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Billy Collins (1941- ) é um consagrado poeta contemporâneo norte-americano.

Autor de mais
de 15 livros. Acadêmico respeitado, colaborador frequente da revista New Yorker, foi Poeta
Laureado dos EUA entre 2001 e 2003. Já realizou leituras de poesia na Casa Branca. Collins
consegue reunir multidões de leitores e ouvintes, nas salas esgotadas onde faz as leituras
públicas dos seus textos.

Introdução à poesia
Billy Collins
Trad. Edivaldo Ferreira

Peço a eles que peguem um poema


e o segurem contra a luz
como um negativo colorido

ou que aproximem o ouvido em sua colméia.

Digo para pôr um rato dentro do poema


e observá-lo procurar a saída,

ou caminhar dentro da sala do poema


tateando as paredes à procura do interruptor.

Quero que eles esquiem


sobre as águas do poema
acenando para o nome do autor à margem.

Mas tudo o que eles querem


é amarrar o poema a uma cadeira
e torturá-lo até conseguir uma confissão.

Eles começam a bater nele com a mangueira


para descobrir o que ele realmente significa.
Safo de Lesbos
Nascida em Mitilene, na Ilha de Lesbos, Safo viveu entre os séculos VII e VI antes de Cristo.
Não sabemos exatamente a data de seu nascimento ou sua morte. Era preceptora de garotas.
De sua obra só nos restam fragmentos e um único poema inteiro, a Ode a Afrodite. Safo
compõe, desde a Antiguidade, a lista os chamados Nove Poetas Líricos, elaborada pelos
antigos acadêmicos de Alexandria. "Esses nove, como Alceu ou Píndaro, eram chamados nas
antigas fontes gregas de “melikós” isto é, melodiosos, já que a palavra vem de melos,
canção. E alguns autores usavam, em lugar de mélikos, a palavra lyrikós (já que os versos
podiam ser acompanhados por uma lira). A cadência musical maravilhava os antigos, que
ouviam com enlevo sua suavidade."

Fragmento 146
para mim, nem o mel nem as abelhas

mete moi meli mete melissa


https://www.youtube.com/watch?v=Bph5uUiZgeo

mellowsmelling honey
yellowstinging bee
honey, Honey?
no not me
(trad. Anne Carson: http://www.jpdoiron.com/sappho/)
Telma Scherer é professora universitária (UFSC) e foi professora-colaboradora de pintura
no CEART - Centro de Artes da UDESC. Licenciada e bacharela em Filosofia (UFRGS);
graduada em Artes Visuais (UDESC); mestra em Literatura Comparada (UFRGS), doutora
em Teoria Literária (UFSC/Universidade do Porto) e pós-doutoranda em Artes
Visuais/Processos Artísticos Contemporâneos (UDESC). Publicou os livros de poemas
“Desconjunto” (IEL/RS, 2002) e “Rumor da casa” (7 Letras, 2008) e organizou “Entrevistas,
Ricardo Aleixo” (Azougue, 2018). Vive em Florianópolis, Santa Catarina.
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Um poema de "Depois da água"

Ter um tronco na cabeça um rombo


um olho
Ter um troço na cabeça
um troco um espaço destroçado.
Ter um osso na cabeça um oco
ter uma dúvida ao lado.
Ter um filme rodando na cabeça
um fim um fundo
um falso mundo moribundo.
Ter laços trocados entre a cabeça e o abraço.
Ter braços na cabeça
ter nasgos de fundos-musgos
nacos de lusco-fusco e ter
fuscas na cabeça fornicações migalhas
ações e maravalhas e estrias
Ter mais-valias na cabeça
ter tantos e tão tontos
e poucos migalhos.
Ter alhos na cabeça e cruzes de cabeçalhos
Ter cacarecos e bugalhos e búzios e espantalhos
e espasmos de exasperações.
Ter modelos de ações na cabeça
e títulos e ovários
ter otários na cabeça
e altos salários e concursos e minúsculos de músculos
entesados.
Ter tesões na cabeça testões arremessados
para o outro lado Ter baralhos na cabeça
embaralhados barulhados
embrulhados e burlados.
Ter buracos na cabeça nacos de nadas
tostões e namoradas Ter nados lodos
nenhuns e nuvens.
Ter nuvens na cabeça que passam
ter passados Ter passos na cabeça
passadas em calçadas Ter jogos de sapatas
Ter trapaças ter traças na cabeça e braças
Ter um ás e um és
Ter is e vis-a-vis à vista da cabeça
Ter vastos vestígios de martírios.
E ter mares na cabeça e bulevares de piratas
e baratas e baratas
e belvederes de onde se pode ver o que
se ouve e se Ave só dentro da cabeça.
Marly de Oliveira (1935 - 2007) foi uma poeta brasileira, professora de língua e literatura
italiana e de literatura hispano-americana. Seu segundo marido foi João Cabral de Melo Neto.

A suave pantera

I
Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
Ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
- em silêncio e lisura -
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.

II
É suave, suave, a pantera,
mas se a quiserem tocar
sem a devida cautela,
logo a verão transformada
na fera que há dentro dela.
O dente de mais marfim
na negrura toda alerta,
e ser do princípio ao fim
a pantera sem reservas,
o fervor, a força lúdica
da unha longa e descoberta,
o êxtase da sua fúria
sob o melindre que a fera,
em repouso, se a não tocam,
como que tem na singela
forma que não se alvoroça
por si só, antes parece,
na mansa, mansa e lustrosa
pelúcia com que se adorna,
uma viva, intensa jóia.
Paulo Colina – poeta, prosador e ensaísta, nascido Paulo Eduardo de Oliveira em Colina,
estado de São Paulo, a 9 de março de 1950. Membro da geração fundadora dos Cadernos
Negros e do coletivo Quilombhoje, estreou com o volume de contos Fogo cruzado (1980), ao
qual se seguiram as coletâneas de poemas Plano de voo (1984), A noite não pede licença
(1987) e Todo o fogo da luta (1989).

Traduziu vários poetas japoneses para o português, entre eles Takuboku Ishikawa (1885-
1912), Bokusui Wakayama (1885–1928) e Akiko Yosano (1878-1942). Seu conhecimento e
traduções da poesia japonesa refletem-se em seu trabalho, que prima muitas vezes pela
concisão. Morreu prematuramente em 1999, deixando vários inéditos, entre eles o volume
Águas-fortes em beco escuro, que reúne sua produção ensaística.
Eliane Marques é uma poeta brasileira, nascida em Santana do Livramento, Rio Grande do
Sul, em 1970. Estreou com o volume Relicário (2010), ao qual se seguiu e se alguém o pano
(2015).

_____

quantas mãos para sabás


quantas velas para que o dia
seja como a noite

sabás um negro tonto


sabás um negro bruto
sabás um negro louco
sabás um negro torto

sabás, oh sabás
grita ora oragora
gora fora ora mesmo

que refaça o que não pode


sabás o negro morto

os punhos
à boca terrena de sabás
como louro ou água doce

sabás, oh sabás
quando a morte não destino
de teus braços raízes

sabás, oh sabás
o negro sem espelho o negro sem veneno
o negro sem o mesmo o negro sem terreno
sabás o negro

algo se foi, sabás


algo se foi para sempre

e um nome é preciso
um nome preciso
que te ampare do vento
Sei Shônagon

A vida na corte japonesa, há mil anos, retratada com graça e concisão. Esse é o mote de O
Livro do Travesseiro, escrito entre os anos 994 e 1001 por Sei Shônagon, dama a serviço da
Consorte Imperial Teishi, principal esposa do imperador Ichijô. Naquela época – o período
Heian (794 a 1185) –, os valores e a estética da cultura japonesa estavam se consolidando.

Em meio às disputas políticas que dominam o ambiente, Shônagon e as outras damas


entretêm a imperatriz com poesias e relatos espirituosos, que retratam as coisas belas da vida.
Os 300 textos curtos que compõem o livro são de dois tipos: os que narram episódios da vida
no palácio e os que enumeram coisas em categorias, como “coisas que causam saudades” ou
“coisas que fazem palpitar o coração”. Com suas descrições certeiras e alegres, Shônagon
escreve uma das obras mais importantes da literatura clássica japonesa. Ela se debruça sobre
os jogos amorosos da época, sobre a poesia e as relações sociais, e também sobre a natureza e
o budismo, que começava a ganhar força no país. A presente edição levou 11 anos para ser
traduzida do japonês clássico por uma equipe de professoras do Centro de Estudos Japoneses
da USP.

(1)
Da primavera, o amanhecer. É quando palmo a palmo vão se definindo as esmaecidas linhas
das montanhas e no céu arroxeado tremulam delicadas nuvens.

Do verão, a noite. Em especial, os tempos de luar, mas também as trevas, de vaga-lumes


entrecruzando-se em profusão. Ou então, os solitários ou mesmo em pares que seguem com
brilhos fugazes. A chuva também é igualmente bela.

Do outono, o entardecer. São os momentos do arrebol da tarde em que o sol se acha prestes a
tocar as colinas, quando se tornam comoventes os corvos que se apressam para os ninhos em
grupos de três ou quatro, ou dois e três, e o que diríamos então, ao avistarmos os minúsculos
gansos selvagens seguindo em fila, que encantadores! O sol já posto, melancólico soa o ciciar
do vento e o canto dos insetos.

Do inverno, o despertar. Indescritível é com a neve caindo e nele incluo a ofuscante brancura
da geada. Mesmo na ausência destas, em manhãs de um frio cortante, o apressar das pessoas
em acender o fogo e o corre-corre entre os aposentos com os carvões acesos são cenas típicas
desta estação. O sol já nas alturas e o frio mais ameno, não nos cativa mais que a brasa já
quase tornada cinzas no braseiro portátil.

(232)
Quanto ao que cai, a neve. O granizo. A neve chuvosa é detestável, mas é encantadora a
brancura que se destaca quando cai. É maravilhosa a neve sobre o telhado de casca de
cipreste, sobretudo quando está para derreter um pouco. É também verdadeiramente
fascinante quando a neve, ainda pouca, se acumula no telhado plano e o sombreado de seu
contorno faz ver formas curvas.

A chuva fina e intermitente de outono e o granizo sobre o telhado de tábuas. Também a geada
sobre o telhado de tábuas. Ou no jardim.

(241)
Coisas que simplesmente passam e... passam. O barco à vela. A idade das pessoas. A
primavera, o verão, o outono, o inverno.
MARINA TSVETÁIEVA

Tentativa de ciúme

Como vai você com a outra?


Fácil, não é? — Um golpe de remo! —
E de pronto a linha da costa
Se foi e você já nem se lembra

De mim, ilha flutuante


(No céu, por certo, não no mar)!
Almas! Almas! — antes amar
Como irmãs, não como amantes!

Como vai você com a mulher


Comum? Sem nada de divino?
Sem soberana, sem sequer
Um trono (você foi o assassino),

Como vai, meu bem? Tudo a gosto?


E o dia-a-dia — sempre igual?
Como você se arranja com o imposto
Da banalidade imortal?

"Mil sobressaltos, incertezas —


Basta! Vou arrumar um teto!"
Como vai, com quem quer que seja —
O eleito pelo meu afeto?

A comida é melhor, mais familiar?


Diga a verdade. Como vai
Você com a imitação vulgar —
Você, que subiu ao Sinai?

Como é viver com uma estranha?


Você a ama? Não disfarce.
O chicote de Zeus da vergonha
Nenhuma vez lhe zurze a face?

E a saúde, vai bem? Que tal


A vida — uma canção? A ferida
Da consciência imortal
Como a suporta, meu querido?
Como vai você com o adereço
De feira? A taxa é muito cara?
Como é aspirar o pó do gesso
Depois do mármor de Carrara?

(Deus talhado em barro, termina


Em pedaços!) Como é o convívio
Com a milionésima da fila
Pra quem já conheceu Lilit?

As novidades de feira
Se acabaram? Farto de portentos,
Como é a vida corriqueira
Com a mulher terrena, sem sexto

Sentido? Vamos, tudo cor


De rosa? Ou não? Aí, nesse oco
Sem fundo, amor, como vai? Pior
Ou igual a mim com outro?

(tradução de Augusto de Campos)

Ensaio de ciúme

Como vai indo com a outra?


Tão fácil, não? — basta um impulso
no remo — com a orla, a minha
imagem se borra, se afasta,

vira ilha flutuante (no céu,


— na água, não!). Alma e alma,
irmãs, sim — mas, amantes, não!
Uma é destino; outra — sem fim!

Que tal viver com tal pessoa


comum — vida sem divindades?
Jogou do trono-olimpo a deusa-
rainha, abdicou — e a coroa

de sua vida, como fica?


Ao despertar, como pagar
o preço de imortal banal-
idade — como? Menos rica?

"Chega de susto e suspeita!


Quero um lar!". Mas... e a vida
só — com uma mulher qualquer —
Você — eleito de uma eleita?

Ah... E a comida? Apetitosa?


Você se queixa quando enjoa?
Depois do topo do Sinai,
Ir conviver com uma à-toa

da parte baixa da cidade,


uma coitada? Gostou da anca?
O açoite-vergonha de Zeus
ainda não vincou-lhe a estampa?

Entre viver e ser, dá para


contar? E como encara
o caro amigo a cicatriz
da consciência-meretriz?

Viver como boneca de gesso


—de feira!? Você me acha cara?
depois de um busto de Carrara,
um susto de papier-mâché?

(O deus que escavei de um bloco


só me deixou os ocos). Enleva
viver com uma igual a mil,
quem já teve a Lilit primeva?

Não lhe matou a fome a boa


bisca, que atendeu aos pedidos?
Como viver com a simplória
que só possui cinco sentidos?

Enfim, por fim...: você é feliz,


no sem-fundo dessa mulher?
Pior, melhor, igual a mim,
nos braços de um outro qualquer?

(tradução de Décio Pignatari)


Orides Fontela, uma das mais importantes poetas contemporâneas brasileiras, nasceu em
São João da Boa Vista (SP) no ano de 1940 e faleceu em Campos de Jordão (SP) em 1998.
Mudou-se em 1967 para a capital paulista, onde cursou filosofia na Universidade de São
Paulo. É autora dos livros de poesia Transposição (Instituto de Espanhol da USP, 1969),
Helianto (Duas Cidades, 1973), Alba (Roswitha Kempf, 1983), Rosácea (Roswitha Kempf,
1986) e Teia (Marco Zero, 1996). Sua obra foi reunida em 2015 pela editora Hedra, acrescida
de poemas inéditos. "O mundo proporcionou à poeta momentos agudos de depressão e
solidão, além de costumeiras dificuldades financeiras. Tanto que ela recebeu apoio dos
amigos Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr. e Marilena Chauí. Seu drama pessoal era
traduzido além da página. O peso da realidade lhe conduzira várias vezes ao suicídio.
No final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver
com sua amiga Gerda na Casa do Estudante Universitário, velho prédio na Avenida São João,
região central de São Paulo, onde passou seus últimos anos. Era uma pessoa irritadiça e
muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em
Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 2 de novembro de 1998, de insuficiência
cardiopulmonar, provocada por uma tuberculose na Fundação Sanatório São Paulo. Não fosse
a ajuda de um médico da Fundação, que viu um livro juntamente com os objetos pessoais de
Orides, a poeta poderia ter morrido como indigente."

São Sebastião
(Orides Fontela)

As setas
– cruas – no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na nudez jovem

as setas
– firmes – confirmando
a carne
PAPAI
Sylvia Plath /Trad. Marina Della Valle

Você não serve, você não serve,


Não serve mais, sapato negro
Em que eu vivi como um pé
Por trinta anos, branca e pobre,
Mal me atrevendo a um espirro sequer.

Eu tive de matar você, papai.


Você morreu antes que eu pudesse –
Peso de mármore, saco repleto de Deus,
Estátua medonha com um dedão gris
Do tamanho de uma foca de Frisco*

E uma cabeça onde o estranho Atlântico


Derrama o verde-vagem sobre o azul
Nas águas da magnífica Nauset.
Eu rezava para recuperá-lo
Ach, du.

Na língua alemã, na vila polonesa


Aterradas pelo rolo-compressor
Das guerras, guerras, guerras.
Mas o nome do lugar é comum.
Diz meu amigo polaco

Que há uma ou duas dúzias.


Assim nunca soube onde você
Fincou seus pés, suas raízes,
Com você nunca pude falar.
A língua presa no maxilar.

Arapuca de arame farpado.


Ich, ich, ich, ich,
Mal conseguia dizer.
Em todo alemão vi você.
E a linguagem obscena

Uma locomotiva, uma locomotiva


Em vapores me leva como Judia.
Uma Judia para Dachau, Auschwtiz, Belsen.
Passei a falar como uma Judia.
Acho que bem posso ser Judia.
A neve do Tirol, a cerveja clara de Viena
Não são lá muito puras ou genuínas
Com minha ancestral cigana, minha estranha sina
E meu baralho de tarô, meu baralho de tarô
Eu devo ser um pouco Judia.

Você sempre me meteu medo,


Com sua Luftwaffe, seu papo furado.
E o seu bigode asseado
O olho ariano, bem azulado.
Homem-panzer, homem-panzer, oh Você –

Não Deus, mas uma suástica.


Tão negra que nem céu vara.
Toda mulher adora um Fascista,
A bota na cara, o bruto
Coração de um bruto da sua laia.

Você está de pé na lousa, papai,


Na imagem que levo comigo,
Em vez do pé, o queixo fendido,
Mas não menos diabo por isso, oh não
Não menos que o homem que em dois

Partiu meu belo e rubro coração.


Eu tinha dez anos quando o enterraram.
Aos vinte, eu tentei morrer
E voltar, voltar pra você.
Achei que mesmo os ossos serviram.

Mas me puxaram saco afora,


Juntaram meus pedaços com cola.
E aí eu soube o que fazer.
Eu fiz um modelo de você,
Homem de negro, Meinkampf no jeito

À tortura e ao torniquete afeito.


E eu disse aceito, aceito
Então, papai, finalmente acabei.
Arranquei o telefone negro da raiz,
As vozes já não rastejam até aqui.

Se matei um homem, matei dois –


O vampiro que me disse ser você
E sugou meu sangue por um ano afora,
Sete anos, se quiser saber
Papai pode voltar a se deitar agora.

Há uma estaca em seu coração negro


E os homens da vila jamais gostaram de você.
Estão espezinhando, dançando sobre você.
Eles sempre souberam que era você.
Papai, papai, seu canalha, acabei.

* Frisco: a cidade de São Francisco, EUA.

DADDY

You do not do, you do not do


Any more, black shoe
In which I have lived like a foot
For thirty years, poor and white,
Barely daring to breathe or Achoo.

Daddy, I have had to kill you.


You died before I had time –
Marble-heavy, a bag full of God,
Ghastly statue with one gray toe
Big as a Frisco* seal

And a head in the freakish Atlantic


Where it pours bean green over blue
In the waters off the beautiful Nauset.
I used to pray to recover you.
Ach, du.

In the German tongue, in the Polish town


Scraped flat by the roller
Of wars, wars, wars.
But the name of the town is common.
My Polack friend

Says there are a dozen or two.


So I never could tell where you
put your foot, your root,
I never could talk to you.
The tongue stuck in my jaw.

It stuck in a barb wire snare.


Ich, ich, ich, ich,
I could hardly speak.
I thought every German was you.
And the language obscene

An engine, an engine,
Chuffing me off like a Jew.
A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen.
I began to talk like a Jew.
I think I may well be a Jew.

The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna


Are not very pure or true.
With my gypsy ancestress and my weird luck
And my Taroc pack and my Taroc pack
I may be a bit of a Jew.

I have always been scared of you,


With your Luftwaffe, your gobbledygoo.
And your neat mustache
And your Aryan eye, bright blue.
Panzer-man, panzer-man, O You –

Not God but a swastika


So black no sky could squeak through.
Every woman adores a Fascist,
The boot in the face, the brute
Brute heart of a brute like you.

You stand at the blackboard, daddy,


In the picture I have of you,
A cleft in your chin instead of your foot
But no less a devil for that, no not
Any less the black man who

Bit my pretty red heart in two.


I was ten when they buried you.
At twenty I tried to die
And get back, back, back to you.
I thought even the bones would do.
But they pulled me out of the sack,
And they stuck me together with glue.
And then I knew what to do.
I made a model of you,
A man in black with a Meinkampf look

And a love of the rack and the screw.


And I said I do, I do.
So daddy, I’m finally through.
The black telephone’s off at the root,
The voices just can’t worm through.

If I’ve killed one man, I’ve killed two –


The vampire who said he was you
And drank my blood for a year,
Seven years, if you want to know.
Daddy, you can lie back now.

There’s a stake in your fat black heart


And the villagers never liked you.
They are dancing and stamping on you.
They always knew it was you.
Daddy, daddy, you bastard, I’m through.
Corsino Fortes foi um poeta cabo-verdiano, nascido no Mindelo, na ilha de São Vicente, em
1933. Presidente da Associação dos Escritores de Cabo Verde, foi o primeiro embaixador do
país em Portugal. Considerado um renovador da linguagem poética cabo-verdiana, lançou os
livros Pão e fonema (1974), Árvore e tambor (1986) e Pedras de Sol & substância, este
último publicado no volume que reunia sua poesia até então, A cabeça calva de Deus (2001).
Escreveu em português e crioulo cabo-verdiano. Pode-se ler um artigo de Cláudia Fabiana
sobre o trabalho do poeta, “Corsino Fortes e sua poética semeadora da 'cabeça calva de
Deus'”, na revista Buala. (Ricardo Domeneck, Revista Modo de Usar)

Chão do povo chão de pedra

O rosto de teu filho brada pelo mar


Como panelas mortas como panelas vivas
mortas
vivas
nos fogões apagados

Pilões calados fogões apagados


No vulcão e na viola do teu coração

Boca do povo no fogo dos nossos fogões apagados

Chão do povo chão de pedra!


O sol ferve-te o sol no sangue
E ferve-me o sangue no peito
Como o fogo e a pedra no vulcão do Fogo

De sol a sol
abriste a boca

Secos os pulmões
neles cresce-me
a lenha do mato

De sol a sol
os meus ossos são verdes
os teus ossos são plantas
Como a fruta-pão o tambor e o chão

De sol a sol
gritei por Rimbaud ou Maiakovsky
deixem-me em paz
Cidadã (fragmentos do 1º capítulo)
(Claudia Rankine/Trad. Stephanie Borges)

Certos momentos mandam adrenalina para o coração, secam sua boca, e travam seus
pulmões. Como um trovão eles te afogam no barulho, não, como um raio eles te atingem
atravessando a laringe. Tosse. Depois que aconteceu eu perdi as palavras. Não foi você quem
disse isso? Você não disse isso para uma amiga íntima que no início da sua amizade, quando
distraída, teria chamado você pelo nome da empregada negra dela? Você concluiu que vocês
eram as duas únicas pessoas negras na vida dela. Eventualmente ela parou de fazer isso, ainda
que ela nunca tenha reconhecido o lapso. E você nunca chamou a atenção dela para isso (por
que não?) e ainda assim, não esquece. Se isso fosse uma tragédia doméstica, e poderia muito
bem ser, essa seria sua falha fatal — sua memória, reservatório dos seus sentimentos. Você se
sente magoada porque é aquele momento “todas as pessoas negras se parecem”, ou porque
você está sendo confundida depois de ser tão próxima dessa outra?

--

Porque você tem um status premium concedido por causa de um ano cheio de viagens, você
já está acomodada em um assento na janela pela United Airlines, quando uma menina e a
mãe dela chegam na sua fileira. A menina, analisando você, diz para a mãe, esses são os
nossos lugares, mas não é isso que eu esperava. A resposta da mãe é quase inaudível — Estou
vendo, ela diz. Vou sentar no meio.

--

Uma mulher que você não conhece se convida para almoçar com você. Você está visitando o
campus dela. No café, as duas pedem salada Cesar. Essa coincidência não é o começo de
nada porque ela imediatamente comenta que ela, o pai dela, o avô dela e você, todos
frequentaram a mesma universidade. Ela queria que o filho dela fosse para lá também, mas
por causa das ações afirmativas ou algo das minorias — ela não sabe do que eles estão
chamando essas coisas hoje em dia, eles não iam acabar com isso ? — o filho dela não foi
aceito. Você não tem certeza se deveria se desculpar por essa falha no programa de tradição
familiar da universidade na qual se formou; em vez disso você pergunta onde ele foi parar. A
instituição de prestígio que ela menciona não parece amenizar a irritação dela. Essa conversa,
com razão, acaba com o seu almoço. A salada chega.
Ana Akhmátova
Foi Uma das principais poetas russas do século 20, Ana Akhmátova (1889 - 1966) .
Considerada "alienada" e sem "consciência cívica" pelo regime soviético, teve o primeiro
marido torturado e preso, um filho preso e o terceiro marido enviado para um gulag, do qual
jamais retornaria. Foi proibida de publicar de 1925 a 1952 (com um breve intervalo entre
1940 e 1946). Os poemas acima fazem parte de "Réquiem", um pequeno livro de 16 poemas
(10 numerados e mais seis à guisa de abertura e epílogo), que só veio a ser conhecido dez
anos após a morte de Stálin.

Réquiem – alguns poemas


(Ana Akhmátova – Trad. Aurora Bernardini e Hadasa Cytrynowicz)

Introdução
Aconteceu quando a sorrir
Eram só os mortos: contentes pela paz.
E, inútil sobra, pendia
Em volta de suas celas, Leningrado.
E quando, loucas de dor,
Já marchavam as legiões dos condenados,
E os silvos do trem cantavam
Um breve canto de adeus.
As estrelas da morte sobrestavam
À Rússia inocente, se crespando
Sob as botas de sangue
E a sola dos negros camburões.

1.
Levaram-te ao amanhecer,
Atrás de ti, como no enterro, eu ia,
No quarto escuro, choravam os meninos.
Acabava-se a vela sobre o altar,
Nos lábios teus, do ícone, o frio.
O suor mortal na testa… Não dá para esquecer!
Como as mulheres dos franco-atiradores,
Uivarei pelas torres do Kremlin.
1935. Moscou.

3.
Não, não sou eu, é alguém mais que sofre.
Eu não teria podido. Panos negros de lã cubram
O que se passou,
E levem embora os lampiões…
Noite
Mina Loy
Mina Gertrude Löwy nasceu em Londres em 27 de dezembro de 1882, filha de pai judeu
húngaro e mãe protestante inglesa. Começou sua carreira de artista plástica em Paris e depois
se mudou para Nova Iorque em 1916, onde já era conhecida não tanto por sua pintura quanto
por sua reputação como poeta (e mulher) de vanguarda, cujo trabalho (e comportamento) era
admirado por uns e causava estranhamento e repúdio em outros. Entre os admiradores
estavam Marcel Duchamp, Djuna Barnes, Ezra Pound, Gertrude Stein e os dadaístas de Nova
Iorque, incluindo Arthur Cravan, com quem se casou. Além da pintura e da poesia, Loy
escreveu prosa, teatro e ensaios e também se tornou designer de luminárias e fez esculturas
usando sucata coletada pelas ruas e lixeiras de Manhattan. Morreu em 25 de setembro de
1966 em Aspen, Colorado, ondem moravam suas duas filhas Joella e Jemima, reclusa e com
algumas obras não publicadas. Seus poemas foram publicados em vida nos volumes Lunar
Baedeker e Lunar Baedeker & Time Tables e postumamente reunidos, junto com ensaios,
dramaturgia e outros escritos, em The Lost Lunar Baedeker. Seu único romance, Insel,
também foi publicado postumamente.

Lunar Baedeker / Mina Loy Guia de Viagem Lunar / trad. Maíra


Mendes Galvão

A silver Lucifer Um Lúcifer cintilante


Serves serve
cocaine in cornucopia cocaína em cornucópia

To some somnambulists Para uns sonâmbulos


of adolescent thighs de coxas adolescentes
draped vestidos
in satirical draperies em vestes satíricas

Peris in livery Peris de librés


prepare preparam
Lethe Letes
for posthumous parvenues para póstumos arrivistas

Delirious Avenues Delirantes Avenidas


lit luzem
with the chandelier souls com as almas-candelabro
of infusoria de infusórios
from Pharoah’s tombstones das catacumbas do Faraó

lead conduzem
to mercurial doomsdays a mercuriais apocalipses
Odious oasis Oásis odioso
in furrowed phosphorous— em fósforos fendidos—

the eye-white sky-light o branco-olho clara-boia


white-light district pre-claro distrito
of lunar lusts de luxúrias lunares
—Stellectric signs —Sinais estelétricos
“Wing shows on starway” “Asa aparece em asterismo”
“Zodiac carrousel” “Carrossel zodíaco”

Cyclones Ciclones
of ecstatic dust de poeira extática
and ashes whirl e cinzas giram
crusaders cruzados
from hallucinatory citadels de alucinantes cidadelas
of shattered glass de vidro estilhaçado
into evacuate craters até crateras evacuadas

A flock of dreams Um rebanho de sonhos


browse on Necropolis pasta na Necrópole

From the shores Dos litorais


of oval oceans de oceanos ovais
in the oxidized Orient no oxidado oriente

Onyx-eyed Odalisques Olhos de ônix de odaliscas


and ornithologists e ornitologistas
observe observam
the flight a fuga
of Eros obsolete de Eros obsoleto

And “Immortality” E a “Imortalidade”


mildews… mofa…
in the museums of the moon nos museus da lua

“Nocturnal cyclops” “Ciclope noturno”


“Crystal concubine” “Concubina de cristal”
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Pocked with personification Com manchas em personificação
the fossil virgin of the skies a virgem fóssil dos céus
waxes and wanes—- medra e mingua—

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