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CATOLICISMO, QUO VADIS?

Primeira publicação em
Cardoso Moreira-RJ, Brasil.
2021

1ª Edição

Todos os direitos da obra


Catoliciscmo, quo vadis? Os rumos da Igreja Católica.
reservados à Editora
www.editoraresistencia.com

Copyright do texto © Editora Resistência Acadêmica, 2021


Arte de capa — Paulo Victor Zaquieu-Higino

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

C366 Catolicismo, quo vadis? : os rumos da Igreja Católica /


organizadores: Paulo Victor Zaqueu-Higino, Péricles
Andrade, Rodrigo Portella. – 1. ed. – Cardoso Moreira, RJ :
Resistência Acadêmica, 2021.
152 p. : il., graf., tab.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-992639-2-7

1. Catolicismo. 2. Cristianismo. 3. Igreja Católica. I. Zaqueu-


Higino, Paulo Victor. II. Andrade, Péricles.
III. Portella, Rodrigo. IV. Título.

CDD 230.2
CDU 282
(Elaborada pela Bibliotecária Águida Heloiza Almeida de Paula – CRB-6/2191)
Paulo Victor Zaqueu-Higino
Péricles Andrade
Rodrigo Portella
(organizadores)

CATOLICISMO, QUO VADIS?


Os rumos da Igreja Católica
© 2021, Resistência Acadêmica Soluções Educacionais e Editorial
www.editoraresistencia.com
Brasil

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reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios
(eletrônicos ou mecânico, incluindo fotocópias e gravação) ou arquiva-
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Paulo Victor Zaquieu-Higino

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Conselho editorial
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Darlan Silveira Marum
Dênisson Glêison Martins da Silva
Marcelita Marques França
Maria Cecília dos Santos Ribeiro Simões Rodrigues
Mateus Fernandes de Oliveira Almeida
Pedrita Reis Vargas Paulino
Perícles Andrade
Queitilane de Souza Sales
Kelly Cristina Teixeira

____________________________________________________

Editado conforme o novo acordo ortográfico para capítulos escritos


por brasileiros/as e respeitada a ortografia nos capítulos escritos por
portuguêses/as
Aos que colaboraram com a realização do
Seminário Internacional de Estudos do Catolicismo:
equipe da organização, conselheiros científicos e conferencistas.
Sumário

Apresentação, 9
Paulo Victor Zaquieu-Higino

Prólogo, 13
Rodrigo Portella

1 O ethos católico: afinal, o que é o catolicismo?, 19


Maria Clara Lucchetti Bingemer

2 Catolicismo, modernidade e pós-modernidade, 45


João Manuel Duque

3 Catolicismo: quo vadis?, 61


Helena Vilaça

4 Rumos do catolicismo: a lógica da mudança/continuidade, 83


João Décio Passos

5 Catolicismo, tradição e instituição: uma reflexão a partir do


cruzamento dos dados do IBGE com os do CERIS, 103
Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol

6 Catolicismo social e moralização das relações de classe, 117


Joaquim Costa

7 Ensinamentos da pandemia para a nova visão teológico-


pastoral, 133
Alzirinha Souza
Apresentação

Paulo Victor Zaquieu-Higino


Doutorando em Ciência da Religião - UFJF

Crítico do modelo de catolicismo político adotado por


personalidades como Dom Hélder Câmara, Nelson Rodrigues,
refletindo as mudanças que culminariam no Concílio Vaticano
II, certa vez escreveu: “Um dia, o Brasil será o maior país ex-
-católico do mundo”. A profecia do escritor, parece estar em vias
de se consumar. É notório o declínio do número de católicos no
Brasil a cada Censo. Há previsões que, já em 2030, a religião
trazida pelos colonizadores deixe de ser majoritária. Contudo, o
catolicismo é ainda detentor de grande capital simbólico na cul-
tura brasileira, e, consequentemente, nas diversas dimensões da
sociedade que hoje ocupa a então Terra de Santa Cruz.
É nesta perspectiva, compreender a história e os
rebatimentos desta religião na atualidade, que surge o Núcleo
de Estudos do Catolicismo (NEC) registrado no CNPq e
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil.
Durante os debates ocorridos nas reuniões do grupo, surgiram
questionamentos: ainda há interessados em uma religião que,
apesar de seu patrimônio cultural, está “fora de moda”? O
catolicismo ainda desperta interesse da comunidade acadêmica?
Ou ainda mais: para onde caminha o catolicismo?
Questões como estas levaram o NEC a promover seu pri-
meiro Simpósio Internacional de Estudos do Catolicismo, reali-

9
zado virtualmente entre os dias 20 e 22 de outubro de 2020, com
o tema “Catolicismo: Quo vadis?”. O Simpósio visou a apresen-
tação de pesquisas e o debate acadêmico a respeito da religião
em suas diferentes formas de expressão e tendências na esfera
pública, bem como em seu elã interno, sobretudo quanto às dife-
rentes formas de permanências e rupturas demonstradas em suas
representações e práticas, tendo como principal escopo a questão
dos atuais rumos e destinos do catolicismo em seus dinamismos
internos e externos.
Reuniu, o Simpósio, pesquisadores e pesquisadoras de
diferentes instituições de pesquisa e ensino que têm, como foco
de suas investigações, questões relacionadas ao catolicismo a
partir de diferentes lastros teóricos e epistemológicos. Foram
298 inscritos de 122 instituições de ensino oriundas da Argenti-
na, Brasil, Espanha, Estados Unidos, Peru, Polônia e Portugal.
Além das conferências e mesas redondas, o evento con-
tou ainda com 88 comunicações orais divididas em 10 grupos
de trabalhos, dos quais, 53 resumos expandidos foram reunidos
nos Anais do simpósio. O primeiro Simpósio Internacional de
Estudos do Catolicismo também gerou este livro, que agora apre-
sentaremos, contendo textos de renomados e renomadas confe-
rencistas que enriqueceram o encontro com suas reflexões sobre
os caminhos do catolicismo.
No primeiro capítulo, Maria Clara Lucchetti Bingemer,
busca responder à questão: o que é ser católico? Para tal inten-
to, o ensaio parte da etimologia das palavras ethos e katholikos.
Entendendo o catolicismo como um cristianismo mediador, são
apresentadas e discutidas algumas das mediações: os sacramen-
tos, a transmissão dos testemunhos, o culto aos santos, a devoção
à Virgem Maria, o lugar da mística e a localização na história. Ao
final do texto, é apresentada a autocompreensão de catolicismo
que a Igreja romana adotou a partir do Concílio Vaticano II, que
impactou no catolicismo que hoje conhecemos, apesar das refor-
mulações editadas pelos papas desde então até Francisco.
O texto João Manuel Duque, oportunamente considerando
o contexto da pandemia, discute as configurações do catolicis-

10
mo e as possibilidades de existências modernas e pós-moder-
nas, tendo consciência dos limites que este conceito – catolicis-
mo – impõe a si mesmo, dado que não há, ao longo do tempo e
espaço uma configuração única. Mais ainda, a “catolicidade” é
compreendida pelo autor para além das expressões institucionais
e abstratas que se aglutinam no entorno da Igreja romana, mas
considera também outras configurações católicas de “habitar o
mundo”. Entre as grandes narrativas modernas e pós-modernas, a
meta-narrativa católica estaria possibilitando uma universalidade
em tempos de profundas fragmentações.
Com o título “Quo vadis”, Helena Vilaça apresenta um iti-
nerário do catolicismo ao longo da história desde o contato com o
Império Romano, passando pelas elaborações medievais, reações
à Reforma Protestante e a sociedade moderna “em seculariza-
ção”. Ao longo do percurso, são apresentadas as tensões com as
sociedades que influenciam os passos para o catolicismo nos mo-
mentos seguintes. Com uma parada na atualidade par reflexão, a
autora propõe reflexões acerca do próximo passo ou destino do
catolicismo, agora entendido como catolicismos - com os quais
a Igreja romana deve interagir - cada vez mais individualizados,
restringidos ao espaço cultural e aglutinados em três vertentes:
conservadora, liberal e carismática.
A análise das mudanças e continuidades nos rumos do
catolicismo a partir da Ciência da Religião é o tema no ensaio
de João Décio Passos. Neste capítulo, o autor convida o leitor
para um deslocamento hermenêutico: deixar a impressão de que
a relação entre conservação e renovação seja uma realidade no
catolicismo atual e, assumindo um posicionamento científico,
compreender que tal relação é constitutiva da religião católica.
Para tal proposta, são analisados os rumos históricos do catoli-
cismo, a lógica de autoconstrução e os polos de tensões presentes
que tecem seu futuro.
Partindo dos dados do IBGE e do CERIS, Carlos Alberto
Steil e Rodrigo Toniol contribuem com uma reflexão sobre as
transformações no catolicismo brasileiro, onde a tradição cató-
lica e a instituição católica romana se diferenciam. Na mesma
medida em que a transmissão do arcabouço católico encontra di-

11
ficuldades no Brasil, a instituição católica vem crescendo. Este
processo de destradicionalização do catolicismo se encontra em
marcha como atestam os dados, apresentados e discutidos ao
logo do capítulo. Se o número de católicos está em declínio, há
um notável crescimento no número de paróquias e de padres.
No ensaio intitulado “Catolicismo Social e Moralização
das Relações de Classe”, Joaquim Costa, buscando compreender
algumas transformações no catolicismo social em Portugal,
apresenta os resultados de sua pesquisa sobre três organizações
católicas: a Liga Operária Católica, a Juventude Operária Católica
e Associação Cristã de Empresários e Gestores. As duas primeiras,
ligadas à causa operária, estariam em declínio pela dificuldade de
se situar diante do processo de moralização da política e pela
emergência de um catolicismo social assistencialista, cuja última
organização é expressão.
  Completando o livro, Alzirinha Souza contribui com
uma reflexão teológico-pastoral do catolicismo após a pandemia
ocasionada pelo Covid-19. Considerando a complexidade do
catolicismo, expressa ao longo da história, a autora, com o
auxílio dos teólogos Bruno Forte e José Comblin, abre mão de
propor rumos para a Igreja católica e se dispõe a evidenciar dois
elementos constitutivos do cristianismo - solidariedade e a provi-
soriedade histórica - como balizadores no desafio de estabelecer
novas práxis para um catolicismo pós-Covid.
Ao compartilhar esta obra contendo reflexões de pesqui-
sadores e pesquisadoras do Brasil e Portugal, espera-se fomentar
ainda mais as discussões acerca da atuação e itinerários do cato-
licismo na sociedade em articulação com os desafios que a (pós)
modernidade impõe. Assim, desejamos contribuir para uma car-
tografia – sempre necessitada de atualização crítica – da religião
católica, aproximarmos de respostas, ainda que temporárias, à
pergunta feita pelo Simpósio Internacional de Estudos do Cato-
licismo:
Catolicismo, quo vadis?

12
Prólogo

Quo Vadis ?
Uma pergunta, várias respostas possíveis

Rodrigo Portella
Doutor em Ciência da Religião - Universidade Federal de Juiz de Fora
Professor Associado - Universidade Federal de Juiz de Fora

Quo vadis? Tal pergunta insiste em aparecer, no Evange-


lho de João, por pelo menos três vezes, a saber, em Jo 13, 36:
“disse-lhe Simão Pedro: ‘Senhor, para onde vais?’”; Jo 14, 5:
“disse-lhe Tomé: ‘Senhor, não sabemos para onde vais, como
podemos nós saber o caminho?’”; Jo 16, 5: “Jesus disse: ‘Agora
vou para aquele que me enviou, e ninguém de vós me pergunta:
para onde vais?’”.
Por primeiro a pergunta está na boca do líder dos apósto-
los, Pedro, reconhecido, pela Igreja Católica, como seu primeiro
Papa. Para efeitos econômicos vou me fixar, aqui, apenas neste
primeiro Quo Vadis, o de Pedro: “Domine, quo vadis”. Podería-
mos dizer que a Igreja, a comunidade cristã, representada por
Pedro, continuamente faz a Jesus esta pergunta, tem esta dúvida,
precisa, enfim, saber de seu mestre e Senhor o norte, os rumos de
Jesus e os caminhos que a ela cabe tomar em cada tempo e lugar.
E o contexto em que se encaixa a pergunta de Pedro é, ao mesmo
tempo, o da promessa de sua fidelidade, e o da realidade de sua

13
negação. Jesus responde que, para onde ele vai, Simão não pode
ir agora, mas irá mais tarde. Pedro, então, sempre impetuoso,
passional e senhor de si, responde: “Senhor, porque não posso
seguir-te agora? Eu daria a vida por ti!”, ao que Jesus responde
que, na verdade, Pedro irá negá-lo por três vezes.
Assim será um pouco a Igreja? Vivendo entre o desejo de
realizar, mesmo heroicamente, os ideais mais altos, os sacrifí-
cios mais necessários, a fidelidade mais ortodoxa e, no entanto,
conhecendo o peso da sua humanidade, de seus medos, dúvidas,
receios, titubeação e, no limite, negação, tal qual Pedro? Se sim,
vive ela sempre entre a angustiante pergunta a seu Senhor sobre
onde ele vai, no intuito de segui-lo, e os rumos que ela toma e
que, por vezes, se fazem ao largo dos caminhos de Jesus. Como
Pedro, a Igreja não teria entendido, tantas vezes, as respostas e
caminhos de seu mestre? Ou os teria sempre compreendido? Ou,
santa e pecadora como se define, viveria ela a eterna tensão entre
a força do ideal e a crueza da realidade?
Me parece que esta tem sido um pouco da história do cris-
tianismo como um todo e, aqui, particularmente, do catolicismo
em suas peculiaridades: a constante interpelação, por um lado,
da Igreja a Jesus, isto quer dizer, às suas fontes e tradição – e à
tradução delas pelo magistério - no sentido de discernir, por ve-
zes de forma agônica, sobre seus rumos, ou melhor, os caminhos
que seriam de seu Senhor em contextos e momentos históricos
sempre em transformação, a desafiá-la a respostas coerentes, ou
ao menos razoáveis em relação ao tesouro do evangelho, do qual
se entende como depositária e administradora; e, por outro lado,
a interpelação que Jesus, por sua mensagem registrada nas fontes
da tradição cristã, faz à sua comunidade em cada tempo e lugar
específicos.
A Igreja Católica sempre, em todos os tempos e lugares,
teve que lidar com esta pergunta, dela dirigida a Jesus e de Jesus
dirigida a ela: Quo vadis? Os estímulos ou provocações que a
cada tempo e lugar lançaram e lançam tal dúvida à comunidade
cristã e católica são vários. Em perspectiva histórica poderíamos
citar alguns: as denominadas heresias primitivas, ou, dizendo de

14
outra forma, pluralidades de hermenêuticas sobre o evento Jesus;
o diálogo com o mundo greco-romano; a Igreja tornada livre e
religião do Império; a queda do Império Romano, as invasões
bárbaras e as missões entre os povos exteriores ao antigo Impé-
rio; as diferenças entre mentalidades latina e oriental-grega; as
disputas a respeito das relações entre Estado e religião, poder po-
lítico e eclesiástico; a compreensão da alteridade religiosa repre-
sentada por judeus e muçulmanos; os desafios diante do antigo
mundo rural e de suas populações com seus atavismos religiosos
tradicionais, e diante do novo mundo urbano, comercial e bur-
guês que foi surgindo; as pestes e as desgraças de cada tempo;
os novos continentes que se descortinaram à evangelização de
povos; as reformas e cisões ocorridas no século XVI; as guerras
de religião; o Iluminismo; as revoluções políticas e a industrial; a
modernidade; o liberalismo e o capitalismo; o comunismo; tota-
litarismos; a ciência moderna e seus paradigmas; a emancipação
de povos, grupos sociais e identitários; a pós-modernidade; en-
fim, a história como um todo.
O quadro é bastante incompleto, mas já aponta para as
diversas circunstâncias em que o catolicismo se viu provocado
a discernir seus caminhos, em que foi preciso perguntar a seu
mestre, tal qual Pedro e Tomé perguntaram: afinal, quo vadis?
Se o discernimento do que a Igreja entendeu dizer Jesus em cada
um desses e de outros acontecimentos foi aos moldes do enten-
dimento e resposta de Pedro, ou se foi diferente, é questão a ser
discutida por teólogos e historiadores.
Fato é: o catolicismo sempre viveu as angústias das crises
e dos discernimentos que a história provocou a ele; nunca pôde
se furtar a se perguntar por qual caminho, por onde Jesus iria
nesta ou naquela situação. Ao menos presume-se, aqui, que de
que alguma forma esta pergunta sempre tenha estado no hori-
zonte da Igreja. Houve, certamente, ótimas e péssimas respostas
à pergunta capital pelo caminho a seguir; e sendo o catolicismo,
desde sempre, plural, interpretando-se como uno na diversidade,
houve, em cada tempo e lugar, respostas mais oficiais e respos-
tas mais periféricas a conviver, em harmonia, conflito ou síntese,

15
neste grande universo católico, uno e diverso a um só tempo.
A Igreja Católica entra no século XXI, entrementes, com,
por um lado, uma imensa bagagem de experiência e de memória
históricas sobre todos os desafios com que teve que lidar durante
vinte séculos e, não obstante, com um cenário que se lhe defron-
ta de também imensas dimensões, complexidades e desafios sui
generis.
Hoje os desafios que impelem o catolicismo ao seu Quo
Vadis são em tal número e em tal amplitude de setores da vida
e sociedade que chegam a causar vertigem até às almas mais
inabaláveis. Mas, como afirma o ditado alemão, “sem problemas
não há vida”.
Em resumo: a Igreja Católica, entendida ela de diversas
maneiras, sempre existiu através das crises e estas foram cons-
tituindo, através das respostas a elas dadas, a Igreja, isto é, o
cristianismo foi se definindo – sua doutrina, moral, ethos, culto –
por intermédio das crises que se debruçavam sobre ele. De certo
modo é possível dizer que as crises moldam a Igreja, fazem dela
o que ela é, participam de sua edificação.
E aqui, até agora, me referi, talvez idealmente e inocen-
temente, à Igreja entendida como a administradora oficial da
doutrina, à estrutura hierárquica e teológica que molda as faces
oficiais daquilo que entendemos como Igreja Católica. Nem vou
me arriscar, ou ousar, a falar daqueles que, reconhecendo-se ca-
tólicos – a grande multidão dos batizados em todos os tempos e
lugares - vivem sob tal égide, mas que, como pontuou certeira-
mente Michel de Certeau, “metaforizavam a ordem dominante:
faziam-na funcionar em outro registro. Permaneciam outros no
interior do sistema que assimilavam e que os assimilava exte-
riormente” (CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano.
Petrópolis, Vozes, 2000. P. 95). Isto é: a grande multidão de ca-
tólicos que faz o catolicismo ser, em cada tempo e lugar, sua
imagem e semelhança.
Para procurar discorrer um pouco sobre esta miríade de
ventos e rotas pelos quais pode singrar ou singra a barca de

16
Pedro é que o NEC, ao promover o simpósio do qual resultou
este livro, chamou para a reflexão sobre os caminhos atuais do
catolicismo especialistas de várias áreas que se debruçam so-
bre aquela que se compreende como sendo a noiva de Cristo.
Particularmente as visões da ciência da religião, das ciências
sociais e da teologia são acionadas, aqui, para a compreensão,
ainda que insuficiente, do que vai por esta instituição bimile-
nar e seus membros.
No mais, embora os desafios e caminhos do atual catolicis-
mo sejam múltiplos, quero, a título de exemplo, citar a questão
de fundo do catolicismo atual, que rema entre os mares da mo-
dernidade e pós-modernidade, e a eles responde de forma diver-
sificada: ora remando resolutamente ao encontro deste mar e de
suas vagas, ora remando a recuar dele em busca de um farol ou
porto em algum lugar distante dele, ou contra ele. E como con-
vém que, neste e noutros casos, se manifeste palavra e sapiência
mais provada e qualificada sobre o assunto, termino com uma
citação, talvez um pouco longa, mas necessária, do padre tcheco
Tomás Halík, retirada de seu livro A noite do confessor, que, lá
pelas tantas, diz assim:
“Ao observar a presente situação na extremamente polari-
zada Igreja Católica (imagino que a situação é muito semelhante
em algumas das outras principais Igrejas), sou incapaz de me
identificar com qualquer um dos dois extremos de opinião.
Não acredito minimamente que a solução para a presente
situação seja uma modernização da Igreja sobre a forma de libe-
ralização das suas estruturas e ensinamentos, isto é, a sua adap-
tação aos dias de hoje pedida por muitos nos média em alguns
movimentos de cristãos da Igreja.
Tem sido minha profunda convicção, desde há muitos anos,
que esse não é, na verdade, o caminho correto, embora eu seja a
favor de um calmo e sóbrio debate acerca das questões levanta-
das por grupos de católicos liberais, tal como o Nós somos Igreja,
e, sob certos aspectos, lhes dê razão, oponho-me radicalmente à
ideia, que reconheço não ser defendida por todos os membros

17
dessa tendência, de que a democratização e a liberalização das
estruturas, da disciplina e de certas áreas da doutrina moral da
Igreja trarão consigo uma nova primavera do cristianismo e afas-
tarão a crise da Igreja. Essa expectativa seria tão disparatada
como as expectativas e apelos opostos dos tradicionalismos a um
regresso ao triunfalismo pré-conciliar e ao travar de uma guerra
cultural contra o mundo moderno e os valores liberais.
No primeiro caso a Igreja dissolver-se-ia gradualmente no
contato interminável com a sociedade pós-moderna e nada teria
a oferecer; no segundo caso a Igreja em breve se transformaria
numa seita obsoleta de gente estranha e de botas de elástico; a
guerra cultural perder-se-ia antes ainda de ter começado. Em
ambos os casos a cruel frase de Karl Marx dizendo que a religião
é para aqueles que ainda não se encontraram a si próprios - ou
que se perderam de novo - muito provavelmente tornar-se-ia ver-
dadeira.
Creio que tanto os modernistas como os tradicionalistas
subestimariam, pura e simplesmente, o papel das formas institu-
cionais exteriores da Igreja. Muitos estão destinados a continuar
agarrados a essas estruturas tal com as crianças se agarram às
fitas do avental da sua mãe; muitos também continuam a rebe-
lar-se contra elas como filhos adolescentes contra os pais. Devo
admitir que tenho a maior simpatia por aqueles crentes que tra-
tam os aspectos institucionais da Igreja - os poderes vigentes - tal
como os adultos maduros tratam os seus pais já velhinhos; essa
relação traz consigo uma maior liberdade, mas também implica
mais responsabilidade” (HALÍK, Tomás. A noite do confessor.
A fé cristã numa era de incerteza. Prior Velho, Paulinas, 2014.
Pp. 202-203).

18
1

O ethos católico:
afinal, o que é o catolicismo?

Maria Clara Lucchetti Bingemer


Doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana
Professora titular - PUC-Rio

Se pedimos ao dicionário uma definição do que seja


“ethos” encontraremos a seguinte: forma comum de vida ou de
comportamento que adota um grupo de indivíduos que perten-
cem a uma mesma sociedade. Do grego antigo de onde provém,
a palavra ethos nos traz ἦθος ễthos, (plural ἤθη ếthê) e significa
o caráter habitual, a maneira de ser, os hábitos de alguém ou de
um grupo.
De ethos deriva o termo ética, sendo o estudo da ativida-
de ou conduta humana em relação com os valores. O ethos refe-
re-se ao modo de comportamento ou traços da conduta humana
que formam sua personalidade e caráter. A partir daí, foi o filó-
sofo Cícero quem tomou o adjetivo ético, referente ao costume e
cunhou o termo moralis, do qual derivou moral. Aristóteles, por
sua vez, entende ethos como a conduta adquirida por costume,
o qual conforma a personalidade. O ethos é uma criação do ser
humano desde o começo da vida em sociedade, que responde a
uma necessidade genuína de organização. É ainda a filosofia aris-
totélica que, no campo da Oratória e da Retórica, entende o ethos

19
como indispensável com o logos (a razão) e o pathos (a paixão).
Por outro lado, o que é catolicismo, ou melhor ainda, o
que significa a palavra católico? O termo “católico”, derivado
da palavra grega: καθολικός (katholikos), significa “universal”,
“geral” ou “referente à totalidade”. A palavra foi aplicada pela
primeira vez à Igreja de Roma no século II pelo bispo mártir e
padre apostólico Inácio de Antioquia. Ele, enquanto esperava o
martírio, escreve cartas onde denuncia as divisões entre os cris-
tãos. Na carta aos cristãos de Esmirna, cap VIII, 2, diz: “Ali onde
está o bispo, que ali esteja a comunidade, da mesma maneira que
ali onde está o Cristo Jesus, ali esteja a Igreja Universal (katho-
liké ekklesia).” Mais tarde, Tertuliano se opõe às dissidências
dos cristianismos heterodoxos como o de Marcion ou aos gnós-
ticos, inaugurando assim a literatura cristã em língua latina, que
não dispõe ainda de um vocabulário próprio para traduzir a ex-
pressão grega καθολικὴ ἐκκλησία (katholikê ekklêsia). É assim
que na literatura latina, o grego καθολικός não é traduzido por
seu equivalente latino, universalis, mas se encontra diretamente
transliterado em catholicus.1
A palavra adquirirá uma extrema importância desde que
integrou o símbolo (Credo) de Niceia, que declara: “Creio na
Igreja uma, santa, católica e apostólica”. É assim que o itinerário
semântico do termo catholicus permanece determinado pelo fato
de haver sido criado para qualificar especificamente a Igreja.
No século XVI, com a Reforma Protestante, o cristia-
nismo conheceu debates doutrinais dos quais emergiu uma plu-
ralidade confessional considerável. As polêmicas daí originadas
fizeram que o adjetivo “católico” identificasse a partir de então
uma confissão cristã entre outras. As enciclopédias e dicionários
assim como os livros de teologia vão então designar “catolicis-
mo” como a religião dos cristãos que estão em comunhão com o
papa e os bispos. Trata-se de um sinônimo de “catolicidade”, no
sentido de “conforme a doutrina católica”.2
1. http://www.e-cristianismo.com.br/wotkx/7-zip-free-download.html acessa-
do em 6/2/2021.
2. Ibid. Quando da Reforma Protestante, o cristianismo conheceu debates dou-

20
Aqui e agora, em tempos de ecumenismo e diálogo in-
ter-religioso, quase sessenta anos depois do Concílio Vaticano II,
como poderíamos entender então a pergunta que nos é proposta,
sobre o ethos do catolicismo e sobre o que significa finalmente,
ser católico? Como definir essa “diferença” cristã, que hoje não
quer ser muro de separação, mas sim via de comunhão com as
outras confissões cristãs e mesmo com outras religiões não cris-
tãs?
Seguiremos aqui alguns pontos que nos parecem impor-
tantes na compreensão desta questão: em primeiro lugar, refleti-
remos sobre o catolicismo como o cristianismo das mediações.
E entre essas mediações situaremos tudo aquilo que faz a tangi-
bilidade do ser católico, sua concretude e sua acessibilidade não
apenas pela interioridade e pela razão, mas igualmente pelos sen-
tidos; em seguida destacaremos algumas destas mediações que
nos parecem merecer uma maior atenção: a sacramentalidade, a
centralidade das testemunhas, o culto aos santos e aos mártires, a
devoção à Maria, a experiência mística, a inserção nas margens
e nos porões da história. Finalmente diremos algumas palavras
sobre o catolicismo a partir do Concílio Vaticano II mencionando
os papas que os protagonizaram para chegar até o pontificado do
atual Papa, Francisco com sua proposta de reforma de uma Igreja
que pretende retomar o marco do Concílio e o modelo de Igreja
em saída.

Catolicismo: um cristianismo de mediações


Ao centro do Cristianismo está o mistério da Encarna-
ção, que diz que o Deus de toda transcendência, que ninguém
poderia ver e continuar vivo, o Santo ao qual nada de terrestre ou
trinários dos quais emergiu uma pluralidade confessional. Escritos polêmicos
publicados após isso fazem com que o adjetivo “católico” identifique daí em
diante uma confissão cristã entre outras. O substantivo “catolicismo” apa-
rece no fim do século XVI, embora os dicionários históricos assinalem um
emprego da palavra que remonta a 1598, seguindo as confissões protestantes,
para designar a religião dos cristãos que estão em comunhão com o papa e os
bispos. Remete a catolicidade, no sentido de “conforme a doutrina católica”.

21
de humano teria acesso, ou poderia pensar em aproximar-se com
familiaridade se fez carne. Carne humana, nascida de mulher,
nascida sob a Lei, com nome próprio: Jesus de Nazaré. A partir
deste mistério fundamental está posta a mediação definitiva en-
tre Deus e a criação, sendo Jesus encarnado, vivo, morto e res-
suscitado proclamado pela primeira comunidade de seguidores o
Cristo de Deus, o Mediador por excelência, o único Mediador e
Salvador. Nele e por Ele a comunicação entre a Transcendência
e a História foi aberta. O véu que separava essas duas esferas foi
rasgado e a antropologia plantada no interior da teologia, de tal
forma que não se pode falar do divino sem falar do humano e,
mais ainda, sem falar deste homem, o filho de Maria que pisou a
terra e o chão e pôde ser por seus contemporâneos visto, ouvido
e tocado.
Esta confissão de fé obviamente não é privilégio nem ex-
clusividade do catolicismo, pois pertence a toda e qualquer con-
fissão cristã. No entanto, no catolicismo ela é vivida e celebrada
com uma especial ênfase nas mediações várias que permitem o
acesso a Deus através da pessoa de Jesus e em seu Espírito. A
organização e a configuração da Igreja Católica estabeleceram
através dos tempos uma estrutura de valorização destas media-
ções que permitem o acesso ao Deus Transcendente não só pela
razão e a interioridade, mas também e igualmente pela corporei-
dade e os sentidos. Assim, na vivência de fé do catolicismo está
presente a santidade - ou seja, a radical diferença e alteridade
de Deus – na humanidade. E isso tanto pela Encarnação desse
mesmo Deus em Jesus de Nazaré, ao qual até os demônios, se-
gundo o Evangelho, reconheciam e proclamavam como o Santo
de Deus3 como pelo Espírito desse Deus que é derramado sobre
toda carne4 com a Páscoa de Jesus de Nazaré, sua passagem pela
morte e sua ressuscitação dentre os mortos pelo Pai que o revela
como Senhor e Cristo.
A mediação da carne, do corpo, permanecerá como ele-
mento de primeira grandeza entre aqueles que seguem Jesus

3 Lc 4, 31-37.
4 At 2, 17-18 citando Joel 2,28.

22
Cristo, que instituem a celebração de sua memória marcada pelo
partir do pão comido com o vinho bebido, significando o corpo
e o sangue de Jesus que alimenta e inspira a comunidade para
anunciar a Boa Nova aos quatro cantos do mundo.
A continuidade dos tempos apostólicos vai reforçar a im-
portância das mediações enquanto a sacramentalidade da Igreja
nascente vai ser reforçada pelas perseguições, quando os corpos
dos mártires vão ser venerados e suas relíquias respeitosamen-
te conservadas nas catacumbas durante os primeiros séculos de
perseguições. A Eucaristia, com a fração do pão e a ingestão do
vinho acontecerão sobre um altar onde estão os restos das teste-
munhas do Cordeiro. E posteriormente, quando o cristianismo
se converte em religião oficial do Império Romano, sob Cons-
tantino, essa corporeidade das testemunhas que foram até o fim
no seguimento de Cristo, tornando-se “outros Cristos” estarão
presentes sobre os altares das igrejas e catedrais que serão edifi-
cadas, tornando-se centro de peregrinação e lugar de devoção dos
fiéis. 5
Vemos, portanto, neste breve percurso que fazemos so-
bre as mediações na história do cristianismo nascente que se
não há conexão imediata nem, muito menos, identificação plena
entre o Todo e tudo, entre o Criador e “toda carne” (Is 40ss), a
categoria “mediação” talvez seja o principal vetor ou mesmo a
“condição de possibilidade” para haver mesmo o que tentamos
fazer aqui, ou seja, a teologia. Se penso a relação entre a finitude
humana e a Infinitude divina, no meio estão os outros, as coisas
como sinais, as alteridades várias que me permitirão fazer esse
percurso impossível à razão humana. 6
Assim, o cristianismo desde o princípio, valorizou a cari-
dade para com os mais pobres, desvalidos e infelizes como cone-
xão do amor gratuito e oblativo que deve caracterizar o compor-
tamento cristão. O dogma, ou seja, a verdade de fé demarca o

5. Cf. MONDONI, D. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Loyola,


2006.
6 Afonso Ligorio Soares, Mediações, in http://theologicalatinoamericana.co
m/?p=473 acessado em 18 de outubro de 2020.

23
que se vive e aponta na direção para melhor viver. 7 Por trás
do gesto caritativo e da enunciação dogmática está a comuni-
dade de fé, corpo visível de Cristo que propicia a comunhão
e professa unida aquilo em que crê. Mediando essa relação
primeira entre o Deus intangível e a criação em evolução está
o Mediador Jesus e toda a nuvem de testemunhas que são ami-
gos vivos em Deus que também amaram e serviram a Deus
pelo seguimento de Jesus em vida e agora desde a vida plena
em Deus, são faróis a iluminar o caminho dos ainda vivos na
história. 8
O teólogo jesuíta uruguaio Juan Luis Segundo afirmava
que “as mais profundas tradições espirituais da humanidade são
justamente esta série de tentativas que, pouco a pouco, oferecem
à existência um sentido que não possa ser desmentido pela rea-
lidade total”, a saber, são dados transcendentes que consistem
“nessas novas redes jogadas sobre os acontecimentos para torná-
-los compatíveis com a vitória final de certos valores” 9 Seme-
lhante compreensão das religiões implica uma compreensão da
revelação que contemple a auto comunicação divina aos seres
humanos como processo histórico. No Cristianismo existe a me-
diação decisiva do Livro onde está consignada a Revelação, a
Escritura Sagrada, a Bíblia. Mas igualmente, com a Bíblia, para
que a memória dos eventos fundadores seja atualizada e vivida,
para que essa narrativa seja recebida por fiéis de todas as épocas
e lugares, são necessárias as testemunhas autorizadas e qualifica-
das que sirvam de referência às gerações posteriores. Essa me-
diação decisiva foi feita no Cristianismo pela comunidade dos
primeiros apóstolos.

7. Juan Luis Segundo, O dogma que liberta. Fé, revelação e magistério dog-
mático. SP, Paulinas, 2000.
8. Afonso Ligorio Soares, art. cit.
9. Juan Luis Segundo, 1984, p.290-1 citado por Alfonso Ligorio Soares, Me-
diações, in http://theologicalatinoameri-cana.com/?p=473 acessado em 18 de
outubro de 2020. O autor citado, Juan Luis Segundo oferece um sucinto
roteiro da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, que Afonso Ligório Soares,
autor do verbete Mediações, citado já anteriormente comenta na medida em
que o transcreve.

24
Assim, a mediação do Livro, sendo o ponto de chegada de
diferentes tradições, é igualmente ponto de partida da tradição
eclesial que transmitirá de geração em geração o que foi revelado
e recebido por Deus a seu povo, mas, na verdade destinado a toda
a humanidade. O papel insubstituível da comunidade de fé, - a
Igreja - reunida em torno aos mesmos símbolos e textos funda-
mentais é então a mediação por excelência para fazer a ponte
entre Deus e sua criação e, dentro dela, com a humanidade.
Isso que é verdade do Cristianismo como um todo adqui-
re uma ênfase especial no Catolicismo. Corroborando nossa tese
inicial que procura pensar o Catolicismo como o Cristianismo
das mediações, examinamos brevemente a seguir algumas destas
mediações que configuram e constituem o edifício institucional
do Catolicismo e impactam em seu ethos.

O catolicismo e algumas mediações


Dentro do todo complexo e rico das mediações encontra-
das no tecido eclesial católico, examinaremos algumas que nos
parecem de vital importância para entender hoje em que consiste
o catolicismo e como essas mediações impactam em seu ethos
enquanto religião e enquanto proposta vital.

1. A sacramentalidade
A teologia na Igreja Católica se autocompreende toda ela
dentro de uma configuração sacramental. Em tempos mais recen-
tes e posteriores ao Concílio Vaticano II o teólogo Karl Rahner
tem refletido e escrito de maneira vasta e excelente sobre o tema.
Ele afirma que assim como Cristo é o sacramento do Pai, a Igreja
é o sacramento de Cristo e toda a estrutura eclesial é, portanto,
sacramental. 10
Essa sacramentalidade fundamental pretende ancorar o
mistério da Igreja em seu lugar por excelência que é o mistério
10. Cf. Francisco Taborda, A dimensão eclesial dos sacramentos segundo Karl
Rahner, in Perspectiva Teológica v. 8 n. 15 (1976) pp 35-68.

25
central da Encarnação. Em Jesus Cristo, Deus se fez carne e
essa corporeidade caminhou pelo mundo ao alcance dos diversos
níveis da comunicação humana: sensorial, psíquica, espiritual.
Assim, quando a Igreja do final do primeiro século exclama na
1ª carta de João: “O que era desde o princípio, o que ouvimos,
o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e as nossas
mãos apalparam a respeito da Palavra da Vida” (1 Jo 1,1). A Vida
se manifestou, nós a vimos e dela testemunhamos, e vos anuncia-
mos a Vida eterna que estava com o Pai e a nós foi revelada...11
está cheia de gratidão a Deus porque lhe pôs misericordiosamen-
te ao alcance de seu corpo e sentidos a presença sacramental e
real d´Aquele que depois será experimentado Vivo após a Res-
surreição, comunicando-se por seu Espírito
Se Cristo, Verbo Encarnado, é o Sacramento do Pai, o Es-
pírito é igualmente derramado sobre toda a carne, e não eleva as
pessoas ou a comunidade acima do nível da terra, da corporei-
dade, do finito, mas senão desce e habita nessa mesma finitude
e pode ser encontrado no rosto do outro: do pobre, do órfão, da
viúva, do estrangeiro, do irmão, do vizinho, do inimigo. E tam-
bém no rosto da comunidade com a qual forma “una mystica
persona”12. E ainda no rosto da sociedade com todas as suas
pluralidades e das religiões onde Deus é nomeado e adorado com
outros nomes e por outras formas de culto.
A configuração trinitária da fé cristã se espraia na sacra-
mentalidade da Igreja, portanto. No catolicismo essa sacramen-
talidade encontra sua expressão maior no culto, sobretudo na ce-
lebração da missa, onde a memória de Jesus Cristo não é apenas
recordada na leitura da Escritura, mas transubstanciada no pão e
no vinho comungado pelos fiéis que com Ele formam um só cor-
po. As espécies materiais – pão e vinho – são sacramentos, sinais
sensíveis e corpóreos “d´Aquele que se dignou revestir da nossa
humanidade” como diz a liturgia. 13
11. 1 Jo 1,1-2.
12. Heribert Mühlen, Una mystica persona. La Chiesa Come il Mistero Dello
Spirito Santo in Cristo e nei Cristiani : Una Persona in Molte Persone, Citadella
Editrice, 1968.
13. Liturgia católica, oração eucarística n. VIII.

26
Os sacramentos – enumerados como sete a partir do Con-
cílio de Trento: batismo, crisma, ordem, matrimonio, reconcilia-
ção, unção dos enfermos e eucaristia – são então ações litúrgi-
cas da Igreja. A assembleia litúrgica, enquanto personificação da
Igreja, corpo de Cristo, em um lugar e um tempo determinados,
é o seu sujeito primordial. Cada um deles traz consigo um ele-
mento criado: água, óleo, sal, corporeidade do outro, pão, vinho
– e igualmente envolve e manifesta a ação sacramental da Igreja,
sendo sacramento fundamental (Grund-sakrament) e que, no que
lhe concerne, reenvia ao Uhr-sakrament ou proto-sacramento: o
Cristo, a palavra de Deus feita carne. 14
Enquanto sacramento da união da humanidade entre si e
com Deus, toda a ação da Igreja é sacramental, mediante o cul-
to espiritual que consiste em apresentar a Deus o próprio corpo
como sacrifício vivo e espiritual para o serviço dos irmãos (cf.
Rm 12, 1ss.), seguindo o exemplo de Cristo que se ofereceu por
nós na cruz. As ações sacramentais do culto cristão encontram
seu sentido, sua completude e sua verificação no viver dos cris-
tãos ao serviço dos irmãos nos altares da vida cotidiana. O corpo
de Cristo, morto na cruz, ressuscitado e exaltado por Deus é fonte
do Espírito que suscita o corpo eclesial, e é o fundamento não só
dos sacramentos, mas da sacramentalidade da própria Igreja.
Por isso a ritualidade católica é tão rica e tão cheia de tan-
gibilidade: as procissões, romarias, missas solenes ou privadas,
festas litúrgicas, santuários, são as marcas do imaginário onde
se expressam a fé e a devoção católicas e trazem consigo essa
marca da mediação da corporeidade ancorada no mistério maior
da Encarnação.

2. A centralidade das testemunhas

A fé cristã foi desde seus começos uma fé no testemunho


de outros. Os discípulos acreditaram em Jesus, no qual reconhe-
ceram e ao qual proclamaram posteriormente Testemunha Fiel.
14. Juan Antonio Ruiz de Gopegui, Símbolo e sacramento: http://theologicala-
tinoamericana.com/?p=179.

27
As mulheres acreditaram que o túmulo não era o lugar apropria-
do para buscar aquele que estava vivo. Os apóstolos – depois de
certa relutância – acreditaram nas mulheres. E assim começou o
caminho dessa proposta de vida que foi conquistando o mundo
conhecido de então, forte apenas da palavra e do testemunho de
alguns frágeis seres humanos que diziam: “Isso é verdade porque
eu vi, eu experimentei. Dou testemunho e sou capaz de morrer
por isso”.15
Desde seus inícios, a fé cristã é, portanto, uma fé de tes-
temunhas e não tanto de textos. Cada vez mais se torna mais
verdadeira e verificável a afirmação de que há que fazer uma teo-
logia não de textos, mas de testemunhas. 16 Fazendo apelo aos
testemunhos de homens e mulheres que foram alcançados por
Deus em meio à história, torna-se mais evidente a diferença entre
fé e religião, fé e instituição. E fica mais claro ainda o que cons-
titui a identidade mais profunda dos homens e mulheres de fé que
somos chamados a ser e a ajudar outros a serem nesta confusa e
difusa contemporaneidade em que vivemos. São eles e elas que
nos mostram que a fé cristã ainda tem um papel a desempenhar
hoje, desde que não perca sua identidade em meio aos tempos
nebulosos que vivemos.
No catolicismo as testemunhas são sobretudo e norma-
tivamente a primeira geração de testemunhas oculares do evento
Cristo, que formaram o colégio apostólico. A esses foram se su-
cedendo outras testemunhas que foram configurando a categoria
teológica conhecida no catolicismo como “sucessão apostólica”.
17
São eles os bispos, sucessores dos apóstolos que lideram a
15. Cf. sobre a teologia do testemunho Maria Clara Bingemer e Peter Casarella,
Testemunho: profecia, política e sabedoria, RJ, PUC-Rio/ SP, Reflexão, 2012.
16. Cf. J. Sobrino, Liberación com Espíritu, Santander, Sal Terrae, 1985; J.B.
Metz, Mística de olhos abertos, SP, Paulus 2013.
17. A Igreja Católica acredita e defende que, devido ao sacramento da Ordem, to-
dos os Bispos válidos e legitimamente consagrados, em comunhão com o papa (o
sucessor de São Pedro), são todos sucessores dos 12 apóstolos. Assim, quando
morre um papa, outro é eleito para o seu cargo, sucedendo-lhe, e, enquanto que
um bispo válido e legitimamente consagrado estiver vivo e em funções, ele con-
sagra outros bispos e ordena os presbíteros e os diáconos, dando por isso uma
continuidade ininterrupta à sucessão apostólica, sendo por isso a base de toda

28
Igreja e por ela se responsabilizam. Os mesmos que Santo Inácio
de Antioquia mencionava em sua carta aos cristãos de Esmirna
como sinal necessário da unidade universal.
A Igreja Católica acredita e defende então que, devido à
recepção do sacramento da Ordem, todos os bispos válida e le-
gitimamente consagrados, em comunhão com o Papa, são suces-
sores dos 12 apóstolos. O Papa, sendo Pastor Universal e chefe,
cabeça visível da Igreja Católica, é visto como sucessor de Pe-
dro, o chefe do colégio apostólico. Antes de ser pastor da Igreja
Universal (Católica), porém, o Papa é bispo de Roma e enquanto
cabeça desta Igreja, que preside a todas as outras na caridade, é
pastor da Igreja Universal e Católica.
Quando morre um Papa, outro é eleito pelo conclave –
conselho de cardeais – para o cargo. Por outro lado, um bispo,
enquanto esteja válida e legitimamente consagrado e desempe-
nhando suas funções, consagra outros e ordena os presbíteros
e diáconos (ordens maiores), dando por isso uma continuidade
ininterrupta à sucessão apostólica, que é a base de toda a hierar-
quia da Igreja Católica.
A unidade dos católicos se faz em torno aos bispos, mas
sobretudo ao Papa, a cabeça visível da Igreja Universal. Ainda
que na Igreja Católica haja muitas correntes, tendências, movi-
mentos, a questão da unidade em torno do Papa que é a cabeça
visível do corpo eclesial é uma nota fundamental que impres-
siona aos que não são católicos. É, na verdade, um elemento a
mais que reforça a centralidade do mistério da Encarnação e a
sacramentalidade que é constitutiva do catolicismo. A cabeça da
Igreja é visível, é um ser humano de carne e osso, pecador, finito
e limitado. Em torno a ele e ao colégio episcopal se constitui e
consolida a unidade da Igreja.
Por outro lado, o Papa sozinho não é Pedro. Ele só é
quem é unido a seus bispos e a todos os fiéis católicos. Sua visi-
bilidade e sua pessoa são a garantia da sucessão apostólica e da
a hierarquia da Igreja Católica. Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sucesãoapostó-
lica, acessado em 6/2/2p021. V. tb. V. CODINA, verbete Eclesiologia, in http://
teologicalatinoamericana.com/?p=1310 acessado em 26 de junho de 2021.

29
continuidade da Igreja de hoje com a Igreja das origens. Todas as
limitações e mesmo tragédias que sucederam na história do pa-
pado não foram nem são capazes de minimizar ou diluir a força
dessa instituição em torno à qual os católicos percebem e com-
preendem sua identidade. O catolicismo é, pois, uma Igreja onde
as mediações e as testemunhas reais e concretas são a garantia da
autenticidade e da legitimidade da fé professada.
3. O culto aos santos
Mas não somente na hierarquia estão as testemunhas cuja
atestação garante a legitimidade da Igreja Católica. Testemunhas
são igualmente os mártires e os santos que constituem instancias
importantes na sacramentalidade que caracteriza o catolicismo. A
origem mesma da palavra “testemunha” e “testemunho” dá razão
de seu significado mais profundo. Nas origens do Cristianismo,
a palavra que designava a testemunha e seu agir é martyr, que
significa aquele que confessou sua fé sem dela se afastar até o
derramamento do sangue.
Entre os mártires da primeira hora, numerosos sobretudo
nos quatro primeiros séculos do Cristianismo, quando os mes-
mos deviam se esconder nas catacumbas devido à perseguição
dos imperadores romanos, contam-se numerosos presbíteros e
bispos, mas não menos cristãos leigos, homens e mulheres que
não se afastaram de sua fé e dela deram testemunho até a mor-
te. Todos esses e essas foram venerados desde muito cedo como
santos, sendo suas relíquias a base do altar onde se celebrava o
banquete eucarístico em memória de Jesus de Nazaré, o Cristo, a
Testemunha Fiel por antonomásia.
Para o Catolicismo os mártires são santos. Mas igual-
mente santo é todo aquele que já está na glória, junto a Deus.
Aqueles e aquelas que a Igreja Católica reconhece como san-
tos, através da canonização, são as pessoas cuja vida serve
de testemunho e exemploaos demais fiéis. A falta desse re-
conhecimento formal não significa, porém, necessariamente
que o indivíduo não seja um santo. Aqueles santos que não
possuem o reconhecimento formal da Igreja Católica recebem
o título de Santos Anônimos. Para celebrar a honra de todos
esses santos, foi instituído o Dia de Todos os Santos pelo Papa

30
Gregório III.
No catolicismo é de grande importância o culto aos
santos. Trata-se de um culto diferente daquele prestado a Deus,
designado pela palavra grega latria = adoração. O culto aos
santos é designado pela palavra dulia, que significa prestar hon-
ra ou respeito. Na doutrina católica, visto que Deus é o Deus da
Vida, os santos estariam vivos no céu, podendo assim interce-
der junto a Deus por aqueles que estão ainda na terra. A Igre-
ja Católica baseia sua crença na comunicação entre vivos na
história e vivos em Deus no dogma da comunhão dos santos.
O dogma da “comunhão dos santos” que figura já no cre-
do apostólico atesta a vocação da humanidade como imagem e
semelhança de um Deus que é comunhão ele mesmo para viver
a radicalidade da relação e da comunicação. E essa vivência de
comunhão se estende para além da história, na trans história 18
onde aqueles e aquelas que já foram vivos na história continuam
vivos em Deus, participando igualmente da vida de comunhão
dos filhos do Pai na comunidade de fé. 19
A comunhão dos santos (em latim sanctorum Dei com-
munio) é a união espiritual de todos os cristãos, vivos e mortos.
Compartilham eles um só corpo místico com Cristo como cabeça,
no qual cada membro contribui ao bem de todos e compartilha os
bens com todos. “A Igreja Católica sempre acreditou que, des-
de os primeiros tempos do cristianismo, os Apóstolos e os Márti-
res em Cristo estão unidos a nós mais estreitamente, venerou-os
particularmente juntamente com a bem-aventurada Virgem Maria e
os Santos Anjos, e implorou devotamente o auxílio da sua interces-
são. A eles se uniram também outros que imitaram mais de perto
a virgindade e a pobreza de Cristo e além disso aqueles cujo preclaro
18. Entendemos aqui trans história como aquilo que invade a história e a faz
alcançar mais além do tempo cronológico ou do espaço geográfico. Recolhe
o que se dá em nível intra-histórico em seu modo mais profundo, entendido
como através de, mas por sua vez com desejo e busca de sua própria superação,
significando mais além de.
19. Cf. Nosso livro com Ivone Gebara, Maria mãe de Deus e mãe dos pobres,
Petrópolis, Vozes, 1987, onde situamos Maria neste nível de viva em Deus. As-
sim igualmente o admirável livro de Elizabeth Johnson, Nossa verdadeira irmã.
Teologia de Maria na comunhão dos santos, SP, Loyola, 2007.

31
exercício das virtudes cristãs e dos carismas divinos suscitaram
a devoção e a imitação dos fiéis. (...) A Sé Apostólica (...) propõe
homens e mulheres que sobressaem pelo fulgor da caridade e de
outras virtudes evangélicas para que sejam venerados e invocados,
declarando-os Santos e Santas em ato solene de canonização,
depois de ter realizado as oportunas investigações.” (João Paulo II,
Const. Apost. Divinus perfectionis Magister).
O processo de reconhecimento oficial de um santo é chama-
do, pois, na Igreja Católica, de canonização. Isto só pode ter lugar
após a sua morte dado que, segundo os princípios do Catolicismo
Romano, mesmo a mais santa pessoa viva pode cair em peca-
do mortal até o último momento. O processo é longo e bastante
cuidadoso, sendo vasculhada toda a vida do candidato ou candida-
ta à canonização.
Recentemente o Papa Francisco em sua Exortação apos-
tólica “Gaudete et Exsultate” advertiu para a importância de se
considerar, quando se fala de santidade e culto aos santos, aqueles
que chamou “a classe média da santidade” que vivem uma vida
de amor a Deus e ao próximo e são exemplos para a comunidade,
ainda que não sejam levados aos altares. 20
4. A devoção à Maria
Trata-se de algo muito característico do catolicismo.
Na Igreja
eja Católica Romana, a Virgem Maria é reconhecida pelo
título de bem-aventurada
bem-aventurada.. Já desde o Concílio de Éfeso em 431
d.C. ela é proclamada Theotokos pela Igreja cristã: ou seja, mãe de
Deus. Reconhece-se nela um estatuto especial em meio a todos os
santos e santas de Deus, e inclusive a capacidade de interceder em
favor daqueles que a seu favor recorrem por meio de orações e prá-
ticas devocionais. A teologia e o magistério católicos, no entanto,
deixam claro que Maria não é considerada divina e que as orações
a ela dirigidas não são respondidas por ela, mas por Deus.
Porém é fato que Maria ocupa um lugar destacado entre os
20. Cf. a recente exortação do Papa Francisco Gaudete et Exsultate, de 2018.
Cf a respeito da mesma nosso livro Santidade: um chamado à humanidade, SP,
Paulinas, 2019.

32
católicos, que além de a ela reservar diversos títulos honorífi-
cos, cantam hinos em seu louvor, dirigem-lhe uma variedade de
orações e peregrinam a diversos santuários marianos para honrá-
-la e louvá-la. O próprio Catecismo da Igreja Católica diz que
«A devoção da Igreja à Santíssima Virgem é intrínseca ao culto
cristão». O culto a Maria é chamado hiperdulia, enquanto o culto
a Deus é a latria e o culto aos santos dulia. Com isso a Igreja Ca-
tólica demonstra que distingue a mãe de Jesus dos outros santos.
A figura de Maria tem interessado pensadores e pesquisa-
dores dentro e fora da Igreja Católica. Além de obras literárias,
Maria tem chamado a atenção de pensadores agnósticos e ateus,
como a psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva. A figura da
mãe de Jesus inquieta incessantemente a mente atenta e sem dú-
vida brilhante da psicanalista e pensadora. Trata-se de um dos
aspectos de seu pensamento que mais intriga os leitores cristãos,
católicos e teólogos, devido a suas teorias fortemente contesta-
tárias. 21
Kristeva questiona o estereótipo que a Mariologia tra-
dicional impõe sobre as mulheres, sem dúvida, mas ao mesmo
tempo questiona o feminismo que “enquanto reivindica uma
nova representação da feminilidade...dele parece que exclui ou
minimiza a maternidade. 22
Evidentemente, aí fala a psicóloga, mas em seu discurso
a teologia encontra profundas ressonâncias. Por exemplo, Kris-
teva mostra uma intimidade com argumentos fundamentais que
estão presentes nos dogmas marianos e muito concretamente na
proporção em que eles afetam o imaginário da sociedade e da
Igreja hoje. Por exemplo, ela interroga se “o Cristo, este Filho do
homem, não é no fim das contas “humano” a não ser por sua mãe:
como se o humanismo crístico ou cristão não pudesse ser senão
um maternalismo.23 No entanto, - continua, e aí questionando a
dogmática católica - a humanidade da Virgem mãe não é sempre
evidente e nós veremos como, por sua subtração ao pecado por

21. Cf. Seule une Femme, Paris, L´Aube, 2013, p. 169.


22. Seule une femme, op. cit. p 225.
23. E ela afirma aí que é isso que fazem sem cessar certas correntes laicistas.

33
exemplo, Maria se distingue do gênero humano”. 24 Kristeva toca
aí em uma das maiores dificuldades que têm as mulheres – inclu-
sive as católicas e talvez sobretudo as católicas mais letradas e
conscientizadas – e não tem medo de inclui-lo em sua reflexão.
A facilidade católica para transitar no terreno feminino
então vai se tornar o alicerce sobre o qual se constrói o conceito
e a experiência do amor de Deus, de maneira que os místicos
iluminam a chaga psicótica da modernidade, composta entre
outros elementos por uma incapacidade de integrar harmonio-
samente o maternal, que seria segundo a psicanalista, o narcisis-
mo primeiro. 25 Migrando para o pensamento teológico oriental,
que resultará no ramo ortodoxo do cristianismo, Kristeva iden-
tificará em João Crisóstomo - entre outros – a responsabilidade
de consagrar esta função transicional do maternal, dizendo ser
a Virgem “elo”, “meio” ou “intervalo”, abrindo assim a porta
a identificações mais ou menos heterodoxas da mesma com o
Espírito Santo. 26
Kristeva reconhece que esta aproximação deixa vá-
rias questões sem resposta, sendo uma delas a representação
do Maternal em geral, e em particular na representação cristã,
virginal, do Maternal cristão. Segundo ela, seguindo aí Freud
como mestre da suspeita, isso pode conduzir não a um mal-es-
tar civilizacional, mas – mais grave ainda – a um mal-estar da
espécie.27
Aventurando-se pelos outros dogmas marianos, Kris-
teva vai constatar igualmente que Maria não apresenta duas
24. Seule une femme, op. cit p 226.
25. Kristeva cita mesmo escritores não crentes contemporâneos como Henry
Miller, Artaud etc. que usam essas metáforas de atribuir-se a si mesmos a gra-
videz e outras experiências femininas e maternas.
26. São muitos os textos antigos que fazem essa identificação. E mesmo
contemporâneos. Citamos como exemplo a obra de Leonardo Boff, O Rosto
materno de Deus, Petrópolis, Vozes, 1987, que defende que entre a Terceira
pessoa da Trindade, o Espírito Santo e Maria acontece a pneumatificação, algo
análogo à união hipostática que acontece entre a Segunda Pessoa, o Filho, com
Jesus de Nazaré.
27. Seule une femme, op. cit p 227 Entendendo ai por espécie, certamente a
espécie humana.

34
conotações constitutivas da humanidade. Uma delas é o exer-
cício da sexualidade, sendo virgem. 28 Igualmente a fé católica
e ortodoxa afirmam que ela não morreu, mas “adormeceu”. A
piedade mariana - sobretudo oriental - proclama a “dormitio
Maria”. E a fé católica a venera como “assunta” ao céu em
corpo e alma, não tendo a morte poder algum sobre sua pessoa.
Essa ausência da morte física esteve sempre na Revelação cris-
tã ligada ao pecado. Como Maria é a Imaculada, a sem pecado,
a morte não pode ter poder sobre ela. Isso pertence muito mais
à tradição espiritual cristã do que aos Evangelhos, que – como
a própria Kristeva afirma – são extremamente sóbrios a respeito
e sugerem “muito discretamente a imaculada conceição da mãe
de Cristo, não dizendo nada sobre a história própria de Maria e
não a mencionando senão muito raramente ao lado de seu filho
ou no momento de sua crucifixão. “ 29
A enorme importância que para Kristeva parece ter o mis-
tério de Maria no imaginário religioso cristão é o fato de que a re-
lação dela com seu Filho Jesus – gerando quem a gerou, sendo an-
terior a ele em sua humanidade, mas posterior por sua divindade, e
virgem e mãe simultaneamente - se torna matriz para uma rede de
outras relações muito complexas: a de Deus com a humanidade, a
do homem com a mulher, a do filho com a mãe, etc. 30
O passado ortodoxo da psicanalista Kristeva, que através
de seu pai que era devoto fiel dessa Igreja, vai desempenhar papel
importante neste interesse por Maria. De todo modo, ela diz estar
convencida que o catolicismo teve em suas mãos o mais poderoso
discurso sobre a maternidade de todo o Ocidente. Agora, com a
secularização, ela teme que esse discurso se perca, o que deixaria a
cultura ocidental amputada de um de seus mais fortes e fecundos

28. Kristeva destaca, porém, mostrando um bom conhecimento da Bíblia, as


dificuldades semânticas que existem com a palavra grega parthenon, que não
parece ser a correspondência exata para a hebraica alma, que designava na ver-
dade a jovem mulher do rei e não uma virgem. Cf. sobre isso BOUZON, Pe. Dr.
Emanuel. A Mensagem Teológica do Immanuel (Is 7,1-17). Revista eclesiástica
brasileira 32, fasc.128, Petrópolis: Vozes, p.826-841, 1972.
29. Seule une femme, op. cit.,, p 228.
30. ibid p 240.

35
componentes.
Creio que os temores de Kristeva não têm muita razão
de assustar-nos, já que a devoção à Maria continua muito pre-
sente no Catolicismo e os santuários e festas marianos – como
no Brasil Aparecida e a festa do Círio de Nazaré - ainda são
os lugares mais procurados pelos fiéis católicos que ali expli-
citam sem temor ou pudor de nenhuma espécie seu amor pela
mãe de Jesus que sentem como sua mãe também. A importân-
cia da mãe no Catolicismo ainda continua muito forte, apesar
de todo o avanço da secularização.
5. A mística
A palavra “mística”, embora sua primeira aparição
aconteça no escrito de Dionísio Areopagita, que data do início
do Cristianismo, tem seu uso como substantivo datado recen-
temente, no começo do século XVII na França, tal como o
demonstram as pesquisas autorizadas de Michel de Certeau.
31
Na tradição católica a mística recebeu algumas definições
como “conhecimento experimental das coisas profundas de
Deus” ou cognitio Dei experimentalis (Tomás de Aquino),
“experiência fruitiva do Absoluto” (Maritain), “experiência
consciente de Presença” (Mc Ginn). 32
A Igreja Católica tem uma longa e rica tradição mística,
por ela muito valorizada. Considera a mística uma forma de
conhecimento (conhecimento por experimentação = cognitio
Dei experimentalis) onde a corporeidade, a mente e a inte-
rioridade do místico são campo de revelação e experimenta-
ção por parte de Deus que em suas criaturas realiza uma nova
criação. Alguns destes místicos recebem o título de doutores
da Igreja – o equivalente a um doutorado canônico – como

31. M. de Certeau, “ Mystique au XVII e siècle : Le problème du langage


« mystique », in Guillet, J. (coord.), L’homme devant Dieu. Mélanges offerts
au Père Henri de Lubac, Paris, Aubier, 1963.
32. Cf. o debate sobre estas definições apresentado por Bernard Mc Ginn, em
seu livro The foudations of mysticism. Origins to 5th century, Crossroad, 2004
(trad. Bras. As fundações da mística. Das origens ao século V, SP, Paulus,
2012).

36
Catarina de Siena, João da Cruz, Teresa de Ávila e Teresinha
de Lisieux.
Na verdade, a mística propriamente dita tem encontrado
não poucas dificuldades para estabelecer sua cidadania nos
meios teológicos, especialmente protestantes. Tal como de-
monstra Mc. Ginn, citando a definição de Albrecht Ritschl:
“Mística, portanto é a prática da metafísica neoplatônica e
isso é a norma teorética do pretenso deleite místico em Deus.
Consequentemente, o ser universal sendo visto como Deus no
qual o místico deseja serdissolvido é uma fraude.” 33 A tradi-
ção católica tem contestado estas objeções, como demonstra
o abade Stoltz, que responde às afirmações de que a mística é
uma “diversão” da verdadeira fé evangélica afirmando que a
mística é a essência do Cristianismo e que, por conseguinte, a
verdadeira mística não pode ser encontrada fora daí.
Ao longo da história, filósofos cristãos como Blaise Pascal
observaram que o Deus da Bíblia é o “Deus de Abraão, de Isaac
e de Jacó”, não o Deus dos filósofos e dos sábios.34 Isso tem sido
objeto de discussão entre estudiosos, por isso pode-se argumentar
contrariamente no sentido de que a fé bíblica é de caráter funda-
mentalmente histórico. Suas doutrinas baseiam-se em realidades
e eventos históricos interpretados pela fé. Não se trata de valo-
res abstratos ou ideias existindo em um reino atemporal. Porém,
a mesma Bíblia está igualmente cheia de narrativas de experiên-
cias místicas, a começar pelos patriarcas com seus sonhos, visões
e os profetas com suas inspirações espirituais que os empurravam
a falar. Na Bíblia Cristã há um sopro místico sempre presente,
com a afirmação da habitação definitiva do Espírito sobre Jesus de
Nazaré, fazendo-o só ouvir e fazer o que ouve Deus seu Pai, Abba,
falar e agir.35 O Espírito será o exegeta desta mística, conduzindo
33. Cf. B. McGinn, The foundations... , op. cit., p 267.
34. Cf. Blaise Pascal, Pensées, Paris, Le livre de poche, 2000.
35. Jo 12, 48-50: “Aquele que me rejeita e não acolhe as minhas palavras têm
quem o julgue; a Palavra que proclamei, essa o julgará no último dia. Pois Eu
não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, esse me deu
ordens sobre o que eu deveria dizer e o que proclamar. Eu sei que o seu manda-
mento é a vida eterna. Sendo assim, tudo o que eu falo, como o Pai me mandou

37
aqueles que o receberem à plena verdade sobre o Filho e o Pai. 36
O catolicismo acredita e aceita que possa haver uma ex-
periência de Deus por parte do ser humano, experiência essa
que leva a um conhecimento e também a uma união. União,
no entanto, que jamais dissolve ou funde as identidades, mas
instaura uma relação amorosa para a qual foram encontradas
metáforas como as núpcias, a união conjugal, a amamentação
entre outras.
A quase totalidade dos teólogos protestantes do Con-
tinente europeu que refletem sobre a mística, assumem que
o assim chamado “misticismo de Deus” 37 sempre significa
identidade com o divino na experiência da união e, “ipso fac-
to”, é inconsistente com a fé cristã na distinção transcenden-
tal obrigatória que deve ser feita entre Deus e o ser humano.
Segundo Mc Ginn, a história da mística cristã sugere que esta
imagem é demasiado simples.38 No entanto, as muitas acusa-
ções que pesaram sobre a mística cristã como sendo alienante
e subjetivista poderiam explicar essa reação do protestantismo
histórico, mais ético e prático do que o Catolicismo.
6. Os pobres
A partir de 1968, com a Segunda Conferência dos Bis-
pos da América Latina em Medellín, Colômbia, a Igreja Cató-
lica latino-americana começou a fazer mudanças importantes
em sua configuração e estratégia pastoral. Dentre estas mu-
danças, a mais importante, da qual derivam todas as outras,
foi a percepção de que a fé e a justiça são inseparáveis e​​ que a
maior urgência pastoral é uma atenção privilegiada ao mundo
dizer, assim falo.”
36. Jo 16, 12-14: “Eu ainda tenho muitas verdades que desejo vos dizer, mas
seria demais para o vosso entendimento neste momento. No entanto, quando o
Espírito da verdade vier, Ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará
por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vis revelará tudo o que está por
vir. O Espírito me glorificará, porque receberá do que é meu e vos anunciará.
…”.
37. Mc Ginn usa a expressão “ God-myssticism” , in “ The foundations”...op
cit., p 272.
38. ibid.

38
dos pobres. A opção preferencial pelos pobres moldará todo
o modo de proceder dessa Igreja e será o centro de uma nova
teologia: a teologia da libertação.
Esta opção não é nova na Igreja Católica nem muito
menos na história do Cristianismo, com exemplos fulgurantes
de entrega e serviço aos pobres, desde os primórdios da Igre-
ja Primitiva com destaque para Francisco de Assis no século
XII, seguido de perto por Vicente de Paula, Teresa de Calcutá
e tantos outros e outras. A novidade aqui é que essa opção vai
ser oficializada em uma conferência geral do episcopado ca-
tólico latino-americano e assumida pela Igreja do continente
como uma prioridade. Dará frutos também fora da América
Latina.
Esta opção e essa teologia não derivam nem se configu-
ram como uma opção pelo marxismo, mas estão fundamenta-
das em uma mística: a mística do encontro com o Senhor no
rosto dos pobres. Trata-se de um modo de entender a expe-
riência de uma união amorosa com Deus, a partir do desafio
da realidade e frutificando na vida prática. Talvez o teólogo
latino-americano que melhor descreveu essa mística latino-a-
mericano seja Jon Sobrino, que reflete sobre o perfil de uma
santidade política.39
Segundo Sobrino, a mística pressupõe sempre abertura
e obediência ao desejo de Deus, sentido e vivido pessoalmen-
te. Em um contexto de pobreza, opressão e injustiça, o primei-
ro desejo de Deus é que as maiorias pobres possam viver. Por
ser mística, essa experiência não pode deixar de ser uma ex-
periência de amor transcendente e inefável. No entanto, está
voltado para um objetivo prático, político, qual seja a trans-
formação da realidade.
39. https://www.servicioskoinonia.org/relat/137.htm acessado em 6/2/2021.
Cf igualmente nossos textos Mística liberadora. Urgencia de lo esencial para
el quehacer de los cristianos hoy. Revista Latinoamericana de Teología, v. 106,
p. 61-74, 201; Mística en el sur de América: entre la profecia, lo cotidiano y
la práctica. In: Aranguren Gonzalo, L.; Palazzi, F.. (Org.). Nuevos signos de
los tiempos. Diálogo teológico latino-ibero-americano. 1ed.madrid: San Pablo,
2018, v. , p. 371-388.

39
Implica um olhar honesto para aquela realidade desfi-
gurada, tendo juntamente com as entranhas de misericórdia
que se comovem perante a imensa e injusta dor das maiorias
oprimidas. O teólogo alemão Johann Baptist Metz – um dos
teólogos europeus que mais voltou o olhar para o processo da
Igreja latino-americana - dirá ser preciso ser místico com os
olhos abertos para o mundo para perceber seus desafios, sofri-
mentos e conflitos.40
Trata-se de um estilo de viver a fé, com uma atitu-
de alerta, vigilante, com os olhos bem abertos para ver, ler,
compreender a realidade e transformá-la segundo o Espírito
de Deus. Trata-se de uma forma, de um estilo concreto de vi-
ver o Evangelho com radicalidade. Um modo preciso de vi-
ver “diante do Senhor” em solidariedade com todos os seres
humanos, especialmente os mais vulneráveis e​​ sofredores.
O pobre, nesta teologia, é considerado sacramento de Deus
- mediação privilegiada - pois em sua carne sofredora, dimi-
nuída pelas dificuldades crescentes da vida e pelo desafio de
viver em um sistema opressor e injusto, revela o Deus todo
misericórdia que desde o início se revelou ao Povo de Israel
como porta-voz do pobre, do órfão, da viúva, do estrangeiro e
de todas aquelas categorias de pessoas que veem vedado seu
acesso a uma vida em plenitude. A visão de fundo desta místi-
ca e desta teologia que a Igreja Católica assumiu na esteira do
Concílio Vaticano II não é simplesmente combater a pobreza,
mas assumir vida e destino dos pobres, estar com eles, em
proximidade e amizade.

Conclusão: para onde vai o catolicismo hoje?


O Cristianismo histórico, sobretudo o Catolicismo, vi-
veu um verdadeiro giro copernicano com o evento do Concílio
Vaticano II, acontecido na década de 60.41 Entre sua infinita
riqueza de contribuições para a vivência da fé cristã em um
40. Cf. Johann Baptist Metz, Mística de olhos abertos, op cit.
41. Cf. a reflexão que sobre este acontecimento fazemos neste mesmo artigo,
supra.

40
mundo golpeado por duas guerras mundiais e vivendo situa-
ções de extrema injustiça e desamparo, o Concílio levantou
alguns pontos fundamentais que voltaram os olhos da comu-
nidade crente para a realidade: a positividade das realidades
terrestres, a necessidade de dialogar com as outras denomi-
nações cristãs e as outras religiões e o imperioso mandato de
lutar contra a injustiça e a violência. A novidade conciliar
provocou algumas reações positivas e outras que podem ser
interpretadas como negativas, já que houve uma diminuição
dos efetivos católicos e provocando um êxodo de vocações
sacerdotais e religiosas.
Os tempos pós-conciliares, no entanto, foram mais con-
flitivos do que parecia poder ser esperado. E o espírito do
Concílio, embora ativo e vivo, encontrou muitos problemas
para poder implantar-se e dar toda a sua medida, como se es-
perava ardentemente na Igreja Católica e também nas outras
igrejas cristãs. O termo singular “Igreja” passou a contrastar
com as práticas e as crenças mais diversificadas – ou mesmo,
no dizer de comentadores da estatura de Michel de Certeau,
contraditórias – entre católicos. 42
Houve uma espécie de fragmentação eclesial, embora
não tenha havido uma desaparição da fé. A “recessão” ecle-
sial, configurada em multiplicidade e fragmentação, foi estu-
dada por muitos pensadores que nela viram uma sadia finali-
zação do que se chamava a Cristandade, onde o Catolicismo
era um edifício grande e pesado em sua homogeneidade, já
incompatível com a vida moderna. 43 Outros, já não tão oti-
mistas, viram na fragmentação advinda um perigo grande para
a Igreja. 44 Michel de Certeau, no artigo que aqui citamos, de-
clara com pessimismo que “uma crise fundamental da Igreja
(e de sua ideia mesmo) se substitui a tomada de consciência,
premonitória, mas insuficiente, de sua reforma necessária. 45
42. Cf. art. Crise du Catholicisme Universel, in Encyclopedia Universalis ver-
sion numerique 2009.
43. E. Mounier, Feu la chrétienté, Paris, Seuil, 1950.
44. M. de Certeau,. Le christianisme éclaté, Paris, Seuil, 1974.
45. M. de Certeau, Encyclopedia Universalis, op. cit., verb. Crise du Catho-

41
Por outro lado, o Concílio conheceu um tempo longo
de recesso nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, que
juntos somam mais de 30 anos. Parecia que a novidade conci-
liar que propunha um catolicismo mais voltado para o mundo
em atitude de diálogo se enevoava e ameaçava desaparecer em
um horizonte onde se multiplicavam incertezas, problemas e
escândalos.
A renúncia de Bento XVI em 2012 e a eleição do ar-
gentino Jorge Mario Bergoglio em 2013 como Papa com o
nome de Francisco trouxe de volta as propostas e a linguagem
do Vaticano II. O catolicismo hoje, sob Francisco, redescobre
seu rosto configurado pela mediação do outro enquanto sacra-
mento. E esse outro hoje tem o rosto dos pobres, das vítimas
de todas as violências, dos migrantes que sofrem a reconfigu-
ração da geografia do mundo e o endurecimento contrário à
relativização das fronteiras. Tem igualmente o rosto da Terra,
vítima maior do projeto social do descarte, constantemente
agredida por um estilo de vida destrutivo e uma indiferença
globalizada. A crise da criação atinge a todos e os seres huma-
nos são convidados a urgentemente descobrir que só podem
existir juntamente com todos os outros seres vivos.
Em meio à pandemia que pôs de joelhos a soberba
civilização tecnocrática que construímos, Francisco se apre-
sentou sozinho na praça de São Pedro vazia, sob o frio e a
chuva. E proclamou que estamos sob uma tempestade, todos
juntos, sem faltar ninguém. Ali falava ao mundo e recordava
que desta tempestade que abraça a todos, sendo universal, só
sairemos se estivermos todos juntos. Não acontecerá a salva-
ção se não construirmos uma fraternidade universal a partir de
baixo, e deixarmos alguém à beira do caminho. O catolicismo
hoje é convidado pelo Papa Francisco a reconhecer-se como
igreja em saída, igreja samaritana, que vai pelos caminhos do
mundo procurando a proximidade com a carne vulnerável do
outro que é mediação para o encontro com Deus por excelên-
cia, é sacramento do Deus vivo. Esse é o ethos católico hoje e
licisme.

42
não pode ser outro. Só assim poderá acontecer a fraternidade
universal que é, no final das contas, o objetivo da Igreja Cató-
lica e de todas as igrejas cristãs.

43
4

Rumos do catolicismo:
a lógica da mudança/continuidade
João Décio Passos
Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica-SP
Livre Docente em Teologia - Pontifícia Universidade Católica-SP

A abordagem da ciência da religião exige rupturas episte-


mológicas com algumas visões assentadas no imaginário católi-
co que não serão de todo inútil serem relembradas: o catolicismo
como sistema estável em linha de continuidade com as origens
reveladas, como sistema unívoco sem contradições internas,
como entidade monista que não distingue a construção histórica
do significado teológico, como instituição portadora da verda-
de original imutável, como configuração universal distinta dos
entornos históricos particulares, como comunidade de consenso
harmônico etc. A consistência e a coerência dessas percepções é
objeto da teologia e não serão aqui consideradas. Não se trata,
no caso, de negar a legitimidade da abordagem teológica, mas de
afirmar aquilo que o processo histórico permite e exige ao olhar
que pretende ser científico. A busca fundamental da reflexão será
pela lógica dos rumos do catolicismo, informação que pode vir
do passado e do presente, do ethos e do modus operandi católi-
cos. O catolicismo é um produto endêmico do ocidente e assim

83
parece permanecer e se projetar para o futuro.
O desafio permanente e estimulante é encontrar os víncu-
los entre as duas configurações que por vezes se confundem por
completo, mas que historicamente foram se distinguindo sempre
mais, até atingir um ápice nos tempos modernos. O catolicismo
é resultado de uma fusão de elementos distintos disponíveis em
diversas épocas históricas e que foram sendo assimilados em di-
reções e em doses diferenciadas, vindo a resultar em uma iden-
tidade de visões e práticas, de sistema de crença e organização
institucional. A dinâmica da fusão se dá em uma circularidade
hermenêutica (GADAMER, 2002, p. 400-425) entre as fontes
cristãs e a realidade presente, sendo as fontes o dado legitimador
das novas assimilações.
A realidade mais imediata vivenciada pelo catolicismo
atual de uma tensão entre preservação e renovação pode pro-
vocar uma espécie de cegueira hermenêutica (por razões políti-
cas ou teológicas) que impede de perceber como essa realidade
transformadora é, de fato, constitutiva do catolicismo, enquanto
se consolidou como agente-paciente da formação do que se con-
vencionou chamar ocidente e estabeleceu em cada contexto um
processo de construção de si mesmo, renovando-se para preser-
var e preservando-se para renovar.
A exposição será feita em três tópicos básicos: o olhar re-
trospectivo sobre a formação histórica do catolicismo, as dinâmi-
cas de autoconstrução histórica e os rumos presentes e futuros.

1. Olhar retrospectivo como ponto de partida


Quais foram os rumos históricos do catolicismo, como ex-
pressão de longa duração do cristianismo? Em outras palavras,
com quais matérias-primas, ferramentas e sujeitos o catolicismo
foi construído no decorrer do tempo? Essa pergunta deve ser
feita obviamente a todas as religiões, entendidas como formas
institucionalizadas de experiências religiosas coletivas. Os con-
ceitos clássicos de construção material (Marx), de função social
(Durkheim), de tradicionalização do carisma e de burocratização

84
(Weber), assim como os conceitos contemporâneos de invenção
da tradição (Hobsbawm) e de construção social (Luckmann-Ber-
ger) explicam como as expressões culturais são formuladas, se
tornam legítimas e se afirmam como hegemônicas em determi-
nados contextos.
Como o catolicismo foi sendo construído no decorrer do
tempo? Cada religião é construída com os materiais, com as fer-
ramentas e com os sujeitos disponíveis em cada tempo e lugar.
Não há outro modo de construção de ideias, de ordenamentos e
de organizações. Essa é a regra mais fundamental: os sistemas
e as instituições brotam de condições históricas concretas e so-
mente aí podem ser compreendidas como tais. Nesse sentido, não
há como falar de catolicismo sem considerar o que aconteceu
historicamente em determinados tempo e espaço que foram for-
mando a própria noção de ocidente e a própria noção de católico
(NEMO, 2005, p. 45-82). Com o perdão do lugar-comum, vale
reafirmar: não há como falar do catolicismo sem falar de mun-
do helênico (cidades gregas), de império romano (organização
política), de invasões bárbaras (feudalização), de expansão euro-
peia (colonialismo) e de modernização (revoluções modernas). O
catolicismo é um produto endêmico desse processo histórico; o
resultado possível de um carisma original que encontrou modos
legítimos de se institucionalizar a cada fase da história, de modo
particular nos momentos de crise e de mudança.
Atualmente, o catolicismo é uma soma eclética bem su-
cedida desses contextos, soma que contou com alianças polí-
ticas, com adaptações culturais e com legitimações teológi-
cas. Nesse processo, o catolicismo revela um cristianismo que
soube assumir a história com suas modificações e construir
as condições de superação das tensões entre o teológico e o
conjuntural, o atemporal e o temporal, a fé e a razão, a igreja
e o mundo. Nem todos os cristianismos demonstram essa ca-
pacidade, seja por algumas configurações se firmarem como
seita (grupos autorreferenciados que se definem em oposição
ao mundo), caso de alguns grupos cristãos como os amish,
seja por identificar-se com expressões culturais específicas,

85
como ocorre com as várias confissões ortodoxas, de modo em-
blemático com o catolicismo russo.
O catolicismo se posiciona como um ethos histórico:
como relação construtiva permanente entre elementos do pas-
sado e elementos do presente. A cada contexto, participou das
transformações históricas, como agente e paciente das rupturas
e das construções, de forma que, na maioria das vezes, torna-se
difícil distinguir o protagonista político do processo. A imagem
de uma igreja separada do mundo, posicionada como imutável,
portadora de uma tradição singular e mestra da verdade, é uma
ilusão de ótica bem elaborada por determinadas teologias. Na
verdade, o que a história revela é uma instituição em perma-
nente construção de si mesma e inserida em uma história em
mudança, ainda que se cristalize em modelos de longa duração.
Se essa regra se aplica em última instância a toda e qual-
quer expressão cultural e política, ela adquire no caso do catoli-
cismo, dinâmicas conscientes e explícitas. Os expedientes polí-
ticos dos Concílios, dos Sínodos e de exercício dos Magistérios
papal e episcopal responderam pelo princípio do discernimen-
to histórico e pela adaptação a cada realidade. O catolicismo
não somente participou da formação geral do bloco ocidental,
como criou mecanismos e ideias que permitiram sua inserção
no processo de formação do mesmo de modo ativo, eficiente e
legítimo. O saldo dessa inserção é robusto, variado e se mostra
na cultura e nas instituições que foram compondo a história oci-
dental, da filosofia às ciências (GRANT, 2009), das escolas às
artes (LE GOFF, 1995), do direito ao Estado laico (BERMAN,
2006). Não se trata evidentemente de afirmar uma lógica de
causalidade linear que detecte o cristianismo como causa da
sociedade, mas de um processo dialético que relaciona esses
universos de valores e busca sínteses possíveis e afirma nega-
ções viáveis em cada momento e contexto. O fato é que nesse
bojo o catolicismo se mostra, ao mesmo tempo, sujeito e objeto
de uma longa construção histórica.

2. Dinâmicas de autoconstrução

86
O catolicismo foi sendo construído seguindo uma lógica
própria, decorrente de seus valores fundantes e de suas possi-
bilidades políticas. Contou, evidentemente, com sujeitos pers-
picazes, com estratégias ideológicas, com consensos culturais e
coerções políticas. Por ora, basta pontuar aspectos dessa lógica
de autoconstrução.

a) Rupturas e assimilações
O catolicismo se constituiu no decorrer do tempo assu-
mindo como desafio e missão a dinâmica ruptura/assimilação.
Vale recordar os momentos axiais dessa marcha histórica: rup-
tura com a sinagoga e assimilação dos modelos organizacionais
das cidades gregas, ruptura com a organização carismática pri-
mitiva e assimilação de modelos geopolíticos e hierárquicos do
Império Romano, ruptura com o grego e assimilação do latim,
ruptura com a teocracia imperial e assimilação do pontificado do
bispo de Roma, ruptura com modelos platônicos e assimilação
de referenciais aristotélicos. Portanto, longe de qualquer ideia de
um modelo fixo que se reproduz de modo intacto na história, o
catolicismo é o resultado de sucessivas mudanças que vão sendo
institucionalizadas e legitimadas no decorrer do tempo. A conso-
lidação de um ethos conservador fabrica e repassa a ideia de uma
sobrevivência imutável que se reproduz na história. Da parte das
lideranças oficiais, as rupturas e as novas assimilações são sem-
pre justificadas como retomadas da verdade mais pura o original
que gera a própria igreja. E as rupturas radicais que colocam em
risco um padrão hegemônico de ideias e práticas terminam ex-
purgadas como cismáticas ou heréticas.
O fato é que o catolicismo se faz com algumas estratégias:
1ª) assimila em seu modus operandi institucional e cognitivo as
rupturas/assimilações como processos de sua autoconstrução e,
por conseguinte, de sua própria autocompreensão no decorrer da
história; 2ª) assimila os elementos novos como oriundos dos an-
tigos, justificando as reformas como expressão presente da ver-
dade mais antiga e original; 3ª) oficializa e institucionaliza as
novas formas como parte do depósito doutrinal da fé e, por con-

87
seguinte, como elo da longa tradição; 4ª) acomoda em seu corpo
institucional maior as diversidades que permanecem com seus
carismas originalmente perigosos à unidade; 5ª) unifica em uma
mesma autoridade administrativa as particularidades dos grupos
eclesiais menores com suas distintas peculiaridades, sociais, po-
líticas e culturais.
Portanto, toda assimilação das rupturas se apresenta como
continuidade legítima e, nesse jogo, o novo se justifica como an-
tigo e o antigo é ao mesmo tempo relido a partir do novo. Max
Weber explica que a tradição se assenta sobre o passado mais
original quando define que “deve-se entender que uma domina-
ção é tradicional quando sua legitimidade descansa na santidade
de ordenações e poderes de mando herdados de tempos distantes,
‘desde tempo imemorial’, crendo-se no mérito dessa santidade”
(1997, p. 180).

b) Lógicas das rupturas e assimilações


O catolicismo construiu seus contornos identitários e suas
estruturações institucionais na lógica da preservação-assimila-
ção, como portador de uma missão própria que lhe conferia a
cada momento histórico parâmetro de autorregulação. A assimi-
lação de modelos e práticas de seu entorno alimentava seu núcleo
identitário duro e, ao mesmo tempo, lhe conferia plasticidade his-
tórica suficiente para se preservar como instituição sempre mais
sólida. Algumas direções dessa lógica podem ser observadas:
1ª Autodistinção: a igreja católica se definiu como identi-
dade distinta de suas origens judaicas (particularmente da orga-
nização sinagogal), mas também das organizações políticas com
as quais se relacionou desde suas origens; construiu-se como
consciência de ser possuidora de uma identidade que toma forma
sempre mais nítida, do ponto de vista das origens, da organização
e da delimitação de seus fundamentos. Mesmo nos momentos de
intensa identificação com os modelos políticos, firmou-se como
entidade distinta, com corpo distinto e regras distintas das insti-
tuições e regimes, assim como de etnias. Aqui se distingue das

88
tradições monoteístas: da identificação entre o étnico e o religio-
so do judaísmo e da identificação entre o político e o religioso
do islamismo. A própria noção de igreja indica precisamente a
organização que se distingue das instituições mais amplas que
compõem a sociedade global (PRODI, 2005, p. 15-56) e se apre-
senta com vida política própria: do mundo sem ser do mundo
(por sua origem sagrada), do tempo sem ser do tempo (por seu
destino escatológico), da política sem se reduzir à política (por
sua identificação com o Reino), da verdade racional sem se sub-
sumir a ela (por ser possuidora da verdade revelada). Em todos
os momentos assimilou sem deixar-se assimilar plenamente pe-
los padrões históricos.
2ª Autopreservação: o catolicismo avança buscando sub-
sistência e hegemonia econômica e política, utilizando-se dos
recursos materiais e simbólicos disponíveis em cada contexto.
Em termos gramscianos, utiliza-se das estratégias do consenso e/
ou da coerção, na medida que necessários (LA PORTA, 2017, p.
127-129; 141-144); em termos weberianos, opera com as buro-
cratizações que constroem as instituições com suas regras e fun-
ções que visam precisamente preservá-las no tempo e no espaço
((WEBER, 1997, p. 857).
3ª A auto-organização: efetiva o aprimoramento burocráti-
co das estruturas na construção de regras, de instâncias e funções
responsáveis pelo funcionamento do aparelho organizacional. A
cúria romana é a imagem evidente desse processo. O papado é
a instituição despersonalizada que estabelece a regra de funcio-
namento objetivo da igreja, para além dos carismas pessoais e
das tendências dos líderes. Weber afirma que a igreja católica é
a mais antiga burocracia do ocidente (1982, p. 230). O direito
canônico é também a matriz do direito positivo secular moder-
no. No catolicismo o carisma cristão encontrou os meios efetivos
e eficientes de preservar-se como entidade objetiva subsistente,
aquém e além dos personagens históricos. A estrutura eclesiásti-
ca funciona sem vínculos com seus personagens e atores numa
auto-organização estável, sem se abater às portas do inferno da
transitoriedade.

89
4ª Auto interpretação: diz respeito à afirmação das razões
teológicas ou históricas das mudanças implantadas no decorrer
do tempo. A igreja católica tem seu fundamento em uma fonte
de verdade. As mudanças não podem ser teologicamente arbi-
trárias. Juristas, teólogos e papas se encarregaram de explicitar
essas razões através de tratados e documentos oficiais. A cada
reforma, uma teologia e uma norma jurídica eram apresentadas
como fundamentação segura. De seu arsenal semântico acumula-
do na longa temporalidade, pode retirar elementos que forneciam
as explicações para si mesma na guerra e na paz, nos consensos
e dissensos, na profecia e na diplomacia.
5ª Auto fundamentação: as interpretações de si mesma
sustentam as imagens em fontes sagradas (Escrituras) da igreja.
Essa se vê como fundada na revelação, segundo as escrituras. A
doutrina, a tradição e os modelos burocráticos buscaram sempre
uma legitimidade em matrizes bíblicas ou em uma tradição que,
por sua vez, autocompreende-se como legítima continuadora do
que contém o próprio cânon bíblico que, por conseguinte, brota
da própria experiência do evento fundante.

c) Métodos de autoconstrução
A identidade católica construída sob a ideia de organização
autônoma, burocraticamente estruturada e teologicamente funda-
mentada preserva-se historicamente como construção contínua;
construção que é operada com três dinâmicas metodológicas:

1ª. A circularidade entre passado e presente


O catolicismo assumiu a relação de implicação mútua
entre referências do passado (transmitidas em determinados pa-
drões) e do presente (interrogações advindas da cultura presen-
te). As figuras Magistério e Teologia, cada qual a seu modo e
com sua legitimidade própria, exerceram precisamente a função
de discernir o presente a partir do passado e o passado a partir
do presente, ou seja, ler os cânones da fé (fontes bíblicas, tra-

90
dição e paradigmas teológicos) com parâmetros hermenêuticos
das épocas e de ler o presente a partir dos mesmos cânones (as
diversas teologias e os ensinamentos dos Papas e dos Concílios).
Essa circularidade real foi sempre praticada, embora nem sempre
consciente da parte dos sujeitos eclesiais. Os modelos teóricos
e práticos que compuseram a identidade católica no decorrer do
tempo resultaram dessa circularidade construtiva.
Contudo, a emergência dessa consciência histórica só
ocorre em tempos recentes e tem seu epicentro no Concílio Vati-
cano II, como bem demonstra Christoph Theobald (2015). Des-
de o Concílio, essa consciência adquire cada vez mais traduções
metodológicas e significações teológicas: uma teologia da his-
tória e uma metodologia de leitura da histórica. O conceito de
sinais dos tempos sintetiza essas posturas. Embora, se observe
hoje uma luta mais acirrada entre essencialismo e historicidade
da parte de setores e grupos eclesiais, o dado da historicidade
permanece como regra constitutiva do catolicismo.

2ª. A eternização do presente


Assumir a historicidade é sempre um risco para a fé que
tem seus fundamentos em um evento fundante do passado de
onde jorra a verdade a ser preservada, transmitida, interpreta-
da e vivenciada a cada geração. Sob essa base fundamental as
leituras se dividem (entre os tradicionalistas e os renovadores),
mas, em simultâneo, parecem ter um ponto comum que consiste
precisamente na afirmação de uma eternidade da verdade crida e
transmitida. Peter Berger denomina esse processo que afirma ser
inerente às religiões como: cosmificação, ontologização e eter-
nização. As religiões constroem a si mesmas como decorrentes
de uma verdade eterna, de um evento que jorra continuamente,
verdade que se sustenta para além do tempo que passa, que se
inscreve na natureza e nos fundamentos metafísicos da realidade.
Sem essa fundamentação as religiões se dissolveriam no curso
da transitoriedade histórica, perderiam sua consistência sagrada,
explica Berger (1985, p. 42-64).

91
O processo de eternização pode ser verificado, assim, tan-
to nos grupos que afirmam que a verdade cristã é historicamente
imutável, quanto nos que afirmam uma essência imutável que vai
sendo descoberta pela razão no decorrer da história, assim como
nos que assumem um processo permanente de volta as fontes
a partir das referências presentes. O desafio católico não será a
negação de um fundamento eterno de si mesmo, tarefa ao que
parece contraditória com sua natureza, mas o de ser capaz de
redescobrir esses valores em suas fontes a cada geração.

3ª Unificação das diversidades


O catolicismo se definiu como unidade de pensamento e
de práticas diretamente vinculados às origens primeiras, trans-
mitidos por uma única tradição, legitimados por uma sucessão
de lideranças religiosas, administrado por dirigentes centrali-
zados a partir de um governo central, estabelecidos a partir de
consensos colegiados e conduzidos por ensinamentos unifica-
dos. É sob o signo e a dinâmica dessa unificação permanente
que as diversidades foram reconhecidas ou descartadas, acolhi-
das ou rejeitadas, assimiladas ou expurgadas. A unidade define
a igreja católica de modo emblemático dentre os modelos de
organização eclesiástica (WACH, 1990, p. 176-180) e se ex-
pressa na doutrina e na tradição comuns, ferramentas universais
de discernimento intercultural, de julgamento dos movimentos
renovadores nos momentos de retrocessos ou de avanços. Nes-
se sentido, se pode pensar em um grande tipo ideal denominado
catolicismo que abriga sob sua generalidade unificadora toda
divergência possível, o que é efetivado mediante processos de
justificação teológica que vincula conceitualmente o diverso e
de institucionalização que oficializa as novas expressões como
naturais ao mesmo corpo eclesial. Os anticorpos oferecidos
pela teologia e pela institucionalização assimilam sob suas re-
gras comuns e dentro do mesmo corpo social, político e cultural
aquilo que se apresenta inicialmente como elemento desagrega-
dor. Assim ocorreram com muitas ideias filosóficas, com movi-
mentos religiosos, com símbolos culturais e padrões de com-

92
portamento do passado e ainda ocorrem com as diversidades no
presente. Desse modo, o que é estranho se torna oficial, o que é
novo se torna tradicional e o diferente se integra no igual.

4ª. A teocracia eclesial


Por teocracia eclesial se entende a autossignificação da
igreja como poder recebido de Jesus Cristo e exercido por seu
vigário na terra. Essa eclesiologia tomou sua forma completa e
definitiva com a reforma gregoriana do século XI (ESTRADA,
2005, p. 466-481). Dessa ideia fundamental advêm os concei-
tos de sucessão apostólica (legitimidade das lideranças religiosas
atuais), colegialidade (comunhão dos sucessores que asseguram
o consenso do grupo), tradição (preservação e transmissão das
verdades de fé) magistério (interpretação autorizada da tradição).
O modelo institucional episcopal assegura politicamente uma or-
ganização que reproduz a visão de um poder sagrado exercido
pela hierarquia. A centralidade de governo em um líder autoriza-
do por Jesus Cristo a dirigir o colégio dos bispos e a falar com o
mesmo e em nome do mesmo, assegura a unidade e o exercício
do poder das chaves. A igreja exerce um poder delegado por Je-
sus Cristo e sua estrutura expressa diretamente - institucional-
mente – essa delegação fundante.
Com esse pressuposto, a sequência teologia-lei-organiza-
ção compõe um único conjunto; um todo inseparável em que a
organização expressa uma legalidade que, por sua vez, expres-
sa uma teologia. A igreja expressa em sua visibilidade os seus
fundamentos e expressa em sua ordem política e jurídica o seu
mistério primordial. No decorrer do tempo, o catolicismo se edi-
ficou em pequenas variações, mas sempre sobre esse pressuposto
integrador do visível como expressão direta do invisível, a or-
dem institucional presente como expressão das origens sagradas
perenes.

d) Rumos atuais e futuros

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Tendo sob os pés essas dinâmicas solidamente institucio-
nalizadas, o catolicismo se encontra inserido no contexto dos
tempos modernos. É nesse ambiente social, político e cultural
que se encontra construindo a si mesmo a passos lentos e sob
fortes tensões. Os concílios modernos, sobretudo os três últimos
ocorreram com o intuito de parametrar as assimilações das gran-
des revoluções modernas que tiveram como mola impulsora a
emergência do sujeito. A recepção dos valores e práxis da cha-
mada modernidade desafiam a igreja, ao menos desde o século
XII, quando o ocidente estruturou suas univesitates, ou seja, as
corporações autônomas que impactaram a autonomia das ideias
e das organizações sociais, culturais e políticas. No fundo, a per-
cepção de um mundo natural regido por suas próprias leis (e, por
conseguinte, a autonomia das ciências e das instituições) legado
das ideias aristotélicas, desencadeou no ocidente um processo
crescente de autonomização que ainda impacta as raízes antigas
da percepção e da organização da igreja católica: a autonomia da
ordem secular, das opções religiosas e das ciências ainda pressio-
nam e, muitas vezes, arrombam a estabilidade teológica, jurídica
e organizacional católica com projetos, sujeitos e estratégias va-
riadas.
Polos de tensão dinamizam a estrutura e o funcionamento
do catolicismo atual, resultado de numa longa dialética que busca
síntese, mas que se refaz nas oposições de visão, de organização,
de sujeitos e de projetos eclesiais e eclesiásticos. A pretendida
síntese do Concílio Vaticano II, não superou de modo estrutural
oposições históricas, de modo particular aquela de natureza ecle-
sial, a saber, de uma organização hierárquica e de uma comunhão
de sujeitos iguais componentes do mesmo corpo.
O catolicismo se construiu desde as suas origens de maté-
rias-primas históricas onde o confronto se fez presente de modo
estruturante. Nos tempos modernos os confrontos têm projetos,
nomes e configurações definidas e, por essas razões, se tornam
mais visíveis e mais tensos. No fundo, persistem as muitas faces
de um confronto entre uma cultura pré-moderna e outra moderna
que se apresentam nas cenas teológicas e institucionais da igreja

94
e, desde o Vaticano II, buscam modos de acomodação. Alguns
polos de tensão podem ser observados:

a) Unidade X pluralidade
A visão do real como expressão de uma unidade funda-
mental identificada com Deus, constitui uma resultante do en-
contro entre o pensamento ontológico grego a tradição bíblica do
Deus criador. Toda pluralidade de tempo e de espaço descansa
sobre essa unidade de origem, destino e de sentido de todas as
coisas. Com efeito, o catolicismo preserva em seu ethos o valor
e a práxis da unidade, não somente como constitutivo teológi-
co essencial de seu corpo social – comunhão de fiéis batizados,
comunhão de diversidades de ministérios, corpo místico, comu-
nhão dos santos - mas como regra de transmissão da doutrina
(a tradição), como corpo jurídico (direito canônico), como siste-
ma de interpretação (magistério) e como sistema de pensamento
(teologia oficial). O valor da unidade sustenta, costura e esconde
as diversidades inerentes a esse corpo, mesmo quando se afirma
que o diálogo é princípio e método de relacionamento interno da
igreja com a sociedade. O catolicismo desenvolveu uma rara ha-
bilidade de pensar e agir a partir da unidade e, consequentemen-
te, reproduz uma dificuldade grande em lidar com as diferenças.
As pluralidades de verdades e de práticas sociais, políticas
e culturais do mundo atual ainda se apresentam como desafios e
incômodo para a perspectiva de unidade de visão do catolicismo.
A empatia com as diferenças é lenta e polêmica. A proposição
de diálogo é um caminho que se consolida como princípio, mas
permanece intransitivo no momento de se traduzir em regras e
práticas concretas. As intolerâncias persistem como costume e,
até mesmo, como sugestão teológica de muitos grupos. A plura-
lidade é vista como ameaça à unidade de doutrina, de discurso e
de norma de convivência. A acolhida das diferenças na ordem do
pensamento e das práticas sociais e políticas constituem sempre
um desafio para o catolicismo, apesar dos ensinamentos do Papa
Francisco. A regra histórica prevalente de assimilar as diferenças

95
somente quando inseridas na unidade da tradição e da doutrina
é um caminho lento cujo resultado chega sempre atrasado em
relação ao ritmo da história.

b) Essencialismo X historicidade
Esse desafio é de ordem mais teórica; diz respeito ao que
está por baixo da mentalidade católica calcada na unidade e na
estabilidade. A herança grega platônica é evidente: o mundo e
todas as coisas são expressão de uma ideia singular, universal e
eterna. A verdade é una e imutável. A história muda e a verdade
permanece. Portanto, esse mundo feito de essências deve condu-
zir a interpretação e a ação dos indivíduos na história, sob pena
de traição da verdade. Se nesses termos, a análise fica por demais
abstrata, no entanto, quando essa perspectiva se traduz em dou-
trina católica fica mais clara e concreta: a doutrina moral não
pode ser modificada por ser expressão da ordem natural criada
por Deus, os dogmas não se modificam por serem a expressão
da própria ideia revelada por Deus, o celibato é uma lei imutável
por ter seu fundamento em Jesus Cristo, a mulher não pode ser
admitida ao presbitério pelo fato de ferir a vontade de Jesus.
O essencialismo esconde o processo histórico real das
construções das ideias, das normas e das instituições. Certas ver-
dades adotadas como fundadas nas origens e, por conseguinte,
em um valor eterno que se vincula ao próprio Deus, se apresen-
tam como imutáveis, mesmo que a história demonstre factual-
mente ser o contrário. Os esforços de reflexão do Sínodo para a
Amazônia introduziram no centro do catolicismo esse conflito
entre o universal imutável e a emergência da historicidade que
já havia sido enfrentado pelos padres conciliares. Os apelos lo-
cais e presentes foram novamente expostos nos discursos e nas
decisões finais do Sínodo em franco confronto com uma teologia
tradicional de cunho essencialista. A hermenêutica histórica dos
sinais dos tempos praticada e ensinada pelo Vaticano II (THEO-
BALD, 2015) mostrou seus limites e possibilidades. A herme-
nêutica histórica ainda não foi assimilada como ciência normal

96
da reflexão católica na sua totalidade e, menos ainda, conseguiu
produzir uma revisão da clássica ontologia clássica subjacente ao
edifício doutrinal.

c) Igualdade X hierarquia
O valor e a prática da igualdade se mostram como outro
desafio para a construção atual do catolicismo no ambiente mo-
derno. Embora tenha permanecido como dado teológico do cris-
tianismo primevo, cedeu lugar a uma ordem hierárquica geral,
estruturante do pensamento, da igreja e da sociedade. A cosmovi-
são hierárquica recorta historicamente as estruturações católicas
como princípio, regra e modelos políticas. Embora a modernida-
de tenha desmontado na teoria e na prática essa perspectiva e edi-
ficado outra civilização em seu lugar, civilização embasada em
programas de igualdade e de construção de consensos, a igreja
católica ainda conserva em sua lógica de preservação, de repro-
dução histórica e de renovação, princípios hierárquicos sólidos.
Sobre esses, fundamenta a sua organização geral e seu modo de
funcionamento: centralizado e descendente.
A tensão entre as concepções de homo hierarchicus e
homo modernus ainda persiste no catolicismo (LAFONT, 2000,
p. 114-115). A relação entre clérigos e leigos consolidou uma or-
dem teologicamente fundamentada que separa os que tem poder
e os destituídos de poder na participação e na condução do corpo
eclesial. É bem verdade que a própria igreja tem hoje assumi-
do postura crítica em relação ao clericalismo, embora mantenha
uma estrutura dual bastante rígida, fundada na autoridade de va-
rões consagrados e com podres de mando centralizados. Uma
organização eclesiástica baseada em princípios de igualdade dos
sujeitos eclesiais permanece como uma provocação política que
não cala, mas, ao que tudo indica, sem previsão de solução.

d) Poder sagrado X dessacralização


A concepção e prática de poder sagrado é uma dimensão

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dos itens anteriores. O catolicismo evoluiu desde cedo para uma
organização hierárquica baseada no modelo sacerdotal do antigo
testamento, o que rompe com as práticas carismáticas de poderes
descentralizados nas comunidades primitivas (PARRA, 1991, p.
139-180). O poder sagrado constitui o imaginário da organização
católica e subsiste como dogma político-organizacional estável.
Os que receberam a ordem sacra são ontologicamente distintos
dos demais por serem portadores de uma indelével marca em
seus seres.
O poder político dessacralizado ou individualizado, insti-
tuídos por critérios carismáticos estrutura as igrejas pentecostais
que avançam a passos largos. Por outro lado, a dessacralização
do poder na esfera pública cobra muitas vezes posturas mais
simples dos pastores, como representantes de iguais, espécie de
primus inter pares, representante mortal dos mortais comuns. A
dessacralização do poder em nome do serviço foi um fato que se
mostrou na era pós-Vaticano II, embora tenha permanecido como
opção individual de muitos ministros que assumiram o aggiorna-
mento em suas vidas e ministérios. A dualidade entre sagrados e
profanos ainda recorta o corpo eclesial de modo constitutivo, em-
bora contradiga as origens cristãs e, sobretudo, os ordenamentos
políticos modernos. A dessacralização do poder eclesiástico não
significaria, por certo, uma perda de seu significado original de
ungido para uma função ou serviço, mas de sua posição de poder
de mando e decisão centralizada e superior aos demais membros
da igreja. Uma mudança que seria afinada ao mesmo tempo com
as origens carismáticas do cristianismo e com as destradicionali-
zações modernas.

Considerações finais
O catolicismo chegou até aqui assumindo as construções
históricas ocidentais em suas representações e práticas, mesmo
que em graus e formados diferenciados. Soube transformar o que
era do outro em algo seu. Isso não significa transformá-lo em
um agente em permanente aculturação, mas em uma instituição
que tem sido capaz de assimilar as novidades, ainda que numa
lógica de assimilação tardia e de tradicionalização do novo. Ora,
o engenho de transformação do novo em velho para que possa
ser assimilado legitimamente não constitui tarefa que se possa
realizar da noite para o dia, mas, de fato, de século para século.
O Vaticano II foi um marco de assimilação da modernida-
de, ou seja, de valores práticas “estranhos” ao catolicismo que
foram sendo gradativamente assimilados da base para o topo da
hierarquia, de fora para dentro e do prático para o teórico-legal.
Com o Concílio foram assumidos e oficializados os caminhos
dessa assimilação: o presente interpretado e assumido a partir das
referências da tradição. A racionalidade tradicional opera dessa
maneira, justificando as atualizações a partir de suas origens mais
antigas e mais originais. A santidade e a verdade residem nas
origens e dela são retirados os elementos que fundamentam, jus-
tificam e materializam as renovações.
O catolicismo ainda se encontra na encruzilhada da mo-
dernidade e da medievalidade, ponto em que as renovações avan-
çam e retrocedem a cada geração que sucede ao marco conciliar a
ele retorna com algum critério de leitura. E se encontra, por cer-
to, longe uma síntese. A contrário, orienta-se de modo tenso para
assimilações de valores e práticas modernas, desafios de acolhida
da pluralidade cultural e religiosa em uma comunhão de doutri-
na, de tradição e de práticas, acolhida da história como lugar real
das construções humanas, morais e legais, em uma fé que afir-
ma um evento salvífico posicionado como fim/começo de tudo
e, evidentemente, da comunidade eclesial, acolhida da igualdade
como valor que desautoriza o poder de mando que separa sagra-
dos e profanos em uma comunidade de serviços diferenciados
entre especialistas religiosos e fieis comuns, acolhida da ordem
autônoma na natureza e da história em uma racionalidade que
pensa e age a partir de uma referência absoluta chamada Deus.
Muitos elementos modernos ainda estão fora das assimi-
lações e, por certo, configuram o momento atual em seus tópicos
de tensão: o valor da igualdade cobra inserção efetiva dos leigos
na condução da igreja, as relações de gênero cobram a plena as-
similação dos sujeitos femininos e homossexuais, as práticas po-

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líticas igualitárias e participativas rejeitam as figuras sacralizadas
que separam o conjunto dos fiéis, a racionalidade histórica ainda
exige revisões de leituras e posturas que reafirmam modelos do
passado em prejuízo do presente, ontologias que escondem su-
jeitos e urgências presentes, etc. Essas sobras modernas batem
nas portas do catolicismo e insistem em entrar. O Papa Francisco
responde de dentro da casa católica, dialoga com essas sobras,
mas as portas permanecem fechadas, no momento destrancadas,
mas ainda fechadas.
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