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William Blake: o Poeta e 0 Visiondrio a aca da Revolugao Industrial acarretou transfoma- ges profundas na vida econ6mi “Inglaterra, na segunda metade ‘comércio, o aperfeigoamento, dos processos mecAiticos,.a ‘exploracio das. minas de carvio ¢ a instalagio das primeiras Tibricas i6xteis determinaram 0 enriquecimento da bras, Jevando-a a reivindicar participagio cada vex mai ” police do jas, em deinmento da antiga anstocracia e dos “ferns prosretrios de irre Por goto lado, acclraram © fendmeno da urbanizagdo e, o que € pior, da suburbanizaczo, praticamente esvaciando os campos ¢ as aldclas ¢ arrasiando os lavradores artesdos para os centros industriais em desenvol- vimento, onde formariam a grande massa do proletariado, impiedosamente explorada pelos novos sistemas de produsio. ‘A passagem de. uma economia essercialmente agricola para nia industrial deu origem, poranio, a problemas pré-rominticos. Numa época em que a filoso- fla, as lewas ¢ as artes estavam todas sob a égide da Razio, era natural que esses autores vissem as mazelas da nova ordem camo, ‘produtos de uma concepedo cerebral da politica, da sociedade & da prépria vida. Por i330, comegaram por opor 0 subjetiviamo “emocional.ao objetivisiio racional dos neocléssicos, Sua tarcfa .~sradupla: de uma parte, deverism encontrar uma alternativa para ‘oambiente urbano, a industrializagio e o capitalismé incipientes: ‘que condenavam; e, de outra, deveriam forjar ums Tinguagem nova, que exprimisse elicazmenite as suas inquicuides ¢ substi- tufese com vantagem os padries literirios vientes, calcados atificalmente nos modelos gregose latinos. O ultimo problema foi solucionado com 0 retomo a simplicidade das formas posti- cas populares. O primeiro, com a volta 4 natureva. ~~ Essa busca da natureza, propugnada pelo Conde de ‘Shafisbury, o precursor inglés de Rousseau, encontra suas primeiras manifestagdes posticas na obra de autores ainda Figa- os a0 neoclassicismo, como James Thomson, Thomas Gray ¢ ‘William Collins. O apego & natureza, bascado na {¢ incondicio~ nal em sua ado purificadora — que toma o homem bom, fenquanto a sociedade 0 corrompe —, pode, entretanto, levar © poeta a um disianciamento da realidade © a uma fuga a qual- ‘quer comprometimento. Em outras palavras, pode levi-lo a0 escapismo. E foi isso 0 que de faio aconteceu a alguns, ertre cs quais 05 soguidores de Edward Young ¢ os integrantes da “graveyard school”, que sé isolavam do mundo ¢ faziam as suas meditagdes notumas nos cemitérios de aldeia. Mas nem todos foram vitimas desse peiigo. Thomas Chtterton ¢ James ‘MacPherson (Ossian), por exemplo, descobrindo a voz da na- ureza Lamibém ma espontaneidade das expresses posiicas do povo, procuraram no passado as suas rafzes, explorando, res- pectivamente, o lirismo das cangtes medievais © 2s vigorosas Jarrativas de uma idsde herSica. George Crabbe, por sua ¥e7, demonstrou a sua simpatia pelos filhos da natureza, os simples 0s oprimidos, com um realismo bastante incomum na época. E simpatia maior ainda foi manifestada por Robe Bums, que chegou a pregar abertamente a necessidade da Revolucio.- Nenhum dees, contudo, teve tanto fmpcio revolucionério ¢ fol “io radical_em_svas_atitudes.quanto.William Blake. . Blake possai muitos pontos em comum com os demais _pré-fomianticos ¢ cotn os grandes roménticos que o seguiram, ‘Como eles, prefere.a cmotividade & raziio, ¢ € por “inspiragdo’ que cria as Suas obmas; como eles, opta pela.simplicidade-¢ eras finn pexticas de sabor popular, coma cles. exalta a. fatureza ¢ a espontancidade..Aliés, scu.amor_a infincia — ‘como aconteceria mais tarde a Wordsworth — deriva subsian- Clalmente de sua visio da criznga como wm ser que a sociedade ainda nao teve tempo de cortomaper e que, por isso, encama a propria inocéncia natural. Mas, ap lado desses,trayos comuns, mostra cle.algumas caracteristicas que nfo <6 0 individializam mas também o tomam_uma das vozes. mais poderosas ¢ signi- ficativas do romantismo inglés, como a preciso das imagens ¢ a funcionalidade dos Sfmhotos, a energie dos ritmos ¢ a forga profética, o senso da readade ¢ a acvidade psicol6gica, a pro- Fundidade das idéias c a complexidade da visio césmica. 10 O mais admirével em Blake ¢ que, para desenvalver todas len ulna, le eorne praeanonss cn alo po os ingleses chamam de “educagio formal”. Nascido em Londres, em_1757,_ filo de_um, in ‘Wnica escola qué conheceu foi 4 Academia Real-de Artes, « ‘Tee @ opomunidade de fregiientar por breve perfodo, apés um ‘cus elementar de desenho, Recebel, portanto, alum prepay” artisia_pléstica_ Mas a outra faccta de: a lix som_base nos mo por Caso, € que inclufamn autores como Spenser, ‘Shakespeare, Milton e alguas poetas do infcio do século X VIL, além de diversos contemporaneos, entre os quais Ossian, Chatterton ¢ William Collins. .2Q primeim livro de poesies de Blake, Esbogas Poéticas, byt tnbalhos egonios des 12 aoe 30 ance mas pub .cado-somente.em_1783 —, revela muito bem aquelas ipdluén-. —ciss. E 0 que se observa, por exemplo, no poema “A. Esirela ‘Vespenina’, com uma forga pictorica que lembra Spenser; ox em “As Musas”, uma critica do autor & produgao poética de seu tempo vazada em linguagem miltoniana; ou mesmo em *Can- go Pemente”, com nftidas ressondncias do Rel Lear de Shakespeare, notadamente das cangdes do Bobo do Rei na . cenas de loucura e tempestade. Entrelanto, € preciso convir que, ‘no obstante a imaturidade, nio se trata de uma obra exziusi- vamenie derivativa, pois as imagens, os sfmbolos ¢ as atitudes ccontéin alguns elementos que jé trazem a marca registrada de Blake, Podemos vecificar isso io s6 no Gltimo poema citado, mas também em varios outros, como a *Cangio” que se inicia com 0 verso “Le campo em campo errava eu docemente”, © ‘que, a0 namrar 1 histéria do menino ingénuo (ou passaro) que se deixa ludibriar pelo Principe do Amor, denuncia 0 mal em temmos nao muti distinios dos que 0 Blake maduro empregaria nas Cancaes da Experiéncia, Astes de Wi chegartos, cortudo, temos que passar pelas CangOes da Jnocéncia, que S30 de 1789. As Cangdes da Inocéncia vonsiituem um. volume impor _anie por varios motivo. Um deles ¢ que, pela primeira vez, 0, ‘artista pldstico e 0 pocta que existiam em Blake se reuniram para produzir um obra de maior escopo. Trabalhando com um méiodo de sua prdpria invengdo, & base de cera e de écido, ~--Blake-como;ava por gravar 0 texto e as ilustragées em plac: _de cobre, que. depois servian para. impress Ua pagan a Seguir, os desenhios eram_coloridos.2.mdo, mm labor minu- -cieso-e lento, no qual.o autor contava_ com a colaboracao da esposa, Catherine Boucher, uma jovem simples ¢ analfabeta Ont-quem se casara 40s 24 anos, ¢ a quem ensinara aler¢ a Devido 2 complexidade do processo, ndo atinge trés zens 0 niimero de exemplares conhecidos dessa primeira edigio do livro, Em compensaei0, o manuseio do volume em sua forma original constitui uma experiencia estética tinica, alo mais rica e gratificante que a proporcionada pelos textos 4 -Qiuro-nasiv. da wevincia das Canzdes da Inosncia.€ ue clas nos-oferecem 0 primetm contalo com.o-aspesio 1} _gioso_em. William Blake, que haveria de culminar mzis tarde nos scus sonhos visiondrios. Blake, na yerdade, sempre foi um mistico. J4 208 quatro anos afirmava ter visto Deus 20 olhar pela janela do quarto. Depois, menino ¢ adolescent, dizia avistat-se com os profetas biblicos em seus passeios pelos cam- pos nos arredores de Londres. Chegou mesmo a levar sovera .Surre da mae quando Ihe contou que havia conversado com-o profeta Ezequicl. Mas nada 0 fazia mudar, Continuou a ter € a descrever as suas visbes (que, conforme nos adverte 0 seu sen- ae humor, nunca devernos tomar ao pé ca letra); a sua leitura redileta continuou a sora Biblia, ¢ 9 sou intewesse pela litera ura mistiGa — coiiio as obras de Paracelsus ¢ de Jakob Bohme — aumentava sempre. Posteriormente, também o famoso visio- nério auceo Swodonborg, muito eatudado ¢ dissutido na $p0ca, charaou a sua atengio. E foi sob essas influ€ncias que as Cancées da Inocéncia foram escritas. A primeira vista, 0 volume se parece com uma daquelas obras didético-religiosas para criangas, muito comuns naquele tempo, no estilo da conhecida coletiinea de Isaac Watts. Mas € uma alsa impressiio, pois a associagio de caracterfsticas infin- tis (como 0 ritmo bem marcédo, as repeticOcs constantes, as litcragbes Obvias e 0 vocabulirio simples) com aspectos adul- tos (como 0 domfnio da forma ¢ as sugestivas implicagSes simb6licas) mostra que o auter visava a um piblico bem mais umplo. E a esse piblico ele anuncla 0 mundo da inocéncia, jntimamente ligado & natureza € & rendncia cist, ¢ retratado través de uma séri¢ de identificagtes. A “Introdugio”, 0 mesmo tempo em que contém 0 relato simbélico de como 0 ‘escreveu a obra através do clemento romintico ¢ religi- Pso da “inspiragao™, nos dé, de imediato, uma idéia do comple- xo entrelacamento dessas identificagdes: 0 jovem flautista é, simultaneamente, 0 artista, 0 pocta e 0 homem adulto; como é igualmente pastor, rlaciona-se com 2 figura divina de Cristo, ‘9 Bom Pastor, mas, como Cristo foi também 0 Menino Jesus @ 0 Conieiro de Deus, o flautista, através dele, se associa & Crianga, que aparece na nuvem, e com o cordeirinho, a respeito do qual € convidado a cantar. Desse modo, 0 homem se iden- fifica com 2 crianga, com a natureza ¢ com Deus, em unidio +5 infsiica no reino da serena felicidade. O mesmo tema reaparece em “O Cordeiro”, pecma de estruture um pouco mais elabor daronde uma criang2, atravéSie perguntas ¢ TespOstas, cateq ‘a um cordsirinno a respeito de Jesus.Cristo, E outras formas de comunhio aparecem no volume: em ‘A Floracio”, por exemplo, 0 narrador (‘Junto a meu peito”), plasmado com 0 mundo vegetal (a floragzo), acolhe © mundo animal, tanto nos - momentos festivos (“o pardal”) quanto tristes (0 “pintarrox0"), ¢, em “A Imagem Divina”, o homem se funde com Deus atra- ‘yés das “virtudes de deleite” — a Mereé, a Piedade, a Paz e 0 ‘Amor, O deleite, de fato, € 0 prémio que nos reserva a inoc8n- cia, Tao grande entio é nossa ventura, que aié as mies desco- prem os nomes para os filhos na alegria que eles sentem (como em “Alegria Infanti”). ‘A presenca de Cristo como Cordeiro de Deus isto €, como vitima sacrificada cm beneficio dos homens — supers Gnrclanto, que a violéncia e a cuzeldade também existem, € 0 poeta nifo pode continuar a ignoré-las, E em *O Limpa-Chami- nés”, a honestidade e o espirito realista de Blake nos mostrar ‘a inocéncia a se defrontar com a dor e a opressdo, na pessoa de ‘um pequeno 6rfio que nio s6 aceita, com resignagdo cristi, 0 trabalho pesado ¢ sujo que Jhe impdem, mas também conforta 08 companheiros de inforttinio. Do ponto de vista estético, 0 poema deixa algo a desejar, pecando talvez por um excess0 de Gidatismo. Mas ndo ha como negar a sua importéacia A vista do material explosivo que encerra, com o seu tocante quadro ce 3 exploracdio humana ¢ com as tenses sociais que permite entre- ‘ver. Outro texto com tema parecido € “O Negrinho”, se bem ue a questio focalizada sein a do preconceito racial’ Por en- quanto, porém, ainda hi submisso, o autor ainda nos quet fazer crer que, por causa dela, € mals wiunfante a afirmacio da alegria visiondria, Para muitos, a solugao sugerida pode nio ser satisfasria, Para.o proprio Blake, entusiasmado com a Revoluggo Francesa, — que eclodiia exatamente no ano do aparecimento de Cancdes da Inocéncia —, 0 gesto de oferecer 2 outra face também nfo ‘mais parecia satisfat6rio. Melhor seria lutar, enfrentar a realida- de; ¢ no fugir da refrega, como fez a temerosa personage de seu belissimo Livro de Thel, igvalmente de 1789. Mas como reagir sem romper os ditames da religitio? Como reconciliar a Revolugdo com Cristo? A tinica sada era rinterpretar a figura de Cristo, Afinal, se a Revolucdo estava certa (¢ para quem, como Blake nog versos inicizis de sua obra em sete Tivros, A Revolucdo Fran- cesa [1791], a descreveu como uma “alvorada” que “nos chama de torpores de cinco mil anos”, s6 podia estar), era evic. ate que 4 imagem ce Jesus tinha sido distorcida, pois, sendo ele a perfeicio, nfo poderia haver conflito, Conseqtentemente, Cris- to nio mais deveria encemar a submissio, mas a revolla; e 0 seu simbolo no mais deveria ser 0 Cameiro, porém, o Tigre. primeiro era a visio di crianga inocente, alheia 2 realidade; 9 segundo, a do experierte adulto, que corthece 0 sofrimento. E como as diferengas entre as duas vis0es $0 profundas, 0 poela se sentiu compelido a retomar 2os iemas de seu value anterior e a abordé-los do Angulo oposto, E foi assim que sut= giram, no ano.de.1794, as suas Cangdes da Experiéncia. ‘Antes cisso, porém, em 1793, Blake dera a lume outro trabatho, O Casamento do Céu e do Inferno, 0 mais acesstvel de seus “livros proféticos’, onde expée, com maior clareza, os concitos que desenvolve de forma postica nas Cancdes da Experiéncia, Em visla disso, & sempre aconsclhivel abordé-lo ‘em primeiro lugar. E é 0 que faremos aqui. Logo no inicio da obra, Blake declara a sua rej lwexas de Swedendorg, ironicamente retratado como “o Anjo assentado no sepulcra” de Jesus. Concomitantemenie, renuncia 4 ne a.doutrina do cristianismo tradicional, que para ele no passa de ‘uma maldosa falsificagao dos princfpios de Cristo. E esse cristianismo tradicional que ensina — como lemos em “A Voz do Demdnio” — que 0 homem possui uma alma e um corpo completamente distintos ¢ soparadlos; ¢ que alma se relaciona ‘com 0 Bem ¢ 0 Céx, enquanto 0 corpo se associa aq Mal € 20 Infemo. Blake agora vé essa separacdo como uma nuptura da imegridade do homem, como a sua verdadeira “queda” do paraiso, uma vez, que ele s6 pode ser feliz quando as duas partes so aceitas ¢ agem simultaneamente. Ademais, se alguma delas tivesse que ser rotulada de “boa”, nilo seria por certo a alma, que, sede da RazZo, € essencialmente reguladora ¢ restritiva, e sim 0 corpo, que, Sede da Energia Primitiva, € fundamentalmente criador e prolific. Por isso, Blake preferia colocar-se a0 lado do Infemo e da Energia, como, aliés, todos ‘9s grandes artistas criadores, a comegar pelo prdprio Milton, autor do Paratto Perdido, cue, mesmo puritano, “era um poeta de verdade, ¢ do lado do Deménio, embora nilo 0 soubesse”. ‘Também 0 verdadciro Cristo se identificiva com a Ener- gia, pois, conforme vemos em “Uma Fantasia Memordvel” (iulo que € uma parédia-das “Relagdes Memoriveis” de ‘Swedenborg), ele “era todo virtude, e agia por impulso, nto por regras”. Dessa forma, Blake se imanava com Milton e Cristo na luta do Infemo e da Energia contra a tirania do Céu e da Ruzio. Os defensores desta, muito ardilosos — visio que “o fraco na coragem € forte mi esperteza’” —, progam sempre a reniincia € a submisso, dominando a humanidade por mefo éa seligido e criando os regulamentos ¢ todas as opressGes c injus. tigas sociais. Sdo eles a “serpente insinuante” que, em “O Argumento”, poema que abre O Casamento do Céu e do Infer- no, “se armasta em doce humildade”. Mas 0 ‘justo que se en- raivece nos ermos” est pronto para se retxlar, ¢ “as nuvens famintas sobre o abismo” prenunciam a Revolucdo. Neste pon- 10, € preciso ressaltar, porém, que a libertagdo precorizada nio se restringe a0 Ampito politico, estendendo-se, como bem 0 demonstram os “Provérbios do Tnfemo”, aos campos da reli- sido, das instituigdes sociais (como o matriménio), e da psico- logia, onde 0 poeta se revela, as vezes, legtimo precursor ce Freud (haje visia 0 provérbio: “Melhor matar uma crianga no 15 bbergo que acalentar desejos insatisfeitos”). Com essa nova visto da realidade, as discrepdincias enire a crenga ¢ 0 espliito de rebelito desaparecem, ¢ a Revoluglo e Cristo se identificam. Convém assinalar, todavia, que toda essa énfase que Blake faz.recair sobre a Energia criadora decomre de uma neces sidade dielética, de uma exigéncia de compensagdo imposta por uma €poca sob o domfnio excessivo da Razo, Na verdade, pporém, o que ele pretende € a coexisténcia dos dois extremos, ‘ou seja, do Prolifica, que produz, e do Devarador, que conso- me, Mesmo porque, como diz 0 poeta, “o Prolifico (..) deixaria de ser Prolifico, se o Devorador, como um mat, ndo mais re- cebesse 0 excesso de suas delicias”. Nao é 2 toa que o tule da obra fala em “casamenio” — ainda que se trate de um casamen- to bastante estranho, fundamentado na eterna, mas equilibrada, hostilidade entre as partes, a0 invés de em sua unio, Afinal, ‘oposigao € a verdadcira amiizace”, pois “sem contririos no hd rogressio”. Em vista de tudo isso, podemos afirmar que as,Cangdes da Experiéncia nto eliminam, ou subsituom, a8 Cangbes da nocencia, elas apenas aS complétan, ofsrecendo-nos 0 Tevers0 da.medalha, As duas obras devem Ser lidas emt conjiinto, pois as suas posigCes adquirem maior validade quando encuradas como a reprodugio de “estados contrérias do espiriio humano”. ‘Se as Cangées da Inocénciz representam a voz. do Céu, ou da _Razdo, as Canzdes da Experiéncia transmitem a voz. do Infer- [no, ou da Energia — seja i manifestar a sua pujanga natural, seja a exprimir 0 seu incorformismo por se encontrar em gri- hoes, E 0 que se percede logo na “introducao”, onde, em lugar da alegria inocente do flautista juveril, temos o lamento do Bardo idoso, profeia experiente, que conhece toda a evclugzo da bumanidade desde a sua criagdo, O Verbo Sagrado, a que cle se refere, outro nao & sendo 0 Jeové da Biblia, a Raia opressora, que, no obstante o seu pretenso poder (“que pode courolavaé o polo este), fea a coat no Jardim do Eden (0 “pomar antigo"), convocando de volta “a alma perdida’ tentando com ardis ¢ promessas vas preservar 0 seu dominio sobre © homem, Mas tudo o que cle oferece em troca dz sub- missio so confortos imitados, que ele assegura apenas “até que rompa do dia’, isto €, 0 dia da Revolugio, que sabe estar 16 proximo, Por isso mesmo, em “A Resposta da Terra”, seu apelo é rejeitado. ‘Algumas cangbes do volume zpresentam o protesto de Blake contra os grilles morais ¢ religiosos; outras se voltam mais cspecificamente contra os grilhdes poifticos e socisis, Ente as primeiras, podemos mencionar “O Torrao e 0 Seixo”, gue contrapSe os conceites de Amor do Devorador e do Pro: fico; “O Jardim do Amor”, onde € mais que evidente a re- ppulsa aos tabus sexuais estabclecidos pela religiio; “A Rosa Doente”, 0 reverso de “A Floraciio”, onde.o verme, também com fortes conotagées sexusis ¢ simbolicamente relacionado com a serpente waigocira, dzstréi a rosa, emblema da beleza € do jabilo naturais; “Tristeza Infantil", a contraparte de “Ale- aria Infantil”, que mostra até no reoém-nascido os eftitos psi- Colégicos nsgativos do casamento cristio convencional; “O Abstrato Humano”, reformulagdo de “A Imagem Divina”, com sua concepgio das “virtudes de deleite” como subprodutos do egaismo do homem racional; "Uma Arvore de. Veneno”, uma visio mais amarga ainda dos filhos da Razio; e, finalmente, “O Pequeno Vagabundo", com sua mensagem bastante Obvia. Entre as cangdes de maior enfoque politico e social. podemas Iembrar a nova versio de “O Limpa-Chaminés”, em que 0 pequeno protagonista € inconscientemente oprimide pelos pré- prios pais, vitimas, por sua vez, da opressio institucionalizada, ¢, principalmente, o excelente poema “Londres”, com sua visd0 realista ¢ até chocants das chagas da sociedade Contemporsnea. _Neahuma cangio de Blake supera: contido, a forga.e a. beleza de “O Tigre’,.a contraparte. de." Conlciro”.-O pozma “Cinieiramente constuufde por pergunias, como a indicar que 6 t mundo da experiéncia é um mundo de diividas ¢ iidertézas, a6 is contririo do reino da inocéncia, onde, se Tazemnds indagagoes ve (como em “0 Cordeiro"), geralmente obtemos respostas. Entre ‘ tanto, mais que a sensaglo de inseguranga do homem, 0 que os : SeUS Versos os comunicam ¢ a impressdo de uma energia in- i controlvel, presente nas imagens de violéncia, na insisténcia das consonincias e das aliteragdes, ¢ no impiedoso martelar do ritmo, sugerindo as vezes o fragor de uma forja infemal. E iS tinha que ser assim, pois o Cristo que o Tigre representa € a. ty propria Energia criadora. Por isso, € uma luz ¢ uma chama em 7 meio &s trevas da opressio; age por impulso e rélo obedece a regras —, 0 que toma assustadora a sva prépria “simeiria"s transcende o mundo e desbarata os esquacirSes dos asros, sim- bolos da ordem ¢ da Rizo. Nzo obstante toda essa pujanca, porém, fica implicito que a Energia € apenas um aspecio da realidade, e deve ser considerada em conjunto com a sua con traparte: “Quem te fez, fez também 0 Cordeiro?*. E as razbes dessa necessidade j4 nas foram fomecidas pelo Casamento da Céa € do Inferno. Por fim, também merece atencio (além de “O Tigre”), como expresso da beleza da Energia Primitiva, 0 poemeto “Ah! Girassol”. a composiggo das trés tltimas. obras focalizadas, Blake atrayessiva uma fase. relafivameénte trangulla efi sta _vidhAlguns anos antes, ele perdera o pate ima cacula, ““ynildars-se varias vezes, ¢ livers uma experiéncia fracassada ‘como impressor. Mas, d:pols que comegou a dar aulas particu- lares de desento, sua situagio finarceira se estabilizou, ¢ ele Ode sé dédicar & criagio literdtia durante muitos anos segui- dos. Vérias cangoes estritas nessa Epoca (1790-1810), vers&es diferentes das publicadas em 1794 ou poemas ligados a clas no espirto e na temética, foram registradas num cacemo que, por ter ido depois parar nas mos do poeta e pintor Dante Gabriel Rossetti, ficou conbecido como Manuscrito “Rossetti” (publi- ‘cado em 1863 e, em edicd0 conigida, em 1935). Esse texto ¢ representado neste livro por quatro obras: “Vi uma Cepela toda de ouro”, que novamente retrata a indignactio do autor pela violaggo (apresentada ema termos de penctiago sexual) dos sfmbotos da Inocéneia por parte da serpente da Razo; “Pedi a um Ladrio”, sobre a forga corruptora dos “anjos” do céu, associados & mesma serpente; “‘Mofadores” e “Augdrios da Ino- céneia’ (excertos). Em tomo de 1800, entretanto, os problemas 4Jé ressurgiam; o poeta ¢ a mulher se transferiram entdo para Felphari, @ convite de William Hayley. Trés anos mais tarde esiavam de regresso a Londtes, abrindo-se assim a sitims fase da cameira literiria de Blake, que se estendeu até 1820, Depois dessa data cle se voltou quase que exclusivamente para 05.12 balhos de gravaciio e de pintura; €, cercado pela admiragio de ‘um pequeno mas dedicalo grupo de amigos, veio a faleger em 1827, aos setenta anos de idade. 18 Essa dltima fase lterdria € certamente a mais complexa, a mais obscura e a mais controvertida de todas. E a época dos grandes “livros proféticos", como As Visdes das Fithas de Albion, América, Europa, O Primeiro Livro de Urizen, O Livro de Ahania, O Livro de Los, Os Quatro Zoas, Milton — em cujo Prefcio se insere 0 belo poema Iirico “Seus pés J caminharem no passedo?”, aqui reproduzido —, ¢, por fim, Jerusalém, com suas proporydcs épicas. Impacicnte com todas as restrigdes — e coerentemente com sua declarada intenyfio de abrir carminho para a libertagio do Homem Uni- versal —, © autor procurou, nessas obras, reduzir ao minimo 2 sua sugigdo As convengdes fommais. Assim, substituiu cle a mérrica tradicional por um verso “Tivre” de sua propria in- engi, geralmente constitufdo por sete acentos fortes e um ndmero indeierminado de sflabas. Também 0 conteddo foi renovado, passando por algumas senstvels mudangas de en- fogue. E verdade que as divindades ainda continuam sendo encamagbes das caracterfsticas humanas, que a “queda do bomem'" ainda é causada pela tirania da Razo sobre a Encr- sla, e que a “redengio” se verifica apenas através da recupe- rigdo da integridade perdida. Mas agora o embate das {orcas ‘postas tem lugar cada vez menos no Ambit politico ¢ so- cial, ¢ cada vez mais adquire amplitude oésmica. E a chive libertadora j4 nao € tanto a Revoluga0 quanto a imaginagao Humana, a cajo servigo se coloca Blake. 0 Bario-Profeta. Além disso, todas as forgas em conflito so representadas por seres imagindrios, com desdobramenios ¢ estégios diver- S08, dentro de um sistema mitol6gico pessoal e hermético, Assim, 0 Homem Universal se divide em quatro demiurgos 03 “Zoas”, chamados Tharmas, Luvah, o eriativo Urthona ¢ © cerebral Urizen, cada: qual com seus “Espectros” masculi- nos — suas manifestagdes apés a “queds” —, e com suas “Emanagées” femininas. A propria “queda” conhece quatro estégios, passando da integridade do Eden para a desintegra- G10 total de Uiro através das fases intermedisrias de Beulah @ da Geragio. E 0 que vemos em Jerusalém, onde Albion, que tanto representa a Inglaterra quanio o Homem Universal, se enconira separado de sua Emanagao, fechado em seu egofsmo cerebral, no Sono de Uiro. Sew reencontro com 19 Jerusalém significaré a volta ao Eden, a reintegragao do Ho- e mem, E isso’o que o autor profetiza no final do poema A obsoaridide dos “livros proféticos” e seu estilo exces- sivamente térgido tendem a afastar 0 leitor comumi mas no chegam a comprometer 0 mérito da obra de Blake no seu con- junto, O seu valor, alids, pode ser aquilatado pelo grande im- acto que ela ainda causa e, sobretudo, pels influéncia que exerceu em toda a literatura posterior. Whitman, por exemplo, Se deixon empolgar pela romintica identificagio do poeta com 9 profeta, © seus versos livres deve algo ao modelo de Blake: Ezra Pound, em sou anseio de objetividade, se inspirou pat= ceialmente nos pocmas litioos do primeiro perfodo, para desen- volver a técnica das “méscaras posticas” ou “personae”; Yoats © seguiu com as suas “visdes"; TS. Eliot extraiu dele alguns dos simbolos centrais de sva poesia; D.H. Lawrence recriou, com os seus conceites de “consciéncia mental” ¢ “consciéncia do sangue”, a oposi¢go entre a Razo e a Energia; ¢ James Joyce pode ter recebido das personagens metamdrficas de Jerusalém a sugestao ¢ 0 estinulo para 0 sonho fantéstico de Finnegans Wake. Muitos outros exemplos poderiam ser arrola- TEXTOS dos aqui, mostrando como os trabalhos de Blake incendiaram a imaginag3o de outros autores. Mas esscs so mais que suficientes para atestar a vitalidade © a grandzza de sua obra iterdria, 20 2

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