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REVISTA ISSN 2178-3055

MULTIDISCIPLINAR IESC
INSTITUTO DE ENSINO SUPERIOR SANTA CECÍLIA
DE ENS I N O S UP E
I T UT O N R I OR
I N ST S A TA C EC Í L I A

VOLUME 1- NÚMERO 1
JANEIRO A JUNHO DE 2010

IESC
REVISTA MULTIDISCIPLINAR IESC
Revista semestral de caráter multidisciplinar do Instituto de Ensino Superior Santa Cecília
Volume 1 – janeiro/junho de 2010
ISSN 2178-3055

A Revista Multidisciplinar IESC é uma publicação destinada ao público acadêmico das áreas
de Direito, Serviço Social e Pedagogia e a toda comunidade que aprecie a arte de ler. Os
conteúdos dos artigos são de inteira responsabilidade dos seus autores. Qualquer parte desta
obra pode ser reproduzida, desde que devidamente citada à fonte.

Editora

Márcia Brito Nery Alves

Conselho Editorial

Giovanni Alfredo de Oliveira Jatubá


Rose Karla Cordeiro Lessa
Maria Olívia da Silva Monteiro
Inalda Maria Duarte de Freitas

Revisão

Akator Cultural

Editoração Eletrônica

Akator Cultural
INSTITUTO DE ENSINO SUPERIOR SANTA CECÍLIA

Deusdeth Barbosa da Silva


Diretora Geral

Maria Luciane Barbosa de Silva


Vice-diretora

Giovanni Alfredo de Oliveira Jatubá


Coordenador do Curso de Direito

Rose Karla Cordeiro Lessa


Coordenadora do Curso de Pedagogia

Maria Olívia da Silva Monteiro


Coordenadora do Curso de Serviço Social

Correspondências:
Revista Multidisciplinar IESC
Rua Floraci da Silva Barros 288 – Alto Cruzeiro
CEP 57312-500 – Arapiraca - AL
Telefone: (82) 3530 3168 Fax: (82) 3530 3168
E-mail: revistamultidisciplinariesc@gmail.com
Homepage: http://www.isesc.edu.br/revista

Revista Multidisciplinar IESC/(Publicação da)


Editora Universitária do Instituto de Ensino Superior
Santa Cecília (EDIESC), - Volume 1, Número 1,
(2010). Arapiraca/AL: Instituto de Ensino Superior
Santa Cecília, 2010.

Semestral

ISSN 2178-3055

1. Multidisciplinar – Periódicos. I. Instituto de


Ensino Superior Santa Cecília.
HOMENAGEM A MARIA JOSÉ DE LIMA SOARES (ZITA SOARES)

Na capa desta edição reproduz-se em destaque a obra da Artista Plástica Alagoana Maria José de Lima
Soares. Desde o inicio da sua atividade artística, Zita Soares como e conhecida, tende ao estilo acadêmico, o
que a impulsionou a estudar também nos livros dos grandes mestres da pintura. Suas produções são em óleo ou
acrílico sobre tela, mas usa também outras técnicas. Retrata em suas obras a natureza nordestina, o folclore
alagoano e as manifestações festivas e artesanais de Alagoas.
Suas obras podem ser encontradas, em Maceió, na Fundação Municipal de Ação Social, no Centro
Cultural e de Exposições de Alagoas, na Sala da Presidência da Gazeta de Alagoas, na Fundação Bradesco e na
cidade de Arapiraca, no Colégio Santa Cecília. (SILVA, 2007, p.270)

______________
Fonte: Adaptado de: SILVA, Enaura Quixabeira Rosa e. Dicionário mulheres de Alagoas: Ontem e hoje. Maceió,AL: EdUFAL, 2007
SUMÁRIO

Editorial........................................................................................................................................................... 7

Deusdeth Barbosa da Silva: uma vida a serviço da educação.................................................................... 9

Contribuições de Max Weber para as Ciências Sociais: método, conceitos e Sociologia da Religião
Contributions of Max Weber for social sciences: method, concepts and Sociology of the Religion
Daniel Arthur Lisboa.........................................................................................................................................11

O Método Científico na busca do conhecimento


The Scientific Method In the search of the knowledge
Moacir Araujo de Sousa.................................................................................................................................... 19

Identidade e pertencimento: um ensaio sobre os processos culturais na modernidade


Identity and belonging: an assay on the cultural processes of modernity
Carley Rodrigues Alves..................................................................................................................................... 27

Educação Ambiental: uma relação construtiva entre a escola e a sociedade


Environmental Education: a constructive interrelationship between school and society
Manoela Patricia Farias & Paulla Dayanna Farias Santos.............................................................................. 39

Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho, Salvador-BA


Occupation and urban evolution in the neighbourhood of Rio Vermelho, Salvador-BA
Dante Severo Giudicci.......................................................................................................................................47

Do conceito de Gênero ao de Gênero “Inteligível”


From the concept of Gender to the one of “Intelligible” Gender
Ismar Inácio dos Santos Filho........................................................................................................................... 65

Quando a Antropologia encontra o Direito: notas sobre um diálogo (in)tenso


When the Anthropology finds the Law: notes on an (in)tense dialogue.
Davi Batista de Sales...................................................................................................................................... 73

A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação


The intervention of the State in fusing operations and incorporation
Thiago Barbosa Wanderley............................................................................................................................... 85
Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade
Normative Instruction and the Ancillary Obligations: a legality question
Rodrigo Sarmento Tigre.................................................................................................................................... 101

Inexigibilidade de Dimof das instituições financeiras face à impossibilidade de instituição


de Obrigação Tributária Acessória por Instrução Normativa
The unenforceability of Dimof of the financial institutions face to the impossibility
of Tax Liability for Incidental Normative Instruction
Nelson de França Moura................................................................................................................................... 117

Regime Disciplinar Diferenciado: uma visão sobre a política criminal


Differentiated Disciplinary Regime: a view of criminal politics
Aurora Augusta Gomes Leite ............................................................................................................................ 123

A importância da leitura em sua multidimensionalidade


The importance of multidimensionality of the act of reading
Rose Karla Cordeiro Lessa................................................................................................................................133

Normas para publicação................................................................................................................................ 143

Declaração de direito autoral........................................................................................................................ 144


EDITORIAL

No momento em que o Instituto de Ensino Superior Santa


Cecília (IESC) completa seu sexto ano de existência orgulhosamente
vem convidar a sua comunidade acadêmica e a sociedade em geral para
comemorar o êxito de sua missão em aperfeiçoar a educação e a cultura
no estado de Alagoas. Neste contexto, o lançamento da Revista
Multidisciplinar IESC vem brindar uma nova fase para a pesquisa na
instituição, quando acreditamos estar contribuindo para enfrentar os
desafios que a informação científica ainda enfrenta em nosso país, ao
garantir o acesso a artigos científicos de qualidade de diversas áreas do
conhecimento. Acreditamos que o lançamento deste periódico revele
fundamentalmente o esforço de toda nossa comunidade acadêmica
para organizar e manter um estabelecimento de ensino de nível superior
fundamentado na excelência do ensino, pesquisa e extensão.
O primeiro número da Revista Multidisciplinar IESC conta com
Deusdeth Barbosa da Silva doze artigos com temáticas pertinentes a diversas áreas do
Diretora Geral
conhecimento, escritos tanto por pesquisadores do IESC como de
outras instituições de ensino superior. A publicação traz artigos ligados
a educação, ao direito, a antropologia, a sociologia, retratando temáticas relevantes para suas áreas e
caracterizando-se por ser inéditos. A todos os profissionais que atenderam ao convite para expor os resultados de
suas pesquisas no número de lançamento deste periódico, dedicamos os nossos mais sinceros agradecimentos.
O IESC vem trabalhando para se estabelecer no cenário do ensino superior alagoano, formando novos
profissionais nas áreas de Pedagogia, Direito e Serviço Social. A Instituição preocupada em atender as demandas
de seus cursos, vem desenvolvendo seminários, palestras e projetos de pesquisa, que visam debater as indagações
contemporâneas e construir uma realidade de iniciação científica para os acadêmicos. O Curso de Pedagogia conta
com um Laboratório de Aplicação, da educação infantil ao ensino fundamental, no qual os discentes podem aliar a
teoria construída em sala de aula com a prática cotidiana. O Curso de Direito conta com um Núcleo de Práticas
Jurídicas, e, entre outras atividades, firmou convênio com o Curso Preparatório da OAB «Damásio de Jesus», com
início previsto para o segundo semestre de 2010. O Curso de Serviço Social vem formando bacharéis dentro de
uma perspectiva generalista e crítica, com potencial investigativo, teórico e metodológico.
Nos bastidores do IESC, uma equipe que acredita na capacidade transformadora da educação, formada
por docentes, servidores e toda uma comunidade estudantil comprometida com o futuro de nossa região. O IESC e
a Revista Multidisciplinar IESC são partes de um sonho que vem se realizando no cotidiano da diretora da
Instituição, Professora Deusdete Barbosa da Silva, que tem dedicado sua vida ao progresso da educação no estado
de Alagoas.
DEUSDETH BARBOSA DA SILVA: UMA VIDA A SERVIÇO DA
EDUCAÇÃO

Deusdeth Barbosa da Silva, ou simplesmente Dona Deusdeth, como é chamada pela maioria dos que
convivem diariamente com ela, nasceu no dia 19 de agosto de 1937, no interior do estado de Alagoas, na cidade de
Murici. Cidade pequena, mas muito aconchegante, encerra boas recordações do tempo de infância de Dona
Deusdeth, quando morava na Fazenda Amoras ao lado de seu Pai, Manoel Barbosa de Lima, sua mãe, Cecília
Acioly de Lima e mais quatro irmãos. Aos sete anos sua família mudou-se para a cidade de Palmeira dos Índios,
cidade onde nasceram seus outros três irmãos. Seu pai era um autodidata, sua mãe cuidava dos filhos, uma notável
dona de casa. Permaneceu em Palmeira dos Índios até os 20 anos, quando se casou com Guido Gonzaga da Silva.
Neste período, ele terminava seus estudos no ensino médio, mais tarde cursando odontologia na Universidade
Federal de Alagoas. Após o término do curso de odontologia, mudaram-se para Arapiraca, onde seu esposo
começou a atuar como dentista. Neste contexto, é que Dona Deusdeth começa a projetar seu olhar para a educação.
Quando chega a Arapiraca a primeira escola que se apresenta e se dispõe para trabalhar como professora é
o colégio Bom Conselho, lecionando a disciplina Geografia. Mais tarde, presta concurso para a Secretaria
Municipal de Educação, aprovada para lecionar nas séries iniciais do ensino fundamental, é convidada a assumir a
direção da escola Hugo Lima . Presta também concurso para Secretaria Estadual de Educação e, pelo fato de ter
sido aprovada em primeiro lugar em todo o Estado, assume a direção da Escola Antônio Cezário, no povoado São
José. Posteriormente, prestou mais um concurso para a Secretaria de Educação do Estado, agora para as
disciplinas de Geografia e História, sendo lotada no Colégio Estadual Humberto Mendes, na cidade de Palmeira
dos Índios. Por conta da especialização em Orientação Educacional pede remoção da cidade de Palmeira dos
Índios concentrando sua carga horária no Colégio Quintella Cavalcante, em Arapiraca, onde passou a trabalhar
com as turmas do Curso Normal lecionando e orientando o estágio. Diante de sua dedicação e busca constante pelo
conhecimento foi convidada a fazer parte do quadro de professores da Faculdade de Formação de Professores de
Arapiraca (FFPA). Já na FFPA passou a lecionar no curso de Estudos Sociais e Ciências a disciplina Prática de
Ensino. Esta faculdade, pioneira no interior do estado a oferecer ensino superior noturno, contribuiu para a
formação continuada de professores que necessitavam de graduação, bem como para os estudantes da região que,
agora, poderiam ingressar no ensino superior sem a necessidade de se deslocar do município de Arapiraca para
Maceió ou outros centros de formação.
Muito embora contasse com alguns professores do Estado no seu quadro docente, a FFPA era uma
instituição de ensino privada. Nestes termos, a comunidade do Agreste enfrentava sérias dificuldades para custear
seus estudos. No entanto, muitos esforços e grandes mobilizações foram empreendidos por docentes e discentes
da FFPA, no intuito de sensibilizar não só a população, mas aos órgãos públicos, para que dirigissem seu olhar para
a Instituição e, como resultado de muita luta, a Faculdade foi absorvida pelo Estado, passando por um processo de
estadualização. Neste contexto, a professora Deusdeth Barbosa da Silva, se identificando com os anseios da
comunidade estudantil, é eleita democraticamente e empossada pelo Governador em 29 de junho de 1990, como
primeira Presidente da Fundação Universidade Estadual de Alagoas (FUNESA).
Vários anos se passaram e conjunturas bastante específicas levaram Dona Deusdeth a se desligar da
FUNESA. Deste contexto, surge a Escola Santa Cecília e o Instituto de Ensino Superior Santa Cecília. Esta longa
historia culmina, hoje, com o lançamento do primeiro número da Revista Multidisciplinar IESC, uma conquista
decisiva da Instituição, que certamente levará a cabo seu objetivo de se firmar cada vez mais enquanto Instituição
de Ensino Superior atuante no agreste alagoano.
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CONTRIBUIÇÕES DE MAX WEBER PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS:


MÉTODO, CONCEITOS E SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO
Contributions of Max Weber for Social Sciences: method, concepts and
Sociology of the Religion

Daniel Arthur Lisboa de Vasconcelos1

RESUMO ABSTRACT

Este trabalho trata da contribuição de Max The objective of this article is to recoup
Weber para as Ciências Sociais. Nosso some aspects of the methodology in the
principal objetivo é destacar alguns aspectos work of Max Weber, being observed them as
metodológicos da obra de Max Weber, one of the main references in the knowledge
observando-os como uma das principais construction in Social Sciences. It deals with
referências na construção do conhecimento some aspects of the Weber methodology
em Ciências Sociais. No decorrer do texto, emphasizing the Sociology in the analysis of
tentaremos trazer à tona o método tipológico religious phenomena.
e algumas categorias da Sociologia
weberiana, como a da Ação Social, Key-Words: Max Weber. Social Science.
demonstrando sua importância para a Method. Sociology. Religion.
análise dos fenômenos sociais, e também
exemplificando o modo como o autor
procedeu em seus estudos acerca da
Sociologia da Religião.

Palavras-Chave: Max Weber. Ciência


Social. Método. Sociologia da Religião.

1
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas.- UFAL. Professor do Instituto de Ensino
Superior Santa Cecília – IESC. Contatos: daniel_tur@hotmail.com
12 Daniel Arthur Lisboa de Vasconcelos

1. Introdução racionalidade.
A obra weberiana não constitui um sistema
O teórico alemão Maximillian Carl Emil fechado de interpretação da realidade. Desse modo, na
Weber (1864 -1920) é considerado um dos tentativa de compreender uma sociedade moderna
fundadores da Ciência Sociológica. Conforme sua constituída por um processo histórico de
perspectiva teórica, o objeto de estudo da Sociologia racionalização, Weber constrói as suas análises
é a ação de um indivíduo, desde que motivada pelo fundando uma ciência da cultura, a qual busca
comportamento de outro(s), o que o autor interpretar a ação social dos indivíduos para explicar
denominou “Ação Social”. suas causas, seu desenvolvimento e seus efeitos. Uma
peculiaridade desse método é a negação de leis que
Evidente se faz sua importância para as
determinam o devir histórico, ou seja, nessa acepção
Ciências Sociais modernas, visto que seu arcabouço
cada sociedade evolui de maneira singular, com uma
metodológico-conceitual baliza diversos estudos,
história peculiar, e sob relações particulares, para que
desde a concepção de sua obra, que ocorreu entre o
determinadas circunstâncias culturais se configurem.
final do século XIX e o início do século XX, até a
Nesse contexto, podem intervir uma diversidade de
contemporaneidade. Rompendo com os
fatores, sendo o papel do pesquisador “interpretar” o
pressupostos positivistas dominantes em sua época,
que pode, ou poderia, ocorrer caso essas variáveis
Weber procurou aplicar a noção de compreensão – ou
sejam, ou fossem, diferentes.
Vesterhen – às suas análises sobre o fenômeno social
fundando, assim, uma concepção culturalista nos A solução proposta por Weber aos complexos
estudos sociológicos, na qual buscava-se problemas metodológicos que ocuparam a ciência
compreender os sentidos e conexões presentes nas social no início do século XX permitiu que novas
ações sociais. acepções fossem dadas a diversas questões sócio-
histórico-culturais. Nesse sentido, foram
Conforme o entendimento de Ringer (2004),
especialmente relevantes seus estudos acerca da
o projeto metodológico de Max Weber contribui de
Sociologia da Religião. Nesse texto tentaremos
maneira muito específica para uma unificação das
explicar o método weberiano de análise sócio-
ciências culturais e das ciências sociais, enfatizando
cultural, buscando elucidar alguns conceitos-chave
a noção de compreensão. Trata-se de uma
para sua compreensão, assim demonstrando como o
hermenêutica de cunho interpretativo e explicativo,
autor aplicou seu arcabouço teórico em alguns
na qual o pesquisador deve compreender textos,
problemas referentes à esfera religiosa da vida social,
culturas e períodos históricos como símbolos que
tendo em vista as complexas relações dessa com
devem ser elucidados dentro de seus próprios
outras, a exemplo da econômica.
sistemas de significação. Assim, conforme os
preceitos weberianos, para se compreender as ações Nesse sentido, tentaremos trazer à tona
sócio-históricas dos indivíduos, deve-se analisar algumas categorias da sociologia compreensiva para a
todo um complexo pano de fundo cultural que as análise da religião como fenômeno social. O primeiro
orienta, ou seja, as diversas representações, as destes conceitos é o de “tipo ideal”, um instrumento
simbologias através das quais interpretam sua teórico utilizado pelo autor para tentar conferir
temporalidade, seu habitat espacial, suas relações objetividade aos seus estudos, tanto no que tange a
com a natureza, com os outros indivíduos, com o religião, quanto a outras esferas da realidade social;
sobrenatural, etc. Entretanto, para se dotar de alguma tentaremos demonstrar como Weber procede na
objetividade, a compreensão e a interpretação devem construção dos “tipos”, exemplificando como o autor
passar por um constante processo de verificação aplicou esses instrumentos na análise do “espírito do
racional, balizado na atribuição hipotética de capitalismo”, assim como na explicação do que chama

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Contribuições de Max Weber para as Ciências Sociais: método, conceitos e Sociologia da Religião 13

de “ascetismo” e “misticismo” religiosos. Também pensamento. Torna-se impossível encontrar


abordaremos a tipologia da “ação social”, que empiricamente na realidade esse quadro, na
sua pureza conceitual, pois trata-se de uma
consiste numa classificação fundamental nas
utopia (WEBER, 1982, p.106).
análises weberianas, tentando demonstrar como ela é
aplicada pelo autor na análise da assim chamada
Para uma Sociologia na qual, segundo Weber
“ação religiosa”.
(1982, p.92), “o conceito de cultura é um conceito de
valor” torna-se essencial à utilização de algo que
2. O Projeto Metodológico de Max Weber e os assegure ao pesquisador a objetividade do
Tipos Ideais conhecimento. Conforme Tragtenbeg (1992), muitos
sociólogos confundem a pesquisa objetiva com o juízo
de valor, não utilizando de maneira correta o recurso
O método tipológico de Max Weber é, para
heurístico que constitui os tipos ideais que, em
muitos cientistas sociais, uma aproximação do
verdade, serve uma maior objetividade aos estudos,
método comparativo, quando o pesquisador, ao
sintetizando “compreensão” e “experimentação”,
comparar fenômenos sociais complexos, constrói
“explicação” e “valor”, o “devir e o “ser” no
tipos ou modelos ideais desses fenômenos, no qual o
conhecimento histórico-social, como preceitua Weber
cientista tem o papel de ampliar e ressaltar
(1992a).
determinados aspectos mais significativos do
fenômeno social a ser analisado, diferenciando-se, Contudo, é conveniente defender a opinião de
contudo, pela aplicação de instrumentos que que uma objetividade absoluta é impossível em
permitam a manutenção da objetividade científica. Ciências Sociais e Culturais, por isso os tipos ideais
são utilizados apenas como meios de se construir uma
É para ilustrar teoricamente a conexão entre
contextualização sócio-cultural, pois segundo Weber
“interpretação” e “explicação” que Weber
(1982, p.108) “[...] a construção de tipos ideais
recomenda a utilização desses instrumentos, que o
abstratos não interessa como fim, mas única e
autor denominou “tipos ideais”, os quais, de acordo
exclusivamente como meio de conhecimento”. Sob
com Ringer (2004, p.16) são constituídos como
essa acepção, sua finalidade é a tentativa de evitar
“simplificações ou caracterizações ´unilateralmente´
atribuição de valores subjetivos do pesquisador ao
exageradas de fenômenos complexos que podem ser
estudo, pois sua elaboração só tem sentido teórico até
hipoteticamente concebidos e depois comparados
o ponto em que eles permitam realizar as
com as realidades que devem elucidar”. Tal
interpretações e comparações propostas em uma
instrumento de pesquisa é fundamental nas
pesquisa.
construções teóricas weberianas, permeando toda a
sua obra sociológica. Em seu texto traduzido como Para exemplificar como Weber utilizou esse
“A 'objetividade' do conhecimento nas ciências procedimento, podemos citar os tipos puros de
sociais”, o teórico nos esclarece acerca da utilização dominação: racional, tradicional e carismática (1991);
desses instrumentos: a tipologia dicotômica (ascetismo – misticismo) para a
análise das relações entre a religião e algumas ordens
Obtém-se um tipo ideal mediante a “desse mundo” (1982a); e as descrições tipológicas de
acentuação unilateral de um ou vários
“A ética protestante e o espírito do capitalismo” de
pontos de vista, e mediante o encadeamento
de grande quantidade de fenômenos racionalizações religiosas como o Calvinismo, o
isoladamente dados, difusos e discretos, Pietismo, o Metodismo, e as Seitas Batistas (1994).
que se podem apresentar em maior ou Todas essas construções foram elaboradas com a
menor número ou mesmo faltar por maior pureza abstrata possível, mas não devem ser
completo, e que se acentuam, a fim de se encaradas como um perfeito reflexo da realidade, pois
formar um quadro homogêneo de

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14 Daniel Arthur Lisboa de Vasconcelos

foram forjadas através processo de racionalização, tradicional: determinada por costumes


no qual se objetivou uma descrição referencial para arraigados. [grifo nosso]
se lograr, qualitativamente falando, a dimensão dos
desvios entre uma ação racionalmente orientada em Enfim, de acordo com os preceitos desse
relação a fins (que levaria ao tipo puro) e uma teórico, em sociologia compreensiva a “ação social”
realidade sócio-histórica concreta, influenciada por deve ser tomada como um “dado central” que o
desvios irracionais de ação. É esse dimensionamento pesquisador deve analisar com base no modelo de
que permite ao pesquisador realizar conexões “racionalidade com relação a fins”. Também ressalta-
causais entre os fenômenos sociais, culturais e a ação se que na realidade empírica a linha divisória entre
dos indivíduos. racionalidade e irracionalidade é praticamente
inexistente, no entanto, com a interpretação de
modelos de racionalidade intencional dos agentes,
3. Ação Social: o vínculo sociológico entre os pode-se lograr um elevado grau de evidência,
indivíduos
atribuindo a esses uma motivação de racionalidade
correta vinculada a um tipo-ideal. Desse modo, os
Apenas tecendo um breve esclarecimento comportamentos desviantes dessa suposta
sobre a categoria ação social, poderíamos, grosso racionalidade apontam causas externas àquelas
modo, considerar que é um tipo de ação em que o atribuídas ao agente ideal.
agente refere-se ao comportamento de outros
indivíduos, orientado, assim, seus atos. Nesse
4. Sociologia e Religião
sentido, Weber nos esclarece que: “Nem toda espécie
de contato entre os homens é de caráter social, mas
somente uma ação dirigida para a ação dos outros” Max Weber dedicou boa parte de sua vida
(1992, p.415); definindo-a como “[...] uma ação na acadêmica ao estudo sociológico do fenômeno
qual o sentido sugerido pelo sujeito ou sujeitos religioso; para Mariz (2003), dentre os clássicos da
refere-se ao comportamento de outros e se orienta Sociologia (Marx, Durkheim e Weber) esse é o autor
nela no que diz respeito ao seu desenvolvimento” que mais tem influenciado as pesquisas na Sociologia
(1992, p.400). Assim, o autor propõe uma tipologia da Religião. É na tentativa de compreender uma
da ação social, que pode ser: sociedade moderna, constituída por um processo
histórico de racionalização, que Weber constrói as
1) racional com relação a fins: determinada suas análises das religiões, fundando uma ciência da
por expectativas no comportamento tanto
cultura, enfim, uma ciência que busca interpretar a
de objetos do mundo exterior como de
outros homens, e, utilizando essas ação social dos indivíduos, na tentativa de conciliar
expectativas, como “condições” ou objetividade com valores subjetivos.
“meios” para o alcance de fins próprios
Uma peculiaridade do método de Weber é a
racionalmente avaliados e perseguidos. 2)
racional com relação a valores: negação de leis que determinam o devir histórico, ou
determinada pela crença consciente no seja, para ele cada sociedade evolui de maneira
valor - interpretável como ético, estético, singular, com uma história peculiar. É nesses
religioso ou de qualquer outra forma - parâmetros que Weber busca entender o
próprio e absoluto de um determinado comportamento dos indivíduos nas diversas
comportamento, considerado como tal,
sem levar em consideração as
sociedades. A aplicação de seu método fica evidente
possibilidades de êxito. 3) afetiva, em uma de suas principais obras: “A ética protestante e
especialmente emotiva, determinada por o espírito do capitalismo”. Ao contrário do que alguns
afetos e estados sentimentais atuais; e 4) pensam sobre esse livro, sua intenção não é

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Contribuições de Max Weber para as Ciências Sociais: método, conceitos e Sociologia da Religião 15

demonstrar que uma “ética protestante” determina o relação a valores quando suas convicções o levam a
que o autor convencionou chamar “o espírito do defender valores como o dever, a dignidade, a piedade,
capitalismo”. Ao encerrar a obra ele mesmo faz entre outros, sem considerar as conseqüências
questão de explicitar, evocando a interpretação do previsíveis; nesse sentido podemos evocar a figura do
materialismo histórico: profeta emissário, que age segundo “mandatos” e
“exigências” que o mesmo acredita serem dirigidas à
[...] não se pode pensar em substituir uma sua pessoa. Corrobora com essa perspectiva, o seu
interpretação materialística unilateral por comentário sobre a sociologia da religião no capítulo
uma igualmente bitolada interpretação V de “Economia e Sociedade”, quando Weber afirma
causal da cultura e da história. Ambas são
que a existência primordial da “ação religiosa”
igualmente viáveis, mas, qualquer uma
delas, se não servir de introdução, mas sim orienta-se para “este mundo”: “A ação religiosa ou
de conclusão, de muito pouco serve no magicamente motivada é, [...] uma ação racional, pelo
interesse da verdade histórica (WEBER, menos relativamente: ainda que não seja
1994, p. 132). necessariamente uma ação orientada por meios e fins,
orienta-se, pelo menos, pelas regras da experiência”
Nesse mesmo trecho também fica claro que a (1991:279). Também não podemos deixar de
intenção do autor não é a de substituir ou refutar a considerar que muitos indivíduos que dizem “agir de
tese marxista, e sim propor mais uma maneira de se maneira religiosa”, no fundo agem de maneira
compreender as relações entre os fenômenos sociais. tradicional, ou seja, sua fé depende muito mais da
Segundo Mariz (2003), o interesse de Weber tradição cultural e dos costumes arraigados, do que de
pela religião surge quando esse autor observa que o uma ação racionalmente ou afetivamente orientada.
protestantismo gerou um ethos social que possuía Enfim, como afirma Weber (1992), sua
uma afinidade eletiva com o moderno capitalismo, Sociologia não deve ficar restrita a estudar a ação
ou seja: “Ao levar seus fiéis a se dedicar de forma social dos indivíduos, porém, ele mesmo reafirma que
ascética ao trabalho secular, o protestantismo teria para o tipo de Sociologia que desenvolveu, a “ação
criado uma mão-de-obra que se motivava para social” deve ser tomada como um “dado central”.
produção de riquezas e para a poupança antes mesmo Desse modo, o autor não prescinde desse conceito em
do sistema capitalista ter uma força e autonomia para suas considerações sociológicas sobre o fenômeno
gerar sua própria motivação” (MARIZ, 2003, p.75). religioso.
Nesse sentido, percebemos que em «A ética
protestante e o espírito do capitalismo» o interesse de
6. A construção dos Tipos Ideais e o “Espírito do
Weber pelo fenômeno religioso é decorrente de uma
Capitalismo” na Ética Protestante
motivação para o entendimento de como a religião é
capaz de influenciar na «ação social» dos indivíduos.
Na obra em que estuda «a ética protestante e o
espírito do capitalismo», Weber faz uma construção
5. A Ação Social e a Motivação Religiosa:
típico-ideal do que seria o que ele denomina o
tipologias
“espírito do capitalismo”. Para o autor, não devemos
buscar encontrar essa “pretensiosa” expressão em
Relacionando a tipologia da ação social com uma realidade empírica, ou seja, isso significa que o
alguns aspectos religiosos Weber (1992) considera a caráter dessa expressão é unicamente histórico e
“beatitude contemplativa” como uma ação afetiva; individual. Ele mesmo, no decorrer de seu estudo,
também afirma que o indivíduo que alcança uma afirma que essa expressão é apenas a tentativa de
“sabedoria religiosa” age de modo racional com definição de um objeto, cuja análise pode ser feita sob

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16 Daniel Arthur Lisboa de Vasconcelos

várias óticas; não podendo, portanto, ser quando, por ele, a Bíblia Sagrada foi traduzida para o
representada por conceitos unilaterais. Na tentativa Alemão; a partir disso, o termo “beruf” passou a
de ilustrar melhor essas idéias, Weber (1994, p. 30- designar tanto “vocação” (no sentido de um chamado
31) cita-nos algumas frases de Benjamim Franklin, divino), quanto “trabalho” (ou profissão). Nesse
as quais podem expressar um pouco do que se tenta sentido de inovação dogmática, a ética protestante
expressar sobre o espírito do capitalismo: distanciou-se bastante dos padrões católico-medievais
com o redirecionamento ascético, e a negação de ritos
Lembra-te de que «tempo» é dinheiro. [...]. como a adoração de santos, da prática de vários
Lembra-te de que «crédito» é dinheiro. [...].
Lembra-te de que o dinheiro é de natureza
sacramentos, dos milagres, entre outros. Assim, o
prolífica, procriativa. [...] protestantismo passa a representar um tipo de religião
Lembra-te deste refrão: O «bom pagador é que se afasta do misticismo medieval, acompanhando
dono da bôlsa alheia». [...] a racionalização moderna.
As mais significantes coisas que afetem o
crédito de um homem
devem ser consideradas. 7. Ascetismo e Misticismo como Tipos Ideais

Tomando as palavras de Franklin como


Segundo Mariz (2003), os estudos
exemplo do espírito do capitalismo, Weber tenta
weberianos sobre a ética protestante e espírito do
afastar o juízo de valores em sua análise. No decorrer
capitalismo foram apenas uma pequena parte de um
desse estudo o autor também recorre a elaborações
projeto bem maior, que ficou inacabado pelo autor.
típico-ideais para poder nos descrever o que seria
Não obstante, Weber também dedicou-se ao estudo de
uma “ética protestante”. Nesse sentido, desenvolve
outros aspectos da sociologia da religião, como por
algumas reflexões acerca do ascetismo laico
exemplo em seu texto “Rejeições religiosas do mundo
caracterizando, de maneira típico-ideal, alguns
e suas direções”, onde é construída um tipologia de
desses movimentos protestantes relativamente
forma dicotômica (ascetismo – misticismo) para a
autônomos, mas não totalmente independentes dos
análise das relações entre a religião e algumas ordens
demais, como: o Calvinismo, que desenvolveu-se em
“desse mundo”. Essas construções visam contribuir
países mais adiantados no capitalismo por volta dos
para a “tipologia e sociologia do racionalismo”
séculos XVI e XVII, e tinha a predestinação dos
(WEBER, 1982, p.372).
indivíduos com um de seus dogmas principais; o
Pietismo, também historicamente considerada como Como vimos, nas religiões ascéticas (a
a doutrina da predestinação; o Metodismo, exemplo do protestantismo), os fiéis são considerados
movimento religioso mais metódico e sistemático, instrumentos divinos. Desse modo, podemos perceber
que se direcionava para uma “luta racional pela a importância da concepção deísta, de um criador
perfeição”; e as chamadas Seitas Batistas, nas quais supramundano, para a busca ascética da salvação. O
os indivíduos somente eram batizados quando misticismo, ao contrário, não é tão dependente de uma
adultos, e quando adquirissem o conhecimento da cosmologia deísta, pois esse inclina-se para uma busca
própria fé. contemplativa, que tende a uma despersonalização e
imanência do poder de Deus. Desse modo, Weber
Nas suas descrições típico-ideias do
(1982) utiliza os tipos-ideais polares “ascetismo” e
protestantismo, fica claro que esses movimentos
“misticismo” para uma melhor distinção desses tipos
conduziam os indivíduos a um ascetismo, ou seja,
de religiosidade.
segundo essas crenças, Deus chama os indivíduos
para as atividades produtivas do cotidiano. Segundo Lembrando que esses pólos são apenas
Mariz (2003), essa concepção ascética do ilustrações teóricas, a aplicação desses conceitos é
Cristianismo foi inaugurada por Martinho Lutero, feita de maneira que possamos identificar

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Contribuições de Max Weber para as Ciências Sociais: método, conceitos e Sociologia da Religião 17

características mistas na realidade empírica. Desse 8. Considerações finais


modo, Weber (1982, p.373) nos exemplifica com os
povos judeus, “[...] que desenvolveram o misticismo,
Chegamos ao fim desse breve ensaio no
mas quase nenhum ascetismo do tipo ocidental”.
intuito de ter logrado êxito com nosso objetivo:
Entre esses pólos, a realidade expressa-se tanto como
explicitar a importância de alguns conceitos que
um estado ascético (em que o devoto deve ser
consideramos essenciais para uma análise da
instrumento divino praticando a ação no mundo
Sociologia de Max Weber, principalmente no que se
desejada por Deus) como no outro extremo, místico,
refere e o seu referencial metodológico e à sua
no qual os devotos são “recipientes” passivos da
aplicação em estudos sociológicos, nesse caso,
divindade. As gradações da realidade são infinitas, e
enfatizando a esfera cultural da religiosidade. E suas
podem expressar-se desde como “uma fuga ascética
relações com outras esferas, em especial, a
do mundo”, que ocorre quando os indivíduos buscam
econômica.
superar sua malignidade nas ações do mundo, até um
tipo de “misticismo voltado para o mundo”, no qual a Gostaríamos de destacar que não foi nossa
participação do místico tende a atitudes mais pretensão promover uma visão extensa e profunda da
ascéticas. Ciência da Cultura weberiana mas, acima de tudo,
resgatar a origem de alguns conceitos e métodos
Esses tipos da realidade empírica também
bastante utilizados na atualidade, porém, muitas
podem ser personificados em figuras proféticas.
vezes, pouco referenciados e mal interpretados.
Segundo Weber (1991, p.303) entendemos por
“profeta”, o indivíduo “[...] portador de um carisma Há quem defenda que existe nas Ciências
puramente «pessoal», o qual, em virtude de sua Sociais Contemporâneas uma tendência de se
missão, anuncia uma «doutrina» religiosa ou um “enterrar” o pensamento dos clássicos em nome de
mandado divino”. Historicamente podemos uma obscura e nebulosa metodologia “pós-moderna”.
identificar “profetas emissários”, que propunham e Ao mesmo passo há os que defendem que os estudos
divulgavam “leis” divinas; segundo Weber, esses sobre a religião pouco têm a contribuir para futuro o
emissário divinos cobravam de seus seguidores a desenvolvimento das Ciências Sociais. Não obstante,
prática da religiosidade no mundo, e estavam mais as categorias apresentadas em nossa discussão vêm
voltados para o tipo ascético, podemos citar como sendo utilizadas em diversos estudos na atualidade,
exemplo Jesus, o grande profeta do cristianismo. Já sejam eles sobre a esfera religiosa ou quaisquer outras
os chamados “profetas exemplares” pregavam como da complexa realidade social histórica ou
religião da salvação o tipo contemplativo, mais contemporânea.
voltado para as práticas místicas. Um exemplo desse
tipo personalizado seria Sidarta Gautama, mais Referências
conhecido como Buda.
Enfim, é com o auxílio dos tipos ideais que
ARON, Raymond. As etapas do pensamento
Weber tece as suas análises do fenômeno religioso
sociológico. São Paulo: Martins Fontes. 2003.
tentando delinear a lógica interna das diversas
concepções culturais religiosas. No Entanto, MARIZ, Cecília Loreto. A Sociologia da Religião de
concordamos com a observação de Mariz (2003, Max Weber. In TEIXEIRA, Faustino (org.).
Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis:
p.84) de que “[...] a sociologia da religião de Weber
Vozes. pp. 67-93. 2003.
não se reduz a eles”. Desse modo, não podemos
procurar entender a essência do fenômeno religioso RINGER, Fritz. A Metodologia de Max Weber:
Unificação das Ciências Culturais e Sociais. Tradução
exclusivamente por intermédio dessas construções
de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora
teóricas.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p.11-18, jan/jun. 2010


18 Daniel Arthur Lisboa de Vasconcelos

da Universidade de São Paulo. 2004.


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O MÉTODO CIENTÍFICO NA BUSCA DO CONHECIMENTO


The Scientific Method in the search of the knowledge

Moacir Araújo de Sousa1

RESUMO ABSTRACT

Este artigo tece algumas considerações This article presents some considerations
acerca do Método Científico, com o objetivo about the Scientific Method, in order to
de discutir sua aplicação nos estudos discuss its application in academic
acadêmicos e projetos de pesquisa, paperworks and research projects, analyzing
tomando-o como caminho para a it as a way for the scientific research of
investigação científica de hipóteses established hypotheses. A literature and state
estabelecidas. Foi realizada uma revisão da of art review on the subject was conducted
literatura na área e do estado da arte quanto and a theoretical discussion based on
ao tema e uma discussão teórica baseada em literature research is presented. It was
pesquisa bibliográfica. Concluiu-se que, não concluded that, despite the extensive
obstante a vasta discussão presente na discussion in the literature about the
literatura acerca da concepção do método conception of scientific method, the
científico, cabe ao pesquisador fazer a sua researchers are responsible for making their
escolha em relação ao método considerando choice regarding the method considering the
as questões inerentes à sua pesquisa e, issues involved in their research and,
sobretudo, as suas necessidades enquanto especially, their needs as investigators.
investigador.
Key words: Scientific Method.
Palavras-chave: Método Científico. Methodology. Science. Hypothesis.
Metodologia. Ciência. Hipótese.

1
Doutorando em Geografia pela UFS – Universidade Federal de Sergipe; professor de graduação e pós-
graduação na FANESE – Faculdade de Administração e Negócios de Sergipe; professor da pós-
graduação nas Faculdades UNIT – Universidade Tiradentes e FAMA – Faculdade Amadeus, em
Aracaju/SE.
20 Moacir Araújo de Sousa

1. Considerações Iniciais discussão sobre método, as idéias tratadas por Sposito


(2004), em seu livro «Geografia e Filosofia:
contribuição para o ensino do pensamento
Neste pequeno ensaio, pretende-se discutir
geográfico», que não só nos ensina a refletir e
acerca do método científico e sua aplicação nos
compreender melhor a idéia que permeia a concepção
estudos acadêmicos e projetos de pesquisa, iniciando
de método científico, como nos proporciona a
com algumas considerações acerca do conceito de
possibilidade de desenvolvermos um melhor
método científico passando, em seguida, por uma
entendimento de temas como paradigmas,
rápida discussão sobre metodologia científica, com a
modernidade e globalização, fornecendo-nos ainda a
intenção de levar o leitor a refletir sobre a
possibilidade de um contato mais estreito com
importância da escolha do “seu método” diante dos
conceitos da filosofia, vitais para a compreensão dos
fenômenos que pretende analisar e desvendar em
fenômenos presentes no mundo.
busca das verdades por eles encobertas.
É buscando a concepção de uma metodologia
de ensino do pensamento geográfico que o autor
2. Algumas considerações sobre Método discute o método científico, considerando-o em sua
Científico dimensão filosófica, partindo do pressuposto de que:

o método não pode ser abordado do ponto de


Segundo o dicionário Aurélio da língua vista disciplinar, mas como instrumento
portuguesa, dentre outras coisas, método significa intelectual e racional que possibilite a
“caminho para chegar a um fim”, ou ainda, “caminho apreensão da realidade objetiva pelo
pelo qual se atinge um objetivo”. Pode-se dizer, investigador, quando este pretende fazer uma
então, partindo desses pressupostos, que método leitura dessa realidade e estabelecer verdades
científicas para a sua interpretação. (p. 23)
científico é o caminho percorrido pelo pesquisador
em busca de verdades científicas.
Desse modo, considera que a crise de
De acordo com Japiassu & Marcondes paradigmas que vivemos hoje é fruto da fusão
(1990), apud Sposito (2004, p. 25), a palavra método simplificadora entre método e disciplina e nos adverte
deriva do grego e é formada por meta (por, através para o fato de que o método científico não se constitui
de) e hodos (caminho). Assim, para eles, método é de forma simples e desconectada da realidade,
definido como: envolvendo doutrinas, leis, teorias, conceitos etc, mas
conjunto de procedimentos racionais, desenvolve a discussão sobre questões que conduzem
baseados em regras, que visam atingir um à reflexão acerca da pertinência e da necessidade de se
objetivo determinado. Por exemplo, na repensar, todos os dias o que se produz
ciência, o estabelecimento e a cientificamente.
demonstração de uma verdade científica.
Assim, podemos afirmar que a ciência, tratada
por alguns autores como o método científico em
Uma breve análise da literatura já é
funcionamento, não busca verdades absolutas. A
suficiente para encontrarmos inúmeras definições de
verdade científica é, dessa maneira, provisória,
método científico, elaboradas por diversos autores,
tomada por empréstimo da natureza e da forma como
com classificações dos mais variados tipos, como
ela se nos apresenta ser. Concluindo, as verdades
por exemplo, «método dedutivo, método indutivo,
científicas de hoje podem, amanhã, ser negadas,
fenomenológico, axiomático, dialético,
lapidadas ou reformuladas. Vale, nesse sentido, citar
hermenêutico, de análise-síntese», dentre outros.
Mesquita Filho (2004, p.09) que diz:
Tomaremos, como centro dessa rápida

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O Método Científico na busca do conhecimento 21

Se chegaremos ou não, por métodos partir das quais os resultados obtidos podem ser
científicos, à verdade absoluta, é um deduzidos e com base nos quais se podem fazer
questionamento que a ciência não está
previsões que, por sua vez, podem ser confirmadas ou
aparelhada para responder. E talvez nunca
esteja, o que não nos impede de que refutadas. Esse método tem suas raízes no pensamento
continuemos procurando pela verdade. de René Descartes (1596-1650), que procurou
estabelecer um método universal baseado no rigor
Retomando a discussão, Sposito (2004, p. matemático e na razão.
27) nos leva a pensar no método como algo que Segundo tal método, o real é descrito por meio
transcende a procedimentos, técnicas ou regras e nos de hipóteses e deduções. O objeto prevalece sobre o
convida a um passeio pela história do pensamento sujeito, ou seja, o objeto estudado é posicionado a
com os Sofistas, que provocavam debates indicando montante, influenciando o pesquisador e os seus
que “não havia normas propriamente ditas para o conhecimentos, mesmo que a neutralidade científica
verdadeiro e o falso”; Sócrates que, ao contrário, seja pressuposto básico. Sujeito < Objeto.
tentou mostrar “que certas normas são, entretanto, O método fenomenológico-hermenêutico,
absolutas e válidas para todos”; René Descartes, que embasado na filosofia do subjetivo, teve suas
cria “um subjetivismo idealista e racional”, primeiras definições elaboradas por Husserl
rejeitando todas “as certezas dogmáticas e prontas e (1859–1938) e se sobressaiu na França, a partir das
parte da dúvida”, como forma de conhecer o mundo; idéias de Maurice Merleau-Ponty (1908–1961).
chegando ao empirismo inglês, o idealismo alemão,
O termo hermenêutico designava, até o fim do
a dialética hegeliana, o positivismo comteano e o
século XIX, “todo esforço de interpretação científica
materialismo histórico marxista, bases teóricas e
de um texto difícil que exige uma explicação”.
doutrinárias do conhecimento científico e filosófico
e dos diferentes métodos de interpretação da Para Nunes (1989, p. 88 apud SPOSITO), a
realidade. fenomenologia, como filosofia, “pretende ser uma
crítica de toda a tradição especulativa ou idealista”.
Sposito também nos diz que: “Se os pontos
Pode ser ainda entendida como “uma corrente
de partida são racionalistas ou empiristas,
filosófica fundada por E. Husserl, visando estabelecer
materialistas ou idealistas, os métodos são utilizados
um método de fundamentação da ciência e de
dependendo da própria intencionalidade do
constituição da filosofia como ciência rigorosa”.
investigador”. (p. 27)
Husserl (apud Vergez & Huisman, 1984, p.377), apud
Ao afirmar que “indução e dedução são Sposito (2004, p. 37), afirma que
procedimentos da razão e não métodos diferenciados
e com identidade própria”, Sposito assume uma a fenomenologia ultrapassa simultaneamente
posição de escolha de três diferentes métodos, o realismo e o idealismo. Ela ultrapassa o
idealismo na medida em que toda consciência
apenas, que segundo sua análise, apresentam as
visa a um objeto transcendente, isto é,
características de um método científico, com leis e exterior a ela; ultrapassa o realismo na
categorias, e se relacionam historicamente com os medida em que toda significação remete a
procedimentos específicos e teorias disseminadas uma consciência transcendental, doadora de
pela comunidade científica. São eles: «hipotético- sentido.
dedutivo, fenomenológico e dialético».
Tomando como referência Japiassu & Por fim, ele retrata o “problema do outro”: “o
Marcondes (1990, p. 93), entende-se como outro não é só aquele que vejo, mas aquele que me vê e
hipotético-dedutivo o método que permite a é também fonte transcendental de um mundo que lhe é
construção de uma teoria que formula hipóteses a dado”.

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22 Moacir Araújo de Sousa

No método fenomenológico, é o sujeito como estágio superior que, por sua vez, se
quem disseca o objeto e suas relações a partir do seu coloca também como uma nova tese.
próprio ponto de vista, fazendo com que este corra o Essa idéia nos remete a Rohmann (2000),
risco de se tornar apenas o elemento a ser analisado. quando nos esclarece:
Sujeito > Objeto.
O método dialético, segundo Japiassu & A civilização progride em estágios, ou
«momentos históricos», cada um dos quais é
Marcondes (1990, p. 167) apud Sposito (2004), é uma etapa necessária, mas incompleta, do
aquele que “procede pela refutação das opiniões do desenvolvimento da «consciência», da
senso comum levando-as à contradição, para chegar «razão» e da «liberdade» humanas. Como
então à verdade, fruto da razão”. cada estágio é imperfeito, suas falhas dão
origem a idéias ou forças contrárias e, do
Platão concebe a dialética como “o processo resultado do conflito, surge um estágio novo,
pelo qual a alma se eleva, por degraus, das aparências superior e temporariamente mais estável.
sensíveis às realidades inteligíveis ou idéias”. Hegel chamava essa síntese de «superação»
(Aufhebung), termo que implica tanto a
Aristóteles diz que ela é “a dedução feita a
negação quanto a preservação – o surgimento
partir de premissas apenas prováveis, oposta ao de uma condição que contém e supera a
silogismo, fundado em premissas consideradas original. (p. 187)
verdadeiras e concluindo necessariamente pela força
da forma”. Complementando, Sandra Lencioni (1999, p.
Para Aristóteles, segundo Gaarder (1995, p. 159), apud Sposito (2004 p. 44), afirma que
126 apud SPOSITO, 2004, p. 40),
Karl Marx e Friedrich Engels conceberam o
a idéia de cavalo era somente um conceito método materialista dialético, que contém os
que nós, os homens, criamos depois de ter princípios da interação universal, do
visto um certo número de cavalos. A idéia movimento universal, da unidade dos
ou a «forma» do cavalo não existe em si. A contraditórios, do desenvolvimento em
«forma» do cavalo é construída, segundo espiral e da transformação da quantidade em
ele, pelas qualidades próprias do cavalo, o qualidade.
que, em outros termos, nós chamamos a
espécie cavalo. No método dialético, então, o sujeito e o
objeto se constroem e se transformam, um em face do
Platão, com o seu “mito da caverna”, queria outro. Sujeito Objeto.
se aperceber do mundo das idéias, saindo assim da Na contemporaneidade, Karl R. Popper,
caverna. Ele dizia que “as idéias eram mais reais que filósofo austro-inglês, escreveu “a lógica da pesquisa
os fenômenos naturais”. científica” (1975, p. 105) e analisou o princípio da
O que Hegel denominou processo dialético indução, atacando o “psicologismo” ao afirmar que a
denota o pensamento que é elaborado e, uma vez tarefa que toca a lógica do conhecimento, em oposição
estabelecido, vai ser confrontado com um novo à psicologia do conhecimento, parte da “suposição de
pensamento, criando assim uma tensão entre dois que ela consiste apenas em investigar os métodos
modos de pensamento. empregados nas provas sistemáticas a que toda idéia
Para Marx, a dialética compreende nova deve ser submetida para que possa ser levada em
necessariamente a noção de movimento na História. consideração”.
Segundo Sposito, esse movimento ocorre quando, na O excelso doutrinador concebe a indução
confrontação de tese e antítese, a síntese contém como fundamental para a racionalização das idéias
aspectos positivos da tensão anterior, e apresenta-se novas, que devem ser apreciadas através do princípio

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O Método Científico na busca do conhecimento 23

da “falseabilidade”, para se confirmar se são Segundo Chris Rohmann (2000, p. 272), que
científicas ou não. escreveu “O Livro das Idéias”, entende-se por
Concluindo essa discussão vale salientar metodologia científica o método de investigação
que, apesar de tantos estudos já efetuados acerca do baseado na indução, que parte de provas empíricas e
método científico de investigação, desde os da investigação experimental de hipóteses teóricas;
primórdios até os dias atuais, ainda se percebe nesse sentido, qualquer conhecimento válido precisa
grandes dificuldades por parte dos pesquisadores, apoiar-se nos testes e na confirmação, e sua meta é
sobretudo aqueles que estão em sua fase alcançar resultados objetivos, relativamente livres de
embrionária, iniciando seus experimentos, na palpites e da influência de preconceitos pessoais ou
escolha do método mais adequado ao seu objeto de culturais. Esses princípios metodológicos, elaborados
pesquisa. Também, não poderia ser diferente, à época da revolução científica dos séculos XVI e
considerando inclusive que há até quem afirme que XVII, constituem ainda hoje a base de grande parte das
método científico não existe, como é o caso do pesquisas nas ciências naturais e sociais.
filósofo Karl R. Popper, citado anteriormente neste Resultado do racionalismo e do empirismo
texto. filosóficos, e da obra de cientistas como o astrônomo
Não obstante isso, é importante registrar que Galileu e o médico William Harvey, o sistema
cada indivíduo tem uma forma singular de produzir e empregava a observação direta e documentação
apreender conhecimento, de ver o mundo, de minuciosa, em vez das modalidades de pesquisas mais
processar as informações disponíveis, de ser. Desse especulativas.
modo, através do caminho que escolhermos para René Descartes, com o preceito “duvidar de
buscar a nossa verdade, tenha ele o nome de método tudo” e a aplicação dos princípios matemáticos aos
ou outro qualquer, devemos prosseguir rumo à problemas filosóficos, proporcionou grande parte do
evolução, ao progresso, dando a nossa melhor alicerce para seu desenvolvimento posterior e
contribuição para o crescimento da ciência. contribuiu para a idéia de que os métodos empíricos
Que possamos, de fato, como propõe o podem chegar à «verdade» fundamental. Nesse
professor Sposito, abraçar o ato de conhecer e os mesmo período, Francis Bacon esboçou o que se
diferentes níveis do conhecimento com o desejo de tornaria a base estrutural da metodologia científica em
atender o «porquê» (elucidar razões históricas do seu Novum Organum (1620). De acordo com o método
tema pesquisado), o «quando» (examinar o contexto baconiano, síntese do empirismo e da indução, os
em que as idéias se deram), o «onde» (compreender a dados oriundos de observações minuciosas e de
relação entre os fatos e os lugares), e o «para quê» experiências criteriosas, são registrados, comparados
(exprimir a angústia da civilização que busca, em e analisados para produzir hipóteses funcionais, que
meio a tanto avanço tecnológico, um sentido mais são, então, exaustivamente testadas.
livre e igualitário para a vida). Rohmann nos diz ainda que, embora o método
dos cientistas da época de Descartes e Bacon fosse
coletar e analisar todo e qualquer dado discernível que
3. Metodologia Científica
contivesse informações importantes a respeito de um
tema qualquer, os pesquisadores modernos mostram-
A palavra metodologia tem suas raízes se inclinados a optar por um aspecto específico de
etimológicas na Grécia, originando-se do termo determinado fenômeno, e a elaborar uma experiência
grego méthodos + log + ia, que traduzido surge como para investigá-lo.
“a arte de dirigir o espírito na investigação da Segundo ele, a ciência do século XX alterou
verdade”. os pressupostos tradicionais da metodologia científica

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24 Moacir Araújo de Sousa

de duas maneiras importantes. O método Já o raciocínio indutivo, depende totalmente


hipotético-dedutivo de Albert Einsten – para quem as da experiência, ao contrário do dedutivo, que é um
teorias não eram generalizações da experiência, mas processo puramente mental, independente da
idéias criativas que produzem deduções sujeitas a experiência. No caso do Marrequinho, pode-se
exames experimentais – aboliu a idéia de que as observar que ele nada bem e que todos os patos
hipóteses só podem ser extraídas da observação; e a observados também o fazem. Logo, há a grande
indeterminação inerente à mecânica quântica probabilidade de que nadar bem seja uma
perturbou ainda mais o ideal da objetividade perfeita. característica dos patos em geral.
Assim, no método científico, a hipótese é o À guisa de conclusão dessa análise do
caminho que deve levar à formulação de uma teoria. raciocínio é necessário salientar que os
O pesquisador, diante de sua hipótese, tem dupla conhecimentos advindos da indução são sempre
missão: explicar um fato e prever outros condicionais, já que não se pode chegar com
acontecimentos dele decorrentes. A hipótese deverá segurança a um universal por meio de indução: um
ser testada através de experiências e, se os resultados pato que não nade, por exemplo, jogaria por terra a
alcançados nessas experiências pelos pesquisadores conclusão. A dedução parece mais vantajosa visto que
comprovarem a hipótese, esta será aceita como uma suas respostas, se deduzidas com exatidão, são
teoria. indiscutíveis. A indução, embora menos decisiva, é
Essa discussão nos remete ao postulado geralmente mais útil, por ser capaz de gerar novas
fundamental que diz: “se em dadas condições, um informações, em vez de simplesmente explorar
determinado fenômeno, sempre que pesquisado, se aspectos de conhecimentos já existentes. De qualquer
repetiu, é de se admitir que em futuras verificações o modo, como já dito por Rohmann, são dois lados da
mesmo suceda”. razão, opostos, mas complementares na busca do
conhecimento.
Como já abordado anteriormente neste
trabalho, a indução constitui-se no alicerce da
metodologia científica. Porém, vale estabelecer um 4. Considerações Finais
paralelo entre dedução e indução, como proposto por
Rohmann (2000, p. 95), considerando-os como os
O objetivo do pesquisador é, a partir de uma
dois lados da faculdade da razão, opostos, mas
melhor compreensão do método científico, utilizá-lo
complementares na busca por conclusões legítimas.
como caminho para análise do seu objeto de pesquisa,
Marilena Chauí concebe o método como apreendendo-o como uma rota que o conduzirá à
“ciência universal da ordem e da medida, podendo almejada verdade científica.
ser analítico ou sintético”, considerando-o dedutivo
A metodologia, no entanto, pode ser
pelos racionalistas intelectuais, que vão das idéias às
entendida como “a arte de dirigir o espírito na
sensações (do geral para o particular) e indutivo
investigação da verdade”, visto que o alvo final de
pelos racionalistas empiristas, que fazem o caminho
uma pesquisa é compreender o fenômeno que lhe
contrário, indo das sensações às idéias (do particular
impulsionou.
para o geral).
Destarte, conclui-se que, não obstante a farta
O racionalismo dedutivo tem como forma
discussão presente na literatura acerca da concepção
clássica o «silogismo», no qual se deduz uma
do método científico, cabe ao pesquisador fazer a sua
conclusão necessária partindo-se de duas premissas
escolha em relação ao método considerando as
aceitas: se todos os patos são bons nadadores e
questões inerentes à sua pesquisa e, sobretudo, as suas
Marrequinho é um pato, então Marrequinho é um
necessidades enquanto investigador.
bom nadador.

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O Método Científico na busca do conhecimento 25

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IDENTIDADE E PERTENCIMENTO: UM ENSAIO SOBRE OS


PROCESSOS CULTURAIS NA MODERNIDADE
Identity and belonging: an assay on the cultural processes of modernity

Carley Rodrigues Alves1

RESUMO ABSTRACT

Identidade e pertencimento têm se Identity and belonging had become


conformando enquanto importantes eixos important axles of the sociological debate in
do debate sociológico nas ultimas décadas. the last few decades. In this scene, the
Neste cenário, a reafirmação do conceito de reaffirmation of the concept of territoriality
territorialidade emergiu de uma emerged of an understanding that consider
compreensão mais ampla que passaria a the territorial behavior as a constituent of all
considerar a conduta territorial como parte human group. The new territorialities
constitutiva de todo e qualquer grupo created for modernity suggest a picture of
humano. As novas territorialidades criadas changes that generalize and reflect the new
pela modernidade sugerem um quadro de paradigms of science. In this article, we
mudanças que se generalizam e refletem os analyze the causes and consequences of
novos paradigmas do presente. Neste artigo, changes in the cultural processes of
analisamos as causas e conseqüências das modernity, that interrupt the transmission of
transformações nos processos culturais da the traditions, values, knowleadges and
modernidade, ao romperem com os traditional beliefs, and the challenges of
esquemas de transmissão das tradições, reconstruction of the sense of belonging.
valores, saberes e crenças tradicionais e os
desafios de reconstrução do sentimento de Key-Words: Cultural Processes. Identity.
pertencimento. Belonging. Modernity.

Palavras-chave: Processos Culturais.


Identidade. Pertencimento. Modernidade.

1
Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas. Contato: carley.ufal@gmail.com
28 Carley Rodrigues Alves

1. Introdução processos culturais e educativos vindouros. Desta


preocupação original surgiu um questionamento
fundante: Como aprender a pertencer? E várias
Atuando como professor de geografia em
questões adjacentes: Qual a relação entre
todos estes anos, trabalhando com a temática da
pertencimento e identidade? Qual o papel da
globalização, da territorialização e da
comunidade na construção do pertencimento? Quais
desterritorialização, que foram temas que se
elementos da cultura local favoreciam a manutenção e
tornaram bastante fecundo no meio acadêmico na
a transmissão do sentimento de pertencimento?
última década, passei a dar cada vez mais atenção as
questões que envolviam a identidade e a cultura, nas Este artigo, sobretudo, é reflexo de minha
sociedades tradicionais e contemporâneas. A história de vida recente. A história de um professor de
trajetória dos acontecimentos locais e globais, geografia na busca de condições efetivas de
descortinava para o geógrafo um mundo em crise, pertencimento. Uma busca por identidades mais
reforçando a importância do nosso papel enquanto sólidas as quais se fixar na fluidez do movimento das
agentes de transformação da realidade. De acordo sociedades contemporâneas. A crise de pertencimento
com Bauman (1999, p.77), esta nova realidade e a reprodução incessante de territorialidades
mundial refletia-se sobre os lugares operando transitórias na modernidade contrastam com o modo
fenômenos complexos: de vida de comunidades tradicionais, para as quais
pertencer continua a ser o destino. Nestas
A integração e a divisão, a globalização e a comunidades, os processos culturais tendem a recriar
territorialização, são processos as condições de pertencimento.
mutuamente complementares. Mais
precisamente, são duas faces do mesmo A crise de pertencimento é eminentemente
processo: a redistribuição mundial de existencial. Aparenta se originar de um contexto
soberania, poder e liberdade de agir geográfico, mas, em seguida, logo se vê que os seus
desencadeada (mais de forma alguma termos situam-se nos quadros de uma antropologia
determinada) pelo salto radical na
filosófica. A dimensão geográfica e a dimensão
tecnologia da velocidade.
antropológica sinalizam respectivamente duas etapas
processuais da crise de pertencimento: primeiro, um
No primeiro momento, a noção de
processo de desterritorialização geográfica; segundo;
desterritorialização passou a ser bastante utilizada
um processo de desterritorialização simbólica. Não
para representar as conseqüências da crise de
obstante o fato de ser em essência um único processo,
pertencimento em emigrantes e o processo de
a dialética geográfico-simbólica se mostra,
reconstrução de identidades nas regiões e países que
didaticamente, bastante útil para a compreensão da
os acolheram. Preocupava-me, enquanto geógrafo,
sociedade contemporânea em franco processo de
as conseqüências sociais da desterritorialização em
desterritorialização.
um sentido mais amplo, principalmente, na forma
como se descaracterizavam os processos culturais no Durante muito tempo o isolamento geográfico
mundo vivido, em escala local. foi um argumento suficientemente lógico para
explicar a singularidade e a diversidade da cultura
As primeiras conclusões levavam a crer que
humana, espalhada nos diversos pontos do Planeta, e
no mundo globalizado deixávamos de pertencer, em
que ainda se constitui o elemento histórico de
um processo continuo, ininterrupto e irreversível.
sustentação da idéia de cultura local. No entanto, para
Poderíamos estar em vários lugares, mas não
diversos autores, é possível testemunharmos hoje “um
pertencíamos a lugar algum. Desde aqueles
processo de reestratificação mundial”, no qual se
primeiros momentos me pareceu ser a temática do
constrói uma nova hierarquia sociocultural em escala
pertencimento uma condição essencial dos

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Identidade e pertencimento: um ensaio sobre os processos culturais na modernidade 29

planetária (BAUMAN, 1999, p.78). sobretudo um território político. Para outros,


desterritorialização está ligada à hibridização
Nos dias de hoje, o discurso da globalização cultural que impede o reconhecimento de
apóia-se sobre este argumento para reafirmá-lo como identidades claramente definidas – o
uma nova fase na produção cultural humana, território aqui é, antes de tudo, um território
inaugurando a idéia de cultural global, em um mundo simbólico, ou um espaço de referência para a
aparentemente livre dos determinismos espaciais construção de identidades [...].
que, no passado, justificavam o relativo isolamento
dos lugares. No entanto, a globalização está A definição do conceito de
produzindo, paralelamente, uma nova fase de desterritorialização, desta feita, pode ser concebida
reafirmação dos lugares de vida. Neste sentido, Hall como uma via de mão dupla, o que nos faz situá-la no
(2003, p.61) afirma que: contexto da modernidade, entre os processos
produtores de ambigüidades. Por um lado, o processo
[...] É algo novo – a sombra que acompanha de desterritorialização dá acesso ao inusitado,
a globalização: o que é deixado de lado pelo expande os horizontes da consciência e das
fluxo panorâmico da globalização, mas
retorna para perturbar e transtornar seus
possibilidades existenciais humanas, dando acesso a
estabelecimentos culturais. É o exterior novos esquemas culturais e a novas estruturas de
constitutivo da globalização. pensamento, no contexto do hibridismo cultural. Por
outro, produz novas diferenciações sociais, novos
Não obstante o fato de ser um modelo atores, papeis e identidades.
grosseiro e redutor tanto para o entendimento das É parte da condição humana pertencer e
sociedades tradicionais, quanto da sociedade construir novas condições de pertencimento, ou seja,
contemporânea, tomada no conjunto da humanidade, novos pertencimento. Esta relação entre o processo de
bem como o fato de não haver consenso na desterritorialização e a produção de novos
comunidade científica no que diz respeito à temática pertencimentos, nos dias de hoje, ocorre em geral por
da globalização, da modernidade ou pós- meio da força econômica, dos mecanismos de
modernidade, nos propomos a recuperar deste produção, circulação e consumo capitalistas. Neste
cenário dois elementos que, a nosso ver, estruturam o sentido, Haesbaert (2004, p.230) afirma que “o
processo de desterritorialização: o território capitalismo continuará reterritorializando com uma
geográfico e o território simbólico. mão o que desterritorializa com a outra, criando-se
assim 'neoterritorialidades'.”
2. O território geográfico e o território simbólico A idéia de desenvolvimento econômico,
típica do modo capitalista de produção, favorece a
individualização, a busca por independência e
Associamos o território geográfico, liberdade. Visto dessa forma, a noção corrente de
sobretudo, as condições possíveis de isolamento ou desenvolvimento agrava o processo de
de exclusão espacial; enquanto que, o território desterritorialização. Ao construir as condições de
simbólico, a condição emergente da realidade vivida, independência dos indivíduos, paralelamente, está se
no mundo globalizado. Esta forma de entender o desconstruindo as condições de pertencimento, que só
processo de desterritorialização é compartilhada podem operar na interdependência, reciprocidade,
com Haesbaert (2004, p.35): cooperação e intersubjetividade.
[...] Para uns, por exemplo, O desenvolvimento econômico deve ser
desterritorialização está ligada à fragilidade considerado com um dos principais fatores da crise de
crescente das fronteiras, especialmente das pertencimento. Por estas razões concordamos com
fronteiras estatais – o território, aí, é

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30 Carley Rodrigues Alves

Morin e Kern (2005, p.78) quando afirmam destinos finais do processo de


que “a noção de desenvolvimento se apresenta desterritorialização. No primeiro caso, que é o mais
gravemente subdesenvolvida”. Desta perspectiva, a comum, opera-se uma reterritorialização, sobretudo
crise de pertencimento origina-se no movimento geográfica, e um retorno a opressão determinística do
frenético e desesperado dos indivíduos em busca de território geográfico, circunscrito pelo poder do
independência econômica e de construção de novas controle político. Este é o caso das favelas, dos guetos
identidades. As identidades culturais que emergem ou dos presídios. Para Bauman (2003, 109;111) guetos
deste contexto, refletem a cultura global, fraturada e e prisões são dois tipos de estratégia de prender os
fragmentada em múltiplas identidades, sobrepostas, indesejáveis ao chão, de confinamento e imobilização.
transitórias, líquidas. Neste sentido, Hall (2000) ao Para o autor, gueto quer dizer impossibilidade de
analisar “as identidades culturais na pós- comunidade. No segundo caso, os cosmopolitas
modernidade” defende a tese de que as identidades podem ser entendidos enquanto habitantes do mundo
modernas se encontram em crise. Fragmentadas cada da velocidade. Tem a disposição os meios de
vez mais pela globalização, estas identidades produção, os recursos mais do que necessários para
carecem de referenciais modernos de sujeito, tempo um padrão de consumo exacerbado. À sua disposição
e espaço. as diversas formas de acesso as redes, os passaportes e
No Brasil, a primeira desterritorialização os vistos. Ainda que o conceito de riqueza e de pobreza
descaracterizou as áreas rurais do País, levando tenham sido ressignificados com o advento da
praticamente à extinção, o campesinato. Na região desterritorialização simbólica, é totalmente possível
nordeste os fluxos de emigrantes, principalmente associar excluídos e cosmopolitas, metaforicamente,
para os estados das regiões sul e sudeste, revelam-se no bojo das contradições do processo de
exemplares, seja pelo número de pessoas envolvidas, desenvolvimento capitalista, respectivamente, a
seja pela intensidade e violência do processo sobre as condição de riqueza e de pobreza. No entanto, estes
culturas locais e regionais. Do mundo para o Brasil, conceitos jamais se aplicariam as pessoas do lugar.
podemos supor os efeitos nocivos do processo de Os dois tempos de desterritorialização estão
desterritorialização sobre o negro de origem na origem do distanciamento e perda dos vínculos
africana, tornado escravo nos canaviais brasileiros, e entre a sociedade e a natureza. Quando o processo de
dos imigrantes do pós-guerra, japoneses, italianos, desterritorialização geográfica era definido pelo
alemães, dentre outros. local/espacial, pertencer era estar junto da natureza.
A desterritorialização simbólica abarca a Quanto o processo de desterritorialização simbólica se
totalidade dos fenômenos antropológicos, intensificou, a natureza perdeu completamente o seu
destacando-se, na atualidade, como o processo valor ontológico.
predominante de desterritorialização. Mais uma vez No entanto, o modo de vida comunitário
o processo recai diretamente sobre as pessoas do desenvolveu-se sobre valores simbólicos capazes de
lugar, que podem ser influenciadas pela mídia, resistir ao imperativo dos processos
atraídas pelo fetiche mercadológico, pelo modo de desterritorializantes. Como não existem mais
vida consumista, trocando os seus territórios sólidos fronteiras espaciais, a cultura local preservou seus
de pertencimento, pelos territórios líquidos da mecanismos tradicionais de proteção a vida
modernidade. Vulneráveis aos efeitos da comunitária, por meio da manutenção de sólidas
desterritorialização é sobre as pessoas do lugar que territorialidades simbólicas, nas quais os valores
esse processo produz as consequências mais humanos podem se reproduzir, livres da influência dos
imprevisíveis. processos desterritorializantes.
Excluídos ou cosmopolitas são os dois Estas territorialidades simbólicas locais

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Identidade e pertencimento: um ensaio sobre os processos culturais na modernidade 31

recuperam o sentido de ligação contido na a população que o habita, produzindo


noção do sagrado, realizando permanentemente uma territórios simbólicos que respondem pelo sentimento
tríplice religação entre sociedade, natureza e Deus. de pertencimento que é experimentado por seus
Este mecanismo garante a manutenção do sentido de habitantes.
pertencimento na comunidade, ao recuperar o A crítica do surgimento do estado-nação como
sentido transcendental da religiosidade nas práticas projeto de unificação de diferentes etnias distribuídas
simbólicas culturais e educativas. sobre os territórios nacionais é o mote central a partir
do qual o autor faz uma leitura das sociedades
3. Identidade e pertencimento contemporâneas, buscando valorizar a comunidade,
enquanto unidade de pertencimento e, portanto, de
significado, e alertando, sobretudo, para a sua
Como visto anteriormente, a questão da transformação ou anulação na condição de lugar de
identidade merece especial atenção uma vez que se vida. Diversos autores convergem seus pensamentos
relaciona diretamente com a temática do com os de Bauman, principalmente, no que diz
pertencimento. Sendo a identidade um dos temas respeito a dificuldade de ponderar sobre a relação
mais recorrentes da atualidade, muitos autores tem se entre pertencimento e identidade. Neste sentido,
dedicado a compreender sua natureza e evolução, segundo Hall (2003, p.52), a expressão
com um amplo leque de estudos abarcando desde a “multicultural” é um conceito capaz definir as
importância subjetiva (e objetiva) da terra natal, aos singularidades culturais emergentes, neste cenário de
efeitos psicológicos das diásporas na construção de crise:
comunidades imaginadas (Bauman, Hall, Castells
etc). Os debates em torno da problemática da Multicultural é um termo qualitativo.
identidade e do pertencimento conformam os Descreve as características sociais e os
problemas de governabilidade apresentados
cenários mais atuais da teoria social contemporânea.
por qualquer sociedade na qual diferentes
Para diversos autores, a noção de identidade comunidades culturais convivem e tentam
ocorre, geralmente, adjetivada em muitas construir uma vida em comum, ao mesmo
identidades fragmentárias que se estabelecem tempo em que retêm algo de sua identidade
'original'.
enquanto subproduto das ambivalências da
modernidade líquida e, mais especificamente,
A relação entre pertencimento e identidade
enquanto reflexo da crise de pertencimento. Dessa
situa-se nos quadros sócio-culturais (e psicológicos)
forma, fundamentamos nosso ponto de vista no
paradoxais do presente. Não obstante, sob certos
discurso do sociólogo polonês Zigmunt Bauman,
sentidos, os conceitos se confundirem, identidade
cujas idéias convergem para uma busca de soluções
pode ser entendida como algo em permanente
em face do momento de mal-estar experimentado
construção, em oposição ao pertencimento, este em
pelas sociedades contemporâneas, na pós-
franco processo de desconstrução, nas sociedades
modernidade, em razão da crise de pertencimento.
contemporâneas. Esta dialética liga pertencimento e
Moldando um ambiente de valores que identidade na totalidade-mundo, num movimento de
oscilam entre a liberdade e a segurança, o sociólogo construção, desconstrução e reconstrução, e tem sido
analisa os efeitos sociais da globalização sobre a apreciada de diversas formas: como relação
identidade cultural dos lugares, identificando na global/local; sociedade/natureza;
emergência das identidades nacionais um projeto de tradição/modernidade; ou seja, como formas de
desconstrução do sonho de comunidade. As idéias interpretar a complexidade do movimento da
deste autor ajudam a entender a forma como o sociedade atual, entendida, por exemplo, como uma
território geográfico interage no tempo histórico com

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sociedade em rede, por autores como resistência que assume os atores sociais em
Castells (2002, p.22) que concebem a identidade situação desvalorizada ou de opressão. Por fim, a
como sendo a “fonte de significado e experiência de identidade de projeto é o movimento a partir do qual os
um povo”. atores sociais lançam mão do material cultural que
Bauman (2005, p.26) entende que “a idéia de dispõem para produzir novas identidades, em busca de
'identidade' nasceu da crise do pertencimento e do transformação da realidade social em que vivem.
esforço que esta desencadeou no sentido de transpor Não obstante as modalidades de identidade
a brecha entre o 'deve' e o 'e'”, ou seja, ela se realiza, observadas em Castells, de acordo com Canclini
erguendo a realidade ao nível dos padrões (1997, p.35), num levantamento superficial não se
estabelecidos pela idéia. Para este autor o projeto de observa relevante distinção entre identidade e cultura,
criação dos estados-nação exigia mecanismos de o que torna sem sentido a tarefa de enquadrar um
construção e consolidação de uma identidade determinado fenômeno a um tipo ou modalidade de
nacional. A força desta identidade nacional imposta identidade cultural. Para o autor “a cultura, à maneira
produziu abalos sobre a segurança sugerida pelo da identidade, abarca o conjunto de processos sociais
pertencimento em nível local. No entanto, para de produção, circulação e consumo da significação na
Castells (2002, p.86), o surgimento de resistências vida social.”
em nível local poderá produzir uma crise do estado- As idéias destes autores situam-se no seio de
nação. um debate controverso sobre a importância da
comunidade na contemporaneidade. Bauman (2005,
É possível que, dessas comunas, novos p.17) identifica em sua análise dois tipos de
sujeitos – isto é, agentes coletivos de comunidade: “Existem comunidades de vida e de
transformação social – possam surgir,
construindo novos significados em torno da
destino, cujos membros 'vivem juntos numa ligação
identidade de projeto. Na verdade diria que, absoluta', e outras que são 'fundidas unicamente por
dada a crise estrutural da sociedade civil e idéias ou por uma variedade de princípios'.” Para o
do Estado-Nação, pode ser esta a principal autor, o primeiro tipo se transformou num sonho, na
fonte de mudança social no contexto da medida em que o projeto de construção de novas
sociedade em rede.
identidades interrompeu o fluxo do pertencimento,
permitindo uma proliferação em massa das
Em escala local, as manifestações culturais, comunidades fundidas por idéias.
por exemplo, entendidas enquanto territorialidade Para Bauman (2005, p.18), “[...] a idéia de 'ter
humana, nos permitem enxergar a construção do uma identidade' não vai ocorrer às pessoas enquanto o
sentimento de pertencimento no momento em que a 'pertencimento' continuar sendo o seu destino, uma
identidade e a cultura se imbricam e se internalizam condição sem alternativa.” Na medida em que a
nos atores sociais. Neste momento, o sentimento de identidade poderá se realizar como uma tarefa,
pertencimento passa a agregar valores progressiva e constantemente, o pertencimento
imprescindíveis à coesão social da comunidade. Para continuará se realizando natural e, em geral,
Castells (2002, p.24) pode-se conceber, neste inconscientemente, no cotidiano das comunidades.
sentido, três modalidades de identidade cultural:
A impossibilidade de continuar a pertencer
“Identidade Legitimadora; Identidade de
associa-se ao mal-estar generalizado porque passam
Resistência; e, Identidade de Projeto.”
aqueles cujo destino ainda deveria ser o de pertencer a
A identidade legitimadora é fruto da algum lugar. A globalização, ao favorecer um
racionalização e da expansão das instituições desraizamento, uma ruptura nos vínculos de
dominantes da sociedade sobre os atores sociais. A relacionamento entre os seres humanos e com relação

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Identidade e pertencimento: um ensaio sobre os processos culturais na modernidade 33

à natureza, produz os vários argumentos de identidade.” (BAUMAN, 2003, p.24)


uma crise existencial que acompanha a crise de De acordo com Bauman (2003, p.25), “as [...]
pertencimento. No entanto, para Bauman (2005. sociedades de familiaridade mútua [...] reproduziam
p.20), a despeito de todo um mal-estar que se naturalmente as condições de pertencimento.”
estabelece, desestabilizando o presente vivido, Compreendemos ser possível encontrar no campo
“ancoramos nossa esperança futura em uma utopia comunidades rurais que preservam os atributos das
de comunidade.” Ainda de acordo com o autor, sociedades de familiaridade mútua. A redução destas
“pode-se reclamar de todos esses desconfortos e, em comunidades, no entanto, transforma a busca por
desespero, buscar a redenção, ou pelo menos o situações de pertencimento, num desafio movido pelo
descanso, num sonho de pertencimento.” sonho de pertencer. A urbanização como tendência
A identidade introduz uma mundial, a industrialização e as guerras, favorecem o
compartimentação artificial nos espaços-tempos da aparecimento de fluxos migratórios que vem
vida comunitária, produzindo insegurança e medo. A desagregando muitas comunidades. Como vimos, no
busca por identidade reflete a condição humana na Brasil o êxodo rural foi um fenômeno gerador de crise
sociedade contemporânea. Segundo Bauman (2005, de pertencimento.
p.21), “[...] a 'identidade' só nos é revelada como algo Não obstante o fenômeno do êxodo rural,
a ser inventado, e não descoberto. No entanto, não há ainda há comunidades que resistem no campo, muitas
solidez na identidade inventada, antes, porém, reflete vezes entrincheiradas pela proximidade com o modo
a fluidez, a transitoriedade e a superficialidade dos de vida urbano, mas que, no entanto, reproduzem
relacionamentos humanos na modernidade.” valores e atitudes diferenciadas daquela realidade
Ainda de acordo com Bauman (2005, p.22), sócio-cultural, por mais próxima que esteja da cidade.
“a fragilidade e a condição eternamente provisória da Em muitas destas comunidades, a dinâmica sócio-
identidade não podem mais ser ocultadas.” Ou seja, espacial de suas populações deixam transparecer
no caminho de construção de uma ética planetária, dimensões éticas esquecidas ou perdidas das relações
todos os elementos e fatores desta mudança passam humanas, tais como a cooperação e a solidariedade.
por uma necessária reconstrução do homem em sua De acordo com Castells (2002, p.18):
integralidade. Implica, por conseguinte, na
construção de uma nova ética embasada no Juntamente com a revolução tecnológica, a
sentimento de pertencimento. transformação do capitalismo e a derrocada
do estatismo, vivenciamos no ultimo quarto
do século o avanço de expressões poderosas
4. A comunidade versus o estado-nacional de identidade coletiva que desafiam a
globalização e o cosmopolitismo em função
da singularidade cultural e do controle das
As comunidades materializam-se enquanto pessoas sobre suas próprias vidas e
realização da vida nos lugares de pertencimento. A ambientes.
comunidade é um lugar onde os seres humanos
podem se reconhecer uns nos outros, por estas e Neste sentido pertencer, ou ainda, continuar
outras razões, para Bauman (2003, p.7) “é sempre pertencendo, exige da comunidade um projeto
bom ter uma comunidade, estar numa comunidade.” bastante claro, ou mecanismos suficientemente
Não obstante o longo, lento e gradual eficazes para a transmissão intergeracional de
desenvolvimento das comunidades “[...] a redução significados e valores. A naturalidade desta
do poder aglutinador das vizinhanças, transmissão denota a força dos laços de
complementadas pela revolução dos transportes, pertencimento, minimizando os efeitos negativos da
para limpar a área, [possibilitou] o nascimento da busca por identidade sobre a espontaneidade das

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34 Carley Rodrigues Alves

relações pessoais e afetivas que se processam na continentes dariam origem a uma intensa e
comunidade. progressiva ocidentalização do mundo. Nos dias de
Do ponto de vista filosófico e prático, “[...] hoje, o que chamamos de globalização é o resultado de
perguntar 'quem você é' só faz sentido se você “um processo que se iniciou com a conquista das
acredita que possa ser outra coisa além de você Américas e a expansão dominadora do ocidente
mesmo [...]” (BAUMAN, 2003. p.25). Ou seja, a europeu sobre o planeta” (MORIN, 2001, p.39). Na
identidade é algo que passa a ser inventado como atualidade, o momento da globalização é fortemente
tentativa de preenchimento do vazio existencial, ou marcado por forças transnacionais que desintegram os
do vácuo ético, que desintegra os seres humanos na estados-nacionais em escala planetária. Segundo
modernidade. Bauman (1999, p.64)
As análises críticas de Bauman, permitem Uma vez que as nações-estados continuam
conceber a história da construção das identidades sendo as únicas estruturas para um balanço e
como diretamente associada ao projeto de estado as únicas fontes de iniciativa política efetiva,
nacional, que passaria a destruir a diversidade das a 'transnacionalidade' das forças erosivas
coloca-as fora do reino da ação deliberada,
singularidades em escala comunitária, supostamente proposital e potencialmente racional.
em nome da construção de um projeto de
homogeneidade nacional. De acordo com Bauman
(2005, p.26) “a idéia de 'identidade', e Sendo assim, os significados que a
particularmente de 'identidade nacional', não foi globalização assumem nos dias de hoje confirmam a
'naturalmente' gestada e incubada na experiência artificialidade e a fragilidade da identidade nacional, e
humana, não emergiu dessa experiência como um nos remetem a um debate comprometido com a busca
'fato de vida' auto-evidente.” A artificialidade do de soluções para crise de pertencimento, em escala
espírito nacional, ou da nacionalidade, sobre a vida local. Neste sentido, de acordo com Bauman (1999,
das pessoas, substituiria, enquanto projeto político, a p.34), “a globalização significa que o Estado não tem
história de comunidades cujo destino natural era o de mais o poder ou o desejo de manter uma união sólida e
pertencimento. inabalável com a nação.” A emergência do estado
nacional, para Bauman (1997), se deu paralelamente
A invenção da nação, acompanhada de perto
ao declínio da comunidade, combinando uma
da invenção de um sem número de tradições
narrativa política a um problema filosófico.
nacionais, não poderia preencher os requisitos de
proteção e segurança perdidos com a crise de
pertencimento e o fim das comunidades. A nação 5. Considerações Finais
precisaria do Estado enquanto simulacro em escala
ampliada das condições de vida em escala local.
Sendo assim, compreende-se que “[...] uma nação Em escala local, com relação às comunidades
sem Estado estaria destinada a ser insegura sobre o tradicionais, torna-se impossível discorrer sobre o seu
seu passado, incerta sobre o seu presente e duvidosa modo de vida desconsiderando o papel do sagrado, ou
de seu futuro, e a assim fadada a uma existência da religiosidade, enquanto dimensões que
precária.” (BAUMAN, 2005, p.27) fundamentam e põem em movimento um conjunto de
atitudes, comportamentos e práticas, nestas
Os cinco séculos de estabelecimento da
comunidades. De acordo com Bauman (1998, p.205) a
modernidade científica foram acompanhados de
religiosidade é um conceito de difícil definição. Para o
perto pela criação, expansão e consolidação dos
autor, o espírito pós-moderno poderá ser capaz de
estados-nacionais. No entanto, enquanto gestavam e
lançar um novo olhar sobre esta dimensão ontológica
se multiplicavam, a descoberta dos novos
vital, restaurando permanentemente sua licença de

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Identidade e pertencimento: um ensaio sobre os processos culturais na modernidade 35

residência: único fator seja capaz de dar conta da


O espírito pós-moderno, mais tolerante complexidade do 'mundo em que se vive' e abranger a
(visto que mais consciente de sua própria totalidade da experiência humana.” (BAUMAN,
fraqueza) do que seu antecessor e crítico
moderno, está sensatamente consciente da
1998, p.40).
tendência das definições a esconder tanto Ao longo de gerações, as comunidades rurais
quanto revelam e mutilar, ofuscar enquanto vêm conseguindo manter um padrão de transmissão
aparentam esclarecer e desenredar.
de saberes, práticas e valores, imprescindíveis a
consolidação do sentimento de pertencimento. Para
No instante em que vivemos, a busca por Cândido (1977), nenhuma sensação expressa melhor o
identidade nos tem levado rumo ao desconhecido. cotidiano dos “grupos rurais de vizinhança” do que o
Na tentativa de encontrar segurança em algum lugar, sentimento de pertencimento. Quem vive no campo
junto a um grupo, ou em alguém, empreendemos esta experimenta inconscientemente ou não, o
busca incessante. Para Bauman (1998, p.36), “[...] pertencimento. Semelhantemente, quem vai ao campo
'identificar-se com...' significa dar abrigo a um e se mostra disposto a interagir com as comunidades
destino desconhecido que não se pode influenciar, rurais pode entender e sentir os efeitos do
muito menos controlar.” Para o sociológico, esta pertencimento.
busca pode ser frustrante. A comunidade é a experiência do
pertencimento. É o território da segurança. Segurança
Lugares em que o sentimento de
que, de acordo com Bauman, produz ganhos, por um
pertencimento era tradicionalmente
investido (trabalho, família, vizinhança) são lado, e implica em perdas, por outro. Estas perdas se
indisponíveis ou indignos de confiança, de situam no domínio da liberdade e da identidade.
modo que é improvável que façam calar a Bauman (1999, p.22), também realiza uma reflexão
sede por convívio ou aplaquem o medo da sobre o papel do isolamento nas comunidades que o
solidão e do abandono. (BAUMAN, 1998,
autor considera como 'intimamente ligadas':
p.37)
As chamadas 'comunidades intimamente
Geralmente, a busca por identidade nos ligadas' de outrora foram produzidas e
lança a um mundo de relacionamentos virtualizado, mantidas, como agora podemos ver, pela
redes efêmeras de conexões aparentemente defasagem entre a comunicação quase
instantânea 'dentro' da pequena comunidade
ilimitadas, porém ainda assim insuficientes frente à [...] e a enormidade de tempo e despesas
crise de pertencimento. O empobrecimento dos necessárias para passar informação 'entre' as
relacionamentos reais produz frustração e solidão, localidades.
que forçam um movimento constante de busca de
novas identidades. Se os compromissos, incluindo A vida no campo é uma das saídas de
aqueles em relação a uma identidade particular, são emergência que sempre se apresentam como uma
'insignificantes' “[...], você tende a trocar uma possibilidade, em face da crise do mundo urbano.
identidade, escolhida de uma vez para sempre, por Neste sentido, para muitos, a alta pressão da certeza de
uma 'rede de conexões'.” (BAUMAN, 1998. p.37) um futuro urbano exige uma válvula de escape. O
Ainda de acordo com Bauman (1998, p.38), campo surge dessa forma como um mundo à parte. Um
“em nosso mundo de 'individualização' em excesso, mundo mais lento, mais calmo, mais saudável. Um
as identidades são bençãos ambíguas.” Oscilam mundo de proximidade afetiva e existencial. Na
entre o sonho e o pesadelo, e não há como dizer imagem de Buzzi (1992, p.36-37), temos que:
quando um se transforma no outro. Segundo o autor
[...] quando estamos junto à água, à terra, às
“é improvável que qualquer modelo com base num
árvores, aos animais, às pedras, não estamos

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36 Carley Rodrigues Alves

lado da mesa. Há no nosso estar-no-mundo outro, e promovendo um processo de


uma compenetração, um 'ser-com', um 'ser- descaracterização da noção de alteridade. Segundo o
em', um 'ser-dentro'.
autor, o aumento da liberdade individual pode
coincidir com o aumento da impotência coletiva na
A história das cidades sempre foi medida em que as pontes entre a vida pública e privada
acompanhada de perto pela vida no campo. Cidade e são destruídas ou, para começar, nem foram
campo formam um par dialético e não apenas termos construídas.
de uma dualidade, que se ligam por um continuum
mediatizado pela noção de pertencimento. No
entanto, falar de pertencimento nos dias de hoje Referências
parece suscitar a idéia de estagnação, em um mundo
onde a alta velocidade é o imperativo. Para muitos, BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São
pertencer significa, em última análise, sucumbir a Paulo: Paulus, 1997.
antigos determinismos espaciais e a territorialidades
__________. O mal-estar da pós-modernidade. Rio
tradicionais imemoriais ainda vigentes e
de Janeiro: Zahar, 1998.
experienciáveis no presente de certas comunidades.
Sendo assim, na atualidade, à medida que a __________. Globalização: as conseqüências
humanas. RJ: Zahar. 1999.
independência dos determinismos espaciais sugere o
surgimento de novas territorialidades, aniquilam-se __________. Em busca da política. Rio de Janeiro:
as possibilidades de pertencer, levando a Zahar, 2000.
desintegração da comunidade. __________. Comunidade: a Busca por Segurança
Segundo Bauman (2003, p.48), para que no Mundo. Atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003.
qualquer agregado humano possa se realizar
enquanto comunidade é preciso que este seja, __________. Identidade: entrevista a Benedetto
sobretudo, “[...] bem tecido de biografias Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge. Zahar Editor, 2005.
compartilhadas ao longo de uma história duradoura e BUZZI, A. R. Introdução ao Pensar: O Ser, o
uma expectativa ainda mais longa de interação Conhecimento, a Linguagem. Petrópolis: Vozes,
frequente e intensa.” Percebemos que é isso que 1992.
ocorre em diversas comunidades rurais, nas quais se CANCLINI, N. G. Cultura y Comunicación: entre lo
pode ter a sensação de que o tempo parou, ou, no global y lo local. Buenos Aires: Universidad Nacional
mínimo, que passa mais lentamente. Talvez, por isso de La Plata, 1997.
mesmo, fazendo alusão a Bauman, ainda não atingiu CÂNDIDO, A. Parceiros do Rio Bonito. 4.ed. São
a maturidade ou a velocidade na qual se sente, em Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.
plena intensidade, os efeitos da 'modernidade CASIMIR, M. J. The dimensions of territoriality: an
líquida', ou ainda, do 'mal-estar da pós- introduction. In: M. J. Casimir &A. Rao (org).
modernidade'. Mobility and territoriality. New York: Berg, 1992.
Para Bauman (2000, p.10), “ 'ser em CASTELLS, M. O poder da identidade. A era da
comunidade' opõe-se permanentemente a liberdade informação: economia, sociedade e cultura. Volume 2.
individual.” Nestes termos, as comunidades São Paulo: Paz e Terra, 2002.
experimentam na atualidade incertezas e CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a
inseguranças que colocam em contínua modificação uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins
as identidades social, cultural, religiosa etc. A Fontes, 1997.
emergência da liberdade individual desintegra a ELIADE, M. Imagens e símbolos: ensaio sobre o
identidade coletiva, levando a destruição final do simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins

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Identidade e pertencimento: um ensaio sobre os processos culturais na modernidade 37

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EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA RELAÇÃO CONSTRUTIVA ENTRE


A ESCOLA E A SOCIEDADE
Environmental Education: a constructive interrelationship between school and society

Manoela Patrícia de Farias1


Paulla Dayanna Farias Santos 2

RESUMO ABSTRACT

Neste artigo aborda-se a questão de se This article approaches the question of the
trabalhar a educação ambiental nas environmental education in educative
instituições de ensino com o intuito de institutions with a intention to help our
ajudar nossos alunos na preservação do pupils in the preservation of the place where
meio em que vivem, interagindo-se com a they live and interact with the society, thus
sociedade e favorecendo assim a favoring the learning, contributing for the
aprendizagem, contribuindo para a formation of the pupils as critical citizen and
formação do aluno como cidadão crítico e to be capable to formulate its proper
capaz de formular suas próprias opiniões e opinions and conceptions, regarding its
concepções a respeito do seu meio social e social and environment context, in the
na construção de uma sociedade que resgate construction of a society that rescues the
a cidadania e ajude na melhoria da qualidade citizenship and aid to improvement of the
de vida dos alunos. quality of life of the pupils.

Palavras-chave: Educação Ambiental.


Keywords: Environmental Education.
Sociedade. Metodologia. Escola.
Society. Methodology. School.

1
Graduada em Pedagogia e Pós-Graduada em Docência do Ensino Superior pelo Instituto de Ensino
Superior Santa Cecília - IESC – manoelapatricia@hotmail.com
2
Graduanda em Biologia e Pós-Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade Estadual de Alagoas
- UNEAL – daya-paulla@hotmail.com
40 Manoela Patricia de Farias & Paulla Dayanna Farias Santos

1. Introdução não apenas pelo conhecimento que tem da matéria.


Dessa forma, deve buscar meios para que o mesmo
possa refletir sobre o que acontece a sua volta, em
A partir das reflexões deste artigo,
torno dos acontecimentos ambientais da sociedade em
constataremos que a escola é o espaço social e o local
que estão inseridos.
onde o aluno dará seqüência ao seu processo de
socialização. É um ambiente onde o aluno encontra
meios para exercer as mudanças que acontecem no 2. Conhecendo a Educação Ambiental
seu convívio social. Desta forma, a escola deve
proporcionar meios para que os alunos possam
Atualmente, a humanidade tem adotado
interagir com a comunidade em geral, propondo aos
meios de transformação e desenvolvimento de
professores que os acompanhem no processo de
extremamente cruéis no que se refere à exploração da
adquirir novos saberes de forma significativa,
natureza e do homem pelo homem. É muito difícil
ajudando-o a viver melhor no seu meio, interagindo-
acreditar em um mundo solidário se não atuamos de
se e valorizando sua cultura e relacionando-se com as
forma adequada para esta transformação. Se
outras regiões.
quisermos construir um mundo melhor para as
Cabe a instituição escolar, depois da família, gerações futuras, devemos começar a mudar nossas
educar cidadãos aptos a decidir e atuar na realidade atitudes agora, de forma que esse futuro seja
sócio-ambiental, comprometido com o bem estar construído no momento presente. Visando estes novos
individual da sociedade como um todo. É muito mais cenários, a escola como fator que contribui para a
que educação mecânica, onde só são vistos conceitos formação do cidadão, deve estar apta a conscientizá-
e não se desenvolve atitudes e consciência crítica, los de sua responsabilidade com a sociedade e com o
visto que comportamentos dizem mais que palavras. meio ambiente. Partindo desta premissa, a Educação
Com o livro “Primavera Silenciosa” em Ambiental deve ter um papel importante na formação
1962 de Rachel Carson, deu-se o primeiro alerta em do individuo, uma vez que o desenvolvimento da
relação aos efeitos danosos das diversas ações sociedade com relação às questões socioambientais
humanas sobre o meio ambiente. Posteriormente, a estão relacionadas e interligadas a mesma.
conferência em Estocolmo, na Suécia, 1972, daria O marco histórico da Educação ambiental, de
um alerta decisivo para uma tomada de consciência acordo com Fritzsons & Mantovani (2004), situa-se na
dos problemas ambientais ocorridos na sociedade. Conferência das Nações Unidas sobre o meio
Ao se tornar cada vez mais clara a natureza dos fatos ambiente humano, em Estocolmo, 1972. Decorrente
ocorridos, governantes definiram que a saída para os de uma recomendação desta conferência, a UNESCO
problemas ambientais em escala mundial seria a (Organização das Nações Unidas para educação,
educação, derivando-se deste cenário o termo ciência e cultura) e o PNUMA (Programa das Nações
Educação Ambiental, que em última análise Unidas para o Meio Ambiente) lançaram o PIEA
representa o nosso afastamento da natureza. Sendo (Programa Internacional Sobre Educação Ambiental),
assim, os processos educativos não se resumem ao em 1975. A partir daí surge nas escolas a chamada
âmbito escolar. Ao se relacionarem com um Educação Ambiental (EA).
ambiente natural, o uso de ferramentas
Cinco anos após Estocolmo, em 1977,
transformadoras abre novos horizontes para uma
acontece em Tbilisi, na Geórgia, a Conferência
pedagogia que vise desenvolver a percepção de
Intergovernamental sobre Educação Ambiental. Isto
alunos e professores.
inicia um processo global orientado para criar as
O fundamental, é que cada educador procure condições para formar uma nova consciência sobre o
educar seu aluno pelo que ele é, por suas atitudes, e valor da natureza e para reorientar a produção de

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Educação Ambiental: uma relação construtiva entre a escola e a sociedade 41

conhecimentos baseada nos métodos da atitudes mais urgentes, pois o futuro depende do tipo
interdisciplinaridade e nos princípios da de uso que a mesma vem fazendo com os recursos
complexidade. Uma outra iniciativa marcante e que naturais disponíveis. À medida que a humanidade
teve ampla repercussão foi a Carta da Terra, aumenta sua capacidade de intervir na natureza, fica
resultado da mobilização e articulação da sociedade cada vez mais difícil uma solução para a questão
civil que se inicia a partir da publicação de “Nosso ambiental, trazendo conseqüências indesejáveis.
Futuro Comum”, em 1987, cuja primeira versão foi Os problemas ambientais não se restringem
discutida na ECO- 92, durante o Fórum Global de apenas à proteção da vida, mas também à qualidade de
ONGs. (JACOBI, 2005). vida. Para Souza (2003), esta ordem social emergente,
No âmbito da legislação, o antigo Conselho que pretende responder à crise da ordem social global
Federal de Educação (CFE) emitiu o Parecer 226/87, a partir da construção de novos paradigmas nas
enfatizando que a Educação Ambiental deve ser ciências, na sociedade, na educação, na ética, entre
iniciada, na escola, numa abordagem outros âmbitos, coloca o desafio de encontrar novos
interdisciplinar, levando a população a um caminhos para a produção e apropriação dos
posicionamento em relação a fenômenos ou conhecimentos. A educação se consolida além dos
circunstâncias do ambiente. A lei 9.795 de 27 de abril espaços educativos tradicionais e as necessidades de
de 1999, que institui a Política Nacional de Educação aprendizagem avançam além dos espaços educativos
Ambiental, viria ter como um de seus princípios “o formais, para manifestarem-se como uma necessidade
pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, na de educação permanente ao longo de toda a nossa vida.
perspectiva da inter, multi e transdisciplinaridade”. Para se falar em Educação Ambiental,
Por fim, meio ambiente passa a ser um dos Temas necessariamente devemos falar de atitudes, de cultura,
Transversais dos Parâmetros Curriculares de qualidade de vida, de respeito, de ética, de
Nacionais, que, em seu texto introdutório, cidadania, de sociedade, de natureza, de recursos
recomenda que sejam trabalhados de forma naturais, de água, de energia, de ar, de terra, enfim,
interdisciplinar nos currículos escolares, (ADAMS, poderíamos continuar por um bom tempo listando a
2006). abrangência do assunto Educação Ambiental. Nosso
As expectativas geradas com os avanços na olhar sobre todos estes aspectos deve ser um olhar
Rio-92 se reduziriam significativamente antes e após abrangente e integrador, ao invés de fragmentado e
a mais recente Cúpula do Mundial sobre Meio reducionista. Além disto, precisamos olhar para nós,
Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – Rio + 10 para o outro e para o meio com uma nova maneira de
–, realizada em 2002 em Johanesburgo, onde não se ver, porque desde sempre fomos educados para
concretizaram os objetivos de aprofundar o debate enxergar o meio ambiente como um grande “armazém
em torno do desenvolvimento sustentável e de utilidades” (ADAMS, 2006).
praticamente não foram acordados novos passos, Os acontecimentos que envolvem o meio
nem no plano teórico, nem nas medidas práticas ambiente estão relacionados ao desenvolvimento
(JACOBI, 2005). social. Desta forma, torna-se urgente a necessidade de
Mesmo diante de tantos fatos ocorridos, com mudanças de comportamento e de atitudes, para
a evolução dos meios tecnológicos, a questão conscientizar a população da construção de um mundo
ambiental está se tornando cada vez mais mais justo, digno e ecologicamente equilibrado.
preocupante, pois esse avanço tem conduzido Contudo, cabe a escola proporcionar essas possíveis
processos de contaminação e poluição, onde os mudanças, cultivando comportamentos e oferecendo
recursos naturais estão se tornando cada vez mais condições para que o educando compreenda os fatos
escassos. Visando isto, a humanidade precisa buscar sociais e humanos, de forma crítica e solidária,

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42 Manoela Patricia de Farias & Paulla Dayanna Farias Santos

cultivando atitudes que possibilitem uma processo instituinte de novas relações dos seres
socialização construtiva, justa e ambientalmente humanos entre si e deles para com a natureza.
sustentável. A instituição escolar, vista como um
instrumento para a formação do ser humano vem se
3. Relação construtiva – escola x sociedade dedicando a formação e a educação da sociedade em
geral. Ela, por sua vez, tem a prioridade no papel da
formação do indivíduo, seja do ponto de vista moral
A escola é um dos espaços que contribuem ou ético, sua importância repercute em todos os níveis,
na formação do cidadão, mas, a educação de cada no âmbito social. A relação entre a escola e a sociedade
cidadão não compete apenas à escola, e sim, também, é alvo de transformação contínua. O indivíduo deve
da participação e interação da família e a interação ter consciência da sua responsabilidade
destes com toda a sociedade. Estes níveis de socioambiental e dos fatores que vem produzindo
interação favorecem a aprendizagem e contribuem alterações ao meio ambiente, no entanto, a escola
para a formação do aluno como cidadão crítico e ainda precisa melhorar muito no que se refere ao
capaz de formular suas próprias opiniões e processo de formação cidadã dos alunos.
concepções a respeito do seu meio social e na
Nos currículos escolares, a principal utilidade
construção de uma sociedade que resgate a cidadania
da Educação Ambiental, de acordo com os Parâmetros
e contribua na melhoria da qualidade de vida dos
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), é contribuir
alunos. Esta interação deve ser discutida, pois ela
para formação de cidadãos conscientes, capazes de
contribui bastante para a formação do indivíduo na
decidirem e atuarem sobre a realidade socioambiental
sociedade.
de um modo mais abrangente, com a vida, com o bem
Cabe à escola, formar novas gerações em estar de cada um e da sociedade, em nível local e
termos de acesso à cultura socialmente valorizada, de global. Para isso é necessário que mais do que
formação do cidadão e de constituição do sujeito informações e conceitos, a escola se proponha a
social, pois é na escola, que o indivíduo recebe as trabalhar com atitudes, com formação de valores com
informações necessárias para educá-los, o ensino e aprendizagem de habilidades e
contribuindo na sua formação e no seu convívio com competências. E esse é um grande desafio para a
o meio social, focando a realidade para que saiba educação formal.
lidar com as situações da sociedade em que estão
No entanto, enquanto espaço de convivência
inseridos.
capaz de favorecer potencialmente o exercício da
Para Souza (2003), o processo educativo cidadania, a instituição escolar possui formas de
deverá ser estruturado no sentido de superar a visão organização, normas e procedimentos que não são
fragmentada da realidade pela construção e meramente aspectos formais de sua estrutura, mas se
reconstrução do conhecimento sobre ela, num constituem em mecanismos pelos quais podemos
processo de ação e reflexão, de modo dialógico com permitir e incentivar, ou ao contrário, inibir e restringir
os sujeitos envolvidos. Deve, por conseguinte, a forma de participação de todos os membros da
respeitar a pluralidade e diversidade cultural, comunidade escolar. Nesse sentido, uma escola que
fortalecer a ação coletiva e organizada, articular pretenda atingir, de forma gradativa e consistente,
aportes de diferentes saberes e fazeres e proporcionar crescentes índices de democratização de suas relações
a compreensão da problemática ambiental em toda a institucionais não pode deixar de considerar o
sua complexidade. A educação assim concebida visa compromisso de participação e atuação de forma
possibilitar a ação em conjunto com a sociedade civil construtiva, colocando em prática todos esses
organizada e, sobretudo, com os movimentos aspectos. Com relação ao alunado, a escola como
sociais, numa visão da educação ambiental como

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Educação Ambiental: uma relação construtiva entre a escola e a sociedade 43

espaço de convivência social, se torna um centro de décadas convivendo com o reducionismo cientifico, a
referência pessoal que marca os sujeitos que por ali idéia da interdisciplinaridade foi elaborada visando
passam, identificando-a e tornando-a única. restabelecer um dialogo entre as diversas áreas do
Partindo da idéia citada por Jacobi (2003), conhecimento cientifico (ROÇO, 2003). Sendo assim,
que toma como referência o fato de a maior parte da o educador deve buscar destacar a Educação
população brasileira viver em cidades, observa-se Ambiental, explicando-a de forma detalhada, para
uma crescente degradação das condições de vida, possibilitar uma compreensão mais ampla do fazer
refletindo uma crise ambiental. Isto nos remete a uma educacional aliando-o aos aspectos ambientais, da
necessária reflexão sobre os desafios para mudar as vida, do cotidiano e da realidade. Ele deve apresentar
formas de pensar e agir em torno da questão aos alunos, a partir de um roteiro pedagógico
ambiental numa perspectiva contemporânea. A relacionado à Educação Ambiental, conteúdos
postura de dependência e de desresponsabilização da alinhados com as diretrizes nacionais do ensino da
população decorre principalmente da educação ambiental, destacando os quatro pilares
desinformação, da falta de consciência ambiental e conceituais que servem de referencial, ou temas
de um déficit de práticas comunitárias baseadas na geradores, de forma que sejam capazes de avaliar sua
participação e no envolvimento dos cidadãos. Desta capacidade de modificar efetivamente a realidade a
constatação, é possível propor uma nova cultura de sua volta, sensibilizando-os e motivando-os a cumprir
direitos baseada na motivação e na co-participação com o seu compromisso ético e ambiental, ou seja,
da gestão ambiental. com a sua responsabilidade diante das consequências
de suas próprias escolhas individuais e coletivas.
Contudo, pode-se dizer que grande parte dos
problemas ambientais estão relacionados às Com relação à Educação Ambiental, os PCN's
irresponsabilidades da sociedade. Porém, muitos (BRASIL, 1997) afirma que o trabalho deve ser
acusam a escola como responsável pela falta de desenvolvido a fim de ajudar os alunos a construírem
formação do indivíduo, no que diz respeito às uma consciência global das questões relativas ao meio
questões ambientais e a ética, tornado-se para que possam assumir posições afinadas com
incompetente na formação de indivíduos que valores referentes à sua proteção e melhoria. Para isso
poderiam contribuir para construção de uma é importante que possam atribuir significado àquilo
sociedade capaz de resgatar a cidadania, em face da que aprendem sobre a questão ambiental. E esse
melhoria da qualidade de vida. No entanto, é preciso significado é resultado da ligação que o aluno
compreender que esta formação não é de estabelece entre o que aprende e sua realidade
responsabilidade única da escola e também da cotidiana. Também é o resultado da possibilidade de
participação e interação desta com a sociedade. estabelecer ligações entre o que aprende e o que já
conhece, ou seja, da possibilidade de utilizar o
conhecimento em outras situações. Nesse sentido, as
4. A preparação do educador diante da Educação situações de ensino devem se organizar de forma a
Ambiental proporcionar oportunidades para que o aluno possa
utilizar o conhecimento sobre Meio Ambiente para
A principal característica da Educação compreender a sua realidade e atuar sobre ela. Ao
Ambiental é a interdisciplinaridade. No final do proporcionar essa oportunidade ao aluno, o mesmo
século XIX, a preocupação com uma educação desenvolverá habilidades e competências
ambiental surge pela necessidade de dar uma relacionadas ao ensino-aprendizagem das questões
resposta a fragmentação causada pela concepção socioambientais.
positivista que prevalecia nas ciências, repercutindo
Roço (2003), ainda afirma que na escola, se o
nas subdivisões de seus vários ramos. Após longas
professor conhece essa dinâmica de construção do

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44 Manoela Patricia de Farias & Paulla Dayanna Farias Santos

conhecimento, ele poderá intervir de modo a facilitar novas gerações em termos de acesso à cultura
e ou ampliar o caminho de seus alunos. A sua ação socialmente valorizada, de formação do cidadão e de
como docente poderá priorizar a descoberta, a constituição do sujeito social. Muitas instituições de
dúvida, as perguntas, as formulações e a elaboração ensino desenvolvem apenas uma metodologia teórica,
intelectual, evitando, com isso, a memorização, a no que se refere ao ensino da Educação Ambiental.
repetição de conteúdos e de significados. Porém, Para modificar essa metodologia, buscam-se meios
vale ressaltar que o educador deve propor uma alternativos, dinâmicos e diversificados, de forma que
metodologia diferenciada e diversificada de forma venha levar o alunado a participar na construção do
que venha facilitar e favorecer o desenvolvimento do seu conhecimento e a partir deste, intervir,
educando com as questões relacionadas à sociedade promovendo modificações no meio socioambiental.
e ao meio ambiente. Para que assim, sejam Ao se perceber como agente transformador, em face
amenizados os problemas e as dificuldades dos problemas ligados ao meio ambiente, o aluno será
relacionadas aos problemas ambientais. capaz de desenvolver uma visão global necessária a
Dessa forma, cabe aos professores, através sua participação responsável nas decisões de melhoria
de uma prática interdisciplinar, traçarem juntos da qualidade de vida, do meio natural, social e cultural
novas metodologias que favoreçam a de sua localidade.
implementação da Educação Ambiental, sempre Segundo Souza (2003), ao se trabalhar com a
considerando o ambiente imediato e usando exemplo Educação Ambiental, seria possível sintetizar as
de problemas ambientais atualizados. É necessário, dimensões do processo de capacitação como a
portanto, introduzir mais criatividade nas novas interrelação dinâmica das dimensões pessoal e ética,
metodologias, abandonando os modelos tradicionais com a dimensão socioambiental e profissional.
e usando novas alternativas. Nesse contexto, o Quando planejamos trabalhar com a Educação
professor é a chave para mediar o processo de Ambiental, visualizamos sua importância para a
aprendizagem. Mas, o método, selecionado pelo melhoria da qualidade da educação e para a construção
professor, depende do que ele aceita como objetivo da “cidadania ambiental” capaz de definir e construir
da Educação Ambiental, seu interesse e sua formação novos cenários futuros, que incluam a possibilidade da
construída (ZUCCHI & RADOS, 2002). justiça social e a felicidade das futuras gerações.
Dentre as questões relacionadas à Por isso, é preciso entender a Educação
preparação do educador diante da Educação Ambiental como uma atividade motivadora de um
Ambiental, convém dizer que muitos se limitam processo maior, a saber: o de fazer com que os alunos
apenas as questões teóricas, deixando de lado a que participam de projetos de Educação Ambiental
pesquisa, a socialização, a interação e outros meios desenvolvam a ética de um cidadão crítico e
que os levem a compreensão mais ampla do fazer participativo. Que os mesmos se tornem capazes de
educacional aliando-os aos aspectos ambientais de assumir suas responsabilidades sociais e ambientais
forma que venha despertar no aluno sua capacidade para o exercício futuro da cidadania (SOUZA, 2003).
de modificar a realidade a sua volta, incentivando-o e Deste contexto, reafirma-se a ideia de Jacobi (2003),
motivando-o a cumprir com seu compromisso ético e que defende que os professores(as), para atenderem as
ambiental. necessidades dos alunos, devem estar cada vez mais
preparados para reelaborar as informações que
recebem, e dentre elas, as ambientais, a fim de
5. Ferramentas para modificar o ensino da
poderem transmitir e decodificar para os alunos a
Educação Ambiental nas instituições de ensino
expressão dos significados sobre o meio ambiente e a
ecologia nas suas múltiplas determinações e
À escola foi delegada a função de preparar as intersecções.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p39-46, jan/jun. 2010


Educação Ambiental: uma relação construtiva entre a escola e a sociedade 45

Segundo Zabala (1998), numa abordagem possível modificar e tentar solucionar os problemas
construtivista, as sequências didáticas são ambientais encontrados na sociedade.
organizadas no sentido de contemplar atividades que Convém ressaltar que a escola e a sociedade
permitam: determinar os conhecimentos prévios de devem buscar meios de interação, para que juntos, os
cada aluno; abordar os novos conteúdos de forma indivíduos possam fazer uma auto-avaliação sobre
significativa, funcional e adequada ao nível de seus atos e, assim, tentar solucionar os problemas
desenvolvimento dos alunos; criar zonas de socioambientais. Sabemos que a escola tem
desenvolvimento proximal e nelas intervir; provocar fundamental importância na formação do ser humano
processos cognitivos e atividade mental do aluno e, e, assim como a família e toda a sociedade, ela deve
ainda, mobilizar o interesse dos alunos e estimular a formar cidadãos críticos, conscientes de seus atos,
auto-estima e o auto-conceito. O professor, a partir solidários e aptos a viver em sociedade como cidadãos
de uma situação problematizadora, irá mobilizar os dignos de combater de frente os problemas
alunos para que a aprendizagem se processe e se socioambientais existentes.
desenvolva, contribuindo para que eles se sintam
cada vez mais autônomos em suas aprendizagens.
6. Considerações Finais
Torna-se cada vez mais necessário
consolidar novos paradigmas educativos centrados
na preocupação por iluminar a realidade a partir de Na perspectiva de que com a interação entre a
outros ângulos, e isto supõe a formulação de novos escola e a sociedade os problemas ambientais possam
objetos de referência conceituais e principalmente a ser amenizados, busca-se despertar nos indivíduos o
transformação de atitudes (JACOBI, 2004). conhecimento e a prática da Educação Ambiental com
um método dinâmico e objetivo. Para tanto, os
Então, partindo do pressuposto de Roosevelt
trabalhos relacionados a assuntos que dizem respeito
(2003), ao se propor qualquer processo educacional,
aos problemas socioambientais são de grande valia.
apenas a compreensão do conteúdo não é suficiente.
Neste contexto, são capazes de interligar a
Isto significa que o educador deve preocupar-se com
comunidade escolar à sociedade, tanto com uma visão
a forma de transmissão desse conhecimento, que
local quanto global. Mesmo assim, são notórios os
compreenda a disponibilidade de textos pertinentes
obstáculos colocados e que impedem sua realização,
ao assunto; a informação oral passada aos educandos
principalmente quando se alega a impossibilidade de
(submetida à interpretação do professor); a
atingir tal público, pois são leigos em relação à
percepção e apreensão do assunto pelos educandos e
Educação Ambiental e sendo assim deveria haver um
a capacidade de produção de textos sobre o assunto
embasamento maior antes de desenvolver qualquer
pelos próprios educandos. Logo, vale dizer que, para
atividade.
construir uma “cidadania ambiental” que considere
também a construção de novos valores, habilidades e Contudo, temos que salientar que essas
atitudes, é necessário enfrentar uma situação de mudanças devem ser de valores e muito mais
dupla natureza: ética e cognitiva. profundas e subjetivas do que simplesmente a
transformação local. As causas da degradação
Diante da realidade encontrada nas escolas,
ambiental e dos problemas sociais locais vão assim, se
quanto ao ensino-aprendizagem, e na sociedade,
apresentando aos olhos das pessoas
quanto às atitudes e o desenvolvimento, no que se
socioambientalmente envolvidas como derivadas da
refere às questões ambientais, nota-se que grande
ausência de atitudes diferenciadas, necessárias
parte atua de forma errada e consciente do erro.
enquanto ferramentas de proteção e conservação do
Entretanto, se requer a necessidade de se trabalhar
meio ambiente. Pretendemos com isso, suscitar muito
essas questões com os cidadãos para que seja
mais do que a transformação de comportamentos

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p39-46, jan/jun. 2010


46 Manoela Patricia de Farias & Paulla Dayanna Farias Santos

mecânicos, mas uma transformação baseada nas Ambiental em Ação. nº 19, 2006.
atitudes. SOUZA, Roosevelt Fideles de. Uma experiência em
Desta forma, uma das condições que educação ambiental: formação de valores
consideramos importante para o sucesso e alcance socioambientais/Roosevelt Fideles de Souza.
dos objetivos, é o professor realizar atividades que Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
mobilizem todo o corpo discente e demais membros Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Serviço
social. orientador: Denise Pini Rosalem da Fonseca. -
da escola, pois o sucesso de um trabalho deste tipo
Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Serviço
depende da participação e da interação de todos na Social, 2003.
escola.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental.
A forma de atingir o sucesso deve ser uma Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente,
aposta em metodologias diversificadas. As suas saúde/Secretaria de Educação Fundamental. –
características, tais como a interdisciplinaridade, a Brasília : MEC/SEF, 1997.
utilização de situações-problemas como tema ROÇO, M. C. Interdisciplinaridade e transversalidade
gerador das discussões, o planejamento das etapas, o como dimensões de ação pedagógica. Revista
esforço compartilhado por todos na busca e no Urutágua. Maringá, nº 07, 2003.
alcance do produto final, entre outras, se mostram
ZUCCHI, O.J & RADOS, G. J. V., Educação
capazes de diminuir as dificuldades e as distâncias Ambiental e os Parâmetros Curriculares: Um estudo
que existem entre toda a comunidade escolar. das concepções e práticas dos professores do ensino
Por fim, temos que lembrar que a educação fundamental e médio em Toledo no Paraná. Odair José
ambiental é um processo e, como tal, não deve ser Zucchi e Gregório Jean Varvakis Rados. Educere:
interrompido no primeiro obstáculo. Os resultados Revista da Educação. vol. 2, n. 1: Jan./Jun. 2002.
vêm a médio ou longo prazo, através de atividades SOUZA, Roosevelt Fideles de. Uma experiência em
cujo fluxo processual e ininterrupto, com o tempo, educação ambiental: formação de valores
culminem com o desenvolvimento de uma socioambientais/Roosevelt Fideles de Souza.
consciência crítica de respeito ao próximo e ao meio Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Serviço
ambiente.
social. orientador: Denise Pini Rosalem da Fonseca. -
Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Serviço
Referencias Social, 2003.
JACOBI, Pedro. Educação Ambiental, Cidadania e
Sustentabilidade. In: Cadernos de Pesquisa. nº 118:
FRITZSONS, G. & MANTOVANI, L.E. A 189-205. São Paulo: Autores Associados, 2003.
Educação Ambiental e a Conservação da Natureza.
Revista Educação Ambiental em Ação. Curitiba, ZABALA, Antoni. A Prática Educativa: Como
n.10, 2004. Ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.
JACOBI, Pedro. Educar para a Sustentabilidade:
complexidade, reflexividade, desafios. Revista
Educação e Pesquisa – vol. 31/2 – maio – agosto,
FEUSP, 2005.
JACOBI, Pedro. Educação Ambiental, Cidadania e
Sustentabilidade. Cadernos de Pesquisa. nº 118:
189-205. São Paulo: Autores Associados, 2003.
ADAMS, Berenice Gehlen. Educação Ambiental e
interdisciplinaridade no Contexto Educacional:
Algumas Considerações. Revista Educação

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Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p47-63, jan/jun. 2010 47

OCUPAÇÃO E EVOLUÇÃO URBANA DO BAIRRO DO RIO


VERMELHO, SALVADOR-BA
Occupation and urban evolution in the neighbourhood of Rio Vermelho, Salvador-BA

Dante Severo Giudicci 1

RESUMO ABSTRACT

Este artigo consiste no estudo sobre a This paper deals about Rio Vermelho suburb
ocupação e evolução do Bairro do Rio involving its occupation and evolution at the
Vermelho, na cidade do Salvador, à partir de city of Salvador, capital of Bahia state, from
uma abordagem histórica, procurando fazer a historic point of view, looking to make a
um diagnóstico dos efeitos causados pela diagnosys caused by its urbanization itself,
urbanização. Objetiva-se compreender o starting from the suburb space analyses,
processo evolutivo do espaço urbano, looking in to understand the commerce
através da análise espacial do bairro, influence and its kind of services used in the
entender a influência do comércio e serviços urbanization process and to pinpoint the
no processo de urbanização, e destacar a evolution acquired by the suburb itself,
evolução das funções adquiridas, pelo identifying its actors responsible by the
Bairro, identificando os atores da produção production of the space and shown up the
do espaço, ressaltando o processo e as process itself and its characteristics as well.
formas espaciais.
Keywords: Urban Occupation. Urban
Palavras-chave: Ocupação Urbana. Development. Historical Approach. Rio
Evolução Urbana. Abordagem Histórica. Vermelho. Salvador-BA.
Rio Vermelho. Salvador-BA.

1
Prof. Assistente do IFCH/UCSAL - Doutorando em Geografia NPGEO/UFS.
48 Dante Severo Giudicci

1. Introdução sociais concretos, e não um mercado


invisível ou processos aleatórios atuando
sobre um espaço abstrato. A ação destes
O presente trabalho apresenta um estudo agentes é complexa, derivando da dinâmica
sobre a ocupação e evolução urbana do Bairro do Rio de acumulação de capital, das necessidades
mutáveis de reprodução das relações de
Vermelho, localizado na zona sul da cidade do
produção, e dos conflitos de classe que dela
Salvador, na Bahia (Figura 1). Uma abordagem emergem. (CORRÊA, 1989).
investigativa, a partir da história do lugar associada a
análise geográfica acerca da ocupação da área,
Como objetivos específicos temos: entender a
efeitos causados pela urbanização, e a evolução deste
influência do comércio e serviços como fator do
processo, evidenciando a capacidade social e
processo de urbanização do Bairro; destacar a
econômica que este Bairro desempenha na cidade.
evolução das funções adquiridas pelo Bairro;
O Objetivo geral desta pesquisa é identificar os atores da produção do espaço urbano do
compreender o processo evolutivo do espaço urbano Rio Vermelho, e ressaltar o processo e as formas
a partir da análise espacial do bairro do Rio espaciais do referido bairro.
Vermelho. O espaço urbano é definido como:
A metodologia utilizada para atingir os
[...] fragmentado, articulado, reflexo, objetivos propostos foi pesquisa bibliográfica em
condicionante social, cheio de símbolos e livros, artigos, dissertações e banco de dados
campos de lutas – é um produto social, disponíveis na Internet, bem como entrevistas com a
resultado de ações acumuladas através do população local.
tempo, e engendradas por agentes que
produzem e consomem espaço. São agentes Foi utilizado as categorias analíticas
sugeridas por Milton Santos (1985) que permitem
entender a evolução das realidades parciais
espacializada, forma, função, estrutura e processo.

Forma, função, estrutura e processo são


quatro termos disjuntivos associados, a
empregar segundo um contexto do mundo de
todo dia. Tomados individualmente
representam apenas realidades parciais,
limitadas, do mundo. Considerados em
conjunto, porém, e relacionados entre si, eles
constroem uma base teórica e metodológica a
partir da qual podemos discutir os fenômenos
espaciais em totalidade. (SANTOS, 1985).

Através do método dedutivo, tentaremos


mostrar as diferentes importâncias atribuídas ao bairro
do Rio Vermelho, no transcurso histórico, bem como a
posição e situação dos atores sociais diante da
evolução da paisagem do bairro, desencadeada por um
processo que reúne fatores de ordem econômica e
cultural. Acreditamos que as mudanças e as
contradições ocorridas no bairro, seguem uma lógica
Figura 1 – Localização
Fonte: Porto Filho.(1991). global, a do capitalismo globalizado, que transforma

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p47-63, jan/jun. 2010


Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 49

tudo em mercadoria, inclusive o espaço. sociais excluídos.


O bairro do Rio Vermelho é sem dúvida um Na terceira fase da pesquisa se procurou
dos espaços públicos que se constitui um dos bens enfatizar a dinâmica sócio-espacial contemporânea, a
patrimoniais da cidade de Salvador, sendo este o qual se explica pelos usos inseridos no bairro do Rio
motivo de sua escolha como objeto deste estudo. Vermelho.
Acreditamos que o entendimento da O bairro do Rio Vermelho é observado como
complexidade histórica que veio a formar este bairro uma das áreas mais dinâmicas e importantes da cidade
nos fornecerá base necessária para a compreensão do de Salvador, pois sofreu grandes transformações, e
processo de formação do espaço urbano. absorveu uma grande quantidade de investimentos,
A metodologia deste trabalho consiste em sobretudo privados, no que se refere a exploração
um estudo de caso que se subdivide em três fases. Na imobiliária, bem como no comércio, onde a partir da
primeira fase abordaremos a ocupação e formação do década de 1980 houve uma proliferação de bares,
bairro do Rio Vermelho, fazendo um levantamento restaurantes e lojas diversas transformando o perfil do
histórico da área citando documentos escritos e mesmo de bairro essencialmente residencial em bairro
iconográficos. de lazer/boêmio.
Na segunda fase procuramos discorrer sobre Na esfera acadêmica o bairro do Rio
os principais agentes produtores do espaço, locais e Vermelho vem ganhado bastante destaque,
não-locais e indicaremos através de exemplos os comprovado pelos inúmeros trabalhos realizados por
métodos e mecanismos utilizados por esta classe arquitetos, planejadores, geógrafos, historiadores e
para a reprodução do espaço. engenheiros. Assim o bairro está muito relacionado a
história da cidade. Tem grande significado para quem
A complexidade da ação dos agentes sociais
ali mora, e representa um ponto de atração na cidade,
inclui práticas que levam a um constante processo de
com seus 'points' que atraem moradores de vários
reorganização espacial que se faz via incorporação
locais da cidade.
de novas áreas ao espaço urbano, densificação do uso
do solo, deterioração de certas áreas, renovação Outra característica interessante é a
urbana, relocação diferenciada da infra-estrutura e 'fragmentação' que reflete, dentre outras coisas, certa
mudança, coercitiva ou não, do conteúdo social e estratificação, assim, dentro do mesmo, existem áreas
econômico de determinadas áreas da cidade. É com denominação distintas, tais como 'Vila Mattos'
preciso considerar, entretanto que, a cada (mais carente), 'Parque Cruz Aguiar', 'Lucaia' (mais
transformação do espaço urbano, este se mantém elitizadas), e 'Cardeal da Silva'. Isso decorre da
simultaneamente fragmentado e articulado, reflexo e fragilidade da delimitação dos bairros em Salvador.
condicionante social, ainda que as formas espaciais e Depois dessa abordagem, necessária para o
suas funções tenham mudado. A desigualdade sócio- entendimento da dinâmica espacial do bairro,
espacial também não desaparece: o equilíbrio social trataremos de definir aspectos que nos levarão as
e da organização espacial não passa de um discurso nossas conclusões, pautadas nas questões levantadas
tecnocrático, impregnado de ideologia. para a pesquisa.
Quais são esses agentes sociais que fazem e
refazem a cidade? Que estratégias e ações concretas 2. Histórico da ocupação e evolução urbana
desempenham no processo de fazer e refazer a
cidade? Estes agentes são os seguintes: a)
proprietários dos meios de produção, sobretudo os Os historiadores afirmam que o marco da
grandes industriais; b) os proprietários fundiários; c) ocupação no Rio Vermelho é anterior a fundação da
os promotores imobiliários; d) o Estado; e) os grupos cidade, com a chegada de Caramuru, segundo Porto

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p47-63, jan/jun. 2010


50 Dante Severo Giudicci

Filho (1991) na Pedra da Concha, entre 1509-1511. deslocaria para um ponto mais próximo de Salvador,
Ao naufragar o navio mercante francês, do qual era no Rio Vermelho, para liderar a reação contra os
tripulante, ele conseguiu chegar à costa, e se fixou invasores, organizando grupos de combatentes. Nesse
entre os nativos, vindo a se casar uma índia, e serviu arraial, o incansável bispo conseguiu reunir os
durante muitos anos como intermediário entre o principais chefes que comandariam a luta de
colonizador e os aborígines. emboscadas. O local do histórico encontro foi um
Durante todo o século XVI, o povoamento monte com uma excelente visão panorâmica para o
foi lento. Caramuru possibilitou o surgimento, na oceano, verdadeiro posto de observação avançada
Mariquita, da chamada “Aldeia dos Franceses”, um para a entrada e saída da Baía de Todos os Santos.
entreposto de escambo do pau-brasil com Situado a cavaleiro da barra do rio Camorojipe, o
aventureiros franceses. Mas, sem haver nenhuma outeiro ficou conhecido como Morro do Conselho.
fixação de forasteiros na região. Com a expulsão dos holandeses, o Rio
Conforme Porto Filho (1991) existe registro Vermelho foi escolhido para ter uma fortaleza (Figura
de uma sesmaria, doada por Tomé de Souza, com 2). Afirma Porto Filho (1991):
assentamento de currais de gado e armações de
As obras demoraram de começar e quando
pesca. Por volta de 1580, no lugar da atual igrejinha iniciadas transcorreram de forma muito
do Largo de Santana, foi construída uma ermida de lenta, em duas etapas, 1711-1722 e 1736-
taipa coberta por palha, com a frente voltada ao mar, 1756. O Forte, também chamado de Reduto
para a enseada que se transformaria num porto dos do Rio Vermelho, único fora dos limites da
Baía de Todos os Santos, não chegou a ser
pescadores. A capela foi erguida pelos padres da
totalmente concluído (Figura 2), mas
Companhia de Jesus, os jesuítas como ficaram recebeu peças de artilharia e um contingente
conhecidos. Chegaram ao Rio Vermelho em missão militar. Em junho de 1822, quando eclodiu a
de catequese, para converter os tupinambás à Guerra da Independência, o brigadeiro Inácio
doutrina católica. Madeira de Melo, comandante dos
portugueses, mandou reforçar o aparato
O povoamento do Rio Vermelho teve início bélico do Forte do Rio Vermelho. Não queria
efetivamente no século XVII quando da invasão que o baluarte fosse tomado e o arraial
holandesa. Tudo teve início em julho de 1604, sob o transformado num reduto militar das forças
comando de Paul Wan Caardem, uma esquadra patrióticas. Havia o temor de uma investida
das milícias que ainda restavam no poderoso
holandesa veio atacar Salvador, pela segunda vez, e
feudo da Casa da Torre, sediado no litoral
tentou estabelecer uma cabeça-de-ponte no Rio
Vermelho. Em decorrência das condições do mar
revolto e pela reação da guarnição militar que ai se
encontrava instalada, os holandeses desistiram do
arraial e se dirigiram à Baía de Todos os Santos, onde
foram repelidos e impedidos de desembarcarem.
Segundo o site “Portal do Rio Vermelho”
(2009), vinte anos depois, em 9 de maio de 1624, os
holandeses finalmente conseguiram entrar em
Salvador. A população em pânico abandonou a
cidade. Uma parte fugiu para as bandas do Rio
Vermelho. O bispo, dom Marcos Teixeira, uma das
poucas autoridades a escapar, instalou-se com um
Figura 2 - Rua Guedes Cabral e a muralha do Forte (1951)
grupo de refugiados em Abrantes, donde se Fonte: Porto Filho (1991)

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p47-63, jan/jun. 2010


Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 51

norte, num castelo em estilo medieval, preferencial do veraneio das famílias ricas
construído numa elevação próxima à Praia foi um pulo. Durante meio século (1880-
do Forte. Mas não houve nenhum combate. 1930), o balneário constituiu-se num
(PORTO FILHO, 1991). sofisticado local de veraneio. Foram
construídos inúmeros palacetes e casarões,
surgiram dois hotéis com restaurantes,
A não conclusão do forte é confirmada por
armazéns de secos e molhados, lojas de
ROHAN (1896): tecidos e miudezas e até uma fábrica de
, cerveja, que os veranistas atestavam ser de
No lugar da costa assim denominado, muito boa qualidade. Uma linha de bondes
distante duas mil braças da Fortaleza de elétricos, inaugurada em 1906, proporcionou
Santo Antônio da Barra, existem sete lances a ligação mais rápida com o centro da cidade
de muralhas com o desenvolvimento de e vice-versa. O centro de veraneio também
seiscentos e doze palmos, ligados e fez surgir um cinematógrafo, um clube de
formando entre si cinco [ângulos] salientes tênis, um clube social, um hipódromo e um
e um reentrante, de alvenaria forte e bem campo de futebol, onde o campeonato baiano
conservada, que pareciam destinadas a foi disputado durante treze anos (1907-
formar um Reduto naquele ponto, cuja 1920), até a construção do Estádio Arthur
construção julgo ter sido sustada de modo Morais, no bairro da Graça. (PORTO
que apresenta o perímetro incompleto para FILHO, 1991).
o lado do mar. À exceção das referidas
muralhas que podem ser aproveitadas, tudo Na edição de fevereiro de 1914, a revista
o mais há por fazer. (ROHAN, 1896).
Ilustração, editada em Salvador, exibiu na página doze
uma fotografia do Rio Vermelho acompanhada do
A efetiva ocupação do Rio Vermelho pelo seguinte texto: “Um dos mais lindos e aprazíveis
colonizador português foi de forma muito lenta. A arrabaldes d'esta capital, onde a nova elite passa o
povoação não passava de uma aldeia de índios verão e descansa das fadigas da velha cidade do
tupinambás e também por pescadores, com núcleos Salvador” (Martins, 2001). Ainda neste número, a
nos portos da Mariquita e Santana. O primeiro revista estampou uma foto das obras da estrada Barra-
oferecia um abrigo seguro durante os períodos do Rio Vermelho, apelidada de “a menina dos olhos do
mar agitado. As embarcações adentravam o governador Seabra”. Construção complexa, pois
Camorojipe (evolução de Camoroipe, atualmente cortava morros e rochedos, levou nove anos para ser
Camurugipe) e ficavam fundeadas no leito do rio. concluída, sendo inaugurada em 1922, quando J.J.
Mais tarde, quando a Capitania dos Portos ordenou Seabra governava a Bahia pela segunda vez. Em 1926
as colônias de pesca no litoral baiano, a do Rio surgiu a primeira linha de ônibus, com marinetes
Vermelho, por ser a mais antiga, foi batizada como Z- Renault cobrindo o percurso de ida e volta entre o
1 (designação que perdura até os dias atuais), com Largo da Vitória e o Largo de Santana, pela pioneira
sede no porto de Santana. ligação rodoviária, atual Avenida Oceânica.
No século XIX, o antigo aldeamento dos Com tanto desenvolvimento, ao tempo em
índios tupinambás,e dos pescadores ganhou fama de que via crescer a população fixa - formada por famílias
possuir “águas milagrosas”. Pessoas de diversas oriundas do centro da cidade e por imigrantes
procedências chegavam atraídas pelos banhos de sal espanhóis e alemães - o balneário foi perdendo o
nas “águas medicinais” do mar do Rio Vermelho, atrativo como reduto de veraneio. Na década de 1950 o
que, segundo crença da época, curavam até beribéri. rincão descoberto por Caramuru ficou conhecido
De acordo com Porto Filho (1991): como “o bairro dos artistas”, denominação que
perdura até os dias atuais, haja vista a constelação de
De 'estação de cura' para recanto artistas plásticos, músicos, cantores, compositores,

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52 Dante Severo Giudicci

atores, poetas, etc. Conforme Brandão & Silva


(1958), “O Rio Vermelho é o local preferido para
residência de artistas. É o Montparnasse baiano”.
Coincidindo com o início da construção do
emissário submarino - que em 1972 sacrificou a
belíssima enseada da Mariquita, aterrada para que
fosse instalado o canteiro das obras -, o tradicional
bairro passou a perder seus casarões e palacetes, que
paulatinamente foram sendo substituídos por
edifícios de apartamentos e prédios comerciais,
como mostram as Figuras 3 e 4. Brotou e se alastrou
pelos setores da Paciência, Santana e Mariquita -
antigos santuários do veraneio requintado - uma nova Figura 4 – Vista central do Morro do Conselho, evidenciando
paisagem urbana, que retirou do Rio Vermelho a as modificações ocorridas. Panorâmica da área central vista do
Morro do Conselho, em 2009: parte do Largo da Mariquita (à
ambiência bucólica e o status de uma autêntica esquerda), Praça Colombo e ruas Conselheiro Pedro Luiz e
cidade do interior. João Gomes (à esquerda). Fonte: O autor.

3. Principais setores encontrados no Bairro do Rio


Vermelho

O bairro compreende a faixa litorânea situada


entre Ondina e Amaralina. Podemos dividí-lo em
setores, pelas suas características. Os três primeiros
setores, atualmente, têm forte contingente comercial,
mas, sobretudo ligados à gastronomia e lazer.
Figura 3 - Panorâmica da área central vista do Morro do
Conselho, em 1953: parte do Largo da Mariquita (à esquerda),
Praça Colombo e ruas Conselheiro Pedro Luiz e João Gomes Paciência
(à esquerda)
Fonte: www.portaldoriovermelho.com
Este setor constitui-se das ruas Euclides de
Matos, Alexandre Gusmão, Bartolomeu Gusmão,
Almirante Barroso, Odorico Odilon e Garibaldi;
Três décadas após o início das radicais
travessas Lídio Mesquita, Alexandre Gusmão,
transformações arquitetônicas, e dos costumes, os
Arquelano Pompílio de Abreu e Almirante Barroso; e
legítimos herdeiros da fase romântica – do bairro
o trecho final da Avenida Oceânica. Como subsetores,
com bondes, das famílias tradicionais (de antigos
o Alto de São Gonçalo, a Pedra da Marca, a Vila Matos
veranistas), das festas religiosas e populares, dos
e o Alto da Sereia, que se constitui as áreas mais
artistas, intelectuais, seresteiros, boêmios, jogadores
populares.
de futebol, capoeiristas e banhistas, das praias
limpíssimas, das matinês e soirês no cinema, do Segundo Porto Filho (1991), “a Paciência
tráfego tranqüilo, etc. – reuniram-se em 9 de agosto formava um dos núcleos mais antigos do bairro, onde
de 2003 e fundaram a Academia dos Imortais do Rio estavam estabelecidas algumas das famílias
Vermelho. tradicionais do Rio Vermelho, ocupando vistosos

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p47-63, jan/jun. 2010


Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 53

casarões e sobrados. Existiam mercearias, armazéns, Maternidade Nita Costa (abandonados nos fins da
bares, açougues, fábricas, e lavanderia”. (PORTO década de 60, e ocupado pela especulação imobiliária
FILHO, 1991). em fins da década de 80, o orfanato Hercília Moreira, o
Ginásio Estadual Manoel Devoto (atrás do qual, o
morro também veio a ser ocupado pela especulação,
Santana
com imóveis para a classe média alta), e a escola
Osvaldo Cruz.
Núcleo central do bairro, Santana fica Dentre os muitos equipamentos deste setor
encravada entre a Paciência, a Mariquita e o Parque estava o Mercado Municipal do bairro, inaugurado em
Cruz Aguiar. Concentra as principais funções e 1949, e transferido para o aterro do emissário
serviços do bairro, além do comércio diversificado. submarino, no fim da década de 80.
Sediava a torrefação do Café Flor de Mataripe, a
No largo da Mariquita ficavam os terminais
Colônia de Pesca Z-1, o Clube Ypiranga, a
dos transportes coletivos, mais tarde transferidos para
Associação Atlética do Rio Vermelho, e o Cine Rio
a Praça Brigadeiro Faria Rocha, sendo depois
Vermelho, além de estabelecimentos tradicionais
desativado, quando o bairro deixou de ter linhas
como a Casa Central e o Bar de Anita (Porto Filho,
próprias, tornando-se passagem para os bairros mais
1991).
distantes, atendendo as necessidades da expansão
Santana possui os seguintes logradouros: urbana da cidade ao longo da orla oceânica. Na
Praças Marechal Aguiar (Largo de Santana) e enseada da Mariquita deságua o rio Camorojipe
Colombo; ruas Visconde de Cachoeira (Ladeira do (outrora ponto de mariscagem, hoje transformado em
Papagaio), João Gomes, Conselheiro Pedro Luis, esgoto a céu aberto), que separa o largo da Mariquita e
Guedes Cabral, Borges dos Reis, Almerinda Dultra e a praça Colombo.
a parte final da Eurícles de Matos; travessas João
Segundo Porto Filho (1991):
Gomes, Moraes e Marechal Aguiar (Santana); o
Beco de Santana e a Ladeira do Inferno. Neste setor Erroneamente, no início dos anos 80, foram
ficavam ainda as praias de Santana e do Forte. colocadas placas denominado de Largo da
Mariquita a praça onde está o ex-teatro Maria
Bethânia, atual churrascaria “Fogo de Chão”.
Mariquita Não está correto, pois na verdade, largo da
Mariquita é apenas a área que fica na margem
esquerda do Camorogipe. A da Margem
O setor da Mariquita era formado pela Praça direita chama-se praça Colombo. Como
Augusto Severo (largo da Mariquita, ruas Osvaldo comprovação, existe na parte externa do
Cruz, Frei Apolônio de Todi (do Meio), Odilon prédio onde funcionou o teatro, placa de
mármore, oriunda do palacete que havia no
Santos, Olavo Bilac, Brigadeiro Faria da Rocha local, onde se lê o seguinte registro: 'Praça
(Fonte do Boi), Marquês de Monte Santo, Professora Colombo, mandada construir pela
Conceição Menezes, Antonio Queiroz Muniz, do Intendência Municipal, sendo intendente o
Céu e do Barro Vermelho; e a Travessa Basílio de Dr. Augusto Álvares Guimarães e vice-
Magalhães. intendente o Cel. João Lourenço de Souza
Seixas – 1892. (PORTO FILHO, 1991)
Este setor é uma das partes mais antigas,
onde começou a ocupação do bairro.
Parque Cruz Aguiar
Conseqüentemente é a área residencial mais antiga.
Ali ficavam as instalações da Fábrica de Papel da
Bahia (atualmente o Mac Donald), o Hospital das O loteamento Parque Cruz Aguiar foi
Crianças Alfredo Magalhães, com a anexa implantada no local onde existia o Derby Club

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54 Dante Severo Giudicci

(hipódromo), o clube Rio Vermelho de Tênis, e da Avenida Juracy Magalhães Júnior.


vários campos de futebol. Toda área fazia parte da
antiga Fazenda Oitum, depois denominada Chácara
4. Os principais agentes produtores do espaço
João Gomes, nome do seu proprietário. Em 1943,
segundo Porto Filho (1991) a área foi vendida a ECIL
– Empresa Construtora e Imobiliária Ltda., que em As três últimas décadas do século XIX foram
1945 iniciou a construção do loteamento, o primeiro um marco importante na expansão urbana do bairro do
de Salvador, inicialmente com 198 residências, Rio Vermelho, com a entrada em funcionamento das
destinadas à classe média alta, tornando-se área linhas de bonde com tração mecânica.
nobre do bairro. Conforme Porto Filho (1991), as linhas para o
As ruas do loteamento foram designadas bairro eram duas, do Rio Vermelho de Baixo (externa,
com nomes de cidades baianas: Alagoinhas (a que seguia a principio até o Largo das 7 Portas) e se
principal), Canavieiras, Conquista, Feira de Santana, consolidou graças ao empenho da família Ariani, e a
Ilhéus, Irará, Itabuna, Jequié, Juazeiro, Remanso, do Rio Vermelho de Cima (interna, passando pelo 2º
além da Lucaia e Camorogipe. Além dessas do Arco, nas proximidades da atual TV Itapuã)
parque, foram incorporadas ao setor, o Alto do viabilizada pelo Comendador Antônio Francisco de
Canjica, final da Avenida Vasco da Gama e o trecho Lacerda, fundador da Companhia de Transportes
terminal da rua Waldemar Falcão, conhecido como Urbanos. Segundo Barreto (1939) “foi ele que, pela
Ladeira do Cabuçu, devido a fonte histórica Lei Provincial nº 1231, de 12 de junho de 1872, obteve
homônima existente no local. o privilégio para construir e explorar a linha férrea
Apesar de forte característica residencial, já (contrato de 20 de setembro de 1873), entre o Campo
começam a aparecer clínicas, bares e restaurantes Grande e o Rio Vermelho”.
neste setor, a exemplo das ruas Ilhéus, Canavieiras e De acordo com Carlos Alberto de Carvalho,
Praça Carlos Batalha. apud Porto Filho (1991) em palestra proferida no dia
23 de maio de 1938, no Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia,
Ipase

(...) foi na linha do Rio Vermelho de Cima


Este setor, parte do loteamento Cruz Aguiar, que o comendador Teodoro Teixeira Gomes
veio a ser construído, quando o Instituto de – industrial de grande conceito e cônsul da
Dinamarca – introduziu uma novidade
Previdência e Assistência aos Servidores do Estado,
tecnológica, pois substituiu os burros por
decidiu em 1949 construir casas para funcionários máquinas, passando inclusive a concorrer
públicos. A primeira artéria habitada foi a Rua com os bondes à tração animal da linha do
Macaúbas. O núcleo ficou conhecido como comendador Antonio Francisco de Lacerda.
Conjunto Residencial do Ipase, separado do restante “A construção da Estrada de Ferro do rio
do Parque Cruz Aguiar pelo rio Camorogipe. Todos Vermelho, que funcionou durante vários
anos, prestou ótimos serviços à população. A
os seus logradouros ficavam na margem esquerda e linha começava no Campo Grande e
as ruas tinham as seguintes denominações: Caetité, terminava primitivamente no Alto do
Ipirá, Maracás, Macaúbas, Belmonte e Maragogipe. Papagaio do Rio Vermelho, subindo o 2°
Arco. Mas, tempos depois, passou a trafegar
Junto a este setor fica a Chapada do rio
sob o referido arco e fazendo ponto terminal
Vermelho que até 1965, não possuía nenhuma na Mariquita. Eram quatro locomotivas que
construção, apenas o campo de treinamentos do se revezavam. Os carros eram abertos
Ypiranga, relocado quando aconteceu a construção lateralmente, à moda dos bondes, embora
mais pesados', assim se expressou o

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Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 55

conferencista, sem dizer, contudo, a data Rio de Janeiro, executora do referido


em que 'as máquinas do Rio Vermelho' melhoramento e hoje grande acionista
entraram em operação. Mas, assegurou que daquela companhia. Trata-se da inauguração
'Na última década do século passado oficial que ontem se fez solene, no tráfego de
deixaram de funcionar, sendo então bondes elétricos para o Rio Vermelho,
desarmadas'. (PORTO FILHO, 1991) partindo da Praça Duque de Caxias. (PORTO
FILHO, 1991).
Com o advento das linhas de bondes,
fazendo a ligação com o centro, o bairro ganhou Como se pode observar, o setor privado teve
grande impulso, atraindo pessoas de diversos locais, grande importância na ocupação e produção do espaço
em busca das praias e dos benefícios que se no bairro. Desta forma vamos expor alguns vetores
apregoavam ter. Desta forma, muitas famílias até que contribuíram para tal.
fixaram residências, enquanto outras construíam
casas para veraneio. Existem registros (Porto Filho,
1991), que o próprio Pedro Luís Pereira de Souza, O Veraneio
presidente da província entre 1882/84, foi
freqüentador das praias locais, daí o fato de existir no Conforme Porto Filho (1991) no inicio do
bairro, rua que leva seu nome – Rua Conselheiro século XX, o distante Rio Vermelho era pouco
Pedro Luís. povoado, mas muito utilizado por famílias abastadas.
A expansão dos bondes levou a Companhia Assim, de:
Circular de Carris da Bahia, em 1904, a dar início ao
seu projeto de eletrificação das linhas de bonde de (...) estação de cura do beri-beri (doença
provocada pela falta de vitamina B1 no
Salvador. Assim sendo, conforme afirma Porto Filho
organismo) para recanto preferencial do
(1991), no dia 2 de janeiro de 1906, inaugurava-se a veraneio das famílias ricas foi um pulo. A
primeira linha de elétricos para o Rio Vermelho. fama e o progresso, principalmente com a
Nesta data, o Jornal de Notícias (apud Porto Filho, chegada da linha de bondes elétricos, logo
1991), sob o título “Tração Elétrica”, publicou a reclamariam uma freguesia exclusiva do
arrabalde. Pressionada pelos apelos dos
seguinte informação: “A Linha Circular tem feito
veranistas e moradores influentes, a
repetidas experiências da instalação elétrica para o Arquidiocese resolveu emancipar o Rio
Rio Vermelho, dando todas o melhor resultado. Para Vermelho da Paróquia de N.S. da Vitória,
hoje, às duas da tarde, foi marcada a inauguração criando em 1913, a paróquia de Sant'Ana do
oficial, da Praça Duque de Caxias até Santana, no Rio Rio Vermelho, que apesar de grande
extensão, a maior e mais importante núcleo
Vermelho.” (PORTO FILHO, 1991).
populacional era mesmo o Rio Vermelho.
A notícia também trazia detalhes dos (PORTO FILHO, 1991).
horários de circulação, período de funcionamento e
tarifário. A edição do dia seguinte (03.01.1906), o Thales de Azevedo (apud Porto Filho, 1991),
mesmo jornal (apud Porto Filho), com o título de em artigo contendo lembranças do ano de 1916 e
“Tração Elétrica, Ramal do Rio Vermelho”, dizia: publicado no Jornal 'A Tarde', edição de 08.06.84, deu
importante depoimento sobre o Rio Vermelho daquela
Essa capital viu ontem realizado, para um época:
de seus mais pitorescos e procurados
arrabaldes, um importante melhoramento, Sua importância podia medir-se pelos belos
pelo qual é justo sejam dirigidos louvores à prédios, enormes sobrados, seu portentoso
distinta Companhia Linha Circular e a forte, sua pequenina matriz e até pelos
acreditada casa eletricista Guinle & Cia., do caminhos e viadutos, as linhas de cima e de

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56 Dante Severo Giudicci

baixo, que para lá confluíam com seus foi complicada para a engenharia da época, pois
bondes sacolejantes. Era o fim de linha, de atravessava morros e cortava rochedos, e desta forma
onde se caminhava longamente pela praia,
foi aberta vagarosamente, somente sendo concluída e
para Amaralina e até para a Pituba. Era a
época em que o rio Vermelho tinha um inaugurada em 1922, quando J.J.Seabra governava o
hipódromo e no Largo de Santana Estado pela segunda vez. Finalizava-se assim, após
funcionavam o Hotel Centro Recreativo e a quase 10 anos de trabalhos, entregue ao tráfego a
Pensão Avenida, em cujos fundos existia primeira via de ligação rodoviária entre o elegante
um improvisado cine-teatro, o chamado arrabalde e o centro da cidade.
Cine Avenida. (PORTO FILHO, 1991).
Conforme Porto Filho (1991):
O loteamento da Fazenda a Lagoa
Naquele tempo, o Rio Vermelho ainda era
formado por apenas seus três aglomerados à
Esta propriedade, que pertencia a beira-mar (Paciência, Santana e Mariquita),
todos eles cercados por chácaras, hortas e
Companhia Melhoramentos da Bahia, ficava num
currais. O calçamento das ruas teve início em
setor litorâneo privilegiadíssimo, abrangendo todo o 1923, sendo o progresso saudado com
histórico Morro do Conselho, o Morro do Menino entusiasmo pelos moradores e veranistas. O
Jesus e uma parte da área hoje ocupada pelo Exército primeiro logradouro a ser beneficiado foi a
Nacional. Adolfo Moreira, rico e empreendedor, Rua do Raphael, atual João Gomes. (PORTO
FILHO, 1991).
comprou-a, pensando fazer um grande
empreendimento imobiliário, inédito na Bahia, que
transformaria a fazenda numa autêntica cidade. Em depoimento do bacharel Tarquínio de
Porém, a idéia, muita avançada para a época, Oliveira Gonzaga (apud Porto Filho, 1991), sobre a
não saiu do projeto arquitetônico. O que surgiu modernização do transporte, ele diz:
mesmo foi a exploração comercial de uma pedreira,
A primeira linha de ônibus foi inaugurada em
localizada na Fonte do Boi, que se transformou numa 1926, com luxuosas marinetes, que faziam a
grande fornecedora de pedras para importantes linha Rio Vermelho-Largo da Vitória, com
construções na cidade. itinerário pela Avenida Oceânica e Ladeira
da Barra. Somente em 1946, apareceu outra
Adolfo Moreira foi um grande
alternativa, um lotação que fazia
empreendedor e promotor do bairro, e além da exclusivamente o percurso entre as praças
tentativa do loteamento, construiu um luxuoso Augusto Severo e da Sé, via Barra ou Barra
palacete para residência, na ladeira do Morro do Avenida, passando pela Avenida Oceânica. A
Conselho, e doou vasto terreno no Morro do Menino partir de então, o Rio Vermelho adquiriu um
Jesus, onde o professor Alfredo Magalhães construiu serviço regular de transporte coletivo através
de ônibus. (PORTO FILHO, 1991).
o Hospital das Crianças, inaugurado em 25 de
dezembro de 1936.
Os loteamentos pioneiros

Avenida Oceânica
Referem-se aos já citados, Parque Cruz Aguiar
e do IPASE.
No primeiro governo de José Joaquim
O Parque Cruz Aguiar foi construído na área
Seabra (1912-1916), foi iniciada a abertura da
da chácara de Manoel Lopes, genro do comerciante
Avenida Barra – rio Vermelho, depois chamada de
português João Gomes, antigo proprietário das terras
Avenida Oceânica e, posteriormente renomeada
onde foi implantado o loteamento, o primeiro que
como Avenida Presidente Vargas. A sua construção

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Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 57

surgiu em Salvador com infra-estrutura completa. O Conforme Porto Filho (1991), o jornal “A
sucesso do loteamento seria o espelho para uma série Tarde”, na edição de 18.03.1949, publicou a seguinte
de alterações que iriam modificar padrões e hábitos notícia:
do bairro, pelas seguintes razões: as casas, todas em
estilo dos chalés europeus, atraíram um novo A Bahia vai possuir a estrada asfaltada mais
segmento de moradores, integrado por bem moderna do país, quiçá da América Latina, a
sucedidos funcionários públicos, bancários, cobrir uma longa extensão a faixa litorânea
da nossa capital”. O rítimo da obra, afastados
profissionais liberais, empresários e fazendeiros, o
os óbices imprevistos, vai se acentuando, de
que veio despertar o interesse de muitas outras maneira a estar mesmo concluída no prazo
famílias em residir no Rio Vermelho. Enfim, além de acordado, isto é, no começo do ano vindouro.
marcar a chegada de uma nova e organizada leva de (PORTO FILHO, 1991).
habitantes, o Parque pode ser também caracterizado
como elemento que pôs um definitivo ponto final no
No aniversário da cidade deste mesmo ano,
ciclo dos veranistas, cujo período áureo foi meio
como parte das solenidades do 4º Centenário de
século, entre 1880 e 1930.
Salvador, foi inaugurada a pavimentação da nova
O Parque Cruz Aguiar, que passou a ser Avenida Amaralina, que começava no final da Rua
chamado pelo povo de “o local dos novos ricos e das Oswaldo Cruz, no Rio Vermelho, e terminava no
pessoas importantes do Rio Vermelho”, de certa Largo de Amaralina, início da estrada Amaralina –
forma despertou uma disputa entre os moradores Santo Amaro de Ipitanga, depois denominada de
dos setores tradicionais. Todavia, a bem da verdade, Avenida Otávio Mangabeira. Esta tornou-se um
inúmeras famílias da Paciência, Santana e grande marco na evolução da cidade, que projetava-se
Mariquita, eram tão ricas, ou até mais ricas do que para norte, incorporando toda a orla oceânica à cidade,
alguns dos considerados ricos do novo setor e tornando-se vetor de expansão.
residencial.
Ainda conforme Porto Filho (1991):
Em 1950, em moldes parecidos, pois na
realidade era uma espécie de continuação do Parque (...) graças as realizações do governador
Cruz Aguiar, mas destinado a uma faixa Mangabeira e do prefeito Wanderley de
diferenciada, para funcionários atrelados ao Instituto Araújo Pinho, que asfaltaram duas avenidas
de Previdência e Assistência dos Servidores do importantes, Salvador cresceria
estado, foram edificadas as casas que deram origem acompanhando o sentido destas vias de
integração do centro da cidade com o
ao Conjunto Residencial do Ipase, também Aeroporto de Ipitanga, passando pelo Rio
localizado na faixa interna do bairro. Vermelho, Amaralina, Pituba e Itapuã, que
ficaram também interligados entre si. Como
conseqüência natural, ocorreu a desativação
Avenidas Otávio Mangabeirae e Amaralina quase completa da distante, sinuosa e
perigosa Estrada Velha de Ipitanga
(Campinas – Aeroporto), construída pelos
Na gestão do governo Otávio Mangabeira, americanos durante a Segunda Guerra
foram realizadas obras que praticamente definiram o Mundial. Assim, todo o tráfego de veículos,
direcionamento do crescimento urbano de Salvador. entre a cidade e o aeroporto e vice-versa, foi
A principal foi uma via costeira, a chamada Estrada automaticamente transferido para a orla,
pelas novas avenidas, margeando o mar. Com
de Amaralina – Santo Amaro de Ipitanga, de traçado
isso, obrigatoriamente, o fluxo passou
longitudinal à orla e com 18,5 km asfaltados que também a tramitar pelo Rio Vermelho, até
rasgaram uma área totalmente virgem do litoral a então um bairro praticamente isolado do
sudeste da península de Salvador. restante da cidade. (PORTO FILHO, 1991).

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58 Dante Severo Giudicci

A década de 60 A década de 70

Nesta década o bairro ainda guardava sua A década se inicia com o loteamento Parque
tranqüilidade, apesar da construção da Avenida Lucaia, localizado entre o final da Waldemar Falcão e
Otávio Mangabeira, que gerou a tramitação de a margem esquerda do Rio Lucaia, que o separava do
veículos pelo bairro, e dos florescentes núcleos Parque Cruz Aguiar, área que abrangia quase toda a
residenciais, preservando grande parte de suas extensão da chácara de Ubaldino Gonzaga. A
tradições e características próprias até os anos 60, Foi incorporadora foi a Imobiliária Corrêa Ribeiro e era
nesta década que chegaram os primeiros agentes um setor residencial reservado à classe alta. Os lotes
realmente transformadores da sua fisionomia começaram a ser comercializados em 1972, após o
urbanística. Primeiro ocorreu a implantação do soterramento da histórica Fonte do Cabuçu e a
Loteamento Jardim Caramuru, entre a Mariquita e o abertura das seguintes ruas: Estácio Gonzaga,
Ipase. Idealizado por Orlando Pessoa Garcia, em Fernando Wilson Magalhães, Barachísio Lisboa,
área desmembrada da chácara do Solar Filinto, este Desembargador Plínio Guerreiro, Praça Jorge
empreendimento imobiliário, lançado em 1960, teve Calmon, além da segunda pista da Rua Lucaia, na
a sua denominação inspirada no português Diogo margem esquerda do rio do mesmo nome.
Álvares Corrêa, o lendário Caramuru, que tinha sido Ainda nesta década se construiu o Hotel 'Le
descoberto pelos tupinambás num rochedo situado a Meridien', no fim da rua Fonte do Boi, cadeia de hotéis
pouca distância do Solar Filinto, de propriedade do de bandeira francesa que se constituiu no maior hotel
empresário Orlando Garcia. As ruas do da cidade, e um dos três cinco estrelas.
empreendimento, com 136 lotes, foram todas
Segundo Porto Filho (1991):
batizadas com denominações de tribos indígenas:
Aimorés, Carijós, Caetés, Tamois, Tupinambás e Ocorreram ainda a construção de duas
Potiguaras. grandes avenidas de vale, a Juracy
Na Avenida Vasco da Gama foram Magalhães Júnior e a Anita Garibaldi; a
implantação do Parque Primavera e vários
construídas duas fábricas que, para os padrões da outros núcleos residenciais; a construção do
época, foram consideradas de grande porte. A emissário submarino, que liquidou
primeira foi a dos biscoitos “Águia Central” literalmente com a bela enseada da
(transferida da Liberdade), e logo depois chegou a da Mariquita; se deu início a ocupação de dois
“Coca-Cola”, localizada na esquina das atuais morros importantes e até históricos: o do
Conselho e o do Menino Jesus. (PORTO
avenidas Garibaldi e Vasco da Gama (numa área
FILHO, 1991).
onde havia hortas, muito comuns na cidade na época)
pertencente a Refrigerantes da Bahia S/A, então a
Nesta década começam as marcantes
única empresa do Estado autorizada a engarrafar e
modificações na ocupação, pois a pressão imobiliária
comercializar a consagrada bebida. O inicio das
sobre as áreas verdes começa por reduzi-las e leva a
operações foi em 1967, ano em que os equipamentos
verticalização, como aconteceu no Morro do
das antigas instalações, localizadas na Avenida
Conselho com a construção do Hotel Transamérica.
Frederico Pontes, na Cidade Baixa, foram
transferidos para a fábrica do Rio Vermelho. A
década encerrou-se com um grande empreendimento Dos anos 80 aos dias atuais
imobiliário popular no trecho da Vasco da Gama: o
conjunto Santa Madalena, constituído de
Os anos oitenta foram, enfim, avassaladores,
apartamentos e casa, inaugurado em 13 de junho de
pois a vertiginosa ocupação horizontal exterminou
1970.

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Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 59

todas as áreas verdes significativas e o crescimento Santos (1993) define o conceito de sítio social
vertical, além de alterar profundamente a fisionomia como “especulação imobiliária deriva, em última
urbana, determinou a destruição indiscriminada do análise, da conjunção de dois movimentos
patrimônio arquitetônico, composto de dezenas de convergentes: A superposição de um sítio social ao
casa e majestosos casarões. Como conseqüência de sítio natural e a disputa entre atividades e pessoas por
tudo isso, inúmeras famílias tradicionais, que de dada localização” (SANTOS, 1993).
geração a geração, possuíam raízes profundamente Para Villaça (1998), o conceito de sítio social é
fincadas na história do bairro, emigraram. Em “útil tanto para análise dos bairros residenciais
contrapartida, o Rio Vermelho recebeu legiões de produzidos pelas e para as burguesias, como também
novos habitantes, proprietários ou simples inquilinos das áreas comerciais que elas igualmente produzem,
das centenas de apartamentos das dezenas de também para si” (VILLAÇA, 1998).
edifícios que foram febrilmente construídos no bojo
Com base na Figura 5, podemos visualizar que
do “boom” imobiliário irrompido praticamente em
o bairro originalmente se desenvolveu na linha plana
toda a capital baiana.
de costa, Mariquita, Santana e Paciência (áreas 1 e 2 na
Nas décadas seguintes, se consolida a figura). Posteriormente começou a expandir-se para o
verticalização nas áreas onde ela ainda era incipiente, interior, com aberturas de novas ruas imediatamente
como no Morro do Menino Jesus (também depois da orla (ruas do Meio, Odilon Santos, Oswaldo
conhecido como da maternidade), bem como em Cruz, João Gomes – área 3). Nestas áreas as
outras áreas, como nas encostas ao longo da Rua modificações ficaram limitadas pela restrição do
Bartolomeu Gusmão e arredores. gabarito, mas mesmo assim, algumas transformações
Também, o bairro se consolida como área de ocorreram como a construção do Mar Hotel Rio
lazer, com a proliferação de bares, restaurantes, e os Vermelho e da Sociedade Caballeros de Santiago, na
'points' de acarajé. Alguns bares e restaurantes já praia da Paciência, do teatro Maria Bethânia (atual
invadindo áreas antes exclusivamente residenciais, churrascaria Fogo de Chão) e do hotel Bahia Park
como o Parque Cruz Aguiar, como já citamos Hotel, na Mariquita, que substituíram antigos
anteriormente. casarões, além de modificações nas construções
Na atual década a construção dos hotéis das antigas, visando adaptá-las as novas funções.
redes Íbis e Mercure, na Rua Fonte do Boi, vêm Compreende o período do inicio da ocupação até a
juntamente com o hotel da rede portuguesa Pestana década de 1930.
(ex-Meridien), consolidar o bairro como “sitio Posteriormente tem lugar a ocupação do
social” atrativo para instalação deste tipo de Morro da Sereia, e da Vila Matos (área 4), as primeiras
atividade. áreas onde aconteceram ocupações espontâneas. Vale

4. Análise da dinâmica urbano-espacial


comtemporânea 6

6 5

4 6 8
O bairro do Rio Vermelho caracterizava-se 5
2 3
por áreas de concentração e áreas de expansão Períodos de Ocupação
1 - Até o século XIX
3

urbana, mas desde a década de 1990 não existem 2 - Década de 1910


3 - Década de 1920 - 1930
4 - Década de 1940
1
9
5 - Década de 1950
mais áreas de expansão e a verticalização passou a ter 6 - Década de 1960
7 - Década de 1970
7
8 - Década de 1980
lugar. Desta forma transforma-se num sitio social 9 - Década de 1990 1:9.000

importante na cidade do Salvador. Figura 05 - Evolução e ocupação


urbana do Rio Vermelho

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60 Dante Severo Giudicci

ressaltar que no referido morro, fica evidente a ser ocupada.


segregação, onde a parte voltada para a enseada é A área 7, engloba as ocupações referentes a
ocupada pela classe alta (ali havia um hotel de luxo e década de 1970 e início de 80, quando o bairro já
estão situadas casas de vários artistas), e a parte estava quase que totalmente ocupado. É desta época o
voltada para a Pedra da Sereia, com ocupação Parque Lucaia, já tratado anteriormente, e o início da
popular. Na Vila Matos se concentram estritamente ocupação do Morro do Conselho, por hotéis de luxo, o
população mais carente, onde a urbanização é que levou a posterior ocupação por edifícios de alto
irregular, mas pela configuração que o bairro vem luxo para atender a demanda por áreas com situação
assumindo, é provável que a especulação imobiliária privilegiada pela beleza cênica.
venha atuar na área. Corresponde a década de 1940.
Por outro lado, na área 8, teve início com a
A segregação é um processo segundo no qual instalação das Faculdade Ruy Barbosa, e se
diferentes classes ou camadas sociais tendem a se consolidou na década de 1980 com a total ocupação do
concentrar cada vez mais em diferentes regiões morro situado atrás do Colégio Estadual Manoel
gerais ou conjuntos de bairros da metrópole. “(...) Devoto, com edifícios de alto padrão com gabarito
Referindo-se a concentração de uma classe no controlado, o que impediu a construção de espigões.
espaço urbano, a segregação não impede a presença
A última área a ser ocupada foi a 9, o que veio
nem o crescimento de outras classes no mesmo
se consolidar na década de 1990, constituída pelo
espaço”. (VILLAÇA, 1998).
Morro da Maternidade, também por prédios de luxo, e
A área 5, constituída pelo Parque Cruz Aguiar com certa privatização da praia do Buracão.
e IPASE, ocupada efetivamente na década de 1950,
Fica evidente com base no nosso estudo que a
por uma população de classe média alta, era,
valorização imobiliária levará a especulação e gerará,
sobretudo o Parque Cruz Aguiar um reduto de
provavelmente, muitos conflitos nas áreas onde
famílias de alto poder aquisitivo. Atualmente muitas
ocorrem as ocupações populares, e onde há
atividades comerciais encontram-se instaladas na
degradação das construções, pela enorme pressão
área, particularmente no Parque.
imobiliária ali presente, posto que trata-se de um dos
A área 6, corresponde a área elevada entre a bairros mais valorizados de Salvador.
Vila Matos, a Avenida Oceânica e Garibaldi,
Apesar de ser um bairro antigo, pode-se
atualmente tomada por edifícios de alto luxo. A área
considerar que a evolução da sua ocupação se deu de
entre a Av. Cardeal da Silva e a Rua da Paciência,
forma planejada, como vimos anteriormente, com a
constituída originalmente por belos exemplos
construção de loteamentos. Atualmente esse
arquitetônicos, embora tomada por modernas
planejamento está ameaçado com as mudanças no
construções, algumas com alto gabarito, e outras
plano diretor, especificamente na altura do gabarito
encravadas na encosta, guarda um ar bucólico
dos prédios na orla, que tem caráter político e visa
representado pela Praça Almirante Barroso (Antigo
atender interesses do grande capital, representado no
Alto do São Gonçalo). Compõe ainda esta área o
caso pelas construtoras.
loteamento Caramuru, situado entre o Parque Cruz
Aguiar e o Condomínio do IPASE, constituído por A partir da década de 70, também são
casas e pequenos prédios, de classe média. A essas intensificadas as atividades de comércio e serviço na
ocupações da década de 1960, podemos acrescentar a faixa de praia. Há o início de um processo de
Chapada do Rio Vermelho, que até 1965 era renovação urbana. Alguns edifícios de uso residencial
completamente coberta de vegetação, e onde existia dão lugar à função comercial, levando para o bairro a
o campo do Esporte Clube Ypiranga, mas com a atividade comercial. Cada vez mais o bairro se
abertura da Avenida Juracy Magalhães Júnior, veio a consolida como local de moradia de classe média e
alta. Entretanto como frisamos anteriormente, o forte

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Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 61

do comércio se constitui de atividades de lazer, direito de debater sobre suas ações publicas ou
ficando a atividade comercial tradicional, tais como: privadas. Um exemplo disto é confundir o direito de
butiques, lojas de tecidos, de decoração, agências de morar com o direito de posse.
banco, etc como atividades secundárias. Neste estudo foi realizada uma análise da
Na faixa da orla e suas proximidades, em dinâmica sócio-espacial contemporânea, a partir da
geral, encontra-se uma população de alto e médio inter-relação de atores e principais objetos que
poder aquisitivo atraindo os diversos ramos de compõem o bairro do Rio Vermelho.
comercio e serviços. A população de baixa renda A primeira relação que podemos fazer é entre a
encontra-se nas áreas de encosta do bairro, numa Orla e Praças e os diversos atores. Entre os
evidente segregação. empresários (tanto de comércio quanto de serviços), o
A expressão segregação é empregada, num que se pode verificar é que estes acabam muitas vezes
sentido mais geral, pela separação forçada e ocupando os espaços públicos, mas, ao contrário de
institucionalizada de uma discriminação, ou seja, de outros lugares (como em Recife), não tomam para si a
um tratamento desigual de grupos, sejam por responsabilidade de cuidar deles (em contrapartida da
motivos religiosos, raciais, econômicos, sexuais, redução/eliminação de algum imposto), deixando ao
culturais, espaciais, etc. Através da segregação, a Poder Público essa responsabilidade, muitas vezes
elite domina o espaço urbano não só produzindo suas degradando as obras existentes, a exemplo da Praça de
residências, seus locais de trabalho e de lazer nas Santana, Largo da Mariquita. Claro que o poder
áreas que consideram mais agradáveis, mas também, estabelecido não cumpre seu papel de mantenedor de
atuando sobre toda a estrutura urbana segundo seus patrimônio, e não investe no processo de educação e
interesses. cidadania.
Atualmente são marcantes a presença de Em relação aos moradores de baixa renda,
pedintes, flanelinhas e guardadores de carros que são esses utilizam pouco as áreas públicas para lazer, e na
do bairro ou de outras localidades que para lá se maioria das vezes esses locais servem para a prática de
dirigem, e meninos de rua que se concentram em mercado informal. Os moradores de média e alta renda
sinais e cruzamentos das principais vias, estes por sua vez são os que utilizam principalmente a orla
marginalizados e ociosos. A prostituição, apesar de como espaço de lazer e muitos ficam inibidos devido a
mais discreta que outras partes da cidade, pode ser violência que ocorre geralmente nesses locais.
notada, inclusive a juvenil. Os Empreendimentos de Comércio e Serviços
Os espaços verdes do bairro foram com o (tanto os verticais como os não-verticais) também
tempo sendo reduzidos, isto é percebido nitidamente foram considerados nessa analise. Os empresários
pela escassez de praças e avenidas e ruas pouco (comércio e serviços) são os principais agentes que
arborizadas. realizam a manutenção e a administração destes,
Com relação ao lazer, o bairro se destaca por transformando alguns locais em verdadeiros centros
possuir em grande número de bares, restaurantes e comercias (a exemplo dos existentes nas ruas Odilon
boates, sendo considerado desde a década de 1950, Santos e Oswaldo Cruz) e de serviços, enquanto que o
como Montparnasse baiano, numa alusão ao famoso Poder Público cria uma estrutura necessária para atrair
bairro parisiense. Esse fato atrai freqüentadores, esses empreendimentos, visto que isso gera um
ávidos por consumir o que de melhor o bairro aumento para a arrecadação de impostos.
oferece: diversão. Estes Empreendimentos são pouco utilizados
O consumidor segundo Santos (1988) pela população de baixa renda que muitas vezes
alimenta-se de parcialidades, contenta-se com desloca-se para outros bairros para fazer compras. Os
respostas setoriais e não participa ou não tem o que conseguem trabalhar nesses empreendimentos se

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62 Dante Severo Giudicci

submetem ao subemprego. Já os moradores do tem o acesso a essa rede de drenagem, pois suas
bairro e de outros bairros que possuem um maior residências encontra-se em áreas privilegiadas.
poder aquisitivo movimentam esses Com relação ao transporte viário do bairro os
empreendimentos que geram para o bairro uma empresários são responsáveis pela criação e
circulação do capital. administração das empresas de transportes públicos. A
No que concerne aos empreendimentos defasagem desses transportes causa diversos
residenciais (verticais e não-verticais), os transtornos ao transito. O Poder Público é responsável
empresários (comércio e serviço) são os pela elaboração de planos, criação e manutenção da
responsáveis pela especulação imobiliária, mais estrutura viária, bem como pela regulamentação e
interessados na fixação de moradias no bairro, para fiscalização do Sistema de Transporte Publico de
que seu público consumidor esteja próximo de seus Passageiros, porém a estrutura viária com logradouros
empreendimentos e que também gere cada vez mais muito estreitos causa grande problema de
uma maior valorização do espaço local. O Poder congestionamentos por quase todo o bairro.
Público tem como função regular e fiscalizar a Assim conclui-se que a relação e interação
construção dos empreendimentos em questão, desses atores com os diversos objetos do bairro
criando também projetos de construção de mostram uma grande dinâmica no sentido sócio-
habitações populares. Como exemplo pode-se citar a espacial contemporâneo. Suas diversas características
verticalização das duas últimas décadas. são os resultados do desempenho marcante por parte
Observa-se a predominância dos das diversas classes de moradores, do poder público e
empreendimentos verticais, em detrimento dos não- dos empresários, pois todos compõem esse espaço que
veriticais, por conta da escassez de terrenos e da se localiza na área costeira da cidade do Salvador,
especulação imobiliária. A população de classe exercendo um grande poder de transformação nesse
média e alta é a que tem acesso a grande maioria bairro.
desses empreendimentos, enquanto que a população
de baixa renda limita-se a aquisição de moradias
5. Conclusão
populares, na conhecida 'compra da laje', onde se
constrói sobre outra casa, muitas vezes sem
estrutura para tal, que chamamos aqui de Este trabalho que trata do processo de
'verticalização pobre', muito comum nas áreas de ocupação e evolução urbana do bairro do Rio
ocupação espontânea. Vermelho possibilita entender de que forma e como
Sobre a rede de drenagem, os ele se deu.
empreendimentos do bairro são bem servidos (a O bairro enfrenta muitas dificuldades com a
construção do emissário submarino data da década administração dos processos de ocupação e
de 1970), pois interessa ao Poder Público ofertar uma crescimento urbano, desde problemas ambientais
estrutura adequada com vistas a atrair mais decorrentes de ocupação indevida, crises em torno do
investimentos e conseqüentemente ampliar a receita solo urbano envolvendo diferentes classes sociais,
pública. São de competência do Poder Público a conflitos relativos à convivência de usos, até a
implementação e manutenção da rede de proliferação de ocupações irregulares. A regulação
saneamento. urbana e seus instrumentos, que é regulamentada pela
A população de baixa renda (que ocupa uma Lei de Uso e Ocupação do Solo, muitas vezes é
área menor) tem um acesso mais restrito, ao omissa, apresentando problemas de interpretação, e
saneamento básico, visto que não é priorizada pelo algumas vezes inviáveis em relação aos novos usos
Poder Público. A população de média e alta renda que vão surgindo com o passar do tempo. Outro fato

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Ocupação e evolução urbana do bairro do Rio Vermelho – Salvador-BA 63

negativo é a questão da verticalização, que produz Referências


impactos significativos na estrutura social e
econômica do Bairro, como mudanças na
BARRETO, A. (Cel.). Fortificações no Brasil
distribuição das classes sociais, influenciadas pelas
(Resumo Histórico). Rio de Janeiro: Biblioteca do
alterações dos valores e dos usos do solo urbano. Exército Editora, 1958.
Observamos que no bairro do Rio Vermelho BARRETO, F. E. do R. O Comendador Antônio
existe um controle da classe dominante, Francisco de Lacerda e a evolução dos transportes
principalmente na produção e consumo do espaço, urbanos na cidade do Salvador. Salvador: Imprensa
através do mercado imobiliário, que produz os Oficial, 1939.
espaços dessa classe, como também do próprio BRANDÃO, D.; Silva, M. Cidade do Salvador.
Estado que controla a localização da infraestrutura Caminho do encanto. São Paulo: Companhia Editora
urbana. Nacional, 1958.
As transformações recentes do bairro do Rio CORRÊA, R. L. O Espaço urbano. São Paulo: Ática,
Vermelho estão gerando espaços nos quais os 1989. (Série Princípios).
diferentes grupos sociais encontram-se muitas vezes LEAL, G.da C. Perfis urbanos da Bahia: os bondes,
próximos, mas estão separados pelo poder das a demolição da Sé, o futebol e os galegos. Salvador:
“posses”. Os segregados do espaço urbano deste Gráfica Santa Helena, 2002.
bairro constituem os periferizados sócio-espaciais e
MARTINS, A. L. Revistas em revista: imprensa e
se tornam visíveis sob forma de ocupações práticas culturais em tempo de República. São Paulo:
espontâneas, onde as habitações apresentam baixo Edusp, 2001.
valor construtivo.
Portal do Rio Vermelho. Disponível em:
Dessa forma, fica evidente na pesquisa, a http://www.portaldoriovermelho. Acesso em: 28 de
partir da análise das informações, que esse bairro dezembro de 2009.
detém um dos metros quadrados de maior valor da PORTO FILHO, U. M. Rio Vermelho. Salvador:
cidade e hoje é praticamente auto-suficiente na AMARV (Associação dos Moradores e Amigos do
prestação de serviços aos habitantes nele residente. Rio Vermelho), 1991.
Exerce grande força de atração do capital e dos seus ROHAN, H. de B. Relatório do estado das
aparelhos de reprodução, destacando-se nesse fortalezas da Bahia pelo Coronel de Engenheiros
cenário os promotores imobiliários e o Estado. Estes Henrique de Beaurepaire Rohan, ao Presidente da
agentes, atuantes no espaço urbano, interferem Província da Bahia, Cons. Antonio Coelho de Sá e
significativamente nas formas e funções do espaço, Albuquerque, em 3 de Agosto de 1863. RIGHB.
estabelecendo ou permitindo padrões arquitetônicos Bahia: Vol. III, nr. 7, mar/1896. p. 51-63.
e contribuindo com o aparecimento ou injetando SANTOS, M. Espaço e método. São Paulo: Nobel,
equipamentos de comércio e lazer, não só para a 1985.
população do bairro, mas também de outros vizinhos SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado.
ou não, sobretudo das classes de maior poder São Paulo: HUCITEC, 1988.
aquisitivo.
SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo:
Diante destas questões concluí-se que o HUCITEC, 1993.
bairro do Rio Vermelho transgride seu “status quo”
SOUZA, A. Â. de. Nas bandas do Rio Vermelho.
de bairro e passa a despontar como uma verdadeira Salvador: Associação Atlética do Rio Vermelho, 1961.
área de lazer da cidade, alocando todas as
VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. São
complexidades, conflitos e contradições de uma área
Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Lincoln Institute,
urbanizada.
1998.

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DO CONCEITO DE GÊNERO AO DE GÊNERO “INTELIGÍVEL”


From the concept of Gender to the one of “Intelligible” Gender

Ismar Inácio dos Santos Filho1

RESUMO ABSTRACT

Nos dias atuais é crescente a necessidade de Nowadays there is growing need for
compreensão acerca de questões referentes understanding of issues relating to man and
ao homem e à mulher, sejam elas em seu woman, whether in their relations aspect
aspecto de relações ao que tange aos papéis, pertains to the roles, or their relationships as
ou as suas relações enquanto pares, ou sejam couples, or whether they are related to
elas relacionadas à sexualidade. Por isso, sexuality. Therefore, this reflection is
esta reflexão propõe-se a tratar dois proposed to deal with two concepts of vital
conceitos de relevância vital para o importance for the understanding of issues
entendimento de questões vivenciadas pelo lived by men and women in this multifaceted
homem e pela mulher nessa sociedade society, namely, the concepts of gender and
multifacetada, quais sejam, os conceitos de intelligible gender. To this end, we
gênero e gênero inteligível. Para tal, developed a purely theoretical discussion,
desenvolvemos uma discussão estritamente illustrated with a speak of player
teórica, ilustrada com uma fala do jogador Ronaldinho, when we explain the concept of
Ronaldinho, quando explicamos o conceito intelligible gender. This study is based in the
de gênero inteligível. Este estudo está ideas of Rubin (1975), Butler (2003),
pautado nas ideias de Rubin (1975), Butler Saffioti (2005) and Scott (1996), among
(2003), Saffioti (2005) e Scott (1996), dentre others.
outros.
Keywords: Gender. Intelligible Gender.
Palavras-chave: Gênero. Gênero Male. Female. Heteronormativity.
Inteligível. Masculino. Feminino.
Heteronormatividade.

1
Licenciado em Letras (Uneal), Pedagogo (Uneal), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT) e
Doutorando em Linguística (UFPE).
Artigo apresentado às professoras Drª Marion Quadros e Drª Lady Selma, no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia – PPGA/UFPE – como conclusão da disciplina “Teorias Feministas,
Políticas e Diálogos com a Antropologia”, em 2008.01.
66 Ismar Inácio dos Santos Filho

1. Introdução conceito de gênero inteligível, o qual permite


compreender a construção dos gêneros em nossa
sociedade. Nesse intuito, ilustramos a construção do
Inúmeros casos de preconceitos acontecem
masculino hegemônico a partir de uma fala do jogador
possivelmente todos os dias contra aqueles e aquelas
de futebol Ronaldinho em um evento que abordava
que não “assumem” em suas práticas sexuais a
gênero e sexualidade.
heterossexualidade: são homossexuais, bissexuais,
transexuais, etc. Também há casos em que o
indivíduo é levado a público a garantir a sua 2. O debate feminista e o conceito de gênero
heterossexualidade, como o fez em 2008 o jogador
de futebol Ronaldinho ao dizer "Sou completamente
Como comentamos na introdução, o conceito
heterossexual (...) Sou heterossexual e disso não
de gênero surge dentro do feminismo, aqui
tenho dúvidas”, contrapondo-se à notícia de que teria
denominado de debate feminista na intenção de
mantido relações sexuais com travestis. Assim,
agrupar o movimento político feminista, bem como as
parece haver uma valoração e uma aceitação, ou
atividades acadêmicas que se debruçaram sobre o
m e l h o r, u m a p o s i ç ã o h i e r á r q u i c a d a
questionamento da desigualdade social entre homens
heterossexualidade sobre outras práticas e desejos
e mulheres. Apresentamos aqui uma incursão na
sexuais. Provavelmente essa valorização da
história e em alguns conceitos deste debate,
heterossexualidade, os muitos preconceitos contra os
objetivando situar o surgimento do conceito de
não-héteros e as diversas atitudes como esta do
gênero, bem como explicitar sua força para as
jogador se originam na vivência dentro das relações
reflexões a respeito das construções das “identidades”
sociais da ideia da heterossexualidade enquanto a
de gênero.
norma/regra para a prática sexual.
Pelo exposto, nossa intenção neste texto é
refletir sobre a instituição da heterossexualidade O debate feminista
como norma em nossa sociedade. Para isto, partimos
da hipótese de que à “identidade de gênero”, às Sobre esse debate, podemos incipientemente
identidades bipolares e hegemônicas masculina e comentar, ancorados em Yannoulas (1994), que até o
feminina, estão atreladas às “identidades sexuais”, século XVIII não havia nenhum questionamento em
ou melhor, á “identidade heterossexual”, entendida relação à submissão da mulher ao homem, tampouco a
como natural e universal. Para pensar esses “pontos” igualdade entre esses atores sociais era cogitada ou
de questionamento, trataremos do conceito de problematizada e que as primeiras manifestações em
gênero – em suas diversas abordagens – em Rubin oposição à subordinação e/ou exploração da mulher
(1975), Scott (1994; 1999), Saffiotti (2005) e Butler acreditavam na existência de diferenças naturais entre
(2003), o qual surge dentro dos estudos feministas. mulheres e homens. Para essas manifestações, cada
Comentaremos também acerca da construção da um desses sujeitos possui em sua essência biológica
identidade de gênero; o imbricamento entre a características que os faziam diferentes e, assim, na
identidade de gênero e a identidade sexual; e, deste exaltação dessa diferença, isto é, na afirmação de que
modo, levantamos alguns entendimentos acerca da as mulheres têm natureza específica, buscaram
instituição da heterossexualidade como norma, em garantir à mulher um espaço nas relações sociais, à
nossa sociedade ocidental atual, chegando ao medida que, em paralelo, acabavam por justificar as
conceito de gênero “inteligível”. Deste modo, temos discriminações tradicionais sobre a mulher. Pautadas
uma reflexão que expõe a construção do conceito de nas diferenças empíricas, essas manifestações
gênero dentro do debate feminista e avança para o transforma(ra)m a descrição em prescrição, em prol de

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Do conceito de Gênero ao de Gênero “Inteligível” 67

uma feminilidade (assim bem como instituíam discurso pluralista, aquele no qual a mulher não se
paralelamente uma masculinidade, em essência). reduz a sua feminilidade, sendo considerada um ser
Diferentemente, e em oposição, surge no heterogêneo, negando a perspectiva essencialista de
debate feminista a concepção de que os seres que homens e mulheres são diferentes naturalmente.
humanos são iguais, sem predeterminação Sobre isso, Scott (1999, p. 219) comenta que “a
natural/biológica, e que suas “diferenças” se dão, ao oposição generalizada masculino/feminino serve para
contrario, pela socialização, em decorrência da escurecer as diferenças entre as mulheres em
sociedade patriarcal, aquela em que o homem exerce comportamento, caráter, desejo, subjetividade,
poder sobre a mulher. Se nas primeiras sexualidade, identificação de gênero e experiência
manifestações feministas, primava-se o sujeito- histórica”. No que se refere à ideia de igualdade, o
mulher, nesta, prima-se pelo sujeito-humano. discurso pluralista nega que mulheres e homens sejam
iguais, pois essa igualdade “significa ignorar as
Dentro dessa perspectiva, dita racionalista
diferenças entre os indivíduos para um propósito
(em oposição a anterior entendida como
particular ou em um contexto particular”. (Scott,
essencialista) podemos também entender e situar a
1999, p. 217). Preza-se a ambivalência.
inserção do Marxismo nesse debate. No
“casamento” do Marxismo com o feminismo Desse modo, tomando como meta a
(Hartmann, 1981), entendia-se que se “extintas as ambivalência entre os sexos, a discussão se dá pela
diferenças de classe, a dominação capitalista e a compreensão de que é necessário “estabelecer-se a
discriminação econômico-social, reinaria igualdade de direitos e o direito às diferenças”.
espontaneamente a calma homogênea e (Yannoulas, 1994, p. 08). Dentro dessa percepção,
indiferenciada da ordem socialista ou comunista” surgem os estudos de gênero, nos quais, podemos
(Yannoulas, 1994, P. 10), isto é, não mais haveria a dizer de forma generalizada, que a subordinação ou
divisão entre homens e mulheres. Por essa ótica, nos exploração da mulher estão atreladas às relações de
anos 70, objetivava-se fortemente, no debate poder, deslocadas de apenas serem pensadas como
feminista, acabar com a discriminação entre homens ligadas à estrutura, ao sistema ou à natureza. Ainda no
e mulheres, tomando como base das lutas e reflexões tocante a essas percepções da divisão entre homens e
o Marxismo. mulheres, é salutar chamar a atenção para o fato de
que, nas duas primeiras compreensões o debate
Arendt (1958 apud Yannoulas,1994),
feminista era estritamente sobre a mulher, ou sobre as
postula quatro categorias que nos ajudam a entender
mulheres. Nesta ultima abordagem (os estudos de
as discussões antes mencionadas dentro do debate
gênero), o foco é a relação homem e mulher em seus
feminista. Para ela, esse debate se dava em torno das
gêneros e as conseqüentes exclusões/subordinações
polaridades público-privado e natureza-cultura.
ou igualdades, advindas dos processos de construção e
Segundo ela, na instância do público, está o homem e
legitimação de um modelo. Guiados por essa última
sua liberdade, diferente do privado, no qual se
abordagem, comentaremos o conceito de gênero
encontram as mulheres e os escravos, em decorrência
inteligível.
de necessidades: a reprodução da vida (por elas) e da
sobrevivência (por eles). No tocante à polaridade
natureza-cultura, temos a legitimação da divisão O conceito de gênero em algumas abordagens
entre homens e mulheres, pela essência, na primeira,
e pela socialização, na segunda.
O conceito de gênero é proposto inicialmente
Assim, podemos até dizer que “quase” por Rubin, em 1975, em seu livro “The Traffic in
distante destas polaridades, em um terceiro Women”, o qual, segundo ela, tem origem na “segunda
momento, surge dentro do debate feminista o onda” do feminismo, momento em que se buscava

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68 Ismar Inácio dos Santos Filho

entender a opressão das mulheres. Comenta que definições alternativas. Todavia, ressalta que, quando
nesse período o debate feminista se dava com base no associado ou acoplado ao sistema de parentesco, como
Marxismo, como apontamos anteriormente. Mas, em o fez Rubin, gênero é por ela percebido como
sua fala, “o marxismo (...) parecia incapaz de reduzido, pois, deve ser pensado como socialmente
entender os temas da diferença de gênero e da construído – na economia, na política, etc.,
opressão da mulher” (Rubin, 2003, p. 158). Assim, a instaurando relações de poder. Pela crítica e pela
partir da compreensão do sistema de parentesco, de consideração de gênero como uma categoria analítica
Lévi-Strauss, para quem o parentesco instituía a e histórica nos estudos sobre as relações de poder entre
heterossexualidade, associou a instituição da homens e mulheres consideramos que essa
identidade de gênero. Dessa configuração contextual pesquisadora amplia este conceito. Para a
e conceitual, a antropóloga passa a encarar as configuração de gênero como categoria analítica,
diferenças sexuais a partir do que ela denominou de Scott (1996) explica que ele é um elemento
“sistema de sexo/gênero”. constituído de quatro aspectos substantivos, quais
Para Rubin (1975, apud Saffiotti, 2005), por sejam, a simbologia cultural, a qual evoca
“sistema de sexo/gênero” compreende-se que as determinadas representações; a normatividade,
sociedades possuem determinadas maneiras de lidar porque pretende estabelecer interpretações para os
com o sexo, biologicamente falando, e que esse símbolos na ânsia de conter as possibilidades de outros
tratamento pode ser sexualmente igualitário ou significados; é político, isto é, atende a determinadas
estratificado – como parece ser a maioria dos casos instituições e organizações sociais; forjando, desta
conhecidos, observa Rubin. Assim, a opressão é o forma, uma identidade subjetiva. Nesta direção,
produto das relações sociais específicas (os gênero é ao mesmo tempo objeto e método de análise.
tratamentos) que organizam o sistema sexo/gênero, No tocante ao gênero como categoria
que serve a fins econômicos e políticos, podendo este histórica, ela diz que de posse dele como categoria
ser reorganizado através de ações políticas. Dada analítica é preciso ultrapassar as descrições de gênero
essa postura nas questões de dominação e e entender a ligação do passado com as práticas atuais,
subordinação da mulher, a ênfase agora é sobre o verificando a textualidade e os argumentos
aspecto relacional, compreendendo que masculino e construídos/apresentados nas narrativas históricas
feminino não são características inerentes ao homem sobre o masculino e o feminino e, assim, “descobrir a
e à mulher, mas construções subjetivas sociais, amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual
oriundas dos tratamentos que recebem em cada nas várias sociedades e épocas, achar qual o sentido e
sociedade. Neste direcionamento, Rubin avança em como funcionavam para manter a ordem social e para
relação ao feminismo casado com o marxismo, ao mudá-la” (Scott, 1996, p. 01), objetivando
tempo em que rejeita a ideia de essência e de compreender a construção das significações
universal de um ser-mulher. subjetivas. Logo, nos estudos de gênero é necessário o
Sobre o conceito gênero, Scott (1996) conhecimento histórico, pois este atua como parte da
concorda com a ideia de que masculino e feminino política do sistema de gênero. Desta forma, também
são elementos que têm sua constituição baseada nas associa ao conceito de gênero a noção de poder.
diferenças empíricas percebidas entre os sexos, Nesta emaranhada reflexão sobre o conceito
nas/para as relações sociais e enfatiza o aspecto gênero, e partindo das considerações de Rubin (1975),
relacional para os estudos, explicando que homens e Saffioti (2005) diz que o conceito de gênero abriu
mulheres devem ser entendidos como categorias caminhos para se pensar alternativas à dominação
vazias e transbordantes; vazias porque não têm masculina, isto é, ao patriarcado, em sua
significados definitivos e transbordantes porque compreensão. Entretanto, faz algumas ressalvas. A
mesmo que percebidos como fixos, contém primeira delas é sobre a dicotomia sexo/gênero.

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Do conceito de Gênero ao de Gênero “Inteligível” 69

Segundo ela, não é possível conceber gênero como Na arena das reflexões sobre o conceito de
social e culturalmente construído e sexo como algo gênero, temos Butler (2003), para quem, em
inerente ao corpo. Ela diz, reflexão/consideração às ideias de Rubin sobre o
“sistema de sexo/gênero”, assegura que sexo não pode
O gênero independe do sexo apenas no ser concebido como natural, em oposição a gênero,
sentido de que não se apóia
necessariamente no sexo para proceder à
social e cultural, mas, como discurso cultural, tal
formatação do agente social. Há, no como gênero, pois, se assim não for, associa-se gênero
entanto, um vínculo orgânico entre sexo e a uma essência. Nesta direção, Butler (2003) explica
gênero, o vinculo orgânico que torna as três que gênero não é uma substância, ao contrário, um
esferas ontológicas [inorgânica, orgânica e fenômeno inconstante e contextual. Para ela, gênero é
cultural] uma só unidade, ainda que cada
apenas um ponto de convergência entre aspectos de
uma delas não possa ser reduzida à outra.
Obviamente, o gênero não se reduz ao sexo, relações culturais, sociais e históricas. Logo, não
da mesma forma como é impensável o sexo sendo substância, não se é masculino ou feminino,
como fenômeno puramente biológico. Não mas se está masculino ou feminino – elemento
seria o gênero exatamente aquela dimensão inconstante e contextual. Deste modo, não existiria,
da cultura por meio da qual o sexo se
para essa pesquisadora, a identidade de gênero,
expressa? Não é precisamente por meio do
gênero que o sexo aparece sempre enquanto um sujeito-uno, diferentemente, existem
vinculado ao poder? [inserção nossa] expressões de gênero. Sendo assim, “ser” masculino e
(Saffioti, 2005, p. 70). “ser” feminino é apenas um efeito; uma performance.
Com este alerta e por outra observação, as
A segunda ressalva na verdade é um alerta. discussões de Butler nos fazem entender que nas
Saffioti (2005) comenta que ao perceber o masculino perspectivas de Rubin (1975), Scott (1996) e Saffioti
e o feminino como instaurados por e instaurando (2005), gênero é entendido como separado (apenas
relações de poder, é necessário entender que o poder moldado) do poder de sua regulação, esta como
pode ser partilhado, isto é, pode gerar liberdade anterior à sua instituição. Porém, para Butler, as
como também desigualdades e que assim é de subjetividades não são moldadas pelas relações, mas
fundamental importância que o conceito de gênero são construídas pelos diversos dispositivos sociais nas
esteja imbricado com outros conceitos, tais como, o relações. Para Rodrigues (2005), das reflexões de
de classe e o de etnia, pois só assim é possível o Butler, é possível que o que de fato ela questione seja
tratamento relacional entre o masculino e o “Quando acontece a construção de gênero”? Para
feminino, numa abordagem qualitativa, pois melhor compreensão, e servindo como resposta, Arán
complexa. Dessa maneira, essa pesquisadora e Peixoto (2007, p. 133) esclarecem que Butler explica
expressa sua recusa ao uso exclusivo do conceito de que,
gênero. Para ela, este deve ser pensado ao lado do
conceito de patriarcado, entendido como um caso o gênero não é nem a expressão de uma
específico de relações de gênero, visto que em nossa essência interna, nem mesmo um simples
artefato de construção social. O sujeito
sociedade há a opressão masculina sobre as
gendrado [como masculino e/ou feminino]
mulheres, na qual estas são percebidas como objetos seria, antes, o resultado de repetições
de satisfação sexual e como reprodutoras de constitutivas que impõem efeitos
herdeiros, força de trabalho e de novas reprodutoras. substancializantes [inserção nossa].
Defende ainda que os estudos sobre a mulher não
devem ceder espaço total aos estudos de gênero, pois Nessas considerações, o que existe é uma
ainda podem contribuir muito para a compreensão da espécie de naturalização de uma suposta identidade
atuação das mulheres. em decorrência das repetições da performance ou das

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70 Ismar Inácio dos Santos Filho

interpelações para esta performance, que sempre desenvolvidas pelas antropólogas Rubin, Scott,
reiteradas, reforçam o efeito de natural. Deste modo, Saffioti e Butler, expostas no item anterior, acerca do
o masculino e feminino são efeitos construídos conceito de gênero, ao mesmo tempo em que avançam
socialmente. Gênero, neste sentido, conceitualmente sobre os estudos sobre a mulher,
agora abordando os estudos relacionais entre
é uma identidade tenuemente constituída masculino e feminino, apresentam todos os
no tempo, instituído num espaço externo
por meio de uma repetição estilizada de
parâmetros para entendermos como se processa a
atos. O efeito do gênero se produz pela instituição dos gêneros. A partir delas,
estilização do corpo e dever ser entendido, compreendemos que “ser” masculino ou “ser”
conseqüentemente, como a forma feminino não é algo que está inerente aos
corriqueira pela qual os gestos, aspectos/estruturas biológicos(as), ao contrário, é um
movimentos e estilos corporais de vários
constructo social, cultura, político e ideológico. Ou
tipos constituem a ilusão de um eu
permanente marcado pelo gênero. Essa seja, é um artefato que constrói relações de poder,
formulação tira a concepção do gênero do sendo nessas relações construído.
solo de um modelo substancial de
Se compreendemos que o masculino e o
identidade, deslocando-a para um outro
que requer concebê-lo como uma feminino são construções decorrentes das maneiras
temporalidade social constituída. como as sociedades tratam/lidam com o sexo,
Significativamente, se o gênero é instituído podemos também entender que esses tratamentos
mediante atos internamente descontínuos , podem diferir nas diversas sociedades, gerando,
então aparência de substância é assim, poder de igualdade ou de desigualdade, como
precisamente isso, uma identidade
construída, uma realização performativa
ainda é o caso da nossa sociedade ocidental. Todavia,
em que a platéia social mundana, incluindo essa construção social não se dá sobre uma
os próprios atores, passa a acreditar, subjetividade estabelecida a priori, ao oposto, na
exercendo-a sob a forma de crença medida em que o masculino e o feminino são forjados,
(BUTLER, 2003, p. 200). constroem-se os sujeitos.
Butler (2003) vai além e aponta para um
Com base nestas definições, concordamos aspecto de fundamental importância na construção
com Butler (2003) e Arán e Peixoto (2007) que o dos gêneros, o qual nos ajuda a entender, por exemplo,
gênero é ele próprio uma norma, bem como uma a declaração pública do jogador Ronaldinho sobre sua
forma de resistência, pois, se é constantemente heterossexualidade. Essa pesquisadora esclarece que
construído, a construção pode se dá em outras o gênero não é algo fixo, logo, não se é masculino; não
direções. se é feminino. Diferentemente, se está masculino; se
está feminino. Ou seja, em suas reflexões nos propõe o
vislumbramento de que o masculino e o feminino são
3. Algumas considerações – gêneros
construções contextuais, por isso, inconstantes, e que
“inteligíveis”: a heterossexualidade como norma
deste modo, as sociedades, frente aos seus projetos
políticos de sistema sexo-gênero, estabelecem forças
Nesse momento do texto, preferimos reguladoras para garantir a masculinidade e a
concluir retomando algumas informações acerca da feminilidade. Sendo assim, podemos nos questionar
construção do conceito de gênero e apresentando se seria a atitude do jogador um reflexo dessas forças
que, dentro dessa construção, chegamos a outro da política de sistema de sexo-gênero. Mas, como, de
conceito de grande valor para os estudos de gênero e fato, ocorrem as construções de gênero?
sexualidade: gênero inteligível. As reflexões A partir de Butler (2003), podemos afirmar

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Do conceito de Gênero ao de Gênero “Inteligível” 71

que nas relações sociais, os gêneros são sempre 6. Referências


“ensaiados”, isto é, são sempre a partir de diversos
traços vividos: gestos, corpo, roupas, danças, falas, ARÁN, Márcia; PEIXOTO JÚNIOR, Carlos Augusto.
voz, etc. Nessas mesmas relações, os gêneros são Subversões do desejo: sobre gênero e subjetividade em
interpelados; são chamados a permanecerem com os Judith Butler. Cadernos Pagu. (28), 2007. p. 129-147.
“ensaios” dos mesmos traços, repetindo e reiterando- BUTLER, Judith. Sujeito do sexo/gênero/desejo. In:
os, para garantir o caráter natural de uma substância BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e
masculina; de uma substância feminina. Por esse subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
ângulo, a própria substância torna-se uma norma. Brasileira. 2003. p. 16-60.
Voltemos a nos questionar. Em decorrência do antes HARTMANN, Heid. O casamento infeliz do
exposto, parece-nos que a “fala” de Ronaldo é uma marxismo com o feminismo: por uma união mais
interpelação, uma reiteração; um chamado a progressista. Traduzido para uso didático por Suzel
vivenciar o mesmo traço. Por quê? Reily a partir da publicação no livro SARGENT, Lydia
(Org.). Women and Revolution. Boston: South and
Para essa compreensão é necessário que nos
Press. 1981.
perguntemos sobre o que é considerado nos traços do
masculino e do feminino como de fundamental RODRIGUES, Carla. Butler e a desconstrução do
importância para que se efetive tal construção. Butler gênero [Resenha]. Estudos Feministas. 13(1): 216,
janeiro-abril. 2005.
(2003) outra vez nos auxilia nesta compreensão, pois
nos mostra que nas sociedades ocidentais os traços RODRIGUES, Fabiana Cardoso Malha. Algumas
na construção de gênero devem “gerar” um “gênero notas sobre o pensar com gênero. Disponível em
inteligível”, isto é, nessas sociedades, o masculino e <http://www.historia.uff.br/nec/textos/doss1-1.pdf>.
Acesso em junho de 2008.
o feminino têm que internamente instituir e manter
coerência e continuidade entre sexo/gênero e prática RUBIN, Gayle. [entrevista]. Cadernos Pagu. (21).
e desejo sexuais. Essa coerência interna, segundo 2003. p. 157-209.
explica a pesquisadora, exige a heterossexualidade SAFFIOTI, Heleieth. Gênero e patriarcado. In:
estável. Dito de outro modo, o masculino e feminino Brasil. Presidência da República. Secretaria
se “realizam” através da prática heterossexual. Especial de Políticas para as Mulheres. Brasília.
2005. p. 35-76.
Desta maneira, quando Ronaldo assegura
“sou completamente heterossexual” está SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a
preservando a sua face, no mesmo momento em que análise histórica. Recife. SOS Corpo – Gênero e
Cidadania. 1996.
se interpela (como também interpela outros) para
seguir a matriz de inteligibilidade de gênero, sendo SCOTT, Joan. Igualdade versus diferença: os usos da
regulado pela perspectiva da heterossexualidade teoria pós-estruturalista. In: SCOTT, J. Feminismo e
como norma/regra para a prática sexual. Ao declarar- cidadania. São Paulo: Melhoramentos. 1999. p. 203-222.
se heterossexual, estabelece e regula a SOIHET, Rachel. História das mulheres e relações
heteronormatividade. Neste projeto de gêneros de gênero: algumas reflexões. Disponível em
inteligíveis, as descontinuidades e as incoerências <http://www.historia.uff.br/nec/textos/text33.PDF>.
são constantemente proibidas, negadas, excluídas e Acesso em junho 2008.
fortemente rejeitadas. É em decorrência desse STRATHERN, Marilyn. Um lugar no debate
ângulo de ver os gêneros e as práticas sexuais que feminista. In: STRATHERN, M. O gênero da dádiva.
nascem os diversos preconceitos contra os Campinas: Editora da Unicamp. 2006. p. 53-77.
homossexuais, os bissexuais, os transexuais, etc., YANNOULAS, Sílvia Cristina. Iguais mas não
visto que estes não se enquadram nos moldes de um idênticos. Revista Estudos Feministas. Rio de
gênero inteligível. Janeiro, ano 2, vol. 2, nº 3, jan/jun. 1994. p. 7-16.

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QUANDO A ANTROPOLOGIA ENCONTRA O DIREITO: NOTAS


SOBRE UM DIÁLOGO (IN)TENSO
When the Anthropology finds the Law: notes on an (in)tense dialogue.

Davy Batista de Sales1

RESUMO ABSTRACT

Neste artigo pretendemos localizar In this article we intend to find some


algumascontribuições da antropologia para anthropological contributionsto understand
o entendimento do fenômeno jurídico. the legal phenomenon. It is pointing out
Trata-se de apontar possibilidades de possibilities of dialogue between knowledge
diálogo entre os saberes dos antropólogos e of anthropologists and lawyers whose
dos advogados cujo mérito seria viabilizar e meritwould feed and encourage legal
fomentar a construção jurídicano horizonte construction in comparative and plural
plural e comparativo, entendido como horizon,understoodasaspace to exchange
espaço paratrocar experiências sobre como experiences on how men produce and feed
os homens produzem e alimentam suas their orders and social controls.
ordens e controles sociais.
Key-words: Law. Anthropology. Cultural
Palavras-chave: Direito. Antropologia. Diversity. Ethnic Minorities.
Diversidade Cultural. Minorias Étnicas.

1
Bacharel em Ciências Sociais (UFAL); Mestre em Antropologia (UFPE); E-mail:
davysales@gmail.com
74 Davy Batista de Sales

1. Introdução não perde de vista a universalidade da condição


humana. O ponto de vista antropólogico não toma o
ocidente como medida para todas as coisas: ela
A antropologia preocupa-se em conhecer o
localiza, relativiza e descoloniza os discursos sobre as
homem e suas obras, nesse caminhar, leva em conta
culturas humanas na intenção de criar um pensamento
suas múltiplas dimensões: é o homem
sobre os homens.
simultaneamente um ser biológico, psicológico,
social, cultural e político. Essa especificidade
humana, sem par entre outras espécies, engendrou a 2. O jurídico como questão para a antropologia
singularidade de sua existência: inventou deuses,
criou artes, elaborou direitos, construiu instituições,
Para ilustrar, mas sem pretender ser
desenvolveu tecnologias e alimentou moralidades.
exaustivo, o interesse dos antropólogos pelo campo
Está enredado nessa teia de significados (Geertz,
jurídico toma vulto no final do século XIX com
1978) a orientar os caminhos que está a percorrer
Morgan e Maine (ambos advogados e antropólogos)
para o progresso de sua existência social e cultural.
interessados no direito “primitivo”, através de
A ciência do homem nasceu no mundo processos de juridicização dos nativos que
europeu quando este entrou em contato com “outros estudavam(1). No início do século XX Radcliffe-
mundos”: àqueles exóticos, selvagens, rústicos ou Brown aprofunda a idéia de um direito primitivo,
bárbaros. Foi, também, um projeto que visava ligando estritamente a aplicação de sanções e força.
orientar a administração das colônias e povos que os Será com Malinowski que a antropologia não mais
europeus começavam a estabelecer contato para separará o direito do contexto local, colocando
domínar seu futuro e seus territórios. Era necessário dúvidas sobre a premissa de sua universalidade. A
um saber sobre aqueles “sem deus, sem rei e sem lei”. ênfase em um viés evolutivo dominava a academia
Missões religiosas e interesses econômicos ditaram européia nos estudos de direito comparado, cuja
os caminhos e a antropologia só fez uma autocrítica preocupação central seria colocar diferentes direitos
no final do século XX, quando abandonou em um continuum da evolução social e histórica das
definitivamente um certo tipo de “intervenção para o sociedades humanas, mas este projeto foi contestado
progresso” em um processo de descolonização do por uma antropologia que defendia a diversidade
seu saber (Ver Clifford 2002 e Said 2008). jurídica contra o projeto unificador do direito
A antropologia permite compreender a razão comparado.
e o direito ocidental e doa-se como arena onde este Kuper (2008) reconstrói a trajetória desde a
perde seu caráter de superioridade e centralidade, perspectiva de que o pensamento antropológico foi
com estudos que procuram desconstruir as bases do forjado, em larga medida, por jurístas interessados no
pensamento ocidental através de seu instrumental “direito dos povos selvagens” como, por exemplo,
teórico que prioriza uma descolonização de Henry Maine (Ancient Law, 1861), J. F. McLennan
categorias como razão, direito e justiça, enquanto (Primitive Marriage, 1865), Lewis Morgan (Ancient
permite uma leitura não etnocêntrica das categorias Society, 1877) e Johannes Bachofen (Das
que sustentam o direito. É a antropologia que procura Mutterrecht, 1891). Estavam interessados em
compreenderas múltiplas culturas humanas e suas compreender a natureza da origem das sociedades
sociedades, pensando sua especificidade não mais (matriarcal versus patriarcal), questões de evolução
em termos evolucionistas, mas a partir do sociocultural e as especificidades dos sistemas de
pressuposto de que não há uma razão única que parentesco e descendência dos mundos não-
contemple a diversidade humana. Esta pensa o ocidentais.
“outro” desde uma perspectiva local e relativa, mas
Os impasses se manterão até a fundação de

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Quando a Antropologia encontra o Direito: notas sobre um diálogo (in)tenso 75

uma antropologia feita fora dos gabinetes. Com a (Mauss, 2003) que configuram direitos e obrigações
chegada dos dados etnográficos trazidos por assentadas na solidariedade e mutualidade que
antropólogos no campo, como Boas (Inuit) e mantém o laço social.
Malinowski (Trobiandeses), as análises da sociedade Clastres (2003) em seu magnífico «A
e do direito dos povos indígenas mudarão de tom, Sociedade contra o Estado» desconstrói o mito do
colocando em xeque os etnocentrismos e marcando Estado enquanto o único garantidor da ordem social.
uma ruptura ao coletar in loco as informações.Mais Clastres mostra justamente como um povo luta
do que isso, tratava-se agora de levar em cotidianamente para impedir o surgimento do Estado.
consideração o direito em sua artesania, misturada a Não são uma sociedade «sem», mas uma sociedade
vida. «contra» o surgimento do Estado. Schritzmeyer
Na experiência etnográfica, método e alma (2005) enfatiza que hoje se questiona o Estado “talvez
da antropologia, cada antropólogo vive em si mesmo o maior mito jurídico moderno” tanto quanto a
a cultura que ele experimenta e procura dialogar. Fica oposição indivíduos e grupos, leis e pluralismo,
grávido desta. Ao ampliar o leque de descrições direito positivo e direito costumeiro, e mostra que o
etnográficas cunhado em experiências vividas por costume (e não leis positivas) alimenta relações
antropólogos nas mais variadas comunidades sociais. Assim, todo direito que pretenda compreender
humanas, a antropologia produz material empírico o humano deve aceitar o diálogo com o campo das
através de descrições densas escritas por etnógrafos ciências sociais, notadamente a antropologia.
treinados e menos em especulações e induções a Krotz (2002) ensina que há três campos
partir dos relatos de administradores coloniais. discerníveis na antropologia jurídica que seriam, (1) o
Neste momento, o contato com povos que direito comparado, (2) o direito visto sob a ótica do
não pertencem à ordem ocidental propiciou o controle social e (3) o direito e a ideologia. Krotz
surgimento da ciência antropológica, com franca pretende definir a antropologia, seus conceitos e
denúncia dos ocidentalismos e seus etnocentrismos. métodos de investigação. Ainda que o livro
O “selvagem” começava a ganhar um estatuto organizado por Krotz revele o estado da arte desta
propriamente humano, e ficava claro que estes povos antropologia no México, o conjunto de textos do livro
não estavam no início de nossa humanização e é capaz de desenhar o horizonte antropológico em
civilização, na verdade se tratava de mais um modo confronto ao plano jurídico, para isso constrói análises
de ser homem no mundo, modos específicos de lidar da situação jurídica entre os povos indígenas tanto
com a vida social, modos particulares de tecer sua quanto procura elaborar um convite à pesquisa nesta
própria cultura e seu destino. Nem início nem fim de área.
nossa humanidade, apenas humanos forjando suas Geertz (1997) propõe entender o direito como
existências em tempos e espaços distintos. uma maneira de imaginar o mundo em meio a outras (a
Assim, Malinowski (2002) percebeu que o arte, o senso comum), mas o direito é uma
direito trobiandês não se apresentava como algo representação normativa (dever/ser, lei/fato) para
separado do mundo cotidiano. O plano jurídico configurar o plano da justiça. Ao questionar o uso das
estaria no mesmo invólucro dos modos de regulação categorias jurídicas do ocidente para o estudo do
social como economia, política, moral, magia ou direito no contexto comparativo, procuramos
religião. Todo o direito trobriandês só seria apreender sistemas locais de regulação social e
inteligível através da «lente» do direito da mãe e da resolução de conflitos em seus próprios termos. É
reciprocidade. Não haveria assim um direito no nesse sentido que Geertz (op. cit.) mostra como cada
sentido ocidental, senão modos de manter pessoas cultura elabora seu modo próprio de senso de justiça –
em circuitos de prestações e contraprestações como o adat (etiqueta) malaio, o haqq (verdade)

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76 Davy Batista de Sales

islâmico ou o dharma (dever) indiano. Interpretar direito que vê a si mesmo como estando fora do
antropologicamente o fenômeno jurídico em escala movimento social e histórico.
planetária exige uma relativização dos pressupostos No caso brasileiro, há diferentes sistemas
do direito ocidental, ou perderemos a chance de jurídicos validados e alimentados por distintos grupos
tentar compreender o problema em sua étnicos que lutam por um diálogo com o sistema
profundidade, complexidade e diversidade. jurídico estatal. Neste horizonte, há espaços para
diálogos tanto quanto para conflitos, o que exige uma
3. O ensino jurídico monista numa sociedade capacidade de abertura de ambos os sistemas. Os
plural grupos indígenas, por exemplo, possuem seus
próprios sistemas jurídicos onde procuram expressar
seu modo particular de busca por justiça. O jurista
O campo do direito tem crescentemente precisa dialogar com o saber antropológico para
dado atenção à reflexão antropológica. Mas como a interpretar e compreender o jurídico «nativo», para ser
abertura para esse diálgo é relativamente recente, capaz de propor alguma mediação. Trata-se, portanto,
aguarda um tratamento e reflexão por parte dos de articular valores universais com a especificidade
legisladores e juristas, para que o direito incorpore local
seus resultados de forma mais qualitativa. Basta
São as questões de etnicidade, alteridade,
observar que na formação dos novos advogados, os
tolerância e autodeterminação que permeiam grande
discursos evolucionistas, já abandonado pelos
parte das preocupações de etnógrafos pesquisando o
antropólogos, continuam a alimentar a sala de aula, o
jurídico. E as contribuições que estes podem oferecer
currículum, a lei e os tribunais. De fato, o direito no
ao diálogo com o direito são ricas e produtivas, se
Brasil tem mostrado certa dificuldade em lidar com a
pudermos estabelecer canais de trocas. Neste diálogo,
diversidade cultural presente no Estado brasileiro,
há o reconhecimento dos direitos dos povos
lar do multiculturalismo e da plurietnicidade.
tradicionais frente a expansão da sociedade nacional.
É porque constatamos uma ausência de Na condução da administração de conflitos, a
saber plural e antropológico no ensino jurídico antropologia pode esclarecer uma relação processual
brasileiro, onde leituras conservadoras, mais humana. Para além dos temas que envolvem os
etnocêntricas, colonialistas e elitistas, povos tradicionais, há um amplo domínio etnográfico
constantemente negam a pluralidade étnica também junto aos grupos minoritários, excluídos e
constituinte desta realidade social e cultural, vulneráveis na esfera da vida sob a legalidade estatal.
servindo apenas como mantenedor acrítico do status
O que a antropologia jurídica vai nos ensinar é
quo, o que tende a traduzir-se em uma formação que
a ver que noções como direito, justiça ou liberdade,
pensa o direito sob uma ótica marcadamente
não possuem validade universal automática. Cada
ocidental, burguesa, liberal e capitalista. Ao formar
cultura humana possui um modo particular para
advogados que desconhecem as relações de
definir e operar seu direito. O fenômeno jurídico é
alteridade, estes acabam por aprender (através da
universal, mas a forma como este interfere e organiza a
retórica, do consenso e do positivismo) a anulação
vida social não se reduz à nossa racionalidade jurídica.
das diferenças, porque mantém uma interpretação
Desse modo, é uma disciplina acadêmica que pode
unívoca da vida social. É um entendimento jurídico
oferecer um espaço crítico para que o direito possa
que coloca realidades, por exemplo, ameríndias, sob
pensar a si mesmo para além das categorias que o
um escrutínio eurocêntrico, pilar do direito estatal do
define desde uma perspectiva positiva, normativa e
ocidente. Desse modo, a formação jurídica não
estatal. O diálogo entre a ciência antropológica e
transforma o neófito para operar o direito em direção
jurídica deve, segundo Geertz (1997) se dá em um «ir e
a uma emancipação humana mas para reproduzir um

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Quando a Antropologia encontra o Direito: notas sobre um diálogo (in)tenso 77

vir hermeneutico» que produza o espaço onde direito mudam no tempo e no espaço, possuem uma cor local,
e antropologia possam dialogar, no sentido de buscar estão ligadas intimamente ao contexto onde surgem e
soluções para problemas comuns aos dois campos, por onde se sustentam, não sendo possível conduzir o
como a ordem e o controle social na perspectiva da direito ao contexto comparativo, sem levar em conta a
agência e autonomia humana. manufatura artesanal da lógica local de resolução de
Holanda (2008) enfatiza a necessidade de conflitos, legalidades e justiça. E estes nem sempre se
ampliar a interpretação do fenômeno jurídico e de reduzem a uma lente e critérios puramente estatal e
suas categorias para contemplar a diversidade normativo.
humana e sua complexidade social e cultural, o que
demanda um olhar crítico, plural e contextual: 4. Breves notas sobre a antropologia jurídica no
Brasil
o direito ao reconhecimento à diversidade
cultural só poderá ser efetivamente
garantido se for superado o pensamento A produção antropológica que tem como foco
monista do Estado, ou seja, de que ele não é
o único produtor de juridicidade. Tendo em o direito tem crescido no Brasil. Os principais
vista as diferenças culturais, é de notar-se programas de Pós-Graduação em Antropologia estão
que não existe apenas uma única concepção desenvolvendo dissertações e teses nessa área e as
do que é a vida, morte, ética e ser humano. reuniões de antropologia no Brasil revelam um
(Ibid., p.143) enorme interesse pelos resultados dessas pesquisas.
Deixaremos para outro momento o exame minuncioso
O modo de ensino e prática jurídica desta produção. Por enquanto pretendemos apenas
hegemônica – a normatividade estatal – acentua uma fazer um pequeno recorte que demonstre alguns
única fonte e forma de fazer e interpretar o direito. problemas que os antropólogos estudam quando
Imaginamos que esta postura é abertamente observam o direito.
monocromática e empobrecedora para realizar uma
A universalidade dos direitos humanos e seus
ciência jurídica. O direito se traduz, aqui, em mero
possíveis limites foi tema de discussão no GT Direitos
recorte de uma legalidade ocidental, liberal e
Humanos, Práticas de Justiça e Diversidade Cultural
burguesa. É, nesse sentido, que alguns pesquisadores
ocorrido na 26ª RBA. Nesse GT, Schritzmeyer (2008)
falam de uma crise no ensino e na pesquisa jurídica
questiona: é a defesa dos direitos humanos uma forma
(cf. Guerra, 2004; Mangialardo, 2004; Rodrigues,
de “ocidentalcentrismo”? O problema para a autora é
2000). Bastaria o «dever-ser» estatal. Parece-nos que
que não podemos falar de «natureza humana» ou
este viés alimentado no ensino tradicional é
«humanidade» sem adotar pressupostos ocidentais, o
proposital: fabricar bacharéis em série para atender
que indica uma resposta afirmativa. Entretanto, a
ao “mercado”, porque pensar o direito os levaria
autora avisa que “restam, ao antropólogo pesquisador
necessariamente a uma crítica incômoda mas
e militante nessa área, alternativas éticas para que não
extremamente enriquecedora – compreender a
se sinta politicamente paralisado”.
artificialidade e a não naturalidade de suas
premissas, de sua legalidade e de sua legitimidade Peirano (2006), ao procurar entender o papel
(Santos, 2003) do Estado na vida das pessoas, leva a cabo uma análise
do significado dos documentos como Carteira de
O ensino de antropologia nos cursos de
Trabalho e Título de Eleitor no contexto da cidadania
direito conduz a um diálogo (in)tenso sobre como
brasileira. Observa que esses documentos são
diferentes povos, e mesmo diferentes grupos,
emitidos nos órgãos públicos “apenas para aqueles
fabricam aquilo que Geertz (1997) chamou de
que preenchem determinados requisitos estipulados
«sensibilidades jurídicas». Essas sensibilidades
por lei. Eles cumprem, portanto, a função de distinguir

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p73-84, jan/jun. 2010


78 Davy Batista de Sales

o cidadão do marginal.” (Ibid., p.123, grifos da posições. Um grande problema é lutar por «direitos
autora). coletivos» numa justiça que opera basicamente sob a
A orientação etnográfica, propriamente ótica dos «direitos de indivíduos».
antropológica, de privilegiar a visão nativa daqueles O Estado-Nação brasileiro é pluriétnico e
que “sustentam e promovem o Estado, e que multicultural desde a sua fundação (ainda que este
sobrevivem sob seu domínio” (Ibid., p.137) adquire nem sempre se apresente assim oficialmente – apenas
um estatuto de originalidade quando se propõem a partir da Constituição de 1988), o que exige um
contribuições para o avanço do entendimento das direito com capacidade de apreensão plural do
características do «nosso» direito. Assim, conclui a fenômeno jurídico, para fundamentar o direito dos
autora, “os documentos são necessários porque os povos tradicionais, das minorias, dos excluídos(2).
indivíduos não podem provar, por eles próprios, sua Com larga tradição de estudos em diferentes mundos
unicidade. Precisamos que os documentos digam culturais, em tese, não há cultura humana onde
quem somos” (Ibid., p.145). antropólogos não tenham estado lá. Seu arsenal
Fleischer, Schuch e Fonseca (2007) teórico é capaz de “armar” o direito com sofisticadas
organizaram um livro com cerca de cinquenta análises de mundo tão díspares como «feiticeiros
monografias produzidas para as disciplinas de azande» quanto «patricinhas nova-iorquinas».
antropologia (do direito e jurídica) por seus alunos na O saber que as etnografias oferecem podem
UFRGS. As questões que se colocavam eram «quais ser utilizados para que os operadores do direito
as contribuições e questões colocadas para a possam pôr em prática aquilo que a constituição
antropologia no diálogo com o direito?» O mérito do garante e ampliar as possibilidades de justiça social
livro foi justamente sistematizar algumas pesquisas e para além da normatividade estatal, mas que continua
análises produzidas por antropólogos no campo a ser negado: um convívio legal que atente para a
jurídico, notadamente as questões relacionadas aos riqueza da vida brasileira, lar de uma imensa
direitos humanos, laudos e perícia diversidade cultural que pede, em agonia, amparo de
antropológica.Nesse sentido, o conjunto de textos novas perspectivas jurídicas para conter sua negação e
revelam um olhar sobre a antropologia enquanto aniquilação.
prática no contexto nacional, pois se trata de um As etnografias que tomam o fenômeno
ambiente complexo, onde se procura conciliar jurídico como preocupação central (as leis, os
interesses estatais com os direitos sócio-culturais de tribunais, os conflitos, as práticas jurídicas, os atores,
grupos étnicos e setores desprivilegiados. as representações), produzidas por antropólogos de
diferentes linhagens teóricas, tem oferecido saídas
5. Fundamentação antropológica do plano para problemas que o direito enfrenta, principalmente
jurídico em um ambiente pluriétnico como o Brasil.
As descrições etnográficas compõem o cerne
dos laudos antropológicos solicitados para constituir
Muitos antropólogos têm produzido laudos
parte das peças jurídicas quando estão em jogo o
e pareceres antropológicos para juntarem-se aos
reconhecimento de povos indígenas e seus territórios,
processos de homologação de territórios indígenas e
quando se procura defender territórios quilombolas,
quilombolas no Brasil. Estes são, por sua vez,
quando se faz necessáriaa defesa dos grupos étnicos
sistematicamente contestados por interesses que
e/ou excluídos e vulneráveis, problemas de direitos
visam instituir o “progresso” onde só há “selvageria”
socioculturais, civis e humanos.
e “atraso”. O saber dos antropólogos, uma longa
tradição de estudos junto a povos originais, atesta a As etnografias são esclarecedoras das
credibilidade e respeitabilidade de seus relatos e situações particulares ao tempo que se reveste da

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Quando a Antropologia encontra o Direito: notas sobre um diálogo (in)tenso 79

totalidade da vida social, desse modo é capaz de em conseqüência disso, uma consecução
captar os sentidos dos conflitos engendrados e dos mais qualificada de seus direitos.
(...)atualmente, a interpretação jurídica sobre
direitos negados sem que o contexto amplo da
fatos sociais marcados pelo pluralismo
sociedade perca sua coerência e vulto. O uso da cultural é um dos principais, se não o
antropologia no campo jurídico permite desvendar fundamental ponto de afinidade, mas
aquilo que Cardoso de Oliveira (2007, p.16) chamou também de tensão, na interação entre
de evidências simbólicas: antropólogos e operadores jurídicos no
Brasil. (grifos do autor)
O trabalho do antropólogo está muito
marcado por esta característica da Rego (2008) explicita a dimensão de
interpretação antropológica, ou por este
constribuições da antropologia, e sua aplicação, na
esforço em dar sentido a práticas e
situações sociais concretas, seja no plano seara das ciências jurídicas, historicamente distante do
da organização social ou da própria diálogo interdisciplinar. Os exemplos da intervenção
estrutura da sociedade, a partir da revelação dos procuradores, com base em argumentos e laudos
disso que eu estou chamando de evidências antropólogicos, vem colaborar para o surgimento de
simbólicas. Sem evidências simbólicas, o um espaço onde seria possível um saber plural em
antropólogo não seria capaz de produzir
uma etnografia adequada, ou uma confronto aos entendimentos e procedimentos
interpretação convincente da realidade estatais monistas e, por último, aquilo que o autor
estudada. chama de antropologização do jurídico:

O que quero destacar é que, ao ser acionado


É nesse viés que estudos antropológicos
como recurso, o conhecimento /
sobre a prática jurídica demonstram de maneira procedimento antropológico não é apenas
contundente que a tipificação jurídica prescrita nos agregado ao jurídico, mas, dado as
códigos estão longe de se referirem ao real, ou negociações de sentido que tal acionamento
material. Por outro lado, tais estudos expõem as implica, o primeiro suscita a possibilidade,
quando não a exigência, de transformações
táticas e estratégias dos advogados e seus clientes
no último. (Ibid., p.4)
frente a retórica jurídica dos tribunais. Aqui fica
muito evidente a valiosa contribuição entre os dois
Segato (2007) argumentou numa audiência
campos: o crescente interesse de antropólogos pelo
pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, contra
campo jurídico instiga este a procurar novos
a Lei 1057 que criminaliza a «prática do infanticídio»
caminhos, plano que conduz o direito ao cerne de sua
em áreas indígenas(3).A autora descreve sua leitura do
preocupação maior, qual seja, a consecução da
Jornal Correio Braziliense onde fica sabendo sobre 11
justiça.
bebês mortos em maternidade em Sergipe, vira a
Nesse sentido, Rego (2008) procurou página e lê sobre o depoimento de uma mãe que teve
entender como a atuação dos analistas periciais em dois filhos adolescentes mortos, mais adiante o jornal
antropologia do Ministério Público Federal ajudou a anunciava que de 41 adolescentes assassinados à
caracterizar o estado brasileiro como pluriétnico época, nenhum caso havia sido solucionado. Depois
através da efetivação dos direitos sócio-culturais mostra um pequeno relato sobre como um chefe
estabelecidos a partir da Constituição de 1988. No indígena Parkatejé tratou de recuperar as crianças do
produtivo diálogo entre antropólogos e seu povo perdidas no processo de expansão da
procuradores, Rego (Ibid., p.2) observa que sociedade branca no sul do Pará.
a assessoria que prestam aos procuradores Escreve Segato (Ibid.):
vem permitindo uma melhor compreensão
dos modos de vida dos referidos grupos e, Que Estado é esse que hoje pretende legislar

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80 Davy Batista de Sales

sobre como os povos indígenas devem Estado(5).


preservar suas crianças? (...) Que
autoridade esse Estado tem? Que
Segato (2006, p.221-228), preocupada em
legitimidade e prerrogativa? Que compreender a questão dos direitos humanos desde
credibilidade esse Estado tem ao tentar, uma perspectiva que dialoga com a diversidade
mediante nova lei, criminalizar os povos cultural, o relativismo antropológico e Estado
que aqui teciam os fios da sua história nacional, propõe algumas saídas para o universalismo
quando foram interrompidos pela violência
constituinte do direito estatal e ocidental. Em sua
e cobiça dos cristãos? Em face das
evidências que cada dia se avultuam e análise mostra que «a confusão entre identidade étnica
multiplicam sobre o absoluto fracasso e desígnio nacional é o que a racionalidade da lei deve
desse Estado no cumprimento das suas vir a combater». É que a etnia dominante impõe seu
obrigações e até na realização do seu código e os limites desta legalidade. A partir daí, as
projeto de Nação, vejo-me obrigada a
demandas e os conflitos serão tratados como se o
concluir que a única prerrogativa com que
esse Estado conta é a de ser o depositário do Estado nacional fosse uma arena de base étnica
espólio da conquista, o herdeiro direto do unificada.
conquistador. A nação seria, em última instância, aquilo que
a comunidade moral da etnia dominante estabelece, na
A antropóloga questiona seriamente quem medida em que «a lei adere a uma das tradições, ou
deveria ser levado ao banco dos réus: o povo seja, a um dos códigos morais particulares que
indígena ou o Estado brasileiro? O que a autora convivem sob a administração de um Estado nacional,
e se auto-representa como algo indiferenciado com
reclama justamente é que o Estado proteja e promova
relação a esse código». Para a autora, a circulação do
a “continuidade e vitalidade” dos modos de vida discurso legalé pedagógico no sentido de «inaugurar
indígenas como coletivos humanos e não agir apenas novos estilos de moralidade e desenvolver
sob a ótica dos direitos individuais.Seria preciso sensibilidades éticas desconhecidas». Segato explica
que a moral de uma determinada época e a lei
compreender e aceitar que cada povo tem o direito de
«interagem e cruzam influências» mútuas.
tecer os fios de sua própria história e não pura e
Para resolver o dilema entre moral e lei,
simplesmente criminalizar suas práticas culturais. Segato propõe que «o impulso ético é o que nos
Depois de mais de quinhentos anos de permite abordar criticamente a lei e a moral e
agressão e violência contra os povos indígenas, considerá-las inadequadas», porque o impulso ético
depois de exterminar nações inteiras, negar suas mantém o homem em vigilia permanente contra todas
culturas, eles ainda resistem como diferença, as verdades estabelecidas, sejam por meio da crítica
alteridade viva diante de um Estado punidor que não contra uma moral que engessa o presente e o fututo,
os reconhece e teima em desonrar suas tradições, tanto quanto da lei que não os reconhece nem os
seus mundos simbólicos, seus territórios ancestrais. autoriza. Por fim, Segato traduz magistralmente o
Basta atentar para o caso recente do papel da antropologia nesse campo de conflitos:
questionamento, feito pelos empresários do Somos plenamente humanos não por sermos
agronegócio, quanto a validade e membros natos e cômodos de nossas
constitucionalidade da homologação da Terra respectivascomunidades morais e sociedades
Indígena Raposa Serra do Sol, no Roraima(4). Essa jurídicas, mas por «estarmos na história», ou
seria a arena própria para sustentar a defesa de foros seja, por nãorespondermos a uma
programação, da moral ou da lei, que nos
étnicos, espaço de viabilidade de algum tipo de determine de forma inapelável. (...) A ética,
pluralismo jurídico, que pode ser garantido pelo definida nesse contexto, resulta da aspiração

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Quando a Antropologia encontra o Direito: notas sobre um diálogo (in)tenso 81

ou do desejo de mais bem, de melhor vida, Lançar mão da antropologia, não só dos seus
de maior verdade, e se encontra, portanto, métodos de pesquisa, mas também de seu
em constante movimento: se a moral e a lei arsenal teórico, para analisar o discurso do
são substantivas, a ética é pulsional, um direito e de seu campo de atuação é, na
impulso vital; se a moral e a lei são estáveis, verdade, promover o encontro entre duas
a ética é inquieta. (,,,) Esta seria, por disciplinas que se colocam em lados opostos
excelência, a contribuição ética de uma no que se refere à dimensão simbólica do
antropologia empenhada em mobilizar poder. Podemos dizer que o direito opera na
constantemente o campo da moral e do chave da “razão prática”. Numa lógica de
direito. (Ibidem, p.223-224) causa e efeito, a aplicação da lei baseia-se
numa correspondência direta entre dado,
fato, prova e a imagem de justiça. Para a
Ao legitimar o caráter pluriétnico do Estado antropologia, contudo, a idéia de “realidade
brasileiro na Constituição de 1988, o papel de tutor dos fatos”, pura e simplesmente não cabe, ou
dessa questão foi endereçado ao Ministério Público pelo menos não vem a ser uma preocupação
exclusiva. (Miraglia, op. cit. p.81-83)
Federal, que passou a contratar antropólogos
(analistas periciais) para participação em equipes de
A autora não recusa a importância da lei, mas
advogados em prol da efetivação dos direitos dela
aponta outros mecanismos de regras e autoridades,
decorrentes, como os direitos sócio-culturais. A
pois se o controle efetivo é por via legal, isso não
antropologia jurídica oferece um espaço muito rico
anularia uma série de reguladores sociais presentes em
de diálogo quando percebemos que há outras
noções como valor, tradição, hierarquia, legitimidade
possibilidades de direito para além do que nos é
e obediência que, por sua vez, não podem ser
imputado pelo Estado: o direito dos povos
reduzidos a mero produto da regulação estatal. Ainda
tradicionais leva ao questionamento das categorias
conforme Miraglia, se os juristas naturalizam o
que ordenam nosso próprio direito. Não apenas para
direito, o trabalho do antropólogo é mostrar o direito
desconstruí-lo, mas também para enriquecê-lo.
como uma construção cultural, pautada e orientada
por um conjunto de valores.
6. Primeiras conclusões: entre o jurídico dos Os antropólogos colocam em xeque tais
advogados e dos antropólogos
valores que se apresentam em forma de lei, ao
trazerem à tona as relações de poder que ditam
Miraglia (2005) ensina que, para os juristas, o soluções jurídicas nas relações entre partes
direito tem a função de promover a ordem social sob a conflitantes. Os advogados assumem que na dinâmica
garantia estatal pois não haveria sociedade sem Estado do processo, há espaço para a interpretação da lei. Ao
nem sociedade sem direito. O problema reside no fato antropólogo interessa mais a interpretação das ações
de que o direito, assim posto, não poderia compreender jurídicas, ou a lei em ação, os discursos, a aplicação da
sociedades cuja organização não parta da figura do lei.
Estado, portanto, enquanto o direito pensaria a A antropologia produz sua teoria no contato
organização social no horizonte de sua universalidade, direto dos etnógrafos junto aos grupos humanos com
a antropologia buscaria nas particularidades sociais o os quais convive enquanto estuda a condição humana.
questionamento de sua generalidade. Miraglia afirma A vivência e participação direta faz com que o
que a lei interessa aos advogados na medida em que antropólogo desenvolva preocupações éticas e
separa certo/lícito do errado/ilícito, enquanto os políticas para com os grupos que os acolhe. O métier
antropólogos assumem a lei como o aspecto formal do antropológico exige algum nível de participação e
controle social interpretado como um conjunto de engajamento que se traduz na advocacia
valores que poderia chamar de cultura. antropológica, comprometida sempre com grupos

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82 Davy Batista de Sales

sociais politicamente desfavorecidos, buscando cessação das vozes em nome de um discurso de


intervir e transformar. A advocacia antropológica é autoridade exterior ao contexto sociocultural onde se
uma da faces possíveis daquilo que entendemos por dá os conflitos e através do qual se alimentam as lutas e
antropologia aplicada. esperanças por justiça e reconhecimento.
Conforme nos ensina Seithel (2004, p.8-9),
o princípio que guia a advocacia dos antropólogos é *
ainda o direito à autodeterminação de todos os povos. **
Nesse sentido a ciência é vista não somente como um A antropologia procura compreendera
produto mas também como produtor de realidade humanidade a partir da comparação do modo como os
social, ambas refletindo e construindo e mudando as homens, em diferentes sociedades, pensam suas
condições sociais. Um advogado é aquele que existências e constróem seus mundos. Só com o
defende os interesses e direitos de uma pessoa ou um instrumental antropológico que categorias, como
grupo de pessoas (relação advogado-cliente) dentro direito e legalidade, por exemplo, são apreendidas
dos limites políticos e legais do sistema social. Este desde o ponto de vista relativo, é dizer, não
busca garantia pública de reconhecimento e interesse etnocêntrico e não universalista. Desse modo, é
no seu caso. Diferentemente da advocacia possível estudar «outros direitos» sem ter como única
antropológica, esta não busca um objetivo ético, referência as categorias que sustentam a ordem
político ou social específico, mas a defesa de casos jurídica do observador.
particulares. Nesse sentido, a natureza da advocacia Numa perspectiva evolucionista, idéia de que
dos advogados pode ser utilizada tanto para o progresso da civilização é o caminho por onde todos
populações desfavorecidas tanto quanto populações os povos obrigatoriamente tendem, o pensamento
socialmente privilegiadas. O advogado representa o ocidental opôs história e mito, relegou o primeiro aos
interesse do cliente, o que implica que o cliente não povos da “civilização e do progresso” enquanto o
tem voz. O advogado o representa como expert, segundo definiria os povos “selvagens e atrasados”.
como autoridade do saber jurídico do Estado. A Depois de empreender uma crítica dura às idéias
advocacia antropológica é, assim, o empoderamento evolucionistas e promover uma descolonização do seu
de um grupo frente às suas demandas e a criação de saber, a antropologia permitiu compreender esse
espaço de diálogo e reconhecimento, enquanto a pensamento a partir de referências externas enquanto a
advocacia jurídica, em seu desenho ocidental, busca boa parte do pensamento das ciências humanas
representar o cliente através das representações mantém-se em sua referência histórica e política numa
normativas escritas pelo Estado, que dita os limites visão etnocêntrica e evolucionista, não sendo
desse diálogo. diferente o modo como o direito é (re)produzido.
A advocacia antropológica define uma O direito, depositário do pensamento
estratégia de auto-advocacia e empoderamento dos evolucionista, tem sido, em alguma medida, incapaz
grupos subalternos, vulneráveis e marginalizados. de operar sem referência direta ao pensamento
Para Seithel (op. cit. p.39) o princípio que guia a ocidental. Trata-se do amplo e hermético campo de
advocacia dos antropólogos é ainda o direito à referências, noções convencionais e arbitrárias como
autodeterminação de todos os povos. As diferenças justiça e legalidade. Nesse sentido, a estrutura do saber
entre as duas práticas advocatícias (Ibidem, p.10) jurídico cultivado tende a reificar o poder da sociedade
pode ser vista como uma advocacia «para o grupo» e da qual emana.
advocacia «junto com o grupo», no primeiro caso,
A antropologia nos dá um espaço para avaliar
um expert atende, orienta e defende seu cliente, no
e criticar o pensamento positivista (iluminista e
segundo caso, o diálogo e a partilha de saberes,
universalista). Por isso é bastante difícil pensar um
empodera o grupo para a sua autodefesa, sem exigir a

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Quando a Antropologia encontra o Direito: notas sobre um diálogo (in)tenso 83

direito que não o direito ocidental, com sua área e com reação violenta, o que acabou suspensa por
pressuposição de universalidade, ancorado em decisão liminar do STF em 2008. Manifestações favoráveis
e contrárias à demarcação se sucederam, com farta
valores tidos como nobres e corretos. O problema é cobertura da imprensa. Após estudos sucessivos, a área foi
perceber que categorias do nosso pensamento, como formalmente identificada pela Funai em 1993. Nos doze
o Estado, o índivíduo ou a propriedade, alhures não anos seguintes até a sua homologação, fortes pressões
políticas retardaram o processo administrativo e
faz sentido, ou pelo menos, carece de fundamentação promoveram a invasão de arrozeiros, a criação de mais um
local ou nativa. É justamente nesse ponto que o município dentro da área e a divisão entre lideranças e
encontro entre os dois campos, o direito e a comunidades indígenas locais.O tratamento do caso,
frequentemente, tem ignorado os próprios índios. Embora
antropologia, pode fazer a diferença ao possibilitar a
sejam quase vinte mil naquela área, de distintos povos,
criação de um espaço de diálogo muito frutífero, falando suas próprias línguas, agrupados em quase duzentas
capaz de empreender mudanças na forma como o aldeias e organizados em entidades próprias, os índios são
direito é produzido, viabilizado e operado por suas reduzidos a peças de tabuleiro, ou simplesmente
desaparecem da história, substituindo-se os seus direitos e
diversas agências. anseios por supostos interesses de terceiros.No momento,
índios Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e
Notas Patamona respiram aliviados. O presidente Luiz Inácio
Lula da Silva assinou o decreto que homologa de forma
(1) A literatura é bastante ampla, sugerimos a leitura de contínua a área Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Paul Bohannan em A antropologia e a lei e Etnografia e (5) A esse respeito, Pinto (2008) nos oferece um panorama
comparação em antropologia do direito. Também Shelton amplo do estado da arte das discussões quanto ao
Davis oferece um bom panorama em Antropologia do estabelecimento de diálogo entre o Estado Nacional e os
Direito. Ainda sem tradução para o português há um povos indígenas sob sua jurisdição. A autora expõe um
magnífico trabalho escrito por Louis Assier-Andrieu breve panorama da legislação constitucional na América
denominado Le droit dans le sociétés humaines, além de Latina no que concerne aos direitos indígenas, partindo de
Norbert RoulandemAnthropologie juridique e uma reflexão histórica do conceito de autodeterminação dos
L'anthropologie juridique.Consultartambém Max povos e de reconhecimento da pluralidade étnica e cultural
Gluckmancom o ensaio Obrigação e Dívida.Um texto em dos Estados. O texto nos convida a pensar a pluralidade
inglês de Laura Nader, ainda sem tradução, chamado jurídica como algo factível e presente, pois que elabora,
Moving On – Comprehending Anthropologies of Law faz também, um quadro sobre cada Estado nacional e como este
uma análise cuidadosa do campo da antropologia em trata o campo jurídico indígena, no sentido de estabelecer
contato com o direito. juridicidade e autodeterminação dos povos indígenas
(2) Recentemente o MPF de São Paulo abandonou o júri frente/ou em conjunto ao Estado nacional.
do assassinato do cacique Marcos Veron após Justiça
negar abertura de oitivas na língua Guarani-Kaiowá. O
MPF declarou-se contra a decisão da juíza Paula Bibliografia
Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal Criminal de São
Paulo, que impugnou, a pedido da defesa dos réus, o
tradutor já designado para atuar na sessão. O cacique foi CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. O ofício
espancado e morto em 2003. Sendo as vítimas e
testemunhas de acusação da etnia Guarani-Kaiowá, o do Antropólogo, ou como desvendar evidências
MPF mostra a flagrande incapacidade de o judiciário simbólicas. Série Antropologia. No. 413, Brasília:
brasileiro conviver nesse ambiente plural (jurídica e UnB, 2007.
linguísticamente). O MPF recorreu ao TRF da 3ª Região
para que os índios envolvidos no processo possam se CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado.
expressar em sua própria língua. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
(3) A esse respeito sugerimos a leitura cuidadosa da CLIFFORD, James. A experiência etnográfica:
dissertação de mestrado Mariana A. F. Holanda intitulada
Quem são os humanos dos direitos? Sobre a Antropologia e Literatura no século XX. Rio de
criminalização do infanticídio indígena, defendida no Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
programa de pós-graduação em antropologia da FLEISCHER, Soraya et ali (org). Antropólogos em
Universidade de Brasília, em 2008.
(4) A demarcação foi concluída em 2005, com a edição do ação: experimentos de pesquisa em Direitos
decreto presidencial. Foi necessário uma operação Humanos. Porto Alegre: EdUFRGS, 2007.
policial para a retirada de arrozeiros ocupantes de parte da GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas.

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84 Davy Batista de Sales

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Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p85-100, jan/jun. 2010 85

A INTERVENÇÃO DO ESTADO NAS OPERAÇÕES DE FUSÃO E


INCORPORAÇÃO
The intervention of the State in fusing operations and incorporation

Thiago Barbosa Wanderley1

RESUMO ABSTRACT

A concentração econômica de empresas The economic concentration of enterprises


pode acarretar uma instabilidade do may cause financial instability in the market,
mercado, sendo necessário, em alguns being necessary, in some cases, to have the
casos, que o Estado impeça sua State using maneuvers to eliminate this
concretização. Desta forma, averiguaremos economical concentration in a way to assure
as hipóteses que autorizam o Estado a a fair competitive environment. In order to
intervir numa concentração empresarial, enable governmental interference, it's
tendo sempre por norte os princípios da livre essential that some constitutional principles
iniciativa e da livre concorrência. Para be followed, such as free initiative and free
compreender os motivos da intervenção competition. The present study is performed
estatal, nos utilizamos de uma revisão to evaluate the effects of enterprise
bibliográfica que integra diversos ramos do concentration in the economy and to allow a
direito. Tendo em foco o atual cenário full comprehension of the reasons for
mercadológico brasileiro, versaremos sobre governmental interference. Some legal rules
o fenômeno de concentração das empresas, that give the government the power to
avaliando seus efeitos perante a economia. paralyze the concentration of private
companies are brought for analysis.
Palavras-Chave: Concentração de
Empresas. Livre Concorrência. Cade. Key-Words: Company Concentration.
“Free Competition”. Cade.

1
Graduado pela Faculdade de Alagoas; Especialista em direito tributários pelo Instituto Brasileiro de
Estudos Tributários (IBET).
86 Thiago Barbosa Wanderley

1. Introdução É, por definição, mandamento nuclear de um


sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes
Diante da nova ordem capitalista mundial, a normas compondo-lhe o espírito e servindo
acirrada concorrência impõe uma necessidade de de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica
crescer para subsistir no mercado, levando diversas
e a racionalidade do sistema normativo, no
empresas a se unirem em busca de um melhor que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
desempenho. Desse modo, analisar a forma pela qual harmônico. (MELLO, 1988, p.230)
o Estado promoverá a manutenção da ordem
econômica mostra-se assunto bastante Verifica-se, pois, que os princípios
contemporâneo e de grande relevância. constitucionais formam o conjunto de diretrizes a
Te n d o e m v i s t a o a t u a l c e n á r i o serem observadas pelo legislador ordinário ao
mercadológico brasileiro, nos deparamos com um regulamentar aquilo que fora sacramentado na Magna
intrigante problema a ser desvendado: Quais são as Carta de 1988, estabelecendo os pilares para
situações em que o Estado, utilizando de seu poder consecução de seus objetivos.
regulador da atividade privada, pode obstar um ato Desta feita, mesmo sabendo que são diversos
de concentração empresarial, nas modalidades fusão os princípios constitucionais que permeiam a temática
e incorporação, por entendê-lo atentatório à livre da intervenção estatal nas operações de concentração
concorrência? econômica, tais como o princípio da soberania
Objetivando elucidar a indagação supra, nacional, da função social da propriedade e da defesa
traremos considerações doutrinárias acerca dos do consumidor, abordaremos a seguir apenas os
efeitos decorrentes de uma operação estritamente ligados ao tema.
concentracionista, sendo estes, pontos de
fundamental importância para compreendermos o
Os princípios da livre iniciativa e da livre
que motiva a intervenção estatal nas fusões e
concorrência
incorporações de empresas.

A República Federativa do Brasil insere, no


2. Princípios constitucionais
inciso IV do artigo inaugural de sua Carta Magna, a
livre iniciativa como um dos fundamentos de seu
Inicialmente, ressalta-se que qualquer Estado Democrático de Direito.
abordagem do Direito Brasileiro terá que guiar-se Tal assertiva legal se revela como um
pelo que fora crivado na Magna Carta de 1988, posto desdobramento da liberdade de agir, assegurando seu
que “a Constituição regula tanto o modo de produção gozo sempre dentro dos limites estabelecidos pela lei.
das demais normas jurídicas como também delimita
O legislador pátrio, ao constitucionalizar a
o conteúdo que possam ter”. (BARROSO, 2004,
ordem econômica, objetivou dispor sobre normas e
p.370)
diretrizes aplicadas à manutenção dos mercados e seus
Assim, faz-se necessária a abordagem dos agentes, proibindo práticas concorrenciais que
princípios constitucionais que servem de lastro ao atinjam as liberdades asseguradas em lei.
desenvolvimento deste artigo, sendo estes o
Não obstante o princípio da livre iniciativa
princípio da livre iniciativa e da livre concorrência.
conste como fundamento do Estado Democrático de
Conforme nos ensina Celso Antonio Direito, tal norte também figura como base da Ordem
Bandeira de Mello, princípio: Econômica, demonstrando o intuito constitucional de
proporcionar autonomia ao homem para que

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A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação 87

desenvolva sua capacidade empreendedora. Nesse torna-se obrigatório tecer comentários acerca do
sentido, Eros Roberto Grau nos ensina que: princípio da livre concorrência, posto que ambos se
complementam.
Afirmar a livre iniciativa como base é
reconhecer na liberdade um dos fatores Concorrência é a situação na qual se
estruturais da ordem, é afirmar a autonomia encontram, atual ou potencialmente, dois ou
empreendedora do homem na conformação mais empresários que, operando no mesmo
da atividade econômica, aceitando a sua âmbito de mercado, oferecem bens e serviços
intrínseca contingência e fragilidade; é suscetíveis de satisfazer, ainda que com
preferir, assim, uma ordem aberta ao meios distintos, a mesma necessidade, e, por
fracasso a uma 'estabilidade' supostamente conseguinte, encontram-se em uma situação
certa e eficiente [...] Isto não significa, de conflito de interesses em relação à
porém, uma ordem do 'laisse faire', posto clientela. (FRANCESCHELLI apud
que a livre iniciativa se conjuga com a CUÉLLAR, 2004, p.33)
valorização do trabalho. (GRAU, 2000,
p.232)
Quanto à conceituação da livre concorrência,
o festejado constitucionalista Alexandre de Moraes
Ao conceituar livre iniciativa, José Afonso (2001, p.646) preconiza que:
da Silva (2004, p.774) dita que:
constitui livre manifestação da liberdade de
não pode significar mais do que liberdade iniciativa, devendo, inclusive, a lei reprimir o
de desenvolvimento da empresa no quadro abuso de poder econômico que visar à
estabelecido pelo poder público, e, dominação dos mercados, à eliminação da
portanto, possibilidade de gozar das concorrência e ao aumento arbitrário dos
facilidades e necessidade de submeter-se às lucros (CF, art. 173, § 4º)”.
limitações postas pelo mesmo.
Vê-se então que o princípio da livre
Analisando o conceito supramencionado, concorrência não é um fim em si mesmo, tendo sido
notamos que há uma dialética razão entre liberdade e esculpido no inciso IV do art. 170 da Carta Magna
abuso, sendo missão do Direito e dos seus operadores como um lastro a ser perseguido pela ordem
preservar a primeira e tratar de acautelar-se contra a econômica, objetivando assegurar a existência digna
segunda. (PETTER apud ROCHA; JÚNIOR; de todos, senão vejamos:
DOBROWOLSKI; SOUZA ORGS., 2005, p.55)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na
É importante salientar que o princípio da valorização do trabalho humano e na livre
livre iniciativa deve ser analisado em consonância iniciativa, tem por fim assegurar a todos
com os demais princípios, uma vez que não constitui existência digna, conforme os ditames da
um fim em si mesmo, sendo apenas um instrumento justiça social, observados os seguintes
utilizado para promover uma existência digna. princípios:
IV - livre concorrência;
Resta evidente o caráter instrumentalista do
princípio da livre iniciativa, objetivando conceder Os princípios da livre concorrência e livre
condições favoráveis para que os agentes iniciativa são essenciais ao funcionamento saudável
econômicos explorem seus mercados (obedecidos os do mercado, constando no diploma infralegal que
ditames infralegais constitucionalmente permitidos disciplina a ordem econômica (lei 8.884/94), tendo
pelo legislador), alavancando assim o como intuito a proteção da coletividade, como se
desenvolvimento do país. depreende do art. 1º, in verbis:
Ao analisar o princípio da livre iniciativa,

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88 Thiago Barbosa Wanderley

Art. 1º Esta lei dispõe sobre a prevenção e a aquisição de direitos e ativos, que provoque a
repressão às infrações contra a ordem s u b s t i t u i ç ã o d e ó rg ã o s d e c i s ó r i o s
econômica, orientada pelos ditames independentes por um sistema unificado de
constitucionais de liberdade de iniciativa, controle empresarial. (FORGIONI apud
livre concorrência, função social da CARVALHO, 2005, p.466)
propriedade, defesa dos consumidores e
repressão ao abuso do poder econômico.
Note-se que a concentração do poderio
Parágrafo único. A coletividade é a titular
dos bens jurídicos protegidos por esta lei. empresarial poderá se dar através: a) da constituição
de um novo agente econômico criado a partir da
junção de duas ou mais empresas (como nos casos de
Portanto, quando o Estado houver de intervir fusão); b) no aumento estrutural de um agente,
numa operação de concentração empresarial, terá ocorrido em função da aquisição de uma ou mais
que observar os princípios da livre iniciativa e da empresas (quando se trata de incorporação) ou; c)
livre concorrência, preservando as garantias através de parcerias empresariais onde as diferentes
individuais e atuando sempre em prol da empresas se comungam esforços sem perder sua
coletividade. autonomia e distinção funcional (como ocorre nas join
ventures (1) e holdings (2)).
3. Concentração empresarial Cabe salientar, que das formas mencionadas
acima, abordaremos apenas as duas primeiras, ou seja,
as concentrações através de fusão e incorporação.
A necessidade de unir forças empresariais
teve origem na revolução industrial, onde foi O fenômeno concentracionista vem se
necessário o investimento de vultosas quantias para tornando uma condição de sobrevivência para
arcar com o aumento exorbitante dos gastos de diversas empresas, posto que a evolução do mercado
produção. Sendo assim, a idade industrial, marcada capitalista requer um sistema produtivo cada vez mais
por grandes investimentos (construções ferroviárias, integrado e preparado para aumentar a qualidade e
consolidação das instituições bancárias e diminuir o preço dos serviços e bens ofertados.
desenvolvimento das navegações), juntou agentes De outro lado, a crescente concentração do
econômicos que não teriam condições, poder econômico mostra-se elemento de possível
isoladamente, de proporcionar tal desenvolvimento. limitação da iniciativa privada, de forma a dificultar
Atualmente, a concentração empresarial ou até mesmo impedir que pequenas empresas
pode ser compreendida como um ato através do qual ingressem de forma competitiva no mercado, já que
duas ou mais empresas se integram, tornando uno o não possuem capital suficiente para exercer uma
poder decisório sobre o novo ente juridicamente concorrência efetiva.
formado, geralmente objetivando seu fortalecimento Diversas são as razões que levam os agentes
em face dos concorrentes, atingindo uma economia econômicos a concentrarem seus poderes decisórios,
de mercado. tais como: neutralizar os agentes concorrentes;
Nuno T.P. Carvalho, citado por Paula melhorar o aproveitamento dos recursos disponíveis;
Andréia Forgioni, brilhantemente aponta o conceito adquirir mão de obra especializada; preservar sua
de concentração empresarial: subsistência no mercado; aquisição de benefícios
tributários etc.
Concentração de empresas é todo o ato de Com efeito, a depender do caso concreto, a
associação empresarial, seja por meio da
concentração das empresas proporciona arranjo mais
compra parcial ou total dos títulos
representativos de capital social (com eficiente da cadeia produtiva, reorganizando o
direito a voto ou não), seja através da processo logístico de modo a reduzir os gastos,

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A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação 89

melhorando a produtividade da empresa. estabelecendo acordos entre concorrentes no


mesmo mercado relevante com respeito a
O progresso advindo do fenômeno preços ou outras condições, sejam praticando
concentracionista tem efeitos que se contrapõem, preços predatórios.
pois:

ao mesmo tempo em que a concentração de


Nesse contexto, a concentração é denominada
capitais é vista como indispensável ao horizontal quando atinge a concorrência por meio da
progresso e mesmo à eficiência do sistema aglutinação de empresas atuantes no mesmo plano da
produtivo, é também fator de instabilidade cadeia concorrencial, passando a abarcar em poder de
desse próprio sistema.” (FORGIONI, 2005, uma única autonomia decisória, mercado que antes era
p.478)
disputado individualmente pelas empresas envolvidas
no ato concentracionista.
Diante desse paradoxo, cabe ao Estado
Assim, há uma eliminação direta dos
intervir na esfera econômica privada, obstando uma
adversários empresariais, uma vez que a concentração
operação de concentração empresarial sempre que a
de capital, juntamente com a detenção de maior
mesma mostre-se perniciosa à coletividade, tendo na
número de unidades produtivas e/ou fornecedoras lhes
Lei n.º8.884/94 (também conhecida como lei
concederá a possibilidade de praticar preços menores,
antitruste (3)) o subsidio legal para a proteção desta
abalando consideravelmente a competitividade de
coletividade.
seus concorrentes.
Já quanto ao conceito de concentração
4. Classificação dos atos de concentração vertical, Brito (2002 p.114) assevera que:

A integração «vertical» está presente quando


As operações concentracionistas, podem ser se reúnem empresas em estágios de produção
classificadas em «horizontais, verticais», ou diferentes, desde as fontes de matéria-prima
«conglomeradas», a depender da posição que as até o produto final. As empresas não são
empresas envolvidas ocupem na cadeia produtiva. concorrentes, mas fornecedoras ou freguesas
umas das outras. Pode ser «ascendente» (para
Beatriz Gontijo de Brito (2002, p.114) trás) quando o controle dá-se sobre as
afirma que: matérias-primas ou seu aprovisionamento;
ou «descendente» (para frente), quando a
A concentração horizontal ocorre entre empresa central parte da produção e se dirige
empresas concorrentes, ou seja, do mesmo ao consumo.
estágio de produção ou atividade, que
atuam no mesmo mercado relevante (4).
O Conselho Administrativo de Defesa
Econômica – CADE – na qualidade de órgão
Visando consolidar um entendimento acerca
responsável pela repressão ao abuso econômico, ao
da concentração horizontal, a ser utilizado pelo
regular os procedimentos administrativos submetidos
Conselho Administrativo de Defesa Econômica -
à apreciação da autarquia, expôs na Resolução 20,
CADE quando do julgamento das práticas
anexo I, que:
concentracionistas, a autarquia o conceituou no
anexo I, da Resolução nº. 20, infra transcrita: As práticas restritivas verticais são restrições
impostas por produtores/ofertantes de bens
As práticas restritivas horizontais ou serviços em determinado mercado ("de
consistem na tentativa de reduzir ou origem") sobre mercados relacionados
eliminar a concorrência no mercado, seja verticalmente – a "montante" ou a "jusante" –

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p85-100, jan/jun. 2010


90 Thiago Barbosa Wanderley

ao longo da cadeia produtiva a abarcar uma maior fatia do mercado, quanto ao plano
(mercado"alvo"). da horizontalidade, duas podem ser as atitudes
tomadas para tal fim: o crescimento da própria
Analisando a construção conceitual posta empresa, ou a junção desta a uma ou mais
acima, nota-se que tal nomenclatura se deve ao fato concorrentes. Quanto à primeira opção, trata-se de
de que a concentração se dá entre empresas promover o crescimento interno da estrutura
ocupantes de diferentes níveis do plano produtivo. empresarial, ao passo que na segunda, o aumento
Tal junção de entes poderá atentar indiretamente estrutural se dará pela junção de duas ou mais
contra seus concorrentes, através da concentração de composições societárias.
empresas ligadas ao processo produtivo de seu Entender a decisão de se concentrar
serviço ou produto final. Tal pode ocorrer, por horizontalmente, per se, como limitadora da livre
exemplo, pela incorporação de indústrias concorrência incumbe grande equívoco, posto que,
fornecedoras de matéria prima ao produto final. em certos casos, a concentração mostra-se necessária
No entanto, diz-se que tal concentração à continuação de um dos agentes no mercado.
ataca a concorrência de forma indireta, pelo fato de Nesse diapasão, é imprescindível transcrever
obstar o concorrente na compra de produtos três hipóteses mencionadas por FILHO (2002, p.281),
necessários à concretização de seu produto ou onde a concentração aparenta ser o caminho mais
serviço, e não na prestação ou oferta do produto em acertado a seguir:
si.
O crescimento interno não é, no entanto,
Já no que toca as concentrações sempre preferível à concentração. Três são as
conglomeradas, Filho (2002, p.294) situações básicas em que a concentração é
nos ensina que: A formação de preferível ao crescimento interno. Em
conglomerados é uma forma residual de primeiro lugar, quando as firmas que se
concentração, ou seja, considera-se pretendem concentrar possuem bens de
formação de conglomerado toda integração capital complementares que conjugados
entre empresas que não pode ser podem passar a produzir bens de diferente
classificada como concentração horizontal qualidade, o que não poderia ocorrer pelo
ou vertical. crescimento individual de cada empresa.
Uma segunda situação é aquela em que
Desta feita, entende-se por conglomerada a “preço” do crescimento interno é
excessivamente elevado. Finalmente, a
concentração onde os agentes econômicos não
concentração é socialmente preferível
guardam entre si qualquer relação de concorrência, quando não há espaço para o crescimento
atuando em mercados relevantes distintos, sem interno de todas as empresas, isto é, quando o
nenhuma relação direta ou indireta. preço do crescimento interno de uma é a
saída do mercado de outras.
Delineada a classificação doutrinária das
formas de concentração, analisaremos as possíveis
vantagens e mazelas que cada uma delas poderá Por outro lado, o aumento do poder de
causar à concorrência. mercado nas mãos do novo agente oriundo da fusão ou
incorporação horizontal irá conferir vantagens aos
mesmos, como a ampliação de acesso ao consumidor,
Aspectos positivos e negativos da concentração seja através do aumento de pontos comerciais, seja
horizontal, vertical e conglomerada. pelo maior número de produtos postos a disposição
etc. Tal benefício conferido pelo novo agente
Quando um agente econômico está decidido econômico causará o acirramento da concorrência,
onde os de menor estrutura e capital poderão ser

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p85-100, jan/jun. 2010


A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação 91

obrigados a se retirar do mercado. Finalmente, no que toca a concentração


No entanto, muito embora a concentração conglomerada, difícil se torna a avaliação de seus
horizontal traga em seu bojo um potencial efeito efeitos in abstrato, já que não há relação de
limitador da concorrência, baseado no maior poder concorrência, direta ou indireta, entre os agentes
de mercado que gozará o agente aglutinado, tal forma conglomerados e o resto do mercado. Desta forma:
também se mostra necessária à sobrevivência e
a rg u m e n t a - s e q u e a f o r m a ç ã o d e
desenvolvimento de algumas empresas. conglomerados não pode representar um
No que concerne às concentrações verticais, perigo para o sistema concorrencial, pois não
estas também podem repercutir tanto de forma há formação de poder no mercado. (FILHO,
2002, p.295)
positiva como de forma negativa perante o
funcionamento do mercado concorrente. Quanto ao Arrematando tudo o que fora exposto ao
potencial efeito negativo decorrente da verticalização, longo deste capítulo, FONSECA (2007, p.360)
“trata-se da possibilidade de criar dificuldades ao explica que:
funcionamento do concorrente, tolhendo-lhe as fontes
de matéria prima ou os canais de distribuição”. A concentração econômica se traduz num
(FILHO, 2002, p.285) aumento da dimensão das empresas, quer
pela eliminação das concorrentes, quer pela
Entretanto, a concentração vertical poderá extensão setorial e geográfica. A
resultar num melhor arranjo da cadeia produtiva, concentração horizontal, a concentração
posto que os custos de uma operação realizada dentro vertical e o conglomerado são formas
legítimas de fortalecimento das empresas,
do mesmo agente econômico é certamente muito
enquanto não tendam, através do exercício
menor do que o concretizado entre agentes diversos, ilegítimo do poder por alguma forma
ou seja, a concentração diminuirá os custos de adquirido, a eliminar os concorrentes,
transação. assumindo posição monopolística.
Importante mencionar o conceito abaixo de
«custos de transação» que nos foi exposto: Estudadas as formas concentracionistas
pertinentes, bem como suas conseqüências e
Os custos de transação são definidos, classificações, abordaremos à seguir as possibilidades
basicamente, como aqueles custos de intervenção estatal nas operações de fusão e
necessários para realizar uma transação no
mercado, ao invés de realizá-la no interior
incorporação entre agentes econômicos privados.
da empresa. Cite-se, como exemplo, a
matéria-prima comprada de um fornecedor 5. Intervenção Estatal
no mercado, ao invés de produzida pela
própria empresa. (IDEM, p.59)
O neoliberalismo é o modelo econômico que
Observa-se, que apenas será razoável a rege o funcionamento mercadológico brasileiro, tendo
intervenção estatal numa fusão ou incorporação a Constituição de 1988 posto à disposição do Estado
vertical, quando na mesma envolver um produtor permissivos legais através do qual o ente público pode
que detenha o monopólio no fornecimento de certa limitar ou regulamentar as atividades privadas, em
matéria prima, obstando indiretamente a entrada e prol do saudável funcionamento da ordem econômica
permanência de concorrentes no mesmo mercado. posta na Carta Magna.
Nos demais casos, o processo mostra-se benéfico aos Desse modo, nota-se que a liberdade
consumidores final do produto ou serviço oferecido, assegurada pela livre iniciativa tem como parâmetro
posto que sejam beneficiados pela redução do preço outros valores expressamente mencionados pelo
decorrente da otimização da cadeia produtiva.

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92 Thiago Barbosa Wanderley

Poder Constituinte Originário, tais como a Cabe-nos estudar estritamente um


valorização do trabalho e a preservação da dignidade seguimento da intervenção estatal indireta, qual seja a
da pessoa humana. efetivada em detrimento dos atos de concentração
Assim sendo, vê-se que apesar da empresarial nas modalidades fusão e incorporação. A
consagração das liberdades de livre iniciativa e de Base legal para intervenção estatal, aprovando ou não
livre concorrência, a CF/88 instituiu um Estado uma operação concentracionista, encontra-se posta na
capacitado a intervir na ordem econômica de modo a Lei n.º8.884/94 (também conhecida como lei
assegurar o respeito aos valores constitucionalmente antitruste), mais especificamente nos arts. 54 ao 58.
postos.
Não podemos deixar de mencionar que o 6. Órgãos administrativos avaliadores das práticas
Estado poderá intervir na economia mediante três concentracionistas
diferentes tipos de intervenção, seja atuando
diretamente na esfera econômica, seja atuando
As formas de controle das concentrações
indiretamente na mesma esfera, ou ainda instituindo
empresariais estão expressas no Título VII, da Lei
uma esfera monopolista de atuação exclusiva do estado.
8.884/94. Porém, antes de adentrarmos nas hipóteses
Muito embora apenas a intervenção estatal legais de avaliação dos atos de aglomeração
atinente a forma indireta mantenha correlação direta empresarial, faz-se necessário conhecer os órgãos
com o objetivo do presente estudo, mostra-se administrativos que compõem o Sistema Brasileiro de
pertinente a conceituação das mencionadas formas Defesa da Concorrência (SBDC), quais sejam: o
intervencionistas. Conselho Administrativo de Defesa Econômica
Segundo Dirley da Cunha Júnior (2007, (CADE); a Secretaria de Defesa Econômica (SDE) e;
p.1048): Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE).

[...] na intervenção direta, o Estado se


Muito embora os órgãos do SBDC atuem de
converte em agente econômico ou forma integrada, trataremos em separado de cada um
empresarial e partícipe do processo de deles, apenas por uma questão didática.
produção econômica. Por isso, de acordo
com aquele preceito, e ressalvados os casos
previstos na Constituição, a exploração de Conselho Administrativo de Defesa Econômica –
atividade econômica pelo Estado só será CADE
permitida quando necessária aos
imperativos da segurança nacional ou a
relevante interesse coletivo, conforme Com o Decreto-lei 7.666 de 1945, também
definidos em lei. conhecido como Lei Malaia (5), o governo objetivava
reprimir as formas de abuso econômico, e para tal
Já no que toca à intervenção monopolista, desiderato criou uma instituição chamada de
trata-se das esferas econômicas reservadas a atuação Comissão Administrativa de Defesa Econômica –
exclusiva do Estado, como ocorre nos casos de CADE. Todavia, o mencionado Decreto fora revogado
refinação de petróleo de demais hipóteses elencadas três meses após sua promulgação, culminando na
no art. 177 da Constituição Federal. extinção do CADE.
O mesmo autor retro mencionado preceitua Já em 1962, através da lei 4.137, foi criado o
que “Na intervenção indireta o Estado atua, não atual CADE – Conselho Administrativo de Defesa
como agente econômico, mas sim como agente Econômica, tendo função análoga à da extinta
normativo e regulador da atividade econômica.” Comissão Administrativa de Defesa Econômica. Tal
(JÚNIOR, 2007 p.1048) Diploma legislativo atribuiu competência à instituição

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A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação 93

para reprimir os abusos do poder econômico, concentração econômica, seja através de


elencados exemplificativamente em seu art. 2º fusão ou incorporação de empresas,
constituição de sociedade para exercer o
(dentre eles, as uniões empresariais que se
controle de empresas ou qualquer forma de
mostrassem tendenciosamente monopolistas.). agrupamento societário, que implique
Embora criado com um louvável fim participação de empresa ou grupo de
protecionista do mercado interno, o CADE teve empresas resultante em vinte por cento de um
mercado relevante, ou em que qualquer dos
atuação insignificante nos seus primeiros anos de
participantes tenha registrado faturamento
funcionamento, julgando apenas onze processos bruto anual no último balanço equivalente a
entre 1962 e 1975. R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de
Seguindo o preceito constitucional firmado reais). (grifos nossos)
pela Constituição Cidadã, em 11 de junho de 1994, fora
promulgado o diploma antitruste até hoje vigente (lei Portanto, o CADE é o órgão incumbido do
8.884/94), revogando expressamente a lei 4.137/62. julgamento administrativo dos atos de concentração,
Com isso, transformou-se o CADE em autarquia repreendendo (de forma preventiva ou após
federal, vinculando-o ao Ministério da Justiça. concretizada a operação) concentrações que possam
vir a atentar contra o escorreito funcionamento do
Dentre as competências conferidas ao
mercado.
Plenário do CADE, está a de apreciar os atos sujeitos
a aprovação, conforme dita o art. 7º, inciso XII da lei
8.884/94: Secretaria Nacional de Direito Econômico - SDE

Art. 7º Compete ao Plenário do CADE:


[...] No ano de 1990, sob a égide de uma
XII – apreciar os atos ou condutas, sob constituição que enfoca amplamente os direitos
qualquer forma manifestados, sujeitos à sociais, preocupando-se com a proteção dos
aprovação nos termos do art. 54, fixando
compromisso de desempenho, quando for o hipossuficiente, o governo promulgou a MP nº. 204,
caso. posteriormente convertida na lei 8.158/91, criando a
Secretaria Nacional de Direito Econômico (SDE),
O artigo retro mencionado remete-nos ao dispondo em seu artigo inicial que:
dispositivo 54 da mesma lei, constando neste os Art. 1º Compete à Secretaria Nacional de
efeitos que determinam a necessidade da avaliação Direito Econômico (SNDE), do Ministério
do CADE sobre a possibilidade ou não da da Justiça, apurar e propor as medidas
concentração. Dentre as condutas cabíveis com o propósito de corrigir as
anomalias de comportamento de setores
concentracionistas, as modalidades enfocadas na
econômicos, empresas ou estabelecimentos,
pesquisa em tela (fusão e incorporação) são bem como de seus administradores e
mencionadas expressamente §3º do art. 54, in verbis: controladores, capazes de perturbar ou afetar,
direta ou indiretamente, os mecanismos de
Art. 54. Os atos, sob qualquer forma formação de preços, a livre concorrência, a
manifestados, que possam limitar ou de liberdade de iniciativa ou os princípios
qualquer forma prejudicar a livre constitucionais da ordem econômica.
concorrência, ou resultar na dominação de
mercados relevantes de bens ou serviços,
deverão ser submetidos à apreciação do Em 1994, a vigente lei de proteção à
Cade. concorrência revogou expressamente a Lei 8.158/91,
§ 3o Incluem-se nos atos de que trata o caput reestruturando o Sistema Brasileiro de Defesa da
aqueles que visem a qualquer forma de Concorrência.

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94 Thiago Barbosa Wanderley

Desta forma, a SDE atualmente é técnico concernente aos efeitos econômicos advindos
competente tanto para fiscalizar as infrações à ordem da aglomeração de agentes, documento este que
econômica (prevenindo ou punindo tais praticas contribuirá para a formação do convencimento do
através da aplicação de multas), como para emitir CADE quanto a aprovação ou não da operação
parecer que auxiliará o CADE nas avaliações de analisada.
concentração empresarial. Ao estudo em apreço Sendo assim, temos que o CADE é
interessa averiguar está segunda função. responsável, pelo julgamento administrativo que
Nesse passo, a aplicação da lei 8.884/94 está culminará na aprovação ou reprovação da fusão ou
assim determinada: incorporação, nos moldes do art. 54 §3º da Lei
antitruste. A SEAE estará incumbida de emitir parecer
Enquanto o CADE é o órgão que na esfera
administrativa tem a função de 'julgar' as
técnico especializado que servirá de subsídio à
infrações à ordem econômica, a Secretaria decisão do CADE. E a SDE possui função
de Direito Econômico – SDE, órgão do fiscalizatória e informativa do Conselho, também
Ministério da Justiça, dirigido por um fornecendo parecer acerca do ato concentracionista a
Secretário de ilibada reputação e notório ser discutido.
saber jurídico ou econômico, nomeado pelo
Presidente da República, por indicação do Importante ressaltar que os pareceres
Ministro daquela Pasta, é o legalmente fornecidos pela SDE e pela SEAE não vinculam a
encarregado de zelar pelo cumprimento decisão do CADE, servindo apenas como meras peças
dessa lei. (MELLO, 2006, p.766) informativas, através das quais poderá pautar seu
julgamento.
Portanto, a Secretaria Nacional de Direito Restando exposta à organização
Econômico tem por objetivos principais administrativa governamental que apreciará a
supervisionar e coordenar a política de proteção da viabilidade ou não da aglomeração de agentes
ordem econômica, bem como assegurar a livre econômicos. Trataremos agora sobre as hipóteses de
concorrência, a livre iniciativa e a livre distribuição intervenção estatal nas operações de fusão e
de bens e serviços, atuando como órgão informativo incorporação.
que trará subsídio as decisões do CADE.

7. Intervenção Estatal numa operação de fusão ou


Secretaria de Acompanhamento Econômico – incorporação
SEAE

A disciplina da concorrência no Brasil está


Para complementar a proteção à ordem regulamentada na lei 8.884/94, tendo por objetivo
econômica, foi criada em 1º de janeiro de 1995, por prevenir e repreender às infrações à ordem econômica,
meio da Medida Provisória nº813, a Secretaria de protegendo desta forma a coletividade, conforme se
Acompanhamento Econômico – SEAE, entidade depreende de seu artigo inaugural.
vinculada ao Ministério da Fazenda (6).
Primeiramente cumpre ressaltar que o
No que toca à análise dos atos de presente estudo não cuidará da intervenção estatal
concentração empresarial, a lei 9.021, publicada em enquanto repreensão às infrações à ordem econômica,
30 de Março de 1995, tratou de integrar a SEAE ao elencadas estas nos artigos 20 e 21 da lei 8.884/94. Tal
conjunto de órgãos administrativos que contribuem abordagem não será feita, posto que o objeto de estudo
no controle dos atos de concentração, adicionando o é o controle estatal das operações de incorporação e
§ 6, no artigo 54 da lei 8.884/94. Tal dispositivo fusão, de modo a evitar a ocorrência de infrações à
expõe que a SEAE está incumbida de emitir parecer

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p85-100, jan/jun. 2010


A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação 95

ordem econômica, tratando-se então de um controle Não significa dizer que as concentrações que
preventivo. açambarcarem 20% de um mercado relevante, ou cujo
Conforme já apreciado supra, as fusões e faturamento de um dos entes envolvidos na operação
incorporações podem surtir efeito positivo ou tenha faturamento bruto anual de quatrocentos
negativo perante o mercado. Na possibilidade de que milhões de reais, sejam per si, uma afronta a livre
a operação resulte em limitação da livre concorrência concorrência. Faz surgir apenas a necessidade de
ou dominação de mercados, a mesma deverá ser aprovação de tais atos pelo CADE posto que há uma
submetida à apreciação do CADE, pois o art. 54 da presunção relativa de que os efeitos de tal operação
lei 8.884/94 assim dispõe: seria maléfico à ordem econômica.
Acerca da presunção contida no art. 54, §3º,
Art. 54. Os atos, sob qualquer forma Fábio Ulhoa Coelho (2004, p.492) assevera:
manifestados, que possam limitar ou de
qualquer forma prejudicar a livre O efeito restritivo das operações societárias
concorrência, ou resultar na dominação de relativamente ao funcionamento do livre
mercados relevantes de bens ou serviços, mercado é tão significativo que a lei se
deverão ser submetidos à apreciação do preocupa em estabelecer uma presunção de
Cade. lesividade potencial, em determinados casos.
Assim, a fusão ou incorporação, constituição
Note-se que o dispositivo em apreço é claro de sociedade controladora ou qualquer forma
ao mencionar que não é necessária a comprovação de grupamento de empresas de que resulte
prévia dos efeitos danosos oriundos do ato, mas que participação de mercado na ordem de 20%,
os indícios apontem que tais atos “possam” limitar ou que envolva sociedade com faturamento
ou prejudicar a livre concorrência. bruto anual de R$400.000.000,00, estão
condicionados à aprovação do CADE (Lei n.
Visando trazer uma idéia de quais seriam os 8.884/94, art. 54, §3º).
“atos” previstos no artigo supra transcrito, o §3º do
mesmo artigo assim dispõe: No entanto, mesmo configurados os efeitos
descritos no art. 54 da lei antitruste, ainda há a
§ 3o Incluem-se nos atos de que trata o caput possibilidade de que a aglutinação entre os agentes
aqueles que visem a qualquer forma de econômicos seja aprovada pelo CADE. Para tanto, os
concentração econômica, seja através de
atos terão que obedecer ao disposto nos §1º e 2º do
fusão ou incorporação de empresas,
constituição de sociedade para exercer o artigo suso mencionado, cujo teor abaixo
controle de empresas ou qualquer forma de transcrevemos:
agrupamento societário, que implique
participação de empresa ou grupo de § 1º O Cade poderá autorizar os atos a que se
empresas resultante em vinte por cento de refere o caput, desde que atendam as
um mercado relevante, ou em que qualquer seguintes condições:
dos participantes tenha registrado I - tenham por objetivo, cumulada ou
faturamento bruto anual no último balanço alternativamente:
equivalente a R$ 400.000.000,00 a) aumentar a produtividade;
(quatrocentos milhões de reais). (Grifos b) melhorar a qualidade de bens ou
nossos) serviço; ou
c) propiciar a eficiência e o
Percebemos que o legislador pátrio criou desenvolvimento tecnológico ou econômico;
assim dois critérios objetivos que, caso configurado, II - os benefícios decorrentes sejam
distribuídos eqüitativamente entre os seus
devem fazer com que a fusão ou incorporação apenas
participantes, de um lado, e os consumidores
possa perseverar com a anuência do Conselho ou usuários finais, de outro;
Administrativo de Defesa Econômica. III - não impliquem eliminação da

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96 Thiago Barbosa Wanderley

concorrência de parte substancial de incisos que compõe o §1º do art. 54, não importa em
mercado relevante de bens e serviços; sobrepor os interesses privados aos interesses da
IV - sejam observados os limites
coletividade. Pelo contrario, mostra que é necessário
estritamente necessários para atingir os
objetivos visados. arcar com alguns ônus advindos das operações,
§ 2º Também poderão ser considerados visando preservar a existência das empresas e,
legítimos os atos previstos neste artigo, consequentemente, a manutenção dos empregos por
desde que atendidas pelo menos três das elas gerados.
condições previstas nos incisos do
parágrafo anterior, quando necessários por Analisados os permissivos legais a
motivo preponderantes da economia intervenção estatal numa operação de concentração
nacional e do bem comum, e desde que não empresarial nas modalidades incorporação e fusão,
impliquem prejuízo ao consumidor ou abordaremos em seguida o procedimento
usuário final.
administrativo de tal forma de controle.

Analisando os dispositivos em apreço, faz-


se necessário uma leitura inversa dos parágrafos, 8. Tramitação dos processos administrativos de
posto que no segundo é aberta a hipótese de incorporação e fusão perante o CADE
aprovação do ato concentracionista que atenda a pelo
menos três condições previstas nos incisos do O Controle das fusões ou incorporações
parágrafo antecedente. tendentes a produzir os efeitos descritos no art. 54,
Diante de tal informação, sabendo o poderá ser feito tanto preventivamente quanto após a
operador do direito que as alíneas especificam os concretização das operações.
incisos, caso um dos três requisitos preenchidos pela Para isso os agentes econômicos envolvidos
operação seja o disposto no inciso primeiro, será deverão encaminhar a documentação (em três vias
necessário o atendimento de qualquer dos objetivos, idênticas) da fusão ou incorporação, no prazo de
seja o aumento da produtividade, seja a melhoria da quinze dias úteis contados da realização do ato, à SDE,
qualidade dos bens ou serviços, ou ainda a promoção que remeterá uma via ao CADE e outra à SEAE,
do desenvolvimento, não sendo obrigatória a conforme dita o art. 54 da lei 8.884/94, em seu § 4º.
cumulatividade.
Como o mencionado dispositivo legal não
A permissão legislativa concedida através define a partir de quando o ato considerar-se-ia
dos parágrafos 1º e 2º do artigo 54, busca subsidio realizado, a Resolução nº. 45 do CADE pôs termo a
ideológico na busca de pela sobrevivência das dita indagação, dispondo em seu art. 98 que:
empresas ante o acirramento demasiado da
concorrência, bem como na necessidade de considerar-se-á como o momento da
fortalecimento do mercado interno ante a realização do ato, para fins de cumprimento
no disposto nos §§ 4º e 5º do art. 54 da Lei n.
concorrência internacional.
8.884/94, a data da celebração do primeiro
Perante este quadro mercadológico, é documento vinculativo.
necessário ponderar os interesses das empresas
tendentes à fusão e incorporação, pois, em alguns Caso o prazo suso mencionado não seja
casos, a improcedência da operação poderá resultar respeitado, as empresas interessadas em fundir-se ou
no enfraquecimento das empresas interessadas, que promover uma incorporação serão punidas com multa
poderão sucumbir à concorrência das demais, pecuniária cujo montante pode variar entre 60.000
fechando suas portas. (sessenta mil) Ufir e 6.000.000 (seis milhões) de Ufir,
Vê-se que o suprimento de um dos quatro multa esta prevista no art. 54 §5º.

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A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação 97

concorrência de parte substancial de incisos que compõe o §1º do art. 54, não importa em
mercado relevante de bens e serviços; sobrepor os interesses privados aos interesses da
IV - sejam observados os limites
coletividade. Pelo contrario, mostra que é necessário
estritamente necessários para atingir os
objetivos visados. arcar com alguns ônus advindos das operações,
§ 2º Também poderão ser considerados visando preservar a existência das empresas e,
legítimos os atos previstos neste artigo, consequentemente, a manutenção dos empregos por
desde que atendidas pelo menos três das elas gerados.
condições previstas nos incisos do
parágrafo anterior, quando necessários por Analisados os permissivos legais a
motivo preponderantes da economia intervenção estatal numa operação de concentração
nacional e do bem comum, e desde que não empresarial nas modalidades incorporação e fusão,
impliquem prejuízo ao consumidor ou abordaremos em seguida o procedimento
usuário final.
administrativo de tal forma de controle.

Analisando os dispositivos em apreço, faz-


se necessário uma leitura inversa dos parágrafos, 8. Tramitação dos processos administrativos de
posto que no segundo é aberta a hipótese de incorporação e fusão perante o CADE
aprovação do ato concentracionista que atenda a pelo
menos três condições previstas nos incisos do O Controle das fusões ou incorporações
parágrafo antecedente. tendentes a produzir os efeitos descritos no art. 54,
Diante de tal informação, sabendo o poderá ser feito tanto preventivamente quanto após a
operador do direito que as alíneas especificam os concretização das operações.
incisos, caso um dos três requisitos preenchidos pela Para isso os agentes econômicos envolvidos
operação seja o disposto no inciso primeiro, será deverão encaminhar a documentação (em três vias
necessário o atendimento de qualquer dos objetivos, idênticas) da fusão ou incorporação, no prazo de
seja o aumento da produtividade, seja a melhoria da quinze dias úteis contados da realização do ato, à SDE,
qualidade dos bens ou serviços, ou ainda a promoção que remeterá uma via ao CADE e outra à SEAE,
do desenvolvimento, não sendo obrigatória a conforme dita o art. 54 da lei 8.884/94, em seu § 4º.
cumulatividade.
Como o mencionado dispositivo legal não
A permissão legislativa concedida através define a partir de quando o ato considerar-se-ia
dos parágrafos 1º e 2º do artigo 54, busca subsidio realizado, a Resolução nº. 45 do CADE pôs termo a
ideológico na busca de pela sobrevivência das dita indagação, dispondo em seu art. 98 que:
empresas ante o acirramento demasiado da
concorrência, bem como na necessidade de considerar-se-á como o momento da
fortalecimento do mercado interno ante a realização do ato, para fins de cumprimento
no disposto nos §§ 4º e 5º do art. 54 da Lei n.
concorrência internacional.
8.884/94, a data da celebração do primeiro
Perante este quadro mercadológico, é documento vinculativo.
necessário ponderar os interesses das empresas
tendentes à fusão e incorporação, pois, em alguns Caso o prazo suso mencionado não seja
casos, a improcedência da operação poderá resultar respeitado, as empresas interessadas em fundir-se ou
no enfraquecimento das empresas interessadas, que promover uma incorporação serão punidas com multa
poderão sucumbir à concorrência das demais, pecuniária cujo montante pode variar entre 60.000
fechando suas portas. (sessenta mil) Ufir e 6.000.000 (seis milhões) de Ufir,
Vê-se que o suprimento de um dos quatro multa esta prevista no art. 54 §5º.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p85-100, jan/jun. 2010


98 Thiago Barbosa Wanderley

Efetivado o depósito da documentação aprovado sem restrições; b) o ato será aprovado, mas
pertinente na SDE e, distribuídas as vias ao CADE e mediante o cumprimento de metas fixadas num
à SEAE, esta enviará um parecer técnico à SDE no compromisso de desempenho c) o pedido de
prazo de trinta dias. Recebido o parecer, a SDE se concentração será indeferido.
manifestará sobre o ato concentracionista também no A primeira hipótese mencionada acontecerá
prazo de 30 dias, instruindo o processo e se, depois de apreciada pelo CADE, este concluir que
encaminhando-o ao Plenário do CADE, que a fusão ou incorporação não trará prejuízos à ordem
deliberará no prazo de 60 dias. econômica, sendo permitidas, de plano, tais
Assim, o CADE apenas terá contato com o operações.
processo quando este se encontrar devidamente Já na aprovação mediante o cumprimento de
instruído, sistemática esta que é severamente metas, será determinado pelo CADE um compromisso
criticada pela doutrina, visto que o CADE deveria de desempenho, visando assegurar que os objetivos e
atuar na fase de instrução do processo efeitos descritos no §1º, art. 54 da lei antitruste sejam
administrativo. Nesse sentido FONSECA (2007, respeitados. A fiscalização do compromisso de
p.363) afirma que: desempenho será efetuada pela Secretaria Nacional de
Direito Econômico – SDE.
O órgão judicante, normalmente, não tem
qualquer contato com o andamento Tratando-se de uma aprovação com condição
processual, com a instrução probatória, resolutiva, FILHO (2002, p. 304) acertadamente
enquanto o processo tramita pela SDE e afirma que:
pela SEAE. Quando chega às mãos do
Conselheiro relator, normalmente há O compromisso de desempenho só pode ser
necessidade de realizarem-se novas admitido quando o órgão de controle puder
provas, ou porque as que eram necessárias razoavelmente admitir que as hipóteses
não foram feitas, ou porque o decurso do previstas no art. 54, §1º, verificar-se-ão, e
prazo entre as provas colhidas e a data do que se trata apenas de estabelecer prazos para
julgamento é tal que há necessidade de assegurar seu cumprimento. É necessário,
atualização, ou ainda porque as provas já portanto, não apenas que as partes tenham
realizadas não são suficientes para o mencionado tais metas em seu pedido de
convencimento do Conselheiro relator. aprovação, mas também que o CADE esteja
convencido que elas serão obtidas.
Caso o CADE não aprecie o ato de
concentração dentro do prazo previsto no art. 54, §6º Todavia, mesmo que a operação de fusão ou
(60 dias), os atos de concentração serão considerados incorporação seja permitida, a aprovação poderá ser
automaticamente aprovados. revista pelo CADE, conforme preconiza o art.55 do
Importa frisar que os prazos concedidos ao diploma antitruste brasileiro:
CADE, à SDE e a SEAE ficarão suspensos caso
se a decisão for baseada em informações
sejam requeridos esclarecimentos ou determinada a
falsas ou enganosas prestadas pelo
complementação da documentação apresentada. interessado, se ocorrer o descumprimento de
A eficácia dos atos enquadrados nos efeitos quaisquer das obrigações assumidas ou não
dispostos no art. 54 da lei antitruste será forem alcançados os benefícios visados.
condicionada à aprovação do ato, seja através do De outro lado, caso seja verificado de pronto
julgamento pelo CADE, seja pelo decurso do prazo que a concretização da fusão ou incorporação trará
sem que haja decisão deste órgão. ofensas à concorrência, sendo impossível minimizá-las
Quando do julgamento da concentração pelo através de um compromisso de desempenho, o pedido
CADE, três poderão ser os resultados: a) o ato será de concentração será motivadamente indeferido.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p85-100, jan/jun. 2010


A intervenção do Estado nas operações de fusão e incorporação 99

Nesse diapasão, como o diploma legal em aos demais, ou seja, o exercício da liberdade de uma
apreço permite que a concentração seja submetida ao empresa se torna censurável quando impede a
controle em até quinze dias úteis de sua concretização da livre iniciativa e da livre
concretização, caso a concentração obstada já tenha concorrência.
negociado com terceiros, utilizando-se da nova Portanto, a liberdade de atuação da empresa
estrutura social formada, o CADE determinará as não é absoluta, posto que a Carta Magna confere ao
providencias a serem tomadas, nos moldes do art. 54, Estado a função de garantir o saudável funcionamento
§9º, in verbis: do mercado, beneficiando desta forma toda a
coletividade. Para ordenar o dito funcionamento, o
§ 9º Se os atos especificados neste artigo
não forem realizados sob condição Estado, através do art. 54, da lei 8.884/94, está
suspensiva ou deles já tiverem decorrido legalmente autorizado a intervir numa concentração
efeitos perante terceiros, inclusive de entre empresas privadas todas as vezes que uma
natureza fiscal, o Plenário do Cade, se aglomeração empresarial tolher a liberdade de
concluir pela sua não aprovação,
iniciativa dos demais concorrentes, tornando inviável
determinará as providências cabíveis no
sentido de que sejam desconstituídos, total a subsistência de seus rivais.
ou parcialmente, seja através de distrato, Desta forma, acreditamos que as liberdades
cisão desociedade, venda de ativos, asseguradas pela Carta Magna de 1988 representam
cessação parcial de atividades ou qualquer
uma vitória de toda a sociedade ante ao Estado, que
outro ato ou providência que elimine os
efeitos nocivos à ordem econômica, outrora atuava arbitrariamente na regulação do
independentemente da responsabilidade mercado. No cenário mercadológico atual, o Estado
civil por perdas e danos eventualmente deverá respeitar os direitos conquistados pelos
causados a terceiros. particulares, intervindo apenas dentro dos limites
estritamente necessários para assegurar um ambiente
Portanto, o trâmite de um processo de livre concorrência.
administrativo no qual o Conselho Administrativo de
Quando da análise das concentrações
Defesa Econômica analisará a viabilidade de um ato
empresariais, restou firmado que estas não podem ser
de concentração deve durar em torno de cento e vinte
consideradas, per si, como elemento limitador da
dias, sendo o processo instruído pela SEAE e pela
concorrência, cabendo ao Estado, analisar os
SDE, onde estas emitirão seus pareceres,
possíveis efeitos mercadológicos decorrentes de tal
respectivamente, em 30 dias, tendo o CADE um
reformulação da estrutura empresarial em apreço.
prazo de 60 dias, a contar do recebimento dos
pareceres, para apreciar o ato concentracionista. Restou comprovado, ainda, que o amálgama
empresarial oriundo das concentrações nos põe diante
de um paradoxo, posto que ao mesmo tempo em que se
9. Conclusão mostra necessário ao desenvolvimento do mercado,
este progresso nos custa a instabilidade do sistema
Analisando-se o atual panorama mercadológico.
concorrencial brasileiro, vimos que a Constituição No entanto, concluímos que o fenômeno
Federal concede aos particulares o direito de atuarem concentracionista possui mais efeitos positivos que
com liberdade no mercado, num ambiente de livre negativos, mostrando-se geralmente benéfico e
concorrência que deve ser assegurado pelo Estado. necessário ao desenvolvimento do mercado,
Assim como toda liberdade assegurada aos principalmente no atual sistema capitalista
particulares, seu gozo não poderá ser exercido de tal globalizado, onde a concentração de agentes
forma que suprima o mesmo direito disponibilizado certamente fortalecerá as empresas brasileiras para

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p85-100, jan/jun. 2010


100 Thiago Barbosa Wanderley

que possam melhor competir com os concorrentes guardava com o povo Malaio.
internacionais. (6) BRASIL – Ministério da Fazenda. IN:
http://www.seae.fazenda.gov.br - Em junho de 2007.
Dado que esta pesquisa se limitou a analisar
as hipóteses em que o Estado Brasileiro intervêm na
esfera privada, obstando operações que ponham em Referências
xeque o funcionamento do mercado nacional, cabe-
nos aprofundar tal estudo averiguando quais os BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e
parâmetros de atuação conferidos à outros países,
Aplicação da Constituição. 6ª edição. São Paulo:
pois as empresas brasileiras também encontram-se
estabelecidas fora do território nacional. Saraiva, 2004.
Destarte, concluímos que a efetivação das BRITO, Beatriz Gontijo de. Concentração de
a
liberdades concedidas às empresas privadas deve ser Empresas no Direito Brasileiro. 1 edição. Rio de
garantida pelo Estado, e que este atuará visando à Janeiro, 2002.
manutenção de um ambiente de livre concorrência, COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito
beneficiando assim não somente as empresas Comercial. Volume 2. 7ª edição. São Paulo: Saraiva,
nacionais, mas toda a sociedade brasileira. 2004.
CUÉLLAR, Leila; MOREIRA, Egon Bockmann.
Estudos de Direito Econômico. Belo Horizonte:
Notas Fórum, 2004.
Dicionário de economia. Disponível em: http://www.
(1) Versando sobre as join ventures, Calixto Salomão
Filho (2002) assevera que “analisada do ponto de esfgabinete.com/dicionario/?procurar=1. Acessado
vista concorrencial, ela nada mais é do que uma em novembro de 2007.
forma de cooperação entre empresas para fins FILHO, Calixto Salomão. Direito Concorrencial: as
empresariais, que pode se consubstanciar em
diversas formas jurídicas”. estruturas. 2ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2002.
(2) Holding é a “Concentração de empresas na forma FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Lei de
de uma sociedade financeira que controla, coordena Proteção da Concorrência: Comentários à
e orienta as suas atividades porque possui parte do
capital social das filiais.”. IN: Dicionário de legislação antitruste. 3a Edição. Rio de Janeiro:
economia -http://www.esfgabinete.com/dicionario/ Forense, 2007.
?procurar=1. Acessado em novembro de 2007. FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. 2ª
(3) Ressalte-se que a nomenclatura concedida ao
diploma fora um tanto equivocada, posto que o edição. São Paulo: RT, 2005.
diploma legal não versa apenas sobre o combate aos GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na
truste (união de empresas visando monopolizar o Constituição de 1988. 5ª edição. São Paulo:
mercado), mas de toda a proteção ao mercado
concorrencial. Malheiros, 2000.
(4) Quanto à conceituação de mercado relevante, JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito
FORGIONI (2005), em os Fundamentos do a
Constitucional. 1 Edição. São Paulo: Juspodium,
Antitruste, menciona que é aquele em que se travam
as relações de concorrência ou atua o agente 2007
econômico cujo comportamento está sendo MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de
analisado. A mesma autora assevera ainda que não há Direito Administrativo. 7ª tiragem. São Paulo: RT,
uma formula matemática para a determinação do
mercado relevante, mas apenas métodos que acabam 1988.
por nos fornecer indicativos que, utilizados de forma __________. Curso de Direito Administrativo. 21ª
conjugada, auxiliam nessa ingrata tarefa. edição. São Paulo: Malheiros, 2006.
(5) O Decreto 7.666/45 ficou conhecido como lei
Malaia devido à semelhança física que o autor do MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10ª
Projeto Legislativo, Agamêmnon Magalhães, edição. São Paulo: Atlas, 2001.

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Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p101-115, jan/jun. 2010 101

INSTRUÇÃO NORMATIVA E AS OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS:


UMA QUESTÃO DE LEGALIDADE
Normative Instruction and the Ancillary Obligations: a legality question

Rodrigo Sarmento Tigre1

RESUMO ABSTRACT

O presente trabalho tem a intenção de This paper intends to reveal, through the
d e s v e l a r, a t r a v é s d o s e n u n c i a d o s prescriptive statements of the Brazilian legal
prescritivos do sistema jurídico brasileiro, a system, the issue and validity of normative
edição e validade das instruções normativas instructions notorious - whose foundation is
- cujo fundamento de validade se baseia na based on the validity of law - normative acts
lei - atos-normativos dos quais tem se valido of which has been using the organs of the
os órgãos das Secretarias da Fazenda, Departments of Finance especially the
principalmente a Secretaria da Receita Internal Revenue Service (the authorities
Federal (órgão da Administração Pública with Direct Federal), in order to have not
Direta Federal), para disporem não apenas only on the ancillary obligations provided
sobre as obrigações acessórias previstas em by law, but also to create new obligations
lei, como também para criarem novas and duties to the taxpayers, beyond its
obrigações e deveres aos sujeitos passivos, powers and its limits.
extrapolando suas competências e seus
limites. Key-words: Federal Constitution.
Fundamentals. Validities. Ancillary
Palavras-chave: Constituição Federal. Obligations. Normative Instructions.
Fundamentos. Validades. Obrigações
Acessórias. Instruções normativas.

1
Especialista em Direito Tributário (IBET); Graduado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos;
Advogado em Porto Alegre/RS e Maceió/AL
102 Rodrigo Sarmento Tigre

1. Introdução homem. É através dela (linguagem) que se


torna possível predicar sobre a cultura de determinado
povo, num dado espaço e tempo. A própria realidade
A testilha da legalidade remansa até à
social é construída por nós através da linguagem.
atualidade, em seus mais variados desdobramentos,
Assim, ao darmos sentido as coisas estamos operando
sobretudo naqueles em que se reputa indispensável e
nossa consciência reflexiva (DUARTE, 1986).
inexorável a defesa do contribuinte quanto a sua boa-
fé de não ser surpreendido com atos normativos O direito é um objeto cultural, e como tal
editados subitamente e sem o necessário respaldo pressupõe a linguagem para existir e se exprimir.
normativo. Ocorre que a função da linguagem utilizada pelo
direito é diversa daquela em uso pelos cientistas do
Nesta seara, os moldes alicerçados pelo
direito, eis que naquele primeiro há o caráter
nosso Estado Democrático de Direito impõe
prescritivo de condutas (sistema nomoempírico
limitações ao próprio Estado em editar atos jurídicos
prescritivo), enquanto que para estes o caráter
sem a observância dos fundamentos de validade pela
descritivo sobressai (sistema nomoempírico
lei ou na lei. Desta maneira, a legalidade ganha
descritivo) (MOUSSALLEM, 2006). Com isso,
importância vital para proteção do contribuinte, sob
temos que o direito positivo se torna a linguagem-
pena de solapar os pilares fundamentais da
objeto do cientista do direito, já os juízos de valor
República Federativa do Brasil: de uma sociedade
emitidos em relação ao direito positivo denominamos
livre, justa, solidária e a garantia do desenvolvimento
de metalinguagem (linguagem sobre a linguagem-
nacional.
objeto) (1).
O escopo perquirido neste trabalho irá
E para que um dado evento do mundo
buscar nos enunciados prescritivos do sistema
empírico possa ser caracterizado como relevante para
jurídico brasileiro os fundamentos de validade das
o direito, impõe-se o seu ingresso pela via
instruções normativas emanadas pelo Poder Público.
disponibilizada (portanto prevista) pelo próprio
Não se poderia olvidar em adentrar neste sistema do direito positivo, mediante ato de vontade
tema sem antes percorrer, ainda que sucintamente, do órgão credenciado para tal (2). Este órgão ao
alguns pontos fulcrais da Teoria Geral do Direito realizar sua atividade, aplicando normas de produção
(fontes do direito, competência tributária e normativa (auto-referenciabilidade do direito positivo
obrigações tributárias). Assim, estar-se-á brasileiro) o faz através do ato de «enunciação», que,
concedendo adminículos indispensáveis ao deslinde por conseqüência, lançará no sistema «enunciados»
da tese, sempre premida pela teoria da linguagem e prescritivos (3).
atos de fala deônticos.
A partir destes enunciados será possível
extrair as normas jurídicas, constituídas de uma
2. A linguagem e o direito estrutura hipotético-condicional modalizadas por um
dos três modais deônticos (permitido, obrigado e
proibido).
Encetamos nossa jornada afirmando que
àquele que pretende discorrer sobre alguma coisa
precisa fazê-lo através de um corte metodológico 3. Regime Jurídico das obrigações tributárias
drástico, reduzindo a abrangência de seu objeto
mediante a utilização de critérios justificados em
Ao tomarmos algumas premissas como ponto
suas premissas.
de partida para análise da linguagem-objeto, fazemo-
Desde os tempos idos, a linguagem tem lo em sentido linear e sistemático, mantendo sempre a
exercido papel fundamental na existência do

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p101-115, jan/jun. 2010


Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade 103

constante progressão seqüencial dos enunciados tarefa hábil apenas ao intérprete que se utiliza do
normativos (linear) sem perder de vista o cotejo da direito positivo para suas construções jurídico-
totalidade do sistema referencial (sistemático). positivas. Isto porque boa parte da doutrina alicerça
Seguimos. seus estudos baseada em afirmações que não
Apesar dos exaustivos estudos em apartado encontram guarida no direito posto (7). Exemplo disso
do Direito Tributário, alguns doutrinadores, como é o é a estéril discussão sobre a necessidade ou não de
caso de Celso Antônio Bandeira de Mello, colocam- haver um objeto pecuniário para caracterizar uma
no como ramo do direito administrativo, pois a esfera relação jurídica tributária.
de atuação de ambos se dá no mesmo nível Parece-nos evidente que a solução está
comportamental: a relação entre administração e plasmada no enunciado do artigo 113, §2º, do Código
administrado (4). Será neste sentido nossa busca Tributário Nacional ao estatuir que a obrigação
pelos confins das instruções normativas. acessória «tem por objeto as prestações, positivas ou
Em virtude das pechas ocasionadas pela negativas, nela previstas no interesse da arrecadação
utilização da hermenêutica sem o devido cuidado ou da fiscalização dos tributos». Em momento algum é
quanto aos significados jurídicos, no qual resultam agregada à obrigação acessória características
errôneas assimilações teleológicas de terríveis pecuniárias. A lei tão somente define-a como uma
conseqüências no plano fático (5), tentaremos, a ação de fazer ou não fazer (8). Assim o é porque há
partir deste momento, esclarecer sucintamente as autorização expressa da Constituição Federal de 1988
balizas diferenciadoras entre obrigações tributárias à lei complementar em estabelecer normas gerais em
principais e acessórias. matéria tributária, especialmente sobre “obrigação”,
consoante o artigo 146, III, alínea “b” (9).
Nossa busca se inicia pela análise
perfunctória do artigo 113 previsto no Código Forçoso concluir que apenas as obrigações
Tributário Nacional, onde se constata a existência de ditas principais possuiriam traços adjacentes
duas espécies de obrigações no regime tributário, determináveis pecuniariamente, o mesmo não
quais sejam principais e acessórias. Todavia, antes de podendo se falar das obrigações acessórias isentas
analisarmos cada uma destas espécies, o preciosismo deste atributo.
jurídico nos compele a estabelecer o significado
conotativo da palavra obrigação anunciada na lei Obrigação Principal
5.172/66.
O direito positivo ao se utilizar da linguagem
A criação pelo Código Tributário Nacional da
o faz mesmo a despeito das imperfeições que esta (a
dita obrigação principal se deve em razão desta ser o
linguagem) traz em seu cerne, notadamente o caráter
cerne de todo o Direito Tributário, inclusive da própria
plurissignificativo de algumas expressões. Nesse
existência do Estado, já que é através da entrega de
sentido, Maurício Zockun (6)elege cinco possíveis
dinheiro pelo súdito que se torna possível erigir as
afirmativas que compreenderiam a significação do
estruturas estatais hábeis a garantir os direitos
termo obrigação: (i) dever jurídico; (ii) estado de
individuais e fundamentais de cada cidadão.
sujeição; (iii) documento que comprova o vínculo
entre pessoas e (iv) ônus tributário (6). Logo adiante, A obrigação principal nada mais é senão um
encontra uma quinta significação a qual é tomada vínculo abstrato que impõe normativamente – já que a
como diretriz do seu pensamento. Esta última normatividade emana da lei - ao sujeito passivo a
acepção seria obrigação como (v) “relação jurídica”. entrega de dinheiro ao sujeito ativo. Como a tônica
desta obrigação está na entrega de algo com valor
O que se pretende aqui é achar brevemente
pecuniário, uma vez que a obrigação « principal tem
as notas conotativas do significado de obrigação,

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p101-115, jan/jun. 2010


104 Rodrigo Sarmento Tigre

por objeto o pagamento de tributo ou proposta do presente estudo, doravante nos


penalidade pecuniária» (artigo 113, §1º, CTN), reportaremos às obrigações acessórias como «norma
poder-se-ia dizer que esta obrigação tem natureza jurídica tributária instrumental» haja vista ser esta a
eminentemente patrimonial. E para fins didáticos se origem da nossa linguagem-objeto (10). Maurício
assemelharia ao que o Direito Civil chama de Zockun clarifica a sutil distinção entre a norma
obrigação de dar. jurídica instrumental e a obrigação instrumental:
A lei 5.172/66 estabelece o surgimento da
Ora, se a finalidade dessa norma jurídica é
obrigação principal com a ocorrência da «situação
abastecer com informações a pessoa
definida em lei como necessária e suficiente à sua credenciada pelo ordenamento jurídico para
ocorrência» (artigo 114, CTN). Esta obrigação, por uma específica atividade,
configurar um vínculo abstrato, é desprovida do instrumentalizando sua atuação, reputamos
crédito tributário propriamente dito, o qual somente oportuno designar a norma jurídica que
irá ser constituído a partir de uma norma individual e veicula essa prescrição de norma jurídica
instrumental e a relação jurídica formada
concreta realizada através do ato de lançamento. entre seus sujeitos e respectivo objeto (bem
Desta forma, obrigação principal e crédito se inter- jurídico) obrigação tributária instrumental.
relacionam, contudo, sem se confundirem. Em (ZOCKUN, 2005, p.125)
resumo, o crédito deriva daquela obrigação dita
principal, só que seu nascimento está condicionado a Todo discurso deve observar suas premissas
outra norma, individual e concreta. para manter a coerência lógica interna. E para atingir
tal desiderato somos levados a afastar a
Obrigação Acessória patrimonialidade da obrigação tributária acessória
exatamente por observarmos construções jurídico-
positivas – ou seja, baseada no documento normativo.
A análise perfunctória do artigo 113, §2º, Se há norma jurídica inserida no sistema de direito
revela-nos o sentido denotativo de sua finalidade, positivo pelo órgão competente e através do
onde decorre «da legislação tributária e tem por procedimento legislativo adequado, tem-se então
objeto as prestações, positivas ou negativas, nela como válido seus enunciados. Nesse sentido, o
previstas no interesse da arrecadação ou da Código Tributário Nacional ao estipular a obrigação
fiscalização dos tributos». acessória sem a respectiva correlação pecuniária criou
A dicção proposta pela lei 5.172/66 tem figura diversa daquela tida pelo Direito Civil, sem
suscitado imensos debates sobre o significado qualquer ponto de intersecção a fim de maculá-la. O
conotativo de obrigação acessória. Alguns autores sistema assim quis e o definiu, sem ingerência pela
mediante fundamentos apoteóticos optaram por Constituição Federal.
denominá-la de «deveres instrumentais ou formais» Quanto à transitoriedade, adotamos o
(e.g, Paulo de Barros Carvalho). Os argumentos são entendimento sufragado por Paulo de Barros
dos mais variados para desvelar o significado Carvalho, para quem toda relação jurídica –
conotativo destas obrigações, desde catalogá-la com patrimonial ou não – é fugaz (CARVALHO, S/D),
base em critérios inócuos (patrimonialidade e motivo pelo qual não pode a transitoriedade servir
transitoriedade), como também travar discussões como critério de classificação neste caso.
estéreis no sentido de observar ou não a
Tampouco há de prevalecer às ilações quanto
acessoriedade da obrigação em relação à obrigação
ao vocábulo utilizado pela vetusta lei nº 5.172/66, já
principal.
que ser acessória não conduz necessariamente a
Sem adentrar nas minúcias de cada conotação de dependência a algo que dele dependa

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Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade 105

(obrigação principal). Os vernáculos administrativos normativos são aqueles que


corroboram este entendimento ao descreverem o contêm um comando geral do Executivo, visando à
adjetivo acessório como «o que não é fundamental; correta aplicação da lei”, cujo “objetivo imediato de
secundário; que se acrescenta a uma coisa, sem fazer tais atos é explicitar a norma legal a ser observada pela
parte integrante dela» (HOLANDA, S/D, p.1). Administração e pelos administrados”. Sendo que
Fundamental não é porque a base do sistema “esses atos expressam em minúcia o mandamento
tributário é a efetiva arrecadação pelo Estado abstrato da lei, e o fazem com a mesma normatividade
(independentemente da esfera de Governo) do a regra legislativa, embora sejam manifestações
dinheiro entregue pelos contribuintes, e qualquer tipicamente administrativas” (MEIRELLES, 1994,
situação amoldada de maneira diferente será tida p.161).
como secundária ou acessória. Por isto que as Pode-se dizer, sem embargos, que as
informações prestadas à administração fazendária Instruções Normativas fazem parte do regime jurídico
foram designadas como obrigações acessórias. administrativo-tributário, uma vez que sua expedição
Outro detalhe presente naquele enunciado é conferida pela Administração Pública,
referencial das obrigações acessórias se refere à originariamente pelo Ministro da Fazenda (artigo 87,
expressão “Legislação tributária”, locução que tem II, CF-88), tarefa relegada ao Secretário da Fazenda.
engendrado caminhos confusos e discrepantes da Ora, sendo este ato normativo instituído por
ordem constitucional. Pela intersecção desta um dos órgãos do Poder Executivo, impositiva é a sua
expressão com o objeto do tema proposto, observância às normas administrativas gerais e
cuidaremos de sua análise quando tratarmos da reflexamente as normas tributárias, por expressa
legalidade como fundamento de validade dos atos dicção constitucional.
normativos.
Diante deste panorama, poder-se-ia firmar a
Sem qualquer embargo podemos idéia de que as Instruções Normativas são «atos
resumidamente estabelecer que a norma jurídica normativos expedidos pela autoridade administrativa,
tributária instrumental visa “instrumentalizar a através dos quais serão regulamentadas ou
função estatal consistente na apuração da ocorrência implementar as normas jurídicas tributárias
de fatos jurídicos tributários e eventual instrumentais que estiverem definidas em lei, no
adimplemento da obrigação tributária substantiva” interesse da arrecadação ou fiscalização».
(ZOCKUN, Op. Cit. p.124)
Tomando por base o significado proposto para
as Instruções Normativas, evitamos ulteriores
Instrução normativa contradições internas no discurso e nos permite auferir
doravante os limites legais impostos a edição destes
atos. Tema raro na abordagem dos juristas; todavia,
Hodiernamente, a administração fazendária
crucial na manutenção e sobrevivências da grande
tem se valido da expedição de atos normativos,
maioria das pessoas jurídicas que de sua observância
comumente denominados de instruções normativas,
dependam.
para perfectibilizar as condutas dos sujeitos
passivos, necessárias ao fornecimento das
informações que o sujeito ativo entender necessárias 4. Os limites de imposição das instruções
no interesse da arrecadação ou fiscalização. normativas
O saudoso administrativista, Hely Lopes
Meirelles, já prelecionava sobre a forma e o conteúdo O cerne a ser perquirido para a compreensão
destes atos normativos, entendendo que “atos da (in) validade dos atos normativos exarados para

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106 Rodrigo Sarmento Tigre

regulamentação das normas jurídicas Constituinte erigiu um dos principais títulos,


tributárias instrumentais encontra-se na denominado “Dos Direitos e Garantias
diferenciação entre legalidade e reserva de lei, como Fundamentais”, eleito como cláusula pétrea pela sua
elemento de sua fundamentação. É na própria importância e magnitude (artigo 60, §4º, IV). O
Constituição Federal que buscaremos o fundamento famigerado artigo 5º sustenta as garantias (positivas e
de validade, relegando o Código Tributário Nacional negativas) dos súditos frente aos possíveis excessos e
a segundo plano, não o desmerecendo, mas abusos do Estado. Dentre estas garantias encontramos
subordinando-o aos ditames constitucionais atuais. no inciso II o seguinte enunciado-enunciado:
«ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei». Dele extraímos
Reserva de lei notável significação: em não havendo lei positiva ou
negativa para uma conduta, permitida estará (cuique
Vem sendo através dos atos normativos facere licet nisi quid iure prohibitur) (11).
expedidos pelas Secretarias da Fazenda – em Perguntar-se-ia qual o alcance da
qualquer das três esferas de governo – que o sujeito expressão em virtude da lei? A resposta límpida é-
ativo tem se possibilitado conhecer a vida financeira nos dada por José Afonso da Silva, com base no
dos sujeitos passivos, para com isso minorar as doutrinador italiano, Massimo Severo Giannini
possíveis fraudes e simulações no intuito de (1994, p. 368):
recolherem (os sujeitos passivos) menos tributos
(sonegação fiscal). É com base neste contexto que [...] razão cabe a Massimo Severo Giannini,
tem girado enormes digressões, principalmente no quando examinando cláusula semelhante do
âmbito do Poder Judiciário, sobre a validade destes direito italiano, esclarece que “não é
atos normativos. necessário que a norma de lei contenha todo o
procedimento e regule todos os elementos do
A questão posta parece-nos simples, mas provimento, pi8os, para alguns atos do
travestida de complexidade pelos doutrinadores, procedimento estatuído e para alguns
juristas e até mesmo pelos sujeitos das relações elementos do provimento pode subsistir
tributárias. Sem embargos, as autoridades fiscais discricionariedade”. Isso quer dizer que os
elementos essenciais da providência
pretendem ser «mais reais do que a própria realeza» e impositiva hão que constar da lei. Só a lei cria
acabam criando ônus maior do que o necessário aos direitos e impõe obrigações positivas ou
sujeitos passivos, sem mencionar na latente agressão negativas, ainda que o texto constitucional dê
ao que dispõe os enunciados constitucionais. a entender que só estas últimas estão
contempladas no princípio da legalidade.(19)
Anteriormente, afirmou-se que a análise
aqui encetada dirigiria seu caminho de forma linear e
sistemática. Portanto, o ponto inicial da nossa Notemos que a Constituição é um plexo
jornada será o artigo 3º da Constituição da República ordenado de enunciados-enunciados que preenchem
de 1988, sobre o qual o Legislador Constituinte seu sentido. Perfectibilizando a idéia da lei para criar
deixou claro os objetivos fundamentais da República direitos e obrigações, exsurge o artigo 37 direcionado
Federativa do Brasil, dentre eles a de «construir uma à administração pública em geral, independentemente
sociedade livre, justa e solidária», como também «de da esfera (federal, estadual, distrital ou municipal) ou
garantir o desenvolvimento nacional». Aqui esta a do nível (direta ou indireta).
pedra filosofal dos juristas. É nela que se baseiam Em que pese o artigo 37 da Constituição
todos os demais dispositivos. Federal-88 mencionar a observância da administração
Passo avante, todavia não muito a frente, a pública ao «princípio da legalidade», claro está que

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Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade 107

seu substrato está mais para norma jurídica determina que certa matéria ingresse no direito
stricto sensu do que para diretriz principiológica. A positivo por veículo introdutor de normas por ela
noção de norma se faz presente na questão da especificado - lei complementar, lei ordinária, até
legalidade, uma vez que se torna inconcebível no mesmo os decretos e medidas provisórias – e através
modelo constitucional atual sua inobservância da atividade de enunciação pelo Poder Legislativo,
quando do sopesamento com os demais princípios estamos diante da figura da reserva de lei, cujo
estatuídos (12). conteúdo significante é de fácil constatação, posto
Atendo-se a natureza jurídica a ser que ali está elencada a norma de competência (13),
observada para o deslinde deste texto, saltemos para que servirá de fundamento de validade para a
o capítulo que trata do Sistema Tributário Nacional. enunciação-enunciada e para o próprio enunciado-
Ali é possível verificar que em diversos artigos a enunciado. Aliás, a aplicação da norma de produção
Constituinte, primando pela segurança jurídica, de normas nestes casos vai além, pois exige a
deixou a cargo de veículos introdutores específicos presença de todos os contornos normativos
determinados conteúdos, como deixou às claras as (necessários e suficientes) da matéria ali disposta.
possíveis exceções. A título exemplificativo coube Por outro lado, a ausência objetiva e expressa
exclusivamente à lei complementar (artigo 146) (II) do veículo introdutor de normas a ser utilizado não
regular as limitações ao poder de tributar, (III) deixa aquele conteúdo no limbo da
estabelecer normas gerais em matéria de legislação discricionariedade do utente, já que sendo matéria
tributária, ou instituir empréstimos compulsórios ínsita do Estado, como é o da fenomenologia da
pela União (artigo 148).Outrossim, a Constituição tributação, sempre existirá a observância da
foi mais além e deixou clara a vedação à União, legalidade da administração pública e/ou legalidade
Estados, Distrito Federal e Município de exigirem ou tributária, por ordem constitucional.
aumentarem tributo sem lei que o estabeleça. Disto se infere que a administração fazendária
O cuidado da Assembléia Constituinte foi sempre estará adstrita à lei nos termos do artigo 37 da
tamanho a ponto de garantir constitucionalmente, em Constituição (14), restando elencados, ainda,
diversos artigos, o respeito à legalidade quanto ao princípios outros a fomentarem e garantirem que os
agir da administração pública. Giza-se que há uma atos emanados daquele órgão sejam pautados no
sutil diferença a ser estabelecida entre o que se interesse público, sem prejuízo ao particular.
entende por legalidade e reserva de lei. Com a acuidade devida, Hugo de Brito
Até agora, fez-se uso alargado da expressão corrobora esta noção afirmando que “sendo a lei a
legalidade. Ocorre que as limitações ao poder de manifestação legítima da vontade do povo, por seus
tributar ou os princípios gerais do sistema tributário representantes nos parlamentos, entende-se que o ser
nacional, elencados a partir do artigo 145, estão a se instituído em lei significa ser o tributo consentido. O
referir à reserva de lei. Neste sentido, a Constituição povo consente que o Estado invada seu patrimônio
Federal ao repartir as parcelas de competências para dele retirar os meios indispensáveis à satisfação
dentre os três órgãos fundamentais (Poder das necessidades coletivas. Mesmo não sendo a lei, em
Legislativo, Executivo e Judiciário) deixou a certos casos, uma expressão desse consentimento
encargo do Poder Legislativo a tarefa de enunciação popular, presta-se o princípio da legalidade para
como fonte de direito (MOUSSALLEM, 2006). garantir a segurança nas relações do particular
Assim, coube a este órgão o dever-poder de criar (contribuinte) com o Estado (fisco), as quais devem
normas jurídicas, ressalvadas as exceções feitas pela ser inteiramente disciplinadas, em lei, que obriga tanto
Constituição. o sujeito passivo como o sujeito ativo da relação
Desta forma, quando a Constituição obrigacional tributária.” (MACHADO, 2001, p.36)

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108 Rodrigo Sarmento Tigre

A garantia constitucional supramencionada, Legalidade


inserida no bojo dos Direitos e Garantias
Fundamentais, fornece a exata noção de segurança
Com relação à segunda parcela das
jurídica, presente nos “Estados de Direito” (15), das
obrigações tributárias (acessórias), entendidas aqui
relações entre os particulares frente ao Estado.
como normas jurídicas tributárias instrumentais,
Desta forma, sendo o ato de instituição e mistério não há. Isto porque após o artigo 37 da Magna
cobrança de tributos privilégio do Poder Público, Carta, somos conduzidos ao artigo 87 (17).
encontrará este seus limites na lei, vez que “ninguém
Atualmente o Ministério da Fazenda, órgão
pode ser obrigado a pagar um tributo ou a cumprir um
da administração federal direta, é responsável pela
dever instrumental tributário que não tenham sido
«política, administração, fiscalização e arrecadação
criados por meio de lei” (BONAVIDES, 2000,
tributária federal, inclusive a destinada à previdência
p.167), defluindo novamente desta análise o
social, e aduaneira», nos termos da atual estrutura
princípio da legalidade tributária (16).
regimental deste Ministério, aprovada pelo decreto nº
Infere-se, pois, que em não havendo lei que 6.764/2009 e com base na lei n.º 10.683/03. E diga-se
estabeleça um tributo, inexeqüível será a exação pelo mais, independentemente de ulteriores decretos ou
Fisco, e, por conseguinte, inexistente a obrigação do leis que venham a alterar esta estrutura, a sua
contribuinte de pagar pelo platônico tributo. competência está muito bem delineada pela
Caminho diverso é desaconselhável, haja vista a Constituição e somente se aceitaria situação diversa
trilha criada pela atual ordem constitucional ter por modificação do texto normativo acima através de
garantido a segurança jurídica em face da rígida deliberação por Emenda Constitucional.
reserva de lei.
Ora, se coube ao Ministério da Fazenda gerir a
Porém, não basta simplesmente a confecção administração tributária e seus reflexos, orientando,
da lei no sentido formal para criar a abstrata relação coordenando e supervisionando os órgãos
obrigacional tributária entre o sujeito passivo subordinados de sua competência (e.g, Secretaria da
(contribuinte) e sujeito ativo (Fisco), tornando-se Receita Federal do Brasil), com a «expedição de
imprescindível, na abalizada lição de Roque instruções para a execução das leis», jamais poderia
Carrazza (1998, p.70), que haja “todos os elementos ser aceita situação diversa, como vem ocorrendo.
e supostos da norma jurídica tributária (hipótese de
Destarte, sendo a Secretaria da Receita
incidência do tributo, seus sujeitos ativo e passivo e
Federal do Brasil, cujo regimento interno foi aprovado
suas bases de cálculo e alíquotas), não se discutindo,
pela Portaria 125/09 editada pelo Ministro do Estado
de forma alguma, a delegação, ao Poder Executivo,
da Fazenda, um órgão subordinado diretamente ao
da faculdade de defini-los, ainda que em parte.”
Ministério da Fazenda, suas atribuições jamais
Em suma, ressalvados os casos especiais em poderão extrapolar àquelas do próprio Ministério da
que ao Poder Executivo é facultado alterar alíquotas Fazenda, ainda que atos posteriores (leis, portarias,
dos impostos (artigo 153, §1º, da Constituição instruções normativas, etc.) disponham em sentido
Federal), somente por lei ordinária será criado um contrário. Se assim fizerem, incorrerão em grave
tributo, ou através de lei complementar nos casos mácula por inconstitucionalidade material.
específicos indicados pela Magna Carta, eis que
Por isto a cautela com a leitura isolada de
oriundo de lei, somente por esta também poderá ser
qualquer veículo normativo. O artigo 1º, inciso IV, do
aumentado, pois “aumentar o tributo é modificar a lei
referido Regimento Interno ao dispor sobre o
que o criou, e uma lei só por outra pode ser
estabelecimento de obrigações tributárias acessórias
modificado” (MACHADO, 2001, p.69), assim foi
deve ter seu alcance nos limites do inciso II do artigo
definida a limitação ao poder de tributar.
87 da Constituição Federal, sob pena de criar nova

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Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade 109

competência constitucional. Limite este p.386).


fixado pela edição de atos para a «execução das leis, Os esquecidiços ou mais afoitos poderiam,
decretos e regulamentos». neste momento, indagar sobre a aplicação dos
A busca pelo sentido denotativo do verbo enunciados prescritivos presentes no Código
transitivo “executar” é fornecida primeiramente pelo Tributário Nacional (artigos 113, §2º e 115),
dicionário (FERREIRA, 1993, p.238), como 1) levar severamente analisados e interpretados pelos utentes,
a efeito, realizar; 2) tornar efetivas as prescrições de cada qual querendo fazer valer seus argumentos em
cumprir. Em momento algum há na significação da relação ao sentido da expressão “legislação tributária”
palavra ou no dispositivo constitucional a utilizada para caracterizar as obrigações acessórias.
possibilidade ou prerrogativa de criação e inovação Justifica-se a esterilidade desses esforços: A
pelo Ministério da Fazenda ou de seus órgãos lei n.º 5.172/66, ao ser editada e publicada, estava sob
subordinados. o manto da Constituição dos Estados Unidos do Brasil
Novamente com a acuidade que lhe é devida, de 1946, que não dispunha em seus artigos do veículo
Roque Antonio Carrazza (1981, p.11) desenvolve a introdutor de normas chamado lei complementar.
idéia dos atos normativos executórios: Veículo este que somente surgiu com a promulgação
da Constituição de 1967 e relegou à lei complementar
Como, porém, execução é mais do que estabelecer as normas gerais em matéria tributária.
simples cumprimento mecânico de
comandos alheios, não chegamos ao
Como já havia uma lei tratando sobre essas normas
exagero de afirmar que ele não altera, de gerais, o então Presidente da República, Castelo
modo algum, a ordem jurídica. É claro que, Branco, editou o Ato Complementar n.º 36/67, onde
para executar a lei, deve necessariamente em seu artigo 7º denominou a lei n.º 5.172/66 de
lhe agregar algo, até porque um ato Código Tributário Nacional e o revestiu nos moldes da
normativo que não cria nenhuma nova
lei complementar. Diante da permanência daquela
situação jurídica é, no mínimo, irrelevante,
não tendo, por isso, qualquer razão de ser. matéria sobre o abrigo da lei complementar nas
Em realidade, o regulamento executivo, Constituições seguintes, precisamente de 1969 e
sem suprir a lei administrativa não bastante 1988, permaneceu o Código Tributário Nacional
em si, nem, muito menos, sem limitá-la ou recepcionado por ambas. Todavia, a recepção da lei n.º
retificá-la, preenche o seu arcabouço,
5.172/66 não é integral e indiscriminada, visto haver
revestindo-a da normatividade necessária
para que seja bem aplicada, aos casos enunciado-enunciado expresso no artigo 34 do Ato
concretos. das Disposições Constitucionais Transitórias (18).
Logo, a análise dos vetustos enunciados-
A razão de existir da lei para autorizar aos enunciado presentes no Código Tributário Nacional
atos normativos das Secretarias Fazendárias é o que utilizem a expressão “Legislação tributária” para
mesmo daqueles atos regulamentares proferidos designar ainda que por ricochete as obrigações
pelas agências reguladoras de serviço público, eis acessórias, deverão buscar seu fundamento de
que «são as leis e as normas dela oriundas (inclusive validade na Constituição Federal de 1988, e conforme
as expedidas pela própria agência) que, dentro do já foi demonstrado acima, sempre haverá o limite da
amplo espectro regulatório que o Poder Público legalidade (artigo 37 da CF-88) para estes casos por se
possui, fixam os marcos, menos ou mais amplos, em tratarem de atos normativos expedidos por um dos
que o poder regulatório se desenvolverá, razão pela órgãos da administração pública Note-se que a
qual se uma competência não foi expressamente legalidade aqui entendida não é feroz como a reserva
conferida por lei, nem com base nela, pelos de lei; todavia, de observância necessária.
regulamentos, pelo edital da licitação ou pelo As matérias relacionadas com as obrigações
contrato, o órgão não a tem». (ARAGAO, 2002,

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110 Rodrigo Sarmento Tigre

principais, estas sim são mais rigorosas e Sem sombra de dúvidas, a legalidade
serão premidas pela reserva legal (19). Entretanto, tributária é deveras estrita em relação à tipicidade
para as normas jurídicas tributárias instrumentais, penal, por exemplo, uma vez que nesta poderá o juiz
basta que a lei em cada caso institua a norma aplicar outras fontes e outras circunstâncias para
instrumental em seus contornos básicos para que julgar o caso; enquanto que naquela será sempre tida
esteja o órgão competente autorizado a regulamentar de acordo com a lei e, apenas por esta, a ser o caso
e detalhar a execução, no interesse da arrecadação ou julgado. Isto ocorre para evitar-se o que Franz Kafka
da fiscalização. Prescindível será o veículo projetou de forma brilhante em “O PROCESSO”, ao
normativo trazer em seu bojo detalhamento dramatizar a insegurança do cidadão em ser
minucioso a respeito do fazer ou não fazer imputado penalizado por uma conduta (omissiva/comissiva)
ao sujeito da relação, sob pena de tornar que a ele era desconhecida, ou melhor, desconhecível;
desnecessária ou inútil ulterior instrução normativa. entretanto lhe era exigível.
Relembremos que ao encetarmos este O limite da legalidade para as normas
trabalho definimos o direito tributário como parte jurídicas tributárias instrumentais segue na mesma
integrante do direito administrativo, e como tal seara, visando dar maior segurança às relações
deveria obedecer a ambos os regimes jurídicos, jurídicas entre Estado e súdito, rechaçando na medida
notadamente quando houver expressa menção à do possível situações de surpresa e abusos, como
parte tributária e, na sua ausência, quanto a regra pugnado pelo inestimável Kafka. Situação que jamais
geral aplicada à administração pública. E muito bem poderá ser modificada por documentos normativos
ponderado, Celso Antonio Bandeira de Mello (2000, hierarquicamente inferiores à Constituição Federal
p.308-309) comunga da mesma opinião: (20).
Erigidos como princípios gerais a todo
É dizer: se à lei fosse dado dispor que o ordenamento jurídico, a legalidade e segurança
Executivo disciplinaria, por regulamento, jurídica vinculam-se indissociavelmente a noção do
tal ou qual liberdade, o ditame
assecuratório de que “ninguém será
Estado de Direito e do princípio Democrático (21),
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma devendo o Estado tê-los como escopo por força do
coisa senão em virtude de lei” perderia o artigo 3º da CF-88.
caráter de garantia constitucional , pois o
Por derradeiro, a adequação dos fundamentos
administrado seria obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, ora em virtude de validade dos atos normativos à lei conferem-lhe as
de regulamento, ora de lei, ao líbito do vestes formal e material indispensáveis a validade e
Legislativo., isto é, conforme o Legislador eficácia da norma instrumental, de caráter impositivo,
ordinário entendesse decidir. concretizando-se, assim, o princípio basilar da
[...]
legalidade tributária a conferir-lhes maior segurança
Por isto, a lei que limitar-se a (pretender)
transferir ao Executivo o poder de ditar, por jurídica possível, em detrimento as vicissitudes e ao
si, as condições e meios que permitem nuto discricionário do Estado (fisco), em face à
restringir um direito configura delegação efetivação do próprio (novo) Estado Democrático de
disfarçada, inconstitucional. Direito” (BUFFON, 2003, p.62).
[...]
É que, sendo certo e indiscutido que os Três A ressalva feita pelo legislador constituinte no
Poderes existem precisamente para apartar artigo 37 e no artigo 34, §5º do ADCT é imprescindível
as funções que lhe são correspondentes, se e, por oportuno, não foram em vão. Afirmar
pudessem delegar uns aos outros as que lhe incondicionalmente a recepção feita pela ordem
são próprias, a tripartição proclamada pela
constitucional ao Código Tributário Nacional sem os
Lei Maior não estaria nela ou por ela
assegurada.(36 devidos apontamentos e ressalvas, resulta nas mais

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Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade 111

diversas aberrações, famosos obrigações acessórias – expedir normas


Frankenstein´s jurídicos pela falta de acuidade na complementares relativas ao Registro Especial, ao
conformação dos veículos introdutores de normas cumprimento das exigências a que estão sujeitas as
com o modelo constitucional vigente. pessoas jurídicas para sua concessão e as penalidades
Neste sentido, levados a induções pelo descumprimento.
equivocadas mediante a obtusa análise literal- No entanto, nem sempre os interesses do
gramatical do Código Tributário Nacional, os Fisco caminham em harmonia com o Poder
incautos sustentam seus argumentos no sentido de Legislativo, posto que na maioria das vezes a
ser possível exclusivamente a partir da enunciação autoridade fazendária realiza saltos gigantescos sobre
das Secretarias Fazendárias criarem obrigações as normas de produção normativa, desconsiderando
acessórias através de instruções normativas, sem que na totalidade os trâmites legislativos, e acaba criando
anterior veículo introdutor primário o fizesse. atos normativos sobre obrigações acessórias sem a
Porém, restou demonstrado que qualquer análise precedência legal da norma jurídica tributária
conforme a Constituição resultará na única ilação instrumental, como ocorreu a exemplo da Instrução
possível: atos normativos somente regulam ou Normativa SRF nº 104/98. Dessome-se que a IN n.º
executam a lei, nunca poderão criar direitos ou 104/98 impôs limitação dantes não prevista em lei,
obrigações que não estejam previstas em lei anterior. extrapolando seus limites como ato regulatório, já que
Ademais, a correspondência lógica entre os a lei n.º 9.718/98 não autorizou a criação de novas
enunciados-enunciados da Constituição é que torna a limitações ou condições para o contribuinte que
análise sistemática do texto constitucional de optasse pelo lucro presumido com base na apuração
extrema necessidade para desvendar e concretizar as pelo regime de caixa (artigo 13, §2º). Enveredando no
linhas da legislação editada antes da nova ordem. E é mesmo sentido, sequer poderia ter sido instituída
inserida nesta lógica de adequação que multa pelo descumprimento das condições impostas
deslumbramos a concatenação necessária entre as pela aludida instrução normativa, visto que tal
normas jurídicas tributárias instrumentais previsão não constou na legislação em vigor.
conduzidas pelos veículos introdutores de normas Disto resulta inexoravelmente que, com base
(lei complementar, lei ordinária, etc) e os atos no princípio da legalidade da administração pública,
normativos (instruções normativas) expedidas pelos da estrita legalidade tributária e no princípio
órgãos competentes para, de sorte, chegar-se à federativo pela repartição de competência, é vedado a
segurança jurídica tão almejada. qualquer órgão da administração direta ou indireta,
Neste diapasão sistemático de interpretação, notadamente as Secretarias Fazendárias, instituir ou
torna-se inócuo pugnar pela locução «legislação criar normas jurídicas tributárias instrumentais. Tal
tributária» sem a devida atenção as normas da desiderato é sem dúvida apenas dos veículos
legalidade constitucional e a compatibilidade dos introdutores de normas primários.
enunciados da lei n.º 5.172/66 com os preceitos
constitucionais atuais. 5. Considerações finais
Voltando nossos olhares para o cerne da
legalidade, importante mencionar a recente
A consolidação do Estado Democrático de
promulgação da Lei nº 11.945/09, onde consta em
Direito já começou, em que pese os pequenos passos
seu artigo 1º a obrigatoriedade de determinadas
encetados a partir da Constituição Federal de 1988, na
pessoas jurídicas em manterem registro especial
busca pela minimização das desigualdades
junto a SRF. E, felizmente, encontramos no seu bojo,
econômicas e sociais, partindo-se da premissa da
precisamente no artigo 3º, a previsão das respectivas
repartição do ônus pecuniário arrecadado pelo Estado,

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112 Rodrigo Sarmento Tigre

e pelo sentimento a ser recrudescido quanto 113, §2, conjugado com o artigo 96, ambos do
a segurança jurídica das relações. Código Tributário Nacional, conforme se analisou e
Tal concepção, encontrada no modelo de sustentou durante todo o trabalho, tendo em vista o
Estado atual, tem a sua disposição mecanismos Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ter
capazes de implementar as garantias constitucionais restringido a recepção da legislação pretérita com o
dos contribuintes frente as avassaladoras barbáries que não seja compatível em face da Constituição da
cometidas com base na putativa República Federativa do Brasil de 1988.
«discricionariedade» da administração pública
fazendária. 11. Notas
De fato, é através da legalidade que o
contribuinte terá, não a certeza, mas a expectativa de (1) Isto se deve ao fato de haver níveis de linguagem, assim
não ser surpreendido com atos normativos editados, como existem os planos da linguagem (sintática, semântica
e pragmática). Logo, cada sistema de linguagem possui uma
de um dia para o outro, ao bel prazer do “interesse da lógica distinta, conforme leciona Paulo de Barros Carvalho:
arrecadação”, cujos efeitos são dimanados a partir de “ao direito positivo, a lógica deôntica (lógica do dever-ser,
sua publicação (artigo 103, I, do CTN). lógica das normas); à Ciência do Direito, alógica apofântica
(lógica das ciências, lógica alética ou lógica clássica)”
A figura do Estado Democrático de Direito (Curso de Direito Tributário, 16. ed. São Paulo: Saraiva,
já nos conduz inevitavelmente a restrição imposta ao 2004, p. 03)
Estado de ver seus atos sem fundamento de validade (2) Aqui adotamos o ponto de referência do sistema
dinâmico, em contraponto ao sistema estático, elaborado
pela lei ou na lei. Ainda, a faculdade de imposição por Hans Kelsen., muito bem esclarecido por Tárek: "(...)
das normas jurídicas tributárias instrumentais é do sistema dinâmico é aquele cujas normas componentes
Poder Legislativo, estando apenas ao Poder provêm de um ato de vontade de pessoas credenciadas pelo
próprio sistema (norma fundamental) para produzi-las.
Executivo conferida à competência de regular o que Aqui aparece o ato do ser humano como fator relevante na
já estiver previsto no veículo introdutor de normas produção de normas jurídicas. É o ato de vontade e o seu
primário. E a legalidade se torna um importante exercício que se tornam hábeis a alterar o ordenamento
jurídico. Uma norma pertencerá ao sistema do direito
mecanismo de proteção ao contribuinte, sob pena de positivo se, e somente se, for criada de acordo com o que
a cada momento ser ainda mais onerado pela via nele estiver prescrito para sua reprodução." (Fontes do
reflexa das “obrigações acessórias” tornando Direito Tributário, op. Cit., p. 53).
inexeqüível sua atividade econômica e alvejando os (3) Parte-se das premissas tão bem elaborados pelos adeptos
da teoria dos atos de fala deônticos, por exemplo, Paulo de
pilares fundamentais da República Federativa do Barros Carvalho e Tárek Moysés Moussallem. Para este
Brasil: de uma sociedade livre, justa, solidária e a último catedrático, a enunciação seria o agir humano que se
garantia do desenvolvimento nacional. dissipa no tempo, enquanto que o enunciado corresponderia
“ao suporte físico, ou seja, é a expressão material de um
Tamanha é a importância da legalidade que a signo. É a palavra escrita ou falada” que não se confundiria
Constituição Federal o tem expressamente, sob a com proposição resultante da “significação do suporte
físico criado em nossas mentes, isto é, a proposição é a
égide de diversos enunciados explícitos, e com isto construção mental do sentido do enunciado." (op. Cit., p.
solidificou uma importante garantia constitucional. 59)
Não há que se confundir também enunciado com norma
Denota-se, claramente, a necessidade da lei
jurídica, posto que norma é juízo hipotético-condicional
criar, dispor ou instituir a norma jurídica tributária composto por uma estrutura deôntica (dever-ser).
instrumental para, a partir daí, estar o Poder (4) Para Maurício Zockun “nada aparta o regime jurídico-
Executivo autorizado a lhe dar os moldes, minúcias e tributário do regime jurídico-administrativo (até mesmo
porque é inútil, para fins científicos, separar a parte do todo
pormenorizações necessárias a sua concretude. eis que ambos são informados pelos mesmos princípios
Hodiernamente, não é mais crível admitir a gerais), não se constituindo o direito tributário em
disciplina autônoma.” (ZOCKUN, M. Regime Jurídico da
análise isolada e estéril do conteúdo denotativo da Obrigação Tributária Acessória. São Paulo: Malheiros,
expressão “legislação tributária” prevista nos artigos 2005, p. 53)

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Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade 113

(5) Nesta linha de pensamento, pertinente se torna a adaptações necessárias em virtude do contexto histórico,
advertência de Grau: “Os Juristas, normalmente, usam social e político, tem-se que a lei é fruto de um processo
determinadas palavras e expressões jurídicas, para elaborativo do Poder Legislativo, constituído por membros
trabalhar em suas respectivas disciplinas, supondo serem eleitos pelo povo, representando-os de maneira a satisfazer
conhecidos e assentes os sentidos que nelas discernem. os interesses da sociedade através da edição de normas.
Isso, contudo, não ocorre. Por isso é imprescindível, para Logo, sendo a lei legitimada pelo povo através de seus
que possamos seguir adiante, de modo produtivo, no representantes, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
conhecimento do Direito, ocupar-nos com as palavras e fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, assim reza o
expressões jurídicas antes de as usarmos” (GRAU, Eros artigo 5º, inciso II, da Carta Magna, esculpindo mais do que
Roberto. Direito, Conceitos e Normas Jurídicas. Revista um direito individual, notadamente, uma garantia
dos Tribunais, p. 56, 1988). constitucional.
(6) ZOCKUN, Maurício. Op. Cit., p. 69. (12) As regras jurídicas, para Dworkin, são aplicáveis na
(7) Pertinente a lição trazida por José Souto Maior Borges: razão do tudo ou nada (all or nothing), com aplicação por
“(...) é ao direito positivo que incumbe definir os completo – em qualquer caso que seja preenchida a hipótese
requisitos necessários à identificação de um dever jurídico de incidência - ou absolutamente inaplicáveis, eis que as
qualquer como sendo um dever obrigacional. Significa regras não comportariam exceções, demonstrando uma
dizer: a obrigação é definida, em todos os seus contornos, verdadeira antinomia, a qual deverá ser solucionada por
pelo direito positivo.” (Obrigação Tributária, 2. ed., São critérios previstos no ordenamento jurídico, ipsis literis:
Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 38). Las normas son aplicables a la manera de disyuntivas. Si los
(8) A palavra ação pode compreender o significado hechos que estipula una norma están dados, entonces o bien
comportamental de agir, modificando o mundo la norma es válida, en cuyo caso la respuesta que da debe ser
fenomênico, como poderá servir para designar a inércia aceptada, o bien no lo es, y entonces no aporta nada a la
em algo também realizado pelo actante. Deixar de realizar decisión.( DWOKIN, Ronald. Los derechos em serio.
algo é fazer algo. Traduzido por Marta Guastavino. Barcelona: Planeta
(9) Se a norma fundamental (CF) relegou à Lei Agostini, 1993. p. 75)
Complementar a tarefa de dispor sobre normas gerais e Por outro lado, num conflito de princípios haverá o
considerando que a Lei 5.172/66 foi recepcionada pela sopesamento da importância (valor ou peso) de cada um dos
nova ordem jurídica como tal, vertida está em linguagem princípios conflitantes , na razão do mais ou menos, visto os
competente a possibilidade de existir uma obrigação princípios possuírem “una dimensión que falta e las
(tributária) sem qualquer carga pecuniária. normas: la dimensión del peso o importancia' , explicada
(10) A razão para utilizarmos a expressão “norma jurídica pelo autor americano in verbis: (...) quien debe resolver el
tributária instrumental” em detrimento às miscelâneas conflicto tiene que tener em cuenta el peso relativo de cada
criadas pelo resto da doutrina é concedida por Fábio Brun uno. En esto no puede Haber, por cierto, una mediación
Goldschmidt: “entendemos que os conceitos postos exacta, y el juicio respecto de si um principio o directriz em
devem, na medida do possível, receber a acolhida da particular es más importante que otro será con frecuencia
doutrina, que deve interpretar a lei, sem pretender motivo de controversia. Sin embargo, es parte esencial del
substituir-se a ela (linguagem sobre, e partir da, concepto de principio el que tenga esta dimensión, que
linguagem), sob pena de criarem tantas denominações tenga sentido preguntar qué importancia o qué peso tiene
diferentes, cada qual com sua justificativa, cada qual com (IDEM, p 77-8)
sua pretensão igualmente louvável de esclarecer, que (13) Mais uma vez, Tárek nos clarifica com seu saber
terminemos por, coletivamente, induzir à confusão e jurídico: "A 'competência', como integrante da hipótese da
instabilidade” (O Princípio do Não-Confisco no Direito norma de produção normativa (4), pode ter dois efeitos
Tributário, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. distintos: (a) estabelecer uma relação jurídica entre o sujeito
144-5). Com isso, evitamos perder o controle do termo passivo (no caso, o contribuinte) e todos os entes de direito
significante e mantemos o direito positivo intacto. público interno menos aquele qualificado por competente
(11) Antanho, Montesquieu nos glorificou com sua visão que denominaremos normas de competência-garantia; e (b)
política liberal, cujo legado de maior importância, a prescrição de observação de um procedimento para a
sobremaneira, foi a divisão clássica dos poderes, produção normativa. Essa chamaremos norma que
tripartindo-os em Executivo, Legislativo e Judiciário, disciplina o exercício de uma competência normativa ou
cujos quais possuiriam autonomia e independência; norma de procedimento.
contudo, havendo entre eles mecanismos de controle Em (a), a pessoa (competente) de direito público interno
recíprocos, a fim de rechaçar eventuais abusos da tem o direito de tributar (ou até mesmo autuar) os
soberania a que lhes fora conferida, disto resultando o contribuintes, e os demais entes legislativos devem não
sistema denominado freios e contrapesos (checks and legislar (autuar) sobre a matéria. Podemos denominar esta
balances). relação de relação jurídica de competência-garantia, em
Em face desta tripartição, reinante hodiernamente na razão de encerrar uma garantia constitucional de o
Constituição Federal de 1988 em seu art. 2º, com pequenas contribuinte só ser tributado (autuado) pela pessoa jurídica

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p101-115, jan/jun. 2010


114 Rodrigo Sarmento Tigre

detentora de competência para tanto." página 85 §3º e §4º.


Em (b), na denominada norma que disciplina o exercício (19) Paulo de Barros Carvalho já prelecionava neste
de uma competência normativa ou norma de sentido: «O veículo introdutor da regra tributária no
procedimento, a competência é tomada na hipótese ordenamento há de ser sempre a lei (sentido lato), porém o
normativa para prescrever o procedimento a ser observado princípio da estrita legalidade diz mais do que isso,
para o exercício da competência. estabelecendo a necessidade de que a lei adventícia traga no
Na norma de procedimento, se o sujeito ou órgão seu bojo os elementos descritores do fato jurídico e os dados
competente exercer a competência deve-ser, está obrigado prescritores da relação obrigacional. Esse plus caracteriza a
a observar o procedimento previsto pelo ordenamento «tipicidade tributária», que alguns autores tomam como
para seu exercício, e a comunidade tem o direito subjetivo outro postulado imprescindível ao subsistema de que nos
de exigir que se cumpra o procedimento." (Op. Cit. p. 85- ocupamos, mas que pode, perfeitamente, ser tido com uma
86) decorrência imediata do princípio da estrita legalidade».
(14) Constituição Federal, artigo 37: “A administração (Op. Cit. p. 158)
pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, (20) Deveras, Marciano Godoi sintetiza as idéias do
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios economista Adam Smith, pela busca da certeza e segurança
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, jurídica diante da tributação: «O campo da tributação deve
moralidade, publicidade e eficiência”. ser amplamente regido, segundo Smith, pela garantia da
(15) Com propriedade, Bonavides se atrela ao pensamento segurança jurídica, afastando-se quaisquer atos
de Jellinek aduzindo que “no Estado de Direto o discricionários que venham a ferir direitos adquiridos ou
Legislativo detém a exclusividade de editar normas instaurar um clima de incerteza entre os contribuintes,
jurídicas que fazem nascer, para todas as pessoas, deveres acerca de seus reais deveres para com o fisco» (GODOI,
e obrigações, que lhes restringem ou condicionam a Marciano Seabra de. Justiça, Igualdade e Direito Tributário.
liberdade”, e vai mais adiante ao concluir que “também o São Paulo: Dialética, 1999. p. 187)
Poder Público limita seu agir com tais normas, (21) Posição adotada por José Maurício Conti (Op. cit.).
subordinando-se, assim, à ordem jurídica e passando a
revestir, a um tempo, a condição, de autor e de sujeito de
direito” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Referências
Constitucional. 9. ed. 2000, p. 164).
(16) A Constituição revestiu de maior segurança o cidadão
impondo à Administração Pública a estrita legalidade
tributária fulcrada no artigo 150, inciso I, com ressalvadas ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências
exceções (e.g: art. 153, §1º, CF-88). Reguladoras e a evolução do direito
(17) Artigo 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos administrativo econômico. Rio de Janeiro:
dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no Forense, 2002, p. 386.
exercício dos direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de BUFFON, Marciano. O princípio da
outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na Progressividade Tributária na Constituição
lei: Federal de 1988. São Paulo: Memória Jurídica,
I – exercer a orientação, coordenação e supervisão dos 2003, p. 62.
órgãos e entidades da administração federal na área de sua
competência e referendar os atos e decretos assinados pelo CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito
Presidente da República; Constitucional Tributário. São Paulo:
II – expedir instruções para a execução das leis, decretos e Malheiros, 1998.
regulamentos;
III - (...) CARRAZZA, Roque Antonio. O Regulamento
IV – praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe no Direito Tributário Brasileiro.São Paulo:
forme outorgadas ou delegadas pelo Presidente da Revista dos Tribunais, 1981.
República
(18) Artigo 34. O sistema tributário nacional entrará em CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da Norma
vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da Tributária. p. 151-152
promulgação da Constituição, mantido, até então, o da
Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº DUARTE Jr., João Francisco. O que é a realidade.
1, de 1969, e pelas posteriores. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 02.
(...)
§5 Vigente o novo sistema tributário nacional, fica FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
assegurada a aplicação da legislação anterior, no que não Minidicionário da Língua Portuguesa. 3. ed.
seja incompatível com ele e com a legislação referida nos Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p101-115, jan/jun. 2010


Instrução Normativa e as Obrigações Acessórias: uma questão de legalidade 115

GIANNINI, Massimo Severo. Diritto


Amministrativo. v. 2, Milão, Giuffré, 1970 In:
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo:
Malheiros editores, 1994.
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dicionário básico da língua portuguesa. São
Paulo: Nova Fronteira.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito
Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-
trativo Brasileiro. 19. ed. São Paulo: Malheiros
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Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p117-122, jan/jun. 2010 117

INEXIGIBILIDADE DE DIMOF DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS


FACE À IMPOSSIBILIDADE DE INSTITUIÇÃO DE OBRIGAÇÃO
TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA POR INSTRUÇÃO NORMATIVA
The unenforceability of Dimof of the financial institutions face to the impossibility of tax
liability for incidental normative instruction

Nelson Henrique Rodrigues de França Moura1

RESUMO ABSTRACT

O presente artigo científico é resultado de This scientific article is the result of


uma pesquisa investigativa que teve como investigative research that aimed to study
objetivo principal estudar a inexigibilidade the enforceability of the Declaration of
de Declaração de Informações sobre a Financial Transactions Information -
Movimentação Financeira – DIMOF das DIMOF financial institutions faced with the
instituições financeiras face à impossibility of the imposition of tax
impossibilidade de instituição de obrigação liability for incidental normative
tributária acessória por instrução normativa. instruction. The methodology used during
A metodologia utilizada no decorrer da the research was the dialectical method.
pesquisa foi o método dialético. Utilizou-se Used as sources of information books, legal
como fontes de informação livros, revistas journals, articles published in a journal or
jurídicas, artigos publicados em revista ou available on the Internet, the Brazilian
disponíveis na Internet, legislação brasileira legislation (particularly the Federal
(em especial a Constituição Federal, Código Constitution, the National Tax Code and
Tributário Nacional, e demais dispositivos other provisions applicable to the species).
aplicáveis à espécie).
Keywords: Tax Liability. Incidental
Palavras-chave: Obrigação Tributária Normative Instruction. Principle of Strict
Acessória. Instrução Normativa. Princípio Legality. DIMOF.
da Estrita Legalidade. DIMOF.

1
Advogado e Consultor em Maceió; Professor do Instituto de Ensino Santa Cecília (IESC); Pós-graduado
em Direito Tributário pelo Instituto de Ensino Luiz Flávio (IELF); Pós-graduando em Direito Tributário
pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); Vice-Presidente da Comissão de Estudos
Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Alagoas.
118 Nelson Henrique Rodrigues de França Moura

1. Considerações preliminares. tributação, assim como outrora o fez com os dados


obtidos através do recolhimento da extinta
Contribuição Provisória sobre Movimentação
O princípio da legalidade, surgido a partir da
Financeira – CPMF.
criação dos modernos Estados de Direito, revela-se
como verdadeiro mecanismo, garantia, que o Todavia, a tentativa desenfreada do Fisco
contribuinte possui contra o arbítrio estatal, segundo obter as requestadas e preciosas informações quanto
o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de às movimentações financeiras praticadas pelos
fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, contribuintes não pode ser justificativa para
II, CF/88). imposição de obrigação acessória, como é o caso da
obrigatoriedade na entrega da DIMOF pelas
Em outras palavras, qualquer intervenção
instituições financeiras, sem que, para tanto, houvesse
estatal sobre a propriedade ou a liberdade das
lei em sentido estrito regulando dita compulsoriedade,
pessoas só pode advir da expressa previsão legal.
sob pena flagrante violação aos princípios da
Mas nem sempre foi assim.
legalidade e segurança jurídica, como veremos.
No passado, conforme ensinamentos do
ilustre professor Roque Carrazza “a tributação era
realizada de modo tirânico: o monarca 'criava' os 2. O princípio da estrita legalidade como
tributos e os súditos deviam suportá-los”. E conclui: estabilizador das relações jurídicas.
“mesmo mais tarde, com o fim do feudalismo,
quando ela passou a depender da aprovação dos
No campo tributário, o princípio da estrita
'Conselhos dos Reinos' ou 'Assembléias Populares',
legalidade se mostra como um dos pilares que sustenta
os súditos não ficaram amparados contra o arbítrio”.
a relação jurídica tributária existente entre Estado e
Com efeito, os contribuintes daquela época sofreram
contribuinte, pois deve haver um mínimo de
demasiadamente com a “tributação sem lei”, para se
segurança jurídica, sem a qual sucumbiria esta relação
chegar até os dias atuais.
harmoniosa, a fim de que o contribuinte não se
Não obstante todo o avanço legislativo submeta ao arbítrio das pessoas políticas.
alcançado pelos contribuintes, sobretudo com o
Neste contexto, verifica-se que a exação
advento da Constituição Federal e as instituições dos
imputada pelo Poder Executivo, sem a participação
direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, há
daqueles que editam as leis, caracteriza um total
casos, porém, que o Estado persiste em sobrepujar o
afronto aos regramentos estatuídos no sistema
princípio da estrita legalidade, editando atos
tributário nacional, violando flagrantemente o
infralegais para exigir o cumprimento de obrigações
princípio da estrita legalidade tributária.
tributárias acessórias, como no caso de
obrigatoriedade da Declaração de Informações sobre E não é outro o escólio de Hugo de Brito
a Movimentação Financeira à Receita Federal, Machado:
impostas às instituições financeiras, mediante
instrução normativa. As imposições tributárias deverão estar
autorizadas em lei, mas a lei é obra do
Registre-se que o intuito do Fisco com a Poder Legislativo, cujo órgão é mais
exigência da Declaração de Informações sobre a frequentemente e mais desejavelmente um
Movimentação Financeira – DIMOF pelas corpo coletivo de base eletiva e de caráter
instituições financeiras foi, em verdade, obter representativo, «autorizando a presunção
de que são os contribuintes que,
informações quanto às movimentações financeiras
indiretamente, consentem essas
realizadas pelos contribuintes, objetivando analisar imposições». (grifo nosso)
seu patrimônio para efeito de fiscalização da

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Inexigibilidade de Dimof das instituições financeiras face à impossibilidade de instituição de 119
Obrigação Tributária Acessória por Instrução Normativa

Como se verifica, o princípio da estrita prestações, positivas ou negativas, nela


legalidade, como corolário do princípio da segurança previstas no interesse da arrecadação ou da
fiscalização dos tributos. (grifo nosso)
jurídica, se reveste da finalidade de estabilizar as
relações jurídicas existentes entre o Estado e o
particular, na medida em que almeja os valores de É cediço, portanto, que para que haver a
igualdade e justiça através da expressão de vontade imposição de determinada obrigação tributária
geral ou consentimento dos contribuintes, sufragada acessória, que se descumprida, converte-se em
pelo ato formal exercida pelos legitimados pelo povo obrigação principal de pagar pecúnia aos cofres
(legisladores), mediante um processo legislativo públicos (art. 113, §3º, CTN), tem-se como
disciplinado na Constituição Federal. imprescindível a expressa determinação no texto
A relação tributária não implica numa mera legal. A lei é o instrumento hábil para disciplinar
relação de poder exercida pelo Estado em desfavor matéria atinente à obrigação tributária acessória.
do administrado, sem qualquer previsão normativa Por sua vez, o artigo 115, do Código
legal, mas sim constitui-se numa relação jurídica Tributário Nacional, preconiza que:
propriamente dita, onde os atos envolvidos na
relação devem estar precisamente disciplinado na lei Art. 115. Fato gerador da obrigação acessória
em sentido estrito, somente podendo alterada por é qualquer situação que, na forma da
norma jurídica de mesma ou superior hierarquia legislação aplicável, impõe a prática ou a
abstenção de ato que não configure
dentro do nosso ordenamento jurídico. obrigação principal.

3. Obrigatoriedade de instituição de obrigação Como visto, o surgimento de uma obrigação


tributária acessória por meio de lei em sentido tributária, seja ela principal ou acessória, somente
estrito. deve decorrer de disposição expressa em lei, a qual
inclusive deve descrever pormenorizadamente o fato
A obrigação tributária acessória constitui-se gerador da respectiva obrigação impondo a realização
na compulsoriedade instituída pelo Estado, mediante de certa conduta ou abstenção da prática de
lei, que, sem conteúdo pecuniário, possui como determinado ato pelo contribuinte.
objeto prestações positivas ou negativas (obrigação
de fazer ou de não fazer) destinadas aos 4. Da inexigibilidade de DIMOF das instituições
contribuintes, visando a arrecadação ou fiscalização financeiras: Impossibilidade de instituição de
de tributos. obrigação tributária acessória por instrução
A instituição de obrigação tributária normativa.
acessória, prevista no artigo 113, §2º, do Código
Tributário Nacional, estabelece que tal obrigação Mediante a instituição da vergastada
decorre da legislação tributária, assim entendida com Instrução Normativa nº 811/2008, foi criada uma
um complexo de normas jurídicas veiculadas através obrigação tributária acessória, consistente na entrega
de expressa disposição em lei em sentido formal, de DIMOF à Receita Federal do Brasil, destinada a
sendo descabida sua imposição por atos infralegais, todas as instituições financeiras, fixando inclusive
senão vejamos: multa em caso de não inobservância ou cumprimento a
destempo.
Art. 113. A obrigação tributária é principal
ou acessória.... Vejamos o preconizado no artigo 1º do
§ 2º «A obrigação acessória decorre da referido dispositivo normativo infralegal:
legislação tributária» e tem por objeto as

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p117-122, jan/jun. 2010


120 Nelson Henrique Rodrigues de França Moura

Art. 1º Instituir a Declaração de Contribuições e Tributos Federais - DCTF.


Informações sobre Movimentação 2. Esta matéria já foi tratada diversas vezes
Financeira (Dimof), cuja apresentação é por esta egrégia Corte que se manifestou no
obrigatória para os bancos de qualquer sentido de que ofende o princípio da
espécie, cooperativas de crédito e legalidade a instituição de obrigação
associações de poupança e empréstimo. tributária acessória mediante Instrução
Normativa, por delegação do Secretário da
Receita Federal, através de Portaria baixada
Ora, à luz do princípio da estrita legalidade, pelo Ministério da Fazenda.
somente lei – em sentido estrito – poderá instituir 3. Apelação e Remessa oficial não providas.
4. Peças liberadas pelo Relator em
obrigação tributária acessória. A obrigação 11/03/2008, para publicação do acórdão.
acessória, que eventualmente poderá ser convertida ( T R F 1 ª R e g i ã o . A M S
em obrigação principal, caso descumprida, deverá 199938000365468/MG. 7ª T. Rel. Juiz
necessariamente veiculada mediante lei, ou seja, Federal Rafael Paulo Soares Pinto (conv.). e-
espécie normativa advinda do poder legislativo e que djf1 data:28/03/2008 pagina:438)
Tributário. multa por descumprimento de
preencha todos os requisitos para sua validade.
obrigação acessória – apresentação de DTCF
O significado do instituto jurídico da - invalidade.
Instrução Normativa consiste no ato administrativo 1. Obrigação tributária acessória precisa
para complementar as determinações contidas nas estar prevista em lei, no sentido formal e
material, não bastando simples instrução
leis (art. 100, I, CTN), interpretando-as para o bom normativa para sua criação, em razão do
esclarecimento aos contribuintes, ou seja, a função princípio da legalidade do art. 5º, II, da
precípua da Instrução Normativa é esclarecer Constituição da República.
eventual entendimento destoante de determinada lei. 2. A obrigação de apresentar DCTF não
Nenhuma relação tem com a instituição de obrigação está prevista em nenhuma norma com
estatura ao menos de lei ordinária, mas
tributária acessória ou fixação de penalidades. apenas e tão somente em instruções
Não pode uma norma infralegal, como é o normativas.
caso da transcrita instrução normativa, versar sobre a 3. A IN 129/96 foi editada com base em
delegação de competência legislativa
criação de uma obrigação tributária acessória,
expressa no art. 5º do DL2.214/84, que,
inclusive fixando multa pecuniária, sob pena de ferir entretanto, perdeu seu vigor 180 dias após a
o princípio da estrita legalidade, preconizado no promulgação da Constituição de 1988, por
artigo 113, §2º, do CTN. força do art. 26, I, do ADCT/88.
4. Apelação e remessa oficial tida por
Corroborando com este entendimento, segue
interposta improvidas. (TRF 1ª R. – AC
algumas jurisprudências pátrias: 200501990328691 – MG – 8ª T. – Rel. Juiz
Conv. César Augusto Bearsi – DJ
Tributário. Constitucional. Ilegitimidade data:20/01/2006. p.123). (grifos nossos)
passiva da autoridade coatora. Princípio da
legalidade. Instituição de obrigação
tributária acessória mediante instrução Os julgados trazidos à baila são perfeitamente
normativa. Apelação e remessa oficial não aplicáveis ao caso em tela, uma vez que se referem à
providas. impossibilidade de instituição de obrigação tributária
1. Não há falar em ilegitimidade passiva da acessória por norma infralegal (Instrução Normativa),
autoridade coatora, pois o Delegado da
Receita Federal em Varginha - MG é o
o que viola fatalmente o princípio da estrita
responsável pela autuação e lançamento legalidade, nos termos do artigo 5º, inciso II, da
fiscal, referente à multa decorrente do Constituição Federal, bem como o artigo 113, §2º, do
atraso na apresentação das Declarações de CTN.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p117-122, jan/jun. 2010


Inexigibilidade de Dimof das instituições financeiras face à impossibilidade de instituição de 121
Obrigação Tributária Acessória por Instrução Normativa

5. Do não cabimento de multa por norma qualquer espécie de obrigação tributária acessória,
infralegal. assim como qualquer fixação de eventual penalidade
por descumprimento daquela deverá necessariamente
advir da lei em sentido estrito, sob pena de padecer de
Por outro lado, a fixação de multa em
ilegalidade.
decorrência de eventual descumprimento de
obrigação acessória, só e somente só, poderia ser Como visto, tais matérias estão adstritas à
estabelecida através de lei, em respeito ao princípio competência do legislador ordinário, pelo que se
da estrita legalidade. Não pode haver penalidade mostra absolutamente incabível a aplicação da citada
tributária sem lei que a estabeleça. É o que se instrução normativa para exigibilidade de DIMOF das
depreende do artigo 97, inciso V, do CTN, senão instituições financeiras, em face da inexistência de
vejamos: comando legal neste sentido.
Tanto a jurisprudência como a doutrina pátria
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
são enfáticas ao preconizarem a necessidade de lei
...
V - a cominação de penalidades para as para tratar de hipótese de obrigação tributária
ações ou omissões contrárias a seus acessória. Tem-se como imprescindível a veiculação
dispositivos, ou para outras infrações nela mediante lei para instituir obrigação tributária
definidas; (grifamos) acessória, bem como para cominar penalidades em
caso de inobservância, a teor do artigo 113, §2º,
Neste sentido, é a decisão do Superior combinado com o artigo 97, inciso V, ambos do
Tribunal de Justiça: Código Tributário Nacional.
Destarte, a malsinada Instrução Normativa nº
Penalidade. Princípio da Legalidade. 811/2008, além de ferir o princípio da estrita
1. Inviável, por via de Instrução Normativa,
legalidade, viola os princípios da segurança jurídica,
ampliar o conteúdo de objetivo punitivo
tributário. pelo que desestabiliza as relações jurídicas tributárias
2. Qualquer multa por descumprimento de entre Estado e contribuinte, assim como viola o
obrigação acessória depende de ter primado da separação dos poderes, possibilitando a
previsão legal. usurpação do poder legiferante pelo Poder Executivo.
[...]
6. Recurso especial não-provido. (STJ -
Primeira Turma - Resp 1035244 / PR - Referências
Ministro José Delgado - Data do
Julgamento 20/05/2008 - Data da
Publicação/Fonte DJ 23.06.2008 p. 1). AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro.
(destacamos) 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência
Ora, a natureza jurídica das Instruções
tributária. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
Normativas não comporta eficácia normativa
suficiente para instituir obrigações tributárias CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito
constitucional tributário. 22. ed. Malheiros: São
acessórias, nem tampouco fixar multa em
Paulo, 2006.
decorrência de sua inobservância.
MACHADO, Hugo de Brito. Direitos fundamentais
do contribuinte e a efetividade da jurisdição. Atlas :
6. Conclusão. São Paulo, 2009.
NERY JÚNIOR, Nelson & NERY, Rosa Maria de
Portanto, resta patente que a instituição de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p117-122, jan/jun. 2010


122 Nelson Henrique Rodrigues de França Moura

Legislação Extravagante. 9. ed. rev., atual. e ampl.


São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006.
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário:
Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e
da Jurisprudência. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado: ESMAFE, 2007.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p117-122, jan/jun. 2010


Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p123-131, jan/jun. 2010 123

REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: UMA VISÃO SOBRE A


POLÍTICA CRIMINAL
Differentiated Disciplinary Regime: a view of criminal politics

Aurora Augusta Gomes Leite1

RESUMO ABSTRACT

O presente trabalho trata da criação do This work deals with the creation of the
Regime Disciplinar Diferenciado e das Differentiated Disciplinary Regime and the
questões relacionados à política criminal e a issues related to criminal justice policy and
constitucionalidade de tais medidas. Analisa constitutionality of such measures.
a falta de eficácia no que tange a Examines the lack of efficacy with respect to
ressocialização do apenado e o desrespeito à social rehabilitation of the convict and
dignidade e aos princípios humanitários disrespect the dignity and humanitarian
propostos pela Magna Carta de 1988. Busca- principles proposed by the Federal
se avaliar a questão da lei penal puramente Constitution of 1988. Seeks to assess the
simbólica que não inibe o sentimento de issue of criminal law purely symbolic that
medo e insegurança através da construção inhibit the feeling of fear and insecurity by
no imaginário sobre o crime e a violência no building on the imaginary crime and
contexto social. Trata ainda dos valores violence in the social context. It also values
concretamente despendidos pelo poder actually spent by the government to reduce
público para diminuir os reflexos negativos the negative effects to society that occurs
passados para coletividade que ocorre sem past without success.
sucesso.
Keywords: Disciplinary Differential.
Palavras-chave: Regime Disciplinar Dignity. Constitutionality. Resocialization.
Diferenciado. Dignidade. Constitucionalidade.
Ressocialização.

1
Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Superior de Magistratura de
Pernambuco – ESMAPE; Professora do Instituto Superior de Ensino Santa Cecília – IESC.
Contatos: auroraaugusta@yahoo.com.br
124 Aurora Augusta Gomes Leite

1 - Introdução nascendo o RDD, transgredindo a lógica


correlacionista e ressocializadora, esta postura
punitiva de intensa severidade segue tendências
O Regime Disciplinar Diferenciado - RDD
punitivas globalizadas conhecida como sistema da
foi implantado no Estado de São Paulo,
tolerância zero que, em nossa visão, não se adequa ao
possibilitando o isolamento de detentos por ate 180
Estado Democrático de direito.
dias e, mesmo sendo inconstitucional, o Estado
aprovou tal medida através da resolução do
secretário Nagashi Furukawa, introduzindo-a no 2. Aplicação da pena: uma função moral?
ordenamento no dia 01 de Dezembro de 2003, com a
Lei Federal 10792/03.
Ao contrário das teorias absolutas da pena, as
O discurso estabelece evidência dialética teorias relativas ou prevencionistas não tratam a pena
entre as lideranças opressoras e os criminosos de alta como um fim em si mesma, ao contrário, são teorias
periculosidade, proporcionando caráter redentor à finalistas que têm um meio a serviço de determinados
punição disciplinar. fins. A finalidade passa a ser a prevenção de novos
Do ponto de vista político-penal, a ciência delitos, tanto em caráter geral, agindo sobre
criminal passa por uma crise, já que a intervenção generalidades de seus autores quanto ao ânimo
estatal passa a ser vista não como uma solução daqueles que os praticam.
ressocializadora, mas como causa de estigma na vida Coube a Feuerbach (apud QUEIROZ, 2005),
do apenado, o que gera propostas que vão de a formulação da teoria de prevenção geral negativa,
movimentos abolicionistas até os reducionistas de que fundamenta a prática de crimes na motivação
direito penal, que possibilita uma contrapartida através psicológica e no prazer do homem ao cometer atos
de um discurso que leva ao direito penal do inimigo. contrários à norma, segundo ele a pena deveria agir
Na concepção de Günther Jakobs (2005) o contra este impulso. Os delitos seriam alvos de uma
direito penal alcança sua efetiva legitimidade através prevenção geral, através de uma intimidação
das normas que reagem as condutas que são psicológica. A aplicação da pena ficaria submetida a
contrárias a ele, desta maneira a pena é uma reação dois momentos: O da cominação, onde o objeto é a
frente à violação normativa, sendo esta teoria coação e o da efetivação da mesma.
puramente retribucionista. Ao haver esta violação da Roxin (apud QUEIROZ, 2005), critica esta
norma, várias podem ser suas formas para teoria, propõe que a falha está no fato da indefinição
restauração da sua validade, mesmo que esta resposta do que será penalmente punível, além disso, a norma
não seja a pena, uma vez que esta possui função não se mostra como fonte de neutralização de
residual. delitos. Esta doutrina é frágil por não proporcionar
Baratta (apud QUEIROZ, 2005), afirma que limites fundamentadores exatos ao poder punitivo
a pena tem uma função jurídico-penal que se estatal, orientando uma prevenção por demais
justifica não pelo que representa para o homem, mas elástica.
pelo que representa para o sistema social, sendo o
cidadão mero destinatário final de uma política de
Regulamentação das Normas X Comportamento
reinserção social.
Social
É neste contexto que se implanta um sistema
penal contra os inimigos da sociedade,
A prevenção positiva da pena traz como
intensificando a punição, retirando dos detentos
fundamento a conscientização coletiva através do
garantias trazidas pela magna carta de 1988,
respeito ao direito, fazendo notar-se a integração

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Regime Disciplinar Diferenciado: uma visão sobre a política criminal 125

social para Welzel (apud QUEIROZ, 2005), A pena como função simbólica
a missão do direito penal é resguardar valores
éticos e sociais na consciência dos indivíduos,
Inspirada na teoria geral positiva surge a
cabendo a norma o papel de conscientização e
função simbólica da pena, cuja finalidade não é a
fidelização jurídica, que proporcione a efetivação
resolução de eventuais conflitos penais, mas a
de tais valores, uma vez que a intervenção só se dá
tranquilização do consciente social, através da edição
em sua plenitude quando o bem jurídico já foi
de normas que causem a impressão de segurança
atingido, e exatamente por isso o mais importante
jurídica, conforme pontua Queiroz (2005).
seria o fortalecimento da consciência jurídica,
tendo esta uma lição penal de natureza ético- O Estado recorre a este meio em várias
social positiva. situações como é o caso da criação do RDD,
aumentando o grau de punição daqueles que já se
Esta doutrina confunde o que há de moral e
encontram no cumprimento de pena com regime
jurídico, pois o fundamento é baseado na mudança
fechado.
íntima de sentimentos jurídicos dos delinqüentes, o
que na prática é insustentável. É bem verdade que a promulgação de normas
mais rígidas acalma os anseios sociais, porém não é
adequado que o Estado, a propósito de oferecer
Uma tal pretensão, enfim, de ditar uma
ética, eticizando/moralizando seus segurança jurídica, intervenha de maneira lesiva à
jurisdicionados, contravém o pluralismo humanização do direito, uma vez que o direito não
ideológico “inerente a idéia de democracia, deve iludir seus destinatários.
sobretudo se ocorre um castigo extremo,
Além disso, um direito penal simbólico não
ultima ratio da política social, destinado à
só regulamentação de conflitos de tem a mínima legitimidade porque age através do
interesses especialmente agudos medo da criminalidade e insegurança coletiva, criando
(QUEIROZ, 2005). uma rigorização desproporcional e desnecessária
àqueles que praticam ilícitos, introduzindo uma
infinidade de exceções quanto aos destinatários,
Para este mesmo autor, a regulamentação
desacreditando o próprio ordenamento, diminuindo o
das normas tem que atingir o comportamento social
poder intimidatório da legislação.
relevante, não os sentimentos, visto que a
penalização não gera a moralização da
coletividade, assim o contrário também não ocorre, Pena como prevenção individual
se assim fosse o comportamento social iria estar
atrelado, de maneira direta, a regulamentações
Para a teoria da prevenção especial ou
normativas feitas pelo Estado, e a pena seria
individual a finalidade da pena é evitar a reincidência
imprescindível para restauração e estabilização
dos criminosos, logo esta tem como alvo somente
social.
aqueles que já praticaram delitos. Pedro Dorado
Fortalecer os sentimentos jurídicos através Montero (apud QUEIROZ, 2005), afirma que a justiça
das normas é, na verdade, misturar o que há de moral penal deve ter como fundamento o saneamento social,
e de jurídico oferecendo à norma uma importância visando o meio adequado para solução dos
que na prática ela não tem. É mais adequado delinqüentes, neste sentido a pena teria duração
objetivar, no Direito Penal, um efeito, não uma indeterminada já que iria existir enquanto houvesse
causa, não se deve destinar a criação de uma lei a uma necessidade do tratamento.
força meta-normativa que alcance o sentimento
Liszt (apud QUEIROZ, 2005), alega que a
próprio de quem delinqüiu.
pretensão da pena deve ser a prevenção, forma eficaz

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126 Aurora Augusta Gomes Leite

de evitar o cometimento de futuros delitos, de respectivas penas, sendo estas graduadas na


acordo com características particulares de cada culpabilidade do autor.
autor, para isso a ressocialização se daria com a Com a aplicação da pena e posterior execução
execução penal. É notável que esta doutrina exerce é notável que há uma busca pela integração social.
influência no ordenamento brasileiro observemos o Neste mesmo caminho segue o legislador quando
artigo 1º da Lei de Execuções Penais - LEP ao dispor: prevê a progressão do regime, a restrição da pena pelo
“a execução penal, tem por objetivo efetivar as trabalho e o livramento condicional, fundamentando-
disposições da sentença ou decisão criminal e se em critérios de prevenção especial.
proporcionar condições para harmônica integração
Assim como existem manifestações gritantes
social dos indivíduos”.
do direito penal simbólico, observemos:
Cumpre ressaltar que a prevenção especial
não se dá de forma generalizada, mas somente na Assim, as normas relativas ao tráfico ilícito
execução penal, deixando de fundamentar a atuação de entorpecentes (Lei 6368/76 art.12, cujas
estatal na política criminal, também deixa à margem penas exageradamente altas (3 a 15 anos de
reclusão, para que o tráfico além da
os criminosos ocasionais, é de se convir que a partir
incidência de todas as restrições atinentes aos
do momento que o delinqüente responda pelo que é, crimes hediondos) expressam o repúdio
não pelo crime que cometeu será tratado de maneira puramente retórico do Estado a essa prática,
subjetiva, abrindo caminho para eventuais prescindindo-se da teoria da racionalidade
(QUEIROZ, 2005).
arbitrariedades.

Também não se deixa de aplicar o que é


Função da pena na legislação brasileira conhecido como direito penal do inimigo, violando as
garantias oferecidas por Estado Democrático de
O estudo sobre a legislação penal brasileira Direito, como é caso do RDD, sendo este um
demonstra claramente a opção criminal do enrijecimento na aplicação das penas, onde o
legislador, de não se apegar a nenhuma teoria da pena desrespeito à Constituição Federal é manifesta, pois a
de forma exclusiva, pelo contrário, o ordenamento pena cruel e degradante passa a ser institucionalizada.
encontra-se fundamentado em diversas tendências:
liberais, antiliberais, funcionais, simbólicas, etc. 3. Expansão do direito penal e aplicação do RDD
Existem medidas que são adotadas em função de
razões econômicas, como foi o caso do Decreto de
Indulto Presidencial (apud QUEIROZ, 2005). O direito penal visa à proteção dos bens
jurídicos, desta forma, falar em sua expansão implica
Na cominação das penas, o código penal não
em se levar em consideração à tutela de novos bens
adota somente a prevenção geral, como propõe o
jurídicos, em alguns momentos esta elasticidade pode
artigo 2º, é visto que no artigo 59 CP, para que o juiz
até mesmo causar uma tutela irrazoável destes bens
fixe a pena, antes ele tem que observar a
(SANCHEZ, 2002), podendo haver punição a
culpabilidade do delinqüente, os antecedentes, à
determinadas condutas que não lesionem bens
conduta social, personalidade, motivos,
jurídicos de maneira relevante.
circunstância, reprovação e prevenção do crime,
tendo assim um caráter retributivo. O efetivo aparecimento de novos riscos têm
como marco a sociedade tecnológica, a criminalidade
Por outro lado, Queiroz (2005) pontua que a
de massa causa insegurança à população, o que faz
prevenção geral oferece sustentáculo no que diz
surgir movimentos como o da lei e da ordem, desta
respeito à definição de infrações penais e de suas
perspectiva a sociedade passa a ser atingida pelo que

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p123-131, jan/jun. 2010


Regime Disciplinar Diferenciado: uma visão sobre a política criminal 127

se conhece como “insegurança sentida” meramente simbólico e não produz nenhum


(SANCHEZ, 2002). A expansão do direito penal resultado empírico (FREIRE, 2005), o medo e a
passa a ser vista como instrumento eficaz de insegurança continuam a açoitar a população, mesmo
pedagogia político social. com o implemento de regimes punitivos mais severos.
Diante da multiplicação da miséria nos A combinação de fatores como a construção
centros urbanos, explosão de criminalidade e de sistemas arbitrários aos mecanismos de controle
desobediência coletiva, as instituições estatais, antes social, com base na experiência de períodos ditatórias,
voltadas a proteger os direitos dos cidadãos e e inexistência de políticas sociais, fertiliza no Brasil
produzir eficácia dos direitos humanos, o Estado solo apto a gerar a aceitação de modelos punitivos
assume a obrigação de oferecer segurança, é neste como o regime disciplinar diferenciado.
contexto que a intervenção mínima é alterada de
forma brusca e leis mais rígidas são elaboradas.
RDD e o direito penal do inimigo
Num país periférico, como o Brasil, onde a
desestruturação socioeconômica combina-se com a
arbitrariedade contida nos métodos de controle A efetivação do RDD confirma a implantação
social (FREIRE, 2005), torna-se maior a insegurança do direito penal do inimigo, onde sujeitos
coletiva, o que contribui para fomentação de transgressores da norma são tratados como fonte de
políticas repressivas como meio de assegurar a perigo, sendo neutralizados a qualquer custo, o que
população. caracteriza um adiantamento da punibilidade,
enrijecimento de aplicação das penas e supressão de
O Brasil adota mecanismos técnicos e
garantias individuais. O preso submetido ao RDD
disciplinares inspirado no modelo panóptico de
passa a ser visto como inimigo, as penas impostas
Bentham (apud Foucault, 2005) tais saberes
perdem o caráter garantista e assumem o de vingança.
criminológicos periféricos, buscam amparo na
analogia entre o selvagem e o criminoso, a disciplina Esta aplicação retributiva traz, em seu corpo, a
e a repressão aplicadas nos períodos ditatoriais idéia de que o principal fundamento para que se
(1937/1945 e 1964/1982) que até hoje deixam aplique a penalidade que trate o apenado como
vestígios, refletem nas prisões cenas de política, e cidadão não é respeitada, por faltar ao sujeito às
mesmo durante o processo de redemocratização, a qualidades de pessoa, obtendo assim um tratamento
partir da década de 80, são observadas puramente negativo. O que na visão de Jakobs e Melia
descontinuidades institucionais que não (2005) “Quem por princípio se conduz de modo
acompanham a dinâmica de tal processo (FREIRE, desviado, não oferece garantia de comportamento
2005). pessoal. Por isso não pode ser tratado como cidadão,
mas deve ser combatido como inimigo”.
A transição da ditadura para democracia
mantém inalterada a estrutura de controle social e a Cumpre ao direito garantir a ordem da
difusão do pânico na sociedade, frente à sociedade através da construção lógico-jurídica no
disseminação da violência, que incute na população a que tange a culpabilidade e ao injusto tendo como
idéia de autoritarismo como fonte única da promoção finalidade manter a vigência da norma
da justiça e resolução de conflitos. (CALLEGARI, 2005). A terceira velocidade do
direito manifesta-se como instrumento de abordagem
O modelo punitivo contemporâneo
àqueles que mediante seu comportamento ou
globalizado, que traz em seu corpo a aplicação de
vinculação a organizações criminosas repelem o
penas rígidas, como a lei 10792/2003, são calcados
direito de forma duradoura, sendo este antecipado,
na insegurança e na grande onda de violência, porém,
criando-se uma legislação de combate que não vai ao
ostenta a ineficiência do instituto, já que o caráter é

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p123-131, jan/jun. 2010


128 Aurora Augusta Gomes Leite

encontro de garantia dos cidadãos. pressuposto à aplicação de penalidade uma


Em contraposição ao direito penal do previsão legal sobre o tipo penal.
inimigo existe o que se chama de direito penal do Diante dos fenômenos que causam gradual
cidadão, que preza por garantias e liberdades expansão do direito, deixa-se de lado a legislação que
individuais, observemos: proporciona garantias diante a intervenção repressiva
estatal. Efetivamente o direito penal liberal, que se
É por demais arbitrária a pretendida busca resgatar nunca foi vigente, posto que a rigidez
distinção entre direito penal do cidadão e o
direito penal do inimigo, pretensão que
das garantias propostas era somente o reflexo da
ofende claramente as garantias severidade das sanções impostas (SANCHEZ, 2002).
constitucionais próprias do Estado Com efeito, a problemática do enrijecimento
Democrático de Direito (QUEIROZ, 2005)
da aplicação da pena deixa de ser mera expansão do
direito, passando esta elasticidade especificamente à
Dessa forma, é visto que o direito penal do pena privativa de liberdade Hassmer (2007), propõe
inimigo nada mais é que um não-direito, sendo uma que o combate às formas modernas de dano deveriam
reação de fato perante os sujeitos excluídos, com ser feitos através de uma maneira que possuísse
fundamentação na sua periculosidade. elementos puramente penais preventivos.

A justiça penal é uma justiça dos casos


Direito penal garantista x Terceira velocidade do individuais. A culpa é calculada
direito individualmente e é indissolúvel da pessoa do
autor e do ato delituoso, restando vinculada
às suas especificidades; a imputação da pena
Para Ferrajolli (QUEROZ, 2005), o único e sua execução devem corresponder de forma
fim que o Estado pode ter como fundamento da justa ao autor do delito.
aplicação da pena é a prevenção geral negativa, que
não se limita a ter como alvo somente futuros delitos, Nesse conflito entre direito penal amplo
a pena deve existir tanto para prevenir ilícitos como relativamente rígido e direito penal mínimo rígido, a
para evitar castigos injustos, desta forma tem como sociedade atual parece não admitir a aplicação do
tutelado tanto a pessoa do ofendido como a do direito penal mínimo, assim, a expansão da
ofensor, em sua óptica a minimização da reação ao aplicabilidade não condiz com a realidade político-
delito serve para distinguir o direito penal de outros jurídica.
ramos de controle social, policial, disciplinário,
terrorista, etc. Uma primeira velocidade representada pelo
direito penal “da prisão”, no qual haver-se-
O Estado não pode obrigar o cidadão a deixar iam de manter rigidamente os princípios
de ser uma pessoa mal, pois não tem como interferir político-criminais clássicos, as regras de
na personalidade do indivíduo, as penas são sanções imputação e os princípios processuais; e uma
taxativas previamente determinadas não são segunda velocidade, para os casos que, por
não tratar-se já de prisão, senão de penas de
tratamentos éticos ou terapêuticos, legitimando a
privação de direitos ou pecuniárias, aqueles
necessidade de um direito penal que tutele os direitos princípios e regras poderiam experimentar
fundamentais. uma flexibilização proporcional a menor
Entende-se como direito penal àquele que é intensidade da sanção (SANCHEZ, 2002).
condicionado e maximamente limitado às situações
necessárias atuando em grau elevado para liberdade É visto que neste sentido o direito penal de
dos cidadãos, tornando estes isentos de terceira velocidade já existe no que diz respeito ao
arbitrariedades e castigos cruéis, exigindo como direito penal socioeconômico, assim como a

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p123-131, jan/jun. 2010


Regime Disciplinar Diferenciado: uma visão sobre a política criminal 129

delinqüência reiterada ou criminalidade podendo este período ser renovável por igual
organizada, têm estreita relação com direito penal do prazo, o isolamento celular poderá ser decretado pela
inimigo, sendo o infrator um sujeito que perfaz o autoridade administrativa, uma vez que esta
caminho do cidadão ao inimigo do Estado, diante da competência é uma de suas atribuições cautelares,
delinqüência profissional ou duradoura. posteriormente remetida à apreciação do juiz
Para que o direito penal tenha validade é competente, que poderá referendá-la ou não.
necessário que o aspecto formal e material coexista, A lei que mudou a LEP fez algumas
de forma que esta junção possibilite a garantia observações no que tange a progressão de regime,
efetiva a todos os sujeitos de direito, tornando observe-se que duas premissas têm que ser levadas em
aplicáveis os direitos humanos e fundamentais consideração: A permanência do requisito objetivo do
existentes. cumprimento de 1/6 da pena, se o crime for simples, de
2/5 se o crime é hediondo e 3/5 se o delito foi hediondo
e o réu é reincidente, e análise do preceito subjetivo de
4. A LEP e o RDD
bom comportamento carcerário, comprovado pelo
diretor do estabelecimento prisional (SANCHEZ,
De acordo com Nunes (2003), no Brasil 2002).
todas as pessoas, em liberdade ou não, são sujeitos Expressamente estabeleceu-se que as normas
de direitos e obrigações, mas nem sempre foi dessa que impedem a progressão de regime têm que ser
maneira, já que antes do advento da Lei Federal respeitadas, o que demonstra, de maneira explícita,
7.210/84, o preso era sujeito exclusivamente de vontade do legislador de vetar a progressão do regime
obrigações, onde era prevista a participação dos em crimes hediondos e equiparados, porém para que
ascendentes e descendentes do preso como sujeitos se evite esta possibilidade à nova lei, o STF (Supremo
ativos nas relações processuais de interesse do Tribunal Federal) expressamente ratificou a
detento, ou mesmo impunha aos delinqüentes a constitucionalidade da progressão de regimes, mesmo
prestação de trabalhos forçados sem remuneração, se tratando de crimes hediondos, primando pelo
sabe-se que tal situação foi abolida com a chegada de princípio da individualização da pena.
novos adventos trazidos pela Constituição Federal de
Se restar caracterizado que o preso pertence a
1988, que garante a aplicação de um direito penal
uma facção criminosa ou apresenta alto risco para
mais humanitário.
ordem e segurança da prisão, o regime disciplinar
O preso brasileiro perde a liberdade, mas não diferenciado poderá ser aplicado em qualquer caso,
os demais direitos assegurados na magna carta, desde que haja ordem escrita e fundamentada de
"desta forma, os direitos e garantias individuais autoridade judicial e o Ministério Público seja ouvido
regrados na Magna Carta em vigor, exceto o de ir e respeitando-se o princípio da ampla defesa.
vir livremente, são perfeitamente aplicáveis ao
Acontece que o isolamento celular vai de
preso" (NUNES, 2003). Assim o Estado, sofre
encontro ao princípio da ressocialização e das
limitações no seu poder de punir. É neste contesto
garantias calcadas na humanização do direito positivo.
que se encontra amparado o direito ao devido
processo legal onde serão garantidos o contraditório
e a ampla defesa e observação as regras contidas na A contradição entre o RDD e os direitos humanos
LEP( Lei de Execução Penal).
Neste sentido, o preso que vier a cometer Com a chegada do RDD através da Lei
falta grave dentro do estabelecimento prisional Federal 10.792/2003, publicada no diário oficial,
poderá ser isolado por até trezentos e sessenta dias, vários seguimentos jurídicos demonstraram sua

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130 Aurora Augusta Gomes Leite

indignação pela implantação de tal sistema, o prisional disciplinar restringe ainda mais o
boletim IBCCRIM 134, janeiro/2004, em editorial comportamento do apenado, agredindo o primado da
manifestou-se: ressocialização do detento.
Protegido pelo caos que existe no sistema
A comunidade jurídica está de luto. Venceu
mais uma vez a legislação penal do pânico, penitenciário o RDD omite sua natureza de pena cruel
com a criação do regime disciplinar que traz em seu corpo os suplícios medievais, a
diferenciado, instituído pela lei imposição de sofrimento desmedido, através de
10792/2003. A idéia retomada após os isolamento celular de 360 dias, passível de reedição,
tristes e notáveis episódios envolvendo a que pode alcançar até 1/6 da pena aplicada,
morte dos juízes no início de 2001 atendeu provocando desestrutura física e psíquica,
aos interesses da chamada "política de ressuscitando a noção de pena como vingança social
segurança" que prega o estabelecimento do (FREIRE, 2005).
rigor penal como forma de pôr cobro ao
aumento da criminalidade, em especial do Tal situação viola explicitamente o
crime organizado, e da impunidade, ainda dispositivo do artigo 5º, XLVII, alínea e, CF/88, que
que haja sacrifício aos direitos e garantias proíbe a aplicação de pena cruel, assim como o
assegurados pela Constituição da disposto no inciso XLIX, que assegura aos presos o
República. O legislador age de novo, como respeito à integridade física e moral. Também se faz
se o direito penal fosse o único instrumento necessário salientar que a extinção do isolamento
hábil a resolver o problema da violência. E celular foi proposta na 68º Assembléia Geral da ONU,
o que é imagina que punir o preso, que enumerou princípios básicos para o tratamento de
recolhendo-o em cela individual pelo prazo reclusos, os quais foram adotados pelo Brasil
de 360 dias, ele se tornará uma pessoa mais
(FREIRE, 2005).
disciplinada e com senso de
responsabilidade (IBCCRIM, 2004). Dessa forma, não é exagerado afirmar que a
legitimação e legalização do RDD nas prisões
Segundo Costa (2004), ao estudar o sistema brasileiras, nada mais é que a aniquilação dos sujeitos
punitivo, percebe-se que é praticamente impossível como seres humanos e violação de preceitos
separar o conceito de direito penal e sanção, uma vez constitucionais através de opção política que prima
que é imprescindível a relação entre este direito e a pela eliminação, de forma deliberada, das garantias
sanção, porém tal penalidade deve ser aplicada na individuais conquistadas ao longo da história.
forma ressocializadora proporcionando ao
condenado normas de conduta que se baseiem no 5. Considerações Finais
princípio da legalidade e da proteção às garantias
fundamentais.
O corpo do Condenado não pode servir de O RDD, adotado pela legislação vigente,
palco para abusos e torturas, numa sociedade conta com condições de desumanidade, constituindo
balizada no poder soberano do Estado, este se uma agressão aos dispositivos constitucionais,
apodera do poder de dirimir conflitos de forma tratados e convenções acerca dos direitos subscritos
harmônica, atendendo a função de manter a paz na Constituição da República Federativa do Brasil,
através de normas humanísticas, ressocializando o num primeiro momento a implantação deste regime
detento. drástico, no interior das prisões, surge como fonte de
resposta política em caráter emergencial mediante o
Neste sentido, cabe salientar que o processo crescimento de violência no interior das prisões e
de disciplinarização da sociedade brasileira retorna movimentos de rebeliões, funcionando como
ao início do século XIX, sendo marcado por iniciativa balizadora do sistema punitivo instrumental
tendências descontínuas e incompletas, que oscila para amenizar o caos do sistema prisional.
entre avanços e retrocessos, conforme preceitua
Freire (2005), pois a reorganização do processo O direito é marcado por um período de
transição, dinamismo que ocasiona uma série de

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Regime Disciplinar Diferenciado: uma visão sobre a política criminal 131

modificações nas formas de se gerir a Montealegre; JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel


sociedade, dentro desta perspectiva a sociedade Cancio. Direito Penal e Funcionalismo.Porto
contemporânea rompe com concepções tradicionais Alegre: Editora DP Advogado.2005
fazendo surgir uma segunda modernidade, neste CARVALHO, Salo de. Penas e garantias. 2ª ed. rev.
processo de mudanças as prisões passam a ser alvo de atual. – Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2003.
uma nova realidade, que tende acompanhar o ritmo
das necessidades de controle social referentes à CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do
atualidade, ou seja, que proporcione estabilidade homo socer da baixada”: execução e vitimação no
jurídica e segurança, mesmo que para isso tenha que campo penal brasileiro. Revista da Procuradoria Geral
“passar por cima” de ideais garantistas, legitimando do Estado do Espírito Santo, v.5, n.5, 2006.
assim a política do medo, institucionalizando o COSTA, Tailson Pires. A dignidade da Pessoa
direito penal do inimigo, afastando-se do direito humana diante da sanção penal. São Paulo: Fiúza,
penal do cidadão, desviando-se assim da missão 2004.
social conferida as prisões.
CRESPO, Eduardo Demétrio. Do “direito penal
A estrutura ditatorial repressiva nas prisões liberal” ao “direito penal do inimigo”: Direito penal
impossibilita a implantação de um estatuto aspectos jurídicos e controvertidos. Quartier latin, São
disciplinar, pautado na reforma dos sujeitos Paulo, 2006.
encarcerados. Quanto aos direitos e garantias
FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. Lígia
individuais é notório que o isolamento é contrário à
Vassalo. Petrópolis: vozes, 1993.
Constituição Federal, já que ao proibir a implantação
de penas cruéis aos detentos e assinar tratados com a FREIRE, Christiane Russomano. A violência do
ONU, não deveria permitir a implantação de regime sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o
tão severo, com características medievais. caso do regime disciplinar diferenciado. São Paulo;
IBCcrim, 2005.
Convém esclarecer que as teorias que
maximizam o poder de punir do Estado implanta GOMES, Luiz Flávio & VANZOLI, Maria Patrícia.
sistemas puramente retribucionistas, que simboliza o Reforma Criminal. São Paulo: Revista dos
“punitur qui peccatum est”, punindo-se porque Tribunais, 2004.
pecou, sem nenhum embasamento ressocializador HASSMER, Winfried. Direito Penal Libertário.
ou mesmo preventivo, os mecanismos empregados Belo Horizonte: Del Rey. 2007.
estão distante de proporcionar a reabilitação dos
sujeitos agindo em sentido oposto, enfrentando JAKOBS, Günther & MELIÁ, Manuel Cancio.
problemas que vão dos estruturais até as deficiências Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Porto
das políticas empregadas, inviabilizando a formação Alegre: Editora do advogado.2005
de estatutos disciplinares, como é o caso do RDD, LIMA, Flávio Fontes de. “Direito Penal do inimigo,
confirmando o caos do sistema prisional brasileiro. direito penal do século XXI?”. Recife: Revista da
Esmape. v.11, n.24, 2006.
Referências NUNES, Adeildo. O Regime Discilplinar na prisão.
Recife: Revista da Esmape. v.8,n.18,2003
QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do direito penal.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena Revista dos Tribunais. São Paulo, 2005.
na prisão: causas e alternativas. São Paulo: Editora SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A Expansão do
Saraiva, 2001. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais.
BRASIL. Constituição da República Federativa 2002
do Brasil. Outubro/1988. Revista atualizada até 06- ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIARANGELI, José
01-2007. Editora Revista dos Tribunais.8 edição. Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro (Parte
CALLEGARI, André Luís; LYNETT, Eduardo Geral). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p123-131, jan/jun. 2010


Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p133-141, jan/jun. 2010 133

A IMPORTÂNCIA DA LEITURA EM SUA


MULTIDIMENSIONALIDADE
The importance of multidimensionality of the act of reading

Rose Karla Cordeiro Lessa1

RESUMO ABSTRACT

Este artigo objetiva discutir a This article aims to discuss the


multidimensionalidade do ato de ler, multidimensional nature of the act of
focando mais especificamente na dimensão reading, focusing more specifically on the
psicolinguística. Aborda as estratégias psycholinguistic dimension, which
utilizadas pelo leitor para compreensão do addresses the strategies used by the reader of
texto, como predição, seleção, inferência, understand the text, as predicted, selection,
confirmação e correção. Evidencia a inference, confirmation and correction. It
importância da atuação das memórias de also highlights the importance of the
curto, médio e longo prazo para a performance of the memoirs of short,
proficiência na leitura. Demonstra de forma medium and long-term proficieny in
prática como os processos cognitivos top- reading. Demonstrate in a practical way how
down e bottom-up se realizam a partir da the cognitive processes top-down and
ativação das estratégias de leitura. Para bottom-up takes place from the activation of
análise baseamo-nos em Silveira (2008, reading strategies. For the analysis we rely
2009), Kato (1995), Kleiman (1989a, on Silveira (2008, 2009), Kato (1995),
1989b), Colomer e Camps (2002) e Terzi Kleiman (1989a e 1989b), Colomer and
(1997). Camps (2002) and Terzi (1997).

Palavras-chave: Multidimensionalidade Key-words: Multidimensionality the Act of


do Ato de Ler. Estratégias de leitura. Leitura Reading. Reading strategies. Reading
Proficiente. Memórias. Proficient. Memory.

1
Pedagoga e Mestre em Educação Brasileira, pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Integrante
do grupo de pesquisa Saberes e Práticas do Ensino de Língua Portuguesa e Língua Estrangeira,
coordenado pela Profa. Dra. Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante, do Programa de Pós-Graduação da
UFAL. Professora e Coordenadora do Curso de Pedagogia do Instituto de Ensino Superior Santa Cecília
(IESC). Professora do Programa de Pós-Graduação pela Central de Ensino e Aprendizado de Alagoas
(CEAP) e Professora-Tutora da Universidade Aberta do Brasil (UAB/UFAL). Contatos:
coord.pedagogia@isesc.edu.br, rosekarlalopes@gmail.com.
Este artigo foi construído como trabalho de finalização da disciplina Tópicos Especiais em Didática da
Língua Portuguesa, do curso de Mestrado/Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
134 Rose Karla Cordeiro Lessa

1. Introdução respondeu as questões de forma idêntica ao


livro, assim conseguiu tirar nota dez, recuperar a nota
O que fizeram comigo!? Eu antes baixa e passar na disciplina. Atualmente, afirmou que
gostava de ler e escrever, eu escrevia fez às pazes com a leitura “pois o processo na
muito e lia bastante, mas depois que universidade é diferente: a gente lê, opina, debate... A
comecei a estudar focado no
leitura tem um sentido, e não vale decorar, precisa
vestibular o que mais fazia era
decorar e copiar o que estava no aprender mesmo, a gente tem que raciocinar e expor o
módulo. Hoje estou reaprendendo a que compreendeu”.
importância da leitura e reavivando o Depoimentos como este não são raros. Apesar
que estava adormecido dentro de
de todo o avanço teórico e pesquisas no campo de
mim. Hoje estou me sentido,
inclusive, mais inteligente. O leitura, sua importância na aprendizagem, no
consolo é que aquela forma de desenvolvimento cognitivo e na constituição do
aprender pelo menos me ajudou a indivíduo em sua relação com o mundo, ela ainda é
passar no vestibular. (E.D.A.C, 18 valorizada por muitos professores, de diferentes áreas,
anos)
como um processo prioritariamente de memorização.
Isso porque,
Esse depoimento é de um jovem que
ingressou no curso de Psicologia de uma apesar do reconhecimento espontâneo da
universidade pública, no Estado de Alagoas, no ano afirmação «ler é entender um texto», a escola
de 2009. Antes, estudou em um colégio com contradiz, com certa frequência, tal
significativo índice de aprovação no vestibular, o afirmação ao basear o ensino da leitura em
uma série de atividades que se supõe que
qual é de iniciativa privada. Ao recordar de sua
mostrarão aos meninos e meninas como se lê,
infância disse com entusiasmo que escrevia por mas nas quais, paradoxalmente, nunca é
horas, a fim de compor um livro. Afirmou ter herdado prioritário o desejo de entendam o que diz o
várias coleções (enciclopédias, grandes invenções, texto. (COLOMER & CAMPS, 2002, p. 28,
entre outras) de seu tio, professor universitário grifos do original)
aposentado, a respeito de diversas temáticas, além de
uma enciclopédia, as quais eram fontes de leitura Podemos hipotetizar sobre vários aspectos
prazerosa. Contudo, sua perspectiva mudou a partir que influenciam na ocorrência desse fato, dentre eles a
do momento em que se transferiu para um colégio falta de preparo do professor e a perpetuação de uma
com objetivo de estudar de forma mais sistemática prática educacional tradicional aliada à filosofia que
para o vestibular. Nesse sistema não eram adotados respalda um processo de seleção do vestibulando de
livros, mas módulos com conteúdos e exercícios forma classificatória. Para compreendermos os
específicos. A cada quinze dias, em média, ocorriam pressupostos que fundamentam essa concepção de
as provas no molde do vestibular, tendo como aprendizagem, e consequentemente de leitura, faz-se
método a preparação em forma de simulados. O necessário uma análise do processo em uma
aluno narrou um episódio que ocorreu nesse período perspectiva multidimensional. Sendo esta a proposta
que, segundo ele, foi revoltante “a professora de deste artigo, discutiremos primeiramente sobre a
filosofia me reprovou porque não respondi conforme ênfase dada aos processos de leitura em negligência
estava no módulo, ou seja, tal qual estava escrito. Só aos processos de leitura no contexto educacional;
porque escrevi com minhas palavras ela me Abordaremos sobre a importância de se compreender
reprovou. E eu estude. Eu gostava de filosofia.” Nas a multidimensionalidade da leitura para a formação do
provas subsequentes da mesma disciplina ele sujeito aprendente e quais os processos que formam
decorou os assuntos que foram indicados e um bom leitor; E, por fim, apresentaremos alguns

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p133-141, jan/jun. 2010


A importância da leitura em sua multidimensionalidade 135

processos top-down e bottom-up a partir das desenvolvidas estão relacionadas às quatro


estratégias de leitura utilizadas pelos leitores habilidades linguísticas básicas: falar,
escutar, ler e escrever. (op. Cit, 1997, p. 35)
proficientes e não-proficientes.

Percebe-se então, com base nos PCN, que o


2. Prevalência do processo de escritura sobre o ato de escrever é compreendido como uma das
processo de leitura na cultura escolar habilidades linguísticas a ser desenvolvida. “A
história e a evolução da leitura está intrinsecamente
Partindo da dimensão histórica e ligada à história da escrita, seus usos e suas funções
etnográfica, sabemos que a escrita é um dos sociais desde os primórdios da civilização e ao longo
fenômenos simbólicos mais significativos da dos séculos” (SILVEIRA, 2009, p. 4). Entretanto, o
humanidade. Segundo Kato (1995), os códigos de ato de escrever não necessariamente resulta no
comunicação a priori eram registrados de forma desenvolvimento da habilidade de ler. Apesar de
icônica e com o passar do tempo se desenvolveram serem processos interrelacionados, escritura e leitura,
para a forma de ideograma. Dentre as teorias recentes têm suas especificidades. Tanto que há crianças que
sobre o processo de escritura temos a psicogênese da começaram a ler antes mesmo de saber escrever e
linguagem escrita. Com base nela foi possível outras escreveram sem mesmo saber ler ou
compreender as fases da concepção de apreensão da decodificar os grafemas (base do nosso sistema
escrita: a pré-silábica, a silábica, a silábico-alfabética alfabético).
e a alfabética. Através de pesquisas realizadas por A cultura escolar, no entanto, tem privilegiado
Teberosky e Ferreiro com aplicações de testes a a escrita em detrimento da leitura. Muitas vezes os
crianças de diferentes faixas etárias foi possível exercícios escolares centram-se em transcrições, isto
ressignificar, inclusive, a noção de erro, haja vista é, “cópias” de palavras/textos. Copiar do livro
que os “erros” são, na verdade, hipóteses comuns de didático para o caderno, bem como da lousa, é uma
compreensão por parte das crianças sobre o prática comum. Já a leitura não tem um lugar tão
funcionamento do sistema grafofônico. privilegiado, ou pelo mesmo equacionado. Além
Esses conhecimentos representam para a disso, para que ela não seja simplesmente um
escola um de seus pressupostos fundamentais por ser exercício mecânico de memorização, e sim de
ela a agência que tem o papel social de garantir a significação, é importante que haja compreensão que
aprendizagem dos conhecimentos (re)elaborados o ato de ler é um processo multidimensional, ou seja,
pela sociedade. Sendo assim, a escola é o espaço existem vários aspectos que interferem, ou mesmo o
privilegiado de aprendizagem da linguagem escrita e constituem. Segundo Silveira (op. Cit.) há variáveis
oral, bem como da leitura. Conforme os Parâmetros intervenientes que precisam ser consideradas nas
Curriculares Nacionais (PCN) abordagens sobre a leitura do texto escrito. A
compreensão dessas variáveis é imprescindível ao
a linguagem verbal, atividade discursiva trabalho do professor de Língua Portuguesa,
que é, tem como resultado textos orais ou especialmente, mas não exclusivamente. Mesmo
escritos. Textos que são produzidos para
porque ao objetivar o desenvolvimento de leituras
serem compreendidos. Os processos de
produção e compreensão, por sua vez, se proficientes, é necessário considerar a orientação de
desdobram respectivamente em atividades Kato (1995, p. 6): “qualquer método, para ser eficaz,
de fala e escrita, leitura e escuta. Quando se deve ter a ele subjacentes hipóteses claras sobre a
afirma, portanto, que a finalidade do ensino natureza do objeto a ser apreendido e sobre a natureza
de Língua Portuguesa é a expansão das
de aprendizagem desse objeto”. Sendo a leitura uma
possibilidades do uso da linguagem,
assume-se que as capacidades a serem habilidade linguística necessária de ser aprendida

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136 Rose Karla Cordeiro Lessa

existem os aspectos a serem considerados, iniciativas sócio-políticas está diretamente


que são, conforme Silveira (2009): políticos e relacionada à «dimensão cultural». A autora afirma
sociais; culturais; ideológicos; históricos e sobre a necessidade de “valorização da leitura como
etnográficos; psicológicos, físicos e situacionais; um bem cultural que deve ser estendido a todos” e
semióticos; cognitivos e os sociocognitivos. Ainda que o professor nesse universo precisar ser um
conforme a autora a leitura nessa concepção é “agente promotor de leitura como prazer, como
compreendida como instrumento e como contributo para a formação do
caráter, da personalidade e da identidade cultural
uma atividade extremamente complexa dos educandos.”
que se desenvolve nos seres humanos desde
que ele toma contato com o mundo que o Nesse processo estratégico de formação de
cerca. Nossas primeiras percepções e uma cultura leitora existem também «aspectos
aprendizagens só ocorrem porque para psicológicos, físicos e situacionais», os quais atuam
viver e se desenvolver biológica e
de forma negativa ou positiva, como barulho, luz
socialmente, o ser humano tem que
perceber, ler e compreender o que está ao insuficiente, pressa, sono, ansiedade,
seu redor (SILVEIRA, 2009, p. 1) aborrecimento, situação de estresse, a curiosidade,
o prazer, o incentivo, a busca, a necessidade, entre
Portanto, a proficiência em leitura é outras.
fundamental para a formação do indivíduo, visto ser Ainda nessa abordagem a autora destaca dois
um elemento que dá acesso aos bens culturais fatores de ordem psicológica ou comportamental que
podendo, inclusive, resultar em melhor qualidade de são decisivos para a efetivação da leitura: a motivação
vida. Para isso visa-se não somente a leitura da e a concentração. Para ela,
palavra, mas acima de tudo a ampliação da leitura de
mundo. Sem essas duas condições, o indivíduo não
consegue se engajar no ato de ler e realizar na
sua mente os processamentos necessários à
3. A multidimensionalidade no ato de ler decodificação e ao entendimento do que está
lendo. Há muitas pesquisas que atribuem o
fracasso e a deficiência na leitura exatamente
Quando falamos em leitura, precisamos à falta de motivação (e de incentivação,
obviamente) e à distração, ao déficit de
pensar em variáveis intervenientes que concorrem atenção, à hiperatividade física e mental
para a formação de um leitor proficiente. (SILVEIRA, 2009, p. 3)
Primeiramente, é necessário promover o acesso a
diferentes gêneros textuais e suportes (livros, jornais, Perpassando essa discussão também cabe ao
revistas, panfletos, mídias impressas, eletrônicas, professor considerar «aspectos ideológicos» aos quais
entre outros), por isso a «dimensão política e social» a leitura está relacionada. Por meio deles é possível
é tão importante, Silveira (2009, p. 2) reitera que a manipular, de forma positiva ou negativa, pessoas e
“criação e manutenção de bibliotecas públicas e situações, “mentes e corações”. “A leitura da palavra,
escolares [...] além das campanhas de alfabetização, através dos vários gêneros textuais que circulam em
do financiamento e distribuição de livros didáticos e diferentes suportes [...] potencializa esses aspectos
paradidáticos, de incentivos à publicação e ideológicos que permeiam as práticas e interações
barateamento desses materiais”, são ações de sociais” (SILVEIRA, 2009, p. 4). Entretanto, é um
dimensão política e social imprescindíveis para aspecto muitas vezes sutil e implícito, de “poder e
viabilizar a formação de bons leitores. opressão”.
A democratização da leitura através de Ainda com base na autora, os gêneros

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A importância da leitura em sua multidimensionalidade 137

textuais, ou discursivos, que nos cercam, pois informações apenas. Ler é buscar sentido, como bem
vivemos em uma sociedade grafocêntrica, “mediam disse o recém universitário E.D.A.C “a leitura tem
e organizam inúmeras atividades produtivas, um sentido, e não vale decorar, precisa aprender
comunicacionais, lúdicas, científicas, artísticas e mesmo, a gente tem que raciocinar e expor o que
humanísticas. Dentre essas atividades, destaca-se o compreendeu”. Silveira (2009, p. 5) afirma que “a esse
poder das mídias impressas e também digitais”. Por respeito, muito se tem escrito, a exemplo de Kato
meios eletrônicos os textos disseminados são, (1995), Kleiman (1989a, 1989b) e Silveira (2005).
predominantemente, de tendência híbrida, ou seja, Entretanto, os estudos das relações entre leitura e
multimodais. Apresentam diferentes códigos, de cognição humana ainda não são bem disseminados
diferentes linguagens, além do código (ou signo) entre os professores”. Quais seriam, então, os
linguístico. Esses são aspectos da dimensão pressupostos essenciais da «dimensão cognitiva» para
«semiótica» e constituem elementos produtores de que o professor possa desenvolver atividades mais
sentido e formadores de valores. Dessa forma, ela significativas com os alunos? Em Kato (1995),
afirma que a leitura se processa em sentido lato e se Silveira (2009), Colomer e Camps (2002), Goodman
“efetiva a partir do momento em que o leitor apud Silveira (Idem) e Terzi (1997), buscamos essas
decodifica informações sensoriais, na maioria das respostas.
vezes, informações visuais”.
Outros aspectos relacionados à
4. Processos subjacentes à leitura e à formação do
complexidade do ato de ler são os da «dimensão bom leitor
cognitiva e sociocognitiva». São processamentos
conscientes e inconscientes que ocorrem na
mente e que envolvem “a percepção visual; os Apesar de ser o objeto de interesse do campo
vários tipos de memória (de curto, médio e longo da linguística textual, os processos de leitura têm
prazo), o conhecimento do código linguístico e a aspectos que extrapolam à sua abordagem e são
ativação do conhecimento prévio”. Por isso, estudados por outros campos de conhecimento, dentre
quando se diz que durante o ato de ler o indivíduo eles o da psicolinguística.
aciona seus conhecimentos prévios Segundo Kato (1995, p. 33), um bom leitor,
(conhecimento de mundo, da cultura, da língua, um leitor proficiente, não lê as palavras “letra por letra
dos textos, das práticas discursivas e seus ou sílaba por sílaba, mas como um todo não analisado,
diversos gêneros), convém frisar que esses isto é, por reconhecimento instantâneo”, ou seja, “a
conhecimentos são construídos socialmente. leitura de uma palavra pelo leitor é feita, pois, de
Desse modo, os aspectos cognitivos podem ser maneira ideográfica”. Na verdade, existem três tipos
caracterizados como aspectos sociocognitivos. de leitores: “o leitor que faz mais uso de seu
(SILVEIRA, 2009, p. 6) conhecimento prévio do que da informação
Nesse sentido, Kato (1995) aprofunda sua efetivamente dada pelo texto”; o leitor que “constrói o
abordagem a partir de uma perspectiva significado com base nos dados do texto, fazendo
psicolinguística e discute sobre os vários elementos pouca leitura nas entrelinhas”; e, por fim, o leitor
de constituição do processo de leitura. Esses maduro que usa de forma adequada e no momento
aspectos são relevantes, e o conhecimento desses apropriado os conhecimentos prévios, a leitura das
processamentos que ocorrem na mente do aluno entrelinhas e o significado baseado nos dados do
(bem como na de qualquer pessoa) pode resultar em próprio texto.
um trabalho didático-metodologicamente mais A utilização de conhecimentos prévios e das
adequado. Nessa perspectiva não se concebe a leitura entrelinhas dá-se pelo processamento descendente,
como um ato mecânico de memorização de denominado de top-down. A utilização de

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138 Rose Karla Cordeiro Lessa

informações linguísticas lineares presentes no texto, Quando há conhecimento dessas estratégias,


é o processamento ascendente, denominado de seja pelo acesso aos teóricos da área ou por meio de
bottom-up. No processamento top-down são exercícios práticos, a busca por significado e
classificadas estratégias cognitivas as quais estão compreensão do texto pelo leitor poderá ser melhor
relacionadas aos “princípios que regem o desempenhada e os objetivos da leitura ser alcançados
comportamento automático e inconsciente do de forma mais satisfatória. Para exemplificar essa
leitor”. No processamento bottom-up são possibilidade selecionamos dois textos que estão
classificadas estratégias metacognitivas, as quais disponíveis na internet os quais servirão de
estão relacionadas aos “princípios que regulam a demonstração de exercícios dos processos top-down e
desautomatização consciente das estratégias bottom-up que ocorrem a partir das estratégias da
cognitivas” (KATO,1995, p. 50). O leitor proficiente predição, seleção, inferência, confirmação e correção.
faz uso desses dois processamentos de forma
adequada. Entretanto, esses processos só são
5. Estratégias de leitura em exercícios didático-
possíveis a partir da atuação da memória, ou, melhor
metodológicos
dizendo, das memórias: de curto, médio e longo
prazo; ou, temporária, rasa e permanente,
respectivamente. São por meio delas que ocorrem as A cibercultura tem proporcionado acesso ao
principais estratégias cognitivas e metacognitivas, conhecimento, e à leitura, de forma mais
especificamente: a predição, a seleção, a inferência, democrática. Vários são os gêneros discursivos que
a confirmação e a correção. Goodman apud Silveira circulam eletronicamente. Inclusive, temos
(2009, p. 3) as conceitua da seguinte forma: disponibilizados na internet textos que servem como
recurso de abordagem sobre as várias estratégias de
a predição – capacidade que o leitor tem leitura. Por exemplo, na imagem abaixo, capturada
de antecipar-se ao texto, à medida que de um site, encontramos dois textos interessantes
vai processando a sua compreensão; sobre a destreza do nosso cérebro no ato de ler.
a seleção – habilidade que o leitor tem de
selecionar apenas os índices relevantes
para a compreensão e os propósitos da
leitura;
a inferência – habilidade através da qual
o leitor completa a informação não
explícita, utilizando as suas
competências linguística, textual e
discursiva, além da ativação de seus
esquemas mentais e seus conhecimentos
prévios (conhecimento de mundo,
conhecimentos enciclopédicos, etc.);
a confirmação – utilizada para verificar
se as predições e as inferências estão
corretas ou se precisam ser
Os textos que se seguem, extraídos do link
reformuladas;
a correção – uma vez não confirmadas as “O Nosso Cérebro Parece Doido!”, são pertinentes
predições e as inferências, o leitor tanto em forma quanto em conteúdo para a nossa
retrocede no texto a fim de levantar discussão e podem ser utilizados em sala de aula
outras hipóteses, buscando outras pistas, com os alunos para mostrar as habilidades do
sempre na tentativa de encontrar sentido cérebro em se utilizar de estratégias para chegar ao
no que lê.
sentido.

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p133-141, jan/jun. 2010


A importância da leitura em sua multidimensionalidade 139

Texto 1 classificadas estratégias cognitivas, as quais


estão relacionadas aos “princípios que regem o
comportamento automático e inconsciente do leitor”
O nosso cérebro é doido! Ou melhor, é
maravilhoso!
Nesse sentido, a leitura do texto no processo bottom-
up é mais lenta e minuciosa, visto que é necessária a
De aorcdo com uma peqsiusa de uma decodificação praticamente de cada elemento visual
uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem para se chegar ao sentido da mensagem. No processo
as Lteras de uma plravaa etãso, a úncia csioa top-down a leitura é mais rápida e feita por “bloco”,
iprotmatne é que a piremria e útmlia Lteras
quer seja a palavra ou um conjunto de palavras. Por
etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma
bçguana ttaol, que vcoê anida pdoe ler sem sermos leitores proficientes somos capazes, nesse
pobrlmea. Itso é poqrue nós não lmeos cdaa Ltera exercício, de fazer uso desses dois processamentos de
isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo. forma adequada e o ritmo da leitura, bem como sua
compreensão, não ficam comprometidos. Vale
ressaltar, entretanto, que mesmo sendo leitores
O próprio texto traz em seu corpo proficientes, alguns textos que proporcionarão maior
informações que esclarecem a estratégia ortográfica dificuldade que outros por conterem termos ou
que viabiliza sua leitura, quando afirma que “a úncia conceitos desconhecidos ou pouco familiares.
csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia Lteras
Segue abaixo o segundo texto disponibilizado
etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma bçguana
no mesmo site e que representa outro exemplo desses
ttaol, que vcoê anida pdoe ler sem pobrlmea”.
processamentos em forma de exercício. Já para uma
Além disso, o texto também esclarece o tipo criança na fase de alfabetização talvez a leitura desse
de processamento cognitivo realizado pelo nosso texto não fosse possível.
cérebro para compreendermos cada palavra, e,
consequentemente, o sentido do texto. Dessa forma
explica que: “Itso é poqrue nós não lmeos cdaa Ltera Texto 2
isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo”. Constatamos
assim a leitura proficiente, a qual não se lê as
palavras “letra por letra ou sílaba por sílaba, mas Fixe seus olhos no texto abaixo e deixe que a
sua mente leia corretamente o que está escrito.
como um todo não analisado, isto é, por
reconhecimento instantâneo”. “A leitura de uma 35T3 P3QU3N0 T3XTO 53RV3 4P3N45 P4R4
palavra pelo leitor é feita, pois, de maneira M05TR4R COMO NO554 C4B3Ç4 CONS3GU3
ideográfica” (KATO, 1995, p. 34). F4Z3R CO1545 1MPR3551ON4ANT35! R3P4R3
N155O! NO COM3ÇO 35T4V4 M310
Nesse exercício ocorre a utilização de COMPL1C4DO, M45 N3ST4 L1NH4 SU4 M3NT3
conhecimentos prévios que viabilizam a V41 D3C1FR4NDO O CÓD1GO QU453
compreensão do texto, que se dá pelo processamento 4UTOM4T1C4M3NT3, S3M PR3C1S4R P3N54R
descendente, isto é, top-down, bem como pelo MU1TO, C3RTO? POD3 F1C4R B3M
processamento ascendente, isto é, bottom-up, ORGULHO5O D155O! SU4 C4P4C1D4D3
M3R3C3! P4R4BÉN5!
quando há a utilização de informações linguísticas
lineares presentes no texto. Com base na autora, no
processamento bottom-up são classificadas Nesse texto 2, assim como no texto 1,
estratégias metacognitivas, as quais estão percebemos que a grafia das palavras não obedece aos
relacionadas aos “princípios que regulam a aspectos silábicos convencionais. E, além dos códigos
desautomatização consciente das estratégias linguísticos, os números também compõem as
cognitivas”. No processamento top-down são palavras, caracterizando uma hibridação de códigos.

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140 Rose Karla Cordeiro Lessa

Entretanto, isso não ocorre de forma aleatória, pois conhecimento dos códigos padrão. Nesse
os traços dos numerais têm formas parecidas aos estágio, ele percebe que mesmo não atendendo a
traços dos grafemas que são utilizados nas palavras norma padrão de registro é possível ler devido ao
escritas convencionalmente. Por exemplo: no termo reconhecimento dos traços distintivos dos números
“35T3”, que representa o pronome demonstrativo serem parecidos com os traços convencionais dos
“ESTE”, o numeral “3” substitui o grafema “E” o grafemas. Entre o estranhamento e a possibilidade de
qual pode ser representado por diferentes formas leitura ocorre a alternância dos processos top-down e
gráficas. Da mesma forma o numeral “5” substitui o bottom-up.
grafema “S”. Quanto ao conteúdo, o texto 2, assim como o
Ao realizar o input visual, no qual o leitor texto 1, tem como objetivo fazer com que o leitor
perceba a possibilidade cognitiva de lê-lo, e que a
partir de um dado momento a leitura, inclusive, torna-
se quase 4UTOM4T1C4 (automática). Nesse sentido,
as memórias têm um papel fundamental, isto porque,

os estímulos [visuais] selecionados [por


decodifica informações sensoriais visuais, o texto meio da percepção], em qualquer caso,
conservam-se por muito pouco tempo no
causa a priori um estranhamento. Tanto que o cérebro (meio segundo em uma
próprio conteúdo do texto esclarece que: “NO impressão visual) se não forem
COM3ÇO 35T4V4 M310 COMPL1C4DO, M45 incorporados pelos mecanismos
N3ST4 L1NH4 SU4 M3NT3 V41 D3C1FR4NDO O seguintes [...] se a informação recebida
CÓD1GO QU453 4UTOM4T1C4M3NT3, S3M não foi subestimada, começa um
processo de retenção na memória.
PR3C1S4R P3N54R MU1TO, C3RTO?” (COLOMER & CAMPS, 2002, p. 34)
No texto 1 não apresentava elementos
numéricos compondo as palavras, mas este sim. Por isso que a mensagem imperativa de
Então, a primeira hipótese presente em nosso cérebro instrução presente no texto é fundamental: “Fixe seus
é a informação de que esse formato de texto não é olhos no texto abaixo e deixe que a sua mente leia
convencional para a leitura Mas depois essa hipótese corretamente o que está escrito”. Quando atendemos a
é refutada e passamos a ler sem dificuldades. Esses esses comandos permitimos que as memórias de curto,
processos são do «campo da semiótica» e são médio e longo prazo sejam ativadas, e assim, a partir
elementos produtores de sentido. Kato (1995, p. 25) de um determinado trecho do texto, a leitura se
classifica como automatiza por reconhecer a disposição dos códigos,
como se fosse um novo sistema composto por
«capacidade de discriminação visual»,
que leva a criança [e os leitores de combinação de códigos conhecidos previamente, por
forma geral] a distinguir não apenas as nós, leitores.
diferentes letras do sistema ortográfico,
mas também a perceber que no interior
do texto escrito coexistem sistema 6. Conclusão
gráficos distintos, como letras, números
e sinais de pontuação. (grifos do autor)
A partir da discussão percebe-se que
desenvolver um leitor proficiente depende da
O leitor proficiente além de realizar a
utilização das estratégias de leitura predição, seleção,
discriminação visual também identifica a função dos
inferência, confirmação e correção e que os
diferentes sistemas presentes no texto através do
processamentos top-down e bottom-up podem e

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A importância da leitura em sua multidimensionalidade 141

processos automáticos e inconscientes, BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental.


Silveira (2005) apresenta várias técnicas possíveis Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
para o trabalho pedagógico, dentre elas, a leitura de Portuguesa. Brasília: MEC, 1997
varredura (“skimming”); a leitura em busca de KATO, Mary A. O Aprendizado da leitura. São Paulo,
informações específicas (“scanning”); a leitura em a Martins Fontes, 1995
busca das ideias centrais (“main points”); a leitura KLEIMAN, Angela B. Leitura: ensino e pesquisa.
geradora de outras leituras; a leitura crítica, entre Campinas: Pontes, 1989
outras. Quanto mais o aprendente exercitar a leitura
KEIMAN, Ângela B. Texto e leitor: aspectos
em diversos gêneros textuais ou discursivos mais cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989
desenvolverá essas habilidades. É necessário, então,
O Nosso cérebro parece doido. Disponível em:
que os professores compreendam e trabalhem com os
http://www.dihitt.com.br. Acessado em 10 de abril de
alunos essas estratégias a partir de diversos suportes
2009.
textuais (livros, jornais, revistas, panfletos, mídias
impressas e eletrônicas), os quais abordem diferentes SILVEIRA, Maria Inez Matoso. Modelos teóricos e
estratégias de leitura: suas implicações no ensino.
assuntos. A utilização dessas técnicas, entretanto,
Maceió: EdUFAL, 2005
precisa estar associada aos objetivos, à dificuldade
do tema e às características do gênero. _________. Leitura: aspectos e abordagens. In:
CAVALCANTE, Maria Auxiliadora da Silva &
De qualquer forma, a preocupação em FREITAS, Marinaide Queiroz (orgs). O Ensino da
compreender as estratégias de leitura e formar um língua portuguesa nos anos iniciais: eventos e
leitor proficiente não deve ser exclusiva do professor práticas de letramento Maceió: EdUFAL, 2008.
de Língua Portuguesa, pois esses mecanismos são _________. Tipologia textual e estratégias de leitura.
necessários para garantir o aprendizado em qualquer In: Revista Educação. Maceió, nº 3, dez. 1995, UFAL,
área de conhecimento. Mesmo porque, a leitura Centro de Educação.
proficiente está diretamente relacionada ao nível de
_________. Leitura: o ponto de vista do
letramento do leitor. Para garantia dessas condições, processamento. Maceió: Centro de Educação – UFAL,
além de considerar os aspectos psicolinguísticos por 2009
ora discutidos, precisamos considerar também as
TEBEROSKY, Ana (org). Compreensão de leitura: a
diversas dimensões e/ou aspectos como o sócio-
língua como procedimento. Porto Alegre: Artmed,
político, cultural, situacional, físico, cognitivo, entre 2003.
outros, que influenciam no processo; sendo a
TERZI, Sylvia Bueno. A construção da leitura.
motivação a convergência dos interesses dos
Campinas: Pontes, 1997.
educandos com os incentivos e a mediação do
educador na busca de construir sentidos e ampliar
sua leitura de mundo.

Referências

COLOMER, Teresa & CAMPS, Anna. Ensinar a


ler, ensinar a compreender. Porto Alegre: Artmed,
2002
DELL'ISOLA, Regina Lúcia Péret. Leitura:
inferências e contexto sociocultural. Belo Horizonte:
Formato, 2001

Revista Multidisciplinar IESC, v.1, p133-141, jan/jun. 2010


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A Revista Multidisciplinar IESC é uma publicação semestral de caráter multidisciplinar do


Instituto de Ensino Superior Santa Cecília destinada ao público acadêmico de todas as áreas do
conhecimento, prioritariamente as áreas de Direito, Serviço Social e Pedagogia. Os conteúdos dos
artigos são de inteira responsabilidade dos seus autores. Os artigos científicos devem ser inéditos com
temáticas que foquem nas teorias, metodologias e objetos de estudo relevantes aos campos de pesquisa.
Os referidos textos deverão conter as seguintes cláusulas:

1. resumo em língua portuguesa, entre 150 e 300 palavras, referências do autor (instituição,
cargo, titulação) e e-mail para correspondência;
2. título e resumo em inglês, francês ou espanhol;
3. redação em língua portuguesa, digitação em folha branca A4, em aplicativo compatível com os
formatos “.doc” ou “.odt”, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5, margens esquerda
e superior com 3 cm, direita e inferior com 2 cm, em 2 (duas) cópias impressas, acompanhadas de
gravação em cd-rom ou por e-mail, com os dados profissionais do autor;
4. Os artigos científicos, deverão ter entre 10 e 25 (vinte e cinco laudas), incluindo-se nessas
delimitações os gráficos, figuras e fotografias que fizerem parte dos textos, os quais deverão
conter ótima resolução;
5. as citações devem ser feitas no corpo do texto e, quando necessárias, as notas deverão situar-se
no final do texto, antes da bibliografia, devendo ser apresentadas em ordem crescente e em
algarismos arábicos;
6. as referências bibliográficas devem apresentar o padrão estabelecido pela ABNT para
referenciamento de livros, revistas, suportes eletrônicos e outros multimeios, disponíveis no sítio
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7. os textos encaminhados à Comissão Editorial da Revista Multidisciplinar IESC serão
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8. os textos que não observarem os padrões aqui estabelecidos não serão publicados, e a Revista
não se compromete com a devolução das colaborações recebidas;
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Editorial da Revista;
10. os casos omissos serão discutidos e deliberados pelo Conselho Editorial;
11. Informações sobre o periódico podem ser solicitadas aos editores, por telefone ou e-mail, ou
ainda, pessoalmente na sala de estudos II, da Biblioteca do IESC.
12. os escritos deverão ser enviados para: revistamultidisciplinariesc@gmail.com

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