O esforço de tais juristas consiste em
pensar uma “ciência pura do Direito” e, como tal, abstraída dos elementos sociológicos e
econômicos. Ver, a esse respeito: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Tradução de
João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Para uma crítica de tal formalismo, mas
ainda do ponto de vista jurídico, ver: SCHMITT, Carl. Teologia Política: Quatro capítulos sobre a
doutrina da soberania. In: SCHMITT, Carl (Org.). A crise da democracia parlamentar. Tradução
de Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996. Nesse sentido, Lukács, em sua obra de 1923, formula,
também, críticas contra o tratamento “puro” do conteúdo jurídico, defendido por Kelsen. Cf.
LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 237.
210 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 224.
211 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 225. É importante ressaltar esse elemento da irracionalidade,
irredutível à lógica reificadora capitalista, posto que, tal elemento, é um diferencial fundamental
entre Lukács, em 1923, e Lênin, no que diz respeito às soluções propostas para os problemas
apresentados por ambos os autores. Ao longo da exposição, no próximo capítulo, avaliar-se-á tal
problemática. Ver, aqui: ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del
marxismo occidental, p. 239-240.
212 Sobre a diferença entre os conceitos de “totalidade contingente”, ou “formal”, e “totalidade
concreta”, apresentado no capítulo anterior, ver: CERUTTI, Furio. Un modelo di marxismo critico.
In: VALENTE, Mario (org.). Lukács e il suo tempo: la costanza della ragione sistematica. Napoli:
Tullio Pironti Editore, 1984, p. 69.
98

[…] a racionalização capitalista, que se baseia no cálculo econômico


privado, reclama em toda manifestação da vida essa relação mútua entre o
pormenor submetido a leis e a totalidade contingente; produz e reproduz
essa estrutura na medida em que se apossa da sociedade (LUKÁCS, 2003,
p. 226).

O limite assinalado para a reificação capitalista não se apresenta, apenas,


no âmbito teórico, como um limite inerente ao racionalismo formal. Trata-se, na
realidade, de um limite prático, cuja expressão histórica se verifica com a gênese do
proletariado. Daí Lukács (2003, p. 336) sustentar que as “categorias abstratas da
reflexão manifesta-se na vida do trabalhador diretamente como um processo de
abstração”, de modo que, no trabalhador, “o caráter reificado da manifestação
imediata da sociedade capitalista é levada ao extremo”. Como visto, anteriormente,
o proletariado é reduzido à simples quantidade, a saber, como uma mercadoria, em
sua vida física e intelectual.
De acordo com Lukács, essa redução não é absoluta, posto que não
abrange todas as faculdades mentais do proletariado. Logo, em virtude da divisão
que se opera “entre a objetividade e a subjetividade no homem, que se objetiva
como mercadoria, essa situação é capaz de tornar-se consciente”. 213 Trata-se, no
entanto, da tomada de consciência do trabalhador como mercadoria, ou seja, de
uma autoconsciência da mercadoria (LUKÁCS, 2003, p. 341). Como
autoconsciência mercantil, verifica-se a possibilidade objetiva de superação do
imediatismo, no qual a consciência reificada se encontrava, plenamente, submetida.
Ademais, verifica-se, dessa forma, a possibilidade de autoconhecimento da
sociedade capitalista, uma vez que ela se constitui com base na lógica mercantil
capitalista. Dessa forma, o autoconhecimento do proletariado, como uma
mercadoria, significa o autoconhecimento da estrutura de toda a sociedade.
Lukács (2003, p. 341) destaca ainda que a autoconsciência, que se
verifica no proletariado, não equivale a uma consciência “de” um objeto. Com isso, o
autor esclarece que não se trata da consciência de um objeto escolhido,
casualmente, em que não se constata uma alteração da relação mesma, entre
consciência e objeto e, por conseguinte, não se constata a alteração da forma de
conhecimento assim obtida, mediante a interação da consciência com esse objeto.
Com a manutenção dessa forma de conhecimento, a saber, da consciência “de” um
objeto escolhido, casualmente, verifica-se, antes, “a rígida duplicação
213 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 339-340.
99

epistemológica do sujeito e do objeto e com ela o fato de o sujeito cognitivo não


afetar a estrutura do objeto adequadamente conhecido”, ambos permanecem,
portanto, inalterados (LUKÁCS, 2003, p. 341).
Todavia, Lukács esclarece que o autoconhecimento, que se manifesta no
trabalhador, revela-se como um conhecimento prático, e esse conhecimento realiza
uma modificação objetiva e estrutural no objeto do seu conhecimento. 214 Para o
autor, o proletariado, ao se reconhecer como uma mercadoria, desperta-se para a
realidade social, pois estruturada sob a forma mercantil. Desse modo, pode-se
compreender, a si mesmo, como o núcleo vivo e qualitativo, 215 responsável pela
gênese social, uma vez desvelado o caráter fetichista de cada mercadoria.216
Se, por um lado, o processo histórico e dialético impele o proletariado
para além do imediatismo, na medida em que certas faculdades mentais dele não se
submetem à reificação, o mesmo não pode ser afirmado sobre a burguesia. De
acordo com Lukács (2003, p. 346), ainda que o trabalhador se desumanize no
processo de trabalho reificado, há um “elemento subjetivo” que impede que sua
“essência humana e anímica” se transforme em uma mercadoria. Na burguesia,
todavia, tal elemento subjetivo também está submetido à lógica reificadora. Daí
214 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 342. Ver, ainda, nota 201.
215 Segundo Arauto e Breines: “[…] sólo el obrero reconoce algo cualitativo en el lado objetivo, lo cual,
si no altera su enajenación, al menos hace consciente una parte de ella. De esta manera, Lukács
concibe la posibilidad objetiva de una ruptura em el mundo cosificado fundada em la necesidad de
lo que él llamaba una mínima conciencia de enajenación. Esta mínima conciencia que adquiere el
obrero, señala Lukács, de un aspecto cualitatito del tiempo de trabajo como mercancía representa
el principio de la disolución de las formas fetichistas. El obrero puede reconocerse a sí mismo en
esta mercancía y también puede reconocer el dominio que tiene el capital sobre él. Este
reconocimiento es la autoconciencia de la mercancía: es así como la 'substancia' de la sociedad
capitalista empieza a devenir-para-sí-misma [só o trabalhador reconhece algo qualitativo no lado
objetivo, o qual, sem alterar sua reificação, ao menos torna consciente uma parte dela. Dessa
maneira, Lukács concebe a possibilidade objetiva de uma ruptura com o mundo coisificado
fundada na necessidade daquilo que ele chama uma mínima consciência de reificação. Esta
mínima consciência, que adquire o trabalhador, assinala Lukács, de um aspecto qualitativo do
tempo de trabalho como mercadoria, representa o princípio de dissolução das formas fetichistas.
O trabalhador pode reconhecer a si mesmo nessa mercadoria e, também, pode reconhecer o
domínio que possui o capital sobre ele. Esse reconhecimento é a autoconsciência da mercadoria:
é assim como a 'substância' da sociedade capitalista inicia a ser-para-si-mesma]”. Mais à frente,
na exposição, discutir-se-á o sentido do “ser-para-si-mesma”, do qual se valem tais comentadores.
Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental,
p. 212.
216 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 342. Por meio dessa exposição, retoma-se os argumentos
apresentados na quarta seção do capítulo anterior, em que os conceitos da dialética de Lukács, ou
seja, totalidade e mediação, foram aprofundados. Aqui, todavia, realiza-se um movimento de
concretização de tais categorias, na medida em que as articula com o ser social do proletariado e
com a totalidade da sociedade moderna. Logo, as premissas do “estudo concreto”, apresentado
na seção anterior (ver nota 49), são também válidas no que concerne à consciência do
proletariado.
100

concluir Lukács (2003, p. 347): “[…] o homem reificado na burocracia etc., reifica-se,
mercantiliza-se, torna-se mercadoria, também naqueles órgãos que poderiam ser os
únicos portadores de sua rebelião contra essa reificação”. Por conseguinte,
pensamentos e sentimentos são igualmente reificados na burguesia.

4.4 O PROLETARIADO COMO “SUJEITO-OBJETO IDÊNTICO”: A NOVIDADE


TEÓRICA LUKÁCSIANA

Com os limites da reificação capitalista, além do desenvolvimento de uma


autoconsciência no proletariado, como consciência da mercadoria, expostos por
Lukács, tem início o processo de superação do imediatismo factual e cotidiano.
Como visto anteriormente, a burguesia sequer foi capaz de ultrapassar,
efetivamente, tal imediatismo, mesmo que apresente para isso a “possibilidade
objetiva”.217 No proletariado há igualmente uma “possibilidade objetiva” de
superação do imediatismo e da reificação, bem como o conhecimento adequado de
sua situação social. Tal possibilidade se apresenta, como visto, na medida em que o
trabalhador se insere no processo produtivo, como uma mercadoria, operando uma
divisão, nele, entre objetividade e subjetividade. Não obstante tal possibilidade,
Lukács (2003, p. 348) assinala: “[…] o fato de essa mercadoria poder se tornar
consciente de si mesma como mercadoria não é suficiente para resolver esse
problema”.
De acordo com Lukács (2003, p. 348), essa autoconsciência como
mercadoria, é insuficiente, uma vez que a sua gênese, a saber, a gênese do
trabalhador como objeto de troca, ainda se apresenta no terreno imediato do
capitalismo. Com isso, Lukács afirma que pertence à própria forma de organização
capitalista do modo de produção integrar trabalhadores como se fossem
mercadorias e meros instrumentos de produção. Ademais, a consciência não
mediada da mercadoria, como expressão, portanto, da forma imediata de
manifestação da sociedade capitalista, se apresenta como “o isolamento abstrato e
a relação, abstrata e externa à consciência, com aqueles fatores que as tornam
sociais” (LUKÁCS, 2003, p. 348).
Lukács (2003, p. 349) busca então eliminar qualquer apologia irrefletida

217 Ver nota 129.


101

da consciência de classe do proletariado, sobretudo, apologias relativas ao caráter


orgânico e natural do processo de gênese dessa consciência. 218 Daí ele destacar o
caráter “mitológico” das tentativas de atribuir à consciência de classe uma forma
imediata da existência, o que implicaria o desprezo de todas as questões relativas à
crise ideológica do proletariado. Nesse sentido, Lukács defende que não basta uma
consciência da mercadoria.219 Isso porque, no seu entender, a especificidade da
consciência do proletariado está no fato de a busca de superação do imediatismo
apresentar uma intenção voltada para a totalidade da sociedade. 220
A defesa lukacsiana, relativa à especificidade da consciência proletária,
justifica-se em razão de um argumento anteriormente apresentado nesta exposição.
O proletariado, assim como a burguesia, está submetido a formas de vida
reificadora, de modo que a realidade objetiva do ser social é, em seu imediatismo, a
mesma para a burguesia e para o proletariado. 221 Não obstante esse caráter comum
entre ambas as classes, Lukács complementa:

Mas isso não impede que as categorias específicas da mediação, pelas


quais as duas classes elevam esse imediatismo à consciência e a realidade
simplesmente imediata torna-se para ambas a verdadeira realidade objetiva,
sejam fundamentalmente diferentes, como consequência da diversidade de
situação das duas classes no “mesmo” processo econômico (LUKÁCS,
2003, p. 310).

A questão, agora, reconfigura-se como uma dialética entre imediatismo e


mediação,222 a qual se articula de modo diferente para ambas as classes em
questão. Daí, ainda, a razão de as duas classes buscarem superar o imediatismo do
cotidiano de formas distintas. Como anteriormente abordado, as tentativas
218 Ver nota 170.
219 A esse respeito, Arato e Breines esclarecem que a noção de “consciência empírica”, da qual
Lukács se vale no seu ensaio Consciência de classe, não se apresenta no ensaio A reificação e a
consciência do proletariado como uma consciência puramente psicológica. A consciência empírica
configura-se, agora, para Lukács, como uma “consciência mínima da reificação”. Todavia, tal
consciência mínima é apenas o princípio de um longo processo de mediações, cuja finalidade é o
conhecimento da sociedade como totalidade histórica. Argumentam, ainda, Arato e Breines:
“Lukács define como necesaria la conciencia mínima de la enajenación dentro del marco de la
coisificación; pero la conciencia de clase y la praxis revolucionaria (que es un momento de la
conciencia) sólo son posibilidades objetivas que presuponen esta necesidad [Lukács define como
necessária a consciência mínima da reificação dentro do marco da coisificação; mas a consciência
de classe e a práxis revolucionária (que é ‘um momento’ da consciência) apenas são
possibilidades objetivas que pressupõem esta necessidade]”. Cf. ARATO, Andrew; BREINES,
Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 215.
220 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 349.
221 Ver nota 177.
222 No que concerne a essa dialética entre imediato e mediato, ver ARATO, Andrew; BREINES, Paul.
El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 208-221.
102

burguesas de distanciamento em relação ao dado, terminam por reforçar a lógica da


reificação. Isso ocorre, na medida em que a burguesia se vale, para tanto, de
procedimentos epistemológicos que conduzem, tão somente, a racionalização,
quantificação e calculabilidade dos objetos mais distantes, em relação ao sujeito do
conhecimento.223
O proletariado, ao contrário, em sua busca de superação da
imediaticidade, termina por realizar uma metamorfose da objetivação dos objetos em
ação.224 Isso se observa, sobretudo, em relação aos objetos mais próximos, uma
vez que essa transformação da objetivação consiste na interação prática da
consciência com esses objetos.225 Mediante tal interação prática, os objetos são
apreendidos como fluidos e processuais, a saber, como “simples aspectos da
totalidade dialética”226 Ademais, escreve Lukács (2003, p. 352), a ação do
proletariado, com base nessa perspectiva da totalidade, destina-se, por fim, à
“transformação da totalidade extensiva”.
Mesmo em relação à falsa consciência do proletariado, já é possível
acentuar a busca, ainda que inconsciente, de superar a imediaticidade factual. Para
ilustrar tal questão, Lukács se vale da análise de Marx acerca dos “tecelões da
Silésia”.227 Nesse sentido, Lukács comenta que, mesmo nas revoltas mais primitivas
dos proletariados, os quais apresentavam ainda um desenvolvimento juvenil de sua

223 Ver nota 151.


224 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 351.
225 Lukács apresentou a mesma lógica argumentativa em relação ao conhecimento do proletariado
como mercadoria, a saber, da autoconsciência mercantil. Em ambos os momentos, não se trata de
uma mera consciência “de” um objeto, em que sujeito e objeto permanecem inalterados. Trata-se,
na verdade, de um conhecimento prático, cujas implicações se apresentam na modificação de
ambos os polos, como será explicitado, em seguida, na exposição. Ver, aqui: notas 376, 377 e
378.
226 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 352. Lukács retoma, aqui, argumentos já apresentados no ensaio O
que é marxismo ortodoxo?. Ver, aqui: Notas 199, 200 e 201.
227 Em 1844, Marx formula um comentário crítico à análise de Arnold Ruge acerca do levante dos
tecelões da Silésia – uma província oriental da Prússia. Segundo Marx, o caráter específico da
revolta silesiana, em comparação aos levantes iniciais dos trabalhadores na França e na
Inglaterra, é a expressão consciente da essência do proletariado, observável, igualmente, na ação
desses proletários. Acerca dessa revolta, assinala Marx: “Não são destruídas apenas as
máquinas, mas também os livros contábeis, os títulos de propriedade, e, ao passo que todos os
demais movimentos se voltaram apenas contra o industrial, o inimigo visível, este movimento se
voltou simultaneamente contra o banqueiro, o inimigo oculto”. Mais à diante, Marx conclui: ainda
que a revolta se apresentasse em apenas um distrito fabril, tratou-se de uma “revolução social”, na
medida em que se encontrava na perspectiva do todo. Cf. MARX, Karl. Glosas Críticas ao artigo
“'O Rei da Prússia e a Reforma Social’. De um prussiano”. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl
(Org.). Luta de classes na Alemanha. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010,
p. 44; p. 50. Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg
(Org.). História e Consciência de Classe, p. 177.
103

consciência, é possível sustentar que há, em tais revoltas, uma intenção orientada
para o verdadeiro.228
Assim, apreendido o verdadeiro, como núcleo da sociedade considerada
uma totalidade dinâmica e dialética, o proletariado pode então começar a
compreender que o homem socializado é o núcleo das formações sociais. 229 Daí ter
início, a superação da estrutura reificada de consciência, uma vez que as relações
sociais não mais são consideradas, apenas, como relações entre coisas. 230 Todavia,
como já destacado, o conhecimento apenas dessa matéria não basta. Isso ocorre,
na medida em que as formas de manifestações reificadas não são meras formas de
pensamento, mas formas de objetividade da sociedade burguesa, estruturando-a,
efetivamente, as todas as suas relações. Daí a razão de a supressão dessas formas
não se tratar, meramente, de uma supressão no pensamento, mas, antes, de uma
supressão prática das formas de vida dessa sociedade (LUKÁCS, 2003, p. 355).
Não obstante Lukács destacar a importância da práxis revolucionária, ele
insiste, igualmente, que tal práxis não deve ser separada do conhecimento. Sustenta
Lukács (2003, p. 355): “Uma práxis no sentido da verdadeira transformação dessas
formas pode suceder apenas se ela quiser pensar o movimento que constitui a
tendência imanente dessas formas até sua conclusão lógica, tornando-se consciente
dele e conscientizando-o”. Desde o seu ensaio O que é o marxismo ortodoxo?,
Lukács insiste na necessidade da conscientização, como uma mediação entre teoria
marxiana e práxis.231 Mediante o processo de conscientização, a teoria de Marx
pode enfim tornar-se “o veículo da revolução”.232 Para tanto, a conscientização não
se limita a um processo contingente e arbitrário, mas se apresenta antes como um
“passo decisivo a ser dado pelo processo histórico em direção ao seu próprio
objetivo”,233 o qual, como já apresentado, consiste em uma articulação dialética
228 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 178.
229 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 354.
230 Ver, aqui, nota 248.
231 LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 65. Ainda, nesse sentido, Cerutti comenta o seguinte: “[…]
l'autocoscienza dereificata degli individui operai costituisce la critica pratica e il germe della critica
scentifica dell'economia politica borghese. È cio che chiamo approccio concreto alla teoria della
coscienza di classe [a autoconsciência desreificada dos indivíduos operários constitui a crítica
prática e o germe da crítica científica da economia política burguesa. É a isso que denomino de
aproximação concreta à teoria da consciência de classe]”. Cf. CERUTTI, Furio. Un modello di
marxismo critico, p. 72;
232 Ibidem.
233 Ibidem, p. 65-66. Nota-se que Lukács, aqui, reporta-se, de novo, a certos argumentos de Marx. Já
na obra A sagrada Família, Marx apresenta a necessidade histórica subjacente à consciência
104

entre lutas cotidianas proletárias e meta final da superação das relações capitalistas
e reificadas.
Como consequência de uma necessidade histórica, verifica-se a gênese
da consciência do proletariado com a sua dimensão dialética e, portanto, submetido
a graduações.234 Já em seus estágios mais limitados, como autoconsciência de
mercadoria, tratava-se antes de uma consciência prática que terminava modificando
a forma de objetividade dos objetos.235 Daí a possibilidade objetiva de elevação da
consciência até seu grau mais elevado, apreender as tendências imanentes do
processo histórico e operar uma transformação total. Nesse sentido, quer os objetos
da realidade, quer a própria realidade, são compreendidos em uma maneira distinta
em relação ao conhecimento burguês.
Na medida em que a consciência proletária se aproxima de uma
consciência social adequada, ou seja, de uma consciência verdadeira, a existência
rígida e reificada dos objetos se apresentam como mera aparência. Disso resulta a
afirmação de Lukács (2003, p. 359360) que “as coisas possam mostrar-se como
aspectos dissolvidos em processos”, a saber, a factualidade imediata é reconduzida
à sua essência social, qual seja, de relações entre os homens. Dessa forma, a
própria noção de “realidade efetiva” se reconfigura em um sentido mais elevado.
Com isso, é possível afirmar, no âmbito da argumentação lukacsiana, que às
tendências de desenvolvimento da história cabe uma realidade superior às dos
“fatos” da mera empiria.236
Importa, para o proletariado, tomar consciência das tendências e do
sentido imanente à história do desenvolvimento social, para, somente então,

proletária e sua meta prática. Marx escreve: “Não se trata do que este ou aquele proletário ou até
mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se
do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu
ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua
própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa atual”. Cf. ENGELS,
Friedrich; MARX, Karl. A sagrada família: ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e
consortes, p. 49.
234 Ver, aqui, nota 352.
235 Nesse sentido, ver, nota 396.
236 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 363. Lukács, reporta-se, aqui, à retomada, efetuada por Marx e
Engels, da dialética hegeliana e, por conseguinte, da dissolução da aparência estática e abstrata
da realidade. Nesse sentido, Engels afirma: “Com isto, o lado revolucionário da filosofia hegeliana
era retomado e desembaraçava-se, ao mesmo tempo, da crosta idealista que em Hegel impedia
sua aplicação consequente. A grande ideia fundamental de que não se pode conceber o mundo
como um conjunto de coisas acabas, mas como um conjunto de processos”. Cf. ENGELS,
Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, p. 195. No próximo capítulo,
desenvolver-se-á certas questões acerca da relação entre Lukács e Engels, bem como certos
comentários críticos sobre o modo como Lukács leu e compreendeu Engels.
105

apresentar-se a possibilidade de dominar, de forma prática, esse sentido. Tal


possibilidade está subordinada, todavia, à compreensão do proletariado de que ele é
o sujeito do processo de produção capitalista. Logo, com a dissolução da
substancialidade da realidade e, igualmente, do capital, o proletariado pode, enfim,
tomar consciência de si mesmo como o verdadeiro sujeito desse processo. 237 O
proletariado ultrapassa, assim, a condição de mero “objeto” desse processo social e
historicamente determinado. Em resumo, Lukács sustenta:

É somente com a entrada em cena do proletariado que o conhecimento da


realidade social encontra seu termo: com a perspectiva da classe do
proletariado, encontra-se um ponto a partir do qual a totalidade da
sociedade torna-se visível. Com o advento do materialismo histórico surge,
ao mesmo tempo, a doutrina “das condições da libertação do proletariado” e
a doutrina da realidade do processo total do desenvolvimento histórico. Isso
só foi possível porque, para o proletariado, conhecer com a máxima clareza
sua situação de classe é uma necessidade vital, uma questão de vida ou
morte; porque sua situação de classe só é compreensível quando toda a
sociedade pode ser compreendida; por que seus atos têm essa
compreensão como condição prévia, inelutável. A unidade da teoria e da
práxis é, portanto, apenas a outra face da situação social e histórica do
proletariado. Do ponto de vista do proletariado, o autoconhecimento
coincide com o conhecimento da totalidade; ele é, ao mesmo tempo, sujeito
e objeto do seu próprio conhecimento (LUKÁCS, 2003, p. 96-97).

Portanto, a superação da crise ideológica do proletariado, bem como de


sua condição, como mera mercadoria, é uma necessidade vital, ou seja, de vida ou
morte. Nesse sentido, explicita Lukács, o proletariado, como um “Sujeito-objeto
idêntico”,238 é resultado do processo histórico de desenvolvimento, bem como da
elevação, dialética, da consciência proletária.239
237 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 362.
238 Segundo Oldrini, Lukács, ao formular o conceito do proletariado, como um “sujeito-objeto idêntico”,
mantém o núcleo nevrálgico das argumentações de Hegel, dispostas na Fenomenologia do
Espírito [1807]: “Todos sabem que na filosofia de Hegel o espírito opera como motor de todo o
desenvolvimento da realidade, como aquela força que move, dá-se suas determinações, se
objetiva na exterioridade (tanto natural como social), e que depois, no final do processo retorna
para si mesmo, fazendo parecer que as determinações aparentemente objetivas do espírito são ao
invés idênticas com seu próprio ser, com a sua subjetividade. É nesse sentido que para Hegel o
espírito é um sujeito-objeto idêntico”. Em Lukács, todavia, destaca Oldrini, o fundamento desse
processo não é o espírito, mas a “concretude real e histórica do proletariado”. Conclui, assim,
Oldrini: “Aquela que em Hegel era a dialética interna do espírito se torna aqui a dialética objetiva
do proletariado; seu ponto de chegada último, a atualização de uma práxis revolucionária”. Cf.
OLDRINI, Guido. György Lukács e os Problemas do Marxismo do Século 20, p. 111-114. No
que diz respeito a esse processo dialético especulativo, presente em Hegel, ver: HEGEL, Georg
Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito [1807]. 8. ed. Tradução de Paulo Meneses.
Petrópolis, RJ: Vozes, §§17 e 18, p. 32; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das
ciências filosóficas [1830], §18, p. 58-59.
239 Sobre a relação entre o proletariado como “sujeito-objeto idêntico” e a superação da consciência
reificada, Lichtheim comenta: “La 'identidad sujeto-objeto' (por emplear la terminología hegeliana)
se realiza em el proceso histórico superando la 'alienación' (Lukács decía 'reificación') impuesta a
106

Mediante tal conceito, torna-se evidente a relação dialética que Lukács


(2003, p. 371) estabelece entre a história e a relação entre os homens. Ilustra-se,
assim, a dissolução das coisas em processos sociais, pois a história é exatamente a
história da transformação ininterrupta das formas de objetivação que moldam a
existência do homem, mas a história é, ao mesmo tempo, um produto da atividade
dos próprios homens. Ademais, a noção de “homem” aqui deve ser também
compreendida no sentido histórico e dialético, pois não se trata de o homem
absolutizado, de forma abstrata, no sentido meramente teorético e formal. Trata-se,
portanto, de pensar o homem como totalidade concreta, que participa do processo
dialético e histórico de maneira decisiva, como “fundamento objetivo da dialética
histórica, enquanto sujeito-objeto idêntico”: 240 sujeito que, segundo Lukács, é o único
na história capaz de manifestar, de forma objetiva, uma “consciência social
adequada”.241

los hombres por sus circunstancias materiales autocreadas, y la revolución proletaria es el acto
mediante el cual este proceso ‘se manifesta a sí mismo' y es llevado de manera efectiva a su
consumación: ser sucedido por la sociedad sin clases del comunismo, que representa la
'realización de la filosofía' [A ‘identidade sujeito-objeto’ (para empregar a terminologia hegeliana)
se realiza no processo histórico superando a ‘alienação’ (Lukács denominou ‘reificação’) imposta
aos homens por suas circunstâncias materiais autocriadas, e a revolução proletária é o ato
medianto o qual este processo ‘se manifesta a si mesmo’ e é conduzido de maneiro efetiva a sua
consumação: ser sucedido pela sociedade sem classes do comunismo, que representa a
‘realização da filosofia’]”. Cf. LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 116-117.
240 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 377. Sobre a relação entre história e o proletariado, como “sujeito-
objeto idêntico”, Sochor busca esclarecer alguns possíveis equívocos. No seu entender, tal
identidade não se trata de um uma unidade metafísica, mas dialética, posto que: “contém
diversidades e contradições, é uma identidade na diversidade e uma diversidade na identidade”.
Assim, a identidade é um resultado, e não o início da evolução histórica. Para tanto, essa unidade
pressupõe o início da superação da reificação capitalista das relações sociais. Cf. SOCHOR,
Lubomir. Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20, p. 30.
241 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 394. Com a sua concepção de “Sujeito-objeto idêntico”, encarnado
no proletariado, Lukács responderia uma exigência teórica da filosofia clássica alemã. No seu
entender, a filosofia moderna formula o problema da não aceitação do mundo como algo que
surge, de forma independente, do sujeito cognoscitivo. Tal filosofia busca pensar o mundo como
um produto do próprio sujeito do conhecimento. Trata-se, para a filosofia moderna e, sobretudo,
para a filosofia kantiana conceber um objeto do conhecimento passível de ser conhecido, na
medida mesma em que é produzido por este sujeito. Lukács reporta-se à noção de “revolução
copernicana” presente na Crítica da Razão Pura de Kant. Essa exigência de compreensão da
realidade, como um produto do sujeito do conhecimento. se aprofunda com o desenvolvimento da
filosofia clássica alemã, em especial, com Fichte. Com respeito à filosofia fichtiana, argumenta
Lukács: “Em oposição à aceitação dogmática de uma realidade simplesmente dada e estranha ao
sujeito, nasce a exigência de compreender, a partir do sujeito-objeto idêntico, todo dado como
produto desse sujeito-objeto idêntico, toda dualidade como caso particular derivado dessa unidade
primitiva”. Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg
(Org.). História e Consciência de Classe, p. 241-242. Sobre a noção de “revolução copernicana”,
ver: KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 8. ed. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 20. No próximo
capítulo serão apresentados alguns argumentos de Lukács que melhor ilustram a relação,
pensada por ele, da teoria marxiana e da filosofia clássica alemã.
107

Completa-se e concretiza-se assim, conforme o desenvolvimento da


exposição de Lukács, a possibilidade objetiva, descrita anteriormente. Mediante
essa concretização, observa-se que a classe proletária, assumindo a forma histórica
de uma totalidade concreta, pode, por fim, intervir na marcha de desenvolvimento
histórico.242 Isso se tornaria possível porque: uma vez que em posse de uma
consciência social adequada, a classe proletária pode, efetivamente, organizar o
conjunto da sociedade, conforme seus interesses de classe. 243 O proletariado
realiza, assim, a sua “vocação”244 para a dominação do processo histórico. O seu
destino, como classe, depende, de acordo com Lukács (2003, p. 146), “da sua
capacidade de esclarecer e resolver, em todas suas decisões práticas, os problemas
que lhe impõe a evolução histórica”. Em resumo, a classe que se apresenta como
“sujeito-objeto idêntico” é aquela capacitada, efetivamente, para resolver as “tarefas
que lhe são impostas pela história” (LUKÁCS, 2003, p. 146).
Nesse tocante, o papel histórico do proletariado, como classe que contém
em si a possibilidade objetiva para a dominação da totalidade do desenvolvimento
histórico, torna-se mais evidente e necessário com a acentuação dos limites do
capitalismo. Tendo compreendido o fato do acirramento das contradições do
capitalismo, Lukács defende:

242 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 144. Entretanto, Lukács não sustenta uma linearidade, homogênea e
orgânica, entre a classe proletária, pensada como um “sujeito-objeto idêntico”, e sua real
intervenção história. Com isso, deve-se compreender, no universo expositivo lukacsiano, que a
própria classe proletária não deve ser pensada como uma unidade indiferenciada, mas que, antes,
ainda persistem certas gradações de consciência. Daí o motivo pelo qual certos setores do
proletariado não apresentarem o grau máximo de consciência possível, típico da “vanguarda”
dessa classe. Em virtude da necessidade de responder, ainda, a tais questões, Lukács introduzirá
argumentos de ordem organizacionais, ou seja, relativos à função do Partido Comunista. Com
isso, novas “mediações” serão apresentadas, visando à realização da “missão histórica” do
proletariado. Somente no próximo capítulo, os argumentos concernentes à organização e tática
comunista serão apresentados e, concomitantemente, problematizados, na eficácia argumentativa
deles, por Lukács.
243 Ao pensar os problemas relativos à organização do todo da sociedade e a sua relação com os
interesses de um “sujeito-objeto idêntico”, Lukács se reporta à distinção, estabelecida por Marx,
entre “classe em si” e “classe para si”. Segundo Marx escreve: “As condições econômicas primeiro
transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa
uma situação comum, interesses comuns. Assim, essa massa já é uma classe em relação ao
capital, mas não o é ainda para si mesma. Na luta, da qual assinalamos apenas algumas fases,
essa massa reúne, e constitui em classe para si mesmo. Os interesses que defende se tornam
interesses de classe”. Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do
Sr. Proudhon, p. 146.
244 LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 144. Nesse sentido, Lukács atribui, ainda, uma “missão histórica” ao
proletariado. Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 173.
108

Sua ação desimpedida (no sentido do capitalismo) não levaria, contudo, ao


seu simples declínio, à transição para o socialismo, mas sim a um longo
período de crises, guerras civis e guerras mundiais imperialistas em grau
cada vez maior: “a um declínio em comum das classes em luta”, a um novo
estado de barbárie (LUKÁCS, 2003, p. 541).

Por conseguinte, com a crise final do capitalismo, o destino do


proletariado torna-se destino de toda a humanidade, a saber, a catástrofe ou a
revolução. Daí postular Lukács: o destino da revolução (e com ela o da humanidade)
depende da maturidade ideológica do proletariado, da sua consciência de classe.
Por esta maturidade, compreende-se a superação da consciência reificada e
constituição do proletariado como uma classe-para-si, ou seja, como um sujeito-
objeto idêntico. Cabe a tal sujeito histórico, a “decisão” 245 de intervir no processo
contraditório capitalista, o qual conduz à barbárie. Com essa decisão, o proletariado
realiza o passo seguinte do desenvolvimento histórico, conferindo outro rumo à
evolução das forças produtivas, que não a barbárie (LUKÁCS, 2003, p. 392). Desse
modo, o proletariado pode explorar as tendências de desenvolvimento imanentes à
história, buscando regulamentar, de forma consciente, as forças de produção da
sociedade: algo que configuraria uma superação da sociedade capitalista moderna
(LUKÁCS, 2003, p. 553).
Para tanto, a vitória no processo revolucionário é um pressuposto
fundamental. Tal vitória, todavia, apresenta-se somente quando o proletariado
supera a cisão dialética interna que nele se manifesta como uma crise ideológica. 246
Daí a vitória na revolução depender da sua maturidade ideológica.
Ademais, é mediante essa abordagem lukacsiana que se torna possível
compreender em que sentido a “verdade é uma arma portadora da vitória”
(LUKÁCS, 2003, p. 171): algo que se explica por causa da gênese da consciência
social verdadeira, possibilidade da compreensão da sociedade como uma totalidade
dialética, e assim configurando, para o proletariado, como um indício de que ele
alcançou, de fato, o estágio de “sujeito-objeto idêntico” e, com isso, a possibilidade
real de dar um outro rumo à sociedade.
245 Lukács define, nesse momento, o proletariado como um “sujeito da decisão”. Com isso, reporta-se
ao argumento marxiano, segundo o qual a revolução é resultado da contradição das forças
produtivas com o modo de produção. Todavia, no universo histórico-social capitalista, a maior força
produtiva que se apresenta é a classe revolucionária proletária, organizada e consciente do seu
papel histórico. Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr.
Proudhon, p. 146-147. Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. A mudança de função do materialismo
histórico [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 447.
246 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 179.
109

5 EM TORNO DE HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE: PRINCIPAIS


INFLUÊNCIAS E SITUAÇÃO DA DIALÉTICA

No presente capítulo, retoma-se a questão central orientadora, da obra


aqui investigada, qual seja, a dialética. Em virtude da exposição prévia, destinada a
assinalar as principais categorias de História e Consciência de Classe, busca-se
aqui articular tais categorias como momentos da construção dialética, de Lukács,
visando indagar os limites dessa construção. Para tanto, destacam-se os dois
conceitos centrais da sua dialética, ou seja, mediação e totalidade. Trata-se da
necessidade de se compreender como é possível propor um procedimento dialético,
sobretudo, em sua orientação histórico-materialista, valendo-se de outras fontes
teórico-metodológicas, não hegelianas ou marxianas, isto é, alheias à dialética. Por
fim, avalia-se o resultado de sua elaboração teórico-dialética, com respeito a um
problema concreto, mas que abrange toda essa obra, a saber, a contradição entre a
necessidade e liberdade. Indagar sobre a resolução lukacsiana desta antinomia,
bem como acerca dos limites de sua dialética, representa, de um modo geral, neste
momento da exposição, indagar a viabilidade da articulação, proposta por Lukács,
entre teoria e práxis revolucionária.

5.1 A ESPECIFICIDADE DAS MEDIAÇÕES EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE


CLASSE: DISCUSSÃO PRELIMINAR SOBRE A DIALÉTICA LUKACSIANA

A complexidade da obra História e Consciência de Classe e a


multiplicidade de temas por ela abordados, exige, por vezes, do leitor, retomar o fio
condutor dessa obra e do seu propósito fundamental. Daí a razão de se remeter,
agora, ao Prefácio e ao ponto em que Lukács (2003, p. 59) defende ser a meta real
dos ensaios reunidos nela, “fazer da questão do método dialético – enquanto
questão viva e atual – o objeto de uma discussão”. No seu entender, a atualidade do
procedimento teórico-metodológico dialético se justifica pelo fato da dialética
possibilitar o conhecimento do presente, isto é, o conhecimento da sociedade e da
história, mediante o qual se verifica a possibilidade infinita de solução de problemas
sociais (LUKÁCS, 2003, p. 54-55).
Para tanto, Lukács buscou destacar a importância e a centralidade
110

metodológica da categoria da totalidade, como já apresentado.247 Desse modo,


mediante o tratamento histórico e dialético da realidade social, torna-se possível
ultrapassar o caráter de mera imediaticidade dos fatos empíricos, revelando, enfim,
o núcleo e a essência da realidade, com as suas determinações históricas e
concretas.248 Logo, o que Lukács expõe, nesse momento de seu escrito, é uma
compreensão, marxiana, de realidade, como uma “totalidade concreta”. 249 Conforme
argumenta Lukács (2003, p. 76): “Somente nesse contexto, que integra os diferentes
fatos da vida social (enquanto elementos do desenvolvimento histórico) numa
totalidade, é que o conhecimento dos fatos se torna possível enquanto
conhecimento da realidade”.
Valendo-se da articulação dialética da realidade, mediante o conceito de
totalidade, com o seu desenvolvimento processual e histórico, Lukács pôde, enfim,
apresentar uma postura revolucionária. Por essa via, ele superou as unilateralidades
e abstrações, as quais separavam o momento histórico das lutas cotidianas e
parciais com respeito à meta final proletária, a saber, de superação do modo de
produção capitalista e a estruturação de uma sociedade comunista. De acordo com
Lukács (2003, p. 101): “A meta final é, antes, essa relação com a totalidade (com a
totalidade da sociedade considerada como processo), pela qual cada momento da
luta adquire seu sentido revolucionário”. Isso ocorre, seja por sustentar o valor da
dialética, seja por defender a necessidade da revolução proletária, pois Lukács
enfrenta as deformações filopositivistas do marxismo, nas expressões revisionistas e
vulgares deste último.250
Entretanto, como destacado anteriormente, não é possível pensar o
conceito de totalidade sem o conceito, correlato àquele, de mediação.251 A mediação
é, justamente, o que confere concretude à totalidade, elaborada por Lukács, na

247 É imperativo que, neste capítulo, alguns dos temas já abordados retornem. Todavia, o retorno de
certos elementos, já apresentados, justifica-se em virtude da questão central deste capítulo, a
saber, a avaliação da elaboração dialética proposta por Lukács, em História e Consciência de
Classe. Nesse sentido, tais temas, ao retornarem, apresentarão uma nova concretude, posto que
serão articulados com o universo categorial, já exposto. Além desta nova concretude, serão
discutidos os limites de certos conceitos de Lukács, à luz de novas elaborações e exposições da
obra lukacsiana mesma, bem como de alguns comentadores de sua obra. Daí não se tratar de
uma repetição temática dos capítulos precedentes.
248 Ver, aqui: notas 188, 189 e 190.
249 Na próxima seção, deste capítulo, abordar-se-á os diferentes conceitos de “totalidade” que Lukács
apresenta na obra aqui investigada.
250 Ver, nesse sentido, as três primeiras seções do segundo capítulo – O marxismo na virada do
século XX: embates teórico-práticos em torno do significado da obra marxiana – deste estudo
monográfico.
251 Ver, aqui, nota 196.
111

medida em que permite destacar os fenômenos de suas formas imediatas e


relacioná-los ao seu núcleo e essência histórica. 252 De igual maneira, é por meio de
mediações que o processo revolucionário proletário é concebível, posto que articula
teoria e práxis revolucionária. Dessa forma, Lukács destaca o sentido fundamental
de “conscientização”, como categoria histórica e social capaz de mediar os polos,
usualmente separados, de teoria e práxis.
Já no ensaio inicial da obra, aqui abordada, ou seja, O que é o marxismo
ortodoxo?, Lukács (2003, p. 65) afirma que “apenas tal relação da consciência com
a realidade torna possível a unidade entre a teoria e a práxis”. Como se observou,
no capítulo precedente, essa intuição inicial de Lukács (2003, p. 288) o conduziu, no
ensaio de 1920, concernente à “consciência de classe”, a elaborar um “estudo
concreto” da consciência. Com base em tal estudo, Lukács pôde por fim delimitar o
seu objeto, qual seja, a consciência de classe, para além da consciência meramente
empírica, dos sujeitos individuais, ou da consciência psicológica das massas. Com
isso, ele compreende que essa consciência “não é, portanto, nem a soma, nem a
média do que cada um dos indivíduos, que formam a classe pensam, sentem etc.”
(LUKÁCS, 2003, p. 142). Ao buscar destacar o seu objeto de estudo, a saber, a
consciência de classe, da imediaticidade com a qual este objeto aparece na
factualidade cotidiana do ser social, Lukács realiza o tratamento histórico-dialético
da realidade. Esse tratamento, como exposto em capítulos precedentes, ilustra o
procedimento teórico-metodológico lukacsiano, bem como a oposição ao
cientificismo, quer do pensamento burguês, quer do marxismo vulgar.
Para tanto, Lukács apresenta a noção de possibilidade objetiva,253
buscando assim reconhecer “os pensamentos e os sentimentos que os homens
teriam tido numa determinada situação da sua vida, se tivessem sido capazes de
compreender perfeitamente essa situação e os interesses dela decorrentes”
(LUKÁCS, 2003, p. 141), quer em relação à ação imediata desses homens, quer em
252 LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 75-76. É importante, ainda, destacar a observação de Mészáros,
segundo a qual é possível assinalar o confronto com a noção de “dever ser” - Sollen –, como uma
dimensão estruturadora e fundamental do pensamento de Lukács. Dessa forma, identifica-se, nas
obras lukacsianas, certo “desejo de objetividade” e concretude, alcançável com a eventual
suprassunção do “dever-ser”. Pode-se dizer que a alusão a tal “desejo de objetividade”, em
História e Consciência de Classe, é observável na tentativa lukácsiana de determinar as
mediações que confeririam concretude ao seu conceito de totalidade. Ao longo deste capítulo,
avaliar-se-á se o intento de Lukács foi bem-sucedido. Ver, aqui: MÉSZÁROS, István. O conceito
de dialética em Lukács, p. 39; p. 45.
253 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 141. Sobre a origem weberiana desse conceito, ver: Nota 297.
112

relação à totalidade da sociedade, conforme tais interesses. Trata-se aqui dos


pensamentos e sentimentos que os homens teriam tido se se encontrassem em
posse de uma consciência social adequada, a saber, uma consciência adjudicada,254
ou, ainda, atribuída. Ao longo de História e Consciência de Classe, Lukács buscou
relacionar tais conceitos com o ser social de cada classe, destacando as barreiras
objetivas e subjetivas que dificultavam, cada classe, alcançar tal consciência social
adequada.
No que concerne, em particular, à classe proletária, Lukács buscou
demonstrar como a falsa consciência é resultado de certos processos de reificação e
racionalização social, na medida em que incluem o trabalhador no processo
produtivo, como se fosse mera mercadoria. Entretanto, por causa dessa reificação e
de certa particularidade subjetiva própria ao proletariado, essa falsa consciência
apresenta-se como uma autoconsciência de mercadoria.255 Daí Lukács (2003, p.
340) sustentar: “Antes de tudo, o trabalhador só pode tornar-se consciente do seu
ser social se se tornar consciente de si mesmo como mercadoria”.
A consciência parcial do proletariado, tornada um objeto, ou seja, uma
mercadoria, é pressuposto do conhecimento correto do seu ser social, bem como do
conhecimento da sociedade como uma totalidade: algo que ocorre por dois motivos
centrais. Em primeiro lugar, pela própria peculiaridade subjetiva do proletariado, uma
vez que, no proletariado, “nem toda faculdade mental é suprimida pela
mecanização” (LUKÁCS, 2003, p. 221), pois, no trabalhador, a “sua essência
humana e anímica não são transformadas em mercadorias” (LUKÁCS, 2003, p.
346), ao passo que, na burguesia, sobretudo, no homem reificado na burocracia e
em determinados trabalhos intelectuais – como o jornalismo - “mecaniza-se, torna-se
mercadoria, também naqueles órgãos que poderiam ser os únicos portadores de sua
rebelião contra essa reificação. Seus pensamentos, sentimento etc. são igualmente
reificados em seu ser qualitativo” (LUKÁCS, 2003, p. 347). Em segundo, para o
proletariado, superar o imediatismo de sua condição social, ou seja, adquirir uma
consciência social adequada, é “uma questão de vida ou morte”. 256
Portanto, em virtude da especificidade da situação social do proletariado,
ele é “impelido para além do imediatismo” (LUKÁCS, 2003, p. 337) e, também, ele é
254 Ver, aqui, nota 298.
255 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 341.
256 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: História e Consciência de
Classe, p. 334.
113

impelido para além do imediatismo do ponto vista da investigação científica, ou seja,


ponto de vista carente de uma investigação histórica e dialética da realidade. Para
Lukács, em posse de uma consciência social adequada, ou atribuída, o proletariado
pode enfim agir como um sujeito histórico e decisivo, no sentido de superar as
contradições do presente. Segundo Lukács explicita:

O ponto de vista segundo o qual o proletariado é o sujeito-objeto idêntico do


processo histórico, isto é, o primeiro sujeito no curso da história que é capaz
(objetivamente) de uma consciência social adequada, manifesta-se de
forma mais concreta. Com efeito, comprova-se que a solução objetivamente
social das contradições, nas quais se expressam o antagonismo da
mecânica do desenvolvimento, só é possível na prática quando essa
solução se manifestar como uma etapa nova e alcançada na prática da
consciência do proletariado. O fato de a ação estar correta ou não quanto à
sua função tem, portanto, seu último critério no desenvolvimento da
consciência de classe do proletariado.257

Portanto, somente após semelhante gênese da consciência atribuída


proletária, o processo de mediação entre teoria e práxis inicia-se a concretizar. Com
a ação correta proletária, vê-se como a teoria do materialismo histórico, que é tanto
o autoconhecimento da sociedade capitalista e do ser social do proletariado, 258
quanto uma arma de luta,259 pode converter-se no “veículo da revolução” (LUKÁCS,
2003, p. 65). Dessa forma, como se trata de uma consciência prática, uma vez que
articulada com a práxis, a sua expressão significa uma modificação dos seus
objetos, na sua própria forma de objetividade. 260 Mediante essas questões, quais
sejam, a da sociedade como uma totalidade histórica e processual em
desenvolvimento, a do caráter prático da consciência atribuída proletária e a da
modificação da objetividade dos objetos sociais, Lukács dirige a sua crítica a uma
das noções mais caras ao marxismo tradicional soviético, mas, igualmente, aquele
marxismo de Engels, a saber, a crítica à “teoria da reflexo”. 261
257 Ibidem, p. 394. Os argumentos, presentes nessa citação, concernentes ao proletariado como
sujeito-objeto idêntico, além do critério correto da ação ser a consciência atribuída, serão
avaliados posteriormente.
258 Cf. LUKÁCS, Georg. A mudança de função do materialismo histórico [1919]. In: LUKÁCS, Georg
(Org.). História e Consciência de Classe, p. 422.
259 Cf. LUKÁCS, Georg. A mudança de função do materialismo histórico [1919]. In: LUKÁCS, Georg
(Org.). História e Consciência de Classe, p. 413.
260 LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 85. Retorna-se, aqui, a certas discussões já travadas no capítulo
anterior.
261 Lichtheim esclarece que o motivo pelo qual a crítica lukacsiana à teoria do reflexo suscitou tantas
polêmicas, diz respeito à especificidade do marxismo soviético. Segundo Lichtheim, o marxismo
soviético, em especial Plejanov e Lênin – aquele de Materialismo e Empiricriticismo, uma vez que
os Cadernos Filosóficos só foram publicados em 1932 –, portanto, autores que influenciaram toda
a sua geração russa, são bastante tributários das observações de Engels. Como abordar-se-á,
114

Lukács, então, reporta-se à teoria engelsiana do reflexo, segundo a qual:


“Compreendemos os conceitos de nossa cabeça, novamente, de maneira
materialista, como reflexos das coisas reais, em vez de compreender as coisas reais
como reflexos desta ou daquela etapa do conceito absoluto” (ENGELS, 1990, p.
194). Engels apresentara o sentido da inversão materialista, operada por Marx,
destacando as diferenças fundamentais entre a concepção idealista do pensamento
e a concepção marxiana. Após haver destacado o que diferencia a concepção
idealista e a concepção histórico-materialista e dialética da realidade, Engels
assinala que é, justamente, o procedimento dialético a estabelecer a continuidade
entre a reflexão hegeliana e a marxista. No seu entender, a dialética, como o vínculo
teórico-metodológico entre Hegel e Marx, pode ser compreendida como “a grande
ideia fundamental de que não se pode conceber o mundo como um conjunto de
coisas acabadas, mas como um conjunto de processos” (ENGELS, 1990, p. 195).
Para Lukács (2003, p. 398), é insuficiente evocar a unidade entre o
pensamento e o ser, mediante um suposto reflexo, uma vez que não se supera, com
apenas isso, o caráter heterogêneo entre ambos, tal como aparece à atitude intuitiva
e contemplativa. Para contornar essa heterogeneidade, tais teorias terminam por se
valerem de uma postura metafísica, a saber, reunificando pensamento e ser por
meio de “mediações mitológicas”. Nesse sentido, explicita Lukács:

Certa vez, Rickert referiu-se ao materialismo como um platonismo com


sinais trocados. Com razão, pois enquanto pensamento e ser conservarem
sua antiga oposição rígida, enquanto permanecerem inalterados em sua
própria estrutura e na estrutura de suas inter-relações, a concepção de que
o pensamento é um produto do cérebro e, portanto, corresponde aos
objetos da empiria, é uma mitologia tanto quanto a da reminiscência e a do
mundo das ideais. É uma mitologia pois também não é capaz de explicar, a
partir deste princípio, os problemas específicos que surgem. É obrigada a
deixá-los sem solução ou a resolvê-los com os “antigos” meios e a colocar a
mitologia em cena apenas como princípio para a solução de todos os
complexos não analisados. Conforme as explicações dadas até agora, é
impossível abolir essa diferença por meio de uma progressão infinita. Desse
modo, há duas alternativas: ou se conta com uma pseudo-solução, ou a
teoria do reflexo ressurge sob uma forma modificada (LUKÁCS, 2003, p.
399).

O que vem indicado por Lukács como modificação da teoria do reflexo,


termina configurando um completo abandono dessa teoria, em consonância com as
suas disposições teórico-metodológicas prévias. Isso ocorre na medida em que

mais adiante, Lukács, ainda, em 1923, terminou criticando várias teses centrais de Engels. Cf.
LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 96-97.
115

Lukács defende a superação da postura contemplativa e intuitiva, segundo a qual o


objeto é concebido em sua forma imediata e rígida. 262 Da mesma maneira, ele se
contrapõe às posturas teóricas as quais visam superar ou anular a dualidade entre
pensamento e ser, de um ponto de vista meramente intelectual. Para Lukács, “toda
tentativa – como a de Hegel, apesar dos vários esforços em sentido contrário – de
superar a dualidade dialeticamente pelo pensamento isento de toda relação concreta
com o ser, está condenada ao fracasso. Pois toda lógica é platônica”. 263 Com isso, o
autor afirma que a busca de superar a dualidade entre ser e pensar, mediante uma
postura lógica, termina expressando o ponto de vista contemplativo da realidade,
logo algo inviável.
Para uma solução concreta do problema levantado com a teoria do
reflexo, Lukács reporta-se, de novo, às Teses ad Feuerbach, marxiana. Isso porque,
para Lukács (2003, p. 400), trata-se de “transformar a filosofia em prática”, cujos
pressupostos estão na compreensão da realidade como um “complexo de
processos”, articulados em uma totalidade histórica, não meramente empírica e
imediata. Daí se “compreender o presente como devir, reconhecendo nele aquelas
tendências, cuja oposição dialética lhe permite criar o futuro” (LUKÁCS, 2003, p.
402-403): algo possível apenas mediante a consciência socialmente adequada do
proletariado.
De acordo com Lukács (2003, p. 403), pensamento e ser não “refletem”
um ao outro, como se corressem paralelamente ou convergissem, mas constituem
“aspectos de um único processo dialético, histórico e real”. No seu entender, o
pensamento é uma “forma da realidade” e um elemento do processo dialético e real
(LUKÁCS, 2003, p. 402). Escreve, ainda, Lukács (2003, p. 403): “O critério da
correção de um pensamento é, com efeito, a realidade. Esta, porém, não é, mas
vem a ser – não sem a contribuição do pensamento”. Logo, em virtude desses
pressupostos acerca da realidade, a teoria do reflexo perde o seu sentido de ser, e
aquilo que a consciência atribuída do proletariado “reflete” é, segundo Lukács (2003,
p. 403-404), “o positivo e o novo que nasce da contradição dialética do
desenvolvimento capitalista”. Trata-se aqui, de novo, de uma consciência, bem como
de uma filosofia prática.

262 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 400.
263 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 401-402.
116

Exposto então como se articula a primeira categoria fundamental da


mediação em História e Consciência de Classe, qual seja, a consciência de classe,
deve-se, indicar ainda a diferença do tratamento, lukacsiano, a este conceito, em
relação ao tratamento marxiano. Não obstante a categoria histórico-social de
“consciência de classe” se apresente como fundamental nos escritos marxianos, e
em diferentes momentos da obra de Lukács, 264 o tratamento conferido por ele e
Marx, a essa temática, é distinto. Em parte, a especificidade do tratamento
lukacsiano decorre do seu reportar-se a Marx Weber, 265 sobretudo, no que concerne
ao seu destaque às análises weberianas, relativas à consciência de classe atribuída.
Apesar de certos comentadores da obra de Lukács enfatizarem que a
distinção lukacsiana entre consciência atribuída e consciência empírica, aproxima-se
daquela distinção, proposta por Marx, entre consciência “em-si” e consciência “para-
si”,266 deve-se, ainda, destacar certas diferenças fundamentais entre a elaboração
de Lukács e aquela de Marx. Isso porque, tais distinções se apresentam na
diferença de tratamento teórico-metodológico em Marx e em Weber. Daí se dizer que
a categoria de “tipos ideais” weberiana, articulada, por Lukács, na consciência
atribuída e na tipologia social, na qual se origina essa consciência, diverge da
elaboração histórico-materialista e dialética de Marx. 267 Nas obras marxianas, ao
contrário do tratamento weberiano, o que se verifica é uma exposição genética das
categorias, reconduzindo-as a suas origens histórico-sociais, e inferindo tais
conceitos de sua base material. Logo, não há, no tratamento marxiano e em suas
categoriais, um caráter de simples “exigência” ideal, oriunda de uma abstração
metodológica.268
264 Ver, a esse respeito: Notas 265, 273, 286 e 291.
265 Ver, aqui, nota 297.
266 Cf. MÉSZÁROS, Istvan. Contingent and necessary class consciousness. In: MÉSZÁROS, Istvan
(Org.). Aspects of history and class consciousness. London: Routledge & Kegan Paul, 1971, p.
94.
267 Acerca dessa indicação, de distintos tratamentos teórico-metodológicos, relativos à teoria de Marx
e àquela de Weber, ver: VEDDA, Miguel. Apresentação. In: LUKÁCS, György (Org.).. Lênin: Um
estudo sobre a unidade de seu pensamento, p. 12.
268 No tocante ao tratamento marxiano, em oposição ao que se reporta a exigências ideias, Furio
Cerutti explicita: “La dimensione sociale complessiva, i cui soggetti sono le classi, non viene
riguardata come semplice 'esigenza', né essa forma meramente lo scenario effettivo della ricerca
aldilá delle astrazioni metodologiche. Essa è piuttosto risultato della'esposizione genetica delle
forme che sorreggono il modo di produzione; è vero che Marx talora reintroduce ex abrupto le
classi come totalità, cioè nella loro interezza, soprattuto dove la esposiozione genetica deve
congiungersi con la concrezione storica, ma in quanto concetti sistematici esse sono letteralmente
derivate [A dimensão social geral, cujos sujeitos são as classes, não é considerada como simples
“exigência”, nem é apenas o cenário efetivo da pesquisa além das abstrações metodológicas. É
antes o resultado da exposição genética das formas que sustentam o modo de produção; é
verdade que Marx às vezes reintroduz ex abrupto as classes como totalidade, ou seja, em sua
117

O que se verifica no tratamento marxiano é, antes, uma compreensão,


ainda que nem sempre explícita, da complexidade em torno da consciência de
classe. Isso porque Marx compreende que o percurso até a maturação da
consciência é “tortuoso”, marcado por momentos de freio e regressão, e não de
simples acumulação linear.269 Em consonância com a complexidade do tratamento
marxiano, tal processo de conscientização é acompanhado de diferentes mediações
econômicas, políticas, de luta de classes e, ainda, culturais. 270 Em contrapartida, o
tratamento “transcendental”271 da consciência, isto é, tratamento que se vale de
categoriais oriundas do historicismo alemão, em especial, weberianas, termina
abstraindo o caráter complexo e múltiplo das mediações e das determinações
históricas, relativas às experiências concretas da classe proletária. 272
inteireza, sobretudo, onde a exposição genética deve se unir à concreção histórica, mas enquanto
conceitos sistemáticos, são literalmente derivados]”. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni,
organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 5. Deve-se, ainda, recordar o
caráter inconciliável da postura teórico-metodológica weberiana com aquela hegeliana, sobretudo,
na compreensão, de Hegel, do real como o racional, ou seja, como inteligibilidade lógico-
ontológica. Tamanha inconciliabilidade não é desprezível em um trabalho, como o de Lukács, que
busca destacar a real continuidade existente entre a reflexão hegeliana e aquela marxiana, cuja
continuidade não vem pensada, por Lukács, em termos meramente estilísticos ou formais, mas
como essencial, em virtude do procedimento dialético, abranger a obra hegeliana e chegar à obra
de Marx, o qual elabora tal procedimento em um sentido diverso, a saber, histórico e materialista.
Cf. BIANCO, Franco. Dialettica della razionalità: Lukács e Marx Weber. In: VALENTE, Mario (Org.).
Lukács e il suo tempo: la costanza della ragione sistematica. Roma: Tullio Pironti Editore, 1984,
p. 157-160; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de
Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. XXXVI; Ver, ainda: LUKÁCS, Georg.
Prefácio [1922]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 56.
269 CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p.
104. Complementa, ainda, Cerutti: “Non accumulazione lineare, si diceva, ma tortuosità: la
coscienza di classe si dispiega cioè in mezzo alle esperienze e ai bisogni degli individui, e ciò
significa anche: attraverso bisogni repressi o deformati, attraverso esperienze vischiose nel
procedere e nei tempi, non sempre chiare e univoche nel loro sedimentarsi [Não acumulação
linear, se dizia, mas tortuosa: a consciência de classe se desenrola em meio às experiências e às
necessidades dos indivíduos, e isto significa ainda: através de necessidades reprimidas ou
deformadas, através de experiências viscosas no proceder e nos tempos, nem sempre claras e
unívocas no sedimentar-se delas]”. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione:
Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 105.
270 Ver, aqui: CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 104. Marx menciona a importância das greves, coalizões e trade unions, assim como
dos partidos políticos operários, na Inglaterra, ilustrando, assim, o caráter complexo da formação
da consciência proletária. Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria,
do Sr. Proudhon, p. 145.
271 Autores como Furio Cerutti e Lubomir Schor se valem do termo “transcendental” para ilustrar a
origem weberiana, mas elaborada no sentido lukacsiano, do conceito de consciência de classe
“atribuída”. Com isso, ambos os comentadores compreendem como abstração de certas
determinações históricas, de certas mediações e da experiência efetiva de gênese e
desenvolvimento das classes, elementos indispensáveis para conferir ao conceito de consciência
de classe um caráter concreto e historicamente elaborado. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni,
organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 105. Ver, ainda: SOCHOR,
Lubomir. Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20, p. 44.
272 Nesse sentido, Eric Hobsbawn comenta: “[…] é o que pensariam, por exemplo, um burguês ou um
proletário racional de ordem ideal. É uma construção teórica, derivada de um modelo teórico de
sociedade, e não uma generalização empírica do que os homens realmente pensam”. Ainda que
118

Desse modo, pode-se sustentar que Lukács, com sua teoria da


consciência atribuída, termina abstraindo uma série de termos intermediários, ou,
antes, de mediações presentes na obra marxiana. O que se verifica antes é a
introdução, sub-reptícia, de categorias do universo teórico da sociologia alemã,
como quando Lukács apresenta a delimitação das situações objetivas, de acordo
com as quais pode-se pensar uma consciência adjudicada. 273 Assim, Lukács (2003,
p. 141) menciona “tipo fundamentais” de situações objetivas, determinados pela
“tipologia da posição dos homens no processo de produção” (LUKÁCS, 2003, p.
141-142). Somente com tais determinações – transcendentais – revela-se a
possibilidade objetiva274 de uma consciência social adequada. Em síntese, o que se
constata, com tais tipologias, é uma consciência post festum,275 ilustrado por seu
caráter “imputado” e atribuído.
Em virtude da “falta de conexão entre a consciência atribuída e as
experiências, ações, crenças e pensamentos dos homens reais e concretos”, 276
verifica-se assim a redução dos homens reais, membros do proletariado, a
“figuras”,277 ou meras “encarnações” dessa consciência transcendental. Não se
explica, entretanto, em suas determinações históricas, como de uma consciência
“falsa” ou, ainda, uma mera consciência de mercadoria, transforma-se em uma
consciência socialmente adequada. Recorre-se, para tanto, a explicações pouco
satisfatórias, na medida em que se abstrai a base materialista e histórica. Por isso,
Hobsbawn, no decorrer de seu texto, não desdobre as consequências teórico-práticas desse
modelo “transcendental” de formulação, presente em Lukács, sua indicação é significativa para o
propósito da discussão em questão, a saber, pensar os limites das mediações indicadas em
História e Consciência de Classe. Cf. HOBSBAWN, Eric. Class consciousness in history. In:
MÉSZÁROS, Istvan (Org.). Aspects of history and class consciousness. London: Routledge &
Kegan Paul, 1971, p. 6.
273 CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p.
112-113.
274 Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 141.
275 Segundo Cerutti: “[…] in Lukács essa consiste nell'aggiunzione di una grandeza meramente
ipotetica, la coscienza imputata, al corso storico effettivo. In questo modo si atrtibuisce ai soggetti
storici passati, tutti classisticamente parziali, una coscienza della organizzazzione complessiva
della società, insomma della totalità concreta che è in realtà la coscienza scientifica post festum
che di quelle epoche fornisce il materialismo storico [em Lukács ela consiste na ligação de uma
grandeza meramente hipotética, a consciência imputada, ao curso histórico efetivo. Neste modo
se atribui aos sujeitos históricos passados, todos classisticamente parciais, uma consciência da
organização total da sociedade, em suma, da totalidade concreta, que é em realidade a
consciência científica post festum que, daquelas épocas, fornece o materialismo histórico]”. Cf.
CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p.
114.
276 VEDDA, Miguel. Apresentação. In: LUKÁCS, György (Org.). Lênin: Um estudo sobre a unidade de
seu pensamento, p. 12.
277 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 117.
119

com respeito ao proletariado imerso ainda em sua “falsa consciência”, que se


rebelava contra as fábricas e as máquinas – aspectos imediatos da dominação, mas
não o verdadeiro fundamento da exploração econômica –, Lukács insistia em atribuir
tal deficiência ao fato desses proletários terem sidos “educados à maneira da
pequena burguesia”.278
Ademais, pode-se ainda acrescentar que Lukács indica, para sinalizar o
salto em direção à consciência verdadeira, um suposto elemento “subjetivo”, 279
presente no proletariado, que é impassível ante os efeitos da reificação. Por sua vez,
na burguesia, em especial aquela burocrática, inexiste tal fator subjetivo, não
propenso a ser reificado. A burguesia, ao contrário, “mecaniza-se, torna-se
mercadoria, também naqueles órgãos que poderiam ser os únicos portadores de sua
rebelião contra essa reificação. Isso porque os seus pensamentos, sentimento, e
assim por diante, são igualmente reificados em seu ser qualitativo”. 280
Desse modo, diante da obscuridade relativa ao modo como se realiza, de
forma efetiva, a passagem da falsa consciência a consciência verdadeira, no
proletariado, até um dos mais árduos defensores de História e Consciência de
Classe insistiu no “abismo”281 existente entre esses dois momentos da consciência.
Com o termo “abismo”, deve-se compreender a ausência de mediações,
consideradas, de forma materialista, capazes de conferir concretude ao objeto em
questão, a saber, ao problema da consciência de classe. Daí o proletariado, cuja

278 LUKÁCS, Georg. Legalidade e ilegalidade [1920]. In: História e Consciência de Classe, p. 469.
279 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: História e Consciência de
Classe, p. 346.
280 Ibidem, p. 347.
281 Cf. RÉVAI, József. Recensione di “Storia e coscienza di classe”. In: BOELLA, Laura (org.).
Intellettuali e coscienza di classe: il dibattito su Lukács 1923-1924, p. 177. Ainda nesse sentido,
sustentam Arato e Breines: “En outras palabras, no se sabe bien cómo la autoconciencia de
indivíduos atomizados puede conducir a su conciencia de la subjetividad del outro a un movimento
hacia la compreensión (en común) de la totalidad capitalista. La teoría de la coisificación se niega
a considerar (ni siquiera como problema) la primera cuestión; la segunda, en cambio, forma
claramente parte de su objeto de análisis, aunque termine demostrándose que no tiene solución
[Em outras palavras, não se sabe como a autoconsciência de indivíduos atomizados pode
conduzir a consciência da subjetividade do outro a um movimento em direção à compreensão (em
comum) da totalidade capitalista. A teoria da reificação se nega a considerar (nem sequer como
problema) a primeira questão; a segunda, ao contrário, forma claramente parte do seu objeto de
análise, embora termine demonstrando-se que não tem solução]”. Mais à diante, Arato e Breines
esclarecem, ainda mais, a problemática em questão: “El abismo entre la 'conciencia mínima de
enajenación' y la 'conciencia de clase' seguía siendo enorme. Por lo tanto, para poder postular la
superación de la coisificación, seguía recurriendo a un proletariado que era el sujeto absoluto de la
historia [O abismo entre a “consciência mínima de alienação” e a “consciência de classe” seguia
sendo enorme. Por essa razão, para poder postular a superação da reificação, seguia recorrendo
a um proletariado que era o sujeito absoluto da história]”. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El
joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 216; p. 241.
120

consciência é atribuída, termina, por vezes, assumindo um caráter “salvífico”. 282


Dada à abstração de certas determinações históricas, assim como à
delimitação precisa de mediações historicamente gestadas, esse momento da teoria
de Lukács assume um tom “esquemático”. 283 Isso significa compreender que o fato
de ele recorrer a conceitos como possibilidade objetiva e imputação, termina
comprometendo a dimensão dialética de sua obra, uma vez que a mediação é um
dos conceitos fundamentais de sua dialética, sobretudo, de uma dialética
compreendida no sentido marxiano. Ademais, na medida em que não se verifica, no
problema da consciência de classe, uma crítica de certas categorias weberianas,
bem como uma recondução para os seus fundamentos histórico-materialistas,
compreende-se que Lukács termina incorrendo em certo “ecletismo”. 284 Tais
problemas assumem uma dimensão teórico-prática, revelando certa gravidade, uma
vez que a ausência de mediações apropriadas, provocam a desarticulação entre
teoria e práxis. Para não perder de vista a questão da revolução proletária, Lukács é
impelido, por vezes, e de modo voluntarista, a atribuir certo caráter “salvífico” e
messiânico ao proletariado.285
Todavia, não se pode descuidar que a abstração, por parte de Lukács, de
certas determinações históricas vem acompanhada, em um outro momento da obra,
de uma compreensão diversa da especificidade da mediação. Nesse sentido,
Lukács sustenta:

A categoria da mediação é como alavanca metódica para superar o simples


imediatismo da empiria não é, portanto, algo trazido de fora
(subjetivamente) para os objetos, não é um juízo de valor ou um dever
confrontado com o ser, mas é a manifestação de sua própria estrutura
(LUKÁCS, 2003, p. 330-331).

Em 1967, no posfácio dedicado à História e Consciência de Classe,


Lukács, a despeito de suas considerações críticas acerca dessa sua obra,
reconhece que essa compreensão da mediação presente, já, na estrutura dos

282 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 117-118.
283 Ver, aqui: ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo
occidental, p. 219-220.
284 Ver, nesse sentido: ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del
marxismo occidental, p. 182.
285 Os problemas relativos à formulação lukacsiana, do proletariado como sujeito-objeto idêntico,
serão abordados em outro momento da exposição, pois se entende que, com tal categoria, já se
deslocou da questão das mediações para o problema da totalidade.
121

objetivos, é justa.286 Com efeito, não se verifica aqui abstrações em relação ao


objeto, historicamente considerado, mas uma compreensão imanente do mesmo. No
que concerne a uma consideração justa acerca da especificidade das mediações,
em certos momentos dessa obra, Lukács reconhece que a consciência proletária, de
fato, não apresenta um desenvolvimento linear. Ao contrário, a consciência é
submetida, por vezes, a um movimento de recuo, 287 ilustrando, assim, uma
compreensão acertada da complexidade do problema. Todavia, não se pode
sustentar que tais acenos acertados em relação ao problema da consciência
esclareça, ou mesmo, supere os problemas anteriormente apresentados. 288
Todavia, deve-se destacar que, ainda no universo teórico de História e
Consciência de Classe, Lukács busca contornar os problemas relativos à mediação
da consciência de classe.289 Daí ele formular o papel do Partido Comunista, quer
286 Cf. LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de
Classe, p. 30.
287 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,

Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 572.


288 Com isso, constata-se que, por vezes, História e Consciência de Classe expõe os problemas

relativos à consciência de classe de modo acertado, isto é, em consonância com os pressupostos


teórico-metodológicos dessa obra, a saber, de uma dialética marxista. Com base em tal
constatação, afasta-se de certas abordagens, como aquelas dos críticos soviéticos de Lukács, que
reduzem essa obra a categorias como: idealista, mística, eclética, dentre outras. Ainda que, por
vezes, História e Consciência de Classe, em certas passagens, apresente momentos idealistas e
ecléticos, em outros momentos, tal obra se afasta de tais características. Diante disso, julga-se,
mais apropriado, interpretar a mesma como o Lukács, da maturidade, interpretou os escritos
hegelianos. Nesse sentido, vale aqui indicar o que ele escreveu em A falsa e a autêntica ontologia
de Hegel: “Para fazer com que Hegel seja hoje uma força viva e atuante no pensamento filosófico
e na realidade, é preciso continuar no caminho iniciado pelos clássicos do marxismo. É preciso
olhar para Hegel do mesmo modo como Marx olhou para Ricardo. No mestre, o que é novo e
significativo, se desenvolve em meio ao esterco das contradições, brotando vigorosamente dos
fenômenos contraditórios”. Mais à frente, Lukács desenvolve essa perspectiva, da
contraditoriedade interna da obra de Hegel, da seguinte maneira: “Não se trata de que afirmações
singulares, colocações metodológicas singulares etc., de Hegel sejam corretas enquanto outras
seriam insustentáveis. Em suma, não é possível separar precisamente ‘o que está vivo’ e ‘o que
está morto’ em seu sistema; ao contrário, os aspectos corretos e os aspectos falsos apresentam-
se nele unidos e ligados de modo indissolúvel”. O fato de se reportar aqui à abordagem do Lukács,
da maturidade, relativa à obra hegeliana, não significa sustentar que a origem da contradição
interna dos escritos de Hegel seja a mesma origem da contradição presente em História e
Consciência de Classe. Busca-se, com tal comparação, justificar o porquê é insuficiente reduzir
essa obra a predicados únicos, como idealista, eclética ou, ainda, materialista. Tamanha redução
termina mistificando e abstraindo certos elementos fundamentais da obra. Em contrapartida e em
consonância com a disposição teórico-metodológica da obra, é mais acertado tratá-la mediante a
indicação que Lukács, em seu posfácio de 1967, sinalizou, a respeito do “funcionamento
simultâneo e contraditório de tendências intelectuais opostas”, em seu pensamento da juventude.
Cf. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I, p. 183; p. 193-194. Ver, ainda:
LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe,
p. 4; DEBORIN, Abraham. Lukács e la sua critica del marxismo. In: BOELLA, Laura (org.).
Intellettuali e coscienza di classe: il dibattito su Lukács 1923-1924, p. 125.
289 Ilustra-se, assim, como o próprio Lukács não está satisfeito com alguns dos resultados teóricos

apresentados em História e Consciência de Classe, em especial, nos ensaios iniciais da obra.


Observa-se o seu esforço, ao longo da obra, para superar certos posicionamentos teóricos
antigos, bem como o esforço para conferir, as suas ideias, maior concretude e objetividade
122

como mediador entre teoria e práxis, quer como mediador entre o homem e a
história.290 A primeira vez em que o tema do partido é introduzido na obra é no
ensaio Rosa Luxemburgo como marxista [1921], portanto, ainda nos ensaios iniciais.
O caráter prematuro da abordagem lukacsiana, relativa ao partido comunista, revela-
se quando o autor comenta: “Uma vez reconhecido o partido como forma histórica e
portador ativo da consciência de classe, ele se torna, ao mesmo tempo, o portador
da ética do proletariado” (LUKÁCS, 2003, p. 129). Mais adiante, acrescenta Lukács
(2003, p. 130), defendendo que o partido é uma “força moral”, na medida em que
deve alimentar a confiança das massas espontaneamente revolucionárias.
Assim, na perspectiva da argumentação anterior, sustenta-se que Lukács
não conseguiu superar o caráter “transcendental” 291 das mediações apresentadas.
Isso ocorre, sem dúvida, nem mesmo quando busca uma instituição histórica
concreta, tal como o Partido Comunista, uma vez que este último vem exposto, nos
ensaios iniciais de História e Consciência de Classe, em seu elemento meramente
moral, abstraído de suas determinações históricas.292
Em virtude do caráter precário das mediações, apresentadas nessa obra
de Lukács, de 1923, não apenas as articulações, pretendidas nela, entre homem e
história, mas, igualmente, entre teoria e práxis, encontram-se prejudicadas.
Ademais, verifica-se ainda o risco de certos elementos da imediaticidade293 social,

possível. Ver, aqui: MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács, p. 45.


290 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 560; p. 565. A esse respeito, ainda, Mészáros
comenta o seguinte: “Portanto, apesar de o elemento imperativo ser muito forte, o reconhecimento
do poder mediador de uma instituição historicamente concreta é um passo significativo para além
da posição anterior”. Cf. MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács, p. 53.
291 Nesse sentido, Cerutti comenta que o “partido”, em Lukács, é abordado como uma “encarnação”
mundana e uma “figura” da consciência de classe imputada. Apresenta-se, assim, um “partido
militante de tipo kantiano”, abstraindo de suas determinações materialistas. Cf. CERUTTI, Furio.
Un modello di marxismo critico. In: VALENTE, Mario (Org.). Lukács e il suo tempo: la costanza
della ragione sistematica, p. 78. Posteriormente, abordar-se-á, em detalhes, o tratamento
conferido por Lukács, ao Partido Comunista, nos ensaios finais de História e Consciência de
Classe. Em tais ensaios, Lukács busca superar as características, demasiado morais e
transcendentais, atribuídas ao partido, nos ensaios iniciais, revelando, assim, a sua insatisfação
com alguns dos seus resultados iniciais, bem como a sua busca de concretizar certas temáticas.
292 Destaca-se que certos comentadores da obra de Lukács atribuem esses elementos
transcendentais e pouco materialistas, presentes em História e Consciência de Classe, ao fato de
a elaboração filosófica no pensamento lukácsiano ter avançado mais do que a sua capacidade de
análise política. Cf. KONDER, Leandro. Lukács, p. 32. Ver, ainda: MÉSZÁROS, István. O
conceito de dialética em Lukács, p. 64; ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y
los orígenes del marxismo occidental, p. 207.
293 Argumenta, com efeito, Mészáros: “[…] os limites das realizações filosóficas de Lukács são
estabelecidos por sua própria concepção de mediação ou, para ser mais preciso, pelos defeitos
dessa concepção: pela intrusão injustificável da imediaticidade em sua visão de mundo”. Cf.
MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács, p. 64. Somente na seção que abordará,
com mais detalhes, o problema do Partido Comunismo e as questões da organização proletária,
123

tão combatidos pela orientação teórico-metodológica lukacsiana, adentrarem, sub-


repticiamente, em sua teoria. Resta então,verificar as consequências do problema
relativo à especificidade da mediação com relação à categoria fundamental da
dialética lukacsiana, a saber, a totalidade.

5.2 DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ AO MATERIALISMO HISTÓRICO E


DIALÉTICO: A CATEGORIA DE TOTALIDADE FORMAL EM HISTÓRIA E
CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Na seção dedicada ao procedimento teórico-metodológico de História e


Consciência de classe, constatou-se a importância e a correlação dos conceitos de
mediação e totalidade. Tendo como pressuposto a exposição, na seção anterior,
sobre os limites das mediações propostas por Lukács, poder-se-ia aqui sustentar
que, necessariamente, o conceito de totalidade, nessa obra, encontrar-se-ia
prejudicado, tendo em vista que são as mediações, corretamente avaliadas, que
permitem destacar o objeto de sua imediaticidade factual e reconduzi-lo para o seu
fundamento histórico-social. O que tal conclusão apressada abstrai, é o caráter
complexo de tal conceito em História e Consciência de classe. Conforme as
considerações de Furio Cerutti destacaram, há, no mínimo, dois conceitos de
totalidade na obra de Lukács, a saber, a totalidade formal e a totalidade concreta.294
Para iniciar uma discussão acerca deste conceito, na obra lukacsiana, deve-se ter
como base a distinção indicada por Cerutti.
Em primeiro lugar, o tratamento de Lukács (2003, p. 106), conferido à
“sociedade como totalidade”, passa pela compreensão do problema da reificação.
Nesse sentido, retomando certos argumentos do capítulo precedente, nas

em História e Consciência de Classe, o problema da imediaticidade será elucidado. Todavia, é


possível adiantar tal elaboração, com certos argumentos de Arato e Breines, os quais comentam
que Lukács, ao atribuir um caráter moral e abstrato, historicamente, ao partido, termina
desculpando, de antemão, certas tendências da “bolchevização” da política e do partido russo.
Comentam Arato e Breines, com relação à aceitação do partido russo, por parte de Lukács: “Por
outro lado, la lógica de su argumento lo obligaba a aceptar y justificar un partido que en realidad
satisfacía muy poco de los requisitos implícitos próprios de su teoría [Por outro lado, a lógica do
seu argumento o obrigava a aceitar e justificar um partido que, em realidade, satisfazia muito
pouco os requisitos implícitos próprios de sua teoria]”. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El
joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 226.
294 A este respeito, comenta Cerutti: “Totalità concreta e totalità formale costituiscono la coppia
concettuale antinomica che struttura la critica della reificazione [Totalidade concreta e totalidade
formal constituem o par conceitual antinômico que estrutura a crítica da reificação]”. Cf. CERUTTI,
Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 9.
124

sociedades modernas o que se verifica é uma universalização e generalização da


estrutura mercantil.295 Desse modo, a mercadoria, com os seus processos
fetichistas, estrutura e conforma a realidade imediata, seja de um ponto de vista
objetivo, seja de um ponto de vista subjetivo, ou dos indivíduos implicados nesse
processo.296 Tal processo de estruturação social é marcado, como visto, pela
racionalização e calculabilidade297 de todas as dimensões da vida, visando assim a
obtenção de máxima exploração e, consequentemente, o lucro para a classe
capitalista. De acordo com Lukács, isso implica, para a factualidade imediata da vida
social, o seguinte:

O caráter fetichista da forma econômica, a reificação de todas as relações


humanas, a extensão sempre crescente de uma divisão do trabalho, que
atomiza abstratamente e racionalmente o processo de produção, sem se
preocupar com as possibilidades e capacidades humanas dos produtores
imediatos, transformam os fenômenos da sociedade e, com eles, sua
apercepção. Surgem ‘fatos’ isolados, conjuntos de fatos isolados, setores
particulares com leis próprias (teoria econômica, direito etc.) que, em sua
aparência imediata, mostram-se largamente elaborados para esse estudo
científico. Sendo assim, pode parecer particularmente ‘científico’ levar até o
fim e elevar ao nível de uma ciência essa tendência já inerente aos próprios
fatos (LUKÁCS, 2003, p. 72).

Diante de tais fatos isolados e abstratos, a operação, daqueles sujeitos


imersos nos processos reificantes, é se utilizar de procedimentos contemplativos a
fim de compor “relações reflexivas” 298 entre tais fatos. Ao se reportar a tais relações
reflexivas, Lukács (2003, p. 77-78)reconhece que se abstrai, dessa forma, do caráter
histórico que embasa tais fatos, eternizando assim a sociedade na qual tais fatos
são verificados, a saber, a sociedade burguesa. Nesse sentido, acrescenta Lukács:
“As relações reflexivas dessas formas fetichistas, suas ‘leis’, surgidas
inevitavelmente da sociedade capitalista, mas dissimulando as relações reais entre
os objetos, mostram-se como as representações necessárias que se fazem os
agentes de produção capitalista”. 299 A relação entre procedimento metodológico e
ser social de uma classe já foi exposta no capítulo anterior, 300 no entanto, interessa

295 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 196.
296 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 193-196.
297 Ver, aqui, nota 262.
298 Ver, aqui, nota 156.
299 LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 85-86.
300 Ver nota 9.
125

aqui, em especial, a dimensão da totalidade formal composta sob o signo de tais


relações reflexivas.
Se, em um primeiro momento, Lukács busca esclarecer o fundamento
social da totalidade formal, a saber, o núcleo reificado das sociedades capitalistas,
em um segundo, ele conduz a discussão de outra maneira. Daí se considerar, agora,
a sua avaliação de certas expressões teóricas desse núcleo reificado. Conforme
sustenta o autor: “A filosofia crítica moderna nasceu da estrutura reificada da
consciência”.301
O que distinguiria a filosofia moderna das demais é, de acordo com
Lukács (2003, p. 241), o fato de ela postular o seguinte problema: “não mais aceitar
o mundo como algo que surgiu independentemente do sujeito cognoscitivo (por
exemplo, algo criado por Deus), como concebê-lo, antes, como o próprio produto do
sujeito”.
Desse modo, na medida em que, para a filosofia moderna, sobretudo a
kantiana,302 os sujeitos cognoscitivos criam os objetos, eles podem ser conhecidos.
Aduz ainda Lukács (2003, p. 244-245), que o racionalismo sempre existiu, nas mais
diferentes épocas, no sentido de “um sistema formal, cuja unidade se orientava na
direção daquele aspecto do fenômeno que pode ser apreendido, produzido e,
portanto, dominado, previsto e calculado pelo entendimento”. Não obstante tais
elementos não sejam novidades, como explicita Lukács (2003, p. 245), o que há de
novo e específico no racionalismo moderno é o fato de ele reivindicar, para si, o
“princípio da ligação entre todos os fenômenos que se opõem à vida do homem na
natureza e na sociedade”.
A despeito de tal pretensão à apreensão metódica e universal do ser, por
parte do racionalismo moderno, Lukács (2003, p. 246) argumenta que tal totalidade
é, necessariamente, formal, na medida em que abstrai de parte da realidade
material. Em vista disso, Lukács reporta-se ao conceito kantiano de “coisa-em-si”, 303

301 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 240. A esse respeito, ainda, Cerutti comenta que o fato de Lukács
expor, primeiro, o processo real e reificado, para, posteriormente, expor as expressões teóricas
desse processo social, é significativo. Isto na medida em que indicaria, para Lukács, a
preeminência do formalismo real, na produção capitalista, em relação às suas expressões
ideológicas. Todavia, tal preeminência não é observável ao longo de toda sua obra, como ver-se-á,
ainda. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 26-27.
302 Ver, aqui, nota 420.
303 Acerca do conceito de “coisa-em-si”, na filosofia kantiana, ver: KANT, Immanuel. Crítica da Razão
Pura, p. 22.
126

para ilustrar a barreira “irracional”, 304 metódica e fundamental de todo o racionalismo


moderno, a saber: a matéria e o conteúdo das formas, além da totalidade material e
da substância última do conhecimento (LUKÁCS, 2003, p. 247). Desse modo, a
busca por um sistema, na filosofia moderna, que unifique todos os fenômenos
sociais, esbarraria, no seu entender, no problema da irracionalidade. Problema, este,
inexorável, visto que diz respeito ao “modo de ser dos conteúdos sensoriais”
(LUKÁCS, 2003, p. 249). Todavia, a despeito da inexorabilidade do problema para o
racionalismo, nos seus limites formais, a tragédia da filosofia clássica alemã foi,
segundo Lukács (2003, p. 252), não abstrair, por trás de suas formais racionais, o
elemento irracional.
Ao contrário, a filosofia clássica alemã “preserva no conceito o caráter
irracional do dado inerente ao conteúdo desse conceito e se esforça, todavia,
superando essa constatação, para erigir o sistema” (LUKÁCS, 2003, p. 252).
Ademais, para preservar o conteúdo irracional, complementa Lukács (2003, p. 254),
tal filosofia não abstrai da oposição lógica entre forma e conteúdo, mas, mantém tal
oposição, buscando transpô-la sistematicamente. Com isso, a filosofia clássica
alemã, de acordo com Lukács, visa construir um sistema racional, a despeito da
irracionalidade, a qual é reconhecida como uma tarefa305 a ser superada.
Porém, como a filosofia clássica alemã reconheceu a presença
necessária, da irracionalidade imanente ao conteúdo concreto ou, na terminologia
kantiana, da coisa-em-si, o problema reconfigurou-se. Por não abstrair da totalidade
formal, foi preciso deslocar a sua apreensão para a “interioridade” (LUKÁCS, 2003,
p. 260), mais precisamente, para um “sujeito do pensamento, cuja existência
pudesse ser pensada – sem hiatus irrationalis, sem a coisa transcendental em si –
como algo que é seu produto”. Daí Lukács identificar, na filosofia de Fichte, a

304 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 246.
305 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 254. Posto que Lukács constata que a filosofia clássica alemã
busca, como uma tarefa, superar a irracionalidade, foi possível esclarecer o papel fundamental
que o método da matemática exerceu em certos pensadores modernos. Cf. LUKÁCS, Georg. A
reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de
Classe, p. 254-255. Daí comentar Fichte: “Eu desejaria que ninguém se dispusesse ao estudo da
doutrina-da-ciência sem algum conhecimento da matemática – o único procedimento materialiter
cabalmente científico que existe entre nós – e sem uma clara penetração do fundamento da
evidência imediata e da validade universal dos postulados e teoremas matemáticos”. Ademais,
acrescenta Fichte: “Porque a doutrina-da-ciência é matemática, ela tem as vantagens da
matemática”. Cf. FICHTE, Johann Gottlieb. O Programa da Doutrina-da-Ciência. In: CIVITA, Victor
(Org.). Os pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural,
1973, p. 54-55.
127

egoidade,306 o sujeito do conhecimento, como ponto de partida e guia do método, ou


seja, um sujeito compreendido como produtor da totalidade.
Daí, nesse momento da exposição da obra, a busca de demonstrar um
ponto em que a dualidade entre sujeito e objeto seja superada, em que ambos
coincidam como idênticos.307 No entender do autor, não se trata, porém, de
desconsiderar a distinção empírica de sujeito e objeto, mas descobrir um ponto
nodal em que tal dualidade possa ser produzida. Nesse sentido, argumenta Lukács:
“Em oposição à aceitação dogmática de uma realidade simplesmente dada e
estranha ao sujeito, nasce a exigência de compreender, a partir do sujeito-objeto
idêntico, todo dado como produto desse sujeito-objeto idêntico”, 308 de modo que
toda dualidade empírica seria uma derivação, particular, dessa unidade primitiva.
Lukács sustenta ainda que essa unidade entre sujeito e objeto, é
constituída como atividade, quer no sentido fichtiano, como auto-atividade intelectual
do eu,309 quer no sentido kantiano, como atividade moral. Sobre a atividade, no
sentido kantiano, Lukács (2003, p. 264) comenta: “[…] é somente no ato ético, na
relação do sujeito (individual) – agindo moralmente – consigo mesmo que essa
estrutura da consciência, essa relação com seu objeto pode ser descoberta de modo
real e concreto”. Ainda assim, contrapõe Lukács, o problema da irracionalidade do
substrato material e concreto não é solucionado, visto que, na filosofia kantiana, tal
problema da facticidade é deslocado para uma estrutura dual da natureza e do
sujeito.
Nesse sentido, Lukács reconhece que o problema concernente à relação
entre necessidade e liberdade, na filosofia kantiana, é deslocado, mas não resolvido.
No seu entender: “[…] a necessidade impiedosa das leis é mantida para o ‘mundo

306 Para Fichte, a egoidade é a auto-intuição intelectual, a saber, a inteligência que intui a si mesma,
que retorna a sua atividade para o interior de si mesma. Fichte deduz tal resultado, na medida em
que busca um princípio que fundamente o seu sistema do saber. Cf. FICHTE, Johann Gottlieb. O
Princípio da Doutrina-da-Ciência. In: CIVITA, Victor (Org.). Os pensadores. Tradução de Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 45.
307 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 262.
308 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 262. Ver aqui, ainda, a seguinte passagem em que Fichte sustenta:
“Toda consciência possível, como objeto de um sujeito, pressupõe uma consciência imediata em
que subjetivo e objetivo sejam pura e simplesmente um; sem isso, a consciência é pura e
simplesmente inconcebível”. Mais à diante, conclui: “Essa consciência imediata é a intuição do eu
que acaba de ser descrita; nele o eu põe a si mesmo necessariamente e é, portanto, o subjetivo e
o objetivo em um só. […] O eu não deve ser considerado como mero sujeito, como foi considerado
até agora, quase sem exceção, mas como sujeito-objeto no sentido indicado”, a saber, como
egoidade. Cf. FICHTE, Johann Gottlieb. O Princípio da Doutrina-da-Ciência, p. 44-45.
309 Ver, nesse sentido, nota 108.
128

exterior’, para a natureza, enquanto a liberdade e a autonomia, que supostamente


derivam da descoberta da esfera ética, reduzem-se à liberdade do ponto de vista de
que se parte para julgar os fatos interiores” (LUKÁCS, 2003, p. 262). Em razão
dessa distinção, relativa à esfera da necessidade e aquela esfera da liberdade,
Lukács (2003, p. 265) conclui que “a ética fundamentada dessa maneira torna-se
puramente formal, vazia de qualquer conteúdo”.
De acordo com Lukács, os limites apresentados na filosofia clássica, até
então, para solucionar, de forma efetiva, o problema da facticidade e da
irracionalidade do conteúdo, ilustra-se pela solução subjetiva indicada. Todavia, essa
solução subjetiva e prática expressa apenas os limites do modo de proceder
contemplativo de tais autores, pois, conforme Lukács (2003, p. 260), a filosofia
clássica, ao se valer do procedimento contemplativo, revela a sua “aceitação
dogmática do modo de conhecimento racional e formalista como a única maneira
possível […] de apreender a realidade, em oposição aos dados estranhos a ‘nós’
que são os fatos”. Tal dogmatismo interditou a descoberta do princípio que
suplantaria, de fato, a contemplação, a saber: o princípio da prática. Somente
através da prática que vem suprimida, efetivamente, a indiferença da forma em
relação ao conteúdo.310 Isso ocorre, na medida em que a prática, em questão,
significa transformação da realidade, pois o substrato material e concreto da ação
vem incluído, realmente, na formulação filosófica. Acrescenta Lukács:

Porém, no momento em que essa situação, ou seja, a ligação indissolúvel


entre a atitude contemplativa do sujeito e o caráter puramente formal do
objeto do conhecimento torna-se consciente, é preciso ou renunciar à
solução do problema da irracionalidade (questão do conteúdo, do dado,
etc.), ou buscar a solução na práxis (LUKÁCS, 2003, p. 268).

A exigência de se buscar uma solução na práxis, bem como incluir,


efetivamente, na elaboração filosófica, a materialidade e concretude dos objetos da
ação, conduz Lukács a reafirmar a importância de um dos legados da filosofia
clássica alemã: o procedimento dialético. Daí o autor argumentar: “A gênese, a
produção do produtor do conhecimento, a dissolução da irracionalidade da coisa em
si e o despertar do homem amortalhado concentram-se doravante, portanto, na
questão do método dialético” (LUKÁCS, 2003, p. 295). Isto ocorre em razão do
procedimento dialético, exposto na filosofia hegeliana, fundar-se na “natureza

310 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 267.
129

relativamente material do conteúdo”, ou seja, a formulação de uma lógica do


conceito concreto.311
Para Lukács, a originalidade da dialética hegeliana, se comparada à sua
elaboração na filosofia antiga, diz respeito à apreensão do sujeito e do objeto. O
sujeito não é, mais, um espectador imutável da dialética do ser ou dos conceitos,
mas, com o verificar-se do processo dialético, há uma dissolução das formas fixas
que se desenrolam entre o sujeito e o objeto. 312 Trata-se, com efeito, da relativização
e fluência da relação entre o sujeito e o objeto. Nessa relação, o sujeito é,
simultaneamente, o próprio produtor e o produto do processo dialético (LUKÁCS,
2003, p. 297). A identidade, que se verifica entre o sujeito e o objeto, apresenta-se
como o “fundamento ontológico” e o “princípio primário” de toda concretude e
movimento (LUKÁCS, 2003, p. 298).
Desse modo, Lukács pôde, por fim, introduzir a história, como o terreno
concreto no qual nasce tal identidade entre o sujeito e o objeto, assim como nasce a
concretude oriunda dessa identidade. Nesse sentido, Lukács (2003, p. 298) afirma:
“[…] atrás da maioria dos problemas insolúveis, está escondido, como caminho para
se chegar à solução, o caminho para a história”. Conforme a exposição lukácsiana, é
somente no terreno histórico, que inicia a se delinear uma solução para o postulado
kantiano, apresentado no início desta seção, a saber, a realidade como um produto
do sujeito cognoscível. Trata-se, agora, da realidade, materialmente constituída, bem
como submetida a um processo de transformação contínua. Acrescenta ainda
Lukács:

Se a gênese, no sentido da filosofia clássica, puder efetuar-se, então deverá


criar, como fundamento lógico, uma lógica dos conteúdos que se
transformam, para cuja construção ela encontra somente na história, no
processo histórico, no fluxo ininterrupto da novidade qualitativa, essa ordem

311 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 295. Conforme Hegel comenta: “A incompletude desse modo de
considerar o pensar, que deixa de lado a verdade, deve ser complementada unicamente através
do integrar na consideração pensante, não meramente aquilo que costuma ser atribuído à forma
exterior, mas o conteúdo. Mostra-se rapidamente por si mesmo que aquilo que na primeira
reflexão mais habitual está separado da forma enquanto conteúdo, de fato, não deve ser, em si,
sem forma, destituído de determinação – assim ele seria apenas o vazio, por exemplo, a
abstração da coisa-em-si –, que ele, pelo contrário, tem forma nele mesmo, pois somente tem por
ela animação e conteúdo substancial, e que ele é ela mesma aquilo que se converte apenas na
aparência de um conteúdo tal como também se converte, com isso, na aparência de um exterior
nesta aparência. Com essa introdução do conteúdo na consideração lógica não são as coisas,
mas a Coisa, o conceito das coisas, que se torna objeto”. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.
Ciência da Lógica: a doutrina do ser [1812], p. 39.
312 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 296.
130

e essa conexão como exemplares das coisas. Pois, enquanto esse


processo, essa novidade, surgem simplesmente como um limite, e não
como um resultado simultâneo, um objetivo e um substrato do método, os
conceitos precisam conservar – como as coisas da realidade vivida – aquela
rigidez fechada sobre si mesma, que é suprimida apenas aparentemente
pela justaposição de outros conceitos. Somente o processo histórico elimina
realmente a autonomia – encontrada – das coisas e dos conceitos das
coisas, assim como a rigidez que dela resulta (LUKÁCS, 2003, p. 300-301).

No entender do autor, ao suprimir a autonomia das coisas e dos


conceitos, bem como possibilitar a apreensão da novidade qualitativa dos
fenômenos, a filosofia hegeliana sinaliza, por fim, a formulação de uma totalidade
concreta.313 Trata-se, portanto, segundo Lukács, da superação concernente à
racionalidade formal, assim como da totalidade formal, na medida em que integra os
elementos teórico-práticos em um processo histórico total. Conforme a abordagem
lukacsiana da filosofia hegeliana, a unidade do sujeito e do objeto demonstra-se e
surge no terreno concreto da história, a saber, no ponto em que se verifica a
“unidade entre a gênese das determinações do pensamento e a história da evolução
da realidade” (LUKÁCS, 2003, p. 302-303). Só assim torna-se possível, segundo
Lukács, descobrir o sujeito da história, cuja ação é motor e gênese da realidade.
Com a formulação do procedimento teórico-metodológico dialético,
explicita o autor, a filosofia clássica alemã se depara com uma situação singular e
paradoxal. Isso ocorre, por um lado, pelo fato de certos autores, desse universo
categorial filosófico, adotarem procedimentos contemplativos e formais,
possibilitando a “reprodução intelectual completa, a dedução a priori da sociedade”
(LUKÁCS, 2003, p. 307), em razão das expressões ideológicas oriundas do
processo de universalização da forma mercantil na sociedade. Ademais, não se
pode desconsiderar que, conforme explicita Lukács, a filosofia racionalista moderna
nasce de uma estrutura reificada de consciência. 314 Por outro lado, essa mesma
filosofia clássica alemã, na medida em concebe o procedimento dialético, “aponta
para além da sociedade burguesa” (LUKÁCS, 2003, p. 308).
Na filosofia de Hegel, reconhece Lukács, a perspectiva de ultrapassar o
universo teórico-prático burguês não é conduzido até as últimas consequências
teóricas. Isso porque, o avanço que a filosofia hegeliana representou para a cultura

313 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 301. Na próxima seção, abordar-se-á a especificidade do conceito
de totalidade concreta. Por ora, basta aqui indicar as alusões expostas, acima, relativas à unidade
dos fatores teórico-práticos sob o fundamento concreto do processo histórico.
314 Ver, aqui, nota 92.
131

filosófica da Modernidade, com a formulação do procedimento dialético, terminou


deficiente, na medida em que Hegel “não foi capaz de encontrar esse sujeito
concreto da gênese, sujeito-objeto exigido pelo método” (LUKÁCS, 2003, p. 303).Tal
limite se delineia, na filosofia de Hegel, justamente na unidade do processo histórico.
Se, por um lado, a dialética hegeliana, que se propõe como interior e real ao
processo histórico, é formulada, tão somente, post festum, adquirindo assim a sua
expressão adequada apenas na filosofia. 315 Por outro, os limites histórico-práticos da
realidade de Hegel não o possibilitaram, de acordo com Lukács (2003, p. 92),
descortinar as “forças verdadeiramente motrizes da história”. Isso se justifica “em
parte porque, na época em que seu sistema foi criado, essas forças ainda não eram
bastante visíveis; ele foi, então, obrigado a ver nos povos e em sua consciência os
verdadeiros portadores do desenvolvimento histórico”. Daí Hegel retornar “às formas
do pensamento platônico-kantiano, à dualidade do pensamento e do ser, à forma e à
matéria não obstante seus esforços enérgicos em sentido contrário” (LUKÁCS,
2003, p. 92). Em síntese, Hegel retornaria ao anterior modo de proceder nos limites
do racionalismo formal e contemplativo.
Portanto, a tentativa de ultrapassar os limites formais e contemplativos do
racionalismo moderno, apesar do avanço significativo, representado pela filosofia de
Hegel, não foi bem-sucedido. Somente com a Marx e com a elaboração do
materialismo histórico e dialético, verifica-se a efetiva composição da totalidade
concreta e, por conseguinte, a superação dos limites da totalidade formal e do
universo histórico-prático reificado. Daí a razão de Lukács sustentar que a teoria
marxiana é herdeira da filosofia clássica alemã. 316 Para evitar o que ocorreu no
procedimento hegeliano, ou seja, uma recaída no pensamento contemplativo, o novo
procedimento, na expressão de Marx, enfrentou e superou, de forma consciente, as
antinomias oriundas da filosofia anterior, conduzindo às últimas consequências o
tratamento dialético da realidade. O sucesso da teoria de Marx foi possível, em
parte, pelo aceno consciente e concreto acerca do verdadeiro sujeito-objeto idêntico
da história: o proletariado.317

315 Ver nota 39.


316 Ver, aqui: LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 97.
317 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 308.
132

5.3 O CONCEITO DE TOTALIDADE CONCRETA EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA


DE CLASSE: ELABORAÇÃO MATERIALISTA DE LUKÁCS E OS SEUS LIMITES

Como exposto na seção anterior, as tentativas, por vezes inconscientes,


da filosofia clássica alemã de superar a totalidade formal e o racionalismo
contemplativo terminaram aquém do proposto. Para Lukács, somente o marxismo,
como herdeiro dessa tradição filosófica, pôde, por fim, formular uma teoria que
ultrapassasse efetivamente os limites da tradição filosófica anterior, mediante a
elaboração do conceito de totalidade concreta.318 Tal conceito possibilitaria, no
sentido teórico-prático, segundo História e Consciência de Classe, uma revolução
proletária.319 Isso seria possível, por um lado, na medida em que unifica teoria e
práxis, pelas mediações da consciência e do Partido Comunista, unificando,
igualmente, as lutas cotidianas com o objetivo final do proletariado, qual seja, a
superação do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa. 320 Por outro,
a totalidade concreta torna possível a revolução, posto que permite pensar os limites
da reificação e de suas expressões na filosofia moderna, bem como superar tais
limites.
Na exposição lukácsiana de História e consciência de classe,
compreende-se, com esse proceder, a necessidade de expor a inexorabilidade do
substrato material e concreto da realidade, integrando-o, de forma consciente, no
âmbito da abordagem filosófica marxista, sem que com isso resulte em uma barreira
irracional e desestruturadora do sistema filosófico, tal como se apresentou na
filosofia moderna. A inclusão da história, visando unificar e dialetizar todas as coisas
e conceitos, bem como pensar a origem concreta do sujeito da histórica, implica não
abstrair de parte da realidade, por razões de ordem lógico-sistemática. De acordo
com Lukács (2003, p. 267): “O princípio da prática, enquanto princípio de
transformação da realidade, deve então ser talhado na medida do substrato material
e concreto da ação, para poder agir sobre ele quando entrar em vigor”.
Ao se reportar ao substrato material e concreto da ação, Lukács pôde
defender uma “teoria da práxis”, 321 e, na origem de tal teoria, encontra-se a coisa,
318 Ver, aqui, notas 557, 558 e 559.
319 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 35.
320 Cf. LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 103-104.
321 Furio Cerutti argumenta que a “teoria da práxis”, presente em História e Consciência de Classe,
remete, sobretudo, ao caráter irredutível do substrato real e material das coisas. Ainda nesse
133

isto é, a “autêntica forma objetiva do ser” (LUKÁCS, 2003, p. 337), cujo


desvelamento garante “o rompimento daquelas determinações confusas da reflexão,
que deformam a verdadeira objetivação no grau de uma atitude simplesmente
imediata, passiva e contemplativa”. Em resumo, a totalidade concreta, em Lukács,
corresponde, em última instância, aos objetos do agir humano, em toda sua
materialidade: objetos das necessidades reais e, ainda, não subsumidos,
plenamente, às relações quantificadoras da reificação. 322
Ao contrário, tais objetos preservam, ainda, as suas qualidades como
“valores de uso”, destinados à satisfação das necessidades humanas. Trata-se de
valores de uso os quais escapam à consideração da racionalidade formal. Segundo
esclarece Lukács na obra aqui investigada:

Marx descreveu várias vezes, de maneira convincente, quão inadequados


são esses movimento de fenômenos econômicos, que se exprimem nos
conceitos de “lei” da economia burguesa, para explicar o movimento real do
conjunto da vida econômica; essa barreira reside na impossibilidade –
inevitável quanto ao método – de compreender o valor de uso e o consumo
real. […] É preciso chamar a atenção particularmente para o fato de essa
incapacidade de penetrar no substrato material real da ciência não ser
imputável a indivíduos. Ela é, antes, algo que se torna cada vez mais
evidente na medida em que a ciência evolui e trabalha com maior coerência
a partir de suas próprias premissas (LUKÁCS, 2003, p. 233-234).

Nas considerações de Cerutti, o nexo entre valor de uso e necessidade,


exposto por Lukács, forma o núcleo de uma “práxis emancipativa”. 323 O que se
explica, em primeiro lugar, pelo fato de que o “ser qualitativo das coisas” (LUKÁCS,
2003, p. 231), em sua forma autêntica e materialmente constituída – por exemplo,
valor de uso das mercadorias – expressar-se nos períodos de crise. Tal ser

sentido, reportando-se ao fato de que a realidade histórica é um produto da ação humana, mais
especificamente, da práxis do sujeito da história, Cerutti defende a presença de uma
ontoprasseologia na obra lukácsiana. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione:
Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 36; p. 48.
322 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 37: “Le cose cui si riferisce la totalità concreta sono dunque gli oggetti dell'agire mirante
alla produzione e riproduzione della vita, quindi dell'agire mosso dai bisogni reali e non ancora
stravolto dal dilagare del carattere di merce, né dal conseguente rapporto tutto quantitativo e
strumentale che gli uomini instaurano allora con gli oggetti esterni e con le stesse qualità proprie.
La totalità concreta non va riferita solo ai valori d'uso in senso economico, ma alle cose non
reificate in genere [As coisas a que se referem a totalidade concreta são, portanto, os objetos do
agir voltados para a produção e a reprodução da vida, portanto, do agir movido por necessidades
reais e não, ainda, distorcido pela difusão do caráter mercantil, nem pela consequente relação
instrumental e quantitativa que os homens instauram, então, com os objetos externos e com as
mesmas qualidades próprias. A totalidade concreta não é referida, apenas, aos valores de uso, em
sentido econômico, mas as coisas não reificadas em geral]”.
323 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 38.
134

qualitativo se apresenta, segundo Lukács (2003, p. 231), justamente, paralisando o


funcionamento normal das leis econômico-formais. Expressa-se assim com a crise,
a dimensão prática e real da barreira metodológica das ciências econômicas, que,
em razão do seu procedimento contemplativo, não apreende o ser qualitativo das
coisas, a saber, o valor de uso e o consumo real.
Ademais, a práxis emancipativa é, também, resultado da formulação,
lukacsiana, de uma “lógica dos conceitos concretos”, 324 possível apenas mediante a
inclusão do ser qualitativo e material das coisas. Com isso, alcançou-se,
efetivamente, a inclusão da história concreta, 325 no sistema filosófico, bem como a
dimensão prática e histórica, presente no relacionar-se dos homens com tais
objetos, quer por meio do consumo, quer por meio do trabalho. 326 Daí Lukács (2003,
p. 371) concluir: “[…] a história é, antes de tudo, o produto – até então inconsciente
– da atividade dos próprios homens; por outro, a sequência daqueles processos nos
quais as formas dessa atividade, a relação dos homens consigo mesmo […], se
transformam”. Tal conclusão só foi possível com a superação dos limites
contemplativos do racionalismo formal, presente, ainda, na filosofia clássica
alemã.327
Todavia, assim como no estudo acerca das mediações, presentes em
História e Consciência de Classe, constatou-se tendências contraditórias, influentes
nessa obra, a saber, elementos dialéticos e materialmente constituídos, dispostos,
lado a lado, a elementos não dialéticos e transcendentais: 328 nesse momento da
exposição ocorre algo semelhante. O reconhecimento de potencialidades
324 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 40.
325 Para uma abordagem mais detalha da relação entre a história e os pressupostos da revolução, ver
a quarta seção do segundo capítulo deste trabalho.
326 Mais à diante, na exposição, questionar-se-á a compreensão de Lukács acerca do trabalho, bem
como se tal compreensão possui bases materialistas ou se é resultado de uma exigência lógica,
segundo os pressupostos de sua obra.
327 Em vista disso, Cerutti sintetiza a diferença entre a totalidade formal e a totalidade concreta na
obra, aqui investigada, de Lukács: “Questi sono dunque i termini della partita epistemologica che si
gioca fra le due totalità, quella concreta e quella formale, che a questo scontro sono portate dalle
loro radici materiali contrastanti: la prima muove infatti dall'oggettività delle cose nel loro legame
con bisogni umani, la seconda ne prescinde per assicurare mediante la razionalizzazione formale
livelli massimi di autovalorizzazione del capitale. Due totalità, due interessi antagonistici. [Estes
são, portanto, os termos da partida epistemológica que se joga entre as duas totalidades, aquela
concreta e aquela formal, que, neste confronto, são conduzidas a partir das raízes materiais
contrastantes delas: a primeira se move, de fato, da objetividade das coisas nos liames delas com
as necessidades humanas; a segunda prescinde dela para assegurar, mediante a racionalização
formal, níveis máximos de autovalorização do capital. Duas totalidades, dois interesses
antagônicos]”. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e
Coscienza di Classe, p. 42.
328 Ver nota 246.
135

emancipatórias, relativas à totalidade concreta, no sentido da disposição material e


autêntica das coisas em relação às necessidades reais dos homens, confronta-se
com outra compreensão dessa totalidade, igualmente presente no escrito de Lukács.
De novo, a abordagem transcendental, empreendida por Lukács, traz prejuízos à
densidade materialista de sua elaboração dialética, quer em relação às mediações,
quer à totalidade concreta.329
No que concerne ao problema do desenvolvimento materialista, presente
em História e Consciência de Classe, é insuficiente reconhecer que, no subtítulo da
obra, Lukács se disponha a estudar a dialética marxista, sequer mencionando o
elemento materialista dessa dialética.330 Na realidade, trata-se de reportar-se, de
novo, à importância, atribuída por Lukács, às categorias weberianas, em especial,
no estudo sobre a reificação.
Observa-se que, em relação à abordagem da sociedade moderna, Lukács
termina, por vezes, priorizando outros autores e tradições filosóficas, que não o
materialismo histórico e dialético.331 Pode-se assim sustentar que, em parte, a crítica
329 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 58.
330 Tal crítica foi apresentada por George Lichtheim. Considera-se essa crítica como meramente
formal, logo, insuficiente. Opta-se por uma orientação diversa em relação à investigação do
elemento materialista na obra de Lukács. Busca-se, assim, apreender, nos próprios argumentos
lukácsianos, apresentados em sua obra, os acertos e os limites de sua elaboração. Cf.
LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 98.
331 Segundo Arato e Breines, a formulação lukacsiana de uma “teoria social dialética” é composta de
dois elementos, a saber: 1. Sociologia: em que Lukács busca sintetizar a teoria da racionalização
de Weber com certos elementos históricos, presentes na obra O Capital, de Marx; 2. Filosofia
pragmática: ponto em que Lukács reconstrói a história da filosofia clássica alemã, apresentando,
como ponto de culminância, o conceito, supostamente marxiano, de sujeito-objeto idêntico, como
o sujeito da prática histórica. De acordo Arato e Breines, por vezes, um elemento termina
sobrepondo-se ao outro, o que ocasiona a contradição de tendências intelectuais opostas, já
indicado. Assim, a sua “teoria social pode começar com os resultados da sociologia, mas
utilizando os conceitos da filosofia pragmática”. Tal justaposição de teorias contraditórias é
reforçada na medida em que se percebe, em Lukács, uma ausência de crítica de certas
categorias, por ele utilizadas, do universo filosófico, que não a dialética marxista, a qual, segundo
o próprio Lukács, estruturaria e orientaria sua obra. Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven
Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 182; Deve-se, ainda, destacar os
comentários de Giuseppe Bedeschi: “Vogliamo soltando richiamare l'attenzione sul fatto che le
prime esperienze culturali di Lukács (in primo luogo: Hegel e lo storicismo tedesco
contemporaneo) non sono scomparse in Storia e coscienza di classe, bensì intervengono in modo
determinante nella strututura teoria del libro, tanto che esso non potrebbe essere inteso
adeguatamente senza un riferimento preciso e puntuale a quegli influssi e a quelle esperienze
[Queríamos, apenas, chamar, de novo, a atenção sobre o fato que as primeiras experiências
culturais de Lukács (em primeiro lugar: Hegel e o historicismo tedesco), não desapareceram em
História e Consciência de Classe, mas interveem de modo determinante na estrutura teórica do
livro, tanto que este não poderia ser compreendido, de forma adequada, sem uma referência
precisa e pontual àquelas influências e àquelas experiências]”. Em virtude da lógica argumentativa
deste trabalho monográfico, discorda-se, porém, de Bedeschi, no que concerne ao suposto caráter
determinante, que as influências teóricas passadas exercem sobre a estrutura da obra de Lukács,
uma vez que se trata de compreender a relação imanente de teorias e elementos contraditórios.
Todavia, destacar, aqui, certos elementos teóricos destoantes, alheios à dialética marxista, como o
136

e a busca de superação da totalidade formal é um elemento teórico já presente na


obra de Weber.332 Isso que não significa que Lukács, na obra aqui abordada, tenha
permanecido nos limites teóricos, bem como na solução proposta por Max Weber.
Na medida em que Lukács defende, de forma enfática, a necessidade da revolução
proletária, isto já configura uma especificidade teórico-metodológica em relação à
teoria weberiana.333 Todavia, é possível ainda sustentar que tal especificidade,
expressa por Lukács, não vem acompanhada por uma crítica rigorosa do universo
categorial de Weber, mesmo daquelas categorias das quais se utiliza Lukács em
História e Consciência de Classe.334 Em História e Consciência de Classe, há uma
recepção acrítica de elementos não marxianos, bem como uma ausência de
recondução de tais elementos para o fundamento histórico e dialético, em
conformidade com a orientação filosófica que se propõe o autor.
Disso resulta vislumbrar-se a consideração da cotidianidade da vida social
como o “reino da alienação”,335 a saber, como plenamente reificada, pois ao
sintetizar certos elementos da teoria marxiana com certos aspectos da obra
weberiana, Lukács pôde reelaborar a relação entre a reprodução econômica
capitalista e a “superestrutura”336 social. Para Lukács, então, o âmbito da

faz Bedeschi, é importante para o atual momento desta exposição. Cf. BEDESCHI, Guiseppe.
Introduzione a Lukács, p. 22.
332 Segundo Cerutti, a crítica imanente de Lukács à totalidade formal encontra o seu ponto de apoio
na teoria de Weber. Para este autor do historicismo alemão, as condições materiais capitalistas, da
racionalidade formal, conduziriam, por si só, a desvelar e superar o fundamento irracional. Cf.
CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p.
30-31.
333 A defesa do comunismo, realizada por Lukács, é um importante diferencial, em relação à teoria
weberiana. Isso se justifica, em virtude de que, para Weber, o socialismo não representa, em si,
uma superação dos limites da racionalidade formal – ou da reificação, nos termos lukacsianos –
visto que tal modelo social pode reproduzir a burocratização. Ultrapassa, todavia, ao escopo deste
trabalho, a investigação histórica do “socialismo real”, para determinar em que medida ele
superou, ou restou aquém, da reificação e da burocracia. No entanto, deve-se, aqui, reportar-se
para o comentário de Cerutti, que sustentaria a tese de uma ausência de crítica das categorias
weberianas, bem como ilustraria o problema na especificidade das mediações, no pensamento
lukacsiano. Segundo Cerutti, Lukács não se proporia o problema de como e mediante quem, ou de
qual instituição, garantir-se-á o funcionamento, interno e normal, da totalidade concreta em uma
sociedade comunista, orientada para as necessidades reais e para os valores de uso das coisas.
Em última análise, Lukács abstrairia das reflexões dos problemas relativos a uma economia de
natureza planificada. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia
e Coscienza di Classe, p. 31-32.
334 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 32.
335 Cf. VEDDA, Miguel. Apresentação. In: LUKÁCS, György (Org.). Lênin: Um estudo sobre a
unidade de seu pensamento, p. 8.
336 Acerca do conceito marxiano, de “superestrutura”, ver: MARX, Karl. Prefácio [1859]. In: MARX,
Karl (Org.). Para a crítica da economia política, p. 52. Destaca-se, ainda, que tal formulação,
marxiana, não deve ser compreendida como uma oposição, mecânica, ao conceito de
“infraestrutura”. Trata-se, com efeito, de um todo, dialético, em que ambos os elementos
determinam um ao outro. Todavia, cabe à “infraestrutura” a condição de “momento predominante”.
137

superestrutura se articula, intimamente, com o conceito weberiano de racionalização


formal. Em virtude de tal articulação, “Lukács não podia […] extrair das leis, das
ciências, da burocracia ou da tecnologia nenhum elemento de subjetividade e
criatividade potencial, nem sequer nenhuma possibilidade dinâmica”. 337 Ademais,
acrescenta-se a isso, a redução lukacsiana, do conceito de práxis: como será
abordado mais adiante.
No momento, deve-se assinalar que, na medida em que Lukács se vale,
de forma acritica, de categorias weberianas, termina homogeneizando a realidade
cotidiana, como uma realidade puramente reificada, limitando as potencialidades
emancipatórias. Daí a razão de “para conceitualizar um paradigma capaz de superar
a reificação presente, Lukács se reporta à filosofia do passado” (ARATO; BREINES,
1986, p. 196). Como abordado, na seção anterior, Lukács se reporta à filosofia
clássica alemã para sustentar que o marxismo não somente é um herdeiro dessa
tradição filosófica, mas, igualmente, aborda as antinomias resultantes da filosofia
anterior e as resolve, de forma satisfatória, uma vez que concebe, de forma
concreta, o sujeito-objeto idêntico da história. 338 Daí a razão de Lukács (2003, p. 91-
92) sustentar: “A crítica de Marx a Hegel é, portanto, a sequência e a continuação
direta da crítica que Hegel exerceu contra Kant e Fichte. Assim, o método dialético
de Marx nasceu como a continuação consequente do que Hegel havia almejado,
mas não obtivera concretamente”.
Diante da reconstrução lukácsiana da história da filosofia moderna, cujo
ponto culminante é o marxismo, pode-se sustentar que Lukács aceita, aqui, a tese
de Engels. Segundo as argumentações engelsianas, presentes no escrito Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã [1888], é possível distinguir, na filosofia
de Hegel, o sistema hegeliano do método dialético.339 Marx se valeria, não do
Assim, segundo as disposições de Lukács, em sua obra da maturidade: “[…] no ser social, o
econômico e o extraeconômico convertem-se continuamente um no outro, estão numa irrevogável
relação recíproca, da qual porém não deriva, como mostramos, nem um desenvolvimento histórico
singular sem leis, nem uma dominação mecânica ‘por lei’ do econômico abstrato e puro, mas da
qual deriva, ao contrário, aquela orgânica unidade do ser social, na qual cabe às leis rígidas da
economia precisamente e apenas o papel de momento predominante”. Cf. LUKÁCS, György. Para
uma ontologia do ser social I, p. 310.
337 ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p.
195.
338 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 308; Ver, ainda: ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven
Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 197; LICHTHEIM, George. LUKÁCS, p. 97.
339 Segundo a argumentação de Friedrich Engels, em sua obra destinada a pensar os limites da
filosofia especulativa e do materialismo de Feuerbach: “Assim, o lado revolucionário da doutrina de
Hegel morre asfixiado pelo seu lado conservador. […] Como se vê, as necessidades internas do
sistema conseguem explicar como, de um método de pensamento absolutamente revolucionário,
138

sistema de Hegel, mas do seu método dialético, na medida em que tal procedimento
revelaria um aspecto revolucionário fundamental. A esse respeito, complementa
Lukács:

A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre


as partes, constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel e
transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente
nova. […] A ciência proletária é revolucionária não somente pelo fato de
contrapor à sociedade burguesa conteúdos revolucionários, mas, em
primeiro lugar, devido à essência revolucionária do seu método. O domínio
da categoria da totalidade é o portador do princípio revolucionário na
ciência. Esse princípio revolucionário da dialética hegeliana – não obstante
todos os conteúdos conservadores de Hegel – havia sido frequentemente
reconhecido antes de Marx, sem que se tenha podido desenvolver, a partir
desse conhecimento, uma ciência revolucionária. Somente com Marx a
dialética hegeliana tornou-se, segundo a expressão de Herzen, uma
“álgebra da revolução” (LUKÁCS, 2003, p. 105-106).

Com base em tal argumentação lukacsiana, pode-se aqui considerar o


seguinte argumento de Bedeschi (1982, p. 35), pois: “[…] aceitando a tese
engelsiana de uma pura e simples continuidade de método entre Hegel e Marx,
Lukács se impedia de realizar uma crítica realmente eficaz das vulgarizações de
Engels”. Não obstante a postura crítica de História e Consciência de Classe com
relação a certos argumentos engelsianos, Lukács, sub-repticiamente, aceitou um
dos pontos problemáticos, presente nos escritos de Engels, a saber, a tese da mera
continuidade entre a dialética de Hegel e Marx. Abstrai-se assim do fato de que um
procedimento metodológico, se separado de todo e qualquer conteúdo, ou seja,
considerado apenas no seu sentido formal, não pode ser classificado como
revolucionário ou não. Assim, é insuficiente sustentar a dialética, em si, como
revolucionária, quer na sua elaboração hegeliana ou elaboração marxiana. Ao
contrário, a dialética marxista é revolucionária, posto que é instrumento da práxis
proletária e, portanto, assume, como conteúdo, o projeto de transformação social. 340

pode decorrer uma conclusão política extremamente dócil”. Cf. ENGELS, Friedrich. Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, p. 174.
340 Segundo Frederico Pastore: “La contrapposizione tra sistema e metodo cela al fondo un equivoco
di cui era perfettamente consapevole Marx, che nei Maniskripte aveva scritto che non si può
parlare di compromessi in Hegel perchè la menzogna delle filosofia hegeliana è la menzogna del
suo principio stesso: l'equivoco di credere che un metodo possa essere astratto dal suo contenuto,
possa essere considerado valido tout-court, indifferentemente dal contenuto a cui questo metodo
viene concretamente applicato, contenuto che di volta in volta può assumere un aspetto
rivoluzionario o reazionario nella misura in cui la realtà (economica, socio-politica o filosofica), che
il metodo analizza, sia in sé reazionaria o rivoluzionaria. È, insomma, una cattiva comprensione del
rapporto tra teoria e prassi: la dialettica marxiana non è rivoluzionaria perché rimette sui piede ciò
che in Hegel poggiava sulla testa, secondo le banali ed infelici formulazioni di Engels, ma perché è
lo strumento della prassi del proletariado che, come classe, mediante esso, conosce le
contraddizioni dei rapporti di produzione capitalistici e li muta rivoluzionariamente nella società
139

Para que o procedimento dialético assumisse, na obra marxiana, um


caráter revolucionário, Marx operou uma recondução dos termos da dialética
hegeliana, para o terreno histórico-prático, ou seja, das relações e atividade reais,
realizando, assim, uma inversão histórico-materialista. 341 Ainda que Engels
reconhecesse que a dialética, em Marx, tivesse sido reconfigurada, destacando, com
isso, a sua elaboração histórico-materialista, tal constatação é ainda insuficiente.
Esta insuficiência se apresenta, justamente, em razão da distinção abstrata, inicial,
entre método e sistema. Lukács, aqui, revela reproduzir certa incompreensão de
Engels relativa à viragem dialética marxiana. Na realidade, Lukács aprofunda essa
incompreensão, na medida em que secundariza a importância da inversão histórico-
materialista, realizada por Marx. Disso resulta a sua afirmação de que a dialética
marxista não se tornou revolucionária “simplesmente por uma inversão materialista”
(LUKÁCS, 2003, p. 106). Acrescenta, ainda, Lukács:

Pelo contrário, o princípio revolucionário da dialética hegeliana só pôde se


manifestar nessa inversão e por meio dela porque a essência do método,
isto é, o ponto de vista da totalidade, a consideração de todos os fenômenos
parciais como elementos do todo, do processo dialético, que é apreendido
como unidade do pensamento e da história, foi salvaguardado. O método
dialético em Marx visa ao conhecimento da sociedade como totalidade
(LUKÁCS, 2003, p. 106).

senza classi [A contraposição entre sistema e método oculta, no fundo, um equívoco, do qual era,
perfeitamente, consciente Marx, que nos Manuscritos, escreveu que não se pode falar de
compromissos, em Hegel, porque a mentira da filosofia hegeliana é a mentira de seu princípio
mesmo: o equívoco de acreditar que um método possa ser abstraído do seu conteúdo, que possa
ser considerado tout-court, indiferentemente do seu conteúdo, ao qual esse método vem,
concretamente, aplicado, conteúdo que, de vez em quando, pode assumir um aspecto
revolucionário ou reacionário na medida em que a realidade (econômica, sócio-política ou
filosófica), que o método analisa, seja em si reacionária ou revolucionária. É, em suma, uma má
compreensão da relação entre teoria e práxis: a dialética marxiana não é revolucionária porque
recoloca sobre os pés aquilo que em Hegel apoiava-se sobre a cabeça, segundo as banais e
infelizes formulações de Engels, mas porque é o instrumento da práxis do proletariado, que, como
classe, mediante esse, conhece as contradições das relações de produção capitalistas e as
transforma, revolucionariamente, na sociedade sem classes]”. Cf. PASTORE, Frederico. La
conoscenza come azione: saggi su Lukács. Milano: Marzorati Editore, 1980, p. 105-106; Ver,
ainda: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. 4. ed. Tradução de Jesus Ranieri. São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 130.
341 O escrito em que Marx se dedica, predominantemente, a reconduzir a dialética lógico-ontológica
hegeliana para as relações e atividades reais, sustentando, assim, o primado da atividade prático-
real, é o terceiro Manuscrito econômico-filosófico. Todavia, tal manuscrito só foi publicado na
década de trinta, poucos anos após a publicação de História e Consciência de Classe. Portanto,
para que a crítica, acima exposta, não assuma um caráter historicamente equivocado, posto que
Lukács, em 1923, não conhecia certos escritos marxianos, deve-se sustentar que em outros
momentos da obra de Marx, nota-se tal confronto com a dialética hegeliana. Cf. ENGELS,
Friedrich; MARX, Karl. A sagrada família: ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e
consortes, p. 72-76: O mistério da construção especulativa; Cf. MARX, Karl. Miséria da filosofia:
Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon, p. 97-103; MARX, Karl. Para a crítica da
economia política, p. 39-46: O método da Economia Política.
140

Desse modo, a presença de certa incompreensão, em História e


Consciência de Classe, da devida relação crítica entre a dialética hegeliana e a
dialética histórico-materialista, elaborada por Marx, originam-se certos problemas,
pois a mencionada consideração lukacsiana, relativa à cotidianidade da vida social
como o “reino da alienação”,342 não é fruto apenas da assimilação da teoria
weberiana. Daí se afirmar que essa identificação resulta, também, de certa relação,
acrítica, que Lukács mantém com o pensamento de Hegel. De modo, ao abstrair da
problemática dialética, acima exposta, Lukács aceita a identificação hegeliana entre
objetividade e alienação.343 Tamanho equívoco, da parte de Lukács, só é possível na
medida em que ele não investiga, em todas as suas dimensões, o sentido da
“inversão materialista” realizada por Marx.344 Daí a necessidade de se interpretar
certas polêmicas, que Lukács estabelece com Engels, considerando esses limites,
mas, igualmente, o seguinte: tais polêmicas expressam, como núcleo, o estatuto
conferido à natureza em História e Consciência de Classe.
Antes de mais, e em oposição às considerações de Engels, Lukács julga
insustentável, em História e consciência de classe, uma dialética da natureza. 345
Isso porque, uma dialética da natureza terminaria recaindo em um procedimento
teórico-metodológico vulgar, a saber, aquele que adota a perspectiva
contemplativa.346 Para Lukács, a dialética não se limita, como em Engels, a uma
mera oposição à conceitualização metafísica. Portanto, não basta destacar que

342 Ver nota 270.


343 Segundo Bedeschi: “Lukács è così ritornato ad una concezione dell'alienazione che è tipicamente
hegeliana: l'alienazione è l'oggettività in quanto tale, lo scandolo, per usare le parole di Marx, è che
ci sia un mondo [Lukács retornou, assim, a uma concepção da alienação que é, tipicamente,
hegeliana: a alienação é a objetividade, como tal, o escândalo, para usar as palavras de Marx, é
que exista um mundo]”. Cf. BEDESCHI, Guiseppe. Introduzione a Lukács, p. 35. Ver, ainda:
SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20, p. 53.
344 Cf. BEDESCHI, Guiseppe. Introduzione a Lukács, p. 38.
345 Segundo Lukács: “Essa restrição do método à realidade histórico-social é muito importante. Os
equívocos surgidos a partir da exposição de Engels sobre a dialética baseiam-se essencialmente
no fato de que Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – estende o método dialético também
para o conhecimento da natureza. No entanto, as determinações decisivas da dialética (interação
entre sujeito e objeto, unidade de teoria e prática, modificação histórica do substrato das
categorias como fundamento de sua modificação no pensamento etc.) não estão presentes no
conhecimento da natureza. Infelizmente não é possível discutirmos aqui em detalhes essas
questões”. Cf. LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 69, nota 6. Tal postura de Lukács em relação à dialética da
natureza, engelsiana, gerou muitas críticas, da parte de certos marxistas soviéticos. Ver, aqui:
RUDAS, László. Marxismo ortodosso? In: BOELLA, Laura (Org.). Intellettuali e coscienza di
classe: il dibattito su Lukács 1923-1924, p. 63-65; DEBORIN, Abraham. Lukács e la sua critica del
marxismo. In: BOELLA, Laura (Org.). Intellettuali e coscienza di classe: il dibattito su Lukács
1923-1924, p. 128-129.
346 Cf. LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 67.
141

proceder, de forma dialética, significa dissolver a rigidez dos conceitos e dos objetos
que lhes são correspondentes, acentuando a passagem fluida de uma determinação
para outra, superando, assim, os contrários. Em resumo, não basta enfatizar a “ação
recíproca” das determinações, mas deve-se, igualmente, destacar a relação dialética
do sujeito e do objeto no processo da história (LUKÁCS, 2003, p. 67). No seu
entender, só assim torna-se possível ressaltar o núcleo fundamental da dialética
marxiana, a saber, a transformação da realidade.
De acordo com Lukács, quando Engels não considera a relação dialética
entre sujeito e objeto na história, cujo objetivo é a transformação da realidade,
Engels retornaria ao procedimento contemplativo e metafísico, segundo o qual o
objeto de estudo permaneceria “intocado e imodificado”. 347 Lukács sustenta, ainda,
que quando Engels formula uma dialética da natureza, ela retornaria assim a uma
consideração hegeliana do problema. 348 O que, para Lukács, seria um retrocesso
problemático, posto que Hegel, como explicitado, não ultrapassou certos limites da
filosofia anterior, a saber, aquela que, ainda, daria continuidade a procedimentos
contemplativos e formais.
Lukács (2003, p. 431), em oposição a Engels, não somente julga
inconsistente defender uma filosofia da natureza, mas argumenta ainda que, em
última instância, a natureza deve ser compreendida como uma “categoria social”. De

347 LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 68. Com respeito à compreensão, lukacsiana, da dialética e suas
críticas em relação aos escritos de Engels, é interessante retomar a perspectiva de Sartre. Em seu
escrito intitulado Questões de método[1957], Sartre teceu uma crítica semelhante, concernente a
relação entre sujeito e objeto, na investigação marxiana. Todavia, suas críticas não se dirigiam a
Engels, mas a certas leituras marxistas, inclusive, à leitura de Lukács. Comenta Sartre: “Ora, o
voluntarismo marxista que se compraz em falar de análise reduziu essa operação a uma simples
cerimônia. Já não se trata de estudar os fatos na perspectiva geral do marxismo para enriquecer o
conhecimento e para iluminar a ação: a análise consiste unicamente em se desembaraçar do
detalhe, em forçar a significação de alguns acontecimentos, em desnaturar fatos ou, até mesmo,
em inventá-los para reencontrar, por baixo deles, como sua substância, ‘noções sintéticas’
imutáveis e fetichizadas. Os conceitos abertos do marxismo fecharam-se; já não são chaves,
esquemas interpretativos: apresentam-se para si mesmos como saber já totalizado. […] A
pesquisa totalizadora deu lugar a uma escolástica da totalidade. O princípio heurístico ‘procurar o
todo através das partes’ tornou-se esta prática terrorista: ‘liquidar a particularidade’. Não é por
acaso que Lukács — que violou com tanta frequência a História — encontrou, em 1956, a melhor
definição desse marxismo cristalizado. Vinte anos de prática dão-lhe toda a autoridade necessária
para chamar essa pseudofilosofia de um idealismo voluntarista”. Em parte, já se constatou em que
medida Lukács termina, em História e Consciência de Classe, “violando a História”, em razão de
que não compreendeu, adequadamente, a viragem materialista operada por Marx. Nas seções
seguintes, os limites da dialética em Lukács serão aprofundados, confirmando, em parte, a
intuição sartreana. Cf. SARTRE, Jean-Paul. Questões de método [1957]. In: Crítica da razão
dialética. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&Aeditora, 2002, p.
34.
348 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 337.
142

modo que, aquilo que é considerado como natureza, em determinado estágio do


desenvolvimento social, “o modo como é constituída a relação dessa natureza com o
homem e a forma sob a qual ocorre o confronto deste com aquela, ou seja, o que a
natureza deve significar quanto à sua forma e ao seu conteúdo, […] é sempre
condicionado socialmente” (LUKÁCS, 2003, p. 431). Não obstante o reconhecimento
da natureza como uma categoria social, isto não implica que Lukács reporte à
natureza uma dialética histórico-social. Daí Lukács, buscando contornar certas
consequências contraditórias que esse tratamento da natureza pode resultar,
defende uma distinção entre “dialética do movimento” e “dialética social”. Conforme
ele escreve:

Não obstante, às vezes o próprio Hegel reconhece claramente em termo


históricos que a dialética da natureza, onde é impossível, pelo menos no
estágio alcançado até aqui, incluir o sujeito no processo dialético, nunca
está em condições de elevar-se acima da dialética do movimento para o
espectador desinteressado. […] Disso resulta a necessidade da separação
metódica entre a dialética simplesmente objetiva do movimento, própria da
natureza, e a dialética social, na qual o sujeito também é incluído na relação
recíproca e dialética, em que teoria e práxis se tornam dialéticas uma em
relação à outra (LUKÁCS, 2003, p. 408).

A distinção entre natureza e sociedade, especificamente, entre dialética


do movimento e dialética social representa, para certos comentadores, um
amadurecimento, de Lukács, em relação à sua postura em O que é o marxismo
ortodoxo?, quando ele, decididamente, nega uma dialética da natureza. 349 Todavia,
ao articular as indicações lukacsianas, relativas à natureza, com sua compreensão
da práxis350, identifica-se, de modo geral, certas limitações não superadas no
decorrer dos ensaios de História e Consciência de Classe. O primeiro ponto de
inconsistência, no tocante à relação entre o homem e a natureza, remete ao
problema do “recuo das barreiras naturais” (LUKÁCS, 2003, p. 436). Esse recuo
expressa o momento histórico-social, no qual as relações sociais deixam de
apresentar um caráter, predominantemente, natural.
Para Lukács, o que se verifica, nas sociedades pré-capitalistas, são
349 Pode-se indicar, como exemplo desses comentadores, Michael Löwy. Ele defende que, com a
diferenciação lukacsiana, entre “dialética do movimento” e “dialética social”, os problemas, dessa
obra, no tocante à natureza, foram superados. Daí Löwy comentar a existência de uma “polêmica
bizantina e metafísica sobre a dialética da natureza”, em História e Consciência de Classe. Cf.
LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A evolução política de
Lukács (1909 – 1929), p. 190.
350 Práxis, no seu sentido amplo, reportando-se à atividade genérica humana, a saber, aquela do
trabalho. É no trabalho que se verifica a mediação entre o homem e a natureza. Ver, a esse
respeito: LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II, cap. 1: O trabalho.
143

trocas imediatas entre o homem e a natureza, bem como a desorganização social,


no tocante à unidade econômica. Logo, em tais sociedades, os homens não tomam
consciência do seu ser social.351 Entretanto, com o processo de socialização da
sociedade, o que se constata é um recuo das barreiras naturais, na medida em que
se estabelece uma igualdade jurídico-formal entre os homens. Com isso,
“desaparecem cada vez mais aquelas relações econômicas que regularam as trocas
materiais imediatas entre o homem e a natureza” (LUKÁCS, 2003, p. 96). Em vista
disso, como consequência desse processo de socialização, Lukács (2003, p. 96)
acrescenta: “O homem torna-se – no verdadeiro sentido da palavra – ser social. A
sociedade torna-se a realidade para o homem”.
Em outro ensaio de História e consciência de classe, Lukács reitera tal
argumentação. Conforme ele escreve: “Exatamente na medida em que o capitalismo
efetuou a socialização de todas as relações, tornou-se possível atingir um
autoconhecimento, o autoconhecimento verdadeiro e concreto do homem como ser
social” (LUKÁCS, 2003, p. 436). Com base em tais argumentos, formule-se a
seguinte questão: afinal, o homem é um ser social ou se torna um ser social, em
virtude do recuo das barreiras naturais e da socialização capitalista? O que,
aparentemente, é um mero detalhe, em uma obra tão volumosa como História e
Consciência de Classe, revela-se um aspecto importante, sobretudo, se considerado
a relevância atribuída, por Marx, à natureza do ser social. 352 Tal problemática exige
certa atenção, na medida em Lukács pretende, nessa obra, defender uma ortodoxia
marxiana e dialética,353 mas, igualmente, “superar e ‘eliminar’ Hegel através de
Marx”.354
351 Cf. LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e
Consciência de Classe, p. 95.
352 Fugiria do escopo do presente trabalho, apresentar, de forma exaustiva, a compreensão marxiana
do homem como um ser social, bem como da dialética existente entre subjetividade e objetividade,
cuja mediação fundamental é o trabalho. Todavia, alude-se, aqui, a certos momentos da obra de
Marx em que tais considerações estão dispostas e argumentadas. Sinaliza-se, em primeiro lugar,
que a categoria central dos Manuscritos econômico-filosóficos é o trabalho, onde Marx demonstra
tais questões, de modo pormenorizado. Entretanto, como já exposto, Lukács, à época de História
e Consciência de Classe, não conhecia tal escrito marxiano. Não obstante tal constatação, outras
obras de Marx sustentam tais perspectivas. No escrito Ad Feuerbach, Marx defende: “Feuerbach
dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração
intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”. Cf.
MARX, Karl. Ad Feuerbach [1845]. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã, p. 535,
tese 11. Ainda, nesse sentido, Marx sustenta, em outra obra: “O sr. Proudhon ignora que toda a
história não é mais que uma transformação contínua da natureza humana”. Cf. MARX, Karl.
Miséria da filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon, p. 128.
353 Ver, aqui, notas 180, 181 e 182.
354 LUKÁCS, Georg. Meu caminho para Marx [1933], p. 94. Pode-se, ainda, destacar que, para
Frederico Pastore, o “resíduo idealístico” de História e Consciência de Classe se apresenta, em
144

Essa incompreensão relativa à especificidade da natureza, em sua


relação com o homem, bem como da categoria trabalho, indica, por sua vez, uma
compreensão particular, no que concerne ao núcleo dessas questões, a saber, da
categoria da práxis. Como expressão dessa compreensão particular, pode-se indicar
outra polêmica que Lukács estabelece com Engels, no tocante ao problema da
indústria e do experimento. Reportando-se a Engels (1990, p. 180), pode-se aqui
destacar a seguinte passagem: “A refutação mais contundente dessas manias, como
de todas as outras manias filosóficas, é a prática, principalmente a experimentação e
a indústria”. Com base em tal argumento, da exposição engelsiana, sustenta-se que
a coisa-em-si kantiana perderia a sua razão de ser, ou seja, deixaria de ser algo
incognoscível, para tornar-se compreensível, na medida em que, por meio de
experimentos e atuação da indústria, formos capazes de produzir e reproduzir os
objetos, criando-os com base nas suas condições próprias e, assim, dispondo, de
tais objetos, para os nossos objetivos (ENGELS, 1990, p. 180).
Para Lukács, a solução, proposta por Engels, é insustentável, igualmente,
nos parâmetros de uma dialética histórico-materialista. Isso porque, para Lukács
(2003, p. 279), o “experimento é justamente o comportamento contemplativo em sua
forma mais pura”, em razão do experimento criar um meio artificial e abstrato para
observar os fatos em seus acontecimentos, aparentemente, puros, a saber, isolado
das relações com os demais objetos. Aquilo que se busca, em tais experimentos, é
explorar as leis parciais que atuam, nesse objeto, de modo que, ao descobrir tais leis
e o funcionamento específico desse objeto, poder-se-ia auferir vantagens para o
pesquisador, ou para a classe interessada em tal pesquisa. Na indústria, a
investigação das leis formais e abstratas de certos fatos e objetos, na intenção
pragmática, ou seja, voltada para os “nossos objetivos”, apresenta-se, de forma
clara, ao passo que Lukács objeta, ainda, essa suposta atividade prática dos sujeitos
na indústria, argumentando:

especial, no “desconhecimento da função que a natureza desempenha na criação da sociedade


civil”. Mais adiante, Pastore acrescenta: “[…] assim a interação dialética perde, em Lukács, um
dos seus polos e, com isso, abstrai-se do caráter dialético, claramente afirmado por Marx, da
relação homem-natureza”. Cf. PASTORE, Frederico. La conoscenza come azione: saggi su
Lukács, p. 126-127. Ressalta-se, também, como a crítica que o Lukács, em sua maturidade, dirigiu
contra a certas considerações heideggerianas, pode, igualmente, ser direcionada ao tratamento
que o Lukács, em História e Consciência de Classe, conferiu à natureza. Para Lukács, Heidegger,
ao desconsiderar os problemas ontológicos autônomos da natureza, antes, considerando-a como
um “mero componente do ser social”, transformaria a natureza em um “objeto da manipulação
social”. Desse modo, perpetuar-se-ia um raciocínio, ainda, integrado ao capitalismo avançado. Cf.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I, p. 83.
145

Na medida em que a indústria estabelece “metas” - no sentido decisivo, ou


melhor, histórico e dialético do termo –, ela é apenas objeto e não sujeito
das leis naturais sociais. Marx enfatizou por várias vezes que o capitalista (e
quando falamos de “indústria” no passado ou no presente só podemos estar
pensando nele) não passa de uma máscara. […] É evidente, portanto, no
espírito do marxismo – ordinariamente também interpretado por Engels
nesse sentido –, que a “indústria”, isto é, o capitalista como portador do
progresso econômico, técnico, etc., não age, mas sofre a ação, e que sua
“atividade” se esgota na observação e no cálculo exato do efeito objetivo
das leis sociais naturais (LUKÁCS, 2003, p. 279-280).

Em 1967, quando Lukács se reportou, a esse momento de sua obra


juvenil, ele insistiu que o conceito de práxis apresentasse uma deformação e um
estreitamento.355 Em consonância com tal deformação, Lukács (2003, p. 17),
maduro, sustenta ainda que, em História e Consciência de Classe, o conceito de
práxis apresentaria uma estrutura da contemplação idealista, visto que não possui
uma base na práxis efetiva, a saber, no trabalho. Como observado, o trabalho não
vem compreendido, de forma adequada, nessa obra. Ademais, no que concerne, em
particular, à polêmica com Engels, acima explicitada, pode-se sustentar que,
conforme Lukács, em 1967, História e Consciência de Classe apresenta o equívoco
de defender o experimento e a indústria como expressões de um agir contemplativo.
Na realidade, na medida em que, na experimentação, produz-se uma
situação, cientificamente ideal, para investigar a atuação de leis naturais, de forma
objetiva, ou seja, livre de interferências externas, tal ação é fruto de uma posição
teleológica, portanto, de uma práxis. Da mesma forma, verifica-se, na indústria, tais
atos teleológicos. Daí, Lukács (2003, p. 20), em 1967, sustentar: “[…] o fato de cada
ato da produção industrial ser não apenas a síntese de atos teleológicos de trabalho,
mas, ao mesmo tempo e especialmente, nessa síntese, um ato teleológico e,
portanto, prático”.
Interessa aqui destacar, em especial, as razões dessa polêmica de
Lukács com Engels, ou seja, uma incompreensão e estreitamento da noção de
práxis e de trabalho. Daí Lukács (2003, p. 20) acrescentar: “Tais imprecisões
filosóficas servem de punição para História e Consciência de Classe que, ao analisar
os fenômenos econômicos, busca seu ponto de partida não no trabalho, mas
simplesmente em estruturas complexas da economia mercantil desenvolvida”.
Argumenta-se então que em virtude dessa abstração da dimensão histórico-real do

355 Cf. LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de
Classe, p. 17.
146

trabalho, em toda sua complexidade e relevância social, Lukács se apoia na teoria


weberiana da racionalização, na tentativa de responder aos problemas teórico-
práticos, presentes na sociedade moderna. Como visto, tal apoiar-se na teoria
weberiana acarretou uma série de consequências problemáticas para o
desenvolvimento teórico de História e Consciência de Classe.
Ademais, por causa dessa abstração da categoria trabalho, a sua
compreensão da “economia”, quer em seus aspectos teóricos, quer em sua
dimensão prática, termina comprometida. Daí, nesse mesmo posfácio, Lukács
(2003, p. 15) escrever: “Procura-se, é verdade, tornar compreensíveis todos os
fenômenos ideológicos a partir de sua base econômica, mas a economia torna-se
estreita quando se elimina dela a categoria marxista fundamental: o trabalho como
mediador do metabolismo da sociedade com a natureza”. Tais argumentos ilustram o
porquê de Lukács, na sua obra de 1923, separar, de forma teórico-metodológica, a
economia e o ponto de vista da totalidade, como núcleo da dialética lukacsiana:
“Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue
de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da
totalidade” (LUKÁCS, 2003, p. 105).
A despeito de, por vezes, Lukács apresentar noções acertadas do
significado teórico-prático de “economia”, 356 tal reconhecimento se revela
insuficiente, para uma obra que busca retomar a dialética histórico-materialista
marxiana. Ao abstrair do conceito concreto de trabalho, bem como apresentar uma
noção deformada e estreita de práxis, resultou foi, segundo o próprio Lukács (2003,
p. 17), o seguinte: “Como consequência, os pilares reais e mais importantes da visão
marxista do mundo desaparecem, e a tentativa de tirar, com extrema radicalidade,
as últimas conclusões revolucionárias do marxismo permanece sem sua autêntica
justificação econômica”. Ilustra-se assim um desdobramento da incompreensão
primeira e mais profunda, do sentido da inversão materialista da dialética na obra de
Marx. Resta, ainda, explicitar certas consequências da abstração do sentido desta
inversão em Marx, presente nessa obra de Lukács.
De início, pode-se dizer que quando Lukács, reportando-se às categorias
356 Exemplo de tal compreensão acertada, de Lukács, se verifica em seu estudo sobre a reificação,
nas sociedades modernas, quando defende que: “[…] economia não é outra coisa senão o
sistema das formas de objetivação dessa vida real”. Ilustra-se, portanto, o ponto de vista, aqui
sustentado, acerca das tendências contraditórias presentes em sua obra, a saber, tendências
falsas e autênticas justapostas, por vezes, sem mediação, ou com mediações mitológicas, como
ficará claro em seguida. Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In:
LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 383.
147

weberianas, defende o caráter geral da reificação, nas sociedades modernas, isso


implica tolher, do universo histórico-social, as possibilidades imanentes de
emancipação. Daí então Lukács revelar certas posturas sectárias, a despeito das
críticas feitas a tal postura, ao longo da obra. 357 Observa-se tal recaída lukacsiana,
sobretudo, quando insiste em desprezar o elemento da cotidianidade da vida social,
em virtude do seu caráter, plenamente, reificado. Nesse sentido, vem desqualificada
as lutas cotidianas, como tais, ao sustentar, ao contrário, que elas se tornam reais,
ou seja, elevam-se do “nível da facticidade, da mera existência, ao da realidade”
(LUKÁCS, 2003, p. 101), somente quando se toma consciência de tais lutas. Lukács
(2003, p. 9), em 1967, ao comentar tais momentos de sua obra, esclarece: “O
sectarismo dos anos 20 tinha, pelo contrário, objetivos messiânicos e utópicos, e os
seus métodos baseavam-se em tendência fortemente antiburocráticas”.
A tendência messiânica de sua obra se revela, sobretudo, na tentativa de
contornar as raízes reificadas da vida cotidiana, sem que se dispusesse, como visto,
de elementos de criatividade potencial e emancipatória no mundo social. 358 Daí o
porquê de Lukács se reportar ao proletariado, atribuindo-lhe um peso excessivo,
bem como uma figura mitológica.359 Uma vez mais, retorna-se ao problema, exposto
na seção relativa à especificidade das mediações em História e Consciência de
Classe, para assinalar o “abismo”360 existente entre a autoconsciência mercantil do
proletariado e a sua consciência social adequada.
Esse abismo se configura, precisamente, por Lukács se valer de
mediações mitológicas para compor uma nova figura transcendental, 361 capaz de
libertar o mundo social de sua essência reificada. Assim, o autor ressalta a
importância do proletariado como o Sujeito-Objeto idêntico362 da história. Para tanto,

357 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 574.
358 Ver, aqui, nota 165. Ainda, nesse sentido, Arato e Breines comentam que Lukács “odiando
indiscriminadamente o espírito objetivo – todas as instituições e toda forma de lei – e pelo fato de
ter concebido toda ‘objetivação’ como uma reificação, exceto nas alturas do espírito absoluto,
[Lukács] não descobriu a presença da subjetividade criativa nos distintos estratos da sociedade
nem incorporou o sentido de emancipação nas diferentes instituições políticas”. Cf. ARATO,
Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 240.
359 Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p.
195.
360 Ver notas 300 e 302.
361 Sobre este termo, ver nota 305.
362 No capítulo anterior, relativo às categorias centrais de História e Consciência de Classe, foi já
abordado esse sujeito-objeto idêntico, bem como reportou-se a certos comentadores que afirmam
a origem hegeliana de tal concepção. Agora, em virtude da exposição de certas expressões
weberianas, no escrito lukacsiano, compreende-se que tal resultado, ao qual chegou Lukács,
também é fruto de certas assimilações parciais e acrítica de conceitos weberianos e hegelianos.
148

Lukács comprometeu, uma vez mais, a dimensão materialista de sua obra, conforme
ele expôs em 1967:

Portanto, o proletariado como sujeito-objeto idêntico da verdadeira história


da humanidade não é uma realização materialista que supera as
construções de pensamento idealistas, mas muito mais um hegelianismo
exacerbado, uma construção que tem a intenção de ultrapassar
objetivamente o próprio mestre, elevando-se acima de toda realidade de
maneira audaciosa.363

Em virtude da teoria lukacsiana, do sujeito-objeto idêntico, Cerutti


argumenta que há duas concepções de totalidade concreta em História e
Consciência de Classe.364 Em primeiro lugar, observa-se um conceito de totalidade,
fundado de forma materialista, relativo ao substrato material da realidade, aos
valores de uso concretos e às necessidades reais de indivíduos historicamente
determinados. Com base em tal formulação, verifica-se, ainda, potencialidades
emancipativas, sobretudo na possibilidade de se contrapor à totalidade formal, em
suas expressões teórico-práticas.
Em contrapartida, em segundo lugar, verifica-se um conceito de totalidade
como “identidade”,365 posto que há certa homogeneização dos indivíduos e das suas
experiências reais e concretas. Esses dois conceitos de totalidade, constituintes da

Insiste-se, neste ponto, uma vez que Lukács, em 1967, ao criticar tal elaboração conceitual,
reporta-se, apenas, ao seu caráter hegeliano, abstraindo da presença problemática da orientação
weberiana em seu escrito. Cf. LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 25.
363 LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe,
p. 25. Poucos anos após ter publicado esse posfácio, Lukács sustenta, em Para uma Ontologia do
ser social, a seguinte crítica em relação ao sujeito-objeto idêntico, presente na filosofia de Hegel:
“[…] a teoria do sujeito-objeto idêntico constitui um mito filosófico, o qual – com essa suposta
unificação de sujeito e objeto – deve necessariamente violentar os fatos ontológicos
fundamentais”. Mais adiante, Lukács explicita, na mesma obra, o porquê da filosofia hegeliana se
reportar a tal categoria. Acredita-se, aqui, que o comentário do Lukács, da maturidade, com
relação à categoria hegeliana, de sujeito-objeto idêntico, seja pertinente a mesma categoria, tal
como ela aparece em História e Consciência de Classe. Trata-se, de fato, de um “mito filosófico”.
Cf. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I, p. 204.
364 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 65.
365 Para Cerutti, esta identidade corresponde a uma “transformação sub-reptícia, de uma posição
gnosiológica em uma posição ontológica”. Fugiria ao escopo deste trabalho explicitar a diferença
entre a compreensão de Cerutti e a de Lukács, em sua maturidade, dos sentidos de ontologia.
Todavia, interessa, aqui, a argumentação de Cerutti, quando ele afirma que com a categoria
lukacsiana, de sujeito-objeto idêntico, o que se constata é uma “modalidade transcendental”, em
que a objetividade, independente da natureza, vem reabsorvida, de forma completa, na
socialização total, constituindo, assim, um núcleo socialmente idêntico. Ademais, essa identidade
também é verificável quando Lukács, em virtude de sua formulação transcendental, abstrai das
diferenças qualitativas, entre os diferentes indivíduos reais, com as suas necessidades e desejos
concretos. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e
Coscienza di Classe, p. 65-66.
149

obra, encontram-se em constante tensão e contradição entre si. 366


Em razão da abstração da experiência dos sujeitos reais e historicamente
constituídos, verifica-se, uma vez mais, que a mediação que garantiria a identidade
entre o sujeito e objeto, no proletariado, bem como a transição para a sociedade
comunista, encontra-se comprometida. Diferentemente de Marx, que, ao elaborar as
suas mediações, valendo-se de uma compreensão das necessidades histórico-
práticas circundantes aos indivíduos reais, 367 Lukács reporta-se à mediações
mitológicas, não obstante em História e Consciência de Classe ele reprovasse tais
mediações mitológicas, como uma postura hegeliana. 368 Daí Lukács admitir, em seu
posfácio: “A conversão da consciência ‘atribuída’ em práxis revolucionária aparecia
então – considerada objetivamente – como simples milagre”. 369
Ao cancelar o não-idêntico, ou seja, as determinações históricas e
concretas, bem com as qualidades e pluralidades sensíveis dos indivíduos, Lukács
busca ajustar e adequar a realidade ao conceito que ele possui dela: 370 algo que,
para Cerutti, representa uma “restauração e absolutização da lógica”, 371 ainda que,
366 Segundo Cerutti: “C'è dunque in Storia e coscienza di classe un'ambivalenza, quasi una
contraddizione fra la totalità come identità e la totalizzazione materialistica (o totalità-mediazione)
che è negazione determinata della falsa totalità formale del capitalismo e insieme principio di
costruzione della società comunista ´[Existe, portanto, em História e Consciência de Classe, uma
ambivalência, quase uma contradição, entre a totalidade como identidade e a totalização
materialística (ou totalidade-mediação) que é negação determinada da falsa totalidade formal do
capitalismo e, ao mesmo tempo, princípio de construção da sociedade comunista]”. Cf. CERUTTI,
Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 66.
367 Ver, a esse respeito: ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del
marxismo occidental, p. 206.
368 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 398.
369 LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In: História e Consciência de Classe, p. 18.
370 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 67; Ver, ainda: CERUTTI, Furio. Un modello di marxismo critico. In: VALENTE, Mario
(org.). Lukács e il suo tempo: la costanza della ragione sistematica, p. 74.
371 CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p.
63. Deve-se, ainda, destacar a razão de Lukács, em sua maturidade, argumentar que Hegel, com
seu conceito de sujeito-objeto idêntico, termina por deformar os fatos ontológicos. Para Lukács,
essa deformação é uma consequência da fundamentação lógica desse conceito hegeliana. No seu
entender: “Já dissemos que Hegel é o único, entre os representantes da filosofia clássica alemã, a
apresentar essa tendência para uma ontologia baseada na lógica, para uma ontologia que só
consegue encontrar expressão adequada em categoriais e relações lógicas. Por um lado, isso faz
com que ele seja o único, em ligação com essa nova cognição do mundo, a lançar as bases para
uma nova lógica, uma lógica dialética; por outro, dando expressão à sua nova ontologia nessa
nova lógica, ele sobrecarregou as categorias lógicas de conteúdo ontológicos, englobando
incorretamente em suas articulações relações ontológicas, além de ter deformado de várias
maneiras os importantíssimos conhecimentos ontológicos novos ao forçar seu enquadramento
dentro de formas lógicas”. Ao se reportar a tal crítica, exposta na Ontologia, não se sustenta, aqui,
que as limitações de História e Consciência de Classe sejam as mesmas limitações das obras
hegelianas. Todavia, observa-se certa semelhança, entre ambas, uma vez que, também, em
História e Consciência de Classe, o elemento lógico termina se apresentando, ainda que não de
forma explícita, como em Hegel, mas sub-repticiamente e, assim, deformando certas concepções,
ontologicamente, acertadas, como aquelas apresentadas no conceito de totalidade concreta,
150

ao se reportar à tentativa hegeliana, de superar os limites formais e contemplativos


do racionalismo moderno, Lukács tenha censurado Hegel, argumentando que “toda
lógica é platônica”.372 Nesse sentido, a lógica reconduziria, na argumentação
lukacsiana, às dualidades, já apresentadas, entre sujeito e objeto, pensamento e
ser: dualidade, esta, que o próprio Lukács termina recaindo, na medida em que
defende uma totalidade idêntica, tal como exposta no seu conceito de Sujeito-objeto
idêntico.
Portanto, por causa de suas elaborações lógicas, abstraídas das
determinações reais e da autêntica possibilidade de emancipação, Lukács
inviabiliza, em sua teoria, a superação efetiva da sociedade capitalista. Com isso,
resta-lhe apenas soluções aparentes, a saber: voluntarismo e oposição ética ao
capitalismo, que, como já explicitado por Lukács, estão unidos, teórico-
metodologicamente,373 quer o voluntarismo, quer a oposição ética, ambos assumem
a sua forma acabada, no Partido Comunista ou no partido concebido por Lukács. 374

5.4 A DIALÉTICA DA NECESSIDADE E DA LIBERDADE: CONSIDERAÇÕES


SOBRE AS QUESTÕES DA ORGANIZAÇÃO PROLETÁRIA EM HISTÓRIA E
CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Até o momento foi exposto que História e Consciência de Classe


apresentou uma oposição fundamental entre o universo teórico-prático reificado,
próprio das sociedades modernas, e o proletariado consciente de seu papel
histórico, ou seja, como um sujeito-objeto idêntico. Tal oposição é expressão de uma
oposição mais fundamental, a saber, da oposição dialética entre a necessidade e a
liberdade. Para abordar a compreensão lukacsiana, de necessidade histórico-
prática, é forçoso que se retorne a certos argumentos, já apresentados neste estudo,
em especial, reporta-se, aqui, à sociedade capitalista, estruturada com base na
relação mercantil, portanto, sociedade reificada (LUKÁCS, 2003, p. 193-194).
Como visto, a reificação estrutura a sociedade, quer de um ponto de vista

constituída de forma materialista. Cf. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I, p.
212.
372 Ver, aqui, nota 468.
373 Cf. LUKÁCS, Georg. Rosa Luxemburgo como marxista [1921]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 122-123. Ver, ainda: LUKÁCS, Georg. O que é o marxismo
ortodoxo? [1919]. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 68.
374 Ver, aqui: Nota 507.
151

objetivo, quer subjetivo, apresentando, em sua dimensão subjetiva, o proletariado


como um objeto mercantil, produto desta mesma, sociedade reificada (LUKÁCS,
2003, p. 339): expressão no proletariado que origina assim a sua crise ideológica e
que deve ser superada, a fim de que o proletariado alcance a sua consciência social
adequada. Para Lukács (2003, p. 153), essas expressões teórico-práticas, da
reificação, possuem um “fundamento econômico objetivo”, a saber, um “sistema de
leis objetivas e econômicas” (LUKÁCS, 2003, p. 552) que, atuando de modo
necessário, determina as formas de objetivação da vida social. 375 Aqui, Lukács se
reporta à dinâmica já apresentada, das relações mercantis, ou seja, da estrutura e
da essência da mercadoria. Como visto, Lukács (2003, p. 20) não busca a
compreensão da essência da sociedade no trabalho humano, mas nas “estruturas
complexas da economia mercantil desenvolvida”.
Lukács não pensa, porém, a dinâmica social, somente valendo-se de seu
fundamento econômico necessário e basilar. Como exposto, ele articula o
fundamento econômico, da sociedade capitalista, com o funcionamento do Estado
moderno. Desse modo, Lukács (2003, p. 214) concebe o Estado racional e
estruturado, de forma burocrática, como uma expressão desse fundamento
econômico, mas, também, como um importante fator para o funcionamento normal
da economia, na medida em que assegura o “pleno rendimento” capitalista, a saber,
lucro máximo e renovado. Ainda que o Estado, concebido por Lukács, seja uma
expressão do fundamento mercantil da sociedade, o que lhe garante a sua real
sustentação é de ordem ideológica. Isso ocorre, em razão de que, no seu entender,
a força, quer jurídica, quer estatal-jurídica, a despeito de seu fundamento
econômico, precisa ser esclarecida “no sentido de que essa conexão encontra um
reflexo ideológico correspondente no pensamento e no sentimento dos homens
envolvidos no campo dominado pela força” (LUKÁCS, 2003, p. 466).
Para que a autoridade da instituição estatal seja efetiva, ela precisa se
apresentar aos homens como um poder natural, inexorável e insuperável, de modo
que os homens, voluntariamente, submetam-se a tal poder (LUKÁCS, 2003, p. 467).
Desse modo, não basta reconhecer o Estado, meramente, como uma estrutura
factual de poder, mas deve-se, igualmente, reconhecer a sua dimensão ideológica.
Conforme observa Lukács:

375 Cf. LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.).
História e Consciência de Classe, p. 383.
152

Por conseguinte, trata-se também de descobrir nele uma simples estrutura


de poder, que, por um lado, deve ser levada em conta apenas na extensão
alcançada por seu poder real, e cujas fontes de poder precisam, por outro
lado, ser submetidas a um exame mais preciso e imparcial, a fim de fazer
emergir os pontos em que esse poder pode ser debilitado ou minado. Mas
esse ponto das forças ou das fraquezas do Estado é exatamente a forma
como ele se reflete na consciência dos homens. Nesse caso, a ideologia
não é simplesmente uma consequência da estrutura econômica da
sociedade, mas, ao mesmo tempo, o pressuposto do seu funcionamento
pacífico (LUKÁCS, 2003, p. 472-473).

Com base em tais argumentos, Lukács conclui que o poder da sociedade


é “essencialmente espiritual, do qual apenas o conhecimento pode nos libertar”. 376
Desse modo, a razão da sua insistência relativa ao papel revolucionário da
consciência social adequada do proletariado, torna-se clara. Trata-se, portanto, para
o proletariado, de desvencilhar-se, ideologicamente, das formas reificadas, próprias
da sociedade capitalista. Disso decorre que o proletariado “só consegue se libertar
da sua dependência ideológica, relativa às formas de vida criadas pelo capitalismo,
quando aprender a impedir que elas influenciem internamente as suas ações e
quando consegue vê-las como motivos sem a menor importância” (LUKÁCS, 2003,
p. 478).
Em virtude do sustentáculo e fundamento ideológico das formas jurídico-
estatais, Lukács, ao se reportar ao proletariado como sujeito-objeto idêntico, pôde
destacar a importância do conhecimento social adequado, como expressão da
superação dessa classe em relação à ideologia burguesa dominante. Daí, então,
Lukács (2003, p. 97) afirmar: “Do ponto de vista do proletariado, o autoconhecimento
coincide com o conhecimento da totalidade; ele é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto
do seu próprio conhecimento”. Em seguida, pode-se acrescentar com Lukács (2003,
p. 99): “Certamente, o proletariado é o sujeito cognoscente desse conhecimento da
realidade social total”.
Importa aqui destacar o papel fundamental, que Lukács atribui ao
conhecimento da realidade social do proletariado, pois resulta de certa compreensão
da realidade, em que busca expor os elementos ideológicos que sustentam as

376 LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: LUKÁCS, Georg (Org.). História
e Consciência de Classe, p. 475. Lukács, uma vez mais, afasta-se das considerações acertadas
e formuladas, de forma materialista, relevando certa confusão entre a dimensão objetiva da
sociedade e as suas expressões subjetivas, na consciência dos indivíduos. Somente em sua
maturidade, ao formular o conceito de “espelhamento dialético”, Lukács pôde combater a confusão
entre a “realidade objetiva e seu espelhamento imediato, que – considerado no plano ontológico –
é sempre subjetivo”. Cf. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I, p. 27.
153

diferentes estruturais sociais. Todavia, ao destacar tais determinantes ideológica e


ao se valer de certa fundamentação gnosiológica, Lukács, uma vez mais, distancia-
se do materialismo histórico e dialético marxiano, para retornar, ainda que
parcialmente, a certa compreensão da realidade, própria da filosofia clássica alemã.
Para tanto, deve-se recordar a questão fundante e fundamental para a filosofia
moderna. Trata-se, com efeito, de uma problemática do conhecimento, presente na
filosofia kantiana, a saber: pensar o mundo não como um independente do sujeito,
mas uma criação do próprio sujeito cognoscente. 377

Não obstante Lukács (2003, p. 99) demostre certo cuidado, ao destacar


que o conhecimento concernente ao proletariado não deve ser compreendido no
sentido kantiano, a saber, “em que o sujeito é definido como o que não pode jamais
tornar-se objeto”, este modo de proceder acarreta certos problemas. Uma vez mais,
trata-se da confusão relativa ao primado histórico-prático e material da realidade em
face de suas expressões subjetivas. 378 Na medida em que Lukács, como visto, não
compreende, de forma adequada, a viragem materialista, presente nos escritos
marxianos, isso o conduz a certas valorizações subjetivistas 379 do papel que o
conhecimento do proletariado desempenha nos processos sociais, sobretudo, nos
processos revolucionários.
Isto pode ser observado, quando Lukács (2003, p. 171) sustenta que
“para o proletariado, a verdade é uma arma portadora da vitória e o é tanto mais

377 Ver, aqui, nota 330.


378 Ver nota 360.
379 Nos anos seguintes à publicação de História e Consciência de Classe, quando Lukács se reporta
a essa obra, é recorrente destacar esse aspecto subjetivista, no modo de tratar o proletariado e a
revolução. Assim, em 1933, Lukács destacaria a existência, nessa obra, de um “ativismo
subjetivista de ultra-esquerda”. Em 1967, ele é ainda mais enfático quanto aos limites de História e
Consciência de Classe: “Desse modo, tanto a exposição das contradições do capitalismo como a
da revolução do proletariado adquirem uma ênfase involuntária de subjetivismo dominante”. Por
fim, em sua última entrevista, Lukács sustenta: “E é de se acrescentar ainda que no conjunto da
concepção social e política uma grande parte pertence ao já recordado sectarismo messiânico”.
Cf. LUKÁCS, Georg. Meu caminho para Marx [1933], p. 94; LUKÁCS, Georg. Prefácio [1967]. In:
LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 16-17; LUKÁCS, Georg. Diálogo
sobre o “Pensamento vivido”, p. 46. Ainda nesse sentido, destaca-se que, quando Domenico
Losurdo se reporta ao problema da ação proletária, presente em História e Consciência de Classe,
ele a denomina como um “idealismo da práxis”. Cf. LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a
Ontologia do ser social. Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v. 24, n. 1, 2015, p. 126. Todas
essas críticas apresentam um elemento em comum: censuram Lukács, em sua juventude, por ter
abstraído das determinações histórico-práticas, quer dos sujeitos reais, quer da compreensão dos
sentidos da revolução. O que, uma vez mais, deve ser compreendido na relação, imanente e
contraditória, com exposições acertadas da realidade, tais como as descritas no início desta
seção, do quarto capítulo, concernente à compreensão lukacsiana, do fundamento econômico
objetivo da sociedade. Todavia, ao longo da exposição da obra, Lukács termina, por vezes,
secundarizando o fundamento econômico, para tratar, em primeiro plano, as suas expressões
ideológicas.
154

quanto mais audaciosa for”, ou, ainda, quando ele defende, nesse mesmo sentido:
“O proletariado não deve temer nenhuma autocrítica, pois somente a verdade pode
trazer sua vitória, e a autocrítica deve ser, por isso, seu elemento vital” (LUKÁCS,
2003, p. 191). Em razão de tais argumentos, que ilustram o subjetivismo e idealismo
de certas perspectivas presentes em História e Consciência de Classe, Lukács
pôde, igualmente, reduzir a complexidade histórico-prática da revolução e das
mediações que a conduzem ao seu sucesso, a elementos subjetivistas. O que se
confirma, quando Lukács (2003, p. 470) sustenta: “Essa reforma na consciência é o
próprio processo revolucionário”. Na continuidade, ele acrescenta, ainda, que o
obstáculo para uma ação revolucionária é de natureza “puramente ideológica”
(LUKÁCS, 2003 p. 475).
Por causa do agravamento relativo aos problemas de natureza ideológica,
bem como da percepção lukacsiana dos limites de suas considerações anteriores,
ou seja, da consciência atribuída do proletariado em superar tal crise ideológica,
vem formulado o conceito de Partido Comunista: partido que, em tese, possibilitaria
realizar e consolidar essa consciência atribuída dos sujeitos históricos, como poderá
ser observado na continuidade desta exposição. Dessa forma, o último ensaio da
obra aqui investigada, escrito em 1922, é destinado a pensar os problemas de
organização e tática proletária no período revolucionário. O que se constata, em tal
ensaio, é a tentativa de formular uma compreensão mais concreta e prática do
Partido Comunista, não mais tão orientada por uma perspectiva ética, tal como
descrita no ensaio sobre a consciência de classe, de 1920. 380
Para Lukács, trata-se de um erro, oriundo da perda vulgar e revisionista,
do sentido de totalidade, em que se reduzir o problema da organização a uma
simples questão técnica: secundária do ponto de vista intelectual. 381 Isso explicaria,
então, o porquê de essa ser “uma das questões menos elaboradas teoricamente”
(LUKÁCS, 2003, p. 523). Se até então, nos problemas organizativos, verificou-se
certo sucesso, sobretudo, na Rússia, isso deveu-se a um “instinto revolucionário
correto” do proletariado, em vez de uma clara postura teórica. Entretanto, acrescenta
Lukács (2003, p. 525): “[…] muitas atitudes taticamente equivocadas, como nos
debates sobre a frente única, decorrem de uma compreensão incorreta das
questões de organização”. Para iniciar uma compreensão adequada, relativa ao
380 Ver notas 341 e 342.
381 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 523.
155

Partido Comunista, deve-se, no entender de Lukács, deslocar o problema do âmbito


individual e contingente, retomando o problema da totalidade, em sua obra. Segundo
ele escreve:

Se essa questão for deslocada para além do âmbito individual e


contingente, se na ação correta ou incorreta dos indivíduos for observada
uma causa de fato co-determinante de todo o complexo, mas, além disso,
for investigada a razão e as possibilidades objetivas dos fatos, pelos quais
essas pessoas ocupavam precisamente esses postos etc., então a questão
terá sido reformulada em termos organizativos. Pois, nesse caso, a unidade
que reuniu os agentes em sua ação é examinada já como unidade objetiva
da ação, em seu préstimo para essa ação determinada (LUKÁCS, 2003, p.
532).

Uma vez que essa questão venha reformulada, no sentido da


compreensão da totalidade, ou seja, por meio do tratamento histórico e dialético da
realidade, torna-se possível vislumbrar a essência do partido: “princípio concreto de
mediação entre o homem e a história”. 382 É mediante o Partido Comunista que o
trabalhador se eleva à condição de sujeito histórico, cuja práxis é fundamental para
a transformação social. Os indivíduos, subordinados à vontade coletiva,
estabelecem, no partido, uma ação recíproca com o processo histórico. O que só
torna possível mediante uma relação efetiva entre o partido e a massa de
trabalhadores, bem como a validade da liderança política e a dedicação exclusiva de
seus membros.383
Para tanto, Lukács (2003, p. 565) destaca que a concepção de partido
não se reduz a uma concepção ética e formal, própria das seitas religiosas, mas, ao
contrário, no Partido Comunista, o elemento que o distancia, das seitas, conferindo-
lhe concretude, é, justamente, a “ação recíproca viva entre a organização partidária
e a massa desorganizada”. A separação aqui entre ser e consciência, concernente
às seitas e à concepção burguesa, origina-se, uma vez mais, na “incapacidade de
compreender sua unidade como processo dialético, como o processo da história”
(LUKÁCS, 2003, p. 566). A unidade, a qual Lukács se reporta, é aquela entre ser e
consciência, observável na relação recíproca entre organização partidária e massa.
O vínculo dialético desta união é oriundo, justamente, na consciência de classe do
proletariado, na medida em que tal consciência se fundamenta em um mesmo
“ser”384 para a classe proletária, a saber, uma mesma posição no processo
382 Ibidem, p. 565.
383 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 565.
384 Ver, aqui, nota 409.
156

econômico produtivo.
Não obstante a unidade que se verifica entre a organização partidária e
as massas, ressalta-se, com base em Lukács, que existe ainda uma separação
organizacional entre partido e classe.385 Com isso, Lukács identifica a inexistência
de uma identidade entre ambos, mas uma separação, em virtude das estratificações
na consciência proletária, ou seja, em virtude dos diferentes níveis e graus,
constatáveis, entre os diferentes membros da classe trabalhadora. Isso porque, uns
possuem, como já visto, níveis mais elevados de consciência, ao passo que outros
estão ainda atrasados, do ponto de vista da consciência social adequada, ou seja,
encontram-se, bastante, submetidos às formas de vida capitalistas.
Se o Partido Comunista pressupõe uma “unidade de consciência”, ou
seja, uma “unidade do ser social que lhe subjaz” (LUKÁCS, 2003, p. 569-570), a
coligação tática, por sua vez, não necessita de tal unidade. De acordo com Lukács,
a coligação tática é possível nas diferentes classes entre si, cujo ser social é distinto,
mas que, sob a perspectiva da revolução, caminhem para o mesmo caminho, qual
seja, a superação da sociedade capitalista. No entanto, diante da existência social
de classes distintas, a colaboração tática é benéfica, para a revolução, apenas se as
“diversas organizações se mantiverem rigorosamente separadas” (LUKÁCS, 2003,
p. 571). Isso ocorre porque, distintas camadas sociais – como a pequena burguesia
e o campesinato –, por não apresentarem uma consciência social clara, estão
sujeitas a mais oscilações do que a classe proletária. Daí a necessidade de “uma
colaboração mais do que tática poderia prejudicar o destino da revolução” (LUKÁCS,
2003, p. 571).
Não obstante esta constatação, relativa à separação de organização e
tática, Lukács (2003, p. 579) esclarece a seguinte questão: “Essa separação precisa
– embora em constante alteração e adaptação às circunstâncias – entre acordo
tático e organizacional na relação do partido com classe assume, como problema
interno do partido, a forma de uma unidade entre questões tática e de organização”.
Daí se pressupor a necessidade de uma unidade interna dos membros do partido,
mediante uma centralização organizacional. Para Lukács (2003, p. 580-581),
centralização organizacional e capacidade de tomar iniciativas táticas se
condicionam: “o fato de uma tática almejada pelo partido poder influir nas massas

385 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 567-568.
157

pressupõe que elas consigam se impor dentro do partido”. Com isso, não se
compreende uma imposição mecânica, nem mesmo uma obediência cega dos
membros do partido. Trata-se, na verdade, de pensar uma formação organizativa
que seja homogênea, a saber, “que qualquer alteração de atitude reflete em cada
membro do partido. Em suma, nessa formação, a sensibilidade da organização para
mudar o rumo, elevar a combatividade, recuar etc. atinge seu ápice” (LUKÁCS,
2003, p. 581).
Para compreender o que garante que este aspecto homogêneo da
organização não recaía nas seitas, a saber, nos modelos segundo os quais
retornariam a uma divisão entre ser e consciência, possibilitando derivações
autoritárias – em que o caráter singular dos indivíduos seriam extintos –, deve-se
reportar à relação lukacsiana entre Partido Comunista e liberdade. Segundo Lukács,
o Partido Comunista é “o primeiro passo consciente para o reino da liberdade”.386
Com isso, não se compreende, todavia, que se cesse, de forma repentina, as
necessidades objetivas do processo econômico, descritas no início desta seção.
Entretanto, deve-se especificar o sentido de liberdade, aqui exposto. Segundo
Lukács:

Pode-se constatar sobretudo que, nesse caso, liberdade não significa a


liberdade do indivíduo. Não que a sociedade comunista desenvolvida não
conhecesse a liberdade do indivíduo. Pelo contrário, será a primeira
sociedade na história da humanidade a levar essa exigência a sério e a
realizá-la efetivamente. Mas essa liberdade também não será aquela
concebida atualmente pelos ideólogos da classe burguesa. Para conquistar
os pressupostos sociais da verdadeira liberdade, é preciso travar batalhas
nas quais desapareceram não apenas a sociedade atual como também o
tipo de humanidade produzido por ela. […] Afinal, a “liberdade” dos homens
que vivem atualmente é a liberdade do indivíduo isolado pela propriedade
reificada e reificante: uma liberdade contra os outros indivíduos (igualmente
isolados). Uma liberdade do egoísmo, do isolamento.387

386 LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 554. Ver, ainda: ARATO, Andrew; BREINES,
Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p. 243.
387 LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 555. Aqui, Lukács segue a compreensão de
Marx, em sua juventude, a respeito da liberdade burguesa. Argumenta Marx: “A liberdade é,
portanto, o direito de fazer e empreender tudo o que não prejudique nenhum outro. Os limites
dentro dos quais cada um pode se mover sem prejuízo de outrem são determinados pela lei, tal
como os limites de dois campos são determinados pela estaca [das cercas]. Trata-se da liberdade
do homem como mônada isolada, virada sobre si própria. […] Mas o direito humano à liberdade
não se baseia na vinculação do homem com o homem, mas, antes no isolamento do homem
relativamente ao homem. É o direito desse isolamento, o direito do indivíduo limitado, limitado a
si”. Cf. MARX, Karl. Para a questão judaica. Tradução de José Barata Moura. São Paulo:
Expressão Popular, 2009, p. 63-64.
158

Ao contrário da liberdade do egoísmo, expressão teórica de uma


sociedade que desconhece a liberdade efetiva, Lukács defende que o querer
consciente do reino da liberdade significa, igualmente, o avançar daqueles passos
que, de forma efetiva, podem gestar tal liberdade verdadeira. Deve-se, em primeiro
lugar, renunciar à liberdade individual. Tal renúncia, no entender de Lukács (2003, p.
556), implicaria na “subordinação consciente àquela vontade conjunta que está
determinada a instaurar na realidade a verdadeira liberdade, que hoje tenta dar
seriamente os primeiros passos […] em direção a ela. Essa vontade conjunta e
consciente é o Partido Comunista”. Trata-se de um partido que contém o germe, sob
forma primitiva, abstrata e não desenvolvida, as determinações que conduzem à
realização prática dessa liberdade: “a liberdade em unidade com a solidariedade”, e
não mais do indivíduo isolado. Lukács (2003, p. 556) denomina essa unidade de
“disciplina”.
Ao enfatizar outra liberdade, a saber, uma liberdade que se relaciona com
a solidariedade entre os homens e que, portanto, ultrapassa os limites da
representação burguesa, Lukács indica que tal liberdade deve, ainda, ser
conquistada. Trata-se, portanto, de um longo processo, em que o proletariado, em
sua grande maioria, encontra-se ainda submetido a crises ideológicas e a formas de
vida burguesa. Com isso, ilustra-se que “não há um operário individual que tenha
nascido comunista”.388 Todos nascem na sociedade capitalista e são, por isso,
submetidos a formas de vida reificadas, ou seja, estão submetidos à dimensão da
necessidade econômica capitalista. Por causa disso, Lukács (2003, p. 572)
argumenta: “Todo operário nascido na sociedade capitalista e crescido sob sua
influência tem de percorrer um caminho mais ou menos árduo de experiências, a fim
de conseguir compreender corretamente sua própria situação de classe”.
Daí a importância do Partido Comunista, explicita Lukács (2003, p. 587), o
qual não se vale de ilusões utópicas, quanto à natureza dos homens que vivem na
sociedade capitalista, ou seja, não se espera uma completa transformação dos
homens no terreno mesmo do capitalismo, mas, no interior do partido, busca-se
“medidas e garantias organizacionais para contrariar os efeitos dessa situação”.
Para Lukács, portanto, “a vida interna do partido é um combate constante contra

388 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 572.
159

essa herança capitalista”.389 Nesse sentido, o principal instrumento que o partido se


utiliza para tal combate, é convocar os seus membros para que eles “participem com
toda a sua personalidade da atividade partidária” (LUKÁCS, 2003, p. 588). Por essa
razão, já não se trata mais, para os membros do partido, de exercer um cargo como
outro qualquer. Trata-se, na verdade, da possibilidade de tais membros alcançarem,
“com toda a sua personalidade, uma relação ativa com a totalidade da vida partidária
e com a revolução e deixarão de ser meros especialistas, submetidos
necessariamente ao risco da solidificação interior” (LUKÁCS, 2003, p. 588).
No entender do autor, somente com a integração de toda a personalidade
na vida partidária, é possível contrapor-se, de forma efetiva, à reificação,
apresentada na sociedade capitalista, uma vez que tal reificação não diz respeito,
somente, ao âmbito intelectual, mas se expressa, igualmente, nas relações
cotidianas. Daí a razão de sua superação ser, também, não somente um problema
de consciência, como também um problema que só pode ser solucionado por meio
das experiências concretas que somente o Partido Comunista pode proporcionar.
Segundo o autor, mediante tais experiências, será garantido o desenvolvimento da
consciência social correta do proletariado. Ele acrescenta: “O desenvolvimento da
consciência de classe proletária (ou seja, o desenvolvimento da revolução proletária)
e o do partido comunista são, na verdade – do ponto de vista da história mundial –, o
mesmo processo” (LUKÁCS, 2003, p. 577). Uma vez mais, Lukács apresenta a
identificação entre o processo revolucionário e o processo de desenvolvimento da
consciência proletária,390 com a diferença de que, agora, tal identificação vem
mediada pela figura histórica do Partido Comunista. Isso justifica, para Lukács, a
criação – como um ato consciente e livre – do Partido Comunista representar o
passo decisivo para a vitória revolucionária proletária. 391
Diante da exposição do significado do Partido Comunista, presente em
História e Consciência de Classe, sustenta-se que, embora Lukács tenha buscado

389 LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 588. Lukács, aqui, reporta-se à
argumentação de Lênin, o qual sustenta: “Podemos (e devemos) empreender a construção do
socialismo não com um material humano fantástico, nem especialmente criado por nós, mas com
o que nos foi deixado de herança pelo capitalismo. Não é necessário dizer que isso é muito ‘difícil’;
mas, qual outro modo de abordar o problema é tão pouco sério que nem vale a pena falar dele”.
Cf. LÊNIN, Vladimir Ilitch. Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920), p. 50.
390 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 573.
391 Cf. LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 578; p. 594.
160

concretizar suas noções de consciência atribuída e revolução proletária, por meio da


mediação organizacional partidária, ele foi infeliz em tal tentativa. Ou seja, Lukács
não alcançou a concretização esperada, no sentido de uma articulação, efetiva,
entre teoria e práxis revolucionária. Pode-se dizer que, em razão de seu conceito de
Partido Comunista, Lukács termina reproduzindo certos problemas, já constatáveis,
no seu conceito de sujeito-objeto idêntico, pois ambos os conceitos são formulados
como figuras mitológicas.392 Com isso, compreende-se, uma vez mais, que a
necessidade desse conceito, conforme abordado pelo autor, não se sustenta nas
relações objetivas econômicas, ou seja, não apresentam um fundamento material
nem determinações histórico-práticas, mas sua necessidade é deduzida do plano
“transcendental”.393 Origina-se, em realidade, como uma necessidade da
consciência atribuída, a qual se apresenta como uma “ideia reguladora” 394 para o
Partido Comunista. É esta a meta a qual o Partido deve conduzir a consciência da
massa desorganizada. Em suma, Lukács, uma vez mais, encaminha suas
argumentações, com base em um dever-ser.395
A abstração das determinações histórico-práticas, bem como dos sujeitos
reais, revela-se, claramente, quando Lukács sustenta que o proletariado deve se
integrar ao Partido Comunista com toda a sua personalidade. Uma vez mais, os
problemas decorrentes do conceito de totalidade idêntica, lukacsiana, surgem, aqui.
Nesse sentido, de novo, Lukács, sob uma “mitologia filosófica”, anula o não idêntico,
a saber, os indivíduos reais e concretos, possuidores de necessidades diferentes e
inseridos em contextos históricos diferentes. 396 Uma vez mais, tais sujeitos são
392 Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental,
p. 223.
393 Segundo Cerutti: “[…] la sua necessità è di tutt'altro tipo, gli proviene cioè non dal piano storico-
emprico, bensì da quello trascendentale della coscienza imputata, dalla possibilità oggettiva di
questa [a sua necessidade é de outra ordem, ela origina-se, não do plano histórico-empírico, mas
do plano transcendental da consciência imputada, da possibilidade objetiva desta]”. Cf. CERUTTI,
Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 119.
394 Sobre este termo, ver: CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e
Coscienza di Classe, p. 120.
395 Já se apresentou a concepção de Mészáros, segundo a qual é possível observar, como núcleo
estruturante das obras de Lukács, uma dialética entre “ser” e “dever-ser”, como uma expressão do
seu “desejo de objetividade”. Todavia, ao se valer, de forma predominante, de construções
fundamentadas no “dever-ser”, Lukács incorreria em um grave problema para a sua dialética.
Segundo Mészáros: “[…] mediar Sein und Sollen por meio de outro Sollen equivale a não mediar”.
Cf. MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács, p. 67.
396 Segundo Cerutti: “Gli individui ammessi a far parte del partito comunista, proprio perché destinati
alla missione trascendentale di incarnare la coscienza di classe imputata, sono soggetti
kantianamente intelligibili, dal cui agire viene cancellato ogni legame con la dimensione sensibile
[…], quindi ogni aspetto di diversità nella molteplicità, ogni radice nella sfera concreta della qualità
e dei bisogni: essi sono pure figure della coscienza di classe oggettivamente possibile. Avviene qui
quella stessa cancellazione del non identico che abbiamo visto in uno dei versanti della
161

tratados como “figuras” destinadas a encarnar a consciência atribuída e ideal, posto


que, em razão de tal encarnação, podem, sem problemas, dedicar-se,
exclusivamente, à organização partidária comunista. 397
Com as questões relativas à organização proletária, vem exposto como
Lukács pensa realizar, nos proletários, essa consciência atribuída. Em razão da
integração de toda a personalidade de seus membros, como uma expressão do
combate às formas de vida capitalista, Lukács termina incorrendo em uma
concepção de consciência a posteriori.398 O partido, com as suas exigências
disciplinares, transforma, a posteriori, os seus membros em sujeitos da história, a
saber, em sujeito-objeto idênticos: algo que revela outro aspecto paradoxal da obra
lukácsiana, uma vez que tal estrutura de consciência foi um dos aspectos criticados
da obra hegeliana. Para Lukács (2003, p. 92), quando Hegel formula que o motor da
história se encontra na “consciência dos povos”, isso seria uma expressão de que
Hegel “continuaria preso às formas do pensamento platônico-kantiano, à dualidade
do pensamento e do ser, à forma e à matéria, não obstante os seus esforços
bastante enérgicos em sentido contrário”.
Pode-se afirmar algo semelhante em Lukács, não obstante os seus
enérgicos esforços em sentido contrários. Daí a razão de Cerutti (1980, p. 123), de
forma irónica, sustentar: “Se queremos, por fim, nos exprimir por imagens
paradoxais, poder-se-ia, a este respeito, dizer que o Hegel, criticado por Lukács,
vinga-se duas vezes do seu crítico, graças à via tortuosa do transcendentalismo, de
marca neokantiana, sustentada por este último”, a saber, por Lukács. História e

concrezione lukácsiana della totalità [Os indivíduos considerados como membros do partido
comunista, próprio porque destinados à missão transcendental de encarnarem a consciência de
classe imputada, são sujeitos, kantianamente inteligíveis, de cujo agir vem anulado todo liame com
a dimensão sensível […], portanto, cada aspecto de diversidade na multiplicidade, cada raiz na
esfera concreta da qualidade e das necessidades: eles são, também, figuras da consciência de
classe objetivamente possível. Acontece, aqui, a mesma anulação do não idêntico, que vimos em
uma das vertentes da concreção lukácsiana da totalidade]”. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni,
organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 121.
397 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 122. Em outro escrito, Cerutti, também, atribui um aspecto kantiano ao Partido
Comunista, formulado por Lukács, de modo que se abstrai do caráter sensível dos sujeitos reais,
que se rebelam contra o capitalismo. Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione:
Ridiscutendo Storia e Coscienza di Classe, p. 67. Ver, ainda: CERUTTI, Furio. Un modello di
marxismo critico. In: VALENTE, Mario (Org.). Lukács e il suo tempo: la costanza della ragione
sistematica, p. 78; Nesse sentido, ainda, com relação ao caráter transcendental e kantiano do
Partido Comunista lukácsiano, Lubomir argumenta: “[…] mas, com suas pretensões a uma total
submissão de toda a personalidade do homem, ele [Lukács] se aproxima perigosamente da
organização que tinha pretensões análogas: a Igreja”. Cf. SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a
discussão filosófica dos anos 20, p. 45.
398 Cf. CERUTTI, Furio. Totalità, bisogni, organizzazione: Ridiscutendo Storia e Coscienza di
Classe, p. 123.
162

Consciência de Classe, assim como certas construções filosóficas presentes nas


obras de Hegel, terminam atribuindo à história, um sujeito falso e mitológico,
abstraído de indivíduos reais e sensíveis: o Partido Comunista como “figura” daquela
consciência imputada (CERUTTI, 1980, p. 123).
Tal tratamento utópico e ilusório 399 de Lukács, atribuído ao partido, é uma
expressão de certas formulações prévias e juvenis de Lukács. Trata-se aqui da
primazia lukácsiana, do político sobre o econômico, expressa sob a forma de uma
utopia de autogestão proletária, 400 ilustrada no “mito da liberdade proletária”
(ARATO; BREINES, 1986, p. 234). O conceito de Partido Comunista é o ponto de
chegada de tais pressupostos anteriores, como “expressão unificadora da ‘vontade’
do proletariado, assim como da imposição política ‘não institucional’ exercida desde
acima” (ARATO; BREINES, 1986, p. 235).
Dessa forma, quando Lukács retoma o tema da “ação livre” 401 do
proletariado consciente de seu papel histórico, ele retornaria, assim, a temas já
abordados na época da República Soviética Húngara. Com efeito, ao defender que
com a criação do Partido Comunista, o que se verifica é o primeiro passo consciente
para a superação do reino da necessidade, e a transição para o reino da liberdade,
Lukács compreende, com isso, “a ideia de que se pode criar um espaço liberado da
reificação, em meio ao mundo reificado” (ARATO; BREINES, 1986, p. 246).
Destaca-se assim uma perspectiva que está, em certa medida, arraigada
em seu passado teórico e político: passado marcado pela perspectiva

399 Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental,
p. 241; Segundo Lubomir, o caráter utópico e ilusório do Partido Comunista, presente em História
e Consciência de Classe, expressa-se, justamente, na incredulidade, subentendida por Lukács, de
que o Partido possa reproduzir a reificação capitalista. Cf. SOCHOR, Lubomir. Lukács e Korsch: a
discussão filosófica dos anos 20, p. 45. Admite-se, aqui, que a crítica de Lubomir deva ser
relativizada, uma vez que Lukács reconhece, certamente, a possibilidade de que a reificação não
seja completamente superada, de uma só vez: “Se a reificação for superada num certo ponto,
surge instantaneamente o risco de que o estado de consciência dessa superação se solidifique
numa nova forma igualmente reificada”. Entretanto, há elementos justos na crítica de Lubomir,
bem como na crítica de Arato e Breines, em virtude da abstração de certas determinações
histórico-práticas, bem como na infelicidade, de Lukács, do tratamento da contradição entre a
necessidade e a liberdade nas sociedades capitalista, como ver-se-á adiante, na exposição. Cf.
LUKÁCS, Georg. Observações metodológicas sobre a questão da organização. In: LUKÁCS,
Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 585.
400 Sobre o tratamento, lukácsiano, conferido aos “conselhos operários”: “Sua existência, seu
desenvolvimento permanente mostra que o proletariado já está no limiar de sua própria
consciência e, assim, no limiar da vitória. Com efeito, o conselho operário é a superação
econômica e política da reificação capitalista”. Cf. LUKÁCS, Georg. Consciência de Classe [1920].
In: LUKÁCS, Georg (Org.). História e Consciência de Classe, p. 190-191.
401 Cf. ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental,
p. 246.
163

“dostoievskiana”,402 a saber, a perspectiva voluntarista e messiânica, de um


proletariado destinado a libertar o mundo dos horrores capitalista. 403

Ao término deste estudo, compreende-se agora que se trata de uma


compreensão inadequada da viragem materialista, presente em Marx, pois vem
abstraída, na argumentação de Lukács, as determinações histórico-práticas, bem
como as possibilidades imanentes ao meio social e às suas instituições, de
emancipação efetiva. Dessa forma, ao se valer de mistificações, quer com respeito à
subjetividade proletária, quer com respeito à estrutura e ao significado do Partido
Comunista, Lukács não superou a contradição entre necessidade e liberdade, em
razão de que suas construções mitológicas terminaram prejudicando o caráter de
suas mediações.
Daí se destacar aqui as considerações de Arato e Breines, pois
comentam: “Neste sentido, a dialética é uma pseudodialética ou, no melhor dos
casos, uma dialética incompleta” (ARATO; BREINES, 1986, p. 215). Lukács
construiria, portanto, uma teoria esquemática para contornar a ausência de uma
análise histórica efetiva, recorrendo a um “sistema estático de possibilidades
objetivas do presente” (ARATO; BREINES, 1986, p. 220) e a certo voluntarismo,
presente na figura do proletariado como sujeito-objeto idêntico. Por fim, acrescentam
ainda Arato e Breines:

Todavia, também, tentamos mostrar que um dos objetivos mais importantes


de História e Consciência de Classe era a elaboração de uma dialética da
mediação que superaria a contradição entre liberdade e necessidade.
Entretanto, sua teoria do partido, derivada tanto da principal premissa
teórica como da imediaticidade de uma realidade política cada vez mais
distante para Lukács, regressa ao conceito mistificador da subjetividade. E,
uma vez mais, este conceito deve ser interpretado nos termos da sua

402 ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental, p.
246. Ver, ainda, notas 39, 40, 41, 56 e 57.
403 Em virtude da incapacidade, verificada em Lukács, de superar os limites teóricos das formulações
juvenis, Konder defende que as formulações “esquerdistas” lukacsianas, ainda estão presentes
em História e Consciência de Classe. Comenta Konder, acerca da estrutura do Partido, lukacsino:
“A formulação de Lukács, ao contrário, permanece demasiado geral e não reconhece limites
concretos para a valorização da disciplina. É, portanto, uma formulação tipicamente esquerdista”.
Cf. KONDER, Leandro. Lukács, p. 54. Ilustra-se, assim, a insustentabilidade de posturas, como a
de Löwy, segundo a qual História e Consciência de Classe demonstra uma superação plena, do
“esquerdismo” juvenil de Lukács. Igualmente, considera-se, aqui, em virtude de todas as
considerações prévias, insustentável concordar com Lowy: “Em nossa opinião, em HCC, a
evolução do pensamento lukacsiano atinge seu ápice e esta oposição rígida, inspirada pelo rigor
ético, é abolida, aufgehoben, por uma nova concepção: o realismo revolucionário. HCC é, nesse
sentido, a etapa final do itninerário ideológico que conduz Lukács de sua visão trágica do mundo
para o leninismo”. Cf. LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: A
evolução política de Lukács (1909 – 1929), p. 182; p. 191.
164

dualidade, pois o mito implica, depois de tudo, um voluntarismo extremo e


também a atitude contrária. Um conceito mistificador da subjetividade, de
acordo com os critérios que Lukács havia elaborado contra o sujeito
absoluto de Hegel, significa que, ao fim, o processo histórico objetivo
tornou-se opaca e, também, completamente determinista. Finalmente, seu
conceito de partido minava o projeto teórico social de Lukács (ARATO;
BREINES, 1986, p. 246).

Por conseguinte, o Partido Comunista lukacsiano, é uma expressão, por


um lado, de sua tentativa de superar os problemas precedentes e inerentes a seus
conceitos de consciência de classe atribuída e proletariado como sujeito-objeto
idêntico. Por outro, verifica-se que a organização partidária é uma expressão dos
limites da construção dialética, presente em História e Consciência de Classe. O
Partido Comunista, nessa obra, reproduz, assim, tais limites, a saber: voluntarismo,
sectarismo messiânico, abstração das determinações historicamente concretas.
165

6 CONCLUSÃO

Ao se considerar o que foi exposto até aqui, torna-se necessário uma vez
mais retornar à problemática, deste trabalho, a fim de se explicitar os pontos
relevantes que constituem o resultado desta investigação. A problemática que
orientou a elaboração desta monografia é a seguinte: qual o resultado da elaboração
dialética de Lukács, presente em História e Consciência de Classe? Trata-se de uma
pergunta pertinente no interior dessa obra posto que, desde o seu Prefácio, Lukács
insiste na importância de se retomar a discussão dialética no âmbito do marxismo.
Ele compreende que a dialética, em sua elaboração marxiana, é o procedimento
teórico-metodológico correto e eficaz na solução de problemas, teórico-práticos, uma
vez que a dialética, em Marx, visa ao conhecimento adequado do presente, a saber,
da sociedade capitalista. Assim, em virtude de diferentes autores, conceitos, ou seja,
orientações e formulações não marxianas, ou dialéticas, aos quais Lukács se
reporta, em sua obra, é necessário indagar se os resultados do seu pensamento,
nessa obra, terminam aquém de seu intento inicial, proposto no Prefácio.
Observou-se, ao longo da investigação, a insuficiência teórica, de certos
comentadores, de História e Consciência de Classe, ao identificar essa obra com
certas perspectivas filosóficas. Daí esses comentadores, atentos aos problemas
presentes nela, a denominam como idealista, subjetivista, hegeliana, ou até eclética.
Ademais, observa-se ainda certa insuficiência hermenêutica entre outros
comentadores, os quais consideram, História e Consciência de Classe, como uma
obra plenamente marxista, a qual expressa uma compreensão acabada da dialética,
em sua elaboração histórico-materialista.
Não obstante a dimensão de História e Consciência de Classe, ou seja, o
volume da obra, facilitando que certos problemas não sejam percebidos pelos
leitores, sua investigação, atenta e imanente, revela a justeza da compreensão que
Lukács manifestou em 1967. De acordo com a sua argumentação, presente no
posfácio de História e Consciência de Classe, essa sua obra juvenil estrutura-se
com base em tendências intelectuais contraditórias e por vezes justapostas sem a
mediação devida, a saber, de maneira desarmoniosa. Tais tendências intelectuais
contraditórias, como já mencionado, diz respeito, por vezes, a pensadores do
universo teórico não marxiano ou dialético.
Lukács, na medida em que investiga os fundamentos da sociedade
166

capitalista e a forma como essa sociedade se estrutura, quer nos seus aspectos
objetivos, ou seja, Estado, Burocracia, Direito, Ciências empírico-analíticas, dentre
outros, quer nos seus aspectos subjetivos, isto é, as expressões capitalistas nos
sujeitos e classes, inseridos nesse meio social, se utiliza de certas categorias do
universo teórico weberiano. Com efeito, Lukács se reporta a conceitos como
racionalização, consciência atribuída e possibilidade objetiva, para compreender o
funcionamento dessa sociedade. Ademais, ele avalia certa incapacidade do
proletariado, para ultrapassar as formas de vida capitalistas e apresentar uma
postura revolucionária. Daí Lukács reconhecer a existência de uma “crise
ideológica”, desse proletariado, como um empecilho subjetivo para a concretização
da revolução.
Ademais, Lukács revela certos traços hegelianos quando concebe o
proletariado, que superou a sua crise ideológica e adquiriu uma consciência social
adequada da totalidade social, como um Sujeito-Objeto idêntico, a saber, um sujeito
da história. Trata-se de um sujeito que por meio de sua consciência e de sua práxis
supera os limites presentes no cotidiano da sociedade capitalista, posto que tal
cotidiano é compreendido, por Lukács, como o “reino da alienação”. Isso implica,
uma vez mais, certa interpretação hegeliana da realidade uma vez que termina
confundido objetividade e alienação. Ao não compreender as determinações
histórico-práticas, que compõem o real, ele termina, por vezes, atribuindo
importância excessiva ao proletariado como um “sujeito cognoscente”. Observa-se,
assim, como o papel atribuído por Lukács à gnosiológica, distancia-se da elaboração
marxiana da dialética.
Com efeito, a transição para a década de vinte expressa o segundo
contato de Lukács com a obra de Marx. A especificidade desse segundo contato diz
respeito à frágil e limitada compreensão lukacsiana da importância relativa à viragem
materialista, efetuada por Marx, concernente à filosofia hegeliana. Em razão de tal
incompreensão, Lukács termina em História e Consciência de Classe abstraindo
certas determinações histórico-práticas da realidade, bem como abstraindo, dos
conceitos, a elaboração histórico-genética marxiana. Por causa de tal carência, o
reportar de Lukács a pensadores, que não Marx, se revela como uma justaposição
não-mediada. Lukács, diferentemente de Marx, não operou por vezes uma análise
crítica de certos conceitos, oriundos de outras filosofias, nem mesmo os reconduziu
ao fundamento histórico-prático da realidade social. Tudo isso terminou prejudicando
167

a dimensão dialética de História e Consciência de Classe, a qual algumas vezes


apresentou compreensões esquemáticas e adialéticas da realidade. Além de que, a
despeito das críticas que Lukács conferiu a certas posturas idealistas, sectárias,
românticas, subjetivistas, dentre outras, ele terminou incorrendo em tais posturas.
Dessa forma, Lukács contrariou a relação dialética que a obra propõe entre teoria e
práxis revolucionária.
Conforme a interpretação do Lukács da maturidade, História e
Consciência de Classe é um “desfecho”. Compreende-se, por tal termo, que essa
obra não representa uma ruptura com as suas posturas juvenis, mas em certa
medida um ponto de chegada. Não obstante certo sinal de “desfecho”, pode-se dizer
que está presente, nessa obra, tendências que sinalizam uma transição para uma
compreensão cada vez mais acertada da obra de Marx. São tais tendências e
perspectivas, histórico-materialmente acertadas, que revelam o quão inadequadas
são as posturas críticas, as quais reduzem História e Consciência de Classe a uma
orientação idealista. Ao longo desta monografia, pode-se observar que tais
interpretações acertadas, dizem respeito, sobretudo, à defesa de Lukács da
ortodoxia marxista, no que concerne à dialética marxista. Da mesma forma, pode-se
sustentar que Lukács elabora uma interpretação correta, embora parcial, do caráter
da totalidade, materialmente constituída, englobando as necessidades reais dos
indivíduos, historicamente constituídos, sem desconsiderar a antecipação da
importância que os problemas ideológicos assumiriam no capitalismo avançando.
Em virtude de tais elementos acertados, do ponto de vista histórico-
materialista, defende-se que História e Consciência de Classe, a despeito de todas
as suas limitações dialéticas, é uma obra marxista, ou ainda protomarxista. Ela
sinaliza a aproximação consciente, de Lukács, aos fundamentos da obra de Marx.
Trata-se, portanto, de uma aproximação, cujo resultado é o terceiro contato com os
escritos marxianos, sobretudo, com os Manuscritos econômico-filosóficos, tal como
Lukács, em 1933, esclareceu. Em vista de tal aproximação paulatina, justifica-se a
razão de se ter evitado o termo conversão para caracterizar a adesão de Lukács ao
marxismo. Com efeito, sustenta-se que esse termo perde, justamente, a dimensão
dialética, marcada por contradições inseparáveis e imanentes, as quais caracterizam
tal aproximação.
Por causa de tais contradições e tendências intelectuais opostas,
presentes em História e Consciência de Classe, compreende-se a razão de tal obra,
168

por um lado, ter sido bastante atacada por certos marxistas soviéticos, a ponto de a
Internacional Comunista, em 1923, mediante Zinoviev, ter condenado a obra. Por
outro, História e Consciência de Classe desempenhou uma função essencial na
gênese da corrente que, posteriormente, ficou conhecida como o “marxismo
ocidental”, influenciando, sobretudo, os filósofos da Escola de Frankfurt.
A devida compreensão da dimensão contraditória, dessa obra, só foi
possível, em virtude da hipótese interpretativa, defendida neste trabalho, em cuja
hipótese sustentou-se que a defesa de uma teoria dialética, em sua articulação
imanente com a práxis revolucionária, se justifica, nessa obra, em razão de um
confronto teórico-prático. Se, por um lado, Lukács buscou se contrapor às
deformações filopositivistas e revisionistas, no seio do marxismo, por outro, ele
procurou se opor às limitações histórico-práticas presentes na realidade húngara e,
em parte, na Europa.
Por conseguinte, buscou-se, no presente estudo, pensar História e
Consciência de Classe em um universo histórico específico. Daí a inquietação
prática de Lukács, com respeito às suas esperanças revolucionárias, contrapor-se à
estagnação revolucionária, observada na Europa, bem como à adesão, cada vez
maior, do proletariado às posturas reformistas. Com exceção da Revolução de
Outubro, na Rússia, as demais formas de mediações concretas, em direção à
revolução proletária, deterioravam-se, pois a Comuna Húngara, como visto,
apresentou um fim trágico e breve. Nesse sentido, como Lukács pode sustentar, de
forma rigorosa, uma postura revolucionária em face do agravamento da
estabilização da revolução e o fim das possibilidades de uma experiência políti ca
concreta?
Dessa forma, História e Consciência de Classe, apesar do significativo
avanço expresso na literatura filosófica e marxista da época, não conseguiu superar
as limitações práticas do período, no qual o seu autor se encontrava inserido. Isso
justifica, Lukács defender, em 1967, o valor documental e histórico de História e
Consciência de Classe. No período de sua maturidade, Lukács defende que para
pensar a “renovação do marxismo” torna-se fundamental compreender os limites de
sua obra juvenil, como uma expressão de certo momento histórico, não buscando,
portanto, sobrevalorizar as suas perspectivas teóricas, mas, antes, compreender as
suas contradições imanentes e tendências acertadas.
169

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