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Irmandade dos Filósofos Desconhecidos

MANUSCRITOS INTRODUTÓRIOS III


A TEOSOFIA CRISTÃ E A ROSA-CRUZ

Caro Buscador, Cara Buscadora,

Ficamos satisfeitos com o texto que nos enviou sobre as vias abordadas
no Esoterismo e sua preferência. Esperamos que o nosso segundo manuscrito
introdutório tenha dado uma visão geral de como se desenvolveu o Esoterismo
Ocidental em meados da Idade Média até a época da Reforma. Continuemos
aqui os estudos sobre a História da Tradição Esotérica Ocidental. Conforme dito
anteriormente, as próximas duas sessões tratam de uma introdução ao
movimento esotérico que parte das primeiras décadas do século XVII até o que
conhecemos como Esoterismo Moderno. Após ambas, detalharemos os eventos
que marcam este período, similarmente ao que fizemos no manuscrito anterior.

A HISTÓRIA DA TRADIÇÃO ESOTÉRICA OCIDENTAL III

Teosofia Cristã

É de uma perspectiva bastante


semelhante à Naturphilosophie paracelsiana
que, nas primeiras décadas do século XVII, o
sapateiro alemão Jacob Boehme (1575-1624)
escreveu uma obra de impressionante
profundidade e originalidade que se tornou
fundamental para uma das principais correntes
da história do Esoterismo Ocidental: a Teosofia
Cristã. Em uma sincera tentativa de entender
como um Deus bom poderia ter criado um
mundo tão cheio de mal e sofrimento, Boehme
desenvolveu uma cosmogonia visionária dramática cheia de referências
alquímicas e paracelsianas, onde descreveu o “nascimento de Deus” a partir do
insondável mistério do Abismo. Referido como “Natureza Eterna”, o corpo de
Deus foi imaginado como uma substância luminosa, constituída de um núcleo
escuro e irado (associado a Deus Pai) redimido e tornado inofensivo pelas forças
complementares de luz e amor (associadas a Deus Filho). Lúcifer, o maior dos
anjos, nasceu como uma criatura perfeita de luz no corpo da Natureza Eterna;
Mas na tentativa de elevar-se ainda mais, alcançando seu próprio
“renascimento”, ele se transformou em uma criatura de escuridão e destruiu a
integridade e a harmonia do mundo da luz. Como resultado da Queda de
Lúcifer, nosso próprio mundo surgiu: não mais a Natureza Eterna, mas uma
Natureza caída, sujeita ao tempo e à mudança, em que a ira escura da Divindade
é desencadeada como uma força separada em combate mortal com o poder da
Luz. Nosso chamado espiritual como seres humanos pecaminosos nascidos
neste mundo escuro e ameaçador é alcançar uma transformação interior que
inverte o processo da Queda e espelha o nascimento primordial do próprio Deus.
Ao fazê-lo, literalmente renascemos como “filhos de Deus” num sutil corpo de
luz e contribuímos para a reintegração da Natureza caída: o próprio corpo de
Deus que está ansioso para retornar ao seu estado original de harmonia e bem-
aventurança (Hanegraaf, 2013).

Escrito em um estranho
alemão cheio de flashes de visão
poética, as obras de Boehme
foram amplamente
disseminadas já durante sua
vida, e causou-lhe muitos
problemas com as autoridades
luteranas. Mais tarde, durante o
século XVII, muitos autores se
inspiraram no trabalho de
Boehme e o desenvolveram em
novas direções. Alguns deles
formaram pequenas
comunidades espirituais: os
primeiros exemplos claros do
que poderia hoje ser chamado de
organizações esotéricas, com
práticas devocionais próprias.
Assim, o teósofo alemão Johann
Georg Gichtel (1638-1710)
formou um grupo chamado os
"Irmãos Angélicos" em
Amsterdã, e na Inglaterra uma
"Sociedade Filadélfia" formada
em torno de John Pordage
(1607-1681) e Jane Leade (1623-1704, talvez o primeiro exemplo no Esoterismo
Ocidental de uma mulher desempenhando um papel central). Experiências
extáticas e visionárias desempenharam um papel importante nessas
comunidades; e com base em discussões de Boehme, seus membros
desenvolveram um forte fascínio com a figura de Sophia (Sabedoria) como uma
manifestação explicitamente feminina da divindade. Depois de um período de
transição durante o século XVIII, com Friedrich Christoph Oetinger (1702-82)
como a figura mais importante, a Teosofia Cristã entrou em sua “segunda idade
de ouro” das últimas décadas do século XVIII, através da era romântica. O
francês Louis-Claude de Saint-Martin (1743-1803, o “filósofo desconhecido”) e
o alemão Franz von Baader (1765-1841) foram talvez os mais importantes
pensadores de uma rede emergente de teosofistas cristãos que redescobriram
Boehme e interpretaram-no em novas formas, em parte sob a influência de
desenvolvimentos contemporâneos como a filosofia idealista alemã e a moda do
Mesmerismo (Hanegraaf, 2013).

Sociedades Iniciáticas

A crença de que a sabedoria


antiga ou os segredos da natureza
haviam sido transmitidos e mantidos
vivos por homens sábios ao longo dos
séculos pertence aos princípios
centrais do Esoterismo Ocidental. No
entanto, notavelmente, essa
transmissão talvez exija algum tipo
de organização formal, e isto
historicamente não parece ter
ocorrido antes do século XVII. A ideia surge no primeiro dos três chamados
Manifestos Rosacruzes, publicado em 1614. Este texto, conhecido como Fama
Fraternitatis, descreve uma irmandade misteriosa fundada por um adepto
igualmente evasivo chamado “C.R.”, mais tarde identificado como Christian
Rosenkreutz. Depois de viajar pelo Oriente Médio e estudar profundamente as
ciências ocultas, a Fama nos disse que ele havia voltado para a Alemanha, onde
fundou uma organização secreta que asseguraria que sua suprema sabedoria
não se perdesse. Em um ponto os membros decidiram se espalhar por todos os
países, mantendo sua irmandade em segredo, mas cada um deles prometeu
encontrar um sucessor adequado que levaria sua sabedoria para a próxima
geração, e assim por diante. Depois de 100 anos, um membro da irmandade
teria descoberto uma cripta secreta na casa de Christian Rosenkreutz, contendo
seu corpo perfeitamente preservado e informações secretas de todos os tipos. A
Irmandade anunciou agora a sua existência ao público em geral através da
Fama Fraternitatis, seguida por uma Confessio Fraternitatis em 1615,
prevendo uma nova Reforma que transformaria a cultura europeia ao longo das
linhas do antigo Hermetismo e ciências afins. Um terceiro manifesto, publicado
em 1616, era de natureza completamente diferente: chamado Bodas
Alquímicas de Christian Rosenkreutz, era um relato alegórico complexo da
transformação cristã baseada no simbolismo alquímico. Seu protagonista era
Christian Rosenkreutz, mas a irmandade não desempenhou nenhum papel
nessa obra (Hanegraaf, 2013).

Não há nenhuma evidência de que qualquer Fraternidade Rosacruz


realmente existiu neste momento ou antes, e muito menos que Christian
Rosenkreutz era uma personalidade histórica. Os Manifestos são agora
geralmente vistos como uma invenção literária, atribuída ao teólogo luterano
Johann Valentin Andreae (1586-1654) e seu círculo de amigos em Tübingen.
Mas eles fizeram uma grande impressão em muitos leitores, resultando em uma
quantidade impressionante de respostas públicas, seja de críticos que
denunciaram a irmandade como uma farsa ou defensores e verdadeiros crentes
que gostariam de entrar em contato com seus membros. Como um efeito deste
furor, autores importantes no campo da sabedoria antiga e das ciências ocultas,
como Robert Fludd (1574-1637) ou Michael Maier (1569-1622), começaram a
identificar-se como “rosacruzes”. Alguns grupos marginais preocupados com a
Alquimia ou outras práticas ocultas podem ter começado a chamar-se
rosacruzes durante o século XVII ou a primeira metade do século XVIII, mas as
evidências são vagas e ambíguas. O primeiro caso irrefutável de uma
organização rosacruciana é a Ordem da Rosacruz de Ouro, que floresceu na
Alemanha na segunda metade do século XVIII. Depois desse período, à medida
que a crescente separação entre a Igreja e o Estado tornou possível a criação de
organizações religiosas ou iniciáticas ao lado das igrejas estabelecidas, muitas
organizações iniciáticas surgiram e pensam em si mesmas como rosacruzes e
geralmente afirmam preservar os verdadeiros segredos da sabedoria antiga
(Hanegraaf, 2013).

O ritual e as estruturas
organizacionais de tais Ordens
iniciáticas foram inspirados, na
maioria dos casos, por modelos
derivados da Maçonaria. Na
Escócia, no final do século XVI, as
guildas medievais de pedreiros
foram transformadas em um novo
tipo de organização que começou a
aceitar de forma ampla “cavaleiros
maçons” (indivíduos que não eram
artesãos maçônicos) durante o
século XVII. Até as primeiras
décadas do século XVIII, os maçons
eram amplamente percebidos como
rosacruzes e praticantes da
Alquimia e a irmandade atraiu muita curiosidade por causa das suspeitas de
que poderia ter preservado os misteriosos segredos da antiguidade, incluindo o
da Pedra Filosofal. Na Inglaterra, a Maçonaria distanciou-se de tais atividades
esotéricas à medida que se transformou em um movimento essencialmente
racionalista e humanitário após a fundação da Grande Loja Unida da
Inglaterra, em 1717. Mas em outros países, notadamente a França, a
preocupação com Alquimia e outras ideias e práticas esotéricas floresceram
como nunca antes: depois de terem sido iniciados nas três classes maçônicas
básicas de Aprendiz, Companheiro e Mestre Maçom, maçons poderiam
progredir mais profundamente nos mistérios maçônicos através de elaborados
sistemas de graus superiores. À medida que muitos sistemas de graus mais
elevados foram desenvolvidos durante o final do século XVIII para juntar-se à
Maçonaria, isto tornou-se a coisa lógica a fazer para qualquer pessoa fascinada
por mistérios ocultos e pelos segredos dos antigos. O florescimento da Teosofia
Cristã em sistemas maçônicos de alto grau durante a Era da Razão - veja
especialmente o "Rito Escocês Retificado" de Jean-Baptiste Willermoz e seus
antecedentes no Elus Cohens de Martinez de Pasqually - é conhecido como
Iluminismo. Uma vez que o sistema de classe prevalecente estava suspenso
dentro da Loja - um membro da alta nobreza poderia muito bem receber sua
iniciação de um Mestre pertencente à classe trabalhadora - a Maçonaria
também era altamente atraente como um contexto onde se poderia
experimentar ideias socialmente igualitárias e, finalmente, funcionou como uma
rede internacional eficaz que assegurou que os viajantes longe de casa poderiam
sempre encontrar um lugar onde seriam acolhidos por seus irmãos
companheiros. Como tudo isso fazia da Maçonaria algo como uma sociedade
secreta dentro da sociedade pública, protegida do escrutínio externo pelo seu
cultivo do segredo, acabou evocando suspeitas dos governantes políticos e, em
alguns casos, notavelmente a Ordem de Iluminados de Adam Weishaupt, um
veículo para a política revolucionária radical, tais preocupações foram
realmente justificadas. Particularmente após a Revolução Francesa, a
Maçonaria tornou-se um alvo favorito de teóricos da conspiração que atribuíram
a quebra da autoridade religiosa e política tradicional às maquinações
subversivas dos maçons e dos “Illuminati” (Hanegraaf, 2013).

Desde o início, os maçons


estavam preocupados com a criação
de uma linhagem histórica para sua
organização. Às vezes, a instituição
da Maçonaria foi traçada desde Noé e
seus filhos após o Dilúvio, mas os
Maçons desenvolveram um fascínio
particular com as linhagens
históricas especulativas que a
ligavam a seitas antigas como
Essênios, Terapeutas e até mesmo aos Cavaleiros Templários medievais. O
ritual maçônico é fundamentado no simbolismo arquitetônico, com um papel
central para o Templo de Salomão em Jerusalém como a imagem do edifício
perfeito; por isso era natural para os maçons desenvolverem um interesse
especial na ordem de cavalaria supracitada. A ideia era que, durante os tempos
das cruzadas, os Cavaleiros Templários na Terra Santa tinham estabelecido
contato com os ramos sobreviventes dos Essênios/Therapeutae, que haviam
preservado os antigos segredos do Oriente, incluindo a suprema arte pitagórica
da geometria. Após a dissolução da Ordem em 1307, os Templários
sobreviventes foram acreditados para trazê-lo segredos para a Escócia, muitas
vezes considerada a pátria da Maçonaria. Esta é a origem da influente lenda dos
Templários, que levou não só a graus especiais Templários dentro da Maçonaria,
mas também às organizações neo-templárias não-maçônicas até os dias de hoje
- para não mencionar uma mitologia templária crescente na literatura popular
de Umberto Eco até Dan Brown (Hanegraaf, 2013).

Fama Fraternitatis, o Primeiro Manifesto Rosacruz

Após essa rápida introdução sobre a história


da Tradição Esotérica Ocidental entre a
publicação dos manifestos Rosacruzes e os
primeiros ecos do Iluminismo, voltemos agora
os nossos olhos para a crise moral europeia.
Todo mundo ansiava por uma “nova Reforma”
dentro de uma crise que gerava inquietudes e
perturbações na Europa. Foi nesse contexto
que a Fraternidade Rosacruz lançou seu apelo
propondo novos elementos apropriados para
restaurar a harmonia. De modo geral, pode-se
dizer que a Fraternidade propôs o Hermetismo
como solução para a aflição reinante. Com esse
objetivo, publicou em 1614, na gráfica,
Wilhelm Wessel de Kassel, um manifesto
anônimo que foi chamado por simplificação
Fama Fraternitatis. Mas seu título original
era, em português, “Reforma universal e geral do mundo inteiro; com as
notícias da louvável Fraternidade da Rosa-Cruz, escrita a todos os
eruditos e soberanos da Europa; também uma breve resposta do Senhor
Haselmayer pela qual ele foi preso e posto a ferros numa galera. Hoje
publicada e comunicada a todos os corações sinceros”. O texto que
constituía a sua parte central, Fama Fraternitatis, já circulava na Europa
alguns anos antes, em forma manuscrita (Rebisse, 2004).

Antes de apresentarmos este Manifesto


Rosacruz, é interessante ressaltar o que
propunham os rosacruzes do século XVII, para
evitar equívocos que são muitas vezes propagados
pelas escolas rosacrucianas modernas. Os
Manifestos propunham basicamente duas coisas:
a reforma universal (que era uma reforma
científica, cultural e política) e a reforma religiosa
(os Manifestos Rosacruzes eram claramente anti-
clericais e anti-papais). Curiosamente, o brasão
de Martinho Lutero é um símbolo rosacruz. Como
é um dos primeiros símbolos associados à figura da rosa e da cruz, muitos
historiadores se perguntam: quem veio primeiro, Martinho Lutero ou os
rosacruzes? Seriam os rosacruzes uma manifestação histórica mítica, figurada,
dos primeiros reformistas ou seriam os primeiros reformistas rosacruzes
impulsionando no mundo este projeto de reforma religiosa? Além disto, desde
que surge o nome desta Fraternidade, ele fica gravado na mente das pessoas.
Desde o século XVII, portanto, que ao se falar em rosacruz a maioria das pessoas
vai pensar em algo misterioso, mágico ou secreto. Tanto é assim que o mago
Randolph afirmou que tudo aquilo que se escrever e se disser rosacruz, vende.
De fato, durante muitos séculos, tudo que se dizia associado à rosacruz vendia,
fossem livros, ordens iniciáticas, peças teatrais, etc. Todo mundo queria saber
o que esses Invisíveis, um dos nomes associado aos membros desta
Fraternidade, pensavam, tamanha era a influência que este nome gerou no
imaginário popular.

Aberto com um breve prefácio, o primeiro dos três Manifestos Rosacruzes


compunha-se de três textos distintos. O primeiro evocava a necessidade de uma
reforma geral do mundo. Embora nada indique isso, tratava-se de uma tradução
de uma parte do livro de Traiano Boccalini intitulado “As Notícias do Parnaso”,
publicado em Veneza em 1612. Esse texto coloca o projeto rosacruz em seu
contexto, o da necessidade de uma reorganização em uma Europa conturbada.
Seu autor, um amigo de Galileu, pertencia à corrente anti-papal veneziana de
Paolo Sarpi. Essa obra satírica usou a mitologia para pintar o clima político que
reinava na Europa. Traiano Boccalini mostrou o quanto as instituições, fossem
religiosas, políticas ou filosóficas, eram incapazes de fazer as coisas evoluírem
(Rebisse, 2004).

Ao pessimismo desse texto que desesperava ao ver malograr uma reforma


adequada para reestabelecer a quietude na Europa sucedeu-se o otimismo do
primeiro Manifesto Rosacruz. Com efeito, após o texto de Traiano Boccalini veio
a Fama Fraternitatis propriamente dita, escrito bastante curto, pois ocupava
umas trinta páginas em um livro que continha cento e quarenta e sete no total.
É o cerne do primeiro Manifesto. Nele os Irmãos da Fraternidade da Rosa-Cruz
se dirigiam aos governantes, religiosos e cientistas europeus. Após terem
saudado a época feliz que vira tantas descobertas feitas por espíritos
esclarecidos, eles enfatizaram que elas não haviam trazido à humanidade a luz
e o bem-estar a que este aspirava. Censuraram os homens de ciência, mais
preocupados em seus sucessos pessoais do que com o fato de colocarem a sua
competência a serviço da humanidade. E apontaram o dedo contra aqueles que
aferravam às velhas doutrinas, os defensores do Papa, da filosofia de Aristóteles
e da medicina de Galeno, aqueles que se recusavam a questionar. Os Irmãos da
Rosa-Cruz evocavam a oposição que reinava entre a Teologia, a Física e a
Matemática. Após esse “inventário” de sua época, os Irmãos da Rosa-Cruz se
propuseram a oferecer a seus contemporâneos um conhecimento regenerador.
Esse conhecimento de axiomas infalíveis lhe vinha do pai C.R., o fundador de
sua fraternidade que lhe lançara outrora as bases de uma reforma universal
(Rebisse, 2004).
Pai C.R tratava-se de um jovem alemão que o
Confessio informaria ter nascido em 1378. Christian
Rosenkreutz. Aos dezesseis anos ele acompanharia
um irmão do convento encarregado de sua educação
numa peregrinação ao Santo Sepulcro de Jerusalém.
Esse périplo ao Oriente foi para ele uma verdadeira
jornada iniciática. Seu companheiro faleceu em
Chipre. A mitologia fazia dessa ilha o lugar de
nascimento de Afrodite, cuja união com Hermes dera
nascimento a Hermafrodito. Essa alusão a Chipre na
biografia de Christian Rosenkreutz não deixava de ter
conotação alquímica (Rebisse, 2004).

A despeito da morte de seu companheiro, Christian Rosenkreutz decidiu


continuar a viagem. Mas mudou o destino para ir a Damcar. Esta cidade,
contrariamente ao que às vezes se diz, não era Damasco e sim Damcar, uma
cidade do sudoeste da península arábica, como indica o Atlas de Mercator. É
também mencionada por Abraham Ortelius em seu Theatrum Orbis Terrarum
como uma cidade da “Arábia Feliz”. Essa região do Iêmen, célebre por seu
incenso, foi a sede do Ismaelismo. Era conhecida por ter preservado o Corpus
Hermeticum. Damcar tinha uma universidade que não contava menos de
quinhentos estudantes. Por incentivo dos Irmãos de Basra ela deu origem a
uma importante enciclopédia que reunia todos os tipos de conhecimento,
fossem de natureza científica ou esotérica. Henry Corbin, que se interessou
muito por esse ramo do Islamismo muito matizado de Esoterismo, comprazia-
se em imaginar um diálogo entre os Irmãos da Rosa-Cruz e os “Irmãos de
coração puro” de Basra. Via nas duas fraternidades um projeto similar. Émile
Dantine fizera uma observação da mesma natureza um pouco antes. Em
Damcar, Christian Rosenkreutz encontrou magos que lhe transmitiram
conhecimentos importantes, especialmente em Física e Matemática, a ponto de
que ele se tornou capaz de transcrever para o latim o Livro M, isto é, o Livro do
Mundo. Ao cabo de três anos de estudo ele retomou a viagem e depois, após
uma breve estadia no Egito, foi a Fez, no Marrocos (Rebisse, 2004).

Fez era um centro onde muitos intelectuais se encontravam e que tinha


ricas bibliotecas. Desde a época omíada (661) ali se ensinava Alquimia, Magia e
Astrologia. Léon, o Africano (século XVI), informou que em Fez se praticava
uma forma de Teurgia que, a partir de uma espécie de pentáculo circular
traçado no solo, permitia abordar os mundos invisíveis. Fama Fraternitatis nos
indica que “a magia desses habitantes de Fez não era absolutamente pura”. O
que impressionou particularmente Pai C. R. foi o espirito de partilha que reinava
entre os homens de ciência daquela cidade, contrariamente ao que ocorria na
Alemanha, onde cada qual procurava “manter toda a manjedoura para si”.
Naquela cidade, Christian Rosenkreutz aperfeiçoou seus conhecimentos sobre
a harmonia dos ciclos da História. Compreendeu também que o microcosmo
contém o macrocosmo com todos os seus componentes, por analogia, visão
similar à de Paracelso em seu Philosophia sagax: “neste sentido, o ser humano
também é uma pevide e o mundo é o seu pomo, e o que vale para a pevide no
pomo vale também para o ser humano no mundo de que ele está cercado”. Após
isto, Christian Rosenkreutz fez contato com os “habitantes elementares que lhe
passaram seus segredos”. Em contato com os elementais da natureza, o homem
poderia aprender os segredos dela (Rebisse, 2004).

Após esse périplo iniciático, Christian Rosenkreutz voltou à Europa.


Deteve-se na Espanha para propor aos homens de ciência do seu tempo que
compartilhassem o que ele aprendera durante suas viagens. Mas logo se deu
conta que eles não queriam reavaliar os seus conhecimentos. Espanha nesse
contexto foi o símbolo dos homens fechados numa doutrina que não desejavam
recolocar em questão com o risco de verem sua autoridade contestada (Rebisse,
2004).

Decepcionado com a atitude fechada


dos estudiosos espanhóis e após ter sofrido as
mesmas críticas em outros países, Christian
Rosenkreutz voltou à Alemanha. Lá passou a
registrar por escrito o acervo de
conhecimentos que colhera no Oriente. Seu
objetivo era criar uma sociedade capaz de
educar os príncipes da Europa para que eles
se tornassem guias esclarecidos. Após cinco
anos de trabalho, Christian Rosenkreutz
cercou-se de seus primeiros três discípulos
para ajudá-lo em seu projeto. Juntos
redigiram a primeira parte do Livro M. Depois
a Fraternidade aumentou com mais quatro irmãos. Instalou-se então uma nova
casa denominada “Morada do Espírito Santo”. A Fraternidade permaneceu
discreta e Christian Rosenkreutz faleceu aos cento e seis anos, em 1484. Em
1604, muito tempo depois da morte daquele primeiro grupo de rosacruzes, os
Irmãos encontraram fortuitamente o túmulo de Christian Rosenkreutz quando
faziam trabalhos em seus prédios. Na porta de seu túmulo havia a inscrição:
“Eu me abrirei dentro de cento e vinte anos”. Nesse jazigo, concebido como um
“resumo do universo”, eles descobriram uma quantidade de objetos científicos
até então desconhecidos e textos que continham todo o saber outrora colhido
pelo mestre (Rebisse, 2004).

A descoberta de um túmulo misterioso contendo manuscritos era um


tema frequente na literatura alquímica. Neste particular, o caso de Basile
Valentim, em que foi descoberto um manuscrito no altar da igreja de Erfurt, é
famoso. A descoberta do túmulo de Christian Rosenkreutz lembra a de Apolônio
de Tiana, o qual descobrira no túmulo de Hermes Trismegisto a famosa Tábua
Esmeraldina e um livro explicando os segredos da Criação. Esse simbolismo
sugere a ideia de que é preciso visitar as entranhas da terra para encontrar a
pedra filosofal. Gerhard Dorn, em Congeries Paracelsiae Cemiae (1581), deu
esse sentido ao Vitríolo. Além disso, a Tábua da Esmeralda que Hermes tem
em suas mãos não deixa de representar o livro
chamado “T” que aparece entre as mãos de
Christian Rosenkreutz (Rebisse, 2004).

A sala onde se encontrava o túmulo de C.R.C.


tinha a forma de uma cúpula heptaédrica. Como
observou Frances Yates, a disposição do túmulo
lembrava a porta do Anfiteatro da Sabedoria
Eterna de Heinrich Khunrath (1603). Situado no
centro do jazigo, o túmulo em que repousava o
corpo perfeitamente conservado de Christian
Rosenkreutz tinha forma circular. Era revestido de uma placa de cobre amarela
na qual havia fórmulas enigmáticas. Dentre os diversos escritos que lá
constavam, é importante destacarmos o Livro T que ele tinha nas mãos, bem
como o que era denominado de Vocabulário de Theoph. P. ab Ho. Este texto é
provavelmente um dos dicionários do
vocabulário de Paracelso, em especial um
publicado por Gerhard Dorn em 1584, um
discípulo de Paracelso. Cabe notar que
Paracelso é o único autor a quem Fama
Fraternitatis se refere. Além disso, os
temas que são desenvolvidos nesse
Manifesto provêm em grande parte de suas
obras ou das obras de seus discípulos. Por
outro lado, podemos enfatizar que a
concepção de Alquimia que se encontra no
primeiro Manifesto é puramente espiritual,
vendo o trabalho dos sopradores, moda que na época tomava conta da
Alemanha, como um trabalho “preliminar de pouca importância” (Rebisse,
2004).

Após terem recolhido os tesouros de conhecimentos que constavam no


túmulo de Christian Rosenkreutz, os Irmãos da Rosa-Cruz o fecharam.
Confiantes nessa herança baseada em
axiomas imutáveis, eles se sentiram em
condição de levar a efeito a “reforma geral
divina e humana”, outrora visualizada pelo
mestre. Assim como os Irmãos da Rosa-
Cruz haviam descoberto um tesouro de
conhecimento após terem quebrado a
parede que ocultava a entrada do túmulo,
assim também, quando tivessem
derrubado suas velhas crenças, que eram
como paredes bloqueando seu avanço, e
adotado um novo saber, a Europa veria se
abrir uma nova era. Mas, como declarava
Fama Fraternitatis, o conhecimento
proposto pelos rosacruzes não era novo, tratava-se de um saber perdido que
alguns homens se haviam incumbido de perpetuar. O primeiro manifesto dá
então os nomes de alguns daqueles que teriam sido os transmissores da
Tradição Primordial, nomes que lembram os citados por Marsilio Ficino em um
contexto semelhante (Rebisse, 2004).

O Manifesto terminava com um


convite aos homens de ciência e aos
soberanos da Europa para se unirem à
Fraternidade Rosacruz a fim de
compartilharem seu conhecimento
reformador. Esse apelo foi, no entanto,
estranho, na medida em que foi dito que
“embora não tenhamos efetivamente
indicado nem o nosso nome nem o nosso
local de reunião, é certo que as opiniões de
todos, em qualquer língua que sejam
redigidas, virão a nós”. O texto indicava que
o endereço dos rosacruzes deveria
“permanecer virgem, intacto, incógnito,
cuidadosamente oculto, para toda a
eternidade, aos olhos do mundo ímpio”. A
mensagem seria entendida e cartas abertas aos rosacruzes seriam impressas
em diversos pontos da Europa, como a que foi publicada no final do primeiro
Manifesto Rosacruz. De fato, Fama Fraternitatis terminava com uma carta, a
que Adam Haselmayer publicara em 1612 com o título de Resposta à louvável
Fraternidade dos teósofos rosacruzes, após ter lido o manuscrito do Manifesto
que já circulava. Chegou-se a se pensar que Adam fosse um personagem mítico,
mas Carlos Gilly conseguiu reconstituir a biografia desse paracelsiano, grande
colecionador de manuscritos alquímicos (Rebisse, 2004).

Adam Haselmayer tinha tanto entusiasmo por Fama Fraternitatis que


pediu ao arquiduque Maximiliano uma subvenção para partir em busca dos
rosacruzes. O texto de sua Resposta ao Manifesto Rosacruz fazia dos rosacruzes
os arautos da era do Espírito Santo e considerava que eles eram “aqueles que
Deus elegera para propagar a eterna verdade teofrástica e divina”. Anunciava
que o ano 1613 marcaria o fim dos tempos e que o Grande Julgamento ocorreria
em 1614. Ele pensava então que se tornara inútil frequentar a Igreja. Esta
atitude logo o tornou suspeito de heresia. Por se recusar a se retratar, foi
condenado às galeras em outubro de 1612. Aí permaneceu durante quatro anos
e meio. Parece, entretanto, ter gozado de condições especiais, visto que durante
esse período permaneceu em contato epistolar com várias personalidades
apaixonadas por Alquimia (Rebisse, 2004).
Confessio Fraternitatis

No ano seguinte ao da publicação da


Fama Fraternitatis, 1615, a gráfica Wilhelm
Wessel lançou em Kassel um segundo
Manifesto. Como o precedente, que fora
publicado em anexo às Notícias do Parnaso,
este foi editado na sequência de um outro
texto: Secretioris Philosophiae Consideratio
Brevis a Philippo a Gabella..., ou seja, Breve
consideração da mais secreta filosofia,
escrita por Philippo a Gabella, estudante
de filosofia, publicada pela primeira vez
com a Confessio da Fraternidade R.C.
revelada. O autor desse texto continua
desconhecido. Na introdução ele indicou que
se tratava de um tratado de Filosofia,
observando “que ele é enriquecido por atos,
os estudos e o saber da Fraternidade da
R.C.”. Seguia-se um curto prefácio, assinado
“Frater R.C.”, onde o autor indicava que tirara completamente essa
Consideração de Hermes, Platão, Sêneca e outros filósofos (Rebisse, 2004).

Essa “Breve Consideração” tratava-se de


uma adaptação de uma obra de John Dee (1527-
1608), a Monas Hieroglyphica (1564). Nesse livro,
o líder da Renascença elisabetana se propunha
explicar em vinte e quatro teoremas um
hieróglifo: a “Mônada”. Segundo Pierre Béhar, a
Mônada, além de seu aspecto mágico, era
também um símbolo alquímico que designava a
pedra dos alquimistas, o mercúrio dos sábios. À
maneira de Agrippa, de que era leitor assíduo,
Dee compusera esse caractere mágico baseando-
se na Geometria Sagrada. A “Breve
Consideração” foi composta a partir dos treze
primeiros teoremas da Monas. Todavia, o termo
“monas” não foi mantido, pois foi substituído por
Stellla. O autor dessa Consideração se apresentou como um eminente
espagirista que desejava combinar os teoremas de John Dee com os
ensinamentos de Basile Valentim sobre o Vitríolo. Seu texto era uma espécie de
tratado de Alquimia designado a ensinar o estudante a se nutrir da mais bela e
mais flagrante das flores: a rosa. Ele lhe ensinava a fazer mel com o néctar dessa
flor sem se ferir em seus aguçados espinhos. Esse texto se encerava com uma
prece assinada “Philemon R.C.”. O símbolo composto por John Dee seria
retomado no terceiro Manifesto Rosacruz, As Núpcias Alquímicas de Christian
Rosenkreutz (Rebisse, 2004).
O primeiro Manifesto anunciava a publicação próxima de uma Confissão
em que seriam enunciadas trinta e sete causas pelas quais a Ordem revelava a
sua existência. O segundo não deu essas razões, mas se apresentou como um
complemento que se pretendia mais claro ao reformular “os trechos um tanto
insondáveis e obscuros do Ecos”. Confessio Fraternitatis, ou Confissão da
insigne confraria do mui honrado R.C. dirigida aos homens da ciência da
Europa, tinha catorze capítulos, divisão que não seria mantida nas edições
seguintes. Nesse texto, os rosacruzes enfatizavam que possuíam o antídoto para
a doença que corroía a ciência e a filosofia, pois tinham a chave de todos os
conhecimentos, quer se tratasse das artes, da filosofia, da teologia ou da
medicina. Davam também novas informações quanto às fontes do seu saber,
indicando que ele não proveria unicamente das pesquisas por Christian
Rosenkreutz, mas também das revelações que ele obtivera por iluminação
divina, graças aos serviços dos anjos (Rebisse, 2004).

De modo geral, pode-se dizer que esse novo Manifesto tinha um aspecto
milenarista. Após o otimismo proclamado pelo primeiro, que via abrir-se uma
nova era enriquecida pelo advento de um novo conhecimento, Confessio pareceu
mais pessimista. Com efeito, anunciou que o mundo estava “prestes a atingir o
estado de repouso (...) após a conclusão do seu período e do seu ciclo”. Esse fim
dos tempos era o do Milênio, o período de mil anos que se sucederia aos seis mil
anos já decorridos, segundo a profecia de Elias, pois os rosacruzes receberam a
missão de acender “o sexto candelabro”. Essa época corresponde à terceira era
de Joaquim de Flora, a era do Espírito Santo, em que o sexto selo acabaria de
se abrir. Os rosacruzes apresentavam sua revelação como uma derradeira graça
oferecida por Deus “ao mundo cujo fim em breve adviria”. Ela permitiria à
humanidade desfrutar durante algum tempo uma “vida e uma magnificência
semelhante às que Adão perdera e desperdiçara no Paraíso”. Confessio
Fraternitatis retomava aqui um elemento presente no primeiro Manifesto, a
“revelação primordial” que Adão teria recebido após a Queda. Entenda os
derradeiros tempos como apresentados nos Manifestos como uma “meta-
história”, expressão proposta por Henry Corbin, ou seja, não se trata de um
evento próprio do tempo humano, mas de um tempo do espírito, vivido no
interior de uma alma regenerada pela iluminação (Rebisse, 2004).

O segundo Manifesto Rosacruz também evocou um tema abordado na


Fama Fraternitatis, o do Liber Mundi, evocando “os grandes caracteres e letras
que o Senhor Deus gravara do céu e da terra”. Tem-se aí um aspecto essencial
do pensamento de Paracelso. Para ele, o único livro fundamental juntamente
com a Bíblia era o Livro da Natureza. Com efeito, as “letras que Deus não
cessara de incorporar à Bíblia sagrada, Ele as imprimira igualmente com toda
clareza nas maravilhosas criaturas que são os céus e a terra e todos os animais”.
A ideia segundo a qual a natureza seria a chave de tudo o que existe, de que ela
não seria um sistema mecânico de leis e sim uma realidade viva com a qual o
homem deveria entrar em diálogo com objetivo de “co-naissance”, foi tirada de
Paracelso (Rebisse, 2004).
Confessio também insistia na importância da Palavra revelada e exortava
a se fazer dela “uma leitura aplicada e permanente”. Proclamava que não
existira desde o começo do mundo livro como a Bíblia. Como a Fama, o
Confessio vilipendiava o papa, acusando-o de tirania e anunciando a sua
derrota. Essa postura, que se compreende perfeitamente num meio protestante
que considerava o papa como o Anticristo, seria causa da forte hostilidade do
Catolicismo em relação ao Rosacrucianismo. Sem dúvida para atenuar o elogio
da civilização árabe apresentado anteriormente, o segundo Manifesto criticou
também Maomé. Todavia, essa última menção pôde ser retomada em
Naometria, que condenava “o papa e seu filho de perdição, Maomé” (Rebisse,
2004).

Também voltou às críticas formuladas contra pseudo-alquimistas no


primeiro Manifesto. Para os rosacruzes, a verdadeira Alquimia deveria levar a
um “conhecimento da natureza”, mas ele era secundário, pois o essencial seria
empenharmos “nossos esforços na aquisição da inteligência e da ciência da
filosofia” (Rebisse, 2004).

Confessio Fraternitatis anunciou que, à semelhança dos sábios de


Damcar, os rosacruzes estavam “encarregados de organizar o governo da
Europa”. Afirmavam que dispunham de um plano estabelecido neste sentido
por Christian Rosenkreutz. Como no primeiro Manifesto, convidavam os
homens do seu tempo a se associarem à fraternidade e propunham aos
buscadores que se unissem a eles para construírem uma “nova fortaleza da
verdade”. Prometeram a todos aqueles que quisessem ser iniciados a herança
de todos os bens da natureza, saúde, onisciência e quietude interior. Não
obstante, advertiam àqueles que “ofuscavam o brilho do ouro” e que queriam
unir à sua fraternidade com o objetivo de tirar proveitos materiais que eles
jamais seriam escolhidos a ingressar nela (Rebisse, 2004).

Bodas Alquímicas de Christian Rosenkreutz

Em 1616 surgiu As Núpcias Químicas de


Christian Rosenkreutz, livro considerado como o
terceiro Manifesto Rosacruz. Foi publicado em
Estrasburgo, por Lazare Zetzner, o editor do
Theatrum Chemicum e de muitos tratados de
Alquimia (Rebisse, 2004).

Esse texto era muito diferente dos dois


primeiros Manifestos. Em primeiro lugar, embora
tivesse sido publicado anonimamente, tem-se uma
maior certeza de que Johann Valentin Andreae foi
com certeza unicamente o seu autor. Depois, ele
tem uma forma especial: apresenta-se como um
romance alquímico, uma autobiografia de Christian Rosenkreutz (Rebisse,
2004).
A despeito do importante desenvolvimento das ciências que marcou
aquela época, a Alquimia conservou uma grande vitalidade. Contribuiu par
enriquecer as reflexões dos buscadores, o que fez Frank Greiner dizer que a
“invenção do mundo moderno não procedeu do triunfo da mecânica e sim
encontrou também alguns de seus fermentos nos alambiques dos fazedores de
ouro e dos extratores da quintessência”. No século XVII, a Alquimia expandiu
as suas perspectivas. Pretendeu ser uma ciência unificadora, incluiu aplicações
médicas e desenvolveu uma dimensão mais espiritual. Procurou também se
inscrever numa reflexão sobre a história da Criação, da cosmogonia trágica que
implicou, não somente a queda do ser humano, mas também a da natureza.
Assim, o alquimista foi o médico do ser humano; ajudou-o a se regenerar, a
renascer para sua condição espiritual, mas foi também médico da natureza.
Como indicou São Paulo, a Criação está em exílio e sofrimento e espera do ser
humano sua libertação. Gerhard Dorn, discípulo de Paracelso, é um dos
representantes típicos dessa evolução. Foi nesse movimento, tão rico em
publicações, que se inscreveu as Bodas Alquímicas (Rebisse, 2004).

Nesse texto, Christian Rosenkreutz é um ancião de oitenta anos e é ele


quem conta a aventura. Trata-se do relato dos sete dias em que ele assistira a
núpcias régias. Em 1459, convidado por um mensageiro alado, ele sairá do seu
eremitério situado na encosta de uma
montanha para ir a este matrimônio. Após
alguns périplos, chegara ao cume de uma
alta montanha, antes de cruzar três fossos
sucessivos. Ali então, como os demais
convidados, fora submetido à prova da
balança e julgado virtuoso o bastante para
participar do casamento. Os escolhidos
receberam um tosão de ouro e foram
apresentados à família real (Rebisse,
2004).

Quando se espera assistir a um


casamento, é a decapitação da família real
que Christian Rosenkreutz descreve. Os
sarcófagos reais são depois embarcados
em sete navios, que partem para uma ilha longínqua. Chegados ao destino, são
depositados numa curiosa construção de sete andares: a Torre do Olimpo
(Rebisse, 2004).

A sequência do relato nos faz assistir a uma estranha ascensão dos


convidados pelos sete andares da Torre. A cada etapa, sob a direção de uma
mulher e um ancião, eles participam de operações alquímicas. Procede-se a uma
espécie de destilação dos despojos reais, da qual se recupera um líquido que
logo dá origem a um ovo branco. Deste nasce uma ave que é depois engordurada
para em seguida ser decapitada e reduzida a cinzas. Com esses resíduos, os
convidados fazem duas pequenas estátuas. Esses homúnculos são nutridos até
que alcançam o tamanho de adultos. Uma última operação lhes transmite a
chama da vida. Os dois homúnculos são nada mais nada menos que o rei e a
rainha, que despertam novamente para a vida. Pouco depois, estes últimos
recebem seus convidados na Ordem da Pedra de Ouro, e todos voltam para o
castelo. Mas Christian Rosenkreutz, em seu primeiro dia no castelo, cometera
uma indiscrição. Entrara no mausoléu onde Vênus jazia adormecida. Essa
indiscrição lhe acarretara a condenação de se tornar o guardião do castelo. A
sentença não parece ter sido cumprida, pois o relato se encerra bruscamente
com o retorno de Christian Rosenkreutz à sua morada. O autor dá a entender
que o eremita, que tinha oitenta e um anos, tinha apenas alguns anos para
viver. Este último elemento parece contradizer Fama Fraternitatis, que indica
que Christian Rosenkreutz teria vivido até a idade honorável de cento e seis
anos. Além disso, outros pontos do relato mostram um Christian Rosenkreutz
bastante diferente daquele que é apresentado nos primeiros Manifestos
(Rebisse, 2004).

Como salienta Bernard Gorceix, o texto de Johann Valentin Andreae traz


a marca da cultura do século XVII, a do barroco, onde a alegoria, a fábula e o
símbolo ocupam lugar proeminente. Para ele, este Manifesto é uma obra
importante da história da literatura, sendo um dos melhores testemunhos da
emergência do barroco do século XVII. Nele se encontra o gosto pelo maravilhoso
e o primado do ornamento. O castelo onde se realizam as núpcias é suntuoso.
Seus jardins refletem o interesse da época pelos parques ornados de fontes e
coisas automáticas. Nesse relato eles servem de decoração para várias cenas,
em particular uma das mais intrigantes, a do julgamento, em que os convidados
passam um a um por uma balança que mede a sua virtude. O autor nos faz
assistir a estranhos desfiles de virgens veladas, mal perturbadas pelas flechas
de um Cupido um tanto indisciplinado. Aí se encontram animais fabulosos:
licornes, leões, fênix, etc. A roupa dos diversos personagens é luxuosa e,
durante o relato, algumas passam do preto ao branco e ao vermelho, seguindo
o estágio da transmutação alquímica em curso. Festas e banquetes, servidos
por criados invisíveis, pontuam o relato. A música, por vezes interpretada por
músicos invisíveis, acompanha a narração. Trompetes e tímpanos marcam a
mudança na decoração ou a entrada em cena dos personagens. O texto está
salpicado de poemas e a ação geral é interrompida por uma peça de teatro. O
humor também não está ausente desse tratado de Alquimia. O relato inclui
também inscrições criptografadas e um enigma cifrado que Leibniz se esforçaria
para decifrar (Rebisse, 2004).

No ano seguinte à publicação deste Manifesto, o alquimista Ratichius


Brotoferr publicou Elucidarius Major..., livro em que tentou estabelecer
relações entre os setes dias de Núpicas e as etapas da obra alquímica. Não
obstante, declarou que o texto de Johann Valentin Andreae era obscuro. O texto
não se assemelha às obras do opus alquímico. Não é um tratado didático e seu
objetivo não é descrever as operações do laboratório. Roland Edighoffer
mostrou que a narrativa de Johann Valentin tinha notável semelhança com um
livro de Gerhard Dorn: Clavius totius philosophiae chimisticae. O livro desse
discípulo de Paracelso foi publicado em 1567 e depois integrado ao tomo I do
Theatrum Chemicum editado por Lazare Zetzner em 1602. Nesse texto,
Gerhard Dorn indicou que a purificação que o alquimista operava na matéria
poderia também ser realizada no próprio ser humano. Seu livro põe em cena
três personagens que representam as diversas partes do ser humano: corpo,
alma e espírito. Os três dialogam numa encruzilhada, para decidir quanto ao
caminho que devem seguir para chegarem a três castelos situados numa
montanha. O primeiro desses castelos é de cristal, o segundo de prata e o
terceiro de diamante. Após algumas peripécias e uma purificação na fonte do
Amor, esses personagens ascendem as sete etapas que marcam o processo de
regeneração interior do ser. É espantoso constatar que se tem aí o essencial da
trama da narrativa de Núpcias (Rebisse, 2004).

Como epígrafe do Manifesto, Andreae indica


que “os arcanos se corrompem quando são
revelados; e, profanados, perdem sua graça”. De
fato, os mistérios iniciáticos perdem o seu valor
quando passam somente pelo filtro do intelecto.
Nessas condições, como tentar analisar uma
obra que nos interessa aqui sem corromper a
sua virtude? Decerto não temos a pretensão de
revelar os seus arcanos, mas pareceu-nos
importante sublinhar alguns temas importantes
que estão presentes neste romance iniciático
(Rebisse, 2004).

O casamento sagrado, a hierogamia, tem um


lugar importante nos mistérios antigos. No
Cristianismo, como em São Bernardo, essa temática se desenvolveu em seus
comentários sobre os Cânticos dos Cânticos. Em seu Tratado do Amor de Deus,
ele descreve o itinerário da alma rumo às esferas superiores, cuja etapa final é
a das núpcias espirituais. Esse simbolismo teria um grande desenvolvimento
entre os místicos reno-flamengos, notadamente entre os beguinos e em Jan Van
Ruysbroek, autor de O Ornamento das Núpcias Espirituais (1335). Para muitos
autores, como Valentin Weigel, o tema das núpcias espirituais está ligado ao da
regeneração e do novo nascimento. Para eles, o simbolismo alquímico se
acrescenta ao do Cristianismo.

De modo geral, as núpcias reais ocupam um lugar importante na


Alquimia e C. G. Jung mostrou que elas estão particularmente bem adaptadas
para descrever as fases do processo de individuação. O casamento do rei e da
rainha representam a união das duas polaridades do ser, o animus e a anima,
levando à descoberta do Si Mesmo. Carl Gustav Jung expôs suas pesquisas em
vários livros, sendo o mais representativo Psicologia e Alquimia. Contudo, foi
em seu Mysterium conjonctionis, estudos sobre a separação e a reunião dos
opostos psíquicos na alquimia (1954) que ele achou que levaria mais longe a
sua pesquisa. Nessa obra, Bodas Alquímicas foi um elemento fundamental de
sua reflexão. Contrariamente ao que indica o título, o texto não fala de um
casamento. Pelo menos a cerimônia das núpcias não é descrita no romance,
cuja ação se cristaliza em torno da ressurreição de um rei e de uma rainha.
Como para São Bernardo e os autores das épocas precedentes, foi das núpcias
do ser, entendidas como um processo de regeneração, que Andreae tratou em
seu livro (Rebisse, 2004).

O local das núpcias está situado em uma montanha. No simbolismo


tradicional, esse local, ponto de encontro entre a terra e o céu, é o da morada
dos deuses e da revelação. Escalar a montanha é partir em busca de si mesmo
e compreender a ascensão para o absoluto. A mensagem de convite levada por
Christian Rosenkreutz indica que ele
deve alcançar o cume de uma montanha
coroada por três templos. No entanto, na
sequência da narrativa, é de castelos que
se trata. Ele cruza dois portais e chega ao
castelo onde se desenrolam os
preparativos para a transmutação.
Depois, é num terceiro lugar, numa torre
situada numa ilha, que a grande obra é
realizada. Aqui se encontra o tema do
castelo da alma de que falam Mestre
Eckhart e Santa Tereza d’Ávila. Para eles
a busca da alma é muitas vezes
apresentada como a conquista de um
castelo. Os textos alquímicos combinam
os dois elementos descrevendo um
castelo numa montanha. Mas o templo –
ou castelo – situado numa alta montanha
pode também ter um aspecto escatológico
e evocar o templo vindouro a que se
referiu Ezequiel em suas visões. Após a
destruição do templo e da cidade de
Jerusalém, os judeus foram deportados para a Babilônia. Foi então que o
profeta teve a visão de um templo vindouro. Ele traçou um paralelo entre o exílio
dos judeus e a saída do ser humano do Paraíso. Essa destruição do Templo
provocou a retração de Deus para fora da Criação, tornando-se Ele então o único
“lugar” onde o ser humano poderia prestar culto. Mas Ezequiel anunciou o
estabelecimento de um novo templo, um terceiro, que coincidiria com a
restauração da Criação. O profeta descreveu este templo como situado numa
“alta montanha”. Declarou que o arquétipo desse templo pré-existia no mundo
supraterrestre. Essa visão teria grande influência sobre os essênios e seria a
origem de toda a literatura apocalíptica. Johann Valentin Andreae também teve
oportunidade de trabalhar sobre temas escatológicos com Matthias Hafenreffer
e em Robert Fludd se encontra a ideia de um templo escatológico. Para este, a
montanha onde está erigido esse templo não é outra senão a da iniciação. Como
mostrou Roland Edighoffer, As Núpcias contém numerosos aspectos
escatológicos e trabalham com um conjunto de elementos simbólicos que
evocam as ideias de périplo e elevação (Rebisse, 2004).

O número sete cumpre um papel fundamental neste Manifesto. A ação se


desenrola em sete dias e envolve sete virgens, sete barcos; a transmutação final
se realiza num atanor situado no ápice de uma torre de sete andares. Embora
isso não fosse uma constante, os alquimistas com frequência dividiam o
processo de elaboração da grande obra em sete fases. Gerhard Dorn fala nos
sete graus da obra. Como mostrou o
professor Ioan P. Couliano, a teoria
segundo a qual o processo de
elevação da alma tem sete etapas está
presente em numerosas tradições.
Suas pesquisas mostraram que,
segundo uma tradição grega também
encontrada em Dante, Ficino e Pico
Della Mirandola, essa ascensão rumo
ao êxtase se efetua através de sete
esferas planetárias. Ele descobriu
também uma outra foram de
ascensão segundo uma tradição que
remonta à Babilônia e que passou
depois para a literatura apocalíptica
judaica e cristã, bem como para o islã,
na qual se evoca sete etapas rumo ao êxtase espiritual, sem referência direta
aos planetas. Este elemento também é encontrado no Hermetismo. No primeiro
tratado do Corpus Hermteticum, Poimandrès, após ter abordado a cosmogonia
e a queda do ser humano, fala nas sete etapas da re-ascensão da alma através
da armadura das esferas. Descreve as sete zonas que a alma, após a dissolução
do corpo material, deve cruzar para se purgar de seus defeitos e de suas ilusões,
antes de ascender ao Pai. Essa ascensão é abordada como a ascensão ao
Olimpo. Curiosamente, em Bodas Alquímicas a torre onde se realiza as sete
fases alquímicas tem por nome Torre do Olimpo. Essa noção setenária se
encontra igualmente na tradição cristã, notadamente em São Bernardo, que
Andreae apreciava muito. Aliás, ele tomou emprestado a esse Padre da Igreja a
temática de seu sermão para o quinto domingo após Pentecostes para escrever
o sonho que contou no primeiro dia de As Núpicas. Nesse sonho, Christian
Rosenkreutz é fechado numa torre na companhia de outros homens. Os
utensílios que os convidados recebem para passarem de um andar para o outro
da Torre do Olimpo no sexto dia – a corda, a escada e as asas – foram
emprestados do simbolismo de São Bernardo. Encontra-se referência aos sete
estágios da vida interior em dois autores elogiados por Johann Valentin. O
primeiro, Stephan Praetorius, pastor em Salzwedel, fala em “justificatio,
santificatio, contemplatio, applicatio, devotio, continentia, beneficienta”. O
segundo, Filipe Nicolai (1556-1608), foi um pioneiro da “nova piedade”, que,
ao evocar as núpcias místicas, descreveu as sete fases que marcam a
regeneração da alma (O Espelho das alegrias da vida eterna, 1599) (Rebisse,
2004).

No final do sétimo dia de As Núpcias, Christian Rosenkreutz foi sagrado


“Cavaleiro da Pedra de Ouro”. Esse título lhe deu domínio sobre a ignorância, a
pobreza e a doença. Todo cavaleiro prestava juramento prometendo consagrar
a Ordem à Deus e à sua serva, a Natureza. Com efeito, como indiciou Johann
Valentin Andreae, “a Arte serve à Natureza” e o alquimista participava tanto na
sua própria restauração quanto na da natureza. Num registro ele escreveu estas
palavras: “A ciência suprema está em nada saber”. Esta frase se refere à “douta
ignorância” preconizada por Nicolau de Cusa (1401-1464). Este, colocando-se
na linha de Proclo, Dionísio o Aeropagita e Eckhart, opôs-se à lógica
racionalista. A “douta ignorância” não consiste, como frequentemente se pensa,
em rejeitar o conhecimento e sim reconhecer que o mundo, sendo infinito, não
pode ser objeto de conhecimento total. Nicolau de Cusa preconizava a gnose, o
conhecimento iluminador, único capaz de transcender o mundo das aparências
para compreender a coincidência dos opostos (Rebisse, 2004).

As Fontes dos Manifestos

Numerosos buscadores se perguntaram quem eram os autores dos


Manifestos Rosacruzes. Na realidade, essa questão estava diretamente ligada às
fontes onde teriam sido colhidas as ideias de que haviam expressado. Eles se
valem essencialmente de três correntes da tradição: o Paracelsianismo, o neo-
joaquimismo próprio dessa época e o Hermetismo da Renascença. Nota-se,
entretanto, no que concerne ao Hermetismo Renascentista, que a ênfase dada
é à Alquimia, pois a Cabala Judaica ou Cristã teve neles um lugar ínfimo. Outras
influências são evidentes, como a do tempo, apresentado como cíclico. Esses
textos bem poderiam se referir ao Ismaelismo de que Damcar era um dos centros
(Rebisse, 2004).

A maioria dos especialistas atuais concorda em pensar que eles não


tenham sido obra de um só homem e sim de um pequeno grupo de estudantes
e buscadores de Tübingen, cidade de Würtemberg, denominado o “grupo” ou
“círculo de Tübingen”. Ele teria sido formado por volta de 1608 e seria
constituído de umas trinta pessoas apaixonadas por Alquimia, Cabala,
Astrologia, Naometria e Mística Cristã. Teria incluído: Johann Arndt, Johann
Valentin Andreae, Tobias Hess, Abraham Hölzel, o pastor Vischer, Christoph
Besold e Wilhelm von Wense, para citarmos apenas os mais importantes. Eles
conceberam um projeto de uma nova reforma, complementar às de Lutero e
Calvino, que consideravam insuficientes. Dois deles, Tobias Hess e Abraham
Hölzel, tinham se envolvido anteriormente num movimento que fizera circular
nas universidades obras de Esoterismo (Rebisse, 2004).

Johan Arndt (1555-1621), que Johann Valentin Andreae tinha como seu
pai espiritual, poderia ter sido o mentor do grupo. Pastor, teólogo, médico,
alquimista, apaixonado por Tauler e Valentim Weigel, foi o autor de um
comentário das pranchas do Anfiteatro da Sabedoria Eterna de Heinrich
Khunrath. Segundo sua carta de 29 de janeiro de 1621 ao duque de Brunswick,
ele queria desviar os estudantes e buscadores da teologia polêmica, para
conduzi-los de volta a uma fé viva, a uma prática de piedade. Místico e
alquimista, tentou integrar a herança paracelsiana à teologia medieval e, sem
seus livros, desenvolveu a ideia de uma Alquimia interior, de um renascimento
espiritual. Escreveu um dos textos de devoção mais lidos até o século XIX: Os
Quatro Livros do Verdadeiro Cristianismo (Rebisse, 2004).

Roland Edighoffer mostrou que todo um trecho de Confessio Fraternitatis


que evocava o Livro da Natureza reproduzia quase palavra por palavra um
excerto do último volume dos Quatro Livros de Arndt. Em De Antiqua Filosofia,
ele insistiu no fato de que não é na especulação que reside a sabedoria e sim na
prática, ideia reencontrada nos Manifestos. Ele é tido como um dos
incentivadores do pietismo (Rebisse, 2004).

Tobias Hess (1558-1614) foi um dos membros mais importantes do


círculo de Tübingen e mesmo o seu inspirador. Suas preocupações ecoam
perfeitamente os diversos pontos presentes nos Manifestos. Membro da
Universidade de Tübingen, médico paracelsiano, cabalista, filósofo, admirador
de Simon Studion, de Julius Sperber e de Joaquim de Flora, teve provavelmente
um papel fundamental na redação dos dois primeiros Manifestos. Em 1605, fora
acusado de praticar a Naometria e perseguido por ter feito promoção do
milenarismo em publicações em que expressava a favor de uma reforma
mundial. Foi também acusado de ter sido o promotor de uma sociedade secreta
(Rebisse, 2004).

Tobias Hess estava ligado a Oswald Croll, um discípulo de Paracelso.


Graças aos seus talentos de médico, Tobias teria curado Valentin Andreae de
uma terrível febre, de modo que este último o adorava muito. Faleceu em 1614
e Johann Valentin Andreae fez seu panegírico fúnebre. Esse texto foi depois
impresso e curiosamente, como salienta Roland Edighoffer, tem dois nomes em
itálico, “Tobias Hess” e “Fama”, como se sugerisse uma ligação entre os dois.
Em 1614, Andreae publicou anonimamente “O Invólucro da glória do espírito”,
indicando no prefácio que se tratava de um livro de Tobias Hess. Ora, vinte e
oito trechos também existem no Confessio. Mais tarde ele admitiria em sua
autobiografia que todos os textos que apareceriam no “Invólucro” eram dele
(Rebisse, 2004).

Já em 1699, em sua “História da Igreja e dos Heréticos”, Gottfried Arnold


apontava Johann Valentin Andreae como autor dos Manifestos Rosacruzes. E
cabe dizer que se trata aqui de um personagem particularmente interessante.
Ele, no entanto, contestou que estivesse ligado à Fraternidade Rosa-Cruz e num
dos seus livros, Menippus (1617), falou muito severamente do Rosacrucianismo,
que chamou de “ludibrium”, isto é, de farsa, zombaria. Todavia, como indicou
Frances Yates, estes termos não são necessariamente pejorativos da boca de
Andreae, pois este dava grande importância à influência moral dos contos e do
teatro. Aliás, sua produção literária inteira atesta este interesse. Devemos
acrescentar que em toda a sua vida ele se empenhou em organizar sociedades
ou associações que correspondiam em muitos pontos aos projetos apresentados
nos Manifestos. Parece que foi essencialmente para proteger a sua carreira
religiosa que ele assumiu oficialmente uma posição contrária aos Manifestos. E
cabe dizer que um acaso de calendário fez coincidir a publicação de Fama
Fraternitatis com o momento em que ele afinal conseguia, após ter enfrentado
muitos problemas, um posto de diácono em Vaihingen-sur-Enz, onde desposou
Elisabeth Grüninger, filha de um pastor e sobrinha de um prelado luterano
(Rebisse, 2004).

Ele veio de uma ilustre família de teólogos. Seu avô, Jakob Andrae, foi
um dos redatores da fórmula da Concórdia, um elemento marcante da história
do protestantismo. Em reconhecimento por seus méritos, o conde palatino Otto
Heinrich lhe concedera um brasão. Jakob o compôs associando a cruz de Santo
André, correspondente ao seu patronímico, a
quatro rosas, por deferência para com Lutero,
cujo brasão continha uma rosa. O brasão de
Lutero pode ser descrito assim: no centro se
encontra uma cruz negra evocando a
mortificação e lembrando que a fé no Cristo
ressuscitado é redentora. Essa cruz repousa no
centro de um coração vermelho, símbolo da vida.
Este último está colocado numa rosa branca,
emblema da alegria e da paz. O conjunto é
cercado de um anel de ouro que simboliza a vida
eterna. É possível que esse brasão tenha sido
inspirado nos escritos de São Bernardo, que
Lutero apreciava muito. Com efeito, em seus
sermões sobre o Cântico dos Cânticos, Bernardo recorreu muitas vezes à
imagem de uma cruz unida a uma flor, ao evocar as núpcias da alma com Deus.
Notemos que o brasão de Lutero constitui uma Rosacruz e, como já dissemos
antes, muitos pesquisadores indagaram sobre a relação entre Martinho Lutero,
a Reforma e o Rosacrucianismo, sem se encontrar uma resposta definitiva
(Rebisse, 2004).

Desde a infância, Johann Valentin Andreae foi acalentado pela Alquimia.


Seu pai, pastor em Tübingen, tinha um laboratório e seu primo, Christoph
Welling, também era apaixonado por essa ciência. Como seu pai, ele fez estudos
em Teologia. Ligou-se ao teólogo Johann Arndt, que o considerava como seu
filho espiritual e teria grande influência sobre ele. Johann Arndt pertencia â
linhagem de Valentin Weigel, a qual tentava realizar uma síntese entre a mística
reno-flamenga, o Hermetismo da Renascença e a Alquimia paracelsiana.
Johann Valentin era também amigo de Tobias Hess. Ele próprio se dedicou à
Naometria quando, em Tübingen, ajudou seu mestre e protetor, o teólogo
Matthias Hafenreffer, a desenhar as pranchas de um estudo sobre o templo de
Ezequiel. Andreae interessou-se muito pelo papel mediador dos símbolos na
experiência espiritual. Muito marcado pela mística, é considerado um dos
precursores do pietismo (Rebisse, 2004).

O autor dos Manifestos via no teatro um meio interessante de levar seus


contemporâneos a refletir e algumas de suas obras foram influenciadas por esta
visão. Foi o caso de Turbo, uma peça em que se nota a primeira aparição de
Arlequim no palco alemão. Essa peça, editada no mesmo ano de Bodas
Alquímicas, fazia referência à Alquimia. Foi uma obra importante, que serviria
de modelo para Fausto de Goethe. De modo geral, fosse em Teologia ou em
ciência, era o saber útil que interessava a Johann Valentin e não as vãs
especulações. Com seu amigo Comenius, ele foi aliás um dos renovadores da
pedagogia do século XVII. Em 1614, foi nomeado pastor sufragâneo de
Vaihingen. Tornou-se depois superintendente em Calw, depois pregador e
conselheiro no consistório de Stuttgart. Após ter passado por diversos cargos,
encerrou sua vida como abade de Adelberg, cidade onde faleceu em 1654
(Rebisse, 2004).

Deixou uma obra muito importante. Foi em 1602-1603, quando tinha


apenas dezessete anos, que ele fez seus primeiros ensaios de autor. Escreveu
duas comédias sobre Ester e Hyacinto, bem como uma primeira versão de Bodas
Alquímicas. Esse manuscrito desapareceu, então pouco se sabe sobre ele. Não
obstante, é interessante reforçar que os símbolos da rosa e da cruz
absolutamente não estão presentes no romance. Sabe-se também que Andreae
havia revisado seu texto para a edição de 1616. É interessante assinalar que no
ano em que ele publicou As Núpcias Alquímicas fez aparecer seu editor O
Invólucro da Glória do Espírito. Este livro retomou vinte e oito trechos do
Confessio. Entretanto, ele substituiu o nome de Christian Rosenkreutz pelo de
Christian Cosmoxene e não pareceu aderir a todas as ideias apresentadas nos
primeiros textos rosacrucianos. É bom lembrar que, no ano em que Fama
Fraternitatis foi editado, Johann Valentin Andreae propôs a criação de uma
Societas Christiana, um grupo que, em certos pontos, assemelhava-se ao
projeto formulado nos Manifestos. Durante toda a sua vida ele não cessou de
criar sociedades eruditas, como o círculo (ou cenáculo) de Tübingen, ou
organizações de caráter social, como a Fundação dos Tintureiros, que ainda
existe hoje em dia (Rebisse, 2004).

Hiero-História do Rosacrucianismo

O personagem apresentado nos Manifestos como o fundador do


Rosacrucianismo tratar-se-ia de um personagem real ou mítico? Embora
indiquem isso, esses textos não relatam a biografia de um homem, pois trata-
se de descrições iniciáticas que apresentam vários aspectos. Muitos elementos
concorrem para mostrar que os Manifestos eram relatos simbólicos. Por
exemplo, as datas importantes da vida de Christian Rosenkreutz correspondem
todas a eventos marcantes da História. 1378, ano do seu nascimento,
corresponde assim ao ano do grande cisma do Ocidente que opôs Avignon a
Roma. Quanto ao da sua morte, 1484, corresponde ao ano do nascimento
daquele que iria tentar reformar o Cristianismo, Martinho Lutero. De fato,
mesmo que na realidade se considere que este nasceu em 1483, a própria mãe
de Lutero hesitava entre 1483 e 1484 e Lutero optou por 1484. É também
significativo constatar que, em 1484, teriam sido colocados no túmulo de
Christian Rosenkreutz escritos relacionados aos textos de Paracelso. Ora, este
último ainda não havia escrito nada, dado que só nasceria em 1483. Devemos
acrescentar que o tema da descoberta de um túmulo é um símbolo recorrente
na tradição e que a jornada de Christian Rosenkreutz é um relato da jornada
que seguiram as diversas ciências do Esoterismo para passarem do Oriente para
o Ocidente. Com efeito, os Manifestos podem também ser lidos como um relato
de uma experiência espiritual. É verdade que se inserem em um contexto
histórico indiscutível, mas, como todo relato iniciático, estão ligados a uma
meta-história que transcende a mera cronologia. Deixamos aqui o campo da
História para nos colocarmos num outro nível cujas características é preciso
definir para se compreender o alcance dos Manifestos (Rebisse, 2004).

Do ponto de vista estritamente


histórico, a Ordem da Rosa-Cruz só
apareceu a partir do século XVII.
Para Paul Sedir, “a Ordem da Rosa-
Cruz só adquiriu este nome na
Europa e no século XVII. Não se pode
dizer que nomes ela teve em outros
lugares, nem anteriormente nem
posteriormente. (...) Quanto à Rosa-
Cruz essencial, existe desde que há
seres humanos aqui em baixo, pois ela é uma função imaterial da alma da
Terra”. Cônscio da insuficiência de suas próprias pesquisas, ele achava que as
origens reais da Fraternidade da Rosa-Cruz não eram para serem procurada em
pergaminhos, posto que ela não tem base na Terra e sim no Invisível (Rebisse,
2004).

Um estudo da origem das ordens iniciáticas que se baseasse unicamente


em seus aspectos objetivos e cronológicos poderia levar ao historicismo, ou seja,
a uma visão essencialmente positivista e reducionista de sua gênese. Para
Mircea Elíade, “a história das religiões, da mais primitiva às mais elaboradas,
constitui-se de um acúmulo de hierofanias, pelas manifestações das realidades
sagradas”. O mesmo acontece com as escolas iniciáticas. Sua história está
radicada em experiências numênicas (Rebisse, 2004).

René Guénon tentou definir a Iniciação como a transmissão de uma


influência espiritual cuja fonte é supra-humana; mas continuou impreciso
quanto às origens desta fonte, que situou em tempos imemoriais. Evocou duas
modalidades dessa transmissão: uma vertical, que desceria diretamente do
invisível para a humanidade, e a outra horizontal, que seria a retransmissão
desse acervo sagrado de iniciado para iniciado. A maioria daqueles que estudam
a história das escolas iniciáticas geralmente se contenta em evocar a filiação
horizontal, pois é verdade que a primeira permanece incompreensível para o
historiador. Assim fazendo eles com frequência limitam a questão da filiação
iniciática ao nível de uma administração que fornece certificados e diplomas.
Outros, como Henry Corbin, privilegiam a transmissão vertical e consideram a
experiência mística (e por que não dizer gnóstica?), a filiação espiritual, um
critério fundamental da validade tradicional (Rebisse, 2004).

Existem semelhanças entre as biografias de certos fundadores de


correntes espirituais e a de Christian Rosenkreutz, como bem apontou Paul
Arnold. Henry Corbin foi mais além. Observou em primeiro lugar manifestações
de “imagens primordiais” resultantes de uma mesma experiência espiritual.
Evocou então o princípio de uma fonte comum através de uma filiação, não
terrestre e sim celestial, com raiz no mundus imaginalis (mundo imaginal).
Henry Corbin se esforçou para explicar o sentido deste mundo em suas muitas
obras e, em particular, nas que dedicou ao grande filósofo e místico do Irã
islâmico, Shihâboddin Yahyâ Sohravardî (1155-1191). Hermes, Platão e
Zoroastro foram as figuras essenciais que alimentaram as reflexões desse
platônico do Islã xiita (Rebisse, 2004).

Sohravardî apresentou o mundo imaginal (âlam almithâl) como uma


dimensão situada entre as esferas puramente espirituais e materiais. Designado
teosoficamente como Malakût (o mundo da alma e das almas), o mundo imaginal
faz papel de mediador entre o mundo das formas e o das puras essências. É
denominado o “Oitavo Clima”, a “Terra das Cidades de Esmeralda” ou Hûrqalyâ.
Sohravardî falou dele como um mundo que é encontrado pelo peregrino do
espírito em suas experiências místicas. Para descrever o processo de elevação
da alma para esse plano de consciência, o simbolismo iraniano fala da ascensão
da montanha de Qâf. Trata-se de uma montanha cósmica cujo cume não é outro
senão o centro mais elevado da psique do ser humano. Nesse cume se encontra
o rochedo de esmeralda que colore a abóbada celeste de verde. É aí que reside
o Espírito Santo, o Anjo da humanidade. Para os sufis, a esmeralda é o símbolo
da alma cósmica. É bastante espantoso encontrar uma noção semelhante entre
os cabalistas cristãos. Com efeito, Johannes Pistorius, em De Artis
Cabbalisticae (1587) fala na “linha verde” do derradeiro céu, quando evoca a
Alma do Mundo. Este conceito também se encontra na Cabala Denudata de
Knorr von Rosenroth (1677) (Rebisse, 2004).

O mundo imaginal cumpre uma função ligada à experiência interior.


Segundo Sohravardî, é por meio de uma faculdade especial da alma, a
imaginação ativa, que o ser humano tem acesso a essa dimensão. O próprio
Paracelso evocava essa faculdade de imaginatio vera, a imaginação verdadeira,
que exortava a não se confundir com a fantasia, a “louca da casa”. O Rosarium
(século XIV) indica aliás que o opus alquímico deve ser realizado com a
imaginação verdadeira e Martin Ruland, em Lexicon Alchemiae (1612), diz que
“a imaginação é o astro no ser humano, o corpo celeste ou supraceleste”. Jacob
Boehme também evoca o mundo imaginal sob o aspecto do Santo Elemento, a
Alma do Mundo onde reside a Sophia (Rebisse, 2004).
O mundo imaginal nos interessa particularmente na medida em que,
como mostrou Henry Corbin, é a dimensão intemporal em que “se desenrolam”
os eventos relatados nos mitos, as grandes epopeias. É o “lugar” onde ocorrem
as visões dos profetas e dos místicos, onde os guias da humanidade recebem
sua missão. É também o “lugar” das iniciações. E ainda o das “filiações
espirituais cuja autenticidade não
depende da documentação, dos
arquivos”. Este mundo imaginal é um
ponto de junção entre os mundos
materiais e espirituais e é qualificado
como “terra das visões” e “terra da
ressurreição”, pois é nele que o
iniciado reencontra o seu corpo
glorioso, que torna possíveis as
núpcias da alma, o reencontro com
sua Natureza perfeita. Para
Sohravardî, aqueles que alcançam essa experiência espiritual se tornam
discípulos de Hermes (Rebisse, 2004).

Os peregrinos do espírito que alcançaram esse plano de consciência da


alma contaram em geral sua experiência através de relatos simbólicos. Estes se
tornaram os textos de fundação dos movimentos espirituais que nasceram à
sua esteira e têm diversas características. Primeiro, como indicou Henry Corbin,
não são mitos no sentido comum do termo; referem-se a eventos cuja realidade,
cujo tempo e cujo lugar não têm a natureza da alma da história profana e sim
do mundo imaginal, do mundo da alma. Resultam da hiero-história, isto é, da
história sagrada. Não é, portanto, seu sentido literal que importa compreender
e sim seu “sentido interno”, para retomarmos a expressão de Emmanuel
Swedenborg, e só a hermenêutica permite que apreenda o seu significado.
Depois, eles têm uma capacidade de transformação, pois são portadores de uma
luz que toca o âmago do leitor preparado para receber sua profundeza. É aliás
nesse sentido que eles são verdadeiramente relatos iniciáticos. Um dos mais
célebres desses textos é o que conta a descoberta do túmulo de Hermes
Trismegisto (Rebisse, 2004).

Vários historiadores observariam que Christian Rosenkreutz teria


aparecido no momento em que se eclipsava Hermes Trismegisto, cuja herança
é questionada por Casaubon (1614). Para Antoine Faivre, assiste-se então, com
Fama Fraternitatis, a uma nova fundação da Tradição Esotérica Ocidental.
Neste particular, é interessante constatar que o relato da descoberta do túmulo
de Christian Rosenkreutz lembra o do sepulcro de Hermes. Segundo Henry
Corbin, o relato em que Balînûs, isto é, Apolônio de Tiana, conta sua descoberta
do corpo de Hermes, é a tipificação do encontro do ser humano com sua alma,
sua “Natureza perfeita”. Hermes tem em sua mão a Tábua da Esmeralda e um
livro contendo os segredos da Criação. Esses elementos evocam a ideia segundo
a qual aquele que consegue conhecer a si mesmo, penetrando em suas próprias
profundezas, conhece os segredos de Deus e do universo (Rebisse, 2004).
Parece que o relato de Balînûs foi tirado de um trecho de Picatrix que
fazia Sócrates falar a respeito da Natureza perfeita. Este último, evocando o
testemunho de Hermes, indicou que ele reapresentava a entidade espiritual do
filósofo, o guia interior que abria os ferrolhos da sabedoria. Uma outra parte do
Picatrix continha uma prece apresentada como pertencente à uma liturgia
astral dos Sabeus de Harrân. Ela invocava Hermes enfatizando que, em árabe,
ele era chamado de “Otâred, em persa Tîr, em romaico Hârûs e em indiano
Bouddhâ”. Cabe acrescentar que esse encontro entre o ser humano e sua
Natureza perfeita é também evocado no prólogo do Corpus Hermeticum: o
Poimandrès (Rebisse, 2004).

O túmulo representa o lugar de transição para o outro mundo e


certos textos o associam à passagem para o mundo imaginal. Ele simboliza com
efeito o lugar da metamorfose do corpo em espírito, de sua ressurreição. Para
Carl Gustav Jung, representa também a descida às profundezas do
inconsciente. Os corpos dos dois mestres, Christian Rosenkreutz e Hermes
Trismegisto, descobertos em seus sepulcros, eram corpos de velhos. Jung
analisou a presença desse símbolo nos mitos,
nos contos ou nos sonhos, como a expressão
de um arquétipo: o do “velho sábio”.
Considerou que, quando o indivíduo atinge
certo estágio em sua busca, o inconsciente
muda de aspecto em sua vida interior. Aparece
daí em diante numa nova forma simbólica
representativa do Si Mesmo, o centro mais
profundo de sua psique. No caso de uma
mulher, passa a ser representado por uma
sacerdotisa, uma mágica, e no caso de um
homem passa a se manifestar geralmente na
forma de um velho sábio, de um iniciador.
Jung via também em Hermes o arquétipo do
processo alquímico, da iniciação. Associava
Hermes-Mercúrio ao inconsciente e fazia dele
um elemento de primeira importância no
processo de individuação, ou seja, da
descoberta do centro do ser: o Si Mesmo (Rebisse, 2004).

No final do último volume de sua obra magistral, “No Islã Iraniano”,


Henry Corbin se estendeu sobre as semelhanças existentes entre as biografias
ou textos daqueles que foram os fundadores de certos movimentos espirituais.
Observou aí temas comuns, como a noção de Amigos de Deus, a cor verde, a
ideia de ciclos, repetições reveladoras de uma mesma experiência espiritual. Aí
se encontra com frequência a referência à viagem para o Oriente, a descoberta
de um túmulo, ao projeto de criar um movimento espiritual à margem da religião
oficial, uma espécie de cavalaria laica, e mesmo uma cavalaria espiritual
agrupando os Amigos de Deus (Rebisse, 2004).
Henry Corbin enfatizou que um dos pontos que diferenciam o Islã xiita
do Islã sunita é a ideia de ciclos da revelação divina. Para os xiitas, o ciclo dos
profetas teve início no momento em que Adão saiu do Paraíso e em que seu filho,
Seth, recebeu seu grande acervo – Gabriel lhe passou também um manto de lã
verde. Esse período se encerrou com Maomé, o Selo dos profetas. Um novo
período começou então, pois o Verbo continuou a circular na Criação: foi o ciclo
da walâyat, que teve por objeto a revelação do Esoterismo da profecia. Aqueles
que transmitiram estavam presentes como cavaleiros e eram denominados
“Amigos de Deus”. Trata-se dos seres que alcançaram uma elevada realização
espiritual, homens perfeitos, verdadeiras epifanias de Deus. Eles são
necessários para temporizar o desequilíbrio da Criação que perdeu sua relação
com a Divindade (Rebisse, 2004).

Um dos maiores representantes do sufismo iraniano, Rûzbehân Baqlî


Shîrâz (1128-1209), disse a propósito disso: “São os olhos pelos quais Deus
ainda olha para o mundo”. O tema da amizade divina é também encontrado nos
Evangelhos. São João indica: “Já não vos chamo servos, porque o servo não
sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo
quanto ouvi do meu Pai vos tenho dado a conhecer” (Rebisse, 2004).

A expressão “Amigos de Deus” é encontrada no Ocidente, onde designa o


grupo fundado por Rulman Merswin depois de seu encontro como “o Amigo de
Deus do Alto-País”, um misterioso viajante. Essa pequena comunidade, que
Jean Tauler frequentaria, escolhera sua sede em Estrasburgo, num lugar
chamado Ilha Verde. Esse nome não deixaria de evocar a sede secreta do “Imã
oculto” cujo retorno nos tempos escatológicos o islã xiita aguarda e que é
também denominado a Ilha Verde. Rulman Merswin pensava que a época dos
claustros estava terminada, que era preciso criar um outro tipo de estrutura,
uma ordem de um gênero novo que não fosse composta de clérigos. É de se
notar que quando da sua morte, em 1382, suas obras escritas em tabuletas de
cera seriam encerradas em seu túmulo (Rebisse, 2004).

Outras personalidades, como Tauler, Eckhart e aquelas que se


agruparam em torno de Suso, eram chamadas Amigos de Deus. Os discípulos
de Susan planejaram formar uma “confraria da Eterna Sabedoria”. Johann
Valentin Andreae também usou a expressão “Amigos de Deus” em Theca gladii
spiritus (O Invólucro da glória do espírito) (1616), um livro que retomou muitas
passagens de Confessio Fraternitatis. No pensamento dos personagens ou dos
grupos que vimos de evocar, o título de Amigos de Deus designa geralmente
eleitos, guias da humanidade, aqueles que tiveram uma experiência
iluminadora (Rebisse, 2004).
No islã, a noção de Amigo de Deus
corrobora o tema da cavalaria espiritual. A
confraria ismaelita da’wat, com a qual os
Templários iriam estabelecer relações, tinha aliás
o aspecto de uma ordem de cavalaria. No xiismo
encontra-se a mesma ideia de uma cavaleira
comum às três religiões do Livro. Para Henry
Corbin, a ideia dessa “cavalaria espiritual” tem
raiz numa religião do Irã pré-islâmico: o
Zoroastrismo. Refere-se aos primeiros instantes
da Criação, a uma missão dada a certos seres, os
Fravartis, para reestabelecerem a harmonia do
mundo. Esta noção, que não é possível explanar
aqui por falta de espaço, está ligada à da natureza
inicial do ser humano, sua Natureza perfeita, sua
dimensão de Homem de Luz que ele reconquista
por uma experiência mística (Rebisse, 2004).

Aqueles que viveram esse tipo de experiência, os iluminados no


sentido nobre do termo, são aqueles que reencontraram Elias, o iniciador
espiritual. Segundo uma tradição sufi proveniente do Iêmen, Kherz-Elias é o
iniciador dos owaysî, discípulos que receberam sua iniciação por uma
experiência espiritual sem
passarem por um mestre
terrestre. É útil indicarmos que
esse Kherz (ou Khidr, ou al-
Khadir, conhecido na Índia como
Khawadja Khidr) é muitas vezes
identificado como Hermes
Trismegisto ou Seth. Segundo a
tradição, ele reside onde os
oceanos celeste e terrestre se
tocam. Diz-se que seu manto
adquiriu a cor verde depois que
ele se banhou na fonte da vida.
Esse Kherz é apenas uma designação da Natureza perfeita, o anjo do
conhecimento, ou seja, da natureza mais luminosa do ser humano, seu mestre
interior. Essa experiência faz aqueles que a vivenciaram entrarem numa
linhagem de cavalaria espiritual (Rebisse, 2004).

Encontram-se traços dessa cavalaria espiritual nos diversos personagens


que vimos de evocar. Mais ou menos na época em que Joaquim de Flora (século
XII) empreendeu a fundação de uma ordem monástica no espírito do
Cristianismo primitivo, Wolfram von Eschenbach desenvolveu na Alemanha a
ideia de uma cavalaria comum à cristandade e ao islã. Seu Parzival, do qual
Richard Wagner fez Parsifal, tem aliás origem num texto árabe que Kyôt o
Provençal teria colhido em Toledo. Essa versão da lenda do Graal é de origem
iraniana. É admirável constatar que o Graal
de Parzival é uma pedra preciosa sobre a qual
desce a pomba do Espírito Santo. Uma
tradição declara que se trata de uma
esmeralda na qual foi entalhada a taça do
Graal (Rebisse, 2004).

O estudo das biografias dos diversos


Amigos de Deus que já evocamos aqui induz
a pensar que elas dão testemunho de todas
as experiências similares que as ligam a uma
filiação espiritual comum. Esta ideia
preocupou muito Henry Corbin e foi sobre
este assunto que ele terminou sua obra “No
Islã Iraniano”. Ele considerou que uma
mesma linha de força, mergulhando num
passado imemorial, dera nascimento no seio
do xiismo à ideia de uma cavalaria comum a toda a tradição abraâmica, assim
como fizera eclodir no Ocidente a ideia de uma cavalaria ecumênica agrupando
os cavaleiros da cristandade e do islã. Através desses personagens não veríamos
um plano comum aos partidários do Esoterismo Ocidental e Oriental? Não
veríamos aqui “o mais precioso segredo espiritual de todas as nossas tradições
ocidentais”? Essa cavalaria espiritual tem desígnios escatológicos e liga os
profetas, os eleitos, os guias, os iniciados que se empenham desde a origem da
Criação no advento do Alvorecer que há de trazer novamente a Luz ao mundo
(Rebisse, 2004).

Muitas tradições afirmam o fato de que a revelação divina que há de


iluminar totalmente o ser humano quanto aos desígnios de Deus vai se
escalonar por vários milênios. Esta ideia é encontrada no Judaísmo, no
Cristianismo e no Islamismo. O Judaísmo indica que o universo só existirá por
6000 anos, ao cabo dos quais Elias voltará para purificar o mundo antes da
vinda do Messias. Esse retorno é também evocado nos Evangelhos. Essa
profecia marcou também o século XII, com Joaquim de Flora, que distribuiu os
ciclos da revelação divina em torno das três pessoas da Trindade. Após a era do
Pai e a do Filho, ele anunciou a iminência do terceiro período da revelação, o do
Espírito Santo, que seria marcado pelo retorno de Elias. Ele veria a substituição
da Igreja de Pedro pela de João. Essas ideias de ciclos e do surgimento de uma
nova Igreja teriam grande influência sobre os movimentos místicos que
preconizavam uma religião interior, como o Rosacrucianismo e o Pietismo
(Rebisse, 2004).

Como mostrou Henry Corbin, a ideia de uma revelação se escalonando


em ciclos cumpriu também um papel importante no Islã. Aliás, ele enfatizou as
afinidades existentes entre a teoria das três idades do mundo do monge da
Calábria e a do Hexaemeron do Islã xiita. O princípio do Hexaemeron foi exposto
pelo filósofo iraniano Nâsir-e-Khosraw, um século antes que Joaquim de Flora
formulasse sua teoria. Ele fez um paralelo entre os seis dias da Criação e o
surgimento das seis grandes religiões (Sabeísmo, Bramanismo, Zoroastrismo,
Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). Cada uma dessas etapas foi marcada pela
vinda de um profeta que trouxe uma nova iluminação sobre a Divindade. No
entanto, esses seis dias formam apenas “a noite da religião” e no sétimo dia é
que será desvendado o sentido espiritual, esotérico, de todas as revelações. No
Islã há numerosos textos que desenvolvem esse tema, como A Sabedoria dos
Profetas de Ibn’Arabi (século XI), que vê nos profetas a tipificação dos degraus
da hierarquia do ser, ou o Roseiral do Mistério de Mahmûd Shabestarî (século
XIV), que vê aí a simbolização dos estados místicos. Por sua vez, Semnânî
(século XIV) ligou os profetas aos sete centros sutis do ser (Rebisse, 2004).

No século XII, os teósofos xiitas demonstram predileção pelo Evangelho e


pelo Apocalipse de João; eles eram joanitas. Aliás, identificaram a parusia do
décimo segundo imã com o Paracleto, o Espírito Santo anunciado por São João.
No século XVII, no momento em que florescia a Rosa-Cruz, a escola xiita de
Ispahan chegaria a identificar o Imã oculto (o décimo segundo) com Saoshyan,
isto é, o Salvador que, segundo o Zoroastrismo, deveria vir no final do décimo
segundo milênio para restaurar a Criação em sua luz original (Rebisse, 2004).

Como Henry Corbin, Nicolas Berdiaev mostrou que os ciclos da revelação


que vimos de evocar e de que falam os cristãos e os muçulmanos não devem ser
entendidos como etapas cronológicas. Não ressaltam da História e sim do que
eles chamam de “Hiero-História”, a história sagrada cujos eventos se situam no
mundo da alma, no mundo das hierofanias. Assim, eles acham que esses
períodos se referem a estágios do desenvolvimento interior do ser humano e não
a períodos da História. Os fatos históricos que se relacionam com eles são
apenas historiações de eventos da história sagrada, cujas manifestações são
destinadas a nos edificar. Além disso, enquanto certos homens estão nesse
estágio num primeiro nível de revelação, outros, aqueles que já tiveram a
experiência do Oitavo Clima, do mundo imaginal, já estão vivendo no tempo do
espírito, pois tornaram-se Amigos de Deus por sua experiência interior (Rebisse,
2004).

E é esse desenvolvimento que conduzem as ordens iniciáticas autênticas.


As experiências místicas de seus fundadores deram origem a grupos que são
ramos de uma mesma árvore ligados ao tronco de uma mesma cavalaria
espiritual. Jean-Baptiste Willermoz falava, nesse particular, numa “Alta e Santa
Ordem” que teria tido origem no começo do mundo. Quanto ao Rosacrucianismo
moderno, refere-se à Ordem invisível que é a Grande Fraternidade Branca, de
que a Ordem da Rosa-Cruz é apenas uma manifestação (Rebisse, 2004).
Também podemos falar aqui dos Irmãos do Oriente. É, portanto, nesse contexto
que se deve buscar sua fonte.

É verdade que essa origem não se demonstra com documentos e há de se


compreender que essa ideia seja rejeitada pelos historiadores de abordagem
materialista. Ele chocará menos aqueles que, numa linhagem de um Mircea
Elíade, convidem a uma nova visão da origem dos movimentos espiritualistas
esotéricos e iniciáticos. Neste ponto, os estudos de Henry Corbin se mostram
preciosos e esta é a razão pela qual fizemos referência a ele. Suas reflexões fazem
pensar que a biografia de Christian Rosenkreutz pode ser lida como um relato
visionário, à semelhança do relato da descoberta da Tábua da Esmeralda. Ela
não é a biografia de um homem que tenha existido e sim a história de um
personagem que remete ao mundo imaginal, esse mundo que Henry Corbin
considera como presente na possível fonte de todas as filiações inicáticas.
Assim, Fama Fraternitatis se coloca na linhagem dos relatos iniciáticos que,
desde o alvorecer dos tempos, engajam os seres humanos em se unirem à
fraternidade que age em sigilo para a restauração da Luz no mundo (Rebisse,
2004).

Há de se compreender então melhor o que queria dizer Michael Maier


quando apresentou o Rosacrucianismo como oriundo das espiritualidades
egípcia e bramânica, dos Mistérios de Elêusis e da Samotrácia, dos magos da
Pérsia, dos pitagóricos e dos árabes. Podemos, não obstante, sentir em que a
origem de um movimento iniciático transcende a história e se inscreve na hiero-
história, que não se lê nos documentos e sim no mundo da alma. Não dizia
Newton em seus escritos alquímicos que as verdades reais se encarnam nos
mitos, nas fábulas e nas profecias (Rebisse, 2004)?

Antes de enviarmos o próximo manuscrito pedimos novamente que


produza um texto, da mesma forma que nos dois manuscritos anteriores. Israel
Regardie disse: “Ao longo dos anos, tenho sido indagado sempre e sempre sobre
quais são as mais importantes qualidades que um estudante deve possuir ao
aproximar-se da Grande Obra. Além de uma inteligência normal e de
estabilidade emocional, eu considero duas outras qualidades como essenciais
ao sucesso. Elas são mais bem sintetizadas na seguinte citação (de Calvin
Coolidge, trigésimo presidente dos Estados Unidos): Nada no mundo pode
substituir-se à persistência. O talento não pode; nada é mais comum do que
homens malsucedidos com talento. O gênio não pode; o gênio não reconhecido é
quase um provérbio. A educação não pode; o mundo é cheio de instruídos
fracassados. Persistência e determinação, por si sós, são onipotentes”. Reflita
e remeta-nos um texto explicando porque as quatro qualidades em negrito
acima são tão caras àquele que busca a senda da Iniciação.

Fraternalmente,

A Irmandade dos Filósofos Desconhecidos


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HANEGRAAF, Wouter J. Western Esotericism: A Guide for the Perplexed.


Bloomsbury Academic, 2013.

REBISSE, Christian. Rosa+Cruz História e Mistérios. Biblioteca Rosacruz,


2004.

SMOLEY, Richard. Gnosticismo, Esoterismo e Magia. Madras Editora, 2004.

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