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REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
VICE-REITOR
Fabio Barboza Passos
F996 Futebol na sala de aula : jogadas, dribles, passes, esquemas táticos e atuações para o ensino de Ciências
Sociais e de História / Lívia Gonçalves Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira (organização). – Niterói :
Eduff, 2021. – 277 p. : il. ; 23 cm.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5831-069-3
BISAC EDU029040 EDUCATION / Teaching Methods & Materials / Social Science
CDD 371.3
Prefácio | 11
Apresentação: o futebol no campo do ensino | 15
PRELIMINAR
cidadania e legado em debate | 23
Gilmar Mascarenhas
PRIMEIRO TEMPO
Futebol e Relações Internacionais:
o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra | 35
Adriano de Freixo
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas | 177
Leda Maria da Costa
Ditadura civil-militar
e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay | 197
Luiza Aguiar dos Anjos
Do Kanjire ao futebol:
dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang | 219
José Ronaldo Mendonça Fassheber
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando | 251
Silvio Ricardo da Silva, Luiz Gustavo Nicácio e Priscila Augusta Ferreira Campos
Apresentação
O futebol no campo do ensino
1 MURAD, M. Dos pés à cabeça: elementos básicos de sociologia do futebol. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1996.
2 LEITE LOPES, J. S. A vitória do futebol que incorporou a pelada: a invenção do jornalismo esportivo e a entrada dos negros no futebol
brasileiro. Revista USP, n. 22, p. 64-83, 1994.
3 GUEDES, S. L. O futebol brasileiro: instituição zero. 1977. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 1977.
16 Futebol na sala de aula
4 DAMATTA, R. Esporte e sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, R. Universo do futebol: esporte e sociedade. Rio de
Janeiro: Pinakotheke, 1982.
5 GUEDES, S. L. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro. Niterói: EdUFF, 1998, p. 41.
6 BROMBERGER, C. De quoi parlent les sports? Terrain, Des Sports, n. 25, sep. 1995.
Apresentação 17
transformadora. Por isso mesmo, somos imensamente gratas aos/às colegas que
acreditaram no projeto e embarcaram nesta aventura, enviando suas colaborações,
a despeito do prazo exíguo.
Por fim, gostaríamos de prestar homenagem a dois grandes estudiosos
da temática que nos deixaram em 2019. À antropóloga Simoni Lahud Guedes, pro-
fessora do Departamento de Antropologia da UFF, que produziu a primeira disser-
tação sobre futebol. Defendida em 1977, no Programa de Pós-Graduação em Antro-
pologia Social do Museu Nacional (PPGAS-UFRJ), O futebol brasileiro: instituição
zero permanece por mais de quatro décadas uma referência para todos nós. Ao longo
da sua carreira, essa pioneira dedicou-se com paixão e profissionalismo a produzir
reflexões fundamentais que nos permitem continuar a construir e consolidar um
campo de estudos, pesquisa e ensino relacionado a um dos nossos maiores patrimô-
nios: o futebol. Infelizmente, Simoni não pôde finalizar seu texto para esta coletânea
(da qual ela foi uma entusiasta), mas decidimos incluir o resumo proposto.
E ao professor e pesquisador Gilmar Mascarenhas, um dos maiores
expoentes da Geografia dos Esportes no país, profissional excepcional e ser humano
incrível que partiu de forma precoce e inesperada. Um dos últimos textos produ-
zidos por Gilmar foi gentilmente cedido pela equipe do Portal Ludopédio para ser
publicado neste livro. Manifestamos nossos sinceros agradecimentos por esse gesto
que nos permite contar com a sua contribuição. O artigo de Gilmar e o resumo da
Simoni abrem esta coletânea. Com gratidão, admiração e saudade, esperamos dar
sequência às suas jogadas geniais.
1 MASCARENHAS, G. O EURO 2016 em Bordeaux (França): cidadania e legado em debate. Ludopédio, 25 jul. 2019. Disponível em: https://
www.ludopedio.com.br/arquibancada/o-euro-2016-em-bordeaux-franca-cidadania-e-legado-em-debate/. Acesso em: 14 abr. 2020.
24 Futebol na sala de aula
submetidos ao mesmo implacável vetor global representado pela Fifa e Uefa, bem
como a outras dinâmicas inerentes à produção capitalista do espaço urbano: a busca
incessante pela acumulação do capital e os mecanismos de valorização do espaço. E
que as eventuais diferenças na materialização e legado desses dois eventos são resul-
tado de distintas dinâmicas sociopolíticas verificadas em cada país no que tange,
sobretudo, às conquistas cidadãs.
No Rio de Janeiro, sabemos que a onerosa reforma do Estádio do Mara-
canã gerou elitização do equipamento e sensível redução do tradicional protago-
nismo coletivo em seu recinto, num processo que qualificamos de pacificação e
gentrificação (MASCARENHAS, 2014; 2013) e tão minuciosamente estudado por
Ferreira (2017). Ao mesmo tempo, condizente com o objetivo expresso de priva-
tização, todo um conjunto de intervenções no entorno visou adequar o espaço
ao lucro privado, em detrimento dos usos compartilhados e direitos socialmente
adquiridos, gerando fortes tensões e resistências, analisadas por Castro (2016).
Vamos aqui verificar como se deu a participação da cidade de Bordeaux na Euro-
copa de 2016, avaliando aspectos diretamente relacionados ao exercício da cidada-
nia e ao legado do evento.
A França já havia sido a sede da primeira Eurocopa (então denominada
Campeonato Europeu de Nações), realizada em 1960. Todavia, naquela ocasião, as
seleções participantes, 17 no total, se confrontavam em suas respectivas pátrias ou
na pátria adversária. Somente quando restavam quatro equipes classificadas, estas
se dirigiram ao país anfitrião, que, por isso, acolheu as poucas partidas restantes
em somente dois estádios: Parc des Princes (Paris) e Velodrome (Marselha), os
dois principais centros futebolísticos nacionais de então, nas duas maiores cidades
francesas, e sem demandar reformas. Portanto, com custo muito reduzido para o
governo e a sociedade.
O país promoveu nova edição do evento em 1984, já no atual formato
espacialmente concentrador, destinando sete estádios para acolher as 16 sele-
Cidadania e legado em debate 25
ções presentes. Nessa ocasião, um novo estádio foi erguido, em Nantes (Stade
de Beaujoire), e outros cinco foram reformados no sentido da ampliação de sua
capacidade de público em Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Lens e Strasbourg.
Apenas o Parc dês Princes manteve-se praticamente intocado. Tais reformas,
cumpre frisar, partiram em grande medida das próprias necessidades locais, uma
vez que o futebol vivia um momento de plena expansão no gosto do público
francês, avançando sobre o tradicional rugby. Nesse sentido, não há registro de
produção de “elefantes brancos”, e, sim, um redimensionamento dos equipamen-
tos existentes, adequando-os a uma nova realidade de apreciação e consumo do
espetáculo futebolístico. Registre-se que a ausência nesse evento de Bordeaux e
Toulouse (quarta maior aglomeração urbana francesa) se explica, em parte, pela
persistente supremacia do rugby no sudoeste francês.
Interessante frisar que esse modelo concentrador e de alto impacto nos
países-sede parece estar em xeque. Além da Copa do Mundo de 2026 ser disputada
em três países, a próxima Eurocopa se dispersará por 12 países, modelo descentra-
lizado que pode representar a redução do risco potencial de produção de “elefantes
brancos” ou, ao menos, de excesso de gastos em um único país. No entanto, consta
nesse evento a presença de um novo estádio em Baku, no longínquo Azerbaijão,
com poucas perspectivas futuras. Como contribuição a este artigo, Fernando Fer-
reira observa que a Euro 2020 permitirá não apenas ganhos políticos para a Uefa
como também a extensão do padrão Fifa a novos países, situados na periferia glo-
bal do futebol. Reformas ou construção de novos estádios que não seriam realiza-
das, caso tais países não fossem convidados a participar do famoso certame.
Antes que a Fifa impusesse o novo padrão de rigorosas exigências para
sediar uma Copa do Mundo, a França organizou seu mundial de futebol em 1998. Na
ocasião, foi erigido um único estádio novo, o Stade de France, em Paris. Na edição
anterior, a de 1994 nos Estados Unidos, o país simplesmente adequou os estádios de
futebol americano preexistentes, com gasto bastante reduzido. Mas esse tradicio-
26 Futebol na sala de aula
de futebol amador Lége Cap Ferret, situado na comuna homônima, nos arredores
de Bordeaux. Ele não apenas reclamava dos preços dos ingressos para a Eurocopa,
como da excessiva comercialização: informa que na Copa de 1998 pôde assistir
gratuitamente diversos jogos, pois a Federação Francesa de Futebol (FFF) forneceu
ingressos a centenas de clubes amadores em todo o país. Outros tempos...
Cumpre registrar que o evento em Bordeaux não promoveu grandes
impactos aos direitos humanos, tais como as massivas remoções forçadas no Rio
de Janeiro, tampouco ao patrimônio local, desfigurando uma centralidade socio-
cultural como o Maracanã. Ao contrário, as intervenções se dirigiram a uma área
de expansão urbana, e um novo estádio foi construído (além do conjunto arquite-
tônico poliesportivo), colaborando decisivamente para inserir Bordeaux entre os
grandes centros esportivos franceses, e mesmo em nível continental.
Em Bordeaux, ao que tudo indica, o novo estádio não agride as “culturas
torcedoras” locais, de que nos falam Simões (2017) e Ferreira (2017). Apenas consolida
um modo preexistente de torcer, de “habitar” o estádio, bem menos eufórico, coletivo e
ruidoso que o modo brasileiro. Uma cultura torcedora já plenamente vigente no con-
texto europeu há pelo menos duas ou três décadas, não obstante a existência de grupos
excepcionais ligados ao “hooliganismo”. No Brasil, ao contrário, o torcedor tradicional
sofre, grita, reclama, reivindica, ameaça e se articula coletivamente com estranhos.
Ele quer ser protagonista do evento, ao qual contribuiu com sofrido dinheiro e paixão
fiel ao seu clube. Atitude distinta do consumidor, solitário ou imerso em seu pequeno
e “fechado” grupo, que apenas contempla, aplaude, filma e fotografa o cenário. Uma
experiência sem riscos, sem incertezas, adequada e altamente lucrativa para os donos
do espetáculo. Apostamos que a “arenização” de nossos estádios busca afastar indí-
cios de uma “cultura torcedora” fermentada no Brasil ao longo de, pelo menos, quatro
décadas de vigência dos “estádios das massas”, aqui produzidos entre 1950 e 1990.
Se comparados, Rio de Janeiro e Bordeaux expressam cenários um tanto
distintos no urbanismo e na dinâmica cidadã, anunciando profundas diferenças no
Cidadania e legado em debate 29
âmbito do direito à cidade. Comparando os dois países, podemos afirmar que a auto-
ritária “Copa das Empreiteiras” e do neodesenvolvimentismo brasileiro adquiriu tons
excludentes e violentos na cidade já governada, desde 1993, pelo espírito neoliberal.
Ao mesmo tempo, apesar de todos os reveses do Estado de Bem-Estar Social fran-
cês nos últimos 15 anos, persistem um leque de direitos e toda uma cultura política
que, em certa medida, freiam os anseios neoliberais de seus últimos governos. Nesse
sentido, os processos de valorização do solo urbano para apropriação privada trans-
correm sem, por exemplo, recorrer necessariamente à remoção forçada e em massa
de moradores pobres. E sem promover a destruição de um patrimônio histórico de
profundo significado para a cultura popular, como o Maracanã.
Referências
FERREIRA, Fernando da Costa. O estádio de futebol como arena para a produção de diferen-
tes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo
Maracanã. 2017. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2017.
LOGAN, John; MOLOTCH, Harvey. Urban Fortunes: The Political Economy of Place. Berkeley:
University of California Press, 1990.
SIMÕES, Irlan. Clientes x rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio
de Janeiro: Multifoco, 2017.
NOTA
Este texto contém excertos do artigo: Megaeventos esportivos, política urbana e direito à cidade:
França e Brasil. In: FERNANDES, Ana; CHAGAS, Maurício. (orgs.). O direito à cidade na
França e no Brasil: uma nova agenda urbana? Questões para um debate necessário e fecundo.
Salvador: PPGAU/FAU UFBA, 2018, v. 1, p. 255-274; publicado em coautoria com o geógrafo
francês Jean-Pierre Augustin.
Perseguindo um sonho:
a profissionalização de jogadores e
jogadoras no futebol
Simoni Lahud Guedes
Referências
DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São
Paulo: Hucitec; Anpocs, 2007.
GUEDES, Simoni Lahud. Subúrbio: celeiro de craques. In: DAMATTA, R. (org.). Universo do
futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p. 59-74.
MELO, Marcelo de Paula. Esporte e juventude pobre: políticas públicas de lazer na Vila Olímpica
da Maré. Campinas: Autores Associados, 2005.
SOARES, Antonio Jorge; CORREIA, Carlus Augustus; MELO, Leonardo Bernardes Silva de
(orgs.). Educação do corpo e escolarização de atletas: debates contemporâneos. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2016.
SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo:
Intermeios; Fapesp, 2016.
Vídeos
FUTEBOL. Direção de João Moreira Salles e Arthur Fontes. Brasil: GNT Vídeo Filmes, 1998.
DVD. (Série de três documentários).
RITOS da nação. Direção de Édison Gastaldo. Rio Grande do Sul: UNISINOS, 2007. DVD.
PRIMEIRO TEMPO
Futebol e Relações Internacionais:
o “rude esporte bretão” em
tempos de paz e de guerra
Adriano de Freixo
O futebol e a guerra
defesa, artilheiro, blitz, bomba, tiro ou bombardeio acabaram por ser incorporadas
ao jargão futebolístico e são repetidas cotidianamente pelos milhões de aficionados
do esporte mundo afora. Da mesma forma, bandeiras, torcidas organizadas, gritos
e cantos de guerra também remetem imediatamente ao universo militar e guerreiro
e aos rituais do Estado-nação, a forma de organização política, por excelência, da
modernidade ocidental.
Mas, para além das aproximações simbólicas, no plano do real, o fute-
bol e a guerra se cruzaram e se imbricaram por inúmeras vezes. Já na mãe de
todas as guerras, o conflito mundial de 1914-1918, o futebol desempenharia um
papel importante: na Inglaterra, como não havia alistamento militar obrigatório
até 1916, o Exército realizava partidas de exibição em diversas cidades do país
para atrair os jovens, e vários deles se engajaram por conta disso (AGOSTINO,
2002). Também se tornou célebre a prática inaugurada pelo Primeiro Batalhão
do Décimo Oitavo Regimento de Londres de atacar os alemães, a partir de uma
bola chutada em direção à trincheira adversária. Espalhando-se por outras uni-
dades do Exército britânico, essa manobra atinge seu ápice na Batalha de Somme
(1916), quando um oficial inglês, o capitão Wilfred Nevill, que comandava a
Oitava Companhia do East Surrey Regiment, apresentou quatro bolas de futebol
aos quatro pelotões sob seu comando e prometeu premiar o primeiro deles que
cruzasse as linhas alemãs chutando a bola. Mesmo com inúmeras baixas, a com-
panhia comandada por Nevill – que estava entre os mortos – foi uma das únicas
a conseguir seus objetivos nesse primeiro dia de combates, com aquela que ficaria
conhecida como a ofensiva do futebol.
Na Segunda Guerra Mundial, um episódio extremamente conhecido,
e que inspirou livros e filmes, é a partida realizada em Kiev, Ucrânia, entre a
equipe da Luftwaffe (Força Aérea Alemã) e o Start FC, time formado por (ex)
-prisioneiros de guerra que, em sua maioria, tinham sido jogadores de dois clu-
bes locais, e que foram fechados pelos nazistas, o Lokomotiv e o Dínamo. Este
38 Futebol na sala de aula
impedida de dormir pelo barulho e pela agitação ao redor do hotel em que estava
hospedada, já que os salvadorenhos haviam decidido retribuir o tratamento dispen-
sado à sua equipe, em Tegucigalpa. Como assinala Hamann (2002), existem versões
controversas sobre os acontecimentos que envolveram essa segunda partida. Assim,
há desde relatos que falam que o saldo da violência resultante do jogo resumiu-se
a um homem hospitalizado, uma mulher de nariz quebrado (ambos hondurenhos)
e vários automóveis depredados até outros que mencionam centenas de hondure-
nhos feridos e mesmo ataques físicos aos jogadores da seleção. De qualquer forma,
a maneira como a imprensa de Honduras noticiou o clima em que se deu a partida
– vencida por El Salvador por 3 x 0 – e os acontecimentos que se seguiram a ela
contribuiu decisivamente para a onda de violência contra os imigrantes salvadore-
nhos nos dias subsequentes ao jogo, sendo muitos deles expulsos de suas terras e
obrigados a sair do país.
As tensões na fronteira entre os dois Estados se acentuaram com a ampla
mobilização de tropas por ambas as partes. E enquanto os governos da Costa Rica,
Nicarágua e Guatemala tentavam articular uma solução diplomática para o impasse,
ocorria a terceira e decisiva partida, dessa vez em território neutro, na cidade do
México. Com a vitória por 3 x 2 obtida na prorrogação (2 x 2, no tempo normal de
jogo), El Salvador conquistou a tão sonhada vaga para a Copa do Mundo. Porém as
divergências entre os dois países tinham chegado a um ponto em que parecia ser
inviável qualquer tentativa de resolução pacífica, inclusive porque tanto a imprensa
hondurenha, quanto a salvadorenha continuaram a acirrar os ânimos da opinião
pública, disseminando o ódio e os sentimentos xenófobos.
Depois de algumas semanas de incidentes fronteiriços, a guerra come-
çou de fato em 14 de julho, com um ataque salvadorenho a Honduras utilizando
sua Força Aérea e também forças terrestres. Depois de quatro dias de luta, na noite
de 18 de julho de 1969, a Organização dos Estados Americanos (OEA) conseguiu
negociar um cessar-fogo com os Estados beligerantes, pondo fim ao conflito. Essa
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 43
guerra deixou um saldo de quase dois mil mortos e mais de quatro mil feridos, em
sua maioria civis, e acabou terminando sem vencedores. Nas palavras de Eduardo
Galeano, “os senhores da terra e da guerra não derramaram uma gota de sangue,
enquanto os dois povos descalços, idênticos em sua desdita, vingavam-se ao con-
trário matando-se entre si com patriótico entusiasmo” (GALEANO, 2004, p. 130).
Em várias das guerras civis – conflitos internos aos Estados que opõem,
via de regra, o grupo político que controla o governo a outros grupos organizados
que visam tomar o poder – dos séculos XX e XXI, o futebol também desempenha-
ria um papel bastante importante. Um dos exemplos mais célebres dessa interse-
ção entre um conflito intraestatal e o esporte, foi participação do FC Barcelona
na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), resultante da forte polarização ideológica
entre esquerda e direita e do acirramento das tensões sociais no país.
Com a vitória da Frente Popular – coalizão formada por partidos
republicanos de esquerda, socialistas, comunistas, grupos autonomistas regionais
e diversas outras organizações – nas eleições de fevereiro de 1936 e o estabeleci-
mento de um governo de esquerda, a direita espanhola – que tinha um grande peso
dentro das Forças Armadas – articulou um golpe de Estado, sob a liderança do
general Francisco Franco, dando início a uma sangrenta guerra civil. Nesse período
de guerra, o esporte, de modo geral, e o futebol, em particular, desempenharam um
papel extremamente relevante na Catalunha tanto como um mecanismo de soli-
dariedade, quanto para incentivar o moral dos combatentes e da população como
um todo, funcionando como instrumento de propaganda e de aglutinação social, e
tendo assim uma função estratégica durante o conflito (PUJADAS MARTÍ, 2005 ).
O F. C. Barcelona teve um forte envolvimento nesses eventos, tornando-
se um dos ícones da resistência republicana ao golpe da extrema direita. Logo, no
início da Guerra Civil, o presidente do clube Josep Sunyol, político catalão ligado
à Esquerda Republicana, foi fuzilado sumariamente, sem julgamento, na Serra de
Guadarrama, ao ser reconhecido por tropas franquistas que ocupavam a região.
44 Futebol na sala de aula
Sunyol estava ali para dar apoio aos soldados catalães que atuavam na resistên-
cia ao cerco de Madri promovido pelos militares golpistas. Além disso, o clube
organizou uma excursão por alguns países americanos, como o México e os Esta-
dos Unidos, arrecadando fundos e angariando apoios para a causa republicana,
tendo um sucesso tão grande que o número de partidas programado inicialmente
foi ampliado. O apoio do presidente mexicano Lázaro Cárdenas aos republicanos
espanhóis acabou possibilitando que, posteriormente, vários jogadores catalães se
instalassem naquele país, depois de efetivada a vitória dos exércitos de Francisco
Franco (AGOSTINO, 2002). A guerra também gerou um forte impacto no número
de torcedores e aficionados do Barça, fundamentalmente homens jovens que se
constituíam no principal contingente de combatentes: o clube passou de 7.719
sócios, em 1936, para três mil, em 1939 (PUJADAS MARTÍ, 2005).
Com o início da ditadura franquista, em 1939, um regime centralizado e
de tons fascistizantes, a repressão aos separatismos regionais e a imposição do cen-
tralismo de Castela se tornaram prioritárias. Tendo sido a Catalunha, uma das regi-
ões que mais resistiu ao golpe, e o F. C. Barcelona, um dos ícones dessa resistência,
o ditador não deixaria o clube catalão passar incólume, tendo essa luta assumido
para Franco “a forma de um combate pessoal de natureza épica” (FOER, 2005, p.
176). Como assinalou o escritor e jornalista (e torcedor do Barça) Manuel Vasquez
Montalbán, ao escrever sobre a ocupação de Barcelona pelo exército franquista, “a
quarta organização a ser expurgada depois de comunistas, anarquistas e separatis-
tas era o Barcelona Football Club” (apud FOER, 2005, p. 176).
Nesse sentido, eventos como o bombardeio da sala de troféus do Barça,
durante o ataque final das forças franquistas à Catalunha; a alteração do nome do
clube para Club de Fútbol Barcelona (traduzindo-o assim para o castelhano); a
supressão das quatro faixas vermelhas, alusivas à bandeira da Catalunha, no escudo
do clube, substituindo-as por duas, representando a bandeira nacional espanhola;
ou a nomeação, nos anos seguintes, de seu presidente – um colaborador de Franco
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 45
– pelo governo central, foram tentativas claras feitas de destituir o clube de sua
identidade catalã. No entanto, nas décadas seguintes, o Camp Nou, o estádio do
Barcelona, foi um dos poucos espaços públicos – senão o único – onde se podia
falar catalão (proibido pelo regime) e se gritavam palavras de ordem nacionalis-
tas. Para muitos, o ditador tolerava tais manifestações justamente porque era uma
forma de restringir o sentimento nacional catalão ao espaço de um estádio de fute-
bol, canalizando suas energias assim para algo que, no fundo, não passava de uma
diversão inofensiva que não ameaçava seriamente o regime.
residia no fato de esse poder ser utilizado pela propaganda governamental para
demonstrar a superioridade do comunismo sobre o capitalismo, por meio da con-
quista de um maior número de títulos internacionais. Por conta disso, havia um
alto grau de intervencionismo estatal no esporte em geral e no futebol em parti-
cular, de forma análoga ao que ocorria em outras esferas da vida cotidiana e da
sociedade. Nesse sentido, os esportes não eram utilizados somente para projetar
internacionalmente um Estado – embora essa dimensão também estivesse presente
–, mas, sim, para fazer a propaganda de um sistema econômico e de um modelo de
sociedade, no contexto de um mundo polarizado ideologicamente.
Outro exemplo da diplomacia do futebol socialista foi a excursão do
Dínamo,, de Moscou, ao Reino Unido, em 1945. No imediato pós-guerra, quando
ainda existia a ilusão da manutenção da aliança – liderada por Estados Unidos,
União Soviética e Reino Unido – que havia derrotado o nazifascismo, a Federação
Britânica convidou o time russo para uma série de jogos na Grã-Bretanha, como
um sinal de boa vontade e da busca de uma ordem internacional pacífica e harmô-
nica. Com dois empates – contra o Chelsea (3 x 3) e contra o Glasgow Rangers, da
Escócia (2 x 2) – e duas vitórias, uma delas de goleada, sobre o Arsenal (4 x 3) e
contra o Cardiff, do País de Gales (10 x 1), o time russo voltou para Moscou invicto
animando de tal maneira os dirigentes soviéticos, que, no ano seguinte, o país se
filiou à Fifa e passou a sonhar com voos mais altos em competições internacionais.
Com tantos exemplos de utilização do futebol como instrumento
diplomático e de afirmação de prestígio internacional de Estados e até de siste-
mas econômicos, não se pode deixar de pensar nas inúmeras possibilidades que
esse esporte abre para a atuação da diplomacia brasileira. Afinal, além de ter sido
cinco vezes campeão do mundo, o Brasil é o país natal de alguns dos jogadores
mais conhecidos de toda a história do jogo – como Leônidas, Pelé, Garrincha, Zico,
Romário, Ronaldo e tantos outros – e a escola futebolística mais respeitada inter-
nacionalmente. A admiração pelo futebol brasileiro existente nos quatro cantos do
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 49
Referências
BATH, Sérgio. O que é diplomacia. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Coleção Primeiros Passos).
CABRAL, Sérgio et al. Club de Regatas Vasco da Gama: Livro Oficial do Centenário. Rio de
Janeiro: BR Comunicação, 1998.
DOUGAN, Andy. Futebol & guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada
pelos nazistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
FOER, Franklin. Como o futebol explica o mundo: um olhar inesperado sobre a globalização. Rio
de Janeiro: Zahar, 2005.
MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
NYE JUNIOR, Joseph. O paradoxo do poder americano. São Paulo: EdUNESP, 2002.
OLIVEIRA, Henrique Altemani de. Política externa brasileira. São Paulo: Saraiva, 2005.
PUJADAS MARTÍ, Xavier. Entre estadios y trincheras. El deporte y la Guerra Civil en Cataluña
(1936-1939). In: COGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DEL DEPORTE, 10. Actas…
Sevilla: Universidad Pablo Olavide, 2005.
SALUN, Alfredo Oscar. Palestra Itália e Corinthians: Quinta Coluna ou Tudo Buona Gente?
2007. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
VIZENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. Relações internacionais do Brasil de Vargas a Lula. 3. ed.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.
FUGA para a vitória. Direção de John Huston. EUA. 1981. (115 min).
O DIA em que o Brasil esteve aqui. Direção de Caíto Ortiz e João Dornelas. Brasil. 2005. (70
min).
Para navegar
LUDOPÉDIO. Disponível em: www.ludopedio.com.br.
A modo de introdução
– não apenas a de futebol, mas toda aquela variedade de textos normalmente eti-
quetada sob tal rubrica – constitui uma espécie de ovelha negra, um texto peculiar e
bem diferente dos demais formatos publicados pelos veículos de difusão impressa.
Assim como na parte mais significativa das seções do jornal, a hierarquia
divisória do espaço de leitura nas páginas de esporte, princípio extensivo a revistas
e jornais especializados, diz respeito às matérias de cunho informativo. Esses textos
costumam ser marcados pelo ideal jornalístico de compromisso com a verdade e a
fidelidade aos fatos. No horizonte do jornalismo, encontramos diversos exemplos de
uma abordagem das notícias que se pretende à primeira vista neutra, transparente e
objetiva, imune às distorções provocadas pelo ponto de vista de quem escreve.
Uma objetividade que encena, por meio da terceira pessoa gramatical e
do tom impessoal, uma suposta transparência do real, como se este último não fosse
produto mediado pelo próprio discurso, elemento passível de construção e reprodu-
ção por excelência. Supostamente um reflexo translúcido da realidade, os meios de
comunicação operam com a suposição de que os fatos podem ser apresentados, sem
mediação, diante dos leitores, tal como eles realmente aconteceram.
Nas partes ditas “sérias” do jornal – política, economia, cidades, mundo
etc. –, encontramos também um outro tipo de texto. São os espaços dedicados à
opinião, tais como os editoriais, os artigos de fundo e as colunas de especialistas.
Aí, embora esteja presente a percepção de que se trata de um arrazoado de cunho
pessoal, de uma determinada interpretação e de uma leitura subjetiva dos fatos,
predomina a lógica argumentativa, ancorada por uma linguagem que, se admite
a presença do sujeito enunciador, acredita também nas primícias da objetividade.
Ressalte-se que não se trata da objetividade empírica da notícia, mas a
do mundo visto sob a égide da racionalidade, travestida de uma moldura racional.
Nas páginas da seção de esportes, tal gênero encontra correspondência na pena dos
comentadores que são colunistas, geralmente nomes de peso da cena esportiva, mui-
tos deles com visibilidade na TV ou no rádio. Personalidades de destaque, dedicam-
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 59
se a emitir opinião, a tecer comentários tático-técnico – dos times, das partidas, dos
campeonatos em pauta –, a analisar a estrutura administrativa das entidades e dos
personagens envolvidos etc. Textos que são, às vezes, cognominados de “crônicas”,
embora sejam de natureza bem diferente daqueles de que falaremos mais adiante.
Em ambos os tipos de escrita, a matéria informativa e o texto de opi-
nião, o futebol é, no mais das vezes, abordado de forma objetiva, puramente factual.
De modo geral, o jornalismo esportivo vê o futebol tão somente como um esporte,
uma prática esportiva, mensurada pelo desempenho e pelo resultado. Mesmo o
evidente caráter de espetáculo e entretenimento é explorado apenas em seus aspec-
tos mais concretos e tangíveis: a estrutura organizacional, financeira e econômica; a
vida e a carreira dos jogadores; as posturas dos técnicos e dirigentes; a participação
e o comportamento disruptivo das torcidas; a dinâmica de cobertura midiática dos
lances do jogo; as entrevistas com os atletas antes e depois das partidas, dentre
outros quesitos, mais ou menos aferíveis. Assim, a interpretação do futebol tende,
nesses textos, a se restringir ao universo ancorado nos jogos e na estrutura objeti-
vada do produto em tela.
Em contrapartida, a crônica é, por excelência, o gênero literário em que
a interpretação do futebol apresenta-se livre para digressões e apreciações menos
calcadas no realismo futebolístico. Se nos outros segmentos jornalísticos o trata-
mento dos acontecimentos desportivos é direto e objetivo, na crônica, a relação
entre o texto e o fato esportivo, que, aliás, coexiste no espaço da mesma página do
jornal, é entretecida por um outro tipo de abordagem comunicativa e de missão
informacional.
Ao tomar como tema os episódios, as peripécias e os comentários em
torno do dia a dia do futebol, a crônica trouxe consigo todo um conjunto de carac-
terísticas que já faziam dela um segmento de certa forma estranho à linguagem
mainstream de seu veículo. E são essas peculiaridades que lhe conferem um papel
diferenciado na interpretação do futebol.
60 Futebol na sala de aula
uma regra que encontra exceção, por exemplo, nos poemas cronísticos do pernam-
bucano Olegário Mariano (1889-1958).
Convém assinalar que muitos desses traços da crônica são determina-
dos por seu veículo, o jornal de circulação diária. O próprio tamanho do texto é
limitado pela diagramação do impresso e por sua economia visual: o autor tem
um curto intervalo de tempo para escrever, o que impossibilita um trabalho mais
minucioso, a burilar a linguagem e moldurar um estilo de escrita. A referencia-
lidade temática tem de perquirir um assunto prosaico na própria experiência de
vida e buscar fontes no noticiário ordinário da cidade. Diante da premência por
um tema, a simplicidade da narrativa impõe-se à crônica, em alinhamento às
demandas e veleidades da prática mercantil de consumo e fruição do jornalismo.
Desta forma, mais do que impor freios às asas da escrita da crônica, a inserção
jornalística desses textos é que os define, fazendo com que eles existam e sejam
tais como são.1
1 Sobre a crônica, suas características e sua história, consultamos Arrigucci Júnior (1987), Sá (1997) e Candido et al. (1992).
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 63
polêmica, barroca e inflamada de Nelson Rodrigues, com tiradas que criam uma
atmosfera toda especial à ambiência polifônica dos estádios.
nativa, que, na volição de suas preferências, lhe faculta a sondagem estética da lin-
guagem, o livre experimento das palavras e o tratamento subjetivo dos temas. Estes
transformam-se no lugar em que é possível uma hermenêutica mais produtiva do
jogo de futebol.
Da mesma forma que a crônica é, para a crítica Telê Ancona Lopez
(1992), a “brecha amena” do jornal, a crônica esportiva constitui o flanco interpre-
tativo pelo qual a linguagem pode desmontar a ancoragem referencial mais cris-
talina do jogo e da estrutura objetiva do espetáculo. A crônica de futebol retira-o
da abordagem positivista da notícia, que só vê seus aspectos estritamente espor-
tivos, para dar-lhe um “enquadramento de significação” ou, dito de outra forma,
um alcance projetivo e prospectivo, de cunho emocional e rememorativo. Assim,
a seu modo, um cronista trava também seu “duelo” com as circunstâncias e com a
exigência do factual pelo jornalismo ordinário. Por meio dela, o futebol deixa de
ser apenas mais uma modalidade esportiva, dentre outras, e adquire uma dimen-
são de representação, uma “ressonância alegórica”, tornando-se uma “metáfora de
situações universais”.
Por isso, asseveramos que a crônica desempenha um papel diferenciado
no processo de produção de sentidos ensejados pelo futebol. A crônica é o suporte
em que a interpretação do jogo pode abandonar seu universo referencial. É por
meio dela, mais do que de outros discursos, que o jogo adquire aquela “espessura
semântica” de que falamos anteriormente. Milton Pedrosa, na orelha da antológica
coletânea de crônicas de futebol intitulada O olho na bola, por ele organizada, des-
creve da seguinte forma o trabalho do cronista de futebol:
Às vezes, uma frase condensa a sabedoria adquirida em centenas de partidas,
resume o conhecimento de mil gramados e de mil craques. Para escrevê-la,
foi preciso ter visto Kuntz, Marcos de Mendonça ou Castilho pegar uma
bola, foi preciso ter-se extasiado diante um Domingos da Guia ou um Nil-
ton Santos, haver testemunhado um dos 1.329 gols de Friedenreich, ter visto
70 Futebol na sala de aula
arte da palavra parece remeter à Odisseia, de Homero, tal como seu irmão Nelson
gostava de dizer. Nessa ponte entre a poesia épica antiga e as narrativas do fute-
bol contemporâneo, o cronista esportivo avulta com o mesmo desejo insaciável de
recuperação do passado, quer seja o de um Marcel Proust (1871-1922), quer seja o
de um Pedro Nava (1903-1984).
Ou, por outra, talvez a remissão mais apropriada seja ao arquétipo do nar-
rador tradicional, conforme a clássica descrição de Walter Benjamin (1892-1940),
com sua função de conectar a vida de cada um à teia da narração oral e da memória
popular, para lidar, ainda que de modo precário, com a multiplicidade e a opacidade
do vivido. Narração e interpretação diluem-se uma na outra, mantendo um equilí-
brio instável entre unidade e diversidade, interpenetram-se, capazes de capturar o
leitor por diferentes entradas e estabelecer, por meio delas, diferentes linhas de fuga.
Ao lado desses, muitos escritores-jornalistas participaram dessa obra
coletiva de grandes proporções que é a memória e a tradição da história do futebol
brasileiro no século XX. Junto deles, outros tantos radialistas, chargistas, humo-
ristas, artistas plásticos, cineastas. Esses, de alguma forma, contribuíram para os
deslocamentos de sentido que moldaram essa linguagem e a mantiveram-na em
permanente e mutável conexão com a vida. Desde o humor das revistas de varieda-
des e das acirradas polêmicas jornalísticas das primeiras décadas do século XX, tal
como a que opôs Coelho Neto e Lima Barreto, em 1919, passando por nomes como
José Lins do Rego, em suas diatribes de futebol com Oswald de Andrade.
Há mais, muito mais: Sandro Moreyra, João Saldanha, Stanislaw Ponte
Preta, Paulo Mendes Campos e inúmeros outros, muitos dos quais conhecidos ape-
nas local e regionalmente, até chegar à multiplicidade contemporânea, em que o
literário se dissemina pelo jornalismo de TV, pela publicidade e pela internet. Se
nos fosse dado permanecer no resiliente jornal impresso, poderíamos acrescentar
ainda nomes da crônica esportiva atual, como Tostão e Juca Kfouri, Luís Fernando
Veríssimo e Ugo Giorgetti.
72 Futebol na sala de aula
São textos desse tipo que dão ao futebol suas leituras mais abrangentes,
críticas e radicais, e, por isso, são publicações que carregam maior potencial de ren-
dimento analítico. Seria plausível, até mesmo, identificar ao literário esse vetor de
deslocamento dos sentidos do futebol. Bastaria, para tanto, aproximar dele todos
os momentos em que o discurso sobre o jogo reconhece o próprio jogo como dis-
curso e coloca-o na trama sem limites da linguagem, da narrativa, da memória e
da ficção.
Eis, pois, a vitalidade, a história e a atualidade da crônica de futebol.
Para concluir, vale ressaltar que, segundo esposamos aqui, a crônica constitui
um retrato em negativo da almejada objetividade do jornalismo esportivo. A
contrapelo da hegemonia discursiva, instila-se nos interstícios do mesmo jor-
nal e engendra uma maneira diversa de perceber o jogo e suas circunstâncias. O
cronista usufrui de sua condição literária e se arvora a condição de, mediante o
discurso impresso, contornar o universo referencial mais imediato da partida e
dos aspectos técnicos do espetáculo, postulando e arriscando interpretações mais
ousadas do mundo do futebol.
A crônica futebolística retira o esporte da redoma objetivável, mensurá-
vel e imparcial dependente da notícia acontecida, que só enxerga dados, números,
tabelas e informações estritamente esportivos. Em seu lugar, dá-lhe um enquadra-
mento novo de significação, a franquear o anedótico, o confessional, o fabulativo,
o paródico, o humorístico e o sublime. Consoante passagens de Nelson Rodrigues,
em crônicas magistrais do livro A pátria em chuteiras: “o fato em si mesmo vale
pouco ou nada”, “o que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação”, e os que
não o percebem são os “idiotas da objetividade”.
Por isso, concluímos com a licença poética, segundo a qual o papel do
cronista é “retocar o fato, transfigurá-lo, dramatizá-lo”. Só assim, “recheado de poe-
sia, entupido de rimas”, ele ganharia “em ímpeto lírico, em violência dramática”, e
daria “à estúpida e chata realidade um sopro de fantasia”.
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 73
Referências
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74 Futebol na sala de aula
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Futebol e ensino:
ditaduras e autoritarismo no Brasil
e na Argentina (1970-1978)
Lívia Gonçalves Magalhães
Introdução
[…] os golpes de Estado vêm da sociedade e vão até ela;
a sociedade não é o gênio do mal que o gesta, muito menos sua vítima
indefesa.
(CALVEIRO, 2006, p. 10)
1 Além disso, consideramos aqui que é impossível a total isenção ou o afastamento do tema por parte do pesquisador, independentemente
de ser ou não o objeto em questão parte da História do Tempo Presente. Mas, nesses casos, tal afastamento se torna ainda mais complicado, uma
vez que pesquisa e ensino estão diretamente relacionados com a experiência e a vivência cotidiana.
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 77
Futebol e autoritarismo
reuniu os principais campeões mundiais até então (com exceção da Inglaterra, que
foi substituída pela Holanda), e teve uma importante repercussão internacional.
Para o governo civil-militar uruguaio foi uma oportunidade de utilizar um evento
popular como canal de diálogo e propaganda oficial. Assim como nos casos de Bra-
sil e Argentina nas Copas de 1970 e 1978, respectivamente, o Mundialito repre-
sentou para o Uruguai o momento da chegada da televisão em cores, o que teve
um grande peso no discurso oficial. A seleção anfitriã conquistou a competição,
vencendo na final os representantes brasileiros, e pareceria que a ditadura uruguaia
também celebraria seu triunfo esportivo.2
Entretanto, o Mundialito tornou-se um caso do futebol como espaço de
manifestações contrárias ao governo. O torneio foi realizado poucos meses após
o plebiscito convocado pelo próprio regime e no qual a ditadura foi derrotada.3
Na final, após a vitória da seleção uruguaia, nas arquibancadas a torcida gritava
eufórica: “Se va a acabar, se va a acabar, la dictadura militar”, misturando a ale-
gria futebolística com a vitória nas urnas. Ironicamente, a memória social durante
muito tempo apagou esse evento do mundo esportivo. Sempre seletiva, a memó-
ria da associação negativa entre esporte e ditadura parece não ter lugar para casos
como o uruguaio. Permanece a ideia de que o futebol e os esportes, de uma maneira
geral, são usados, manipulados pelos regimes autoritários. Da mesma forma, os
torcedores que participam, supostamente sem o conhecimento da realidade em
que vivem, o conhecido “nós não sabíamos”. Porém atitudes como a da torcida uru-
guaia naquela final ajudam a problematizar essas memórias.
Veremos que os estudos recentes ampliam as interpretações e vivências
das experiências de euforia esportiva. E que além de uma perspectiva interessante
para estudar os regimes autoritários comparativamente, as Copas do Mundo aqui
2 Sobre o tema, há o interessante documentário: MUNDIALITO: o filme. Direção: Sebastian Bednarik. Uruguai/Brasil. 2009. (75 min).
3 O plebiscito ocorreu no dia 30 de novembro de 1980, dois meses antes do início do torneio. A votação decidiria a reforma constitucional
prevista no Decreto nº 464/1973, de 27 de junho de 1973, e procurava legitimar no poder o governo civil-militar. Com a maioria de votos para a
opção “Não”, os uruguaios demonstraram sua insatisfação com o regime, já que o plebiscito foi interpretado pela população como uma forma de
legitimá-lo.
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 79
projeto nacional das ditaduras citadas, mas, sim, um momento específico em que os
governos de ambos os países utilizaram um elemento típico do imaginário nacional
de suas sociedades em um sentido político. Essa conjuntura permite também anali-
sar e comparar as diferentes posições de determinados setores, que se apuseram aos
regimes no Brasil e na Argentina, em relação ao evento, e questionar se foi possível
ou não para as ditaduras renovarem o consenso social com as competições.
As Copas do Mundo de 1970 e 1978 tiveram importância singular para
Brasil e Argentina, respectivamente. A de 1970, para o Brasil, significou o tricam-
peonato mundial. A Seleção Canarinho era a primeira na História a realizar tal
feito e o fazia, segundo alguns, com a melhor seleção de todos os tempos. Para a
Argentina, tratava-se, antes de mais nada, da realização do evento em seu próprio
país e, nesse sentido, das possibilidades de mostrar ao mundo sua capacidade de
fazê-lo, e bem. O campeonato tornou-se o primeiro conquistado pelo selecionado
argentino: a consagração mundial “em casa”; o triunfo nacional em momento de
grandes tensões políticas e sociais.
Ambos os países, sob liderança das Forças Armadas nacionais, cons-
truíam regimes pautados pela Doutrina de Segurança Nacional, fortemente orien-
tados pelas noções de guerra interna e de necessidade de combate a um suposto
“inimigo interno”. No restante, como bem indicou Marc Bloch em sua proposta de
metodologia comparada, há de se destacar as diferenças. Não apenas aquelas exis-
tentes entre as duas ditaduras – conquanto houvesse também semelhanças –, mas,
sobretudo, os diferentes contextos que marcaram as respectivas vitórias esportivas.
Para o Brasil, a primeira metade da década de 1970 significou um
período repleto de ambivalências para a ditadura civil-militar: nesse momento,
intensificaram-se as ações de grupos de guerrilha urbana e rural contra o regime.
Simultaneamente, os órgãos de repressão, informação e propaganda se aperfei-
çoavam, e a caça aos “inimigos do regime” acelerava-se, ganhando contornos
profissionais e massacrando, rapidamente, as oposições armadas. Ao mesmo
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 81
em casa foi a principal razão das críticas externas, que incluíram a organização de
um Comitê de Boicote (Coba, com sede em Paris, na França), e a participação da
seleção nacional não foi questionada. Também não houve no caso brasileiro na
época da Copa de o mesmo tipo de mobilização internacional em função das vio-
lações aos direitos humanos que no caso argentino. No momento da Copa de 1970,
as preocupações internacionais estavam relacionadas à ameaça do terrorismo
palestino à seleção de Israel. Portanto, o uso político do evento pelo governo brasi-
leiro não foi tão discutido ou questionado como ocorreu com o evento de 1978 e o
regime militar argentino.
De fato, na lógica dos líderes militares de ambos os países, o êxito na
Copa do Mundo ultrapassava o limite esportivo, e por meio da propaganda polí-
tica, os próprios líderes do regime ficavam associados a essa vitória. A comoção
nacional foi intensa nos dois países, e a vitória no futebol foi associada ao modelo
de sociedade e nação imposto pelos militares.
Porém o uso político pelos regimes não é a única leitura que podemos
fazer dessas experiências. No contexto das duas copas, a oposição a ambos os gover-
nos estava bastante ativa, e os eventos nos permitem perceber conflitos e posições
distintas que apareceram em diversos setores sociais que tradicionalmente se opu-
nham aos respectivos governos civis-militares. Para alguns, apoiar o evento era tam-
bém apoiar o governo, que o utilizava a seu favor. Para outros, ao contrário, era uma
possibilidade de denunciar o autoritarismo e a repressão. Desta forma, os dois even-
tos foram marcados não apenas por seu uso político pelos governos autoritários,
mas também pelos conflitos que geraram entre a oposição.
O futebol é do povo!
paixão pelo futebol. A ânsia por mais um título no Brasil, e o primeiro na Argen-
tina, era anterior à questão política em que ambos estavam envolvidos, e a sonhada
conquista coincidiu com o momento de militância em que essas pessoas estavam
envolvidas. Logo, era praticamente impossível não discutir e problematizar o signi-
ficado tanto das vitórias, quanto do lugar do torcedor.
Para os integrantes do Coba, a campanha do boicote internacional não
conseguiu impedir a realização do evento na Argentina, mas foi positiva por ter
incluído a situação de denúncias ao país na agenda internacional, incluindo grupos
que já se organizavam internamente. O caso mais emblemático foi o das Mães da
Praça de Maio, que mantiveram sua manifestação semanal na praça do governo
mesmo com as visitas internacionais. Alguns jornalistas e atletas, informados pelas
denúncias que eram feitas no exterior, foram assistir as essas marchas, o que signi-
ficou para as integrantes da associação a primeira oportunidade de denúncia inter-
nacional da situação que viviam.
No caso brasileiro, Eduardo Roberto da Silva, por exemplo, percebeu que
a Copa do México era um bom momento para denunciar as ações do governo para
capitalizar a vitória a seu favor:
Eu, particularmente – não com a turma da faculdade, mas com os colegas
que eu tinha do ensino médio – a gente participou, não vou dizer de um
movimento, mas tinha um esquema assim, de panfletagem, denunciando o
governo na utilização dos feitos do esporte nacional para, como eu te disse,
encobrir certas coisas do regime (SILVA, 27 jul. 2012).
Nesse sentido, a denúncia envolvia o uso por parte do regime, e não uma
crítica ou reflexão sobre o papel do esporte na sociedade. Questionado sobre se
essa panfletagem foi durante a Copa, Eduardo Silva negou com firmeza: “Durante
a Copa, a gente tava torcendo!” A resposta do entrevistado é exemplo do posicio-
namento dos que defendiam o direito de torcer: era preciso separar o futebol do uso
que se fazia dele.
84 Futebol na sala de aula
4 Ao longo da entrevista, Juca Kfouri não citou o nome de seu primo, porém, afirmou que, na verdade, a morte havia sido por torturas, e o
corpo deixado em um hotel na capital paulista simulando o suicídio.
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 85
Considerações finais
Referências
Fontes e entrevistas
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2011.
MOVIMIENTO. Buenos Aires, Órgano del Consejo Superior del Movimiento Peronista
Montonero, n. 5, jan. 1978. Arquivo CEDINCI.
92 Futebol na sala de aula
SILVA, Eduardo Roberto da. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 27 jul. 2012.
Livros e artigos
CORDEIRO, Janaína Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o
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PRADO, Maria Ligia Coelho. Repensando a história comparada da América Latina. Revista de
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MEMÓRIAS do chumbo: o futebol nos tempos do Condor. Roteiro e reportagem: Lúcio Castro.
[S.l.]: TV ESPN, 2013. (4 episódios).
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 93
Filmes
O ANO em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburguer. Brasil. 2006. (110 min).
PRA FRENTE Brasil. Direção: Roberto Farias. Brasil: Embrafilme, 1982. (105 min).
Páginas de internet
Introdução
futebol surgia como mais uma opção de exercício físico na capital da jovem Repú-
blica brasileira.
A escolha do Fluminense como ponto de partida para o artigo
não foi casual. O tricolor das Laranjeiras reúne algumas características necessárias
para a introdução das reflexões sobre a história social do futebol no Rio de Janeiro.
Claro, a primeira questão que logo vem à tona é o fato de o clube ter sido o primeiro
a ser composto majoritariamente por brasileiros, além de preservar até os dias atu-
ais seu papel de protagonismo no cenário esportivo da cidade. Mas tem algo na
fundação do Fluminense que nos interessa mais.
Oscar Cox, primeiro presidente do clube e grande incentivador da
prática do futebol no Rio de Janeiro, era filho de um diplomata britânico. Wal-
ter Schuback, terceiro nome a assinar a ata de fundação do clube, foi gerente da
empresa de comércio exterior Herm Stoltz. Domingos Moitinho, primeiro tesou-
reiro do clube, foi um grande proprietário de terras na Região do Vale do Paraíba,
banqueiro e sócio de diversos empreendimentos ferroviários (SEDLACEK, 2012).
Citando apenas três dos 20 fundadores do clube, nota-se que a instituição foi for-
mada incialmente por membros dos setores mais ricos da sociedade.
Temos então o objetivo central deste trabalho. Analisar como a prática
do futebol, em sua origem circunscrita aos espaços de sociabilidade mais restritos
e excludentes da cidade, em algumas décadas, se tornou um fenômeno de popula-
ridade entre os trabalhadores brasileiros. Visamos, então, investigar os conflitos e
embates políticos que marcaram as trajetórias das instituições esportivas – clubes,
ligas, imprensa esportiva –, a fim de compreender os processos de redefinição sim-
bólica e organizacional pelos quais os agentes do campo esportivo passaram nas
primeiras décadas do século XX.
Vejamos um exemplo. Em 1904, o Fluminense disputou duas partidas
contra o Club Atletico Paulistano. As partidas interestaduais eram as que atraíam
maior atenção dos espectadores. Há uma fotografia das pessoas na beira do campo
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 97
publicada no dia 8 de agosto pela revista Kosmos (ago. 1904).1 O público não ultra-
passava a marca de 50 pessoas. O historiador Leonardo Pereira, no livro Footballma-
nia, destaca também o perfil social dos espectadores. O público era composto pelas
famílias e cavalheiros da cidade, vestido com esmero e elegância (PEREIRA, 2000,
p. 30).
Menos de 50 anos depois, o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol.
No dia da inauguração do Estádio do Maracanã, construído para o evento, o Jornal
dos Sports noticiava que “a cidade invadiu o estádio!” (JORNAL DOS SPORTS, 18
jun. 1950). Os bondes lotados de homens, mulheres, operários e grã-finos ruma-
vam abarrotados para o colosso do Brasil. Públicos de mais de cem mil pessoas
marcaram os primeiros jogos realizados no Maracanã.
Em menos de meio século, o futebol virou o jogo. E essa consideração
nos serve para enfatizar uma questão: o futebol não surgiu com a vocação para a
popularidade. Ao contrário, ele nasceu no Brasil sob o signo da exclusão da Pri-
meira República. A popularização das suas práticas resultou de um processo social
complexo, marcado por avanços e retrocessos, pelo embate entre projetos derro-
tados e vitoriosos. Sendo assim, a popularidade do futebol no país foi uma cons-
trução social, e pretendemos nas próximas linhas analisar alguns elementos que
constituíram esse processo.
foi fundado o America Foot-Ball Club. Já em 1905, o futebol chegou a ser retratado
na imprensa como um modismo elegante (PEREIRA, 2000, p. 35).
Com o surgimento de tantos clubes na cidade, logo se iniciaram as
negociações para a organização de campeonatos. E as questões que envolvem as
ligas de futebol no Rio de Janeiro são fundamentais para compreensão do esporte
como um objeto de interesse social.
A primeira Liga Metropolitana de Football (LMF) foi criada ainda
em 1905 e contou na sua fundação apenas com o Botafogo, Fluminense, Pays-
sandu, Bangu, Sport Club Petrópolis e o Foot-Ball and Athletic Club. Essa ins-
tituição original teve como objetivo organizar o primeiro campeonato que foi
disputado em 1906, vencido pelo Fluminense (NAPOLEÃO, 2006). Em 1907, o
nome da liga foi alterado para Liga Metropolitana de Sports Athleticos (LMSA),
e o campeonato foi marcado por diversos problemas. Para se ter uma ideia, a
decisão sobre o vencedor do torneio somente foi tomada pela Justiça despor-
tiva nos anos 1990, quando Botafogo e Fluminense foram declarados campe-
ões.2 Diversas dissidências e alterações de nomes e regras ocorreram – e ainda
ocorrem – nas ligas e federações do Rio de Janeiro. Mas um detalhe sobre 1907
nos interessa mais do que as brigas dos dirigentes e clubes de futebol. E esse
detalhe envolve os motivos da desistência do Bangu de disputar o campeonato.
O clube da Zona Oeste do Rio de Janeiro abandonou a liga por conta da
proibição da inscrição de um jogador na sua equipe. Esse jogador se chamava Fran-
cisco Carregal, e ele era negro. Esse é um dado que merece destaque. Ao longo das
primeiras décadas de campeonato, o regime que vigorava nas relações entre clube e
jogador era o amadorismo. No que consistia o amadorismo? Em termos formais, o
amadorismo estabelecia que os jogadores não podiam receber dinheiro para atuar
pelas equipes. Inicialmente, os times eram formados por atletas que eram sócios
2 A confusão ocorreu por conta da indefinição sobre os critérios de desempate na última rodada do campeonato. Para mais detalhes, v.
Napoleão (2006).
102 Futebol na sala de aula
das agremiações. Com o tempo, começou a haver maior rotatividade dos jogadores
pelos clubes, mas, mesmo com as trocas de camisa, as ligas estabeleciam regras que
exigiam que o jogador comprovasse que estava empregado em profissões que garan-
tissem seu sustento sem a dependência dos ordenados do clube. Na prática, o ama-
dorismo visava impedir que jogadores negros e pobres disputassem o campeonato.
Sem dúvida, as tensões sobre os critérios de participação nas ligas foram
os maiores fatores de instabilidade política no desporto carioca. Isso porque o fute-
bol se popularizava com grande rapidez, e houve pressões crescentes dos clubes
de origem popular para a supressão das regras excludentes. Mas, especialmente os
grandes clubes da Zona Sul da cidade, Fluminense, Botafogo e Flamengo – que pas-
sou a contar com um departamento de desportos terrestres a partir de 1911 –, em
articulação com agremiações menores, mas compostas por figuras proeminentes
da economia e vida política da capital federal, se utilizavam de todo tipo de artifício
para inviabilizar a democratização da prática desportiva. Isso porque o esporte,
segundo as diretrizes do ideal de progresso da elite da cidade, não era um benefí-
cio da civilização acessível para todos. Afinal de contas, as classes trabalhadoras e
suas práticas e valores sociais eram vistas ainda pela elite cosmopolita da Primeira
República como empecilhos para o progresso da sociedade.
Vale apresentar exemplos de como os clubes da elite visavam conter a
popularização do futebol. Em 1914, o aristocrático Payssandu, clube de origem
inglesa que foi um dos fundadores da liga em 1905, ficou entre os rebaixados
para a segunda divisão. Nesta estavam clubes vistos pela liga como “sociedades
pouco escrupulosas que têm como diretores indivíduos de educação duvidosa”
(PEREIRA, 2000, p. 112). O Fluminense, se valendo do seu prestígio, reivindicou
a alteração da regra para que o Payssandu não fosse rebaixado, com o objetivo de
impedir que alguma agremiação “mal educada” entrasse no lugar da “sociedade
inglesa”. A proposta tricolor foi aceita pelos clubes, e tivemos na ocasião uma his-
tórica “virada de mesa”.
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 103
(VIANNA, 2005), publicado pela primeira vez em 1918, sustenta que os agentes
sociais brasileiros são incapazes de organizar formalmente as relações sociais no
espaço público porque historicamente os interesses privados se sobrepuseram às
organizações coletivas. E apenas um Estado nacional, capaz de solapar as oligar-
quias regionais, seria o ente responsável pela organização, regulamentação e fisca-
lização dos espaços públicos de sociabilidade. Ou seja, nessa concepção, cabe ao
Estado o papel de organizador das relações sociais modernas.
As ações intervencionistas dos governos Vargas nos anos 1930 são notá-
veis em diversas áreas. Sem dúvida, a regulamentação e organização do mundo do
trabalho, por meio da construção de uma ampla legislação trabalhista, é o exemplo
mais bem acabado de centralização estatal. Mas, para além das relações trabalhis-
tas, a nova classe dirigente atuou como mediadora e regulamentadora em diversas
áreas. Na imprensa com os órgãos de censura, na educação por meio do Minis-
tério da Educação e Saúde Pública, na política ambiental pela criação de parques
nacionais, nas políticas estaduais por meio dos interventores, na administração
pública pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). Enfim, os
campos de atuação intervencionista do governo chefiado por Vargas foram abran-
gentes. O Estado, conforme sua orientação antiliberal, buscou organizar o processo
de modernização do país de forma autoritária, mas a partir da convicção de que
o espaço público brasileiro necessitava ser ampliado. Em outros termos, era parte
dessa concepção de Estado intervencionista a visão social que englobava as cama-
das sociais populares em um projeto de integração nacional. Pois apenas o pro-
cesso de integração das classes em uma comunidade nacional poderia pôr fim ao
privatismo liberal das elites oligárquicas que haviam conduzido o país ao atraso na
Primeira República.
Intervenção, regulamentação e integração. Palavras caras à relação entre
Estado Nacional pós-1930 e o nosso objeto neste artigo, o futebol. Se o governo
Vargas atuou em todas as direções, a fim de organizar o acesso público aos espa-
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 107
3 Em 1933, a Liga profissional contou com a presença de America, Flamengo, Fluminense, Bangu, São Cristovão, Bonsucesso e Vasco. A
AMEA, liga amadora, teve o Botafogo, Olaria, Andaraí, Coocotá, Mavilis, Portuguesa, Brasil e River. Em 1934, por conta de uma confusão nas
regatas com o Flamengo, o Vasco abandonou a LCF e migrou para a Liga amadora (NAPOLEÃO, 2006, p. 103).
108 Futebol na sala de aula
bes passavam a ser fiscalizados pelo governo, e as transferências de clube dos atletas
profissionais passavam também a ser mediadas pelo Estado. Acabava, assim, a con-
dição fundamental para as práticas de exclusão do amadorismo, que eram as regras
e relações diretas, sem mediação das leis, entre dirigente e jogador. É certo que a
censura teatral criou dispositivos de dominação. Mas, pela primeira vez, estabelecia-
se alguma medida de controle e fiscalização das ações dos dirigentes em relação aos
jogadores. No mesmo sentido das ações trabalhistas que regulamentavam o chão da
fábrica, o gramado também passou a ser mediado pelo árbitro trabalhista: o Estado.
Em 1936, mais uma manifestação de apoio ao profissionalismo da
dupla Fla x Flu. Por iniciativa do presidente Padilha, o Flamengo decidiu executar
o Hino Nacional brasileiro antes da partida. Essa era uma atitude inédita no futebol
e atendia a exigência de um recém-criado decreto que determinava a execução do
hino em eventos cívicos. Além do som nos amplificadores, o clube também tinha
como plano imprimir e distribuir dez mil folhinhas com a letra, para que o tor-
cedor acompanhasse cantando. Rompendo com a tradição excludente que via no
espectador o ser passivo que apenas assistia à partida, essa iniciativa do Flamengo
consagrava a arquibancada como espaço de participação e organização do torcedor
comum, que, a partir de então, por meio de campanhas de marketing do clube no
Jornal dos Sports, passava a ser visto como protagonista, sujeito do espetáculo.
O evento foi realizado e contou com a presença de autoridades civis e
militares, além do presidente Getúlio Vargas, que esteve no campo do Fluminense.
No mesmo ano, após uma briga com a CBD por conta da participação do Flamengo
em uma competição de remo em Berlim, Padilha concedeu o título de presidente de
honra ao presidente Vargas, que aceitou e ainda congratulou o clube pela brilhante
figura no exterior. Como resposta aos dirigentes amadores da CBD, Padilha afirmou:
“Não creio que a CBD ponha em dúvida a palavra de honra do presidente da Repú-
blica” (apud COUTINHO, 2014, p. 85). Na disputa com o amadorismo, os profis-
sionais recorreram e contaram com o apoio institucional e simbólico do presidente.
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 111
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Fontes
tamente, textos que tiveram grande influência nos estudos da área, sobretudo por
suas reflexões sobre jogos, mitos, dramas, culturas, processo civilizatório, práticas
sociais, festas e corpo, respectivamente.
Somente no decênio seguinte, no entanto, os trabalhos se avolumaram
e houve uma consolidação do tema como objeto de estudo, bem como de linhas
de pesquisa.1 Dentre elas, destacam-se as conexões dos esportes com processos
identitários, relações raciais, relações de gênero, corpo, práticas sociais e socia-
bilidade urbana.
Não obstante, houve neste século um crescimento vertiginoso das pes-
quisas sobre esportes no Brasil. Os megaeventos esportivos sediados no país, a
Copa das Confederações (2013), a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos
de 2016, sem dúvida, fomentaram esse aumento, porém o campo esportivo já estava
formado antes mesmo dos anúncios oficiais, ocorridos, respectivamente, em 2007
e 2009. Algo que se torna nítido pelo número de dissertações e teses defendidas em
vários programas de pós-graduação no Brasil (GIGLIO; SPAGGIARI, 2010), pelo
surgimento de grupos de estudo e pesquisa nas universidades e pelo consequente
cadastro deles no CNPq. Uma das consequências dessa criação dos grupos de pes-
quisas foi a formação de grupos de trabalho em diversos congressos, tais como o
da Associação Nacional de História (Anpuh), o da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e até mesmo da Associação
Brasileira de História Oral (ABHO). O uso de procedimentos metodológicos da
história oral em pesquisas acerca do futebol é prática ainda mais recente e merece
maior atenção.
Apesar dos esforços de entusiastas2 e pesquisadores na realização de
importantes registros sonoros, fossem no Museu da Imagem e do Som, do Rio de
1 Cabe assinalar o papel importante desempenhado pela Educação Física, que, por ofício e desprendida de interpretações sobre teóricos clássicos,
conseguiu fundar desde o fim do século passado vários centros de memória do esporte, da Educação Física e do lazer espalhados pelo Brasil e invaria-
velmente relacionados às universidades públicas. Cf. Goellner (2014).
2 Ou, nos termos de Ferreira (2002, p. 316), “historiadores amadores”, autores que tiveram produções de cunho historiográfico sem neces-
sariamente atentar para as discussões metodológicas desse campo.
História oral e futebol 117
3 Lembramos que a fundação da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) data de 1994 e a da International Oral History Association
(IOHA), de 1996.
118 Futebol na sala de aula
ção Brasileira nos campeonatos mundiais anteriores. Até o momento, foram rea-
lizadas mais de 50 entrevistas, as quais em conjunto propõem articular memória
esportiva, memória coletiva e história política do país.4
Em segundo lugar, o projeto “Memórias olímpicas por atletas olímpicos
brasileiros”, coordenado pela professora Katia Rubio (EEFE-USP) e iniciado muito
antes de o Rio de Janeiro ter sido escolhido como cidade-sede da XXXI Olimpíada.
Ainda mais ambiciosa, a pesquisa, também em curso, visa registrar as memórias de
todos os atletas que representaram o Brasil em Jogos Olímpicos da Era Moderna.
Trata-se de quase 1,8 mil atletas, desconsiderando-se aqueles que participaram da
Rio 2016 e de Tóquio 2021/2021. Por meio de narrativas de cunho autobiográfico,
a proposta é não apenas registrar as memórias dos protagonistas dos esportes, mas
também encadear essas histórias individuais em memória coletiva, partindo de
questões pessoais para aquelas de ordem macroestruturais (RUBIO, 2014).
Em terceiro, “Memórias de boleiros”, uma investigação que continha,
dentre outros, pesquisadores dos dois projetos supracitados.5 Ainda que tenha sido
apoiado pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades
Lúdicas (Ludens-USP), tratava-se de uma parceria entre esse núcleo, o Museu do
Futebol e o portal acadêmico Ludopédio.6 Ao Ludens, criado em 2010, interessava
o desenvolvimento de projetos e outras atividades acadêmicas que justificassem
o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo. Ao Museu do
Futebol, o aumento de seu acervo de história oral. Ao Ludopédio, por sua vez,
a publicação de entrevistas inéditas. Sendo desenvolvido entre 2012 e 2014, seu
objetivo central foi registrar as memórias de futebolistas brasileiros que tivessem
atuado no exterior nas últimas três décadas. Pretendíamos não apenas constituir
4 Outras informações sobre esse projeto podem ser obtidas no site: https://cpdoc.fgv.br/museudofutebol. Acesso em: 28 mai. 2019.
5 Participaram dessa pesquisa: Aira Bonfim (Museu do Futebol), Amanda Macedo (Ludens-USP), André Feres (Ludens-USP), Breno Macedo
(Ludens-USP), Bruna Gottardo (Museu do Futebol), Bruno Jeuken (Ludens-USP), Daniela Alfonsi (Ludens-USP, Museu do Futebol), Guilherme
Manzoni Leite (Ludens-USP), Marcel Diego Tonini (Ludens-USP, NEHO-USP), Paulo Nascimento (GEO-USP, Ludens-USP, Museu do Futebol), Pedro
Sant’Anna (Museu do Futebol), Sérgio Settani Giglio (GEO-USP, Ludens-USP) e William Contini (Ludens-USP).
6 Portal acadêmico sobre futebol, cujo endereço eletrônico é: https://ludopedio.org.br.
História oral e futebol 119
Os boleiros
Em relação aos atletas mais famosos, leia-se aqui os jogadores que pos-
suíram um destaque profissional em sua experiência no exterior e, portanto, acu-
mularam ao longo de suas carreiras um grande número de entrevistas, o desafio
foi o de tentar romper a narrativa marcada por factualismos, objetividade profis-
sional e imagem triunfal, repetido exaustivamente ao longo de sua vida (MEIHY;
RIBEIRO, 2011). Embora esse tipo de fala seja sobre a vida do entrevistado, ela, por
sua vez, produz um relato repetitivo, modelado, quase mecânico. Como concordá-
vamos com o argumento de Portelli (1997a), qual seja o de que um testemunho oral
nunca é igual duas vezes, teríamos de criar possibilidades para acessar outros lados
das histórias contadas.
A realização de uma pesquisa de história oral com pessoas públicas é
muito complicada. A categoria profissional em que essas pessoas atuam muitas
vezes já lhes confere certa notoriedade. Se, além disso, elas são profissionais bem-
sucedidas, sua fama atinge público de diversos meios. Esse é o caso, por exemplo,
de futebolistas, cantores, atores, em suma, artistas, cujas atividades profissionais
são extremamente valorizadas socialmente. No Brasil, alguns jogadores de fute-
bol são vistos não apenas como ídolos de seus clubes, mas também como “heróis
nacionais”. Isso ocorre, principalmente, com aqueles que vestem ou vestiram a
camisa da Seleção Brasileira. Na sociedade do espetáculo (DEBORD, 2003), mar-
cada pela representação, aparência e consumo de imagens, os meios de comunica-
ção transformaram os atletas profissionais de futebol em celebridades.
Ainda que correspondam a uma ínfima parte do todo ou da realidade
da profissão, os futebolistas bem-sucedidos, inclusive aqueles que já terminaram a
carreira, aparecem constantemente nas mídias, seja em um programa de televisão,
em uma entrevista para rádio ou em matérias para sites, jornais e revistas. Eles
passaram a ser mais assediados pela imprensa no Brasil, a partir principalmente da
metade da década de 1990, quando houve a fundação de vários canais de televisão
exclusivamente esportivos e a criação de diversos sites e blogs. Se isso não bastasse,
História oral e futebol 121
Experiências de pesquisa
duas vezes por semana e poucas folgas (raramente passando de um dia). Além
disso, muitos deles têm compromissos com patrocinadores individuais e investem
parte dos seus rendimentos em negócios fora do futebol. Nesse sentido, outro fator
importante a ser levado em conta é o fato de eles passarem ou terem passado, no
caso dos ex-atletas, grande parte de suas vidas longe da família e dos amigos. No
pouco tempo que lhes resta, acreditamos que dificilmente concedem entrevista
para pessoas anônimas, como nós, embora tenhamos sempre valorizado no curto
tempo de contato com eles a importância de seu relato e da discussão sobre a vida
de atletas no exterior.
Quando o projeto Memórias de Boleiros foi iniciado, esperávamos que a
parceria com o Museu do Futebol facilitasse não só os contatos como o agendamento
de entrevistas com os jogadores e ex-jogadores de futebol. Não foi isso, porém, o que
ocorreu, apesar de reconhecermos que tenha havido algum progresso nesse sentido
por conta do auxílio e esforço dos demais colegas que participaram desta pesquisa,
em especial do pessoal do museu. Ao longo de semanas, conversávamos com fute-
bolistas ou com seus assessores, mesmo assim, sem sucesso. De tempos em tempos,
retomávamos alguns contatos, e nada de conseguirmos entrevistas.
Por vezes, ficávamos com a impressão de que as ligações não eram aten-
didas pelo fato de serem facilmente identificáveis, uma vez que o DDD 19 (Cam-
pinas-SP) já indicava, de antemão, que a ligação vinha de fora da cidade de São
Paulo. Aqui se faz necessário o diálogo com um adendo de Portelli (1997b, p. 21)
ao afirmar que “[...] quando fazemos uma entrevista, invadimos a privacidade de
outra pessoa e tomamos seu tempo”. Certamente, por isso, o contato com jogadores
e ex-jogadores de futebol para o projeto Memórias de Boleiros tenha se dado com
muita dificuldade. De todos os contatos frustrados, um nos chamou muito a aten-
ção: um ex-jogador que atuou por muitos anos na Europa e na Seleção Brasileira,
tendo sido campeão mundial. Em algumas das conversas pessoais que tivemos, ele
até concordou com relevância do debate, mas disse não ter tempo para tal.
124 Futebol na sala de aula
Essa questão de ter ou não ter tempo para a entrevista está ligada, em
boa parte dos casos, a quando a pessoa que será entrevistada não possui qual-
quer referência sobre o entrevistador. Essa condição é amenizada quando algum
entrevistado nos coloca em contato com outras pessoas que cumprem o critério
de recorte estabelecido para a pesquisa e entrevista. Quando isso ocorre, o tempo
entre o primeiro contato e a realização da entrevista reduz consideravelmente.
Vencida essa etapa inicial e com a entrevista agendada, fazíamos uma
pergunta simples, estimulando e dando ampla liberdade para o entrevistado iniciar
sua narrativa. O Museu do Futebol, pelo trabalho desenvolvido em outras pesquisas
com história oral e por ser influenciado pelo método utilizado pelo CPDOC/FGV,
tinha um roteiro da carreira do jogador a ser entrevistado em formato de linha
do tempo cronológica. Não raramente, as intervenções dos membros do museu
tinham por finalidade reconduzir os entrevistados para a sequência que haviam
estruturado.
Nós, como pesquisadores de outras linhas, preferíamos seguir um
roteiro mais aberto, de modo a permitir que o entrevistado escolhesse os cami-
nhos que quisesse para contar sua história de vida. Mesmo com essa possibilidade,
alguns entrevistados optaram por seguir em uma linha cronológica.
Apesar da disparidade em termos de conceitos e procedimentos de his-
tória oral, isso nunca foi um empecilho, muito menos dificultou o desenvolvimento
da pesquisa. Havendo sempre respeito, boa vontade e interesses comuns, o con-
junto de pesquisadores sempre encontrou um meio-termo capaz de satisfazer a
todos. Acreditamos, inclusive, que foi um grande aprendizado coletivo, uma vez
que, em conjunto, dividimos tarefas, debatemos procedimentos, realizamos entre-
vistas e conversamos sobre os temas abordados e as experiências reveladas pelos
entrevistados.
História oral e futebol 125
experiência possa ser a mais diversa possível, ela produz, em certa medida, uma
dimensão coletiva. Nesse sentido, podemos pensar que o futebol, para o brasileiro,
pode pontuar sua vida, e que contar sua história é também um modo de contar a
história do clube pelo qual torce. Para além dessa dimensão, e como forma de enten-
der a importância da memória coletiva, podemos lembrar do dia 8 de julho de 2014.
Se perguntarmos para as pessoas onde e com quem estavam nesse dia, um grande
número delas conseguirá relatar em detalhes sua experiência da derrota brasileira
na semifinal da Copa do Mundo disputada em solo nacional, o famigerado “7 x 1”,
mesmo que a pessoa entrevistada não goste de futebol.
De acordo com Pollak (1989; 1992), é impossível resgatar e preservar a
memória pelo fato de que, ao contar sua história, o indivíduo estabelece, a partir de
uma seleção de fatos mais significativos, uma estrutura lógica, contínua e conden-
sada. Não se pode desconsiderar que a memória comporta uma série de elementos
quando ela é acionada e, por isso, poderá ser falível, mentirosa, tendenciosa, inten-
cional, seletiva, provisória, ambígua, emocional, construída, fluida, dinâmica.
Nas palavras de Portelli (1997a, p. 33), a memória não é “[...] apenas
um repositório passivo de fatos, mas também um processo ativo de criação de
significações”. Ao selecionar, a partir dessas significações, a memória vai sendo
recriada e repensada ativamente pelo entrevistado fazendo que sejam destacados
eventos significativos de sua vida e ocultadas experiências traumáticas.
Ao não contar algo, seja por esquecimento, seja por não querer tornar
público um determinado acontecimento, torna-se, paradoxalmente, um elemento
importante da entrevista. Não é sem razão que Portelli (1997a, p. 34) argumenta
que “[...] a informação mais preciosa pode estar no que os informantes escondem e
no fato que os fizeram esconder mais que no que eles contaram”.
Como a memória irá selecionar fatos localizados no tempo e no
espaço, a partir de eixos comuns (BOSI, 2003), não saberemos se o fato vivido
narrado foi realmente esquecido pelo entrevistado ou se ele o omitiu/censurou
História oral e futebol 127
por não querer citar nomes ou envolver terceiros. O tempo entre o primeiro con-
tato e a realização da entrevista permitiu ao entrevistado pensar sobre sua car-
reira esportiva e reconstruir alguns fatos, inclusive durante as gravações, sobre-
tudo quando se trata de um assunto espinhoso (fracasso esportivo, por exemplo)
ou tabu (racismo). Especialmente acerca da experiência no exterior, estávamos
interessados em ouvir sobre temas que poderiam gerar algum tipo de reflexão
e análise, principalmente a questão das identidades (clubística, profissional,
nacional, étnica, social). Afinal, tendo como recorte das entrevistas a condição
de terem atuado no exterior, um elemento que estaria presente na subjetividade
das entrevistas era exatamente a condição que os uniam: a de ter sido em algum
momento da carreira um imigrante, por mais que não se enxergassem como tal.
De modo a exemplificar a discussão aqui elaborada acerca de memória
e esquecimento, trazemos um excerto de uma das entrevistas da pesquisa Memó-
rias de Boleiros, especificamente a de José Marcelo Ferreira, que nasceu na cidade
de Oieiras, Piauí, no ano de 1973, vinha de família numerosa (dez filhos) e viveu
na pobreza até se profissionalizar. Nele, Zé Maria, como é conhecido no universo
do futebol, revela ter sofrido um caso de racismo durante uma partida na Itália,
onde atuou por oito temporadas (1996-1998, 2000-2006). Vejamos:
Dentro de campo, já aconteceu comigo de um adversário me xingar. Foi
uma coisa que eu fiquei muito chateado porque aconteceu em Parma.
Era Parma e Perugia, esse jogo nós perdemos de 5 a 1, jogamos mal pra
caramba... E um jogador do Parma fez uma falta no final do jogo. Quando
eu fui bater, ele me segurou, e eu falei:
— Cara, para com isso. Pô, vocês estão ganhando de 5 a 1, não tem neces-
sidade disso.
— Zé, deixa pra lá. Esse cara é ignorante, ele é assim mesmo.
128 Futebol na sala de aula
Considerações finais
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No campo das torcidas
organizadas de futebol:
interações sociais e aprendizagens
Felipe Tavares Paes Lopes e
Rosana da Câmara Teixeira
Introdução
1 Regime político de caráter centralizador, autoritário e anticomunista, que foi instaurado por Getúlio Vargas.
138 Futebol na sala de aula
extrema direita, o país vivia certa estabilidade econômica. O futebol brasileiro, por
sua vez, tornava-se mais profissional e espetacularizado, com as primeiras trans-
missões ao vivo e em cores, e com a realização dos primeiros campeonatos nacio-
nais. Também não podemos esquecer que, no período, o mundo vivia, ao mesmo
tempo, as disputas, tensões e conflitos resultantes da Guerra Fria2 e uma renovação
de valores, levada a cabo por movimentos juvenis de diferentes partes.3
Inspirados pelo espírito contestador desses movimentos, jovens torce-
dores decidiram fundar associações, reivindicando autonomia à diretoria dos clu-
bes de futebol e adotando um novo estilo de torcer, a fim de demarcar distinção
em relação aos primeiros agrupamentos caracterizados pelo etos carnavalesco das
arquibancadas, pelo apoio incondicional ao time, por seus torcedores-símbolo,
pelo comportamento amistoso no estádio e pelo reconhecimento da mídia (TEI-
XEIRA; HOLLANDA, 2016).
No fim da década de 1970 e durante a década de 1980, o Brasil passava
pelo período da redemocratização, marcado por uma ampla campanha por eleições
diretas para presidente, que levou milhares de pessoas às ruas das cidades em 1984.
Nesse contexto, o estilo de torcedor representado pela segunda geração de torcidas
organizadas, até então concentrado no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, espalhou-se
pelas outras regiões do país. Ao longo dos anos, essas associações se tornaram,
cada vez mais, burocráticas e empresariais. Em virtude do crescimento significa-
tivo, foram se dividindo em uma miríade de subgrupos espalhados pelos bairros
das cidades, revelando-se, cada vez mais, autônomos, o que dificultava o controle
por parte das lideranças (TEIXEIRA; LOPES, 2018). É nesse momento, também,
que a música funk começa a entrar nos estádios e que tais torcidas têm sua imagem
2 A Guerra Fria faz referência ao período histórico que envolveu uma série de conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Esses conflitos produziam uma grande tensão no mundo todo, devido ao poderio militar de ambas as nações, que dispunham de armamentos
nucleares. Oficialmente, tal período vai do fim da Segunda Guerra Mundial (1945) à dissolução da União Soviética (1991).
3 Esses movimentos tinham forte caráter contestatório e realizaram manifestações em diversas partes do mundo contra os regimes autoritá-
rios vigentes e contra a Guerra do Vietnã. Dentre esses movimentos, destaca-se o movimento hippie, que privilegiava um modo de vida comunitário
e abraçava aspectos do budismo, do hinduísmo e do xamanismo norte-americano. Os hippies se contrapunham ao patriarcalismo, ao autoritarismo,
ao capitalismo, ao consumismo e pregavam, dentre outras coisas, o amor livre e o pacifismo.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 139
time. Como não poderia deixar de ser, esse novo contexto trouxe impactos para a
relação das torcidas organizadas com espetáculo futebolístico.
Este capítulo aborda justamente o estado atual dessas relações. Mais
exatamente, objetiva contribuir para a compreensão das interações estabelecidas
no campo das torcidas organizadas de futebol, analisando, dentre outras coisas, os
processos de aprendizagem na construção dos corpos e das subjetividades de seus
integrantes. Também serão analisadas as instituições, os agentes, as regras e os
objetos de disputa em torno dos quais tal campo se constitui. Para alcançar o obje-
tivo definido, nos baseamos em resultados de nossas próprias pesquisas sobre o
tema, iniciadas há mais de 20 anos, e recorremos à literatura acadêmica disponível.
O texto foi organizado em três seções. Começamos pela análise das
propriedades específicas do campo de interações das torcidas organizadas. Depois,
examinamos a estrutura, convenções, atores sociais, recursos mobilizados e as lutas
dessas associações em prol da defesa de seus interesses. Feito isso, discutimos os
processos de socialização e aprendizagem envolvidos na construção dos corpos e
das subjetividades dos torcedores organizados e as estratégias de transmissão dos
seus saberes e práticas.
mento importante. O campo em questão, como qualquer outro, obedece a leis mais
ou menos específicas, e seu funcionamento depende da existência de
[...] objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de
habitus que impliquem no conhecimento e reconhecimento das leis imanen-
tes do jogo, dos objetos de disputas, etc. (BOURDIEU, 1993, p. 89).
também pode ser utilizada para identificar aquelas que são consideradas as mais
temidas, impondo respeito em função das brigas que se envolvem.
Assim como ocorre no referido campo, a estrutura interna das torcidas
é assimétrica. Há torcedores com maior ou menor poder de intervir nos rumos
dos seus acontecimentos. Tal poder depende, em grande medida, da quantidade
do capital simbólico acumulado, ou seja, do reconhecimento dos outros torcedores
(BOURDIEU, 1993). Nesse campo de interações, o reconhecimento é conquistado
por meio de uma série de provas de virilidade, cujo propósito é avaliar a capacidade
de aguentar as adversidades. Dentre essas provas, destacam-se a frequência em
caravanas para acompanhar os jogos fora de casa, especialmente nos lugares mais
distantes e mais hostis4 e a disposição para participar de confrontos (ALABAR-
CES, 2012; TEIXEIRA, 2004). Essa participação, todavia, não é caótica ou espontâ-
nea, mas, ao menos no plano discursivo, obedece a uma série de regras e códigos de
honra. Utilizar arma de fogo, pisotear adversários caídos no chão e/ou deixar um
colega de torcida para trás são vistas como ações covardes. Com frequência, crises
e conflitos são motivados justamente em função da quebra dessas regras e códigos,
que altera o sistema de interações entre elas.
Ademais, é preciso observar que o significado e a função social dos
confrontos entre torcidas organizadas variam de acordo com a “ideologia” de cada
uma, ou seja, segundo o conjunto de valores que norteia sua ação. As chamadas
“torcidas-chopes” e “torcidas-rastas” (pelas suas ligações com o hábito de consumir
bebidas alcóolicas e com a cultura rastafári, respectivamente) são mais conhecidas
pela sua irreverência e bom humor. Para elas, o incentivo ao time é central, e a riva-
lidade tende a se resumir às provocações na arquibancada. Já as torcidas de “pista”
são aquelas que valorizam a disposição para o embate físico como uma espécie de
“obrigação moral” e demonstração de fidelidade ao coletivo. Para muitos de seus
4 Nos quais existe um longo histórico de confrontos violentos com a torcida local e/ou com as forças policiais, por exemplo.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 143
integrantes, a adrenalina e o risco oferecidos por esses embates são bastante atrati-
vos. Mas, mesmo entre estas últimas torcidas, tais embates são, com certa frequên-
cia, encarados como uma resposta, uma consequência, e não uma atitude intencio-
nal (TEIXEIRA; LOPES, 2018).
Também é interessante notar que a circulação pelo campo das torcidas
organizadas permite que seus agentes adquiram o domínio de suas leis imanentes,
que não estão escritas, mas inscritas na realidade, em estado de tendências. Isso possi-
bilita, como diria Bourdieu (1993), que adquiram certo sentido do jogo. Assim como
um atacante que sabe onde a bola será lançada e se antecipa ao zagueiro para chegar
antes e partir livre em direção ao gol, um torcedor organizado experiente consegue se
antecipar à ação de uma torcida rival, sem necessariamente recorrer ao cálculo. Sabe
o que ela fará na arquibancada ou no trajeto ao estádio, por exemplo. Sabe, inclusive,
se deslocar pela cidade. Isso porque esta é demarcada em territórios amigos e inimi-
gos. Existe toda uma divisão territorial invisível para os leigos no tema. Apenas quem
é de torcida tem conhecimento de quando, como e onde é possível circular com rela-
tiva segurança com o uniforme de sua organizada. Afinal, entrar “fardado” em terri-
tório inimigo é, em qualquer momento, visto como uma afronta e sinônimo de risco.
5 Esse perfil, de acordo com Toledo (2012), não pode ser aplicado diretamente às lideranças das torcidas organizadas, que apresentam
algumas particularidades do ponto de vista etário, geracional e participativo.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 145
ritarismo das ditaduras. Esse costume, todavia, oculta o fato de que o autoritarismo é
estrutural, ou seja, de que ele é o próprio modo de ser e de se organizar dos brasileiros
– que conservam, em suas relações cotidianas, os traços dos séculos de escravidão
que marcaram a história do país.
Outro traço característico da sociedade brasileira que é reproduzido
no interior das torcidas organizadas, mas que, com certa frequência, aparece mas-
carado é o sexismo.6 Sob a imagem da proteção, várias práticas que oprimem as
mulheres são legitimadas, encobrindo sua real força e limitando seu campo de ação
(CHAUÍ, 2006). Por exemplo: em jogos considerados de risco, as mulheres não
podem participar das caravanas. Vistas como frágeis, são estimuladas, muitas vezes,
a se engajarem em práticas habitualmente associadas ao universo feminino, como
aquelas relativas ao cuidado. Assim, se, por um lado, com raríssimas exceções, não
existem presidentes de torcidas mulheres ou ocupando a “linha de frente” das brigas,
por outro, é possível encontrá-las nos departamentos sociais, onde são responsáveis,
muitas vezes, pela organização de campanhas e eventos.
Vale destacar que as mulheres, em algumas torcidas, sequer podem
bandeirar ou tocar instrumentos. Essa falta de acesso aos bens simbólicos mais
valorizados é reveladora de que elas fazem parte de uma subcategoria de torcedores
organizados, menos valorizada. Inclusive, muitos torcedores homens costumam
dizer que as mulheres só entram na torcida para arrumar namorado. Ou, ainda,
que vivem fazendo fofoca. Por essa razão, as torcedoras organizadas têm de provar
o tempo todo que realmente se importam com a associação. Outra questão que
indica que elas participam de uma subcategoria de torcedores é que não precisam
passar pelos rituais de batismo dos homens.
O sexismo nas torcidas organizadas relaciona-se aos padrões de mascu-
linidade vigentes orientados pelo elogio da força e da virilidade, conforme já anteci-
6 Aqui, vale ressaltar que ainda existe uma lacuna na literatura sobre torcidas organizadas relativa à discussão sobre as práticas e representações
das integrantes mulheres dessas torcidas. Consideramos, portanto, que, para o aprofundamento das análises aqui apresentadas sobre o sexismo, é de
fundamental importância o desenvolvimento de novos estudos sobre o tema.
146 Futebol na sala de aula
pamos. Estes, por sua vez, estabelecem e sustentam uma série de práticas homofó-
bicas. O uso de brincos, por exemplo, tende a ser visto como coisa de “veado” e, por
essa razão, a ser rejeitado. Aqui, cabe salientar que a homofobia está visceralmente
ligada à lógica da dominação. Nesse sentido, o estigmatizado é, principalmente, o
homossexual passivo. Um dos gritos de guerra contra a torcida do Corinthians é
revelador: “Ei, galinha preta, vem cá fazer chupeta!” Também cabe destacar que,
longe de se restringir às organizadas, a homofobia é um problema presente nos
mais diferentes setores dos estádios. Não à toa, uma prática herdada do México e
muito difundida no futebol brasileiro é o grito de “bicha” para o goleiro adversário,
quando este repõe a bola em jogo. Mas, se o machismo e a homofobia são práti-
cas amplamente difundidas dentro das torcidas organizadas, o mesmo não se pode
dizer em relação ao racismo. Com isso, não estamos, obviamente, afirmando que
esse tipo de prática não ocorra. Já houve casos, inclusive, em que a Polícia Militar
identificou grupos neonazistas nesses agrupamentos, como ocorreu em 2007 no
Rio Grande do Sul.7 Todavia, de modo geral, as torcidas organizadas condenam
publicamente a discriminação racial, levando, inclusive, grandes bandeiras para
denunciá-la, principalmente no dia da Consciência Negra.8
A luta contra o racismo soma-se a diversas outras. Historicamente, as
torcidas organizadas defendem um futebol mais popular, realizando protestos, por
exemplo, contra o alto valor do preço dos ingressos e pela supressão das cadeiras
nos locais destinados a elas. Hoje em dia, compartilham a agenda global do movi-
mento contra o “futebol moderno” e criticam, fortemente, a elitização dos estádios
e a ampliação dos dispositivos de controle e de repressão, estimulados pela realiza-
ção dos megaeventos esportivos supramencionados.
9 O deputado ganhou notabilidade pública em meados da década de 1990, quando atuava como promotor público e realizou uma cruzada
jurídica contra as organizadas paulistas. Os protestos dos Gaviões da Fiel não deixaram de ser, portanto, também uma resposta a essa cruzada.
10 Esse, assim como outros seminários de torcidas, contou com o apoio logístico e financeiro do Ministério do Esporte. Aqui, cabe destacar que
a relação entre o Estado brasileiro e as torcidas organizadas foi fortalecida principalmente durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
148 Futebol na sala de aula
Mais exatamente, são modelados por eles, ao mesmo tempo em que os expressam.
E, ao fazerem isso, forjam uma identidade e delimitam o pertencimento grupal, que
distingue os iguais dos “outros” (ZUCAL, 2010).
Um torcedor organizado deve possuir um corpo “viril”, e isso significa
rejeitar, por oposição, um corpo visto como “feminino”, “frágil” e “passivo”. Traços
associados às mulheres e aos homossexuais tendem a ser eliminados ou ocultados.
Já vimos, por exemplo, que o uso de brincos é condenado. Da mesma forma, cabe-
los curtos ou raspados são valorizados em detrimento dos longos. O corpo deve ser
grande e forte. Aqui, as mascotes das torcidas são emblemáticas. Quase todas são
musculosas e possuem expressões raivosas. Nas torcidas “chopes” e “rastas”, elas
também podem aparentar estar entorpecidas. O andar do torcedor, por sua vez,
deve ser firme e duro. Revelar um corpo-armadura (DIÓGENES, 2003). Trejeitos
afeminados são inaceitáveis.
A fim de provar virilidade, alguns torcedores organizados tiram a camisa
e mostram seus peitos desnudos, mesmo em dias mais frios. Devem permanecer na
arquibancada em momentos de tensões e hostilidades, como quando a polícia joga
gás lacrimogêneo ou a torcida adversária arremessa pedras. Cicatrizes são motivo
de orgulho, pois constituem a “prova viva” da participação em embates corporais.
A cabeça é uma parte na qual se observa com frequência tais marcas. Inclusive,
quando circulam em outros espaços sociais, alguns torcedores utilizam bonés, a
fim de ocultá-las, dispensando, assim, maiores explicações.
De modo geral, as artes marciais mistas (MMA) são muito apreciadas,
justamente por sua capacidade de formar bons combatentes e corpos capazes de
aguentar chutes e pontapés. Não à toa, muitas torcidas oferecem aulas da moda-
lidade em suas sedes, e alguns torcedores ostentam a famosa “orelha couve-flor”,
causada pelas contusões decorrentes do intenso contato físico com os lutadores
adversários. Contato que faz com que, muitas vezes, tenham a cabeça esfolada
no tatame.
150 Futebol na sala de aula
11 Neste trabalho, partimos do pressuposto de que há múltiplos modos de ser jovem e de viver a condição juvenil, sendo fundamental, em uma
análise, considerar de que modo seus diferentes percursos, trajetórias e perspectivas interagem em uma mesma experiência social.
12 A aprendizagem está sendo aqui considerada na perspectiva de Ingold (2010), que a concebe como uma prática social relacionada à cultura,
um fenômeno social-coletivo, que se processa a partir da imersão dos indivíduos em certos contextos, não sendo resultado da mera transmissão de
informações passadas de uma geração a outra. Nos termos do autor, os sujeitos constroem, eles próprios, o conhecimento por meio da “redescoberta
orientada” e da “educação da atenção”.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 151
Considerações finais
de universos que, às vezes, ficam à margem dos estudos sobre o tema, como o das
torcidas organizadas.
Nesse último universo, conforme buscamos mostrar ao longo de todo
o capítulo, milhares de jovens aprendem modos de pensar, de se comportar, de
se relacionar entre si, enfim, modos de ser e de viver. Aprendem técnicas corpo-
rais, experimentam sentimentos (alegria/tristeza; euforia/raiva, medo/coragem)
e aceitam princípios coletivos de convivência e padrões de comportamento. Nas
arquibancadas, produzem e transmitem saberes e símbolos, ritos para demonstrar
a paixão pelo clube e pela torcida (TEIXEIRA, 2004). O compartilhamento cons-
ciente de experiências e a intencionalidade da participação favorecem a constitui-
ção de laços de pertencimento. Vendo, ouvindo e atuando, o torcedor se insere
em um processo de descobertas, de engajamento físico e emocional, por meio do
qual a identidade coletiva do agrupamento vai se fortalecendo. Imersos no coletivo,
fabricam sua própria subjetividade, experienciando formas de agir e de sentir. Nas
palavras de Mauss (1924/1974, p. 200):
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Violência verbal e a performatividade
de gênero no currículo de
masculinidade dos torcedores de
estádio de futebol em questão
Gustavo Andrada Bandeira e Fernando Seffner
dominante nas classes médias. Em alguma medida, seria possível visualizar certa
disputa estética entre essa representação do popular contra o maior refinamento de
uma suposta elite mais polida.
Os estádios de futebol são espaços singulares para a investigação de
masculinidades. Diferentes discursividades no esporte carregam conteúdos de
uma masculinidade bastante fixa e tradicional. Ao mesmo tempo, estar situado em
um coletivo de homens impregnado pela sensibilização das emoções, pode permi-
tir comportamentos um tanto transgressores dentro da lógica heteronormativa de
nossa cultura. Os estádios de futebol podem ser pensados como um contexto cultu-
ral específico, que ensinam comportamentos, valores, formas corretas ou adequa-
das de práticas diversas por meio de seu desenho arquitetônico, cânticos repetidos
e performances explicitadas. Os estádios são coisas concretas, não apenas porque
são feitos de concreto, mas porque se constituem como artefatos portadores de
pedagogias de gênero e de sexualidade, dentre outras pedagogias culturais.
O jogo de futebol possui alguns códigos particulares que permitem que
diferentes ações executadas nesse local não sofram os mesmos interditos que sofrem
em outros espaços do cotidiano. O comportamento dos torcedores nos estádios de
futebol não é “natural”. Os indivíduos são inseridos em um currículo, aqui enten-
dido como um percurso cíclico, e que a cada partida seus elementos se repetem
em sintonia com a noção de performatividade. O currículo é sempre um campo de
forças. Esse currículo apresenta uma série de narrativas e práticas que produzem
as formas de expressão permitidas e mesmo as emoções adequadas nesse espaço
cultural. As manifestações públicas das emoções de apoio ou de rechaço, como as
que acontecem nas praças esportivas, não são fenômenos exclusivamente psicoló-
gicos ou meramente fisiológicos. Elas estão inseridas em um contexto pedagógico
que limitará o número de ações possíveis para aqueles que pretendem identificar-se
com determinados grupos identitários.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 163
1 RUSTEN, Pablo Vande. O jeito estranho da Fifa de combater o racismo. El País, 29 set. 2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/
brasil/2016/09/28/deportes/1475055785_480275.html. Acesso em: 27 mai. 2019.
2 RIZZO, Marcel. Fifa cria projeto contra a homofobia no futebol. Folha de S. Paulo, 31 jan. 2014. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.
164 Futebol na sala de aula
ou outras nos dias comuns, poderiam ser colocadas em suspensão nesses tempo e
espaço específicos. O ambiente do jogo, porém, nunca é fixo e seguro. A “vida quo-
tidiana” sempre pode reafirmar sua proeminência devido a uma quebra de regras
ou a um desencanto (HUIZINGA, 1993).
A violência, como qualquer outro conceito que tem seu significado pro-
duzido na cultura, não é um conceito essencial, fixo ou estável, mas “aquilo que se
entende, se nomeia, se pratica e se sofre como violência muda ao longo do tempo,
e também no mesmo tempo, nas diferentes sociedades e nos grupos culturais”
(MEYER, 2009, p. 214). Algumas manifestações violentas poderão ser adjetivadas
de monstruosas, hediondas, terríveis. Outras poderão ser entendidas como legíti-
mas e desejáveis, sendo naturalizadas em um determinado contexto e entendidas
como não violentas, quando em outros contextos poderiam ser até mesmo crimi-
nalizadas. É produtivo pensar que essas classificações e adjetivações não são um
“reflexo” das ações, mas são constitutivas do entendimento possível que acabam
por produzir algumas ações como violentas e outras como não violentas.
Algumas das manifestações de violência que aparecem nos estádios de
futebol podem ser entendidas como características importantes e desejáveis em
certas representações de masculinidades e de torcedores de futebol. Se pensarmos
que os estádios de futebol são um importante lugar em que se realizam construções
de masculinidade, algumas violências serão permitidas, incentivadas e naturaliza-
das por serem vistas como um exercício saudável para expressão de modos de ser
homem. Para alguns, ser violento ali, no campo ou na torcida, durante aqueles 90
minutos, poderia ser algo positivo, pois extravasaria o que poderia causar proble-
mas em outros locais, utilizando a ludicidade e a lógica de um espaço não ordinário
para realizar um exercício mais permissivo em relação a diferentes manifestações.
Para outros, ao contrário, as atitudes violentas produzidas nos campos de futebol
tendem a reforçar esses comportamentos que serão transferidos para fora dos 90
minutos e do seu “local apropriado”, o estádio, e, com isso, poderiam gerar violên-
166 Futebol na sala de aula
cia contra outras pessoas não diretamente envolvidas ou demarcadas por aquele
contexto separado do cotidiano.
Jornalistas esportivos e alguns pesquisadores acadêmicos demarcam
uma hierarquização entre o que poderia ser entendido como violência “simbólica”
de violência “real”. Heloísa Reis conceitua essa separação da seguinte maneira: “a
violência real [...] é perceptível pelas agressões físicas de contato, enquanto a vio-
lência simbólica é visível pelas agressões verbais e/ou gestuais” (REIS, 2005, p. 114).
Para Norbert Elias, essa divisão entre violências passou a fazer sentido, a partir da
constituição do estado moderno e do monopólio do uso legítimo da força.
Formas de violência não física que sempre existiram, mas que até então sem-
pre estiveram misturadas ou fundidas com a força física são agora separadas
destas últimas. Persistem, mas de forma modificada, nas sociedades mais
pacificadas (ELIAS, 1993, p. 198).
xuais é valorizada, e esse discurso de ódio acaba sendo entendido como desejável
nessa socialização. Dentro dos estádios, os torcedores utilizam os palavrões como
moeda corrente. Essas formas de violência são vividas e pensadas em um contexto
bastante específico. Os estádios de futebol e as torcidas podem ser lidos como insti-
tuições que possibilitam determinadas práticas e impossibilitam outras. A relação,
um tanto cristalizada entre masculinidade e a exigência de algumas manifestações
violentas, permite diminuir, e muito, as possibilidades de se solicitar a homofobia
como uma violência ou, mesmo, um problema nos estádios de futebol:
[...] injúrias [...] que classificam o adversário como homossexual, ou fazem
referência à passividade em relações sexuais, ocorrem rotineiramente nos
estádios, sem que sejam levantadas discussões ou polêmicas quanto ao seu
caráter homofóbico (ANJOS, 2015, p. 13).
A dinâmica dos jogos de futebol e das torcidas, que coloca dois grupos
arbitrariamente em polos opostos, permite catalisar manifestações que coloquem
na diferença seu principal pressuposto. E é aqui que os valores culturais ordinários
poderão solicitar seu ingresso no mundo extraordinário dos jogos, do lazer e do
esporte. Faltando elementos que possam separar torcedores rivais “naturalmente”
dentro do jogo, é necessário que se acionem conteúdos “de fora” do enfrentamento
para essa separação. Nesse contexto, é necessário saber, inclusive, o que poderá ser
considerado ofensivo.
Mesmo que estejamos em um contexto de certas permissividades, e que
seria um tanto apressado acreditar que o torcedor que se expressa de forma homo-
fóbica, racista, xenófoba ou antissemita em um estádio de futebol mantenha essa
postura nas demais práticas cotidianas, ignorar o conteúdo dessas manifestações ou
tirá-las de seu contexto violento também parece equivocado; “a força de seus insultos
reside, precisamente, ou pelo menos em grande parte, na longa história desse dis-
curso. É verdade que as palavras não têm um significado fixo nem único; mas os ves-
tígios de seu passado também não se apagam completamente” (LOURO, 2017, p. 68).
168 Futebol na sala de aula
5 Para dar fluidez ao texto, optamos por relatar as falas dos torcedores. A compilação feita por nós está baseada nas manifestações literais
que compõem a tese de doutorado de um dos autores (BANDEIRA, 2017).
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 169
nário. Eles acabam, em alguma medida, recebendo a autorização dada pelo humor
ou pelas jocosidades que acabam marcando os espaços de socialização torcedora.
Outra afirmação relevante aponta que o questionamento das práticas tor-
cedoras não seria algo que surgiria de dentro do estádio. Nesse raciocínio, um público
externo às costumeiras práticas do torcer, geralmente nomeado de politicamente cor-
reto, estaria questionando práticas aceitas e naturalizadas nas práticas esportivas. Os
torcedores reconheciam a importância de diferentes demandas das minorias sociais,
sejam elas étnicas ou sexuais. Apesar disso, eles também reclamaram do policia-
mento sobre os dizeres nos estádios de futebol. Há um entendimento de que racismo
e homofobia precisariam ser enfrentados, mas o pudor com o dito no estádio se asso-
ciaria a algo “chato” ou “exagerado”. O estádio é apontado como um local de manifes-
tações específicas, e que eventualmente o excesso de interdições poderia atrapalhar
o contexto das partidas. Há aqui certa noção de suspensão do tempo vivido quando
decorrem as partidas, com uma eventual licença para praticar atos que fora dali não
seriam adequados, mas que ali praticados não chegam a influenciar a “vida lá fora”.
Torcedores afirmavam que a “corneta” e as brincadeiras eram algo
necessário e salutar para o ambiente do estádio. Para eles, as brigas é que precisa-
riam ser evitadas. É possível visualizar um rechaço à violência física, enquanto a
violência verbal estaria autorizada. Naturalizadas nesse contexto, elas poderiam,
inclusive, não ser nomeadas como violência. Para os torcedores os gritos nos está-
dios estariam vinculados a piadas e/ou brincadeiras. Se, por um lado, o ambiente
dos estádios e seu entendimento de templos dos insultos autorizaria uma série de
manifestações que poderiam transitar entre o humorístico ou o violento, a rivali-
dade, constituidora do clubismo na construção identitária das diferentes torcidas,
ainda autorizaria a utilização de termos rejeitados em outros espaços do circuito
mais amplo da cultura por sua presença histórica. A rivalidade acaba aumentando
o número de elementos nesse campo de disputas pela definição do legítimo e do
não legitimo de ser manifestado nos estádios de futebol.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 171
suas outras sociabilidades, não repetiria. O indivíduo torcedor que solicita autori-
zação para o insulto durante sua sociabilidade no estádio poderia somar-se àqueles
que reclamariam desse mesmo insulto em outro contexto.
Em diferentes oportunidades, o questionamento às práticas torcedoras
acaba nomeado ou acusado de “politicamente correto”. Os torcedores entendem
que essa suposta ética do politicamente correto estaria espalhada no circuito mais
amplo da cultura, ocupando certa normatividade sobre o discurso público. Há um
entendimento de que essa demanda politicamente correta teria entrado nos está-
dios de futebol. Eventualmente, a modernização das praças esportivas e o recebi-
mento da Copa do Mundo de 2014, que lançaram diferentes luzes para as práticas
torcedoras no Brasil, podem ter facilitado a entrada de tal discurso politicamente
correto nos estádios. Na realidade, diferentes demandas colocadas no circuito mais
amplo da cultura parecem ter sensibilizado diferentes agentes, incluindo clubes
e federações para problematizar essa lógica considerada, até então, como mais
fechada ou específica dos estádios de futebol.
Muito mais do que uma essência, as práticas torcedoras são uma perfor-
matividade repetida. Elas funcionam por meio de constantes repetições. A norma
do torcer precisa da reiteração nos estádios para funcionar. E é justamente nessa
reiteração que seus conteúdos poderão ser naturalizados ou questionados. O que
aparece como normatividade para o torcer não é resultado de um acordo entre
aqueles que frequentam os estádios, mas um ponto muito provisório entre disputas
por significados que incluem diferentes atores com diferentes protagonismos nesse
contexto específico.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 173
Referências
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Alteridades imaginadas
cial o Brasil.1 Em todos esses exemplos, a diferença foi pensada como um desvio
da normalidade tendo como consequência diversas modalidades de discriminação
que até hoje perduram.2
A construção de alteridades imaginadas como sendo entidades radical-
mente opostas – e inferiores – a um nós é mecanismo notável, também, na história
da sexualidade. A oposição que aqui nos interessa é homossexualidade x heteros-
sexualidade. O indivíduo homossexual é uma “invenção”, no sentido de Hobsbawn
e Ranger (1997), que se coaduna com os esforços de normatização das subjetivi-
dades, a partir da sexualidade. “Ou seja, um dispositivo histórico do poder que
marca as sociedades ocidentais modernas e se caracteriza pela inserção do sexo em
sistemas de unidade e regulação sexual” (FOUCAULT, 2007, p. 100). A homosse-
xualidade se torna uma classificação demarcada discursivamente como uma dege-
nerescência, passível de apreensão e tratamento científico.3
A heterossexualidade é naturalizada e consolidada como norma, tor-
nando-se com o tempo compulsória (RICH, 1994). Aos indivíduos que fugiam a
esse padrão restava ora a perseguição, ora o silêncio e a invisibilidade. Restava-lhes
entrar e permanecer em seus “armários”, escondidos e, ao mesmo tempo, protegi-
dos de possíveis castigos. No período posterior à Segunda Grande Guerra, o armá-
rio passa a fazer parte permanente do mobiliário de gays e lésbicas, consolidando-
se como uma máscara social da vida pública. É nos Estados Unidos que estar “in
the closet” se transforma em regra de conduta, derivada de um momento em que a
homossexualidade é vista como um risco ao pacato American Way of Life, funda-
mentado na composição tradicional da família (SEIDMAN, 2002).
1 No caso do Brasil, já na Carta de Caminha, evidencia-se o viés da negatividade pelo qual o indígena é interpretado. Antes de tudo, os
indígenas não civilizados, portanto, não são cristãos, cabendo a Portugal, levar seu domínio para a Terra de Santa Cruz. Antes de uma aceitação e
encantamento com a alteridade indígena, temos “uma ética do controle”, explicitada por Caminha (GIUCCI, 1993, p. 63).
2 Recomenda-se como leitura o belíssimo livro de Edward Said, Orientalismo (Companhia das Letras, 2007). Nele, o autor demonstra que
grande parte do que o Ocidente conhece do Oriente é derivado de projeções imagéticas pautadas no exotismo e na criação de uma imagem
demonizada e inferiorizada do Oriente.
3 A homossexualidade é uma categoria que substitui a sodomia, prática condenada tanto pelo direito, quanto pela religião e passível de
punição. A homossexualidade é considerada uma doença, alvo de controle e tratamento psiquiátrico (FOUCAULT, 2007).
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 181
4 “Vivendo uma mentira, o armário é frequentemente comparado a uma prisão, a um apartheid. [...] É como pedir para se castrar o eu, repri-
mindo-se as próprias paixões que dão riqueza e vitalidade à vida” (Tradução da autora).
182 Futebol na sala de aula
possui algum direito de manifestação, não podemos dizer que o mesmo ocorra nos
esportes, em especial, no futebol.
Como propõe David Coad (2005) em seu livro Gay Athletes and the Cult
of Masculinity, há nos esportes uma necessidade de os atletas permanentemente
darem provas de sua heterossexualidade. Essa necessidade se dá quando o atleta
possui algum comportamento que fuja aos padrões da masculinidade hegemônica
do ambiente esportivo:
Homophobic discourse is used indiscriminately against and boys who acts
in discord with masculine behaviors wheter he is gay or not. In fact, many
straight athletes tell me that they questioned their sexuality because of the
labeling of their feminine behavior5 (CONNEL, 2006, p. 30).
5 “O discurso homofóbico é usado indiscriminadamente contra garotos que agem em desacordo com comportamentos masculinos, sendo eles
gays ou não. Na verdade, muitos atletas héteros me dizem que sua sexualidade é contestada porque seus comportamentos são rotulados como
femininos” (Tradução da autora).
6 RAMOS, Raphael. Torcedores do Corinthians protestam contra beijo de Emerson em amigo. Estadão, 19 ago. 2013. Disponível em: http://espor-
tes.estadao.com.br/noticias/futebol,torcedores-do-corinthians-protestam-contra-beijo-de-emerson-em-amigo,1065637. Acesso em: 20 out. 2020.
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 183
7 É razoavelmente recente a concepção que temos de torcida, compreendida como um agrupamento festivo que paga ingresso para assistir a
um jogo de futebol, em um estádio da cidade. Nos primeiros anos de sua chegada ao Brasil, o futebol era uma prática quase que restrita a clubes
esportivos oriundos das classes abastadas. Símbolo de modernidade e da adoção de hábitos europeus, a introdução do futebol se conformou aos
ideais civilizatórios e higienizadores, comuns no fim do século XIX, no Brasil (PEREIRA, 2000). É somente nos anos de 1910 que a denominação
“torcedores” passa a ser gradativamente usada pela imprensa para fazer referência aos espectadores que incentivam seus times com gritos e
gestos (MALAIA, 2012, p. 61).
8 Nesse caso, as acusações recaem na atuação das chamadas torcidas organizadas, quase sempre responsabilizadas por acidentes e mortes
ocorridos nos estádios ou em seus arredores (TOLEDO, 1999).
9 Um dos temas mais abordados nas pesquisas sobre futebol diz respeito às torcidas organizadas, em especial, sua relação com os casos
de violência. Sobre esse tema, temos o importante livro de Toledo (1996). Recentemente foi publicado o livro Hooliganismo e a Copa de 2014,
organizado por Bernardo Buarque de Hollanda e Heloisa Baldy (2014).
184 Futebol na sala de aula
Janeiro. Mas basta, por enquanto, afinal, temos o suficiente para dar mostras do
quanto as torcidas podem ser preconceituosas. Todos os cânticos mencionados são
vinculados aos chamados torcedores organizados. Porém há de se considerar que
o coro desses agrupamentos é, frequentemente, acompanhado pelo restante das
vozes presentes nos estádios. Além dos cânticos, ofensas comuns como “bicha”,
lançadas contra os goleiros, quando batem o tiro de meta, ou “arrombado”, para
os árbitros, são parte do vocabulário compartilhado por jovens, adultos, mulheres
e crianças que assistem a uma partida nas arquibancadas, nas cadeiras de bares ou
nos sofás de casa.
Tentativas de se criar torcidas gays como a Coligay e Flagay15 tiveram
vida curta, sendo fortemente repelidas por outros torcedores. Hoje em dia, circu-
lam na internet e redes sociais algumas tentativas de dar visibilidade aos torcedores
gays, como é o caso da Galo Queer, criado por uma cientista social, cujo nome
sabemos ser apenas Nathália. A Galo Queer atua como comunidade virtual, rara-
mente se mostrando presente nas arquibancadas. Em entrevista, alguns dos partici-
pantes da comunidade relatam ameaças sofridas, caso decidissem estender alguma
bandeira ou cartazes nas arquibancadas.16 Mesmo que de modo virtual, a iniciativa
de se criar a Galo Queer demonstra certa demanda pelos direitos LGBT sendo leva-
dos ao futebol, uma das mais importantes manifestações culturais do país.
Infelizmente, trata-se de uma luta difícil. Como já dito, o futebol, no
Brasil, é uma escola onde se aprende “a ser homem”, a partir de um “currículo de
masculinidade”17 (BANDEIRA, 2010) que é seguido por torcedores no estádio – e
15 A Coligay foi a primeira torcida organizada gay do Brasil. Criada para apoiar o Grêmio (RS), a Coligay durou de 1977 a 1983. Sobre sua
história, v. Gerchmann (2014). Já a Flagay foi criada em 1979 por Clóvis Bornay, mas durou apenas um jogo tendo sido hostilizada por outros
torcedores. Recentemente em 2003, o ativista Raimundo Pereira (já falecido) anunciou a volta da torcida às arquibancadas, mas torcedores e
dirigentes do Flamengo se mostraram contrários à iniciativa.
16 MACHADO, Thales. A corajosa "Galo Queer": cientista social funda movimento anti-homofobia na torcida do Atlético-MG. ESPN, 11 abr.
2013. Disponível em: http://espn.uol.com.br/noticia/322413_a-corajosa-galo-queer-cientista-social-funda-movimento-anti-homofobia-na-tor-
cida-do-atletico-mg. Acesso em: 20 out. 2020.
17 Segundo Bandeira (2010, p. 346): “O conceito de currículo da ciência pedagógica parece-me produtivo para pensar as práticas exercidas
nos estádios de futebol. [...] O currículo seria mais bem entendido aqui se pensado como uma série de prescrições, algo que os sujeitos são
reiteradamente convidados a fazer”.
186 Futebol na sala de aula
mesmo fora dele –, tendo como matriz “pedagógica” um conjunto de atitudes não
somente homofóbicas, mas “sexistas – los hombres son superiores a las mujeres – y
heterosexista – los heterosexuales son los normales, superiores a los homosexu-
ales” (OLAVARRÍA, 2006, p. 120).
O que há de interessante nesse fenômeno é o fato de que ele explicita
algo fundamental: a necessidade de se “aprender a ser homem” dá mostras de que
as masculinidades – assim como as feminilidades – estão longe de poderem ser
consideradas a partir de características inatas, mas, sim, como derivadas de cons-
truções culturais que podem variar em diferentes contextos, dentro de uma mesma
sociedade. Sendo assim, não nascemos homens ou mulheres, mas nos tornamos
homens e mulheres por meio de performances que reforçam atos, comportamentos
e ações que demarcam os sujeitos. O sentido de performance como proposto por
Judith Butler é “aquele poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos,
que regula e constrange” (BUTLER, 2001, p. 152).
A torcida de futebol, no Brasil, é um lócus privilegiado da performa-
tividade masculina. Nela, constantemente, são reiterados os modos adequados de
“ser homem”, a serem reproduzidos em diversos momentos do cotidiano. A mascu-
linidade hegemônica do futebol pressupõe virilidade, heterossexualidade e subjuga
– às vezes, de modo violento – masculinidades que desviem do padrão considerado
adequado e desejável. Trata-se, portanto, de identidades erguidas, a partir de pro-
cessos de hierarquização, mediadas por relações de poder e status social:
Sin embargo, las diferentes masculinidades no se encuentran unas junto a
otras como plastillos en una mesa, como estilos de vida altyernativos entre
los cuales los hombres escogen libremente: existen relaciones definidas entre
las diversas masculinidades – principalmente relaciones que dependen de la
jerarquia y la exclusión. Por exemplo, en la sociedade australiana contempo-
rânea existe um modelo de masculinidad (autoritária, agressiva, heterosse-
xual, con cuerpos capaces, valiente) a la cual se respecta más que a las otras
(CONNEL, 2006, p. 186).
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 187
18 OBSERVATÓRIO. Opinião: em pauta após vídeo de Fellipe Bastos, LGBTfobia deve ser combatida com ações no futebol. Observatório da
Discriminação Racial no Futebol, 20 fev. 2019. Disponível em: https://observatorioracialfutebol.com.br/opiniao-em-pauta-apos-video-de-fellipe
-bastos-lgbtfobia-deve-ser-combatida-com-acoes-no-futebol/. Acesso em: 20 out. 2020.
19 No Dia da Visibilidade Trans – 29 de janeiro –, o Bahia postou em suas redes um manifesto no qual passaria a adotar o nome social nos
processos administrativos do clube. Cf. GUITZEL, Virgínia. Nome social. Esporte Clube Bahia, 29 jan. 2019. Disponível em: https://www.esporteclu-
bebahia.com.br/nome-social/. Acesso em: 20 out. 2020.
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 189
20 CORNEJO, Giancarlo. A guerra declarada contra o menino afeminado. Disponível em: http://www.ufscar.br/cis/2011/04/a-guerra-declarada-
contra-o-menino-afeminado/. Giancarlo se inspira no texto How To Bring Your Kids Up Gay de Eve Kosofsky Sedgwick (1991). Disponível em: http://
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192 Futebol na sala de aula
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Filmes
BILLY Elliot. Direção: Stephen Daldry. Reino Unido: BBC Company, 2000. (111 min).
COM AMOR, Simon. Direção: Greg Berlanti. EUA: Fox 2000 Pictures, 2018. (110 min).
Quadrinhos
BECHDEL, Alison. Fun home: uma tragicomédia em família. São Paulo: Conrad, 2007.
Ditadura civil-militar e
homossexualidades transgressoras:
o caso da torcida Coligay
Luiza Aguiar dos Anjos
Introdução
então em vigor no país, para quem as homossexualidades foram um dos alvos pri-
vilegiados de políticas de repressão e controle. Por outro lado, apesar do esforço
do Estado, é também nesse período que as cidades brasileiras, especialmente as
grandes capitais, observam a ampliação de um circuito de diversões voltados ao
público LGBT+, que passaram a estar cada vez mais visíveis nos espaços públi-
cos, assim como nos meios culturais e intelectuais (GREEN; QUINALHA, 2014). É
também quando seus movimentos de militância passam a se organizar (SIMÕES;
FACCHINI, 2009).
O campo das artes, por sua vez, também foi um espaço no qual, ape-
sar das restrições impostas pela censura, circularam diversas ideias subversivas. O
cinema, o teatro, a música popular, a literatura e as artes plásticas acompanhavam,
a seu modo, o ritmo de contestação à ordem que se fazia nas ruas via luta armada
(TREVISAN, 2011). Obras de diversos artistas não apenas reivindicavam o retorno
à democracia, como também tiveram importante papel na ruptura com parâme-
tros tidos como adequados de uso e exploração dos corpos, envolvendo nesse bojo
aspectos de gênero e sexualidade.
A ambiência revolucionária se fazia notar ainda no ambiente fute-
bolístico. Se, por um lado, esse esporte foi utilizado pelo Estado ditatorial como
ferramenta de disseminação de suas ideologias, em especial, a partir da Seleção
Nacional, o futebol também foi tomado por atitudes contestatórias de jogadores,
torcidas organizadas e clubes (BERTÉ, 2016; COUTO, 2010; FLORENZANO,
2010; HOLLANDA, 2009). A presença da Coligay, nesse sentido, pode ser inserida
em um conjunto amplo e diverso de manifestações que exerciam e reivindicavam
liberdade e democracia (FLORENZANO, 2017).
Tendo em vista esse cenário, este texto se propõe a refletir acerca do
caráter contestatório e subversivo da Coligay perante o contexto cultural e político
da época. Para isso, recorro a entrevistas com alguns de seus/suas integrantes, além
de registros em periódicos.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 199
1 Em Anjos (2018), abordo a existência de outras torcidas gays brasileiras nas décadas de 1970 e 1980.
2 A contracultura foi um movimento internacional que teve sua ramificação brasileira. O eclético conjunto de referências desse movimento
estético psicossocial envolvia orientalismo, drogas alucinógenas, pacifismo, ecologia, pansexualismo, discos voadores, um novo discurso amoroso,
transformação here and now do mundo, dentre outras (RISÉRIO, 2005). Para Coelho (2005), tal qual a luta armada, a contracultura foi um modo
de combater a sociedade vigente, contestando o que, para seus integrantes, era entendido como o fundamento do autoritarismo: a racionalização
da vida social.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 201
Se, para o regime, essas práticas eram vistas como manifestações de sub-
versão que necessariamente precisavam ser coibidas, seja por representarem fugas
à norma, seja por acreditarem que elas eram parte de um complô comunista, tam-
bém entre muitos movimentos de esquerda essas transformações de costume eram
mal vistas (QUINALHA, 2018). Conforme lembra Zuenir Ventura (1988, p. 33),
aos olhos de muitos oposicionistas, “aderir aos novos costumes era um inaceitável
desvio ideológico”. Segundo o autor, para o PCB, aquelas mudanças comportamen-
202 Futebol na sala de aula
3 Alguns exemplos de filmes lançados nesse período que expuseram a homossexualidade são “Nos Embalos de Ipanema” (1978); “Os
Machões” (1972); “Toda Nudez Será Castigada” (1972); “O Beijo da Mulher Aranha” (1985); “Aqueles Dois” (1985); dentre muitos outros.
204 Futebol na sala de aula
Sobre essa posição, Rosa (2010) levanta a ressalva de que, mesmo rei-
terando o estreitamento entre homossexualidade e efeminação, a performance da
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 205
4 Os autores explicam que, nesse período, a travestilidade e a transgeneridade eram vistas, hegemonicamente, como formas de homosse-
xualidade.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 207
5 Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) foram dois órgãos complementares
(por isso, a frequente menção conjunta) subordinados ao Exército atuantes durante a ditadura civil-militar. Exerciam ações de inteligência e
repressão contra indivíduos e organizações que representassem alguma ameaça à segurança do regime.
208 Futebol na sala de aula
ciais relatados por Volmar podem indicar menor vigilância dos circuitos LGBT
de Porto Alegre em relação às outras capitais nas quais se evidenciou a ocorrên-
cia de frequentes rondas e batidas policias (COWAN, 2014; MORANDO, 2014;
OCANHA, 2014). Por outro lado, pode também ser sinal de negociações entre
xs proprietárixs e frequentadorxs e as forças policiais que vigiavam tais espaços
(OCANHA, 2014).
Para além do controle das diversões, o policiamento também agia nas
vias públicas. A contravenção penal de vadiagem6 foi uma ferramenta recorrente-
mente utilizada para a prisão arbitrária de uma série de indivíduos, entre elxs gays,
lésbicas e, sobretudo, travestis7 (OCANHA, 2014; PERLONGHER, 1987). Essa
experiência de recorrente abuso do poder policial foi relatada por Marcelly, travesti
que integrou a Coligay:
[Era presa] quase todo dia. Porque no tempo da ditadura a gente era conside-
rada de acordo com o artigo 55, que é a vadiagem, entendeu? Mas a gente era
presa praticamente todo dia, na prostituição. E durante o dia tu não podia
sair porque... Da maneira de vestir roupa feminina a gente não podia porque
já era considerada vadiagem. Ainda existe até hoje, mas a vadiagem naquela
época era considerada pras travestis (MALTA, 2015, p. 14).
6 Ocanha (2014) explica que o Código Penal de 1890 previa a vadiagem como crime. Já no Código Penal de 1941, seu status foi alterado
de crime para contravenção penal, uma tipologia jurídica que descreve crimes tidos como leves.
7 A comprovação do status de trabalhador dependia da posse da carteira de trabalho assinada, coisa que muitos trabalhadores pobres não
possuíam. Ocanha (2014), ao analisar fichas de inquéritos policiais referentes à vadiagem na década de 1970, identifica que, diferentemente
de outros crimes, bastava uma testemunha, na maioria das vezes o próprio investigador de polícia, além da não comprovação de renda, para a
formulação do inquérito. Tais exigências deixavam grande parte da população em situação de vulnerabilidade, permitindo à polícia determinar
alvos aos quais a contravenção penal seria aplicada.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 209
8 A noção de discrição é comumente acionada para se referir à não expressão de gestualidades associadas à homossexualidade. Um
homossexual discreto, assim, poderia passar-se por heterossexual no ambiente público.
210 Futebol na sala de aula
9 Exemplo da disputa de movimentos de militância contra aqueles que defendiam o foco exclusivo na luta de classes é retratado por
Trevisan (2011), quando relembra a participação do Somos – reconhecido como primeiro grupo de militância homossexual do Brasil – em um
debate sobre homossexualidade organizado pela Faculdade de Filosofia e Letras da USP no ano de 1979, parte de uma série de eventos sob
o tema “Minorias”. No encontro, segundo Trevisan relata, a maior resistência às visões apresentadas pelo incipiente movimento homossexual
não era a de grupos conservadores tradicionais, mas, sim, de grupos de esquerda fiéis à luta de classes. Aqueles oponentes defendiam, assim,
prioridades revolucionárias, entendendo que as demais lutas eram não só irrelevantes, mas também divisionistas.
212 Futebol na sala de aula
certa concordância com práticas do governo ditatorial podem ter sido outros fato-
res a contribuir para que eles não tivessem sido impactados individualmente pelo
autoritarismo e repressão do regime ditatorial.
No que tange à percepção de alguma atenção policial nos estádios,
nenhum dxs torcedorxs mencionou qualquer controle ou repressão à Coligay,
nem mesmo Marcelly, a única a mencionar que foi alvo de abordagens policiais em
outros espaços.
Não. Não tinha. Tinha fora, lá dentro não. Na rua, as manifestações eram
muito grandes. A questão, travesti ser preso, aquela coisa toda. [No estádio]
Tinha segurança, tinha Brigada Militar, tinha tudo isso, porque tem que ter,
muita brigada militar, mas ali a gente não sofria aquela retaliação...
L. A. – Você nunca foi abordada junto com a torcida?
M. M. – Tsc tsc tsc [som indicando negação], nunca (MALTA, 2015, p. 14).
10 Isso ocorre nas entrevistas, em reportagens sobre a torcida, assim como no livro Coligay: Tricolor e de todas as cores (2014), de Léo
Gerchmann, e no documentário “Para o que Der e Vier” (2016), de Pedro Guindani, ambas obras sobre a Coligay.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 213
Considerações finais
Referências
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Do Kanjire ao futebol:
dinâmica dos “jogos de guerra”
no tempo entre os Kaingang
José Ronaldo Mendonça Fassheber
1 Os Kaingang são um dos maiores grupos indígenas no Brasil, estimados em cerca de 35 mil indivíduos. Pertencem ao tronco linguístico
Macro-Jê e são denominados Jê Meridionais. Atualmente, estão distribuídos entre os estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, ocupando a região compreendida entre as bacias dos rios Tietê e Uruguai. Anteriormente, também viviam na região de Missio-
nes, no nordeste da Argentina.
220 Futebol na sala de aula
para ela com esses jogos. Horta Barbosa (1947), então diretor do SPI, em confe-
rência realizada em São Paulo na década de 1920, descreve o embate entre grupos
Kaingang, isto é, como se praticava no século anterior:
Estando os guerreiros armados com os ‘cá’, enormes e pesados porretes de
madeira fortíssima, avançavam, de um lado e de outro, estendidos em linha,
os Camens dos dois partidos, soltando gritos e insultando-se mutuamente,
dando pancadas no chão ou nas árvores, tudo com o fito de atemorizarem os
contrários e incentivar a própria coragem; enquanto isso, os Canherucrens
ficavam em outra linha, à retaguarda, brandindo os ‘cá’ e juntando seus gritos
aos dos da vanguarda. Num dado momento, chegada a exaltação no auge,
começava o recontro, e os combatentes, ora defendendo-se, ora atacando, a
manejarem os porretes em paradas parecidas com as do conhecido ‘jogo do
pau’, trocavam-se pancadas terríveis que, se colhiam a cabeça do adversá-
rio, estendiam-no morto no chão, se a uma perna ou braço, quebravam-no.
Nisto os Camens iam se retirando para a retaguarda e sendo substituídos
pelos Canherucrens; a pugna tornava-se então mais encarniçada, referviam
os golpes tremendos, aumentava o clamor das vozes e o solo se ia juntando
de mortos e estropiados (BARBOSA, 1947, p. 66).
Etnodesporto
suas infâncias, de onde podemos levantar a hipótese de que o futebol é quase tão
antigo para os Kaingang como o é para os demais brasileiros. Um amigo falecido
na década passada, em quase nove décadas vividas, o viu em sua infância, quando
ainda os Kaingang estavam no território de Missiones, na Argentina, e depois que
vieram de lá, praticou-o no Imbu e no Xapecó, em Santa Catarina. Em Palmas, um
ancião de mais de 90 anos o viu já moço de 20 e poucos anos e jogou até os seus
40. Nesses dois casos, o futebol era apreciado há, pelo menos, 90 anos, o que nos
remete para o raiar da década de 1930.
Uma das primeiras impressões que anotei em todas as terras indígenas
que conheci ao longo de minhas viagens de campo foi a centralidade dos campos
de futebol nas aldeias. É comum as terras Kaingang serem divididas em diversas
aldeias, variando seu número conforme a extensão territorial de cada uma. Palmas,
por exemplo, é considerada uma terra pequena, com pequena população, enquanto
Rio das Cobras e Xapecó, maiores, dispõem de milhares de indivíduos. Mas, em
todos os casos, existe um centro que geralmente é chamado de Aldeia-Sede e que
concentra um grande número de habitantes. Em geral, nelas estão dispostos os pos-
tos da Funai, a enfermaria, a escola, diversas igrejas, galpões de máquinas, a casa do
cacique e as de muitas lideranças indígenas. E há também campos de futebol e, na
maioria das vezes, quadras poliesportivas, sendo algumas delas fechadas e cobertas.
No Xapecó, existem vários campos de grama e de terra, de diversos tama-
nhos, demarcados ou improvisados em todas as aldeias que vi, e existe na Aldeia-
Sede um campo e uma quadra poliesportiva coberta, com iluminação, onde se rea-
lizam jogos noturnos. Recentemente, foi construído mais um ginásio de arquite-
tura moderna em forma de tatu. Em Palmas, na Aldeia-Sede, há um campo central
contornado por uma “arquibancada natural” em semicírculo, onde muitas famílias
se sentam para apreciar os jogos, uma quadra de futsal (ou futebol de salão, como
aprendi) aberta, na frente da escola, e diversos campinhos de futebol improvisados
até mesmo na estrada que a corta. O mesmo ocorre em Mangueirinha e na Marreca
226 Futebol na sala de aula
dos Índios e, como se tratam de terras maiores, há campos nos centros de outras
aldeias. Em Rio das Cobras, é inevitável se chegar às instituições da Aldeia-Sede
sem ter de contornar seu campo central. E mais uma vez, ao lado da escola, também
no centro da Aldeia, construíram recentemente uma quadra coberta.
Essa centralidade dos campos de futebol por diversas terras indígenas
ocupa uma dimensão ritual importante, pois o futebol “é para eles se verem”. É
um espaço de sociabilidade bastante agregador. No caso dos Kaingang, as joco-
sidades entre os pertencentes de diversas igrejas “metidas” dentro de suas ter-
ras parecem ser abrandadas no momento do futebol. Enquanto os adultos estão
jogando, há meninos e meninas brincando de bola nos espaços vizinhos aos limi-
tes do campo.
O futebol introduzido nas TIs influenciou, sobremaneira, a vida comu-
nal dos Kaingang. A tal ponto que podemos identificar as predileções clubísticas.
Não raro, eles se reúnem em torno das casas que, porventura, tenham televisão
para assistir a partidas de futebol, principalmente em se tratando da Seleção Bra-
sileira. Vemos também camisas de clubes paulistas (Corinthians, principalmente,
São Paulo, Palmeiras, Santos), gaúchos (Grêmio e Internacional), cariocas (prin-
cipalmente, mas não exclusivamente, Flamengo) e raramente clubes paranaenses
e de outras regiões do país. Não raro também, vemos essas mesmas camisas em
várias imagens de povos indígenas amazônicos. É obvio que muitas dessas camisas
com as quais eles aparecem vestidos não dizem respeito à paixão pessoal por eles
determinada; são, via de regra, camisas antigas, envelhecidas, geralmente doadas a
eles em campanhas assistenciais. Sempre as vemos no dia a dia do trabalho Kain-
gang, mas também nas quase diárias “peladas”.
Outra característica do futebol Kaingang é a relação que podemos obter
entre futebol e pratilinearidade. Grosso modo, é o modo de fazer com que os filhos
de uma liderança estabelecida em uma TI formem uma das ou a equipe principal.
Em Palmas, observei que, além da patrilinearidade futebolística, existe uma influên-
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 227
cia em “escalar genros”, pois, na tradição, o genro tem de prestar serviços ao sogro,
depois de desposar sua filha. Tal como ocorre entre outros Jê. Assim, nem sempre
o que determina a montagem dos times são critérios técnicos, futebolísticos, mas o
critério do parentesco do jogador com a liderança ou do jogador ser componente
da própria equipe. Em Rio das Cobras, tendo uma liderança mesclada com bastante
jovens, estes compõem uma equipe com seus parentes mais próximos.
Nesse caso específico, cabe analisar a proximidade que tecem os per-
sonagens: boa liderança e habilidade no futebol. Em outras palavras, arriscamos
dizer que tendo habilidade destacada no futebol, o Kaingang se aproxima do rol
de lideranças (ou é trazido para perto), chegando a compô-la ou mesmo liderá-la.
Desta forma, o futebol acaba por revelar identidades, pois o bom jogador muitas
vezes acaba por se tornar também um bom político. Pertencer às lideranças parece
ser status almejado desde o tempo dos antigos. O cacique e as lideranças Kaingang
de cada TI exercem uma relação de poder fundamental nas tomadas de decisões a
tudo o que infere a vida social dos Kaingang. Poderíamos somar a essas decisões
alguns critérios de escolha e montagem das equipes representantes das TIs. Em Pal-
mas, ao contrário de Rio das Cobras, temos lideranças mais “veteranas” que hoje
pouco se arriscam a chutar bolas. Nem por isso deixam de interferir na montagem
das equipes. Em diversos torneios que os acompanhei, sempre disputando com
duas equipes, sua montagem sofria essa interferência, já que reservavam vagas para
filhos e genros de seus membros na equipe principal. Desta maneira, nem sempre a
equipe considerada como a principal da TI, era a que obtinha melhor desempenho
e sucesso dentro do campo de futebol.
Além de campos, outras instituições estão centrais, como dissemos, o
posto da Funai, o de Saúde, a escola e várias igrejas cristãs. Sobre estas últimas
instituições, é preciso demonstrar que à sua volta se avizinham seus seguidores:
sendo centrais nas aldeias, promovem um grande núcleo de moradores à sua volta.
Principalmente no caso das igrejas pentecostais e neopentecostais.
228 Futebol na sala de aula
É fato que os Kaingang da maioria das terras não possuem mais a prá-
tica da religião de seus ancestrais: o Kiki, ritual que era realizado até 1997 somente
na terra indígena do Xapecó. A explicação desse “abandono” é a de que, por muito
tempo, por influência de missionários cristãos e de funcionários do antigo SPI e
da Funai (pessoas com ethos evidentemente cristão), a religião Kaingang foi sendo
tachada de demoníaca, mais do que pagã. Atualmente, além das igrejas católicas, as
áreas Kaingang estão “ocupadas” por outras religiões cristãs. A disputa de religiões
acarreta uma jocosidade entre os Kaingang chamados de católicos e os chamados
de crentes. E entre os crentes, embora sem a mesma disposição, a jocosidade tam-
bém costuma ocorrer, segundo a igreja à qual se pertence, isto é, entre as evangéli-
cas pentecostais e neopentecostais.
Em Palmas, uma neopentecostal proibia a prática do futebol, bem como
de outras atividades consideradas “pagãs”. Mas mesmo proibições desse tipo são
dinâmicas. Hora se vê os Kaingang frequentando uma igreja que os proíbem, hora
outra que os permitem. E mesmo dentro de uma religião que os proíbe, tal proibi-
ção pareceu-me contextual. Por exemplo, quando determinado Kaingang ligado a
essa religião assume a liderança do grupo, tal relação pode se inverter, ou seja, esse
cacique pode permitir e mesmo estimular a prática antes proibida para seus pares
de religião. Em outras palavras, a transformação das religiões entre as terras indí-
genas Kaingang gerou uma divisão do grupo entre as igrejas que lá se instalaram.
Mas o momento do futebol consegue reagrupá-los. Não em torno de uma ordem
cosmológica, como nas religiões – e não é isso, obviamente, que evoca o futebol,
mas, gera, sem sombra de dúvida, um novo espaço de sociabilidade, onde se reú-
nem novos e velhos Kaingang, homens e mulheres, de quase todos os credos em
que creem os Kaingang.
Uma outra particularidade do futebol entre os Kaingang é que ele
demanda um deslocamento social dos Kaingang entre suas terras. Por exemplo,
como os Kaingang de Palmas têm relações diretas de parentesco com os do Xapecó
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 229
3 Fóg é uma palavra utilizada para definir todo aquele que não é Kaingang. Kuprig significa branco. Portanto, os Kaingang utilizam Fóg Kuprig
para definir os “colonizadores”.
230 Futebol na sala de aula
contra eles. Mais que isso, cria novas situações de organização interna em cada
aldeia de cada terra indígena e também se organiza fora delas. Cria ainda um novo
entendimento de sua identidade corporal. Além de jogarem por outras equipes de
Kaingang em demais terras indígenas, a fama de alguns bons jogadores transfor-
ma-os em reforços de equipes urbanas nos municípios em que o contato é mais
proximal. Obviamente, estamos falando de jogos e torneios citadinos para os quais
as equipes indígenas não se inscrevem para disputar, pois a prioridade seria, via
de regra, equipes indígenas. Mas há, inclusive, os que recebem uma ajuda – em
dinheiro, material esportivo ou alimentos – pela participação nas equipes Fóg.
E, como em todas as terras indígenas há os que trabalham na cidade durante a
semana, é natural (ou social) que eles participem de equipes por lá, montadas em
seus ambientes de trabalho.
Uma outra forma de formar equipes interétnicas são as seleções das
cidades para eventos como jogos abertos do estado, jogos da juventude, jogos esco-
lares etc. Isso é mais evidente em Rio das Cobras, pois, como vimos, a população
indígena é parte significativa em relação ao total de habitantes do município de
Nova Laranjeiras.
A equipe indígena de Mangueirinha, por exemplo, é famosa na região e
bem falada entre os Kaingang de Palmas e de Rio das Cobras por conquistar segui-
damente torneios municipais (do município de mesmo nome), regionais e tor-
neios entre equipes indígenas. Mas eles não são os únicos. Em geral, os Kaingang
obtêm bons resultados onde quer que joguem. Em Rio das Cobras, notoriamente,
essas redes externas também se estabelecem: não raros são os convites do pequeno
município de Nova Laranjeiras e de Laranjeiras do Sul, além dos de interterras
indígenas. Apesar dos reclames Kaingang contra as arbitragens, que sempre rela-
tam ser tendenciosas contra os índios. O reclame com as arbitragens em torneios
que os Kaingang participam ocorre também em Palmas. Mas reclamar da arbitra-
gem expressa um pouco da tensão entre Kaingang e sociedade Fóg. Esse reclame é
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 231
duros, o Fair Play torna-se uma estratégia eficaz no restabelecimento das relações
entre Kaingang e Fóg. Por diversas vezes na terra indígena Palmas, ao ouvir a pre-
leção das lideranças Kaingang antes de torneios e amistosos, havia a grande pre-
ocupação em se fazer um discurso do joga-limpo e mostrar que eles eram uma
sociedade “do bem” e, por isso, deviam ser respeitados, e não temidos. Em Rio das
Cobras, havia a preocupação semelhante em manter o jogo limpo e não cair em
provocações das torcidas. A preocupação com o Fair Play mimeticamente ideali-
zado – fazendo-os aparecer bem quando saem ou fazendo-os receber bem em suas
terras – é, portanto, estratégia idealizada para dar maior visibilidade aos índios e
seus estilos de vida. E o futebol materializa essa visibilidade.
A reunião em torno do futebol faz mais do que aproximar eventualmente
os componentes do grupo: é um local para se exercer a identidade, de se construir a
identidade etc., ou seja, permite a afirmação da identidade étnica, no sentido de que
os Kaingang, “gente do mato”, possuem mais Tare, isto é, têm mais força e resistência
física para o futebol do que outros grupos de Fóg. Além disso, esse esporte permite
a afirmação da etnia perante a sociedade, já que são “temidos” e respeitados como
o “time dos Kaingang” ou simplesmente o “time dos índios”. E, afinal, os sucessos e
elogios que recebiam como jogadores e equipes, remetiam-lhes novamente à tradição
dos antigos: a noção de que o Tare, aplicado ao futebol, era arma de uso exclusivo dos
Kaingang. Pois, apesar de procurarem jogar limpo, os Kaingang admiram aqueles
que não se importam em se machucar, como ocorria nos antigos jogos de guerra, já
que aguentar a dor fazia parte do treinamento e da vida do guerreiro. O Tare não está
disposto em uma natureza Kaingang, embora, como em toda cultura, eles tentem
naturalizá-la. Ele diz respeito ao treinamento corporal e à identidade ante os Fóg,
marcando deles a diferença por meio do corpo. Além de treinamento cultural, por
vezes, usam a ingestão de remédios do mato, administrados em sua forma forte.
Mas a noção de força – Tare – parece ser a forma de maior expressão da
identidade Kaingang porque, mais que uma força física adquirida, treinada e diferen-
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 233
ciada em relação aos Fóg, a expressão da diferença simbólica entre eles – diferença
positiva em relação a si próprios, Kaingang –, parece ser uma marca do Tare. Assim,
entendemos o desportista como uma categoria nativa que opera papel estratégico
na construção do corpo Kaingang, tal como ocorria antes em seus Kanjire e Pinjire.
O futebol se apresenta, enfim, como fato social total, no sentido que
emprestamos de Mauss (2003), pois pode ser analisado sob vários ângulos: é um
fato jurídico (no sentido da mímesis das organizações esportivas, das padroniza-
ções de regras e das relações entre índios e não índios), ao mesmo tempo em que é
fisiológico (pois leva em conta a construção e o uso do Tare), é sociológico (reuni-
ões intra, inter e extraterras indígenas) e, ao mesmo tempo, carregado de dramas
e performances discursivas. E apresenta-se também como peça fundamental do
entendimento que faço do etnodesporto: a mímesis do futebol encorporado e res-
significado em e por seus corpos, e justificado nas relações sociais que se podem
obter a partir dele e por meio dele. Em resumo, o futebol demonstra ter mesmo
uma eficácia social – na reinserção dos Kaingang ante o mundo dos Fóg – e uma
eficácia simbólica –, pois significa manter sua identidade étnica.
Considerações finais
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1 Neste texto não utilizei uma linguagem inclusiva, ou seja, que contemple os gêneros masculino e feminino, isso se deu porque ele trata de
um universo quase que exclusivamente masculino. Dedico este texto à minha querida ex-orientadora, amiga e mentora, Simoni Lahud Guedes, que
já nos deixou. Sentirei sua falta.
2 Declaração do ex-jogador do Santos, logo após ser vítima de ofensas racistas durante uma partida.
238 Futebol na sala de aula
3 Curiosamente, Thomas Donohoe foi operário de uma fábrica de tecidos em Bangu, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Seria coincidên-
cia que o nome mais festejado seja justamente o de um membro da elite?
4 MOLINARI, Carlos. Nós é que somos banguenses – 1889 a 1903. Bangu Atlético Clube. Disponível em: http://www.bangu.net/informacao/
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240 Futebol na sala de aula
sem parte dos times de futebol, continuaram, contudo, afrontando o status quo
da época. O Bangu, além de contratar mais quatro jogadores negros, acabou
ainda com a divisão nas arquibancadas, criando lugares chamados de “geral”,
onde todos poderiam assistir juntos às partidas, sem distinção de cor ou classe
(MANERA et al., 2015, p. 20).
Como era de se imaginar, a reação dos outros times não tardou a che-
gar. Fluminense, Flamengo, Botafogo, dentre outros, no ano seguinte, fundaram a
Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amea). Essa entidade criou uma
comissão de sindicância para saber se os jogadores teriam condições materiais de
fazer parte dos seus quadros, e o alvo, dessa vez, era o São Cristóvão, que tinha em
seus quadros vários jogadores negros. O Vasco da Gama era também acusado de
incentivar o profissionalismo de seus jogadores negros pagando prêmios para os
jogos que ganhavam, o que eles chamavam pejorativamente de “profissionalismo
marrom”, que veremos mais à frente. A Amea exigiu que o São Cristóvão demitisse
seus 12 atletas pobres, a maioria negros, mas o time recusou-se a acatar tal exi-
gência e se retirou da associação. A pressão contra os clubes que incentivavam o
ingresso de negros nos seus quadros continuou nos anos seguintes. Em dezembro
de 1917, o Diário Oficial carioca publicou a Lei do Amadorismo que dizia:
Não poderão ser registrados os que tirem os meios de subsistência de profis-
são braçal [...] aqueles que exerçam profissão humilhante que lhes permitam
o recebimento de gorjetas, [...] os analfabetos e os que embora tendo profis-
são estejam, a juízo do Conselho Superior, abaixo do nível moral exigido.
(SILVA, 2006, p. 318).
muito pouco tempo era proibida e perseguida,5 passou a ser vista como respon-
sável pelos dribles e jogo de corpo, marcas importantes dos jogadores brasileiros,
agora qualidades dos brasileiros, independentemente da cor. Aliás, o samba6 tam-
bém fazia parte desse amálgama cultural, contudo, embora as discussões sobre as
relações raciais tenham mudado, e o futebol acompanhava essas mudanças, e os
jogadores negros passaram a ser aceitos, essa aceitação tinha limites.
Na Copa do Mundo de 1938, na França, embora a maioria da Seleção
Brasileira fosse branca, havia jogadores negros. Leônidas da Silva, o Diamante
Negro, que era reconhecido como um excelente jogador, foi mantido no banco de
reserva, e a derrota da seleção fez com todo o ônus desse fracasso fosse jogado
sobre os ombros de um jogador negro, Domingos da Guia, acusado de perder um
pênalti. Essas acusações se repetiriam nas Copas de 1950 e 1998. Na Copa de 1950,
no Brasil, todos os jogadores negros foram acusados de culpa na derrota em pleno
Maracanã, porém, o goleiro Barbosa foi condenado à pena perpétua.7 Na Copa da
França, em 1998, a culpado da vez foi o jogador Ronaldo, mesmo não se reco-
nhecendo como negro, foi considerado o culpado pela derrota da Seleção Cana-
rinho. Os exemplos poderiam se repetir exaustivamente, e as reações aos jogado-
res negros, dentro e fora das quatro linhas, são um espelho como inspiradamente
declarou o jogador Arouca em 2014. As mudanças nas relações raciais, nesses mais
de cem anos de futebol no Brasil, refletem o que vemos nessa sociedade.
Esse espelho não reflete apenas coisas ruins; os jogadores negros con-
seguiram ascensão social e prestígio por meio do futebol. Transfomaram-se em
reis e ídolos com reconhecimento internacional, e, embora, muitos deles tenham
feito e ainda fazem questão de se manter afastados das discussões raciais por vários
motivos, cooptação, temor de represálias de seus clubes etc., outros sequer se iden-
5 Somente em 7 de dezembro de 1940, com o Decreto-Lei nº 2.848, a capoeira deixou de ser proibida no Brasil.
6 Que também foi perseguido por muitos anos até se tornar um dos principais símbolos de brasilidade.
7 ROSAS, Frederico. A pena perpétua de Barbosa. El país. 11 jun. 2014. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/11/depor-
tes/1402498066_930352.html. Acesso em: 31 jan. 2020.
246 Futebol na sala de aula
tificam como negros, como Ronaldo8 e Neymar;9 nos últimos anos, vemos cada vez
mais jogadores negros falando abertamente sobre as discriminações que sofreram
dentro e fora dos campos. Há um maior pertencimento étnico e percepção de que
a ascensão social e mobilidade na escala de classe elimina o racismo e a exclusão
de pessoas que não sejam brancas, não estruturais da sociedade brasileira, segundo
vem dizendo o Movimento Negro há décadas.
Se, no início do século XX, o Movimento Negro discutia formas de inte-
grar uma sociedade que criava meios de excluir os(as) negros(as) da pífia cidadania
que se tentava criar após a Proclamação da República depois dos anos 1930, esse
movimento social começou a denunciar a ideologia de negar o racismo, ao mesmo
tempo em que divulgava, interna e externamente, a ideia de que aqui as relações
raciais eram exemplares. Essa ideologia de Estado é o que ficou conhecido como o
“Mito da Democracia Racial”, cujo Vade Mecum era o livro Casa grande e senzala.
Foram precisos mais de 70 anos de luta do Movimento Negro para que
o Estado brasileiro admitisse oficialmente ser uma sociedade racista, e o presidente
Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2003) se tornou o primeiro dirigente bra-
sileiro a admitir que o Brasil é um país racista. Embora não tenha sido o primeiro
a criar politicas públicas para o combate ao racismo – Sarney havia criado a Fun-
dação Palmares –, o fato de um presidente ter declarado o que o Movimento Negro
vem dizendo há anos teve um peso simbólico muito grande.
Uma vez desmascarado o Mito da Democracia Racial, que, embora
ainda seja muito forte e presente em setores reacionários de nossa sociedade, per-
deu força e fez com que o Movimento Negro passasse para uma nova etapa da luta.
A atual pauta é fazer com que a questão chegue a todos os segmentos de nossa
8 Ronaldo declarou: "Acho que todos os negros sofrem. Eu, que sou branco, sofro com a ignorância". Cf. CAPRIGLIONE, Laura. Cor de cele-
bridades revela critérios "raciais" do Brasil. Folha de S. Paulo Especial, 23 nov. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/
fj2311200827.htm. Acesso em: 31 jan. 2020.
9 ANJOS, Márvio dos. “Neymar não se acha negro”: canalhice ou desinformação? Blog Márvio dos Anjos, 01 mai. 2014. Disponível em:
http://globoesporte.globo.com/platb/marvio-dos-anjos/2014/05/01/neymar-nao-se-acha-negro-canalhice-ou-desinformacao/. Acesso em: 31
jan. 2020.
O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil 247
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BOLEIROS - Era uma vez o futebol... Direção: Ugo Giorgetti. Brasil, 1998. (93 min).
Sinopse: Em um bar de São Paulo, um grupo de ex-jogadores de futebol se encontra para relembrar as
antigas glórias e histórias interessantes do tempo em que ainda eram jogadores. 1998.
O NEGRO no futebol brasileiro. Direção: Gustavo Acioli. Brasil: HBO Latin America; Filmes do Equador,
2018. (4 episódios).
Sinopse: Série documental inspirada no livro homônimo do jornalista Mario Filho. Reflexão sobre as difi-
culdades enfrentadas por jogadores de futebol negros no esporte e como o racismo ainda está presente nos
estádios. A obra conta com entrevistas com jogadores como Cláudio Adão, Júnior, Romário e Adriano,
além de personalidades como Gilberto Gil e Haroldo Costa.
PROCURA-SE Irenice. Direção: Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça. São Paulo, 2016. (25 min).
Cena 1
Cena 2
1 DRIBLANDO o destino. Direção: Gurinder Chadha. Reino Unido, 2002. (115 min).
252 Futebol na sala de aula
Cena 3
2 O caráter procedimental se relaciona ao fazer; o conceitual, aos fatos, conceitos e princípios envolvidos; e o atitudinal, às normas, valores e
atitudes (BRASIL, 2000).
254 Futebol na sala de aula
3 Até então, ela era tratada dentro do contexto escolar como atividade. Temática que iremos desenvolver ao longo do capítulo.
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 255
Portanto, fica evidente que a noção de autoria nas aulas precisa ser aliada
a processos formativos para que os professores possam ser sujeitos de sua própria
prática. Nesse sentido, é necessário munir os professores com instrumentos para
desenvolver essas aulas. Sejam planos de aula, materiais didáticos, cursos, textos,
dentre outros. Além disso, Caparroz e Bracht (2007) lembram que conhecer aulas
propostas por outros professores pode subsidiar o labor criativo na preparação das
aulas, não como uma repetição, mas como ação autoral.
1. Unidade didática
Tema: Futebóis Número de aulas: 8 Ano escolar: a partir do 7º ano
Objetivo: Aprendizagem de aspectos técnicos do futebol; refletir acerca das consti-
tuições históricas do futebol nos clubes brasileiros; debater acerca da presença da
mulher no futebol; investigar a constituição identitária presente na formação de
alguns clubes.
Aula 1 – Preparando a turma
Divisão da turma em duas equipes mistas. Explicação sobre a forma e a constituição de avalia-
ção: elaboração de um portifólio para cada equipe que deve se apresentar como um clube de
futebol, com nome do clube, cores, líder da torcida, divisão das equipes com atletas (masculino
e feminino), ficha de atletas, técnicos (do masculino e feminino), presidente do clube, história
262 Futebol na sala de aula
de fundação do clube, desenho do escudo, desenho da mascote, hino, cantos de torcida. Essa
produção deve ocupar toda a unidade didática, sendo feita em pequenas partes a cada aula.
Para essa primeira aula, os clubes devem definir o nome do clube, suas cores e seu presidente,
que ficará responsável por guardar todo o registro que for produzido para as próximas aulas (20
minutos iniciais). Nos 30 minutos finais da aula, propor brincadeiras que propiciem o exercício
de aspectos táticos do futebol. Exemplo: bobinho, artilheiro, derrubar cone, dentre outros.
Figura 1
Exemplos de escudos criados por turmas do primeiro ano do ensino médio
Figura 2
Exemplos de mascotes criados por turmas do primeiro ano do ensino médio
-
a
r
a
u
Aula 5 – A partir das discussões da aula anterior, promover partidas entre meninas e meninos
buscando estratégias que minimizem as diferenças de experiência, entendida aqui como tempo
de prática ao longo da vida, quando estas forem discrepantes. Uma estratégia sugerida é que
aquelas e aqueles que possuem muita experiência fiquem limitados a jogar com o pé não domi-
nante. Os últimos dez minutos de aula devem ficar reservados a uma roda de conversa sobre a
atividade proposta. Tarefa para casa: criar o hino das equipes da turma.
2. História viva
Contar partes da história do futebol e do torcer por meio de brincadeiras e ativida-
des que recriem ou se aproximem de formas de se jogar futebol ou de se torcer em
épocas passadas. Utilizar imagens e vídeos.
Sugestão de vídeo: COMO foi o primeiro título da seleção brasileira, em 1919. [S.l.
: s.n.], 29 mai. 2019. 1 vídeo (32min57s). Publicado pelo canal Jornal O Globo.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xRccfvjQb8Q.
5. Roda de conversa
Convidar pessoas pertencentes ao meio futebolístico para falarem sobre as respec-
tivas realidades e vivências com o futebol.
Exemplos: árbitros e bandeirinhas, torcedores organizados, jornalistas, pesquisa-
dores da área, ex-atletas, jogadores e jogadoras de futebol, Polícia Militar, represen-
tantes de federações e outros órgãos, dentre outros.
7. Filmes e documentários
FORA de jogo. Direção: Jafar Panahi. Irã: Sony Pictures Classics, 2006. (93 min).
Sinopse: Filme iraniano que mostra o universo das mulheres no futebol pela história de
uma garota que tem como sonho assistir a um jogo da Copa do Mundo da Alemanha e
precisa superar a proibição de seu país às mulheres frequentarem estádios.
MINAS do Futebol. Direção: Yugo Hattori. Brasil: Alvorada Filmes, 2017. (50 min).
Sinopse: O documentário acompanha a trajetória do time de futebol feminino do A. D.
Centro Olímpico no Campeonato Moleque Travesso de equipes masculinas e o desen-
rolar na participação do primeiro Campeonato Paulista Feminino Sub-17.
O DIA em que o Brasil esteve aqui. Direção: Caíto Ortiz e João Dornelas. Brasil:
Prodigo Films, 2005. (70 min).
Sinopse: Conta a história do Jogo da Paz, um amistoso realizado em 2004 entre
a Seleção Brasileira de Futebol, Campeã do Mundo em 2002, e a Seleção Haitiana
de Futebol.
PRETO contra branco. Direção: Wagner Morales. São Paulo: Cultura Marcas, 2004.
(55 min).
Sinopse: Uma tradição de três décadas é o ponto de partida do documentário. O filme
discute o preconceito racial no Brasil, usando como referência um “clássico” do fute-
bol de várzea entre moradores de dois bairros periféricos de São Paulo.
8. Júri simulado
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 267
9. Futquiz
Jogo de perguntas e respostas relacionadas aos temas estudados.
11. Sites
12. Livros
CORNELSEN, Elcio L.; SILVA, Silvio R. da; CAMPOS, Priscila A. F. (orgs.). Fute-
bol, linguagem artes, cultura e lazer 2: produção acadêmica sobre futebol - análises
e perspectivas. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2017.
268 Futebol na sala de aula
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SOBRE AS ORGANIZADORAS/AUTORAS
Adriano de Freixo. Doutor em História Social pela UFRJ. Professor do Departamento de Estu-
dos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade
Federal Fluminense (Inest-UFF), onde atua nos Programas de Pós-Graduação em Estudos
Estratégicos (PPGEST) e Ciência Política (PPGCP). Publicou como autor e/ou organizador,
dentre outros, Futebol: o outro lado do jogo (Desatino, 2014), Manifestações no Brasil: as ruas em
disputa (Oficina Raquel, 2016) e 2016: o ano do golpe (Oficina Raquel, 2016).
Felipe Tavares Paes Lopes. Graduado em Comunicação Social (ESPM) e Filosofia (USP). Mestre
e doutor em Psicologia Social (PUC-SP e USP, respectivamente), realizou pesquisas de pós-dou-
torado na FEF-Unicamp, no CPDOC-FGV e na Universidade Autônoma de Barcelona. Atu-
almente, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e
desenvolve pesquisa sobre ativismo no futebol, com auxílio da Fapesp.
Luiza Aguiar dos Anjos. Professora Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG) – campus Timóteo. Graduada em Educação Física, é especialista e mestre em
Estudos do Lazer, todos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Ciên-
cias do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Inte-
gra o Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT-UFMG), o Grupo de Estudos sobre
Esporte, Cultura e Corpo (Grecco-UFRGS) e o Pensando a Educação Física Escolar (IFMG).
Suas pesquisas tematizam o gênero e a sexualidade em contextos esportivos, em especial no
futebol e nas torcidas.
Marcel Diego Tonini. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador
do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens-USP).
Autores convidados 277
Priscila Augusta Ferreira Campos. Doutora em Educação Física pela Unicamp, é professora
da Escola de Educação Física da Universidade Federal de Ouro Preto e membro do Grupo de
Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).
Silvio Ricardo da Silva. Professor titular da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia
Ocupacional da UFMG e coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).
Formato: 16 x 23cm
Tipologia: Adobe Devaganari, 11 pt/19,4 pt
Papel: Pólen Soft 80g/m2 (miolo) / Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Número de páginas: 277
Impresso e acabado na Gráfica e Editora Aliança, Rua Palmeiras, n. 39, quadra 10,
lote 8, sala 01, Campestre de Goiás, GO, Brasil, 75385-000, em outubro de 2021.