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CENTRO DE EDUCAÇÃO
“QUEM É VOCÊ?”
VITÓRIA
2017
MARÍLIA RODRIGUES ANDREATA
“QUEM É VOCÊ?”
VITÓRIA
2017
MARÍLIA RODRIGUES ANDREATA
“QUEM É VOCÊ?”
Banca Examinadora:
_____________________________________
Prof. Dr. Fabio Hebert da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientador
_____________________________________
Prof.ª Drª. Maria Elizabeth Barros de Barros
Universidade Federal do Espírito Santo
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente a todos que atravessaram minha vida e de alguma forma contribuíram
para minha formação pessoal e profissional.
Aos meus familiares, por estarem sempre ao meu lado, cuidando e acreditando.
Aos meus pais, Tânia e Jalmir, por tudo. Por nunca desistirem de lutar e sempre oferecer
sempre o seu melhor a mim e Vinícius. Por me ensinarem que sempre podemos ir além.
Muito obrigada!
À Maria Elizabeth Barros de Barros, membro da banca, por aceitar o convite e estar presente
nesse momento especial.
À Marly Callegari e Carlos Eduardo Amaral, por confiar e acreditar em meu trabalho. Por
permitir que eu fizesse parte da vida de uma pessoa tão especial e importante, que tanto me
ensina, inspira e transforma. “Alice”, cuja luz e sabedoria sobre amor fraterno, respeito e
dedicação são infinitos.
Este trabalho é efeito da realização do estágio não obrigatório em uma Escola Municipal de
Ensino Fundamental (EMEF) da Rede Municipal de Ensino de Vitória/ES, durante os anos de
2015 a 2017. Neste período, tivemos a oportunidade de acompanhar o currículo e cotidiano de
um aluno público alvo da educação especial. Tomamos o cotidiano como um problema, como
um território que se constitui a partir das diferenças e multiplicidades. Imersos nesse
território, notamos a evidente relação entre o diagnóstico e o espaço escolar. A partir disso,
passamos a mapear as diferentes narrativas dos sujeitos que compõem o cotidiano, a fim de
refletir e problematizar acerca dos efeitos de se reduzir a relação pedagógica ao diagnóstico.
Utilizamos a história de Lewis Carroll, “Alice no País das Maravilhas”, bem como o filme
“Alice”, de Jan Van Svankmajer, como intercessores para nos auxiliar à escrita do texto.
Problematizamos também os mecanismos utilizados pelo aluno-diagnóstico em seu cotidiano
escolar como forma de resistência aos padrões impostos pelo mercado.
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
1 “DESCENDO À TOCA DO COELHO” ............................................................................. 12
1.1 SOBRE ALICE .................................................................................................................... 17
2 “CORTEM-LHE A CABEÇA!” .......................................................................................... 20
2.1 O GATO INGLÊS: UM SORRISO SEM UM GATO ......................................................... 24
2.2 “O JOGO DO TOQUE-EMBOQUE”: DO DIREITO À EDUCAÇÃO .............................. 29
3 A EXPERIÊNCIA DO/NO/COM O COTIDIANO ESCOLAR E A PRODUÇÃO DE
SENTIDOS: UM CURRÍCULO MARCADO PELA DIFERENÇA................................... 34
3.1.”QUEM É VOCÊ?” .............................................................................................................. 43
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 47
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 48
9
“[...] o outro é tudo aquilo exterior a um eu. [...] a realidade não se restringe ao visível e a
subjetividade não se restringe ao eu: à sombra disso tudo, no invisível, o que há é uma
textura ontológica que vai se fazendo de fluxos e partículas que constituem nossa
composição atual, conectando-se com outros fluxos e partículas com os quais estão
coexistindo, somando-se e esboçando outras composições. [...]” (ROLNIK, 1993, p. 3).
10
INTRODUÇÃO
identidades, pois notamos ao longo do nosso processo de pesquisa que Alice tornou-se seu
diagnóstico.
O que não pertence à curva da normalidade é um “sorriso sem um gato”, por isso
utilizamos esse título como subitem para tratar acerca da (a)normalidade e patologia,
propondo uma discussão do tema partindo da normatividade e padrão constituído
socialmente. Com isso, buscamos maneiras de problematizar a (a)normalidade no currículo
e cotidiano escolar, e o lugar (ou o não lugar) que a mesma ocupa.
Tratamos as políticas públicas como um “campo de toque-emboque”, como no jogo
preferido da Rainha de Copas, a quem pertence esse capítulo. Utilizamos essa comparação
por acreditar que a legislação que trata da deficiência é como um tabuleiro, possuindo os
jogadores, que se movem de forma confusa e atônita, e uma rainha que esbraveja a todo
momento para que cortem as cabeças. A legislação atual institui a pessoa com deficiência
como sujeito de direitos, mas não lhe garante a efetiva constituição enquanto sujeito de
direito no espaço escolar.
Em seguida, damos início a um novo capítulo, discutindo acerca da diferença no
currículo e cotidiano escolar. Narramos a escola como um espaçotempo constituído pela
experiência. A identidade no/do/com o currículo e cotidiano escolar é, a todo momento,
marcada e afirmada pelo diagnóstico, mas Alice encontra maneiras de resistir ao
enquadramento e normatividade. Devido a isso, concluímos nosso texto com a mesma
pergunta feita à Alice: “Quem é você?”, como um mecanismo de questionar quem é Alice, a
verdadeira: Alice-lobo, Alice-esquilinho, Alice-potência, Alice-resistência, Alice-sujeito,
Alice.
12
ele saísse da escola?”. A resposta foi: “Eu? Pra que? Para levar um soco na cara? Não estou
aqui para isso!”.
Naquele momento tudo era muito confuso, mas mesmo assim passamos a nos
questionar acerca das narrativas que ouvimos sobre Alice: por que falam dela dessa forma?
O que ela fez para essas pessoas? Por que o fato de deixarem-na sair da escola ou da
estagiária ter intervindo de maneira incorreta não foram questionados? O que Alice
representa para a escola e seus atores? Não há lugar para crianças com algum tipo de
transtorno na escola? A escola está preparada para isso?
No processo de pesquisa, percebemos que o ambiente escolar conta com os mais
diferentes sujeitos e histórias. Mas, o discurso hegemônico pensa a sociedade de modo
bastante dualista. Ele a divide em duas partes: os normais e os anormais. O cotidiano escolar
sempre foi pensado a partir desse mesmo discurso e, portanto, mesmo sendo um lugar de
encontro dos mais diversos sujeitos e suas diferenças, também está submetido aos padrões
criados por esse discurso e essas práticas. Desta maneira, uma grande parcela da
comunidade escolar é posicionada à margem daqueles e por aqueles considerados normais.
Segundo Guattari e Rolnik (2005), a subjetividade é efeito de um processo de
produção coletiva, que se configura como um processo de mutação maquínica, estando em
conjunto com a multiplicidade de agenciamentos, produzindo coletivamente os sentidos e as
subjetividades (DELEUZE, 1992, apud CARVALHO, 2008). As subjetividades são
constituídas e modeladas, vividas e assumidas de forma criativa, produzindo a
singularização, ou são constituídas de forma alienada à subjetividade capitalística
(GUATTARI; ROLNIK, 2005).
Entendemos aqui a subjetividade capitalística como aquela produzida pelas
sociedades disciplinares e normativas, em que os diferentes sujeitos estão reduzidos a um
padrão comportamental e estão subordinados às leis do mercado, provocando estereótipos e
ideais comportamentais. Em outras palavras, como afirma Deleuze (1992, apud
CARVALHO, 2009), trata-se de um capitalismo que objetiva preparar o homem para o
mercado.
Imersos nesse campo de múltiplas relações, os sujeitos se constituem em meio a essas
experiências e encontros. Segundo Espinosa, a virtude do corpo é afetar outros corpos e por
eles ser afetado. Assim, “[...] a sociologia do cotidiano passeia nos caminhos de
encruzilhada entre a rotina e a ruptura [...]” (PAIS, 2003, apud CARVALHO, 2009, p. 21),
potencializando assim as redes de relações.
14
Este trabalho se passa em um lugar que é ao mesmo tempo singular e coletivo, está
sempre em movimento, está entre (PAIS, 2003, apud CARVALHO, 2009, p. 68).
Acompanhamos processos e possibilidades, constituindo nossos passos dentro do próprio
campo de pesquisa (PAIS, 2003, apud CARVALHO, 2009, p. 70), utilizando como recurso
as narrativas que pertencem ao cotidiano: conversas, gestos, desenhos, falas, cartazes,
fotografias, silêncios, lembranças, memórias, diários de campo, filmes, entrevistas,
cadernos, atividades escritas. Enfim, buscamos “beber em todas as fontes”, a fim de
encontrar as mais variadas possibilidades no/do/com o cotidiano escolar, mas sobretudo
acessar a importância do coletivo (ALVES, 2002). Buscando produzir outra narratividade
possível do cotidiano escolar, pensamos em algumas estratégias que fossem possíveis
construir juntos. Por isso, todas as fotografias do espaço físico escolar foram registradas pela
própria Alice, em seu cotidiano escolar, quando foi entregue à mesma um celular para que
pudesse captar a escola a partir de seu olhar.
Em relação à Alice, não nos interessa conceituar diagnósticos e sim mapear as
potencialidades e os movimentos de acesso ao mundo que se inventa com o outro. Mas para
compor as narrativas desse texto, sentimos a necessidade de “beber em fontes” que se
aproximam das discussões da saúde mental. Desse modo, buscamos o diálogo com
profissionais ligados ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)4, bem como familiares de
pessoas que também são diagnosticadas com algum tipo de “transtorno mental”, a fim de
ampliar nossa visão acerca do tema, bem como nos inspirar e entender o que se passa na
vida de quem vive na diferença e exclusão. Sabemos que Alice possui vários diagnósticos.
Durante nosso processo de pesquisa, descobrimos que Alice já foi diagnosticada por
diferentes profissionais da saúde e em diferentes estados do Brasil. Mas nossa escolha por
4
O CAPS é o“[...] lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses,
neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num
dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida. O objetivo dos CAPS é
oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a
reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos
laços familiares e comunitários. É um serviço de atendimento de saúde mental criado para ser substitutivo às
internações em hospitais psiquiátricos”. (BRASIL, 2004, p. 13).
15
Como nosso objeto de pesquisa são “narrativas”, decidimos utilizar o livro “Alice no
País das Maravilhas”, de Lewis Carroll5 a fim de nos auxiliar a narrar e compartilhar nossa
experiência na prática escolar, além de potencializar e sustentar nossa proposta, utilizando-a
como dispositivo de escrita, no sentido de disparar as análises do texto. “Alice no País das
Maravilhas” ganhou o título de nonsense, da mesma forma que a Alice da Rede Municipal
de Ensino. No entanto, Deleuze, em seu livro “Lógica do Sentido” (2015), afirma que a
lógica do sentido se encontra nos paradoxos. Também utilizamos como recurso a narrativa
fílmica surrealista “Alice”, dirigida pelo cineasta tcheco Jan Van Svankmajer, que possui
técnicas de encenação e animação. Seus personagens , espaços enigmáticos e sombrios não
remetem à “Alice no País das Maravilhas” inocente e encantadora, e sim à realidade do
currículo e cotidiano escolar: cheio de angústias, enigmas e surpresas. Tendo como
características ultrapassar os padrões estéticos e os limites da imaginação, acreditamos que o
surrealismo seria uma forma de potencializar e enfatizar sobre o que objetivamos escrever
nesse trabalho.
Durante a elaboração do tema de pesquisa fomos diversas vezes aconselhados a não
limitar nossos estudos acerca da “esquizofrenia”. Ouvimos que aqueles sujeitos que faziam
parte do nosso cotidiano escolar não deveriam ter suas vontades e falas levadas em
consideração. Percebemos que as pessoas a tratavam de forma diferente e isso nos fez
pensar: “Porque não? O que existe de errado em pesquisar e ser?”. A partir disso, novos
movimentos e redes passaram a ser tecidos.
Desta forma, decidimos mapear alguns modos de subjetivação por meio das
narrativas estabelecidas nas redes de relações do currículo e cotidiano escolar e analisar
como as diferenças potencializam a experiência do/no/com o cotidiano escolar (FERRAÇO,
2003). Toda a discussão sempre se dará a partir dos sentidos provocados em nós:
pesquisadores no/do/com o cotidiano. Assim, não pretendemos falar "sobre" o cotidiano de
uma aluna da Rede Municipal de Ensino de Vitória/ES e sim, "com". Afinal, como sugere
Ferraço:
[...] se estamos incluídos, mergulhados, em nosso objeto, chegando, às vezes, a nos
confundir com ele, no lugar dos estudos 'sobre', de fato, acontecem os estudos
'com' os cotidianos. Somos, no final de tudo, pesquisadores de nós mesmos, somos
nosso próprio tema de investigação [...]. Assim, em nossos estudos 'com' os
cotidianos, há sempre uma busca por nós mesmos. Apesar de pretendermos nesses
estudos, explicar os 'outros', no fundo estamos nos explicando. Buscamos nos
entender fazendo de conta que estamos entendendo os outros, mas nós somos
também esses outros e outros 'outros' (FERRAÇO, 2003, p. 160).
5
Foi utilizado para esse trabalho a versão comemorativa da Editora Cosac Naify, 2015.
17
Não poderíamos deixar de falar que, na verdade, essa é bem a estória de uma criança
chamada Alice, mas de Lagartas... e Lucas e... , com 15 anos mais ou menos (ou será que
são 06?). Gosta muito de comer bolo de chocolate e, somente às sextas-feiras, sanduíches. É
simpática e muito engraçada, adora fazer amigos, brincar, ir à praia, criar estórias. Vou
compartilhar algo importante: Alice pode ler o que está além das palavras, enxergar além
das cores e imagens e ouvir e dar sentido aos mínimos ruídos. Alice não liga muito para o
que os outros estão dizendo. Ela pode ver o mundo e as pessoas em cores vibrantes, cheiros
e texturas.
Alice adora passear e faz isso com frequência. Em um desses passeios, num belo e
ensolarado dia de verão, ela estava andando pela Ilha de Vitória, observando os pássaros que
cantavam belas canções, os cachorros que dormiam debaixo das árvores e as diferentes
pessoas que andavam pelas ruas, quando, de repente, avistou uma grande mesa, bem ali
mesmo, no meio da rua. E em cima dessa mesa estavam vários papeis estranhos, com
palavras que não tinham sentido nenhum para a menina. Ela não sabia, mas neles estavam
escritas palavras como Currículo e Legislação. “Mas, o que é isto?”, ela pensou. Havia
também uma gaveta enorme, “O que será que tem aqui dentro?”, disse a curiosa Alice.
De repente, ela levou um susto. “Abra a gaveta, querida”, “Entre na gaveta!”, “Não
tenha medo!”, “Entre já!”, “Você vai gostar”, “Lá existem crianças”, “Você irá se divertir”,
“Vai aprender muito”, “Entre!” “O que será isso?” Alice ouviu várias pessoas dizendo o que
deveria fazer e ela conhecia essas vozes. Resolveu bisbilhotar dentro da gaveta. Lá existiam
muitas coisas diferentes e cada vez mais ela olhava o fundo da gaveta, e mais, e mais...
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No instante seguinte, ela se deu conta de que estava em um lugar diferente de tudo o
que já havia visto. Olhava a sua volta e via pessoas que não conhecia. Havia muitas crianças
e todas estavam vestidas com roupas iguais. “Onde estou?”, pensou assustada. Começou a
andar pela terra desconhecida, até que viu uma placa enorme “Se esta placa fosse um pouco
maior, chegaria às nuvens. Mas, o que está escrito ali? ES - CO - LA. Escola?! O que é
isso?”. Seus pensamentos se dispersavam quando as diferentes pessoas desse lugar vinham
sorridentes falar com a doce menina. Como era muito curiosa, passou a observar tudo à sua
volta e, em meio a versos e canções, tagarelava sem parar: “Ei! Quem é você? Que pinta é
essa na ponta do seu nariz? Mas que lugar estranho! Por que eu tenho que ficar aqui? Já está
na hora de comer bolo? Por que você é tão chata assim? Eu já estou cansada de ficar sentada
aqui, podemos ir ao balanço? Com licença, agora eu irei voar! Será que se eu esticar meus
braços, eu consigo pegar aquela nuvem? Psiu, psiu! Eu sou Alice, muito prazer! E você,
quem é? Na verdade, hoje, eu sou o Lobo. Aliás, por que eu preciso ser sempre a Alice?
‘Quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau ?!’.”
E não é que ela tem razão? Por que a Alice precisa ser somente Alice, dentre as
tantas pessoas que somos e que nos constituem?
Alice não entendia muito bem, mas disseram para ela que aquela terra cheia de
mistérios e que se chamava Escola. Seria o lugar onde ela iria aprender muitas coisas
importantes: “Escola? Mas o que é isso? Eu já sei de muitas coisas importantes”.
Quando ela disse que poderia ser ou não a Alice, as pessoas não entenderam. “O que
essa menina está falando? Como ela pode não ser ela?!”, disse assustada uma senhora que
usava óculos. “Por que ela está correndo? Ei! Menina volte aqui! Aqui não é lugar de
bagunça!”, disse outra pessoa.
Com o passar dos dias, cada vez mais, essas pessoas diferentes repreendiam a
menina: “Cadê a postura para cantar o hino?”, “Não grite”, “Não corra”, “Não fale”, “Não
babe”, “Coma direito”, “Coma tudo”, “Anda direito”, “Senta”, “Faz o dever”, diziam para
ela, “Essa menina não é normal”. Alice nunca entendeu muito bem o que isso tudo queria
dizer. Afinal, por que ela precisa ser igual aos outros?
Disseram para Alice que ela era diferente das pessoas daquele lugar “O que eles
querem dizer com diferente? O que é diferente?”, pensou a menina. O que as pessoas diziam
para ela não fazia sentido. Ela continuou sendo Alice, Lobo Mau, Roberta, Marcela,
Alexandre e quem mais ela desejasse ser.
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2 “CORTEM-LHE A CABEÇA!”6:
[...] a loucura, [que] durante tanto tempo manifesta e loquaz, entra num tempo de
silêncio no qual permanecerá por um longo período, ao menos até Freud, que
reconheceu na desrazão uma linguagem comum capaz de comunicar algo. Durante
seu período de silêncio, a loucura é despojada de sua linguagem e, se se pôde
6
“Cortem-lhe a cabeça!” é a frase mais utilizada pela Rainha de Copas quando algo à desagrada. Este título
busca comparar a história da loucura, do seu surgimento até sua patologização, com a criação do DSM, com a
guilhotina utilizada pela Rainha.
21
Com isso, fica evidente a potência que o diagnóstico possui diante do aluno no
espaço escolar. Desta forma, um saber científico e padronizado se torna um padrão cultural.
Assim, todo o processo de aprendizagem e experiência se resume ao diagnóstico do aluno,
influenciando de forma direta na relação entre os sujeitos da escola e o aluno-diagnóstico.
Percebemos que todos aqueles que são considerados como parte do desvio da curva
normal, ou anormais, são destituídos de seus direitos e autonomia.
Em nosso cotidiano fomos constantemente indagadas: “Ele é normal?” (Rafaela),
“Ele tem algum problema?” (Mateus), “Olha como está correndo pela escola!” (Evandro),
“Ele é aquele menino que tem problema de cabeça?” (Karina). Passamos, a partir dessas
questões, observar os diferentes sujeitos do currículo e cotidiano escolar. Curiosamente,
muitas atitudes ressaltadas em Alice estavam presentes nos outros sujeitos da escola, como
por exemplo “falar alto”, “não querer fazer o dever”, “achar graça de coisas que eu não vejo
graça”. Assim, nos questionamos: porque as atitudes de Alice são evidenciadas como
“anormais”?
Canguilhem (2011) recorre ao Vocabulaire technique et critique de la philosophie,
de Lalande para explicar o termo normal: designado como “aquilo que não se inclina nem
para a esquerda nem para a direita” (CANGUILHEM, 2011, p. 79), assim, “normal” é tudo
aquilo que está em conformidade. Desta forma, o autor questiona a “média”, o equilíbrio
fisiológico e social, exemplificando à beira-mar, um lugar ventilado, como um fato normal
para insetos alados e anormal para insetos ápteros (CANGUILHEM, 2011, p. 94).
O autor afirma que “[...] é em relação à espécie de ser vivo que utiliza em seu
proveito que um meio pode ser normal. Ele é normal apenas porque tem como ponto de
7
Para tratar da (a)normalidade, nos inspiramos em uma fala de Alice, do livro de Lewis Carroll, como
subtitítulo, a fim de expressar ao rompimento de padrão proposto por Georges Caguilhem (2011).
25
Por isso, o fato dito normal é a expressão de sua norma. Sempre que forem alteradas
as condições tomadas como referência, será modificado o sentido de normalidade
empregado naquele meio. Há uma tentativa de enquadrar os sujeitos às normas instituídas,
social e fisiologicamente, e são determinados como “anormais” a partir do momento que
fogem das mesmas, ou seja, o desvio se refere “a um comportamento desadaptado à norma
socialmente estabelecida” (AMARANTE, 2007, p. 50).
O espaço escolar constitui-se dentro de um padrão de normalidade, mesmo sendo
construído entre multiplicidades. Desta maneira, ao longo do processo da pesquisa fica
evidente que o diagnóstico impõe e resume o aluno a uma certa forma. Produzindo, também,
uma forma de como o sujeito irá se relacionar com o restante da instituição, estabelecendo
uma relação de inferioridade e exclusão.
[...] do seu ponto de vista objetivo, o cientista só quer ver, na anomalia, o desvio
estatístico, não compreendendo que o interesse científico do biológico foi
suscitado pelo desvio normativo. [...] a existência de anomalias patológicas é que
criou uma ciência especial das anomalias que tende normalmente [...] a banir, da
definição da anomalia, qualquer implicação normativa. Quando se fala em
anomalias, não se pensa nas simples variedades que são apenas desvios
estatísticos, mas nas deformidades nocivas ou mesmo incompatíveis com a vida,
ao nos referirmos à forma viva ou ao comportamento do ser vivo, não como a um
fato estatístico, mas como a um tipo normativo de vida [...] (CANGUILHEM,
2011, p. 89).
Durante uma aula, Alice foi repreendida por estar falando alto em um momento
indevido e rapidamente questionou: “Tia, eu não posso mais falar nada nesse lugar? Essa
aula é chata, o que estou fazendo aqui?”. Em seguida, a professora regente questionou: “Ele
não tem dever pra fazer?” (Amanda), Alice respondeu: “Claro que tenho, ó, tô desenhando
meus amigos, não tá vendo?”.
27
Notamos que estar “fora da norma” gera um estranhamento dos sujeitos que
constituem o espaço escolar. Ao mesmo tempo em que os alunos com diagnósticos são
“deixados de lado” ou julgados como incapazes, são cobrados em relação aos seus
comportamentos e atitudes.
Em uma passagem, o autor levanta uma importante questão: “na medida em que
seres vivos se afastam do tipo específico, serão eles anormais que estão colocando em perigo
a forma específica, ou serão inventores a caminho de novas formas? (CANGUILHEM,
2011, p. 93)”. Tomamos essa passagem como inspiração para discussões posteriores. Mas,
ainda assim, problematizamos a anormalidade tomada enquanto patologia e enquanto
construção valorativa.
O autor não invalida os estudos e a ciência acerca das doenças, o que questiona é o
fato de a patologia ser definida como algo não natural ao homem e a delimitação dos campos
do que é normal e do que é patológico. Assim, uma vez que a saúde e a doença são
constitutivos aos seres vivos, não devem ser instituídos à vida valores normativos, pois a
vida em si já possui seu valor.
Nos referindo ao nosso problema de pesquisa, nos remetemos a Amarante (2007),
que problematiza a ideia de saúde mental quando relacionada à “nenhuma forma de
desordem mental” (AMARANTE, 2007, p. 18). Para o autor, se nos referirmos à noção de
28
doença enquanto ausência de saúde, estamos frente à um problema científico muito grave,
pois a saúde “ [...] diz respeito ao estado mental dos sujeitos e das coletividades [...]”
(AMARANTE, 2007, p. 19). Assim, “[...] qualquer espécie de categorização é acompanhada
do risco e um reducionismo e de um achatamento das possibilidades da existência humana e
social [...]” (AMARANTE, 2007, p.19).
Voltando ao início do texto, quando tratamos brevemente sobre a modulação da
noção de loucura e da exclusão, podemos afirmar que todos aqueles que historicamente
foram de encontro com as normas socialmente impostas, eram considerados anormais,
sofrendo punições, tentativas de imposição à norma por meio de severas formas de
tratamento e exclusão. Não objetivamos, neste texto, invalidar os conhecimentos científicos
acerca da doença/transtorno mental. O que buscamos aqui é problematizar sua
conceitualização enquanto patologia, que implica diretamente no conceito de pathos, “[...]
sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada
[...]” (CANGUILHEM, 2011, p. 89). A anormalidade, para Canguilhem, nada mais é do que
a vida em si, são formas diferentes de ser e de agir, sem que se tome um padrão como algo a
ser seguido. O normal e o anormal são construções sociais, ditadas pela vigência política e
econômica. A fisiologia do homem não tem consciência do patológico ou saudável normal.
Assim, a máquina capitalista impõe ao homem o que é ser normal. Mas então nos
perguntamos, quem é então normal? Podemos afirmar, desta maneira, que a anormalidade,
como doença, da nossa protagonista, baseia-se em uma construção social imposta por um
saber hegemônico tendo como consequência o fato de até mesmo “[...] uma simples
necessidade básica [...] ser entendida como um mero sintoma. Nada é do sujeito: tudo se
refere à doença!” (AMARANTE, 2007, p. 68).
Tomando a ideia de que são “os seres vivos como inventores a caminho de novas
formas” (CANGUILHEM, 2011, p. 93), nos remetemos à Alice que, ao mesmo tempo em
que inventa novas formas, também desconstrói todo tipo de forma, reinventando e
produzindo constantemente o sentido dos corpos.
“Ora vejam só! Sempre vi gatos sem sorriso [...], mas nunca tinha visto um sorriso
sem um gato! É a coisa mais curiosa que eu já vi em toda minha vida.”
(CARROLL, LEWIS, p. 76).
29
“Inclusão? Talvez ele seja incluído nos trabalhos acadêmicos, nos textos que vão ser
publicados. Na prática? Só se for em sonho!” (Arianna). Iniciamos nosso texto acerca das
políticas públicas com a frase de um familiar de um aluno público alvo da educação
especial, quando discutia sobre a “inclusão”. Com isso, questionamos se as escolas estão
preparadas para receber alunos com deficiência.
No Brasil e no Mundo, a partir da década de 1990, as discussões acerca da igualdade
de direitos e da política contra a exclusão ganharam força. No âmbito da Educação Especial
não é diferente. A inclusão surge, em ruptura com a integração e, com ela, as políticas
públicas capazes de garantir a constituição dos sujeitos no espaço escolar (VICTOR,
DRAGO, CHICON, 2010).
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases (LDB):
[...]Eu já tentei matricular meu filho em uma escola particular muito conceituada
aqui em Vitória. Mas, quando fui efetivar a matrícula eles disseram que iriam me
ligar depois para dizer se haveria vaga, mas nunca ligaram. Disseram que a escola
não iria garantir um estagiário para ele e mais um monte de coisas que me fizeram
desistir de colocar ele lá. Eu acho que as escolas particulares escolhem quem serão
seus alunos da educação especial. [...]
DIÁRIO DE CAMPO, BRENDA.
8
Assim como no campo de toque-emboque, onde acontece o jogo de mesmo nome, o Direito à Educação
possui obstáculos, regras e relações de poder.
30
Art. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade
de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para
educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades ou superdotação. § 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio
especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela de
educação especial. § 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas
ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos
alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular. §
3º A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem iní- cio na
faixa etária de 0 (zero) a 6 (seis) anos, durante a educação infantil (BRASIL,
1966a, s/p).
Observamos que é cada vez mais garantido o acesso dos estudantes com deficiência
ao ambiente escolar. São considerados público alvo da educação especial os “estudantes
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação”
(BRASIL, 2008). Também é notório que as políticas pretendem inserir nas escolas, com o
direito do atendimento educacional, o maior número possível de alunos com deficiência.
Mas sabemos que a inclusão dos alunos na escola não garante a efetiva ação pedagógica que
atenda as experiências singulares, ou seja, a falta de condições concretas não garante uma
efetiva inclusão dos alunos com deficiência.
Remetendo-nos ao campo e ao jogo de toque-emboque da Rainha (CARROLL,
2015), cheio de regras e submissos aos desejos da Rainha, conta com jogadas coletivas e
confusas, ouriços que se movem e flamingos atônitos. Além da Rainha esbravejando
“Cortem-lhe a cabeça!”, a todo o momento.
Alice se pôs a pensar que nunca tinha visto um campo de toque-emboque tão esquisito em
toda sua vida. Ele era todo cheio de pequenos buracos e morrinhos, as bolas eram ouriços
vivos, os tacos eram flamingos também vivos e arcos, por dentro dos quais as bolas
deveriam passar, eram formados por soldados que se dobravam, apoiando os pés e as mãos
no chão. (CARROLL, Lewis, 2015, p. 99)
34
O cotidiano não pode ser reduzido às práticas rotineiras e/ou à “mesmidade” e deve,
pelo contrário, ser pensado como o lugar habitado, praticado e vivido por sujeitospraticantes
em estado de constante devir (CERTEAU, 1994, apud FERRAÇO, 2003). Por isso,
tomamos o cotidiano escolar e seus diferentes contextos como um espaçotempo9 que produz
múltiplos sentidos em que seus praticantes agem como protagonistas dessas produções
(FERRAÇO, 2013).
Considerando o cotidiano como o lugar da experiência, Larrosa nos diz que
É possível entender que a experiência cotidiana é tudo aquilo que passa e ultrapassa
todos os que entram em contato com tal realidade. Isto é, devemos considerar que sempre
existe um outro que produz em conjunto as suas experiências. A experiência é aquilo que
ultrapassa a noção do “Eu”, assim podemos dizer que a experiência é o lugar da produção de
sentido.
Sobre isso, nos remetemos ao pensamento de Deleuze (2015), quando este trata da
produção de sentido dos corpos, afinal, para o filósofo, o sentido acontece na superfície de
um corpo, em sua forma mais pura. É o que nos explica o autor na seguinte passagem:
[...] o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não é algo a
ser descoberto, restaurado ou re-empregado, mas algo a produzir por meio de
novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma
profundidade, mas é efeito de superfície, inseparável da superfície como sua
dimensão própria. (DELEUZE, 2015, p. 75).
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“Estética da escrita que aprendemos com Nilda Alves (apud, 2002a) na tentativa de, ao unirmos determinadas
palavras, ampliar seus significados, inventando outros tantos, buscando romper com as marcas que carregamos
da ciência moderna, sobretudo a maneira dicotomizada de analisar a realidade”. (FERRAÇO, CARVALHO,
2005, p. 5).
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Das Maravilhas tem uma dupla direção sempre subdivida. Ela é também aquela que perde a
identidade, a sua, a das coisas e a do mundo” (DELEUZE, 2015, p. 81). A obra de Lewis
Carroll é pensada por Deleuze, no livro “Lógica do Sentido” (2015), o qual, através de jogos
de linguagem e de não sentido, encontra uma lógica do sentido. Para o autor, a obra de
Carroll “trata dos acontecimentos na sua diferença em relação aos seres, às coisas e estados
de coisas” (DELEUZE, 2015, p. 10), tornando-se o devir-ilimitado o próprio acontecimento,
sendo um paradoxo: incorporal, ativo e passivo, futuro e passado, causa e efeito. A
linguagem de Carroll estabelece limites e, ao mesmo tempo, ultrapassa-os e, por isso, seu
sentido não possui um lugar fixo, está sempre se deslocando e criando outros possíveis,
desta forma, todo o acontecimento está em constante devir, por isso é um devir-ilimitado.
Toda a obra de Carroll, para Deleuze, se dá em um devir-ilimitado: “[...] sua ascensão à
superfície, sua desmistificação da falsa profundidade, sua descoberta de que tudo se passa na
fronteira [...] (DELEUZE, 2015, p. 10)”.
Devido aos paradoxos do sentido de Carroll, suas estórias foram classificadas como
nonsense, ou seja, como desprovidas de sentido. Mas, segundo Deleuze, “sentido é uma
entidade não existente, ele tem mesmo com o não-senso relações muito particulares”
(DELEUZE, 2015, s/p) e, portanto
[...] devemos estar atentos às funções e aos abismos muito diferentes do não-senso,
à heterogeneidade das palavras-valise que não autorizam nenhum amálgama entre
os que inventam e mesmo os que os empregam. [...] ainda a insuficiência do lógico
não nos autoriza a refazer, contra ele, uma trindade. Ao contrário. O problema é o
da clínica, isto é, do deslize de uma organização para outra ou da formação de uma
desorganização progressiva e criadora. O problema é também o da crítica, isto é,
da determinação dos níveis diferenciais em que o não-senso muda de figura, a
palavra-valise de natureza, a linguagem inteira de dimensão. [...] (DELEUZE,
2015, p. 86).
Como a Alice de Carroll, a nossa Alice também produz uma narrativa singular
dotada de um sentido próprio. Sua linguagem desliza pela superfície, alcançando e
produzindo outros sentidos.
Em nosso cotidiano éramos constantemente indagados acerca das histórias que Alice
compartilhava. “Como é possível uma aranha voar?”, diziam alguns, “Mas galinha não
fala!”, diziam outros, “Você acredita que ele disse que é um esquilinho?”, indagavam. Todas
as falas sempre foram acompanhadas de olhares espantosos, irônicos ou risadas,
normalmente seguidos da frase: “Só a Alice mesmo para falar uma coisa dessas!”. Alice,
sempre muito questionadora, sempre devolvia a questão: “Mas como pode uma aranha não
voar? Olha só tia, ele não sabe muito bem das coisas, não é?”. Sobre os paradoxos, Deleuze
afirma que “têm por característica o fato de ir em dois sentidos ao mesmo tempo”
(DELEUZE, 2015, p. 78). Mas, sua potência “não consiste absolutamente em seguir a outra
direção, mas em mostrar que o sentido toma sempre os dois sentidos ao mesmo tempo, as
duas direções ao mesmo tempo” (DELEUZE, 2015 p. 79).
“Alice”10 desliza e percorre os mais diferentes sentidos e significados das palavras,
coisas, objetos e tudo o que estão a sua volta. Ultrapassa as barreiras de sentido impostas e,
por isso, seu cotidiano é marcado pela diferença. A forma como expressa seus sentidos,
paradoxos e linguagem própria causa estranhamento frente a todos os que estão imersos na
cultura produzida. Ou seja, Alice sempre é vista como “a diferença”, tornando-se esta sua
“identidade”. Sobre isso Tomaz Tadeu da Silva nos diz que
E afirma:
10
Nesse caso, nos referimos a Alice de Lewis Carroll, e Alice, da Rede de Ensino de Vitória.
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Muitas vezes, esse estranhamento faz com que Alice e os profissionais da Educação
Especial tornem-se um só. Alice não é vista como uma aluna, como os outros, sempre é
“aquela criança é da educação especial, olha a estagiária dela ali”. Não estamos aqui para
julgar a comunidade escolar, apenas tomamos o silêncio de Alice em seu currículo e
cotidiano como uma “representação” (SILVA, 2000) da diferença instituída na sociedade
capitalista e normalizadora.
Notamos a cristalização dos processos de produção da subjetividade na prática
pedagógica ao ouvir narrativas como: “Essa menina não entra na sala de jeito nenhum,
quando entra, só fica dez minutinhos e olhe lá!” (Helita), “Será que você pode falar para ela
prestar atenção na aula?” (Penha), “Hoje eu irei dar uma atividade tão legal, pena que ela
não pode participar” (Matheus), “Olha lá! Só quer saber de balanço” (Rúbia), “Nossa! É
sério que ela sabe ler?”(Cláudio), “Por que ela vem para a escola? Ela consegue aprender
algo? (Francisca)”. Desta forma, percebemos que ao mesmo tempo em que à Alice era
imposta a identidade de alguém incapaz ou limitado, era cobrado à docilidade de seu corpo e
11
Nesse caso, nos referimos a Alice da Rede Municipal de Ensino de Vitória.
12
Utilizamos a palavra “imaginário” no sentido de amigos “imateriais”, não no sentido de irreais.
40
13
Alice costuma brincar de reproduzir cenas de seus filmes preferidos, por isso gosta de dizer que “está
na cena”.
41
A diferença, quando relacionada à anormalidade (ou aquilo que não cabe na curva
normal) é dogmatizada como algo que incapacita os sujeitos. Sandra, professora regente da
Educação Especial entre os anos de 2015 e 2016, iniciou o processo de alfabetização de
Alice no ano de 2015, quando cursava o 6º ano do Ensino Fundamental, nos orientando
constantemente em relação às atividades propostas e a maneira de trabalhar. Em poucas
semanas, Alice relacionava os sons às letras, bem como a escrita correta do alfabeto. Ao ler
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uma letra ou sílaba sentia-se cada vez mais estimulada e feliz. O espanto das pessoas que
liam o que a menina havia escrito ou ouviam sua leitura era geral: “Como assim ela
consegue ler?” (Katia), “Foi ela mesmo quem escreveu?” (Enzo). Cada conquista de Alice
servia de estímulo para novos aprendizados e conquistas, estimulando cada vez mais a sua
relação social.
No ano de 2017 a professora Laura tornou-se responsável pelo núcleo de educação
especial da EMEF. Notando o avanço de Alice em relação à leitura e escrita, passou a
adaptar atividades propostas ao 8º ano do Ensino Fundamental. Assim, Alice realiza
atividades destinadas ao seu nível escolar.
Não buscamos defender que todo aluno deve realizar as atividades propostas no
currículo formal, desejamos demonstrar que Alice é capaz de realizar atividades, basta que
se invente modos de conexão com aquilo que lhe faz sentido. Contradizendo, dessa maneira,
os diagnósticos que recebeu ao nascer, afirmando que seria uma criança e adulto sem
quaisquer perspectivas.
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- Eu... Eu neste momento não sei muito bem, minha senhora... Pelo menos, quando acordei
hoje pela manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que depois mudei várias vezes...
CARROLL, Lewis.
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Narrativa entre Alice e Lagarta, fazendo-a refletir sobre si mesma e produzir outros sentidos.
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Foucault (2014b) discorre acerca do poder sobre a vida, afirmando que foi
desenvolvido em duas formas principais: o corpo como máquina, “[...] no seu adestramento,
na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua
utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle [...]”; e no corpo-espécie
“[...] transpassado pela mecânica do ser vivo como suporte dos processos biológicos: a
proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde [...]” (FOUCAULT, 2014b, p.
150). Assim desenvolveu-se a organização do poder sobre a vida, onde investe-se sobre ela
de todas as maneiras possíveis, iniciando-se a era do biopoder, elemento fundamental para o
desenvolvimento do capitalismo (FOUCAULT, 2014b).
Em uma das cenas do filme de Svankmajer, Alice passa por uma porta do Reino da
Rainha de Copas, se deparando com o formato da Rainha. Assim como a Alice de
Svankmajer, o cotidiano de Alice, da EMEF, é repleto de “formatos” em que é exigido que a
mesma se adeque. Durante um evento em comemoração à semana dos Direitos Humanos,
algumas turmas da escola, inclusive a turma de Alice, foram convidadas a assistir curtas-
metragem relacionados à temática. Assim, os alunos e profissionais se dirigiram ao cinema.
Durante a exibição, falante como de costume, indagava questões acerca do curta,
questionava sobre seu dia a dia e queria conversar sobre vários assuntos. De repente
“shhhh!!”, exclamou alguém que estava sentado atrás da menina. Nesse momento, sua
professora disse: “Eu sei que é importante ter silêncio, mas ele é público alvo da educação
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especial, tem deficiência intelectual” (Laura), em seguida, a pessoa respondeu “Ok! Mas
pede pra ele fazer silêncio por favor” (Geane). A professora então, explicou para Alice que
era importante conversar em voz baixa, pegou seu celular e mostrou as horas para a menina,
a fim que ela entendesse que ainda faltavam vinte minutos até o fim da apresentação dos
curtas. Foi então que a mesma pessoa falou: “A luz do seu celular está atrapalhando.
Desligue o celular ou vá para a última fileira com ele” (Geane). Nesse momento, Alice
interrompeu: “shhh, pra você! Sua esquisita!”. Alice, diariamente, expressa estratégias de
resistência aos padrões que são a ela impostos.
No filme de Svankmajer, Alice é julgada pelo “roubo das tortas”, sendo acusada
antes mesmo de qualquer tipo de julgamento. A forma encontrada para resistir foi
questionando:
Alice, da EMEF, resiste e luta pelo seu direito à indiferença. Acreditamos que seu
processo de resistência se dá quando pergunta “O que você acha que sou?” ou ao dizer: “Por
que você está me chamando de louco?”, “Mas é claro que eu sou o esquilinho, quem está
brincando aqui sou eu!”, também resiste ao permanecer nos espaços em que é notável o
incômodo das pessoas, ao permanecer na escola e gostar de estar alí, ao se fazer notada.
Resiste ao surpreender a todos com seus avanços motores e pedagógicos, ao aprender a ler e
escrever, ao construir esquemas de pensamentos, mesmo possuindo diagnósticos de que isso
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando iniciamos nossa prática de estágio no ano de 2015, não imaginávamos que
iríamos ter o prazer conviver e fazer composições com Alice. Aos poucos, fomos notando as
diferentes narrativas dos sujeitos do currículo e cotidiano escolar. Narrativas que, muitas
vezes, são cruéis. Passamos a questionar o sofrimento que estas geram a inúmeras famílias
que possuem sujeitos em condições parecidas e estão inseridos na escola.
A partir disso, decidimos mapear as diferentes narrativas cotidianas e, juntamente
com a história de Lewis Carroll e o filme de Jan Van Svankmajer, problematizar o currículo
e cotidiano escolar de Alice.
Consideramos o cotidiano escolar como um território que se constitui a partir das
diferenças e das multiplicidades. Mas, durante nosso processo de pesquisa, percebemos que
não fazer parte do que é considerado curva normal impõe padrões de relacionamento entre o
aluno-diagnóstico e a instituição escolar, estabelecendo relações de exclusão.
Alice é uma menina que a todo o momento resiste às formas impostas pelo mercado.
Resiste ao afirmar ser a Alice ou quem ela decidiu ser naquele dia. Resiste quando inventa
modos de estar no mundo, indo de encontro ao saber hegemônico que insiste em enquadrá-
la.
Pudemos notar, durante a prática de estágio, que a cada dia que os diferentes sujeitos
que fazem parte do cotidiano de Alice se dispõem a conhecê-la e a não a enquadrar em
determinados formatos, passam a entender que Alice é apenas uma menina, com desejos,
sonhos, felicidades e afetos.
Ao fazer esta pesquisa nos constituímos em meio a narrativas, reflexão, leitura e
encontros. Assim como Alice, que afirma que mudou várias vezes durante uma manhã, fazer
parte do currículo e cotidiano de Alice foi uma experiência potente e transformadora.
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REFERÊNCIAS
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50
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