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Universidade Federal Fluminense

REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

VICE-REITOR
Fabio Barboza Passos

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense


CONSELHO EDITORIAL
Renato Franco [Diretor]
Ana Paula Mendes de Miranda
Celso José da Costa
Gladys Viviana Gelado
Johannes Kretschmer
Leonardo Marques
Luciano Dias Losekann
Luiz Mors Cabral
Marco Antônio Roxo da Silva
Marco Moriconi
Marco Otávio Bezerra
Ronaldo Gismondi
Silvia Patuzzi
Vágner Camilo Alves
Lívia Gonçalves Magalhães
Rosana da Câmara Teixeira
(orgs. )

jogadas, dribles, passes, esquemas táticos e atuações


para o ensino de ciências sociais e de história
Copyright © 2021 Lívia Gonçalves Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem
autorização expressa da editora.

Editor responsável: Renato Franco


Coordenador de produção: Ricardo Borges
Supervisão gráfica: Marcio Oliveira
Copidesque e revisão: Sônia de Onofre
Normalização: Camilla Almeida
Capa, projeto gráfico e diagramação: Marcio Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP

F996 Futebol na sala de aula : jogadas, dribles, passes, esquemas táticos e atuações para o ensino de Ciências
Sociais e de História / Lívia Gonçalves Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira (organização). – Niterói :
Eduff, 2021. – 277 p. : il. ; 23 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5831-069-3
BISAC EDU029040 EDUCATION / Teaching Methods & Materials / Social Science

1. Ciências sociais – Metodologia de ensino. 2. História – Metodologia de ensino. 3. Futebol. I. Magalhães,


Lívia Gonçalves. II. Teixeira, Rosana da Câmara. III. Título.

CDD 371.3

Ficha catalográfica elaborada por Márcia Cristina dos Santos (CRB7-4700)

Direitos desta edição reservados à


Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ
CEP 24220-008 - Brasil
Tel.: +55 21 2629-5287
www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br

Impresso no Brasil, 2021.


Foi feito o depósito legal.
À memória da rubro-negra Simoni Lahud Guedes
(1949-2019), pioneira no campo de estudos do futebol no Brasil,
que nos inspira e incentiva a arriscar inúmeras jogadas na
pesquisa e na sala de aula.

À memória do botafoguense Gilmar Mascarenhas


(1962-2019), um dos mais importantes expoentes da Geografia
dos Esportes e defensores do direito à cidade,
que nos deixou tão precocemente.
Sumário

Nota das organizadoras | 9

Prefácio | 11
Apresentação: o futebol no campo do ensino | 15

PRELIMINAR
cidadania e legado em debate | 23
Gilmar Mascarenhas

Perseguindo um sonho: a profissionalização de jogadores e jogadoras no futebol | 31


Simoni Lahud Guedes

PRIMEIRO TEMPO
Futebol e Relações Internacionais:
o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra | 35
Adriano de Freixo

Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico | 55


Bernardo Buarque de Hollanda e Marcelino Rodrigues da Silva

Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) | 75


Lívia Gonçalves Magalhães

O futebol no Rio de Janeiro e os projetos


de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) | 95
Renato Soares Coutinho

História oral e futebol | 115


Sérgio Settani Giglio e Marcel Diego Tonini
SEGUNDO TEMPO
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens | 137
Felipe Tavares Paes Lopes e Rosana da Câmara Teixeira

Violência verbal e a performatividade de gênero


no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão | 157
Gustavo Andrada Bandeira e Fernando Seffner

Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas | 177
Leda Maria da Costa

Ditadura civil-militar
e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay | 197
Luiza Aguiar dos Anjos

Do Kanjire ao futebol:
dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang | 219
José Ronaldo Mendonça Fassheber

O futebol como espelho da sociedade brasileira:


o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil | 237
Rolf Malungo de Souza

O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando | 251
Silvio Ricardo da Silva, Luiz Gustavo Nicácio e Priscila Augusta Ferreira Campos

Sobre as organizadoras/autoras | 271


Homenageados | 272

Autores convidados e autoras convidadas | 273


Nota das organizadoras

Finalizamos a revisão desta obra no momento em que o mundo parou


em decorrência da pandemia provocada pela disseminação da Covid-19 ou novo
coronavírus, que já ocasionou incontáveis vítimas. A grave crise sanitária vivida
por todas as nações em distintas escalas paralisou atividades não essenciais, deter-
minou regimes de isolamento, gerando situações de confinamento e o aumento
do desemprego, agravando desigualdades sociais. Do ponto de vista esportivo,
campeonatos foram suspensos, e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Tóquio
foram adiados para 2021. Em meio a um cenário de tantas angústias e incertezas,
desejamos que as análises aqui reunidas se somem ao conjunto de reflexões que
ora emergem no campo das Ciências Humanas em busca de novos modelos sociais
mais justos, inclusivos e democráticos.
Prefácio

Vem em boa hora a publicação de Futebol em sala de aula, organizado


por Lívia Gonçalves Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira, para somar esforços
no auxílio ao ensino de História e Ciências Sociais na graduação universitária e no
ensino médio. Ele entra em campo no momento mesmo em que há um desinves-
timento na educação e na ciência por parte das autoridades do governo federal, e
que, além disso, se empenham em colocar essas matérias de forma compulsória na
segunda divisão.
O futebol, ele próprio, foi, em sua versão moderna como esporte, uma
invenção da escola. Das escolas de elite inglesas, esse esporte teve uma difusão
rápida e extraordinária em direção às classes trabalhadoras daquele país. Foi ado-
tado como técnica, ao mesmo tempo, disciplinar e estimulante por outras escolas
de elite em outros países da Europa e da América Latina, bem como sob a forma
de clubes amadores inicialmente compostos por ex-alunos de escolas secundá-
rias e universitárias de elite, a exemplo da Inglaterra. Foi adotado por empresas e
instituições de enquadramento da população trabalhadora como instrumento de
aprendizado da competição e do espírito de equipe. E em todo o mundo houve um
12 Futebol na sala de aula

processo de apropriação do esporte pelas classes populares, paralelamente a um pro-


cesso de profissionalização dos atores do esporte. O futebol ilustra assim, de forma
exemplar, fenômenos e processos sociais mais gerais como o desenvolvimento de
técnicas educativas; a circulação entre cultura popular e cultura erudita (o futebol
dito popular anterior era um ritual popular masculino de dois bandos frequente-
mente tidos como violentos em torno de uma bola, e foi disciplinado no interior da
escola, tendo sido popularizado de volta de outra forma); os conflitos entre classes,
grupos sociais e grupos étnicos, tendo por roupagem inicial o choque entre uma
ética amadorística de elite e a profissionalização de um novo domínio de atividades.
Também ilustra os fenômenos de comercialização dos entretenimentos, bem como
a criação de um mundo social e econômico à parte com seus próprios especialistas.
Se, de início, o futebol foi uma criação escolar, sua ida para o mundo
e para todas as classes, etnias e gêneros tornou-o um fenômeno autônomo com
repercussões em diferentes domínios da vida. Tornou-se um grande catalizador de
emoções coletivas, nacionais, locais, clubísticas e uma linguagem de uso e de inte-
resse quase universal. O futebol pode voltar, assim, à escola para motivar o ensino
de temas da História e das Ciências Sociais que estão por detrás das práticas de seus
diferentes atores e de processos históricos não intencionais mais amplos em que
esse esporte está envolvido.
Assim, os temas tratados neste livro são motivadores para o ensino de
uma ampla gama de fenômenos e processos sociais com os quais o futebol está
relacionado: política internacional e diplomacia, literatura, legados das copas e
repercussões sobre a cidadania, profissionalização, história oral, práticas e apren-
dizagens das torcidas organizadas, gênero (torcedores: machismo, homofobia e
homossexualidades transgressoras), o ensino durante as ditaduras no Brasil e na
Argentina, modernização do Rio de Janeiro durante períodos da República, povos
indígenas e também relações raciais no Brasil. Essa gama de temas é convidativa
para a proposição de ainda outros a serem usados pelos professores em sala de aula.
Prefácio 13

As organizadoras do livro, uma historiadora que é professora do depar-


tamento e da pós-graduação de História e uma antropóloga que é professora da
Faculdade de Educação e pesquisadora dos núcleos de Educação e Patrimônio
Cultural e do Núcleo de Esporte e Sociedade, todas instituições da UFF, são elas
próprias, ao mesmo tempo, especialistas do estudo do esporte e portadoras da
interdisciplinaridade proposta pelo livro. Também são pesquisadoras e professoras
comprometidas com o ensino na graduação, na licenciatura com suas repercus-
sões no ensino médio e na extensão universitária. Os convidados que reuniram
para a composição do livro são tanto pesquisadores experientes, quanto jovens, o
que mostra a pujança da produção nas disciplinas de História e Ciências Sociais
por meio de uma temática pouco tratada até o fim dos anos 1980. Sinal de que a
rede de pesquisadores da temática do esporte agora já atinge sua maturidade é o
fato mesmo de sua preocupação com o ensino na graduação, no ensino médio e
na extensão. Como marco da presença do ciclo de gerações incorporada ao livro
está também a justa homenagem a dois pesquisadores da área, recém-falecidos, a
pioneira dos estudos sócio-antropológicos do futebol Simoni Guedes e o geógrafo-
social em pleno auge de carreira Gilmar Mascarenhas.
Este livro vem, portanto, ser lançado em testemunho da proficuidade e
da vitalidade das disciplinas de História e Ciências Sociais, num período de com-
bate dos profissionais da educação diante da intolerância e do negacionismo his-
tórico das atrocidades dos fascismos e das ditaduras. Ele vem se situar no campo
de batalha pelo conhecimento, pela retomada dos avanços seculares dos direitos
humanos, pela redução das desigualdades e pelos aspectos libertadores que a
extensão social e a intensidade das práticas educativas podem proporcionar.

José Sergio Leite Lopes


Museu Nacional da UFRJ, abril de 2020
Apresentação 15

Apresentação
O futebol no campo do ensino

No Brasil, o futebol é um esporte que desperta interesses, paixões e


incessantes debates. Trata-se de um fenômeno histórico complexo, uma das fontes
de nossa identidade nacional, que situa um conjunto de problemas socialmente
significativos da realidade brasileira. O futebol é uma festa popular que envolve o
público em geral, várias modalidades associativas (torcidas organizadas, barras,
coletivos, movimentos), jogadores e equipes técnicas, concentrados em torno de
um espetáculo que mobiliza milhões de dólares, disputas e interesses econômi-
cos. Se, por um lado, articula diferentes saberes e linguagens,1 também oferece
uma “linguagem comum” compreendida pelas diferentes classes sociais.2 Por essa
razão, pode ser tomado como um veículo para as mais diversas significações e
representações.3 Conforme já sublinhou Roberto DaMatta, o futebol no Brasil

1 MURAD, M. Dos pés à cabeça: elementos básicos de sociologia do futebol. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1996.
2 LEITE LOPES, J. S. A vitória do futebol que incorporou a pelada: a invenção do jornalismo esportivo e a entrada dos negros no futebol
brasileiro. Revista USP, n. 22, p. 64-83, 1994.
3 GUEDES, S. L. O futebol brasileiro: instituição zero. 1977. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 1977.
16 Futebol na sala de aula

constitui uma “verdadeira máquina de socializar pessoas”, é esporte e ritual, negó-


cio e espetáculo prestando-se, assim, a variadas dramatizações.4 A esse respeito,
Simoni Guedes afirmou:
O ponto a observar é simples, mas, a meu ver, decisivo para uma sociolo-
gia dos esportes no Brasil: se rigorosamente qualquer esporte pode produzir
a identificação coletiva através das vitórias, apenas o futebol o faz perma-
nentemente, nas vitórias e nas derrotas. Por isso, até aqui, o Brasil continua
sendo o país do futebol.5

Concordando com Christian Bromberger, uma sociedade diz muito


sobre si mesma por meio das suas paixões coletivas.6 Estas explicitam valores, ten-
sões, anseios e contradições que atravessam o mundo social.
Este livro resulta, portanto, da compreensão de que o futebol constitui
um campo temático transversal que pode ser estratégico na apreensão de certos
conteúdos, problemáticas e conceitos tanto no âmbito da formação acadêmica na
licenciatura, quanto na escolarização de jovens do ensino médio. Assim, pretende-
mos contribuir com uma aprendizagem lúdica e crítica em torno de questões fun-
damentais, favorecendo múltiplas interpretações das sociedades contemporâneas
e, em particular, da brasileira.
O objetivo deste manual é fornecer alguns quadros teóricos, metodo-
lógicos e empíricos para a abordagem de tais questões. Por isso, foi dada impor-
tância à viabilidade técnica dos capítulos, que não ultrapassam 20 laudas, e trazem
sugestões de material didático-pedagógico para o trabalho em sala de aula. Deste
modo, visamos subsidiar discussões no âmbito da formação inicial dos licencian-
dos e licenciandas dos cursos de Ciências Sociais e de História do país (mas que
podem ser igualmente frutíferas para outras licenciaturas, tendo em vista a abor-

4 DAMATTA, R. Esporte e sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, R. Universo do futebol: esporte e sociedade. Rio de
Janeiro: Pinakotheke, 1982.
5 GUEDES, S. L. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro. Niterói: EdUFF, 1998, p. 41.
6 BROMBERGER, C. De quoi parlent les sports? Terrain, Des Sports, n. 25, sep. 1995.
Apresentação 17

dagem multidisciplinar aqui defendida), assim como contribuir para a formação


continuada dos professores da escola básica. Portanto, com esta coletânea temos a
expectativa de que estudantes e docentes pensem em tantos outros subtemas possí-
veis e necessários relacionados ao futebol, tendo em vista as realidades tão diversas
em que as escolas estão inseridas.
O livro é uma iniciativa original, reúne estudos oriundos de diferentes
áreas do conhecimento (Antropologia, Educação, Educação Física, Geografia, His-
tória, História Oral, Literatura, Relações Internacionais e Sociologia), conduzidos
tanto por especialistas que têm se destacado nacional e internacionalmente, quanto
por jovens pesquisadores/as cujos trabalhos tiveram seu mérito reconhecido nos
meios acadêmicos.
O time aqui reunido convida o leitor e a leitora a conhecer variadas
facetas desse fenômeno e a entrar em contato com debates e reflexões em torno
de distintos eixos temáticos e objetos de análise.
Abrindo a sessão Primeiro Tempo, “Futebol e Relações Internacionais:
o ‘rude esporte bretão’ em tempos de paz e de guerra”, de Adriano de Freixo, tece
reflexões sobre o futebol em contextos de paz e guerra e aborda seus usos políticos
pela diplomacia.
“Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico”, de Bernardo Buarque
de Hollanda e Marcelino Rodrigues da Silva, explora as relações entre futebol e
crônica esportiva, destacando seu papel na interpretação desse esporte.
“Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina
(1970-1978)”, assinado por Lívia Gonçalves Magalhães (UFF), discute os usos polí-
ticos das Copas do Mundo pelos regimes autoritários da Argentina e do Brasil.
“O processo de profissionalização e popularização do futebol no Rio de
Janeiro no Brasil Republicano” é o tema do capítulo de Renato Soares Coutinho,
que analisa alguns dos elementos do complexo processo social que resultou na
popularização do futebol no país.
18 Futebol na sala de aula

Em “História oral e futebol”, Sérgio Settani Giglio e Marcel Diego Tonini


abordam as possibilidades da história oral como metodologia para análise do fenô-
meno futebolístico, a partir das suas experiências no projeto Memórias de Boleiros.
Iniciando a sessão Segundo Tempo, o capítulo “No campo das torci-
das organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens”, de Felipe Tavares
Paes Lopes e Rosana da Câmara Teixeira, apresenta os processos de aprendizagem
envolvidos na construção dos corpos e das subjetividades dos torcedores organiza-
dos, assim como suas intricadas teias de relações.
Em “Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de
masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão”, Gustavo Andrada
Bandeira e Fernando Seffner expõem as pedagogias do torcer nos estádios de futebol,
tendo em vista o currículo de masculinidade que orienta as manifestações torcedoras.
“Futebol e gênero. O som do machismo e da homofobia que vem das
arquibancadas”, de Leda Maria da Costa, traz importantes argumentos em torno
do papel estratégico desempenhado pela escola na desconstrução de preconceitos
entre torcedores e na discussão sobre política de igualdade de gêneros.
Em “Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso
da torcida Coligay”, Luiza Aguiar dos Anjos narra a experiência da torcida do
Grêmio, formada predominantemente por homens gays, no contexto da ditadura
civil-militar.
No texto “Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos ‘jogos de guerra’ no
tempo entre os Kaingang”, José Ronaldo Mendonça Fassheber trata da incorpora-
ção do futebol entre os grupos indígenas Kaingang e das suas influências sobre a
vida comunal.
“O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro
linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil”, de Rolf Malungo de
Souza, traz reflexões em torno dos avanços e retrocessos no que se refere às rela-
ções raciais no Brasil a partir do futebol.
Apresentação 19

E, fechando a coletânea, “O futebol nas aulas de educação física para


além da bola rolando”, de Silvio Ricardo da Silva, Luiz Gustavo Nicácio e Priscila
Augusta Ferreira Campos, aborda o futebol nas aulas de educação física, apresen-
tando variadas sugestões para o trabalho docente.
Esta coletânea apresenta um leque de alternativas de um vasto campo de
possibilidades, que poderá servir de referência para a organização de propostas de
curso, aulas e demais atividades de ensino. Torcemos para que possa facilitar o traba-
lho de transposição didática dos professores e professoras (tanto do ensino superior,
quanto da escola básica), permitindo novas apropriações e elaboração de materiais
didáticos podendo atingir públicos amplos e diferenciados, inclusive não acadêmi-
cos. Do ponto de vista do universo escolar, temos consciência de que é necessária
uma recontextualização pedagógica, tendo em vista tempos, ritmos e sentidos par-
ticulares do seu processo ensino-aprendizagem, mas as contribuições aqui reunidas
buscam orientar nessa direção, trazendo sugestões que podem ser úteis.
Ressaltamos que esta produção alinha-se diretamente ao compromisso
da universidade pública com ensino, pesquisa e extensão. E aposta na democrati-
zação dos conhecimentos produzidos, buscando contribuir com sua divulgação e
circulação.
Este manual é, antes de tudo, fruto das ações desenvolvidas no contexto
de nossos trabalhos nas licenciaturas de Ciências Sociais e de História na Universi-
dade Federal Fluminense. A partir dessas experiências, constatamos a necessidade
de um maior intercâmbio entre essas áreas do conhecimento e do aprofundamento
da conexão entre nossas atuações como pesquisadoras e professoras. Portanto,
nosso anseio é, também, estreitar os laços entre universidade e escola, reafirmando
nosso compromisso com a extensão.
Nossa expectativa é que este livro seja o pontapé inicial para muitas
outras “jogadas” que mobilizem a academia e a escola, fortalecendo intercâmbios
entre atores sociais posicionados em diferentes campos numa relação dialógica e
20 Futebol na sala de aula

transformadora. Por isso mesmo, somos imensamente gratas aos/às colegas que
acreditaram no projeto e embarcaram nesta aventura, enviando suas colaborações,
a despeito do prazo exíguo.
Por fim, gostaríamos de prestar homenagem a dois grandes estudiosos
da temática que nos deixaram em 2019. À antropóloga Simoni Lahud Guedes, pro-
fessora do Departamento de Antropologia da UFF, que produziu a primeira disser-
tação sobre futebol. Defendida em 1977, no Programa de Pós-Graduação em Antro-
pologia Social do Museu Nacional (PPGAS-UFRJ), O futebol brasileiro: instituição
zero permanece por mais de quatro décadas uma referência para todos nós. Ao longo
da sua carreira, essa pioneira dedicou-se com paixão e profissionalismo a produzir
reflexões fundamentais que nos permitem continuar a construir e consolidar um
campo de estudos, pesquisa e ensino relacionado a um dos nossos maiores patrimô-
nios: o futebol. Infelizmente, Simoni não pôde finalizar seu texto para esta coletânea
(da qual ela foi uma entusiasta), mas decidimos incluir o resumo proposto.
E ao professor e pesquisador Gilmar Mascarenhas, um dos maiores
expoentes da Geografia dos Esportes no país, profissional excepcional e ser humano
incrível que partiu de forma precoce e inesperada. Um dos últimos textos produ-
zidos por Gilmar foi gentilmente cedido pela equipe do Portal Ludopédio para ser
publicado neste livro. Manifestamos nossos sinceros agradecimentos por esse gesto
que nos permite contar com a sua contribuição. O artigo de Gilmar e o resumo da
Simoni abrem esta coletânea. Com gratidão, admiração e saudade, esperamos dar
sequência às suas jogadas geniais.

Lívia Gonçalves Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira


Rio de Janeiro, abril de 2020
PRELIMINAR
A Euro 2016 em
Bordeaux (França):
cidadania e legado em debate1
Gilmar Mascarenhas

O Brasil sediou em 2014 a Copa do Mundo de Futebol Masculino (Fifa)


e dois anos depois a França abrigou a Eurocopa de Futebol (Uefa), vulgo Euro 2016,
o que implicou não apenas a remodelação ou construção de estádios no exigido
padrão world class, mas também a promoção de grandes intervenções urbanas que
pudessem integrar o propalado “legado” geral do evento. Interessante observar as
diferenças entre os dois países num período tão curto de tempo, isto é, ambos inse-
ridos no mesmo contexto global de afirmação das arenas e da imposição de megae-
ventos caros e vultosos.
Vinte e duas cidades-sede foram envolvidas nesses dois eventos (12 no
Brasil e dez na França). Tomamos como premissa que estiveram ambos os países

1 MASCARENHAS, G. O EURO 2016 em Bordeaux (França): cidadania e legado em debate. Ludopédio, 25 jul. 2019. Disponível em: https://
www.ludopedio.com.br/arquibancada/o-euro-2016-em-bordeaux-franca-cidadania-e-legado-em-debate/. Acesso em: 14 abr. 2020.
24 Futebol na sala de aula

submetidos ao mesmo implacável vetor global representado pela Fifa e Uefa, bem
como a outras dinâmicas inerentes à produção capitalista do espaço urbano: a busca
incessante pela acumulação do capital e os mecanismos de valorização do espaço. E
que as eventuais diferenças na materialização e legado desses dois eventos são resul-
tado de distintas dinâmicas sociopolíticas verificadas em cada país no que tange,
sobretudo, às conquistas cidadãs.
No Rio de Janeiro, sabemos que a onerosa reforma do Estádio do Mara-
canã gerou elitização do equipamento e sensível redução do tradicional protago-
nismo coletivo em seu recinto, num processo que qualificamos de pacificação e
gentrificação (MASCARENHAS, 2014; 2013) e tão minuciosamente estudado por
Ferreira (2017). Ao mesmo tempo, condizente com o objetivo expresso de priva-
tização, todo um conjunto de intervenções no entorno visou adequar o espaço
ao lucro privado, em detrimento dos usos compartilhados e direitos socialmente
adquiridos, gerando fortes tensões e resistências, analisadas por Castro (2016).
Vamos aqui verificar como se deu a participação da cidade de Bordeaux na Euro-
copa de 2016, avaliando aspectos diretamente relacionados ao exercício da cidada-
nia e ao legado do evento.
A França já havia sido a sede da primeira Eurocopa (então denominada
Campeonato Europeu de Nações), realizada em 1960. Todavia, naquela ocasião, as
seleções participantes, 17 no total, se confrontavam em suas respectivas pátrias ou
na pátria adversária. Somente quando restavam quatro equipes classificadas, estas
se dirigiram ao país anfitrião, que, por isso, acolheu as poucas partidas restantes
em somente dois estádios: Parc des Princes (Paris) e Velodrome (Marselha), os
dois principais centros futebolísticos nacionais de então, nas duas maiores cidades
francesas, e sem demandar reformas. Portanto, com custo muito reduzido para o
governo e a sociedade.
O país promoveu nova edição do evento em 1984, já no atual formato
espacialmente concentrador, destinando sete estádios para acolher as 16 sele-
Cidadania e legado em debate 25

ções presentes. Nessa ocasião, um novo estádio foi erguido, em Nantes (Stade
de Beaujoire), e outros cinco foram reformados no sentido da ampliação de sua
capacidade de público em Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Lens e Strasbourg.
Apenas o Parc dês Princes manteve-se praticamente intocado. Tais reformas,
cumpre frisar, partiram em grande medida das próprias necessidades locais, uma
vez que o futebol vivia um momento de plena expansão no gosto do público
francês, avançando sobre o tradicional rugby. Nesse sentido, não há registro de
produção de “elefantes brancos”, e, sim, um redimensionamento dos equipamen-
tos existentes, adequando-os a uma nova realidade de apreciação e consumo do
espetáculo futebolístico. Registre-se que a ausência nesse evento de Bordeaux e
Toulouse (quarta maior aglomeração urbana francesa) se explica, em parte, pela
persistente supremacia do rugby no sudoeste francês.
Interessante frisar que esse modelo concentrador e de alto impacto nos
países-sede parece estar em xeque. Além da Copa do Mundo de 2026 ser disputada
em três países, a próxima Eurocopa se dispersará por 12 países, modelo descentra-
lizado que pode representar a redução do risco potencial de produção de “elefantes
brancos” ou, ao menos, de excesso de gastos em um único país. No entanto, consta
nesse evento a presença de um novo estádio em Baku, no longínquo Azerbaijão,
com poucas perspectivas futuras. Como contribuição a este artigo, Fernando Fer-
reira observa que a Euro 2020 permitirá não apenas ganhos políticos para a Uefa
como também a extensão do padrão Fifa a novos países, situados na periferia glo-
bal do futebol. Reformas ou construção de novos estádios que não seriam realiza-
das, caso tais países não fossem convidados a participar do famoso certame.
Antes que a Fifa impusesse o novo padrão de rigorosas exigências para
sediar uma Copa do Mundo, a França organizou seu mundial de futebol em 1998. Na
ocasião, foi erigido um único estádio novo, o Stade de France, em Paris. Na edição
anterior, a de 1994 nos Estados Unidos, o país simplesmente adequou os estádios de
futebol americano preexistentes, com gasto bastante reduzido. Mas esse tradicio-
26 Futebol na sala de aula

nal e salutar comedimento orçamentário para as Copas do Mundo estava em cres-


cente desacordo com os princípios da “máquina urbana de crescimento” (LOGAN;
MOLOCH, 1990) e da espetacularização das cidades (HARVEY, 2011). Nesse sen-
tido, no momento em que a França se propôs a sediar em 2016 o grande evento da
Uefa, os requisitos impostos eram bastante distintos (vide Portugal na Euro 2004,
sobrecarregado até hoje com “elefantes brancos”), levando o país a investir vultosos
recursos na construção ou reforma de seu parque de estádios.
O novo formato do torneio, agora reunindo 24 seleções, aumentou o
custo geral e propiciou a ampliação do número de estádios: dez cidades participa-
ram do certame, agora incluindo o outrora cabreiro sudoeste francês: Paris, Saint-
Denis, Lille, Lens, Lyon, Marseille, Bordeaux, Toulouse, Saint-Etienne e Nice. Ao
contrário do caso brasileiro, no qual a participação estatal no custeio das reformas
foi amplamente majoritária, na França, estima-se que, dos 1,7 bilhões de euros
investidos na renovação do conjunto de estádios, menos de 10% desse montante
tenham sido arcados pelos cofres públicos. Nesse sentido, os clubes, federações
locais e agentes privados contribuíram com a principal fatia dos encargos financei-
ros. Trata-se de uma informação importante, reveladora das prioridades estabele-
cidas e pactuadas entre instâncias estatais e a sociedade civil. No Brasil, os exorbi-
tantes gastos públicos tornam-se ainda mais preocupantes quando se consideram
nossas imensas lacunas nos campos da educação, saúde e saneamento.
Em Bordeaux, o novo Estádio Matmut Atlantique (designação refe-
rente a uma grande empresa francesa de seguros) custou muito menos que a
reforma do Maracanã: 183 milhões de euros em 2015 contra 1,3 bilhão de reais
em 2013 (na época, equivalentes a um pouco mais de 500 milhões de euros).
Foi construído em zona considerada decadente, o Quartier do Lac, no âmbito
de uma vigorosa política urbana de “revitalização” que inclui construção de cas-
sino, parque de exposições e todo o receituário clássico da valorização fundiá-
ria. No plano discursivo, anunciou-se maior projeção e atratividade para uma
Cidadania e legado em debate 27

aglomeração metropolitana em cenário econômico estagnado (AUGUSTIN;


NICOLLE, 2016).
Além do estádio dotado de audacioso projeto arquitetônico, o bairro
recebeu efetivas melhorias no quesito acessibilidade, pois agora está conectado
diretamente ao anel viário metropolitano e servido pela linha C do tramway. Nesse
aspecto, note-se que não houve investimento dessa natureza para o bairro Maracanã:
nem melhoria dos serviços preexistentes nem acréscimo de modalidades ecologica-
mente referenciadas e cidadãs, como o ciclismo. Muito pelo contrário, conforme nos
lembra Fernando da Costa Ferreira (2017), o projeto de reforma previa a demolição
do Estádio de Atletismo Celio de Barros – que continua abandonado – do Parque
Aquático Julio Delamare (que hoje funciona precariamente), que atendiam em larga
escala a população fluminense, e da Escola Municipal Friedenreich.
Enquanto vivenciamos a desertificação e extrema redução de possibi-
lidades para práticas socioesportivas no entorno do Maracanã, o Estádio de Bor-
deaux se insere em zona de várias instalações esportivas, compondo assim um
conjunto articulado. Como parceria público-privada, o estádio abriga diversos
serviços comerciais, mas o estacionamento para automóveis é reduzido e distan-
ciado, garantindo um entorno “verde” e plenamente pedestrianizado. No plano da
regulação urbanística, ressalte-se o princípio de “mixité” (a mistura programada de
classes e grupos sociais) no espaço revitalizado, que acaba de acolher um “écoquar-
tier”, o Ginko, o qual destinou um terço das unidades residenciais para “uso social”
e 20% delas para idosos.
Os movimentos insurgentes locais, bem atenuados se comparados à
realidade carioca, se referiam basicamente à questão ambiental e à busca do aden-
samento residencial, para melhor aproveitar a nova infraestrutura urbana e evitar a
geração de um espaço majoritariamente destinado a eventos e negócios. Em maio
de 2016, às vésperas do evento, estivemos em Bordeaux e entrevistamos o professor
de Geografia Damien Plaza, ex-jogador de futebol e membro da diretoria do clube
28 Futebol na sala de aula

de futebol amador Lége Cap Ferret, situado na comuna homônima, nos arredores
de Bordeaux. Ele não apenas reclamava dos preços dos ingressos para a Eurocopa,
como da excessiva comercialização: informa que na Copa de 1998 pôde assistir
gratuitamente diversos jogos, pois a Federação Francesa de Futebol (FFF) forneceu
ingressos a centenas de clubes amadores em todo o país. Outros tempos...
Cumpre registrar que o evento em Bordeaux não promoveu grandes
impactos aos direitos humanos, tais como as massivas remoções forçadas no Rio
de Janeiro, tampouco ao patrimônio local, desfigurando uma centralidade socio-
cultural como o Maracanã. Ao contrário, as intervenções se dirigiram a uma área
de expansão urbana, e um novo estádio foi construído (além do conjunto arquite-
tônico poliesportivo), colaborando decisivamente para inserir Bordeaux entre os
grandes centros esportivos franceses, e mesmo em nível continental.
Em Bordeaux, ao que tudo indica, o novo estádio não agride as “culturas
torcedoras” locais, de que nos falam Simões (2017) e Ferreira (2017). Apenas consolida
um modo preexistente de torcer, de “habitar” o estádio, bem menos eufórico, coletivo e
ruidoso que o modo brasileiro. Uma cultura torcedora já plenamente vigente no con-
texto europeu há pelo menos duas ou três décadas, não obstante a existência de grupos
excepcionais ligados ao “hooliganismo”. No Brasil, ao contrário, o torcedor tradicional
sofre, grita, reclama, reivindica, ameaça e se articula coletivamente com estranhos.
Ele quer ser protagonista do evento, ao qual contribuiu com sofrido dinheiro e paixão
fiel ao seu clube. Atitude distinta do consumidor, solitário ou imerso em seu pequeno
e “fechado” grupo, que apenas contempla, aplaude, filma e fotografa o cenário. Uma
experiência sem riscos, sem incertezas, adequada e altamente lucrativa para os donos
do espetáculo. Apostamos que a “arenização” de nossos estádios busca afastar indí-
cios de uma “cultura torcedora” fermentada no Brasil ao longo de, pelo menos, quatro
décadas de vigência dos “estádios das massas”, aqui produzidos entre 1950 e 1990.
Se comparados, Rio de Janeiro e Bordeaux expressam cenários um tanto
distintos no urbanismo e na dinâmica cidadã, anunciando profundas diferenças no
Cidadania e legado em debate 29

âmbito do direito à cidade. Comparando os dois países, podemos afirmar que a auto-
ritária “Copa das Empreiteiras” e do neodesenvolvimentismo brasileiro adquiriu tons
excludentes e violentos na cidade já governada, desde 1993, pelo espírito neoliberal.
Ao mesmo tempo, apesar de todos os reveses do Estado de Bem-Estar Social fran-
cês nos últimos 15 anos, persistem um leque de direitos e toda uma cultura política
que, em certa medida, freiam os anseios neoliberais de seus últimos governos. Nesse
sentido, os processos de valorização do solo urbano para apropriação privada trans-
correm sem, por exemplo, recorrer necessariamente à remoção forçada e em massa
de moradores pobres. E sem promover a destruição de um patrimônio histórico de
profundo significado para a cultura popular, como o Maracanã.

Referências

AUGUSTIN, Jean-Pierre; NICOLLE, Vincent. Le stade de Bordeaux et la revitalisation du quar-


tier du Lac. 2016. Mimeo.

CASTRO, Demian Garcia. «O Maraca é Nosso!»: elitização do futebol, neoliberalização da cidade


e lutas sociais em torno do Maracanã. 2016. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

FERREIRA, Fernando da Costa. O estádio de futebol como arena para a produção de diferen-
tes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo
Maracanã. 2017. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2017.

HARVEY, David. Le capitalisme contre Le droit à laville: néoliberalisme, urbanisation, résis-


tances. Paris: Editions Amsterdan, 2011.

LOGAN, John; MOLOTCH, Harvey. Urban Fortunes: The Political Economy of Place. Berkeley:
University of California Press, 1990.

MASCARENHAS, Gilmar. A copa do mundo de 1950 e sua inserção na produção do espaço


urbano brasileiro. Geo UERJ, v. 2, p. 1-22, 2013.

______. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano


nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo (UFRJ), v. 14, p. 52-65, 2014.
30 Futebol na sala de aula

SIMÕES, Irlan. Clientes x rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio
de Janeiro: Multifoco, 2017.

NOTA

Este texto contém excertos do artigo: Megaeventos esportivos, política urbana e direito à cidade:
França e Brasil. In: FERNANDES, Ana; CHAGAS, Maurício. (orgs.). O direito à cidade na
França e no Brasil: uma nova agenda urbana? Questões para um debate necessário e fecundo.
Salvador: PPGAU/FAU UFBA, 2018, v. 1, p. 255-274; publicado em coautoria com o geógrafo
francês Jean-Pierre Augustin.
Perseguindo um sonho:
a profissionalização de jogadores e
jogadoras no futebol
Simoni Lahud Guedes

Resumo: Discuto, neste texto, a persistência do projeto de ascensão


social por meio do futebol, no Brasil, para crianças e jovens, do sexo masculino e,
bem recentemente, também do sexo feminino. Esse projeto implica, quase sempre,
em pesados investimentos familiares. O futebol, no Brasil, foi transformado em
esporte nacional, a partir das primeiras décadas do século XX. A importância ímpar
atribuída a esse esporte no Brasil, se comparado aos outros esportes, tem inúmeras
implicações. Uma delas, a que me interessa particularmente aqui, é a potência da
representação coletiva acerca das habilidades inigualáveis dos brasileiros no futebol,
representação que leva milhares de jovens, anualmente, a tentarem abraçar a profis-
são de futebolista. Meu argumento, baseado em pesquisas realizadas sobre o tema,
é que há mais percalços e desilusões nesse caminho do que sucessos.
32 Futebol na sala de aula

Referências

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Paulo: Hucitec; Anpocs, 2007.

GUEDES, Simoni Lahud. Subúrbio: celeiro de craques. In: DAMATTA, R. (org.). Universo do
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MELO, Marcelo de Paula. Esporte e juventude pobre: políticas públicas de lazer na Vila Olímpica
da Maré. Campinas: Autores Associados, 2005.

SOARES, Antonio Jorge; CORREIA, Carlus Augustus; MELO, Leonardo Bernardes Silva de
(orgs.). Educação do corpo e escolarização de atletas: debates contemporâneos. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2016.

SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo:
Intermeios; Fapesp, 2016.

Vídeos

FUTEBOL. Direção de João Moreira Salles e Arthur Fontes. Brasil: GNT Vídeo Filmes, 1998.
DVD. (Série de três documentários).

RITOS da nação. Direção de Édison Gastaldo. Rio Grande do Sul: UNISINOS, 2007. DVD.
PRIMEIRO TEMPO
Futebol e Relações Internacionais:
o “rude esporte bretão” em
tempos de paz e de guerra
Adriano de Freixo

A célebre sentença do general prussiano e teórico da guerra Carl von


Clausewitz – “A guerra é a continuação da política por outros meios” – talvez seja,
para quem não é um especialista no estudo das Relações Internacionais, a melhor
síntese das preocupações centrais dessa disciplina, já que remete a duas palavras a
ela imediatamente associadas: diplomacia e guerra. O sociólogo francês Raymond
Aron, “discípulo” intelectual de Clausewitz e Max Weber, reforça essa percepção
em seu livro Paz e guerra entre as nações, publicado originalmente em 1962, ao
assinalar que:
O diplomata e o soldado vivem e simbolizam as relações internacionais que,
enquanto interestatais, levam à diplomacia e à guerra. As relações interes-
tatais apresentam um traço original que as distinguem de todas as outras
relações sociais: elas se desenrolam à sombra da guerra; para empregar uma
expressão mais rigorosa, as relações entre os Estados implicam essencial-
mente na guerra e na paz (ARON, 1986, p. 54).
36 Futebol na sala de aula

Porém, mesmo sendo as relações interestatais o lócus privilegiado das


relações internacionais, também há outros atores que devem ser levados em conta
no processo de formulação da política externa de um Estado. Na definição de
Roberto Russel, esta constituir-se-ia em
uma área particular de ação política dos governos, abrangendo três dimen-
sões analiticamente separáveis – político-diplomática, militar-estratégica e
econômica –, e que se projeta no âmbito externo ante a uma ampla gama
de atores e instituições governamentais e não-governamentais (apud OLI-
VEIRA, 2005, p. 5).

Essas três dimensões da política externa dos Estados, por extensão,


constituem também as três dimensões clássicas das relações internacionais.
Constituindo-se como um dos mais importantes fenômenos sociais da
contemporaneidade, o futebol não poderia deixar de desempenhar um papel rele-
vante nas relações internacionais – em suas múltiplas dimensões – nos últimos
150 anos. Articulando-se com processos de construção identitária; sendo utilizado
como instrumento político por pessoas, organizações, grupos e governos das mais
diversas orientações ideológicas; funcionando como uma das alavancas da econo-
mia capitalista, servindo de elemento de “poder brando” no jogo diplomático de
vários países, causando ou interrompendo guerras; visto como símbolo de resistên-
cia ou de alienação, o esporte mais popular do planeta tem mobilizado fortemente
indivíduos, nações e Estados e impactado sobremaneira as relações entre eles, não
só em tempos de paz, mas também nos de guerra.

O futebol e a guerra

Repleto de metáforas militares, um jogo de futebol acaba funcionando


como uma espécie de sublimação ritual da guerra, na definição de Eduardo Galeano
(2004). Com isso, expressões como tática, estratégia, capitão, comandante, ataque,
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 37

defesa, artilheiro, blitz, bomba, tiro ou bombardeio acabaram por ser incorporadas
ao jargão futebolístico e são repetidas cotidianamente pelos milhões de aficionados
do esporte mundo afora. Da mesma forma, bandeiras, torcidas organizadas, gritos
e cantos de guerra também remetem imediatamente ao universo militar e guerreiro
e aos rituais do Estado-nação, a forma de organização política, por excelência, da
modernidade ocidental.
Mas, para além das aproximações simbólicas, no plano do real, o fute-
bol e a guerra se cruzaram e se imbricaram por inúmeras vezes. Já na mãe de
todas as guerras, o conflito mundial de 1914-1918, o futebol desempenharia um
papel importante: na Inglaterra, como não havia alistamento militar obrigatório
até 1916, o Exército realizava partidas de exibição em diversas cidades do país
para atrair os jovens, e vários deles se engajaram por conta disso (AGOSTINO,
2002). Também se tornou célebre a prática inaugurada pelo Primeiro Batalhão
do Décimo Oitavo Regimento de Londres de atacar os alemães, a partir de uma
bola chutada em direção à trincheira adversária. Espalhando-se por outras uni-
dades do Exército britânico, essa manobra atinge seu ápice na Batalha de Somme
(1916), quando um oficial inglês, o capitão Wilfred Nevill, que comandava a
Oitava Companhia do East Surrey Regiment, apresentou quatro bolas de futebol
aos quatro pelotões sob seu comando e prometeu premiar o primeiro deles que
cruzasse as linhas alemãs chutando a bola. Mesmo com inúmeras baixas, a com-
panhia comandada por Nevill – que estava entre os mortos – foi uma das únicas
a conseguir seus objetivos nesse primeiro dia de combates, com aquela que ficaria
conhecida como a ofensiva do futebol.
Na Segunda Guerra Mundial, um episódio extremamente conhecido,
e que inspirou livros e filmes, é a partida realizada em Kiev, Ucrânia, entre a
equipe da Luftwaffe (Força Aérea Alemã) e o Start FC, time formado por (ex)
-prisioneiros de guerra que, em sua maioria, tinham sido jogadores de dois clu-
bes locais, e que foram fechados pelos nazistas, o Lokomotiv e o Dínamo. Este
38 Futebol na sala de aula

último foi um dos melhores times do Europa na segunda metade da década de


1930, sendo a base da seleção ucraniana de então (DOUGAN, 2004).
Com a invasão da Ucrânia e o cerco de Kiev pelos nazistas no âmbito da
Operação Barbarossa (1941), a ofensiva alemã contra o território soviético, inúme-
ros jogadores de futebol foram presos e levados para campos de trabalho forçados
no interior do país ou mesmo na Alemanha, juntamente com outros quase 650 mil
prisioneiros de guerra soviéticos feitos pelos nazistas durante a ocupação da cidade.
Aqueles considerados menos perigosos foram liberados e retornaram à cidade ocu-
pada. Dentre eles, estava o ex-goleiro do Dínamo, Nikolai Trusevich, que acabou
conseguindo trabalho na Padaria Número 3, cujo proprietário Iosif Kordik, um
ucraniano de origem alemã, era um torcedor fanático de seu antigo clube. Estimu-
lado por ele, Trusevich saiu à procura de seus velhos companheiros de equipe que,
tornando-se empregados da padaria, organizaram uma equipe de futebol.
Foi assim que se estruturou o Start FC, formado por oito ex-jogado-
res do Dínamo e três do Lokomotiv, para participar do campeonato de uma liga
local, cuja organização tinha sido estimulada pelos próprios alemães que viram
nisso um instrumento para manter um clima de normalidade na cidade ocupada.
Vencendo todas as partidas disputadas contra os clubes locais, bem como sobre
várias equipes das tropas de ocupação, o time foi desafiado pelo Flakelf, a equipe
da Luftwaffe, que tendo sido derrotado por 5 x 1, imediatamente pediu revanche.
Três dias depois, em 9 de agosto de 1942, no Zenit Stadium, realizou-se aquele
que ficou conhecido como o Jogo da Morte: diante de um adversário reforçado por
jogadores provenientes de várias unidades militares e de um árbitro que era oficial
da SS (Schutzstaffel), a tropa de elite nazista, o Start FC entrou em campo para sua
partida decisiva. Mesmo com as jogadas violentas dos adversários, que contavam
com a tolerância da arbitragem, ao término do primeiro tempo, os ucranianos já
venciam o jogo por 3 x 1.
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 39

No intervalo, os jogadores ucranianos foram visitados no vestiário por


Giorgi Shvetsov, presidente da liga futebolística local, e por um oficial da SS, sendo
aconselhados a entregar o jogo, pois poderiam sofrer terríveis consequências. Ape-
sar das advertências, o time voltou a campo e venceu o jogo por 5 x 3, humilhando
os alemães mais uma vez. Poucos dias depois, após golearem uma equipe local, o
Rukh, por 8 x 0, os jogadores foram presos pelos nazistas, e a padaria, fechada. Um
deles morreu, sob tortura, uma semana depois de ter sido detido; outros, dentre os
quais, Trusevich, foram executados em fevereiro de 1943; os demais foram manda-
dos para campos de trabalhos forçados. Hoje, no Zenit Stadium, há uma placa em
sua homenagem com a inscrição: Aos jogadores que morreram com a cabeça erguida
ante o invasor nazista. O episódio serviu de livre inspiração para o filme “Fuga
para a Vitória” (1981), do premiado diretor John Huston, que reuniu um elenco
com nomes consagrados do cinema – Michael Caine, Sylvester Stallone. Max Von
Sydow –,, ao lado de jogadores e ex-jogadores como Bobby Moore, Pelé e Ardiles.
Em agosto de 1942, o Brasil, até então neutro, também ingressaria no
conflito mundial declarando guerra ao Eixo, depois de um intenso período de mani-
festações populares que se iniciaram após o torpedeamento de embarcações brasi-
leiras por submarinos alemães em fevereiro daquele ano. Essa declaração de guerra
é o culminar de um processo iniciado no ano anterior, quando o Brasil começou a
se distanciar gradativamente da Alemanha, que tinha chegado a ser uma das nos-
sas principais parceiras comerciais nos anos finais da década de 1930, consolidando
sua aproximação com os Estados Unidos. Isso se traduziu, efetivamente, no rompi-
mento de relações diplomáticas com as potências do Eixo, durante a terceira reunião
de chanceleres americanos, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1942, como decorrência
direta do ataque japonês a Pearl Harbor e da entrada da potência norte-americana
no conflito (MOURA, 1980) . Quase dois anos depois, em julho de 1944, os primei-
ros soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) chegariam a solo europeu
para atuar diretamente no conflito.
40 Futebol na sala de aula

O futebol brasileiro não ficaria alheio a esses eventos. No momento em


que as relações do Brasil com os países do Eixo começaram a se deteriorar, deter-
minações governamentais fizeram com que clubes ligados à colônia italiana e que
tinham em comum o nome Palestra Itália alterassem suas denominações e, em
alguns casos, modificassem as cores de seus uniformes. Isso ocorreu com o Pales-
tra paulista que passou a se chamar Sociedade Esportiva Palmeiras e com seu con-
gênere em Minas Gerais, que foi rebatizado como Cruzeiro Esporte Clube. Nesse
mesmo contexto de suspeição de imigrantes oriundos de países com quem o Bra-
sil havia rompido relações tanto o Palmeiras, quanto o seu principal rival, o Sport
Club Corinthians Paulista (que também contava com muitos estrangeiros em seus
quadros) foram obrigados a expulsar vários sócios não brasileiros, incluindo-se aí
alguns membros de suas diretorias (SALUN, 2007).
Já no Rio de Janeiro, então capital federal, os principais clubes espor-
tivos se empenhariam enormemente no esforço de guerra, com especial destaque
para o Fluminense Football Club e o Clube de Regatas Vasco da Gama, que por
meio de campanhas realizadas entre seus sócios, chegaram a adquirir e doar aviões
ao governo brasileiro. Este último também cedeu o Estádio de São Januário como
sede para uma Escola de Instrução Militar e para o alojamento de soldados da FEB
provenientes de outros estados (CABRAL et al., 1998). Por sinal, é importante assi-
nalar que alguns jogadores profissionais de futebol se alistaram nessa Força Expe-
dicionária que se incorporou às tropas do V Exército norte-americano no teatro de
operações do Mediterrâneo, dentre os quais, Geninho e Walter (Botafogo), Bidon
(Madureira), Adelino (Cruzeiro) e o mais conhecido de todos, Perácio, que jogou
no Botafogo e no Flamengo e foi titular da seleção brasileira que disputou a Copa
de 1938. Quando o conflito já se aproximava de seu fim, ao término do ano de
1944, alguns generais aliados resolveram realizar um torneio de futebol com equi-
pes formadas por soldados dos diferentes exércitos combatentes. Com o reforço de
três soldados-jogadores brasileiros – o lateral Bidon, o meio-campista Perácio e o
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 41

ponta-esquerda Walter –, o time do V Exército norte-americano acabou ganhando


essa competição improvisada que serviu para animar as tropas aliadas naqueles
meses finais da Segunda Grande Guerra.
Nessas intersecções entre o futebol e a guerra, um episódio tem enorme
singularidade: em 1969, um jogo das eliminatórias da Copa do Mundo entre Hon-
duras e Salvador serviu de estopim para deflagrar um conflito armado entre os dois
países, dando início àquela que ficaria conhecida como a Guerra do Futebol. As
origens do conflito relacionam-se a questões fronteiriças que remontam ao século
XIX, a disputas econômicas entre os dois países no âmbito do Mercado Comum
Centro-Americano (MCCA) e à grande presença de imigrantes salvadorenhos em
Honduras.
Essas tensões se faziam presentes no dia 8 de junho de 1969, quando
Honduras e El Salvador disputaram em Tegucigalpa a primeira de uma série de
três partidas, que decidiriam uma vaga para a Copa do Mundo do México, no ano
seguinte. Chegando à cidade na véspera do jogo, os jogadores de El Salvador não
conseguiram dormir devido ao barulho ensurdecedor do lado de fora do hotel, por
conta de gritos, apitos e fogos de artifício dos torcedores adversários. Exausta e sob
forte tensão emocional, a seleção salvadorenha acabou perdendo o jogo por 1 x 0,
com um gol assinalado no último minuto.
O tratamento dado à seleção nacional repercutiu fortemente em El Sal-
vador, bem como os boatos de que milhares de torcedores salvadorenhos teriam
sido hostilizados e agredidos pelos hondurenhos. O clima se tornou mais tenso
devido ao suicídio de uma adolescente de 18 anos, que deu um tiro no coração
com a pistola do pai por não se conformar com o resultado do jogo. O seu funeral,
transmitido para todo o país pela televisão e pelo rádio, teve honras militares e con-
tou com a presença do próprio presidente da República Fidel Sanches Hernandez.
Uma semana depois, ocorreria o segundo jogo, dessa vez em San Sal-
vador. O clima do domingo anterior se repetiu, com a seleção hondurenha sendo
42 Futebol na sala de aula

impedida de dormir pelo barulho e pela agitação ao redor do hotel em que estava
hospedada, já que os salvadorenhos haviam decidido retribuir o tratamento dispen-
sado à sua equipe, em Tegucigalpa. Como assinala Hamann (2002), existem versões
controversas sobre os acontecimentos que envolveram essa segunda partida. Assim,
há desde relatos que falam que o saldo da violência resultante do jogo resumiu-se
a um homem hospitalizado, uma mulher de nariz quebrado (ambos hondurenhos)
e vários automóveis depredados até outros que mencionam centenas de hondure-
nhos feridos e mesmo ataques físicos aos jogadores da seleção. De qualquer forma,
a maneira como a imprensa de Honduras noticiou o clima em que se deu a partida
– vencida por El Salvador por 3 x 0 – e os acontecimentos que se seguiram a ela
contribuiu decisivamente para a onda de violência contra os imigrantes salvadore-
nhos nos dias subsequentes ao jogo, sendo muitos deles expulsos de suas terras e
obrigados a sair do país.
As tensões na fronteira entre os dois Estados se acentuaram com a ampla
mobilização de tropas por ambas as partes. E enquanto os governos da Costa Rica,
Nicarágua e Guatemala tentavam articular uma solução diplomática para o impasse,
ocorria a terceira e decisiva partida, dessa vez em território neutro, na cidade do
México. Com a vitória por 3 x 2 obtida na prorrogação (2 x 2, no tempo normal de
jogo), El Salvador conquistou a tão sonhada vaga para a Copa do Mundo. Porém as
divergências entre os dois países tinham chegado a um ponto em que parecia ser
inviável qualquer tentativa de resolução pacífica, inclusive porque tanto a imprensa
hondurenha, quanto a salvadorenha continuaram a acirrar os ânimos da opinião
pública, disseminando o ódio e os sentimentos xenófobos.
Depois de algumas semanas de incidentes fronteiriços, a guerra come-
çou de fato em 14 de julho, com um ataque salvadorenho a Honduras utilizando
sua Força Aérea e também forças terrestres. Depois de quatro dias de luta, na noite
de 18 de julho de 1969, a Organização dos Estados Americanos (OEA) conseguiu
negociar um cessar-fogo com os Estados beligerantes, pondo fim ao conflito. Essa
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 43

guerra deixou um saldo de quase dois mil mortos e mais de quatro mil feridos, em
sua maioria civis, e acabou terminando sem vencedores. Nas palavras de Eduardo
Galeano, “os senhores da terra e da guerra não derramaram uma gota de sangue,
enquanto os dois povos descalços, idênticos em sua desdita, vingavam-se ao con-
trário matando-se entre si com patriótico entusiasmo” (GALEANO, 2004, p. 130).
Em várias das guerras civis – conflitos internos aos Estados que opõem,
via de regra, o grupo político que controla o governo a outros grupos organizados
que visam tomar o poder – dos séculos XX e XXI, o futebol também desempenha-
ria um papel bastante importante. Um dos exemplos mais célebres dessa interse-
ção entre um conflito intraestatal e o esporte, foi participação do FC Barcelona
na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), resultante da forte polarização ideológica
entre esquerda e direita e do acirramento das tensões sociais no país.
Com a vitória da Frente Popular – coalizão formada por partidos
republicanos de esquerda, socialistas, comunistas, grupos autonomistas regionais
e diversas outras organizações – nas eleições de fevereiro de 1936 e o estabeleci-
mento de um governo de esquerda, a direita espanhola – que tinha um grande peso
dentro das Forças Armadas – articulou um golpe de Estado, sob a liderança do
general Francisco Franco, dando início a uma sangrenta guerra civil. Nesse período
de guerra, o esporte, de modo geral, e o futebol, em particular, desempenharam um
papel extremamente relevante na Catalunha tanto como um mecanismo de soli-
dariedade, quanto para incentivar o moral dos combatentes e da população como
um todo, funcionando como instrumento de propaganda e de aglutinação social, e
tendo assim uma função estratégica durante o conflito (PUJADAS MARTÍ, 2005 ).
O F. C. Barcelona teve um forte envolvimento nesses eventos, tornando-
se um dos ícones da resistência republicana ao golpe da extrema direita. Logo, no
início da Guerra Civil, o presidente do clube Josep Sunyol, político catalão ligado
à Esquerda Republicana, foi fuzilado sumariamente, sem julgamento, na Serra de
Guadarrama, ao ser reconhecido por tropas franquistas que ocupavam a região.
44 Futebol na sala de aula

Sunyol estava ali para dar apoio aos soldados catalães que atuavam na resistên-
cia ao cerco de Madri promovido pelos militares golpistas. Além disso, o clube
organizou uma excursão por alguns países americanos, como o México e os Esta-
dos Unidos, arrecadando fundos e angariando apoios para a causa republicana,
tendo um sucesso tão grande que o número de partidas programado inicialmente
foi ampliado. O apoio do presidente mexicano Lázaro Cárdenas aos republicanos
espanhóis acabou possibilitando que, posteriormente, vários jogadores catalães se
instalassem naquele país, depois de efetivada a vitória dos exércitos de Francisco
Franco (AGOSTINO, 2002). A guerra também gerou um forte impacto no número
de torcedores e aficionados do Barça, fundamentalmente homens jovens que se
constituíam no principal contingente de combatentes: o clube passou de 7.719
sócios, em 1936, para três mil, em 1939 (PUJADAS MARTÍ, 2005).
Com o início da ditadura franquista, em 1939, um regime centralizado e
de tons fascistizantes, a repressão aos separatismos regionais e a imposição do cen-
tralismo de Castela se tornaram prioritárias. Tendo sido a Catalunha, uma das regi-
ões que mais resistiu ao golpe, e o F. C. Barcelona, um dos ícones dessa resistência,
o ditador não deixaria o clube catalão passar incólume, tendo essa luta assumido
para Franco “a forma de um combate pessoal de natureza épica” (FOER, 2005, p.
176). Como assinalou o escritor e jornalista (e torcedor do Barça) Manuel Vasquez
Montalbán, ao escrever sobre a ocupação de Barcelona pelo exército franquista, “a
quarta organização a ser expurgada depois de comunistas, anarquistas e separatis-
tas era o Barcelona Football Club” (apud FOER, 2005, p. 176).
Nesse sentido, eventos como o bombardeio da sala de troféus do Barça,
durante o ataque final das forças franquistas à Catalunha; a alteração do nome do
clube para Club de Fútbol Barcelona (traduzindo-o assim para o castelhano); a
supressão das quatro faixas vermelhas, alusivas à bandeira da Catalunha, no escudo
do clube, substituindo-as por duas, representando a bandeira nacional espanhola;
ou a nomeação, nos anos seguintes, de seu presidente – um colaborador de Franco
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 45

– pelo governo central, foram tentativas claras feitas de destituir o clube de sua
identidade catalã. No entanto, nas décadas seguintes, o Camp Nou, o estádio do
Barcelona, foi um dos poucos espaços públicos – senão o único – onde se podia
falar catalão (proibido pelo regime) e se gritavam palavras de ordem nacionalis-
tas. Para muitos, o ditador tolerava tais manifestações justamente porque era uma
forma de restringir o sentimento nacional catalão ao espaço de um estádio de fute-
bol, canalizando suas energias assim para algo que, no fundo, não passava de uma
diversão inofensiva que não ameaçava seriamente o regime.

Futebol, diplomacia e “poder brando”

Na definição do embaixador Sérgio Bath (1989, p. 14), diplomacia é o “o


meio pelo qual os governos buscam atingir seus objetivos e obter apoio a seus prin-
cípios”, constituindo-se assim no “processo político mediante o qual as posições de
política externa de um governo são inicialmente sustentadas e logo orientadas para
o objetivo de influenciar as posições políticas e a conduta de outros governos”. Logo,
ela baseia-se fundamentalmente nos meios pacíficos e na negociação como instru-
mentos para a consecução dos objetivos políticos dos Estados no meio internacional.
A partir dessas premissas, podemos perceber que o vetor cultural possui
enorme importância para a diplomacia, visto que a cultura é um poderoso fator de
influência na política externa dos países, sendo então um elemento de aproximação
ou conflito entre Estados, constituindo-se naquilo que Philip Hall Coombs, assis-
tant secretary of State for educational and cultural affairs do governo John Kennedy
(1961-1964), definiu como sendo a quarta dimensão da política externa de um
Estado, ao lado das outras três dimensões consideradas clássicas: política, econô-
mica e militar.
Nesse sentido, a diplomacia cultural desempenha um papel muito
importante na política externa dos Estados, desde pelo menos as primeiras déca-
46 Futebol na sala de aula

das do século passado. No entanto, o interesse acadêmico em torno dela e do seu


uso como instrumento para ampliar a projeção internacional e a influência política
de um Estado só se intensificou a partir da popularização das teses de Joseph Nye
Jr. (2002) sobre a cultura como um dos elementos do chamado soft power (poder
brando), elaboradas a partir da década de 1980. Esse poder brando constituir-se-ia,
ao lado do hard power (poder econômico e militar), na base do poder dos Estados
na era da informação e da interdependência global. Desta forma, se, por intermé-
dio do hard power, um Estado busca coagir e induzir outros Estados a se dobrarem
à sua vontade, por meio do soft power, ele busca cooptar outros Estados, ou seja,
moldar suas preferências e interesses, atraindo-os para sua área de influência.
Por sua relevância no mundo contemporâneo e alcance quase universal,
o futebol constitui-se num importante instrumento da diplomacia cultural, pois
ao mesmo tempo em que funciona internamente na consolidação da identidade
nacional de uma sociedade, externamente ajuda a construir uma imagem positiva
de um país no exterior. Com isso, ele ajuda a criar e/ou fortalecer laços de ami-
zade, a partir de um capital de simpatia que se conquista junto à opinião pública de
outros países, o que acaba ampliando a possibilidade de ganhos em outros campos
como o político ou o econômico. Sob a mesma lógica, por inúmeras vezes ao longo
da História, o futebol serviu para difundir ou propagandear uma causa defendida
por um Estado, movimento ou organização internacional.
Um bom exemplo disso é a atuação do escritório SportsUnited, vincu-
lado ao Bureau de Assuntos Educacionais e Culturais do Departamento de Estado
norte-americano. Esse escritório lançou, em 2011, uma iniciativa que visa fundir
os intercâmbios internacionais dos Estados Unidos e o futebol, a partir da visão da
então secretária de Estado Hilary Clinton, de utilizar toda a gama de ferramentas
diplomáticas à disposição dos Estados Unidos com o objetivo de fazer avançar as
metas da política externa estadunidense. Tal ação se encaixa dentro do que a secre-
tária chamava de diplomacia do poder inteligente (smart power) e consiste no envio
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 47

de profissionais do futebol ao exterior para atuar com comunidades carentes, bem


como na concessão de bolsas para que jovens atletas estrangeiros e seus treinado-
res realizem intercâmbios nos Estados Unidos, para interagirem com seus pares
norte-americanos. Nesse sentido, já podemos falar na prática de uma diplomacia
do futebol, que busca aproveitar as oportunidades oferecidas para a ação externa de
um Estado pelo esporte que reúne mais aficionados e praticantes em todo o globo.
Já nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, a diplomacia
nazista procurou utilizar o futebol para tentar quebrar certo isolamento interna-
cional ao qual a Alemanha estava submetida, por conta das pressões dos grupos
antifascistas que atuavam em vários países da Europa. Nessa estratégia, se incluiu a
célebre excursão da seleção alemã à Inglaterra, em 1935, para uma partida histórica
contra os inventores do futebol, e que ainda eram considerados os melhores do
mundo. Em meio a protestos da comunidade judaica, devido às leis antissemitas
decretadas por Hitler, e de organizações liberais e socialistas que combatiam o fas-
cismo, a partida foi realizada em 4 de dezembro e terminou com a vitória da seleção
inglesa, que era indiscutivelmente muito superior, por 3 x 0.
Três anos depois, em maio de 1938, no auge da Política de Apazigua-
mento levada a cabo pelo governo britânico, a seleção inglesa retribuiu a visita e foi
à Alemanha para uma nova partida contra os donos da casa. No Estádio Olímpico
de Berlim, diante de mais de cem mil espectadores e de toda a cúpula nazista, com
exceção do Führer, os ingleses golearam seus anfitriões por 6 x 3. Assim, se a diplo-
macia do futebol nazista foi bem-sucedida na consecução de seus objetivos de curto
prazo, não se pode dizer o mesmo das performances da seleção alemã no período,
visto que em nenhuma partida ou competição importante tanto no aspecto simbó-
lico, quanto no estritamente esportivo, ela conseguiu os resultados esperados.
Na antiga União Soviética e nos países do bloco socialista sob sua influ-
ência, o esporte desempenhava um papel fundamental, dentro do quadro geral
da Guerra Fria e da dinâmica do conflito Leste-Oeste. A sua importância política
48 Futebol na sala de aula

residia no fato de esse poder ser utilizado pela propaganda governamental para
demonstrar a superioridade do comunismo sobre o capitalismo, por meio da con-
quista de um maior número de títulos internacionais. Por conta disso, havia um
alto grau de intervencionismo estatal no esporte em geral e no futebol em parti-
cular, de forma análoga ao que ocorria em outras esferas da vida cotidiana e da
sociedade. Nesse sentido, os esportes não eram utilizados somente para projetar
internacionalmente um Estado – embora essa dimensão também estivesse presente
–, mas, sim, para fazer a propaganda de um sistema econômico e de um modelo de
sociedade, no contexto de um mundo polarizado ideologicamente.
Outro exemplo da diplomacia do futebol socialista foi a excursão do
Dínamo,, de Moscou, ao Reino Unido, em 1945. No imediato pós-guerra, quando
ainda existia a ilusão da manutenção da aliança – liderada por Estados Unidos,
União Soviética e Reino Unido – que havia derrotado o nazifascismo, a Federação
Britânica convidou o time russo para uma série de jogos na Grã-Bretanha, como
um sinal de boa vontade e da busca de uma ordem internacional pacífica e harmô-
nica. Com dois empates – contra o Chelsea (3 x 3) e contra o Glasgow Rangers, da
Escócia (2 x 2) – e duas vitórias, uma delas de goleada, sobre o Arsenal (4 x 3) e
contra o Cardiff, do País de Gales (10 x 1), o time russo voltou para Moscou invicto
animando de tal maneira os dirigentes soviéticos, que, no ano seguinte, o país se
filiou à Fifa e passou a sonhar com voos mais altos em competições internacionais.
Com tantos exemplos de utilização do futebol como instrumento
diplomático e de afirmação de prestígio internacional de Estados e até de siste-
mas econômicos, não se pode deixar de pensar nas inúmeras possibilidades que
esse esporte abre para a atuação da diplomacia brasileira. Afinal, além de ter sido
cinco vezes campeão do mundo, o Brasil é o país natal de alguns dos jogadores
mais conhecidos de toda a história do jogo – como Leônidas, Pelé, Garrincha, Zico,
Romário, Ronaldo e tantos outros – e a escola futebolística mais respeitada inter-
nacionalmente. A admiração pelo futebol brasileiro existente nos quatro cantos do
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 49

mundo pode ser vislumbrada em inúmeras situações e eventos cotidianos: o está-


dio do Estrela Vermelha, o mais popular time de Belgrado, na Sérvia, é conhecido
como Marakana, em homenagem ao Estádio do Maracanã; em Luanda, capital de
Angola, havia um clube de futebol chamado Botafogo, que foi fechado pela dita-
dura salazarista no início dos anos 1960, e que tinha esse nome por causa do time
carioca; o ponto alto do carnaval de Goa, na Índia, é a red-and-black dance (Baile
do Vermelho e Preto), chamado assim numa referência ao Flamengo, do Rio de
Janeiro; em Cape Town, na África do Sul, existe um clube chamado Vasco da Gama,
em que até a camisa é inspirada na do seu homônimo brasileiro.
No entanto, embora a aproximação entre o esporte e o poder já date
de longo tempo, a utilização sistemática e coordenada da diplomacia do futebol
pelo governo brasileiro só começou a ser esboçada recentemente, e ainda é algo
visto com desconfiança por setores das nossas elites políticas e diplomáticas e por
boa parcela da opinião pública nacional. Porém é inegável que “o arsenal esportivo
nacional pode representar fonte geradora de riquezas (exportação/captação de flu-
xos turísticos) e significar fator irradiador de imagem e prestígio internacionais”
(VASCONCELLOS, 2011, p. 23), sendo dotado, portanto, de um enorme potencial
para a obtenção de ganhos no âmbito das nossas relações exteriores.
Foi no governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010)
que o termo diplomacia do futebol começou a se popularizar e a se tornar mais
conhecido da opinião pública brasileira. Com uma política externa bastante ativa e
de intenso protagonismo, Lula e seu ministro das Relações Exteriores Celso Amo-
rim reforçaram a atuação internacional do país, especialmente em relação à Amé-
rica Latina, às potências emergentes do Sul e aos organismos multilaterais. Além
disso, conforme assinala Vizentini (2008), a própria personalidade do presidente
teria características que seriam admiradas pelo mundo, permitindo que ele, pesso-
almente, desenvolvesse uma intensa agenda como porta-voz de um novo projeto
nacional, divulgando assim a imagem do país no exterior e ajudando a resgatar a
50 Futebol na sala de aula

autoestima brasileira. Torcedor fanático do Corinthians Paulista, antigo frequen-


tador das arquibancadas dos estádios paulistas e “peladeiro” nas horas de folga, o
presidente era a personificação da paixão brasileira pelo jogo e acabaria sendo o
grande incentivador da sua instrumentalização pela nossa diplomacia.
O exemplo mais notório da diplomacia do futebol na era Lula foi o já
célebre Jogo da Paz entre Brasil e Haiti, realizado na capital haitiana, Porto Prín-
cipe, em 18 de agosto de 2004. A deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide,
em fevereiro daquele ano, havia mergulhado o país em uma grave crise política que
ameaçava a estabilidade política e as frágeis instituições democráticas do Estado
haitiano. A pedido do presidente da Suprema Corte Boniface Alexandre, que havia
assumido a Presidência da República interinamente, a Organização das Nações
Unidas (ONU) aprovou a criação de uma missão de paz internacional para garantir
a segurança interna e uma transição política pacífica para o país. A Minustah –
Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (em francês, Mission des
Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti) –, chefiada pelo diplomata tunisiano
Hédi Annabi, foi estabelecida em junho de 2004, e desde sua criação, o Brasil tem
estado no comando do componente militar da missão, que conta com um efetivo
de 6,7 mil homens provenientes de vários países.
Quando do estabelecimento da missão, o presidente Lula propôs a rea-
lização uma partida de futebol entre as seleções do Brasil e do Haiti, como uma
iniciativa humanitária que contribuiria para o processo de paz. Essa ideia surgiu
a partir de um comentário feito pelo primeiro-ministro interino do Haiti Gérard
Latortue, quando do desembarque das tropas brasileiras que participariam da
Minustah: “Em vez de tropas, o Brasil deveria enviar sua seleção de futebol”.
O jogo ocorreu no dia 18 de agosto de 2004 e terminou com a vitória
brasileira por 6 x 0, diante de um estádio lotado por um público extasiado. Mas o
placar era o que menos importava: o que ficou efetivamente gravado na memória
coletiva foi a festa que marcou a passagem da seleção – que contava com jogadores
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 51

de renome internacional como Ronaldo, Roberto Carlos, Juninho Pernambucano


e Ronaldinho Gaúcho – e da comitiva presidencial brasileira – que incluía, além
de Lula, vários ministros de Estado – pelas ruas de Porto Príncipe enfeitadas de
verde e amarelo, sob os aplausos de uma multidão delirante. Os detalhes da par-
tida e de todo o contexto que a envolve aparecem muito bem retratados no docu-
mentário “O Dia em que o Brasil Esteve Aqui” (2005), dirigido por Caíto Ortiz e
João Dornelas.
A repercussão internacional do evento, transmitido pela televisão para
mais de cem países, foi tão grande, que levou Lula a propor, algum tempo depois,
outro Jogo da Paz, dessa vez, na Palestina, entre Flamengo e Corinthians, os dois
clubes brasileiros de maior torcida. Previsto para ocorrer em dezembro de 2009, o
amistoso acabou não acontecendo, principalmente pelo temor da diplomacia bra-
sileira sobre as condições de segurança para a seleção e a comitiva brasileira, numa
região em conflito e marcada pela atuação de grupos extremistas.
Dentro da mesma lógica de utilizar o esporte como instrumento para
obtenção de prestígio internacional, o presidente se empenhou pessoalmente
em trazer os dois maiores eventos esportivos do planeta para o Brasil: a Copa
do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. A importância diplomática desses
megaeventos, além dos eventuais ganhos econômicos e do propalado legado que
eles podem deixar para as cidades-sede, pode ser medida pelos números que
envolvem, quando se trata de repercussão e visibilidade internacional: a Copa do
Mundo de 2018, por exemplo, foi assistida por cerca de 3,5 bilhões de telespec-
tadores em todo o mundo, com o jogo final entre França e Croácia tendo uma
audiência televisiva total de cerca de 1,12 bilhões de pessoas, conforme dados da
Fifa. Assim, como assinala Vasconcellos, tais eventos “mobilizam corações, men-
tes e holofotes, traduzindo, portanto cenário de mídia contundente procurado
pelos países para o lançamento de imagem, a projeção de valores e a prevalência
de interesses” (VASCONCELLOS, 2011, p. 22).
52 Futebol na sala de aula

Convém registrar, porém, que o gap temporal entre a definição das


sedes dos megaeventos e sua realização faz com que, muitas vezes, eles ocorram
em contextos políticos – doméstico e internacional – totalmente distintos daqueles
do momento da escolha. A Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 são
casos exemplares. Pensadas como instrumentos de projeção da imagem internacio-
nal do Brasil, num período em que o país aparecia como um dos principais Estados
emergentes e possuía uma economia pujante, uma política externa protagônica e
um governo com altíssimos índices de popularidade, elas acabariam ocorrendo em
momentos de crise econômica e política, com o país dividido e polarizado ideologi-
camente e em meio a um conturbado processo que teve o seu ápice no soft coup que
derrubou a presidenta Dilma Rousseff, às vésperas dos Jogos Olímpicos, que acaba-
ria por ter como uma de suas imagens mais marcantes a imensa vaia dada ao novo
presidente e principal articulador do golpe, Michel Temer, na cerimônia de abertura.
Mais de cento e cinquenta anos após o estabelecimento de suas regras em
uma histórica reunião em um pub inglês, o futebol possui aficionados em todos os
contentes e é motivo de encantamento para mais da metade da população mundial,
tendo atingido nos últimos anos, inclusive, regiões que há não muito tempo pare-
ciam refratárias a ele. Um fenômeno de tal magnitude, portanto, não poderia deixar
de se intersecionar com outros campos da vida social. Assim, entre a diplomacia,
a guerra e o mundo dos grandes negócios, o futebol acabou por se estender para
muito além das quatro linhas, tornando-se um elemento que efetivamente impacta
a vida dos povos e influencia as relações internacionais.
Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra 53

Referências

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Janeiro: Mauad; FAPERJ, 2002.

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CABRAL, Sérgio et al. Club de Regatas Vasco da Gama: Livro Oficial do Centenário. Rio de
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DOUGAN, Andy. Futebol & guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada
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FOER, Franklin. Como o futebol explica o mundo: um olhar inesperado sobre a globalização. Rio
de Janeiro: Zahar, 2005.

GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: LP&M, 2004.

HAMANN, Eduarda Passarelli. A resolução imediata da Guerra do Futebol, entre Honduras e


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Relações Internacionais) – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

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NYE JUNIOR, Joseph. O paradoxo do poder americano. São Paulo: EdUNESP, 2002.

OLIVEIRA, Henrique Altemani de. Política externa brasileira. São Paulo: Saraiva, 2005.

PUJADAS MARTÍ, Xavier. Entre estadios y trincheras. El deporte y la Guerra Civil en Cataluña
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Sevilla: Universidad Pablo Olavide, 2005.

SALUN, Alfredo Oscar. Palestra Itália e Corinthians: Quinta Coluna ou Tudo Buona Gente?
2007. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

VASCONCELLOS, Douglas Wanderley de. Esporte, poder e relações internacionais. Brasília:


FUNAG, 2011.
54 Futebol na sala de aula

VIZENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. Relações internacionais do Brasil de Vargas a Lula. 3. ed.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.

Sugestões para o trabalho em sala de aula


Para assistir
A COPA. Direção de Khyentse Norbu. Butão. 1999. (93 min).

FUGA para a vitória. Direção de John Huston. EUA. 1981. (115 min).

O DIA em que o Brasil esteve aqui. Direção de Caíto Ortiz e João Dornelas. Brasil. 2005. (70
min).

Para navegar
LUDOPÉDIO. Disponível em: www.ludopedio.com.br.

Para ler mais


FREIXO, Adriano de. Futebol: o outro lado do jogo. São Paulo: Desatino, 2014.
Futebol e literatura no Brasil:
um caso crônico
Bernardo Buarque de Hollanda e
Marcelino Rodrigues da Silva

A modo de introdução

Quando se pensa nas relações entre o futebol e a literatura, geralmente


as atenções se voltam para a utilização do esporte como tema de obras literárias,
em um sentido mais estrito, seguindo a divisão canônica dos gêneros em contos,
romances e poemas. O assunto, por suposto, é de grande interesse, pois une dois
campos importantes de nossa vida sociocultural, especialmente no tocante à his-
tória brasileira do último século. Do encontro entre essas duas manifestações, a
literária e a esportiva, surgiram textos memoráveis, produzidos por autores da qua-
lidade e relevância de um Oswald de Andrade, de um João Cabral de Melo Neto ou
de um Carlos Drummond de Andrade, ícones das letras modernas no Brasil.
Mas sucede que, se recorrermos ao chamado cânone da literatura, valo-
rizado e legitimado pela crítica e pela academia, constatamos que o futebol não
recebeu a atenção que merecia, no que toca à amplitude e penetração de sua pre-
sença no cotidiano da sociedade brasileira de massas. Embora nos últimos tempos
56 Futebol na sala de aula

tenham surgido trabalhos ficcionais novos e muito interessantes, a grande maioria


dos autores consagrados na literatura dedicou-se de forma episódica e lateral ao
esporte. São raras as obras romanescas e em prosa de maior fôlego dedicadas ao
tema, tal como o desconhecido romance Flô, o goleiro melhor do mundo (1941),
de autoria do jornalista esportivo ítalo-paulista Thomaz Mazzoni (1900-1970), e o
premiado livro de contos Maracanã, adeus (1980), do escritor paraibano Edilberto
Coutinho (1933-1995).
Tal escassez pode sugerir que futebol e literatura não estabelecem rela-
ções relevantes na cultura brasileira, o que seria realmente estarrecedor, e talvez
pudesse ser explicado pelo caráter elitista que a atividade literária, ao contrário do
esporte, sempre teve em nosso país. Outra resposta para esse hiato, no entanto,
pode ser encontrada quando nos deslocamos do centro da tradição ficcional e pro-
curamos essas conexões na multiplicidade de discursos que a sociedade produz a
partir do futebol.
As crônicas e colunas esportivas nos jornais e revistas, os hinos e livros
sobre a história dos clubes, os cantos das torcidas, o cinema e até mesmo alguns traba-
lhos acadêmicos podem ser considerados como discursos híbridos, que se aproximam
do que convencionamos chamar literatura, isto é, modo de utilização da linguagem
que explora deliberadamente suas potencialidades e confere-lhes uma dimensão de
autonomia e ficcionalidade. Sem mencionar a possibilidade aventada, dentre outros,
pelo ensaísta José Miguel Wisnik, de assumir o próprio campo de jogo como lingua-
gem ou discurso, de aproximá-lo das artes e interpretá-lo, com base em categorias do
campo literário.
Nesse sentido, a obra wisnikiana inspira-se no exemplo do que fizeram
autores como o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), criador da céle-
bre distinção entre “futebol de poesia” e “futebol de prosa”, na esteira da perfor-
mance da Seleção Brasileira na Copa de 1970. Outro propositor de olhares originais
ao futebol foi o antropólogo carioca Roberto DaMatta, para quem a modalidade
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 57

esportiva em tela é uma “metáfora da vida”, uma dramatização ritualizada da vida


coletiva, com suas inversões, neutralizações e afirmações da estrutura social.
Considerando a finalidade didática e formadora a que se propõe este
livro, pretendemos neste capítulo explorar uma “zona livre”, como diria o antro-
pólogo argentino Eduardo Archetti (1943-2005), de intersecção discursiva entre
o futebol e a literatura. Para tal, vamos deter-nos em certo tipo de comunicação
textual sobre esporte, que encontrou no Brasil um campo notadamente fértil e que
se aclimatou e desenvolveu a ponto de constituir uma expressiva tradição cultural.
Trata-se da crônica esportiva, uma subárea, uma variante ou uma especialização da
crônica moderna veiculada em jornais de grande circulação impressa.
Tal gênero da comunicação periódica, de curta extensão, mas de forte
apelo dialógico entre cronista e leitor, seduziu tanto escritores consagrados, quanto
outros escribas anônimos, mas também interessantes e talentosos. A crônica enri-
queceu a vida esportiva da modernidade com uma tessitura escrita prenhe de
oralidade, parte dela influenciada pelas transmissões radiofônicas e, depois, pelas
mesas-redondas televisivas. Sua escrita, colada aos fatos, mas igualmente livre para
os voos da imaginação, aproximou os leitores ordinários da imprensa diária e tor-
cedores comuns do universo literário brasileiro.

Crônica esportiva: uma “ovelha negra” no jornalismo

Embora tenham aparecido algumas poucas vezes reunidas em coletâ-


neas e livros, foi, sobretudo, nos periódicos jornalísticos que as crônicas de futebol
encontraram o seu lugar de enunciação. Os jornais acolheram o gênero da crônica,
e a imprensa de massas forjou em seu bojo um público leitor ávido e potencial, por-
quanto a circulação e o alcance dos periódicos, das revistas e, mais recentemente,
dos sites de notícias, especializados ou não em esporte, são, via de regra, bem maio-
res do que o acesso aos livros. Todavia, em seus primórdios, a crônica moderna
58 Futebol na sala de aula

– não apenas a de futebol, mas toda aquela variedade de textos normalmente eti-
quetada sob tal rubrica – constitui uma espécie de ovelha negra, um texto peculiar e
bem diferente dos demais formatos publicados pelos veículos de difusão impressa.
Assim como na parte mais significativa das seções do jornal, a hierarquia
divisória do espaço de leitura nas páginas de esporte, princípio extensivo a revistas
e jornais especializados, diz respeito às matérias de cunho informativo. Esses textos
costumam ser marcados pelo ideal jornalístico de compromisso com a verdade e a
fidelidade aos fatos. No horizonte do jornalismo, encontramos diversos exemplos de
uma abordagem das notícias que se pretende à primeira vista neutra, transparente e
objetiva, imune às distorções provocadas pelo ponto de vista de quem escreve.
Uma objetividade que encena, por meio da terceira pessoa gramatical e
do tom impessoal, uma suposta transparência do real, como se este último não fosse
produto mediado pelo próprio discurso, elemento passível de construção e reprodu-
ção por excelência. Supostamente um reflexo translúcido da realidade, os meios de
comunicação operam com a suposição de que os fatos podem ser apresentados, sem
mediação, diante dos leitores, tal como eles realmente aconteceram.
Nas partes ditas “sérias” do jornal – política, economia, cidades, mundo
etc. –, encontramos também um outro tipo de texto. São os espaços dedicados à
opinião, tais como os editoriais, os artigos de fundo e as colunas de especialistas.
Aí, embora esteja presente a percepção de que se trata de um arrazoado de cunho
pessoal, de uma determinada interpretação e de uma leitura subjetiva dos fatos,
predomina a lógica argumentativa, ancorada por uma linguagem que, se admite
a presença do sujeito enunciador, acredita também nas primícias da objetividade.
Ressalte-se que não se trata da objetividade empírica da notícia, mas a
do mundo visto sob a égide da racionalidade, travestida de uma moldura racional.
Nas páginas da seção de esportes, tal gênero encontra correspondência na pena dos
comentadores que são colunistas, geralmente nomes de peso da cena esportiva, mui-
tos deles com visibilidade na TV ou no rádio. Personalidades de destaque, dedicam-
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 59

se a emitir opinião, a tecer comentários tático-técnico – dos times, das partidas, dos
campeonatos em pauta –, a analisar a estrutura administrativa das entidades e dos
personagens envolvidos etc. Textos que são, às vezes, cognominados de “crônicas”,
embora sejam de natureza bem diferente daqueles de que falaremos mais adiante.
Em ambos os tipos de escrita, a matéria informativa e o texto de opi-
nião, o futebol é, no mais das vezes, abordado de forma objetiva, puramente factual.
De modo geral, o jornalismo esportivo vê o futebol tão somente como um esporte,
uma prática esportiva, mensurada pelo desempenho e pelo resultado. Mesmo o
evidente caráter de espetáculo e entretenimento é explorado apenas em seus aspec-
tos mais concretos e tangíveis: a estrutura organizacional, financeira e econômica; a
vida e a carreira dos jogadores; as posturas dos técnicos e dirigentes; a participação
e o comportamento disruptivo das torcidas; a dinâmica de cobertura midiática dos
lances do jogo; as entrevistas com os atletas antes e depois das partidas, dentre
outros quesitos, mais ou menos aferíveis. Assim, a interpretação do futebol tende,
nesses textos, a se restringir ao universo ancorado nos jogos e na estrutura objeti-
vada do produto em tela.
Em contrapartida, a crônica é, por excelência, o gênero literário em que
a interpretação do futebol apresenta-se livre para digressões e apreciações menos
calcadas no realismo futebolístico. Se nos outros segmentos jornalísticos o trata-
mento dos acontecimentos desportivos é direto e objetivo, na crônica, a relação
entre o texto e o fato esportivo, que, aliás, coexiste no espaço da mesma página do
jornal, é entretecida por um outro tipo de abordagem comunicativa e de missão
informacional.
Ao tomar como tema os episódios, as peripécias e os comentários em
torno do dia a dia do futebol, a crônica trouxe consigo todo um conjunto de carac-
terísticas que já faziam dela um segmento de certa forma estranho à linguagem
mainstream de seu veículo. E são essas peculiaridades que lhe conferem um papel
diferenciado na interpretação do futebol.
60 Futebol na sala de aula

A crônica jornalística: breve história

Os historiadores da crônica jornalística registram seu aparecimento no


Brasil em meados do século XIX, por influência do jornalismo francês, nas seções
dos jornais denominadas folhetins. Estes circunscreviam-se, primeiro, a rodapés
da página inicial; depois, ao miolo do jornal; e, em seguida, a partes significati-
vas, até mesmo a cadernos inteiros, dedicados ao entretenimento. Em tais seções,
cabiam diversos tipos de textos: do ajuizamento sobre o noticiário “sério” – a Polí-
tica, a Economia, a Segurança – até ensinamento de receitas de cozinha ou lições
de beleza, passando pelo humor, crítica teatral, coluna social, crítica de moda, nar-
rativas de ficção, dentre outras.
Nessas seções de variedades, que eram bastante frequentadas pelos
nomes importantes do jornalismo e da literatura, surgiu o embrião do que conhe-
cemos hoje como crônica. Desde os seus primeiros tempos, por meio de nomes
do porte de Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis, a
crônica foi desenvolvendo uma série de singularidades e dando forma a uma sólida
tradição no jornalismo brasileiro. Uma tradição que inclui desde os já citados pre-
cursores até um João do Rio e um Lima Barreto, na virada para o século XX, e
depois expoentes do modernismo, a exemplo de Manuel Bandeira, Carlos Drum-
mond de Andrade, Rubem Braga e muitos outros.
A crônica é, de modo geral, definida como um gênero fronteiriço, cama-
leônico, a meio caminho entre o jornalismo e a literatura. Marcada pela brevidade
e pelas circunstâncias efêmeras de sua divulgação, ela dá um tratamento literário
aos fatos que alimentam o noticiário dos periódicos impressos, desde a ocorrência
diária mais importante até a vicissitude mais banal. Ela caracteriza-se, portanto,
por uma “referencialidade” temática, pois trata normalmente de acontecimentos
que são ou foram notícia ou então de pequenos episódios que foram vividos ou
presenciados pelo autor.
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 61

Qualquer assunto de somenos importância pode, ao revés, soar interes-


sante e servir como centelha para um cronista. A crônica pode, inclusive, enveredar
pela ficção, sem deixar de manter, no entanto, seu caráter referencial. Ela tem a liber-
dade de dispor de elementos fictícios em circunstâncias de ordem realista. Mas, com
frequência, trata-se de lançar luz sobre assuntos menores, fatos corriqueiros do dia a
dia, que não servem como destaque para escritos mais graves e nobres.
De acordo com Jorge de Sá, o princípio básico da crônica é o “registro
do circunstancial” (SÁ, 1997, p. 6). Desse princípio anódino de banalidade, pode-
se depreender o sentido do termo crônica, que traz em seu bojo a ideia de tempo e
de sucessão. O fito da crônica é ser o “registro do tempo vivido”, uma tentativa de
fixar em palavras aquilo que se esvai com o passar dos dias, o comezinho, a simples
e inapelável contingência.
A linguagem que caracteriza a crônica é, geralmente, a prosa livre, des-
compromissada, próxima da língua falada, a emular um “bate papo” entre o cro-
nista e o leitor. Entrementes, tal oralidade, eivada de coloquialismos, é de certa
forma uma simulação, haja vista a elaboração cuidadosa que se requer do artesão
da palavra. Mesmo aquele artífice das letras que prepara uma crônica de um dia
para o outro, premido pela pressão da publicação efêmera, a se esvair num lapso de
24 horas. A crônica assume, assim, uma dimensão estética, literária e, muitas vezes,
um certo tom de lirismo.
Ao invés da objetividade e da racionalidade, pois, a dicção do cronista
deixa vazar o subjetivismo, o impressionismo e a reconstrução do real sob a pers-
pectiva deformante do sujeito-autor. Registra-se ainda, como característica da
crônica, uma grande labilidade comunicacional e uma flexibilidade formal. Sob a
rubrica “crônica” cabem tanto a narração, que pode tender para a densidade do
conto ou para a dissipação do caso contado em ritmo de “conversa de botequim”,
quanto o comentário, sério ou satírico, com a descrição de tipos pitorescos ou
mesmo a prosa-lírica. Mesmo a prosa, marcante na pena de quase todo cronista, é
62 Futebol na sala de aula

uma regra que encontra exceção, por exemplo, nos poemas cronísticos do pernam-
bucano Olegário Mariano (1889-1958).
Convém assinalar que muitos desses traços da crônica são determina-
dos por seu veículo, o jornal de circulação diária. O próprio tamanho do texto é
limitado pela diagramação do impresso e por sua economia visual: o autor tem
um curto intervalo de tempo para escrever, o que impossibilita um trabalho mais
minucioso, a burilar a linguagem e moldurar um estilo de escrita. A referencia-
lidade temática tem de perquirir um assunto prosaico na própria experiência de
vida e buscar fontes no noticiário ordinário da cidade. Diante da premência por
um tema, a simplicidade da narrativa impõe-se à crônica, em alinhamento às
demandas e veleidades da prática mercantil de consumo e fruição do jornalismo.
Desta forma, mais do que impor freios às asas da escrita da crônica, a inserção
jornalística desses textos é que os define, fazendo com que eles existam e sejam
tais como são.1

A crônica no mundo esportivo

No início do século XX, quando o futebol dava os seus primeiros passos


no Brasil, a crônica já encontrava-se estabelecida na imprensa brasileira, especial-
mente no Rio de Janeiro, capital da República, que assistiu nessa época a um signi-
ficativo crescimento da atividade jornalística. A propósito, é bastante significativa
a coincidência cronológica entre o desenvolvimento da crônica e a introdução dos
esportes modernos no Brasil. Os dois, de alguma forma, refletem o aburguesa-
mento da vida da sociedade urbana brasileira do fim do século XIX e início do
século XX, em favor da transplantação de práticas culturais europeias e da consti-
tuição de espaços públicos em torno de campos, praças e jardins.

1 Sobre a crônica, suas características e sua história, consultamos Arrigucci Júnior (1987), Sá (1997) e Candido et al. (1992).
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 63

As páginas de entretenimento vinham sofrendo um processo de seg-


mentação, com o processo de rotinização de alguns conteúdos, que ocupavam
espaços mais ou menos fixos, tais como as seções de moda, a crítica teatral e literá-
ria, o colunismo social. Nesse âmbito, havia também as seções dedicadas aos espor-
tes. Antes de o futebol alcançar a supremacia na preferência popular, prepondera-
vam nas páginas de jornais como O Paiz, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, dentre
outros, notícias sobre o turfe, o remo, a pelota basca, o ciclismo e a patinação, para
ficar com algumas modalidades.
Naqueles periódicos, havia registros impessoais e meramente informa-
tivos, a descrever a realização de torneios e a comentar seus dados. Já os textos
cronísticos conferiam um acento mais subjetivo na abordagem dos costumes e dos
comportamentos da vida em sociedade, em especial aqueles referentes às compe-
tições esportivas. Quando, na virada do século XIX para o XX, o futebol é adotado
no país, tal prática aparenta ser apenas mais uma, dentre tantas, moda esportiva
assumida pelos jovens das classes abastadas.
Destarte, o advento da crônica sobre futebol na imprensa durante a Pri-
meira República (1889-1930) coincide com a própria implantação e popularização
desse esporte no Brasil. E, à medida que o futebol foi-se massificando e ganhando
adeptos, entre praticantes e espectadores, a crônica futebolística também avultou
em importância e passou a ocupar mais espaço no corpo dos periódicos de então
(PEDROSA, 1968, p. 5-11).
A emergência no início do século XX e o impulso logrado com a progres-
siva popularização do futebol, causa e consequência da sua difusão pela imprensa de
massas, fez com que a crônica futebolística desenvolvesse uma tradição original e
vibrante dentro do jornalismo esportivo brasileiro. Se, como afirma Antonio Can-
dido, a crônica “sob vários aspectos é um gênero brasileiro” (CANDIDO, 1992, p.
15), podemos dizer, da mesma forma, que o relato jornalístico acerca do futebol é
um subgênero tipicamente nacional. Mário Filho, na sua explicativa “Nota ao lei-
64 Futebol na sala de aula

tor”, constante do pórtico de abertura da primeira edição do livro O negro no futebol


brasileiro, aponta a década de 1910 como o momento em que surgem os primeiros
cronistas especializados no futebol: “Somente depois de 10 é que o futebol, transfor-
mado em assunto jornalístico, permitiu que apaixonados do chamado esporte bre-
tão, cada um com seu clube, escrevessem crônicas, às vezes assinadas com iniciais”
(RODRIGUES FILHO, 2003, s.p.).
As décadas de 1920 e 1930 marcam a consolidação do futebol como espe-
táculo profissional para consumo das massas urbanas. Tal processo culminou com a
profissionalização dos atletas, em meados dos anos de 1930. O decênio seguinte agu-
diza as transformações por que passou o crescimento da imprensa esportiva nacional.
Na esteira desse fenômeno, a crônica deita raízes e se firma como um modo subjetivo
e livre de vocalizar os acontecimentos extraordinários dos esportes, bem como as
rotinas esportivas.
Não cabe aqui empreender um levantamento minucioso da história da
crônica de futebol no Brasil, mas não poderíamos deixar de assinalar a importân-
cia que o gênero teve na conformação de uma linhagem sui generis de escritores
dedicados ao futebol. Nesse sentido, é válido destacar o trabalho e a trajetória do
jornalista Mário Rodrigues Filho (1908-1966). Repórter, redator, cronista, diretor
e proprietário de jornais, além de promotor de eventos esportivos, Mário Filho é,
de maneira inconteste, um dos principais nomes da imprensa brasileira associada
ao futebol.
Para muitos, esse jornalista é o mestre do gênero, de tal sorte que rece-
beu a alcunha de “inventor de multidões”. Mário Filho é reconhecido, pois, como o
criador da crônica esportiva moderna brasileira. Na direção das páginas de esporte
de A Manhã (1927), A Crítica (1928 e 1929) e O Globo (1931 a 1942), e na condição
de proprietário de O Mundo Esportivo (1931 e 1932) e do Jornal dos Sports (1936 a
1966), Mário Filho foi responsável por alavancar a imprensa esportiva brasileira. Para
tanto, ampliou de maneira extraordinária sua presença no layout do jornal, valorizou
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 65

imageticamente a figura dos jogadores, colocou-os no centro da cena, publicou entre-


vistas, biografias e fotorreportagens dos atletas em ação, ao invés de poses formais em
terno e gravata, até então usuais.
Em seus escritos, Mário Filho forjou uma linguagem saborosa para a
crônica de futebol e abalou os costumes linguísticos e beletristas de boa parte da
imprensa esportiva. Os clubes passaram a ser chamados por seus nomes popula-
res, o jargão futebolístico, com termos importados em inglês, foi abrasileirado e o
futebol ganhou um tratamento lírico, dramático e humorístico que até então era
inédito. Além do trabalho em periódicos, Mário Filho publicou uma série de livros
memorialísticos, dentre eles, o clássico O negro no futebol brasileiro, considerado
uma das obras-primas da literatura sobre o futebol brasileiro.
Uma visada retrospectiva permite afirmar que o auge do gênero se deu
entre as décadas de 1950 e de 1970. Aí encontra-se uma parte expressiva da produ-
ção dos mais celebrados de nossos cronistas de futebol. A título de exemplificação,
poderíamos aludir ao já citado Mário Filho, cuja produção se estende até meados da
década de 1960, quando de seu falecimento; a José Lins do Rego (1901-1957), cuja
coluna inicia-se nos idos dos anos 1940 e desdobra-se até fins dos anos 1950, quando
falece; e a Thomaz Mazzoni, que militava na crônica esportiva “a serviço da pátria”,
em A Gazeta Esportiva, de São Paulo.
A galeria de cronistas é vasta e seria plausível ainda arrolar vultos da
crônica, como Stanislaw Ponte Preta (1923-1968), Nelson Rodrigues (1912-1980),
João Saldanha (1917-1990) e Armando Nogueira (1927-2010), sem contar as crô-
nicas bissextas de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Uma gama de textos e de autores compõem a melhor tradição da crô-
nica futebolística brasileira. Nela, é possível constatar a presença de praticamente
todas aquelas características que definem o gênero cronístico. Do ponto de vista
temático, grande parte da plasticidade atribuída à crônica é limitada pela própria
especialização no futebol. Trata-se sempre do futebol, senão do próprio jogo, pelo
66 Futebol na sala de aula

menos da vida de seus personagens – jogadores, torcedores, técnicos, diretores –,


das cenas de bastidor e das instituições que os cercam, a exemplo de clubes, campe-
onatos, federações, confederações, dentre outras entidades.
O universo futebolístico faculta um leque amplo na escolha das situ-
ações a tematizar por um cronista. Todos os personagens – dos protagonistas
aos coadjuvantes – podem servir de acicate para um assunto da crônica diária
ou semanal. O espectro vai desde uma “sórdida pelada”, para falar com Nelson
Rodrigues, num campo de várzea em 1920, até a comoção das massas pela con-
quista do tricampeonato mundial em 1970, no México, clímax alcançado pela
Seleção Brasileira na história das Copas do Mundo.
No entanto, a referencialidade permanece intacta, pois fala-se sempre de
algo que ocorreu ou, pelo menos, que poderia ter ocorrido em determinadas circuns-
tâncias da vida futebolística real. E, se a crônica tende a escolher como pauta assuntos
sem relevância aparente, sem apelo literário, o futebol é um tema bem adequado a tal
propósito, uma vez que se trata tanto de jogo, quanto de espetáculo, estando desco-
nectado das esferas sérias, utilitárias ou funcionais da vida contemporânea.
A leveza e liberdade da linguagem, o coloquialismo, o tratamento esté-
tico e, às vezes, lírico ou dramático dos acontecimentos, assim como a variedade
formal da abordagem estão, pois, presentes na estilística da crônica de futebol.
Para ficar apenas nos autores do período histórico mencionado, pode-
ríamos arrolar, a título de exemplo: a prosa poética de Armando Nogueira, que
tenta recriar, por meio do artesanato da palavra, a fruição estética do espectador
de futebol; o relato de viagem de Stanislaw Ponte Preta, às vezes, heroico, às vezes,
satírico, sobre a “batalha do Bi”, isto é, a conquista do Mundial no Chile, em 1962;
os episódios pitorescos, em tom de conversa fiada e de informal camaradagem,
de João Saldanha; o fluxo da memória de Mário Filho, que reconstitui as primei-
ras décadas da história do futebol brasileiro, sempre com base em uma linguagem
despojada, simples, leve, convidativa à leitura do leitor-torcedor comum; a verve
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 67

polêmica, barroca e inflamada de Nelson Rodrigues, com tiradas que criam uma
atmosfera toda especial à ambiência polifônica dos estádios.

“ Pior para os fatos”...

Conforme vimos acima, o argumento proposto neste capítulo tenciona


apresentar algumas das potencialidades do encontro entre futebol e criação literá-
ria. É preciso, doravante, argumentar acerca da especificidade do discurso da crônica
no interior do processo de significação manifestado no universo futebolístico. Nesse
sentido, um certo aspecto do gênero cronístico torna-se especialmente relevante: a
relação ambígua estabelecida entre a crônica e a cadeia dos fatos que lhe serve de
ancoradouro. Se, por imposição de seu veículo, a crônica toma como tema fatos que
são ou foram extraídos de uma notícia jornalística, por outro, o cronista tem o poder
de escapar da pura factualidade imediatista no tratamento desses fatos, tal como se
espera, em princípio, da atividade do repórter, testemunha ocular do que se passou
nos gramados.
Essa característica da crônica foi diversas vezes assinalada pela crítica lite-
rária mais abalizada. Telê Ancona Lopez (IEB/USP), por exemplo, em seu texto “A
crônica de Mário de Andrade: impressões que historiam”, reconhece na crônica um
caráter de negação da “obrigação puramente jornalística de revelar objetividade”.
Para a autora, a crônica funcionaria como uma “brecha amena, sensível, de tom pes-
soal, individual”, “no meio do noticiário sério e pesado que marca o mundo de hoje”
(LOPEZ, 1992, p. 167 e 169).
Na mesma senda, o professor Davi Arrigucci Jr. (Letras-USP), no ensaio
“Fragmentos sobre a crônica”, afirma que, “como parte de um veículo como o jornal,
ela parece destinada à pura contingência, mas acaba travando com esta um arris-
cado duelo, de que às vezes, por mérito literário intrínseco, sai vitoriosa”. Esse duelo
é a tentativa de, por meio da linguagem, retirar o fato de sua moldura meramente
68 Futebol na sala de aula

contingencial e transformá-lo em “uma forma de conhecimento de meandros sutis


de nossa realidade e de nossa história” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p. 53).
Com efeito, ao se aproximar dos fatos corriqueiros, desvencilhada da
obrigação jornalística de informar e investida de todas as liberdades “literárias”, a
crônica tende a ser, mais do que a simples narração desses fatos, a sua interpreta-
ção, a sua transfiguração pelo olhar do cronista. Uma visada que retira os fatos de
sua posição meramente circunstancial e enquadra-os numa moldura de sentido.
Essa ideia está presente em diversos comentários críticos sobre o trabalho de cro-
nistas da qualidade de Machado de Assis, Rubem Braga, Mário de Andrade, Carlos
Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispec-
tor, dentre tantos outros praticantes da crônica.
Poderíamos mencionar, à guisa de exemplo, um trecho de Jorge de Sá,
em seu livro introdutório A crônica. Nele, a propósito de Rubem Braga, o autor
afirma que “o escritor não perde de vista que a sua situação particular só conta
para o leitor na medida em que funciona como metáfora de situações universais”
(SÁ, 1997, p. 14); ou, ademais, o comentário de Sonia Brayner sobre a crônica de
Machado de Assis, em que se diz que “Machado recolhe as notícias e [...] dá-lhes
um enquadramento de significação” e que “o narrador [...] procura sobrepor o enun-
ciado literário ao dado empírico, ‘desqualificando’ a transparência do simples fac-
tual”, numa luta “para dominar o puro factual da notícia” (BRAYNER, 1992, p. 413).
Ainda no que tange à crônica de Machado de Assis, Davi Arrigucci Jr. afirma que
“os pequenos fatos [...] adquirem uma ressonância alegórica que os resgata até certo
ponto da pura contingência, transformando-os em índices de um processo mais
amplo, como se fossem meios de se tatear sobre a verdade histórica” (ARRIGUCCI
JÚNIOR, 1987, p. 60).
O movimento análogo ocorre nos melhores momentos da crônica
futebolística. Nesse modo discursivo, negam-se a objetividade e a factualidade do
jornalismo esportivo. O escrevinhador da crônica vale-se de sua liberdade imagi-
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 69

nativa, que, na volição de suas preferências, lhe faculta a sondagem estética da lin-
guagem, o livre experimento das palavras e o tratamento subjetivo dos temas. Estes
transformam-se no lugar em que é possível uma hermenêutica mais produtiva do
jogo de futebol.
Da mesma forma que a crônica é, para a crítica Telê Ancona Lopez
(1992), a “brecha amena” do jornal, a crônica esportiva constitui o flanco interpre-
tativo pelo qual a linguagem pode desmontar a ancoragem referencial mais cris-
talina do jogo e da estrutura objetiva do espetáculo. A crônica de futebol retira-o
da abordagem positivista da notícia, que só vê seus aspectos estritamente espor-
tivos, para dar-lhe um “enquadramento de significação” ou, dito de outra forma,
um alcance projetivo e prospectivo, de cunho emocional e rememorativo. Assim,
a seu modo, um cronista trava também seu “duelo” com as circunstâncias e com a
exigência do factual pelo jornalismo ordinário. Por meio dela, o futebol deixa de
ser apenas mais uma modalidade esportiva, dentre outras, e adquire uma dimen-
são de representação, uma “ressonância alegórica”, tornando-se uma “metáfora de
situações universais”.
Por isso, asseveramos que a crônica desempenha um papel diferenciado
no processo de produção de sentidos ensejados pelo futebol. A crônica é o suporte
em que a interpretação do jogo pode abandonar seu universo referencial. É por
meio dela, mais do que de outros discursos, que o jogo adquire aquela “espessura
semântica” de que falamos anteriormente. Milton Pedrosa, na orelha da antológica
coletânea de crônicas de futebol intitulada O olho na bola, por ele organizada, des-
creve da seguinte forma o trabalho do cronista de futebol:
Às vezes, uma frase condensa a sabedoria adquirida em centenas de partidas,
resume o conhecimento de mil gramados e de mil craques. Para escrevê-la,
foi preciso ter visto Kuntz, Marcos de Mendonça ou Castilho pegar uma
bola, foi preciso ter-se extasiado diante um Domingos da Guia ou um Nil-
ton Santos, haver testemunhado um dos 1.329 gols de Friedenreich, ter visto
70 Futebol na sala de aula

Garrincha driblar, uma bicicleta do Diamante Negro, ter compreendido a


ânsia de perfeição de um Heleno de Freitas... Foi preciso ver um perna de
pau numa pelada ou Pelé na linha da seleção. Foi necessário ouvir o silvo do
apito na boca de Armando Marques, ter presenciado a torcida ululante de
um time popular ou ouvido o choro do torcedor ferido de morte. Foi preciso
ter visto mil feitos, festejado mil vitórias, sofrido mil derrotas. Foi preciso
ter-se tornado no homem que olha a bola com o fascínio do menino que
espia o pássaro encantado. Foi preciso aprender a amar o jogo e a sentir o
gol [...] dando-lhe [ao leitor] ciência do que testemunhou, do que sentiu, do
que sofreu, do que o emocionou e o alegrou – enquanto tinha o olho na bola
(PEDROSA, 1968, s.p.).

Tal qual o sacerdote para o ritual, o cronista de futebol é, para o jogo-espe-


táculo, o intérprete privilegiado, iniciado e versado em seus segredos, capaz de sondar
seu lado “misterioso” e “patético”, numa palavra, capaz de desvendar a polissemia de
seus sentidos.
Nas crônicas do dramaturgo Nelson Rodrigues, diga-se de passagem,
o futebol se transforma num teatro. Nessa arena a céu aberto, o que se procura “é
o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão”, como dizia o próprio cronista,
citando quase literalmente a definição de Aristóteles para o gênero dramático. O
que lhe interessava não era a bola, mas “o ser humano por trás da bola” (RODRI-
GUES, 1993, p. 104). Sem embargo, cabe ao cronista, espécie de homo ludens, antí-
poda do mundo utilitarista contemporâneo, “pentear ou desgrenhar o aconteci-
mento, e, de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar” (RODRIGUES,
1993, p. 104). Afinal, se os fatos lhe contradissessem, concluía Nelson com uma
tirada: “pior para os fatos”.
Já nas crônicas de Mário Filho – muitas delas reunidas nos livros que
compõem sua importante tetralogia publicada nos anos 1940, composta por Copa
Rio Branco 32 (1943), Histórias do Flamengo (1946), O negro no futebol brasileiro
(1947, reeditado com acréscimos em 1964) e O romance do foot-ball (1949) –, a
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 71

arte da palavra parece remeter à Odisseia, de Homero, tal como seu irmão Nelson
gostava de dizer. Nessa ponte entre a poesia épica antiga e as narrativas do fute-
bol contemporâneo, o cronista esportivo avulta com o mesmo desejo insaciável de
recuperação do passado, quer seja o de um Marcel Proust (1871-1922), quer seja o
de um Pedro Nava (1903-1984).
Ou, por outra, talvez a remissão mais apropriada seja ao arquétipo do nar-
rador tradicional, conforme a clássica descrição de Walter Benjamin (1892-1940),
com sua função de conectar a vida de cada um à teia da narração oral e da memória
popular, para lidar, ainda que de modo precário, com a multiplicidade e a opacidade
do vivido. Narração e interpretação diluem-se uma na outra, mantendo um equilí-
brio instável entre unidade e diversidade, interpenetram-se, capazes de capturar o
leitor por diferentes entradas e estabelecer, por meio delas, diferentes linhas de fuga.
Ao lado desses, muitos escritores-jornalistas participaram dessa obra
coletiva de grandes proporções que é a memória e a tradição da história do futebol
brasileiro no século XX. Junto deles, outros tantos radialistas, chargistas, humo-
ristas, artistas plásticos, cineastas. Esses, de alguma forma, contribuíram para os
deslocamentos de sentido que moldaram essa linguagem e a mantiveram-na em
permanente e mutável conexão com a vida. Desde o humor das revistas de varieda-
des e das acirradas polêmicas jornalísticas das primeiras décadas do século XX, tal
como a que opôs Coelho Neto e Lima Barreto, em 1919, passando por nomes como
José Lins do Rego, em suas diatribes de futebol com Oswald de Andrade.
Há mais, muito mais: Sandro Moreyra, João Saldanha, Stanislaw Ponte
Preta, Paulo Mendes Campos e inúmeros outros, muitos dos quais conhecidos ape-
nas local e regionalmente, até chegar à multiplicidade contemporânea, em que o
literário se dissemina pelo jornalismo de TV, pela publicidade e pela internet. Se
nos fosse dado permanecer no resiliente jornal impresso, poderíamos acrescentar
ainda nomes da crônica esportiva atual, como Tostão e Juca Kfouri, Luís Fernando
Veríssimo e Ugo Giorgetti.
72 Futebol na sala de aula

São textos desse tipo que dão ao futebol suas leituras mais abrangentes,
críticas e radicais, e, por isso, são publicações que carregam maior potencial de ren-
dimento analítico. Seria plausível, até mesmo, identificar ao literário esse vetor de
deslocamento dos sentidos do futebol. Bastaria, para tanto, aproximar dele todos
os momentos em que o discurso sobre o jogo reconhece o próprio jogo como dis-
curso e coloca-o na trama sem limites da linguagem, da narrativa, da memória e
da ficção.
Eis, pois, a vitalidade, a história e a atualidade da crônica de futebol.
Para concluir, vale ressaltar que, segundo esposamos aqui, a crônica constitui
um retrato em negativo da almejada objetividade do jornalismo esportivo. A
contrapelo da hegemonia discursiva, instila-se nos interstícios do mesmo jor-
nal e engendra uma maneira diversa de perceber o jogo e suas circunstâncias. O
cronista usufrui de sua condição literária e se arvora a condição de, mediante o
discurso impresso, contornar o universo referencial mais imediato da partida e
dos aspectos técnicos do espetáculo, postulando e arriscando interpretações mais
ousadas do mundo do futebol.
A crônica futebolística retira o esporte da redoma objetivável, mensurá-
vel e imparcial dependente da notícia acontecida, que só enxerga dados, números,
tabelas e informações estritamente esportivos. Em seu lugar, dá-lhe um enquadra-
mento novo de significação, a franquear o anedótico, o confessional, o fabulativo,
o paródico, o humorístico e o sublime. Consoante passagens de Nelson Rodrigues,
em crônicas magistrais do livro A pátria em chuteiras: “o fato em si mesmo vale
pouco ou nada”, “o que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação”, e os que
não o percebem são os “idiotas da objetividade”.
Por isso, concluímos com a licença poética, segundo a qual o papel do
cronista é “retocar o fato, transfigurá-lo, dramatizá-lo”. Só assim, “recheado de poe-
sia, entupido de rimas”, ele ganharia “em ímpeto lírico, em violência dramática”, e
daria “à estúpida e chata realidade um sopro de fantasia”.
Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico 73

Referências

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Futebol e ensino:
ditaduras e autoritarismo no Brasil
e na Argentina (1970-1978)
Lívia Gonçalves Magalhães

Introdução
[…] os golpes de Estado vêm da sociedade e vão até ela;
a sociedade não é o gênio do mal que o gesta, muito menos sua vítima
indefesa.
(CALVEIRO, 2006, p. 10)

O passado recente da América do Sul é marcado pelas experiências


autoritárias de ditaduras, caracterizadas principalmente por sistemáticas violações
de direitos humanos, repressão, tortura e desaparecimento de pessoas. Um tema,
sem dúvida, de grande sensibilidade, mas que também sempre foi marcado por
disputas de narrativas e memórias. E não somente entre os que reivindicam uma
visão positiva do passado em oposição à visão crítica que – felizmente – ainda hoje
permanece majoritária na sociedade. Mesmo entre os que compartem a oposição e
denúncia à violência dos regimes aparecem confrontos e desentendimentos.
76 Futebol na sala de aula

Como lidar com um passado ainda tão presente? Como enfrentar em


sala de aula questões que ainda são debatidas tão intensamente, pesquisas e tra-
balhos em desenvolvimento da chamada História do Tempo Presente? Como se
estuda e se debate respeitando a sensibilidade, a dor, as feridas ainda não cicatriza-
das? Com certeza, é um desafio para professores e educadores encontrar um cami-
nho, um canal de diálogo que permita ultrapassar essas dificuldades.
O próprio termo História do Tempo Presente ainda é motivo de discus-
são entre pesquisadores, já que, para alguns, não seria possível estudar um passado
ainda “presente”, tão próximo, sem um mínimo de distância que supostamente o
historiador deve ter com seu tema. Porém, como veremos nestas páginas, enten-
demos que não apenas é possível enfrentar os desafios de pesquisa e ensino do
passado recente, mas é uma necessidade social.1
A proposta deste capítulo é pensar em alternativas para superar os desa-
fios mencionados e transformar a sala de aula não apenas em um espaço de aprendi-
zagem sobre o passado recente, mas de acolhimento, debate e respeito à memória e
às sensibilidades envolvidas. No caso das ditaduras sul-americanas, uma abordagem
que mostrou-se eficiente em minha experiência foi a metodologia da comparação.
A História Comparada é, também, uma proposta polêmica entre pes-
quisadores. Para o francês Marc Bloch, um dos primeiros pesquisadores que pro-
curou pensar uma metodologia comparativa de análise no campo historiográfico, é
interessante considerar sociedades próximas, seja no tempo, no espaço ou ambos,
que, de alguma maneira, se influenciaram reciprocamente. E, para Maria Ligia
Coelho Prado, para Bloch “apenas a abordagem da história comparada poderia
indicar a existência de um problema diante de fenômenos aceitos como naturais
e que aparentavam não necessitar de explicação” (PRADO, 2005, p. 18). É nesse
sentido que nos interessa propor a comparação.

1 Além disso, consideramos aqui que é impossível a total isenção ou o afastamento do tema por parte do pesquisador, independentemente
de ser ou não o objeto em questão parte da História do Tempo Presente. Mas, nesses casos, tal afastamento se torna ainda mais complicado, uma
vez que pesquisa e ensino estão diretamente relacionados com a experiência e a vivência cotidiana.
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 77

Futebol e autoritarismo

Durante muitos anos, a memória que permaneceu sobre a associação


entre esporte e poder foi a do uso negativo do desporto a favor de interesses polí-
ticos. De fato, a abordagem mais comum feita sobre a relação entre esporte e polí-
tica é relacionada ao seu uso por governos autoritários como forma de legitima-
ção, propaganda política e consenso. Segundo Douglas Vasconcellos, o esporte de
forma geral “serviu de móvel, mote e meio de propagandas nacionalistas, de teatro
de peças políticas, de palanque de discursos populistas e de plataforma de pre-
tendido domínio ideológico” (VASCONCELLOS, 2011, p. 7). Foi assim nos casos
Copa do Mundo da Itália em 1934 e dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. Esses
dois eventos tornaram-se referência nas análises do papel do esporte na política, ao
mesmo tempo em que cultivaram uma imagem negativa dessa relação.
Ao trazer a questão para a América Latina, o papel que o futebol repre-
senta nessas sociedades também foi associado ao período dos últimos regimes
autoritários das décadas de 1960 e 1970. Nesse sentido, a Copa do Mundo de 1978,
realizada na Argentina sob a ditadura civil-miliar (1976-1983), criou a memória da
“Copa da ditadura”, mistificando que aquela foi uma conquista do próprio regime,
ignorando outras variáveis, atores e realidades que viveram aquele evento (MAGA-
LHÃES, 2014). No caso da Copa de 1970, realizada no México e vencida pelo Bra-
sil, a associação mais comum é pensá-la como uma ferramenta de propaganda polí-
tica oficial, reproduzindo o senso comum do futebol como alienante, ópio do povo.
Para questionar a visão mais comum do uso do futebol como elemento
a favor das ditaduras, o caso do Uruguai é emblemático. Entre 1980 e 1981, o país
organizou a competição Copa de Ouro dos Campeões Mundiais, conhecida como
Mundialito, apenas dois anos após a organização da Copa Masculina de Futebol da
Fifa em 1978, na Argentina. Organizado oficialmente pela Fifa como comemoração
dos 50 anos da primeira Copa do Mundo, que teve lugar no próprio país, o evento
78 Futebol na sala de aula

reuniu os principais campeões mundiais até então (com exceção da Inglaterra, que
foi substituída pela Holanda), e teve uma importante repercussão internacional.
Para o governo civil-militar uruguaio foi uma oportunidade de utilizar um evento
popular como canal de diálogo e propaganda oficial. Assim como nos casos de Bra-
sil e Argentina nas Copas de 1970 e 1978, respectivamente, o Mundialito repre-
sentou para o Uruguai o momento da chegada da televisão em cores, o que teve
um grande peso no discurso oficial. A seleção anfitriã conquistou a competição,
vencendo na final os representantes brasileiros, e pareceria que a ditadura uruguaia
também celebraria seu triunfo esportivo.2
Entretanto, o Mundialito tornou-se um caso do futebol como espaço de
manifestações contrárias ao governo. O torneio foi realizado poucos meses após
o plebiscito convocado pelo próprio regime e no qual a ditadura foi derrotada.3
Na final, após a vitória da seleção uruguaia, nas arquibancadas a torcida gritava
eufórica: “Se va a acabar, se va a acabar, la dictadura militar”, misturando a ale-
gria futebolística com a vitória nas urnas. Ironicamente, a memória social durante
muito tempo apagou esse evento do mundo esportivo. Sempre seletiva, a memó-
ria da associação negativa entre esporte e ditadura parece não ter lugar para casos
como o uruguaio. Permanece a ideia de que o futebol e os esportes, de uma maneira
geral, são usados, manipulados pelos regimes autoritários. Da mesma forma, os
torcedores que participam, supostamente sem o conhecimento da realidade em
que vivem, o conhecido “nós não sabíamos”. Porém atitudes como a da torcida uru-
guaia naquela final ajudam a problematizar essas memórias.
Veremos que os estudos recentes ampliam as interpretações e vivências
das experiências de euforia esportiva. E que além de uma perspectiva interessante
para estudar os regimes autoritários comparativamente, as Copas do Mundo aqui

2 Sobre o tema, há o interessante documentário: MUNDIALITO: o filme. Direção: Sebastian Bednarik. Uruguai/Brasil. 2009. (75 min).
3 O plebiscito ocorreu no dia 30 de novembro de 1980, dois meses antes do início do torneio. A votação decidiria a reforma constitucional
prevista no Decreto nº 464/1973, de 27 de junho de 1973, e procurava legitimar no poder o governo civil-militar. Com a maioria de votos para a
opção “Não”, os uruguaios demonstraram sua insatisfação com o regime, já que o plebiscito foi interpretado pela população como uma forma de
legitimá-lo.
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 79

destacadas também nos permitem questionar as visões simplistas de uma socie-


dade passiva quando nos referimos ao espaço esportivo.

Brasil e Argentina: as copas e as ditaduras

As Copas do Mundo de Futebol não são apenas um evento esportivo


internacional. Para muitos países, como Brasil e Argentina, esse evento representa
um momento de intensa manifestação de suas identidades nacionais, e também um
espaço de tensões políticas. Desde sua primeira edição no Uruguai em 1930, tais
eventos foram realizados sob a gravitação do contexto político de seu momento.
Portanto, a utilização desse evento por parte dos governos civis-militares de Brasil
e Argentina não foi uma novidade, nem a última das experiências nesse aspecto.
O evento organizado pela Fifa é o momento máximo de expressão do
nacionalismo por meio do futebol, pois é quando as nações são ratificadas em cada
seleção nacional:
Esta metonímia [considerar a seleção de futebol pela nação que repre-
senta], muitas vezes serviu como arma ideológica a serviço de uma outra
metonímia, mais perversa – aquela em que um governo se apresenta
como nação [...] símbolos nacionais de diferentes ordens se fundem, ban-
deiras, hinos, cada elemento tomado peça em uma unívoca ideologia da
superioridade nacional sobre o resto do mundo. O futebol entra como
o fiel da balança, o resultado estampado no placar é a prova numérica,
quantitativa, irrefutável da superioridade da Pátria amada, salve, salve,
sobre o restante da humanidade (GASTALDO; GUEDES, 2006, p. 8).

Durante a ditadura brasileira (1964-1985) ocorreram cinco Copas do


Mundo –1966, 1970, 1974, 1978 e 1982 –, enquanto, no caso da última ditadura
militar argentina (1976-1983), foram dois eventos – 1978 e 1982. Porém foram nas
Copas de 1970 para o Brasil e 1978 para a Argentina que se constatou o fenômeno
referido acima. Não se consideram aqui as Copas do Mundo como parte de um
80 Futebol na sala de aula

projeto nacional das ditaduras citadas, mas, sim, um momento específico em que os
governos de ambos os países utilizaram um elemento típico do imaginário nacional
de suas sociedades em um sentido político. Essa conjuntura permite também anali-
sar e comparar as diferentes posições de determinados setores, que se apuseram aos
regimes no Brasil e na Argentina, em relação ao evento, e questionar se foi possível
ou não para as ditaduras renovarem o consenso social com as competições.
As Copas do Mundo de 1970 e 1978 tiveram importância singular para
Brasil e Argentina, respectivamente. A de 1970, para o Brasil, significou o tricam-
peonato mundial. A Seleção Canarinho era a primeira na História a realizar tal
feito e o fazia, segundo alguns, com a melhor seleção de todos os tempos. Para a
Argentina, tratava-se, antes de mais nada, da realização do evento em seu próprio
país e, nesse sentido, das possibilidades de mostrar ao mundo sua capacidade de
fazê-lo, e bem. O campeonato tornou-se o primeiro conquistado pelo selecionado
argentino: a consagração mundial “em casa”; o triunfo nacional em momento de
grandes tensões políticas e sociais.
Ambos os países, sob liderança das Forças Armadas nacionais, cons-
truíam regimes pautados pela Doutrina de Segurança Nacional, fortemente orien-
tados pelas noções de guerra interna e de necessidade de combate a um suposto
“inimigo interno”. No restante, como bem indicou Marc Bloch em sua proposta de
metodologia comparada, há de se destacar as diferenças. Não apenas aquelas exis-
tentes entre as duas ditaduras – conquanto houvesse também semelhanças –, mas,
sobretudo, os diferentes contextos que marcaram as respectivas vitórias esportivas.
Para o Brasil, a primeira metade da década de 1970 significou um
período repleto de ambivalências para a ditadura civil-militar: nesse momento,
intensificaram-se as ações de grupos de guerrilha urbana e rural contra o regime.
Simultaneamente, os órgãos de repressão, informação e propaganda se aperfei-
çoavam, e a caça aos “inimigos do regime” acelerava-se, ganhando contornos
profissionais e massacrando, rapidamente, as oposições armadas. Ao mesmo
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 81

tempo, o país conheceu um período de expressivo crescimento econômico – o


chamado milagre brasileiro –, quando amplos setores da economia nacional cres-
ciam a índices bastante elevados e o país modernizava-se de maneira acelerada.
Anos de chumbo, para aqueles apanhados pelas mãos duras da repressão; anos de
ouro para aqueles que vislumbravam perspectivas de ascensão social e econômica,
imersos em um ambiente de intenso apelo ufanista (CORDEIRO, 2009). Aqui, a
conquista do tricampeonato de futebol significou a ampliação sem precedentes de
um clima de euforia nacionalista e desenvolvimentista vividos em um momento
em que o milagre começava a apresentar seus primeiros efeitos.
O caso da ditadura argentina é bastante diferente. Em 1978, quando teve
lugar a Copa do Mundo de Futebol, havia dois anos que ocorrera o golpe que depôs
da presidência María Estela Martínez de Perón. De acordo com Daniel Lvovich, o
golpe de 1976 representou um momento em que as lideranças civis e militares do país
estavam de pleno acordo quanto às medidas que deveriam ser tomadas. Tratava-se
de “destruir as bases da desordem”, de “liquidar a ‘Argentina maldita’” (LVOVICH,
2009, p. 280). A ditadura não pretendia apenas uma intervenção, mas uma total rees-
truturação nacional e institucional profunda, que passava pela eliminação do que
era considerada “subversão de esquerda”. Era esse processo de “refundação nacio-
nal” – assentado em políticas de Estado baseadas no desaparecimento dos opositores,
transformados, então, em “inimigos” –, que estava em curso quando da realização da
Copa em 1978. Assim, muito embora naquele ano o regime já considerasse vencida
“a guerra contra a subversão de esquerda”, o país enfrentava intensa campanha de
denúncia de violações dos direitos humanos no exterior. Nesse sentido, a ditadura
viu na possibilidade de realizar o maior evento do futebol mundial uma oportunidade
para melhorar a imagem do país, interna e externamente (MAGALHÃES, 2014).
Diferentemente da Argentina, o Brasil não teve de enfrentar nenhum
tipo de oposição ou crítica pela vitória, e é importante considerar o fato de que o
evento não foi realizado no país. No caso argentino, a realização da Copa de 1978
82 Futebol na sala de aula

em casa foi a principal razão das críticas externas, que incluíram a organização de
um Comitê de Boicote (Coba, com sede em Paris, na França), e a participação da
seleção nacional não foi questionada. Também não houve no caso brasileiro na
época da Copa de o mesmo tipo de mobilização internacional em função das vio-
lações aos direitos humanos que no caso argentino. No momento da Copa de 1970,
as preocupações internacionais estavam relacionadas à ameaça do terrorismo
palestino à seleção de Israel. Portanto, o uso político do evento pelo governo brasi-
leiro não foi tão discutido ou questionado como ocorreu com o evento de 1978 e o
regime militar argentino.
De fato, na lógica dos líderes militares de ambos os países, o êxito na
Copa do Mundo ultrapassava o limite esportivo, e por meio da propaganda polí-
tica, os próprios líderes do regime ficavam associados a essa vitória. A comoção
nacional foi intensa nos dois países, e a vitória no futebol foi associada ao modelo
de sociedade e nação imposto pelos militares.
Porém o uso político pelos regimes não é a única leitura que podemos
fazer dessas experiências. No contexto das duas copas, a oposição a ambos os gover-
nos estava bastante ativa, e os eventos nos permitem perceber conflitos e posições
distintas que apareceram em diversos setores sociais que tradicionalmente se opu-
nham aos respectivos governos civis-militares. Para alguns, apoiar o evento era tam-
bém apoiar o governo, que o utilizava a seu favor. Para outros, ao contrário, era uma
possibilidade de denunciar o autoritarismo e a repressão. Desta forma, os dois even-
tos foram marcados não apenas por seu uso político pelos governos autoritários,
mas também pelos conflitos que geraram entre a oposição.

O futebol é do povo!

Independentemente de suas posições políticas e seus lugares sociais,


a maioria dos brasileiros e dos argentinos compartilhava (e ainda compartilha) a
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 83

paixão pelo futebol. A ânsia por mais um título no Brasil, e o primeiro na Argen-
tina, era anterior à questão política em que ambos estavam envolvidos, e a sonhada
conquista coincidiu com o momento de militância em que essas pessoas estavam
envolvidas. Logo, era praticamente impossível não discutir e problematizar o signi-
ficado tanto das vitórias, quanto do lugar do torcedor.
Para os integrantes do Coba, a campanha do boicote internacional não
conseguiu impedir a realização do evento na Argentina, mas foi positiva por ter
incluído a situação de denúncias ao país na agenda internacional, incluindo grupos
que já se organizavam internamente. O caso mais emblemático foi o das Mães da
Praça de Maio, que mantiveram sua manifestação semanal na praça do governo
mesmo com as visitas internacionais. Alguns jornalistas e atletas, informados pelas
denúncias que eram feitas no exterior, foram assistir as essas marchas, o que signi-
ficou para as integrantes da associação a primeira oportunidade de denúncia inter-
nacional da situação que viviam.
No caso brasileiro, Eduardo Roberto da Silva, por exemplo, percebeu que
a Copa do México era um bom momento para denunciar as ações do governo para
capitalizar a vitória a seu favor:
Eu, particularmente – não com a turma da faculdade, mas com os colegas
que eu tinha do ensino médio – a gente participou, não vou dizer de um
movimento, mas tinha um esquema assim, de panfletagem, denunciando o
governo na utilização dos feitos do esporte nacional para, como eu te disse,
encobrir certas coisas do regime (SILVA, 27 jul. 2012).

Nesse sentido, a denúncia envolvia o uso por parte do regime, e não uma
crítica ou reflexão sobre o papel do esporte na sociedade. Questionado sobre se
essa panfletagem foi durante a Copa, Eduardo Silva negou com firmeza: “Durante
a Copa, a gente tava torcendo!” A resposta do entrevistado é exemplo do posicio-
namento dos que defendiam o direito de torcer: era preciso separar o futebol do uso
que se fazia dele.
84 Futebol na sala de aula

Quem também concorda com essa visão é o jornalista esportivo Juca


Kfouri. Na época da Copa de 1970, Kfouri estava cursando o primeiro ano da
Faculdade de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, mas já era repórter
da revista Placar. O jornalista relembra como foram as tensões em sala de aula em
relação a torcer ou não pela seleção na copa:
Numa bela noite, numa segunda-feira, nunca me esqueço, o professor de
Sociologia I, [...] marca uma prova para quarta-feira. Eu levanto a mão e digo:
‘Professor, tem Brasil e Romênia, professor’. E a minha classe vaia. Vivíamos
aquela situação: ‘Cada gol do Brasil atrasa em dez anos a revolução brasileira’
(KFOURI, 19 jul. 2011).

Naquele tempo, segundo informa o próprio entrevistado, Kfouri era


listado como apoio da Ação Libertadora Nacional (ALN), mas não atuava na orga-
nização. Seus colegas da aula de Sociologia eram o que ele mesmo indicou como
determinado setor da esquerda brasileira. Numa autocrítica sobre seus próprios
preconceitos em relação a essa “esquerda acadêmica”, o jornalista relembra que,
anos depois, reencontrou o mesmo professor, que então o questionou por sua pró-
pria postura dentro da faculdade. Segundo ele, o próprio Kfouri não falava de fute-
bol naquele espaço, que entendia não ser o lugar para esse tipo de relação, ou seja,
perpetuando ele também a ideia de dissociação entre intelectuais e o futebol.
Durante a primeira partida do Brasil na Copa, contra a Tchecoslováquia,
Kfouri recebeu uma ligação informando que seu primo havia se suicidado em um
quarto de hotel.4 Transtornado, o jornalista confessa que, por um momento, ques-
tionou as manifestações de euforia enquanto ocorriam torturas, prisões e desapa-
recimentos nos porões da ditadura. Ou seja, por mais que sua postura fosse crítica
em relação ao tradicional futebol como alienação das massas, o próprio jornalista
também se encontrou em algum momento frente a este tipo de questionamento:

4 Ao longo da entrevista, Juca Kfouri não citou o nome de seu primo, porém, afirmou que, na verdade, a morte havia sido por torturas, e o
corpo deixado em um hotel na capital paulista simulando o suicídio.
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 85

No mesmo tempo que eu prometi que eu ia matar o Fleury, eu disse que


não ia confundir as coisas. [...] Não vou deixar a ditadura levar até aquilo
que eu tenho de mais íntimo [...]. Nós vamos permitir que a ditadura nos
usurpe até isso, até as coisas mais recônditas que a gente tem? Não pode
mais curti-las porque identifica com a ditadura? (KFOURI, 19 jul. 2011).

O professor e pesquisador Daniel Aarão Reis Filho também ponderou


sobre a dificuldade de tomar uma posição neste debate: “Não era tão fácil tentar
dissociar” (REIS FILHO, 07 ago. 2011). Afinal, por mais que alguns tivessem claro
que não só o futebol, mas momentos de comemoração e manifestações populares
em geral eram anteriores à própria ditadura e parte da cultura do país, e, portanto,
era de se esperar que na procura por algum tipo de consenso ou construção de
uma imagem positiva do regime, este utilizasse tais momentos e procurasse criar
tal associação. A questão era, portanto, como separar as paixões nacionais de um
determinado projeto que também entendia que estas eram parte de seu discurso.
Recluso na prisão em Ilha Grande, no estado do Rio de Janeiro,
durante a primeira fase da Copa de 1970, Daniel Aarão Reis relembra que os
presos solicitaram ao diretor que lhes fosse disponibilizada uma televisão para
acompanhar os jogos da seleção. Nesse ambiente, surgia uma questão que era
comum em diversos círculos sociais: torcer pela seleção é torcer pela ditadura?
Ele comenta que a questão não era tão simples, que envolvia posições diversas:
“Em relação à Copa havia muitas contradições entre os presos. Vários sustenta-
vam que nós deveríamos ter uma posição contra, torcer contra a seleção do Bra-
sil. Porque eles viam, com certa razão, que a ditadura poderia capitalizar a vitória
da seleção” (REIS FILHO, 07 ago. 2011).
A experiência de Reis é interessante para pensar tais contradições e
discussões entre os indivíduos das organizações armadas. Segundo ele próprio, as
posições nem sempre eram tão claras. Alguns não viveram o momento festivo tam-
bém pela questão do trauma recente envolvendo suas prisões e torturas.
86 Futebol na sala de aula

No Brasil a questão do torcer ou não torcer atravessou todas as organi-


zações, porém sem que estas emitissem uma posição oficial frente ao evento. As dis-
cussões existiam, mas eram individuais, cada um tinha seus argumentos e optou por
como encararia aquele momento. Diferentemente, as organizações armadas argen-
tinas emitiram oficialmente suas posições. A pressão internacional que envolvia a
questão da sede na Argentina foi um fator importante para isso. Afinal, a organiza-
ção e a realização do campeonato pela ditadura passaram a ser tão questionadas que
alguns realmente acreditavam na possibilidade de mudança da sede.
A atenção internacional que a Argentina recebeu foi vista como uma
oportunidade para realizar diversos trabalhos de denúncia da situação do país. Para
a organização Montoneros, era hora de:
prepararse para el Mundial, para que en las canchas se cante la Marcha
Peronista; para juntarse en las canchas y pedir que abran las puertas en el
segundo tiempo; para contarle a cuanto extranjero tengamos cerca lo que
pensamos de Videla y Martínez de Hoz; para aprovechar el margen de
legalidad y movilizarse por aumentos salariales, por la liberación de pre-
sos e aparición de los secuestrados, por la normalización sindical, para que
el Mundial no sea un gran operativo de propaganda gorila sino un gran
triunfo popular, en la política y en el fútbol. ¡Argentina campeón, Videla al
paredón! (MOVIMIENTO, 1978).

E a Copa foi também um momento de esperança tanto de alguma pos-


sível ação contra o governo, quanto de encontrar nas transmissões algum compa-
nheiro clandestino nas plateias dos estádios. No exílio, a maioria afirma que acom-
panhou e torceu pela seleção e, claro, que celebrou a vitória nas ruas. No México,
alguns foram comemorar na frente da Embaixada da Argentina, gritando frases de
efeito contra os líderes militares. De uma forma geral, para os que eram a favor da
Copa, o futebol era entendido como algo em uma esfera separada da política. Para os
que se opunham, exatamente por seu peso político, não podia ser deixado nas mãos
do regime, e era uma oportunidade de manifestações e denúncias. E para outros,
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 87

principalmente membros de grupos peronistas, o futebol era, de fato, um espaço


de resistência, e a visão do povo manipulado pelo esporte era elitista e equivocada:
[…] y yo plateé que no estaba de acuerdo con este posicionamiento que
planteaba que todo el pueblo es un pueblo de imbéciles, que se ganaba la
Argentina campeón del Mundial todos se iban a olvidar de lo que pasaba,
que iban a salir a gritar ‘Viva Videla’, y que la instrumentación que hacia
Videla, y que por supuesto hacia una instrumentación maléfica del Mundial
de Fútbol era una historia. Y que había una historia popular que así como
había otros países que habían tenido su Mundial de Fútbol... el pueblo argen-
tino no iba a quedar atrapado ni engranado por si Kemps hiciese un gol o no
hiciese un gol. O sea, que mi posición fue de esta perspectiva, reconociendo
lo que hacía la Junta, de que había que tomar el Mundial de Fútbol sin tanto
dramatismo, y si ganaba o perdía Argentina la gente iba a salir a la calle, iba
a saltar de alegría y después iba a ir a su casa y va a seguir pensando que era
una época de mierda (CASULLO, 2005).

E foi a partir do México, onde estavam exilados os principais líderes


da organização Montoneros, que a oposição resolveu agir. Considerando que “A
22 meses del crímen institucionalizado en el Estado, los gorilas se encuentran com
que todos los fracasos, todas las atrocidades cometidas, todas las mentiras que dije-
ron, se les vienen encima” (MOVIMIENTO, 1978), a organização entendeu que era
hora de voltar e reiniciar a luta e preparar a contraofensiva.
A postura da organização era a de que a copa seria um momento para
os turistas e jornalistas estrangeiros conhecerem os problemas do país, como
define a consigna apresentada como justificativa para não apoiar o boicote: “Cada
espectador del Mundial un testigo de la Argentina real” (MOVIMIENTO, 1978).
Em seu livro jornalístico Fuimos soldados. Historia de la contraofensiva
Montonera, Marcelo Larraquy (2011, p. 29) descreve o clima envolvendo a questão:
Mientras la comunidad de exiliados discute se debe boicotear la organiza-
ción del campeonato de fútbol porque puede significar una victoria política
de la dictadura militar, o festejar los goles argentinos sin sentirse traidores,
88 Futebol na sala de aula

Lazarte le ofrece a Montoneros volver a la Argentina. Dice que él puede


interferir los canales de televisión y propagar los discursos revolucionarios
del comandante Mario Firmenich durante los partidos del Mundial.

A proposta de retornar não foi uma unanimidade entre os exilados: “En


el orden de la militancia hubo también una enorme discusión a propósito de la
ofensiva, la contraofensiva de los Montoneros, […] que yo creo que no tenía la más
mínima posibilidad de tener simpatía en el medio de la gente […]” (CONCATTI,
2008). A questão levantada não era apenas a segurança de voltar ao país, mas tam-
bém como ficaria a imagem da organização perante a população que queria viver a
festa da copa sem conflitos, como um momento esperado por tantos anos.
O objetivo era aproveitar a copa para iniciar as ações de retorno, e
aproveitar o evento e a atenção dada a ele para conseguir a atenção da população
para suas demandas e denúncias. E, apesar de, como organização, terem optado
pelo não boicote à Copa do Mundo, enfatizavam que “no significa que aceptemos
pasivamente la forma en que el gobierno militar pretende realizarlo” (MOVI-
MIENTO, 1978).
Assim, no dia 6 de junho de 1978, durante o jogo contra a França, na
prisão em La Plata (capital da província de Buenos Aires), a transmissão foi inter-
rompida pela “Marcha Peronista” e um discurso do líder Fermenich. A ação, a prin-
cipal durante a copa, gerou consequências para os presos:
[…] mi principal crítica a los Montoneros que es que no me dejaron
escucharlo [a Copa]. Porque empezó el Mundial y los de La Plata, los de la
cárcel de La Palta habían puesto los parlantes para que escucharas los par-
tidos y a los 10 minutos se interfirió la, al partido y empezó una proclama
a los Montoneros. ¡Genial! ¡Nunca más nos dejaron ningún partido! [risos]
(VILLANUEVA, 2002).

Mas, antes mesmo do início do evento, em fevereiro de 1978, as ações


da luta armada já tinham começado no país. Em documento da Direção de Inte-
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 89

ligência da Polícia da Província de Buenos Aires (Dipba), aparece a descrição de


panfletos que foram difundidos defendendo a realização da copa:
Estos panfletos son de cuatro tipos diferentes, y em los cuales versa lo
siguiente: panfleto 1: ‘Mundial ’78, Argentina Campeón, sin milicos ni ore-
jón, Movimiento Peronista Montonero’; pabfleto 2: ‘Argentina Campeón, el
pueblo apoya el Mundial no a la dictadura militar, Movimiento Peronista
Montonero’; panfleto 3: ‘Argentina 78, Dictadura 0, Resistir es vencer, Movi-
miento Peronista Montonero’; panfleto 4: ‘Argentina Campeón, el pueblo
apoya a la Selección y repudia a Videla y a Martínez de Hoz, Movimiento
Peronista Montonero’.5

Algumas bombas foram posicionadas ao longo da competição em alvos


estritamente militares, que foram abafados pelo regime e não geraram a repercus-
são esperada pela organização. Foi em 1979 que o projeto da Contraofensiva foi
realmente colocado em prática, e o resultado foi desastroso para a organização,
com a morte e captura dos soldados.
As diferentes manifestações e usos das copas por grupos de oposição no
Brasil e na Argentina nos mostram, mais uma vez, a importância da comparação para
pensar as diferentes experiências. Porém, se olhamos de uma maneira mais ampla,
percebemos semelhanças que aqui nos interessam, principalmente para romper com
a leitura tradicional e simplista de que as vitórias das seleções nacionais serviram
somente para a propaganda oficialista. Afinal, nem sempre os torcedores nacionais
jogaram no mesmo time da onda de otimismo e ufanismo que as copas trouxeram.

Considerações finais

Considerando o papel do futebol na construção de identidades e cultu-


ras políticas em ambos os países, podemos compreender o sentido do interesse das

5 Archivo DIPBA, Mesa “D (s)”, Carpeta Vários, Legajo 11686.


90 Futebol na sala de aula

ditaduras em se associar ao êxito. O futebol – e mais especificamente as seleções


nacionais e as Copas do Mundo – foi utilizado como parte da propaganda polí-
tica e na busca por renovação de consenso e consentimento por sua capacidade de
mobilizar elementos do imaginário social: o outro, a competição, o nacional etc.
(MAGALHÃES, 2014).
Como procuramos mostrar, as Copas mostram então sua riqueza como
espaço de análise. Pelo sentimento maior que representava o futebol, pela euforia
coletiva ou pela ideia de resistir por meio do esporte do povo: enquanto a pátria ves-
tia chuteiras, como disse Nélson Rodrigues, existia um consenso em torno daquela
cultura política nacional. Torcer pelo Brasil ou pela Argentina não era um senti-
mento exclusivo de determinado grupo, mas um ponto em comum até entre os que
pareciam nada compartilhar. Ninguém, nem mesmo os que entendiam que o torcer
não era válido, puderam passar imunes àqueles dias de festa.
Portanto, o futebol é aqui proposto como objeto para pensar um con-
texto muito mais amplo e complexo em termos históricos. É exatamente esse senti-
mento de identidade, de pertencimento que o torcer nos proporciona que faz desse
um interessante caminho em sala de aula para o estudo de temas tão sensíveis como
as últimas ditaduras.
Apesar de tantas resistências acadêmicas, é interessante perceber como
a metodologia comparada é uma alternativa recorrente em sala de aula para pensar
determinados temas e momentos históricos. Por exemplo, as chamadas experiências
populistas nas décadas de 1930-1960 na América Latina ou o próprio tema aqui pro-
posto, as experiências ditatoriais na América do Sul entre os anos 1960-1990. Porém,
neste último caso, o mais comum é pensar o período do último regime autoritário
brasileiro (1964-1985) separado dos governos autoritários vizinhos, estes, sim, em
geral trabalhados em blocos (geralmente privilegiados os casos chileno e argentino).
Mas vamos além: nestas páginas, a proposta é partir da comparação
entre as Copas do Mundo de 1978 e 1970, para trazer os debates sobre memória,
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 91

autoritarismo, consenso, consentimento, repressão, exílio e outros temas mais para


pensar as experiências de Argentina e Brasil. Portanto, além de “relocalizar” o Bra-
sil como parte da América do Sul, queremos inovar partindo de um tema popular
e normalmente tão associado a festas e ausente de conflitos para pensar as últimas
ditaduras: o futebol.
Na ausência de uma imagem comum que seja reconhecida pelos diver-
sos atores sociais e políticos, permanecem os muitos sentidos da memória já pro-
duzidos, e que ainda hoje se produzem, sobre tais temas. Portanto, é importante
considerar que esses discursos de vitórias esportivas se relacionam diretamente
com suas histórias nacionais. Apesar de tudo, o lugar político do discurso memo-
rialístico ainda é a nação, ainda que seja um fenômeno global (HUYSSEN, 2000).
E, a partir disso, se abre espaço para repensarmos não apenas as narrativas sobre
o passado recente, mas nossas formas de compreender os fenômenos esportivos e
suas relações com a sociedade e o autoritarismo.

Referências
Fontes e entrevistas

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2011.

CASULLO, Nicolás. Testimonio de Nicolás Casullo. Buenos Aires, 2005. Vídeo.


(6h19min). (Memoria Abierta).

CONCATTI, Rolando. Testimonio de Rolando Concatti. Buenos Aires, 2008. Video.


(4h22min). (Memoria Abierta).

KFOURI, Juca. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 19 jul. 2011.

MOVIMIENTO. Buenos Aires, Órgano del Consejo Superior del Movimiento Peronista
Montonero, n. 5, jan. 1978. Arquivo CEDINCI.
92 Futebol na sala de aula

SILVA, Eduardo Roberto da. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 27 jul. 2012.

VILLANUEVA, Ernesto. Testimonio de Ernesto Villanueva. Buenos Aires, 2002. Vídeo.


(4h12min). (Memoria Abierta).

Livros e artigos

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CORDEIRO, Janaína Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o
governo Médici. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 22, n. 43, jan./jun. 2009.

GASTALDO, Edson Luis; GUEDES, Simoni Lahud. De pátrias e de chuteiras. In: ______; GUE-
DES, Simoni Lahud (orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói:
Intertexto, 2006, p. 7-12.

HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

MAGALHÃES, Lívia G. Com a taça nas mãos: sociedade, copa do mundo e ditadura no Brasil e
na Argentina. Rio de Janeiro: Lamparina; Faperj, 2014.

LARRAQUY, Marcelo. Fuimos soldados: Historia Secreta de la Contraofensiva Montonera. Bue-


nos Aires: Punto de Lectura, 2011.

LVOVICH, Daniel. Sistema político y actitudes sociales en la legitimación de la dictadura militar


argentina (1976-1983). Ayer, Buenos Aires, v. 75, n. 3, p. 275-299, 2009.

PRADO, Maria Ligia Coelho. Repensando a história comparada da América Latina. Revista de
História, São Paulo, v. 153, n. 2, p. 11-33, 2005.

VASCONCELLOS, Douglas Wanderlei. Esporte, poder e relações internacionais. Brasília: Funda-


ção Alexandre Gusmão, 2011.

Sugestões para trabalhar em sala de aula


Documentário

MEMÓRIAS do chumbo: o futebol nos tempos do Condor. Roteiro e reportagem: Lúcio Castro.
[S.l.]: TV ESPN, 2013. (4 episódios).
Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) 93

Filmes

O ANO em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburguer. Brasil. 2006. (110 min).

PRA FRENTE Brasil. Direção: Roberto Farias. Brasil: Embrafilme, 1982. (105 min).

Páginas de internet

ARCHIVIO NACIONAL DE LA MEMORIA. Dictadura, deporte y memoria. Disponível em:


https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/cuadernillo_mundial_78.pdf.

PAPELITOS: 78 historias sobre un Mundial em dictadura. Disponível em: http://papelitos.


com.ar/.
O futebol no Rio de Janeiro e os
projetos de modernização no Brasil
Republicano (1902-1945)
Renato Soares Coutinho

Introdução

No dia 21 de julho de 1902, na Rua Marquês de Abrantes, 21, Zona Sul


do Rio de Janeiro, um grupo de 20 rapazes se reuniu para organizar o primeiro
clube voltado estritamente para a prática do futebol na cidade. Esses filhos de ingle-
ses e brasileiros que, em sua maioria, foram educados em colégios da Inglaterra
fundaram o Fluminense Football Club.
Após algumas desavenças com os jogadores ingleses do Rio Cricket nos
jogos contra as equipes paulistas, os rapazes da elite carioca criaram o novo clube
para garantir o espaço onde pudessem praticar o esporte aprendido no exterior
(PEREIRA, 2000, p. 28). O futebol, importado da Europa, começava, no início do
século XX, a despertar a atenção da juventude abastada do Rio de Janeiro. Em uma
conjuntura de afirmação da importância dos hábitos de cuidado com o corpo, o
96 Futebol na sala de aula

futebol surgia como mais uma opção de exercício físico na capital da jovem Repú-
blica brasileira.
A escolha do Fluminense como ponto de partida para o artigo
não foi casual. O tricolor das Laranjeiras reúne algumas características necessárias
para a introdução das reflexões sobre a história social do futebol no Rio de Janeiro.
Claro, a primeira questão que logo vem à tona é o fato de o clube ter sido o primeiro
a ser composto majoritariamente por brasileiros, além de preservar até os dias atu-
ais seu papel de protagonismo no cenário esportivo da cidade. Mas tem algo na
fundação do Fluminense que nos interessa mais.
Oscar Cox, primeiro presidente do clube e grande incentivador da
prática do futebol no Rio de Janeiro, era filho de um diplomata britânico. Wal-
ter Schuback, terceiro nome a assinar a ata de fundação do clube, foi gerente da
empresa de comércio exterior Herm Stoltz. Domingos Moitinho, primeiro tesou-
reiro do clube, foi um grande proprietário de terras na Região do Vale do Paraíba,
banqueiro e sócio de diversos empreendimentos ferroviários (SEDLACEK, 2012).
Citando apenas três dos 20 fundadores do clube, nota-se que a instituição foi for-
mada incialmente por membros dos setores mais ricos da sociedade.
Temos então o objetivo central deste trabalho. Analisar como a prática
do futebol, em sua origem circunscrita aos espaços de sociabilidade mais restritos
e excludentes da cidade, em algumas décadas, se tornou um fenômeno de popula-
ridade entre os trabalhadores brasileiros. Visamos, então, investigar os conflitos e
embates políticos que marcaram as trajetórias das instituições esportivas – clubes,
ligas, imprensa esportiva –, a fim de compreender os processos de redefinição sim-
bólica e organizacional pelos quais os agentes do campo esportivo passaram nas
primeiras décadas do século XX.
Vejamos um exemplo. Em 1904, o Fluminense disputou duas partidas
contra o Club Atletico Paulistano. As partidas interestaduais eram as que atraíam
maior atenção dos espectadores. Há uma fotografia das pessoas na beira do campo
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 97

publicada no dia 8 de agosto pela revista Kosmos (ago. 1904).1 O público não ultra-
passava a marca de 50 pessoas. O historiador Leonardo Pereira, no livro Footballma-
nia, destaca também o perfil social dos espectadores. O público era composto pelas
famílias e cavalheiros da cidade, vestido com esmero e elegância (PEREIRA, 2000,
p. 30).
Menos de 50 anos depois, o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol.
No dia da inauguração do Estádio do Maracanã, construído para o evento, o Jornal
dos Sports noticiava que “a cidade invadiu o estádio!” (JORNAL DOS SPORTS, 18
jun. 1950). Os bondes lotados de homens, mulheres, operários e grã-finos ruma-
vam abarrotados para o colosso do Brasil. Públicos de mais de cem mil pessoas
marcaram os primeiros jogos realizados no Maracanã.
Em menos de meio século, o futebol virou o jogo. E essa consideração
nos serve para enfatizar uma questão: o futebol não surgiu com a vocação para a
popularidade. Ao contrário, ele nasceu no Brasil sob o signo da exclusão da Pri-
meira República. A popularização das suas práticas resultou de um processo social
complexo, marcado por avanços e retrocessos, pelo embate entre projetos derro-
tados e vitoriosos. Sendo assim, a popularidade do futebol no país foi uma cons-
trução social, e pretendemos nas próximas linhas analisar alguns elementos que
constituíram esse processo.

Os “ Sports” na Primeira República:


o tempo da modernização excludente

O surgimento de um mercado de entretenimento associado à valoriza-


ção das práticas esportivas foi um processo que teve início no Rio de Janeiro em
meados do século XIX. Como nos mostra o historiador Victor Mello, esse fenô-

1 Cf. Pereira (2006, p. 30).


98 Futebol na sala de aula

meno esteve relacionado à dinamização da economia imperial na corte e com o


surgimento de um novo personagem no cotidiano da cidade que se modernizava:
o homem público (MELO, 2015).
A organização da sociedade civil, que ocorreu em consonância com
o processo de modernização das relações sociais na corte brasileira, fez surgir na
cidade novos espaços de sociabilidade voltados para o entretenimento. A diversão
constituía-se como uma experiência pública, realizada nos espaços de convivência
em que o agente social buscava visibilidade para reforçar e reproduzir hierarquias
sociais e construir um novo ethos europeu associado aos valores de progresso em
uma sociedade ainda marcada pelos hábitos provincianos. Bailes, concertos, corri-
das, festas, todos esses eventos ganharam a função de promover os encontros entre
os atores em um teatro público de circulação de valores que visava garantir ao Rio
de Janeiro a existência de sociabilidades modernas que superassem o predomínio
do privado e do doméstico nas relações sociais. O homem público orientado pelas
regras da impessoalidade e pela racionalidade das ações coletivas foi o sujeito social
primordial para a redefinição das práticas de entretenimento.
Sendo assim, foi nessa conjuntura de valorização do entretenimento
como espaço de afirmação dos novos valores modernos importados da Europa
civilizada que as práticas esportivas se associaram aos hábitos de diversão no Rio
de Janeiro. Em suma, o processo de modernização da vida, marcado pelo advento
da vida pública, esteve diretamente associado ao surgimento das práticas esporti-
vas no Rio de Janeiro.
Esse processo de modernização teve continuidade e, podemos até
mesmo afirmar, se acentuou após a Proclamação da República em 1889. Atrelados
ao discurso de promoção da ciência, os republicanos em suas diferentes corren-
tes reforçaram através das propagandas políticas o elo entre a nova República e os
hábitos modernos e civilizados europeus, contrapondo assim a imagem construída
acerca do Império, que foi associado ao arcaísmo e à escravidão (MELLO, 2007).
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 99

Turfe, remo, caminhadas, halterofilismo, ciclismo, boxe e, claro, o fute-


bol representavam os valores do novo ethos republicano. O cuidado com o corpo,
a atividade física, os eventos esportivos, a higiene, eram hábitos burgueses que
vinham condenar a sociedade do ócio e do sedentarismo e afirmar a necessidade
do jovem praticar alguma modalidade esportiva, a fim de preparar a sociedade bra-
sileira para o progresso e para a civilização.
Entretanto, uma consideração fundamental para entender o processo
de difusão do esporte no Brasil na Primeira República precisa ser feita. E essa con-
sideração passa pelos limites do processo de modernização ocorrido na Primeira
República (1889-1930).
É consenso na historiografia brasileira que a Primeira República não
logrou estabelecer ganhos relevantes de direitos sociais entre as classes trabalha-
doras urbanas e rurais. Mesmo tendo sido um momento de grande efervescência
dos movimentos sociais e de grande mobilização dos operários, a primeira expe-
riência republicana manteve as questões sociais circunscritas aos casos de polícia.
Em outros termos, os benefícios da vida urbana e industrial moderna não foram
compartilhados por todos os setores da sociedade, e esse período acabou sendo
marcado por altos índices de exclusão social.
Diferentes perspectivas historiográficas buscam compreender o perfil
excludente da Primeira República brasileira. Destaco algumas. José Murilo de Carva-
lho, em análise feita sobre o imaginário político republicano, destacou o fracasso do
regime em construir uma comunidade de sentido simbólico que fizesse o indivíduo
se sentir pertencendo à Nação (CARVALHO, 1990). Victor Nunes Leal, em trabalho
clássico sobre as relações de clientelismo político no Brasil, mostrou que a falência
orçamentária e representativa dos municípios abria espaço para a predominância dos
poderes privados locais em uma dinâmica de retroalimentação do subdesenvolvi-
mento por meio de práticas coronelistas de mandonismo (LEAL, 1997). Renato Lessa
analisou as mudanças que foram feitas nos arranjos institucionais no governo Cam-
100 Futebol na sala de aula

pos Salles, após os primeiros anos de instabilidade da “aventura republicana”, com o


estabelecimento de um pacto oligárquico que blindou a administração do Executivo
das pressões sociais, a partir de uma competição eleitoral que favorecia a composição
de um legislativo dócil (LESSA, 1999). José Miguel Arias Neto, em artigo sobre a rela-
ção entre a economia cafeeira e a industrialização na Primeira República, concluiu
que “embora tenha ocorrido um grande desenvolvimento econômico, a este não se
seguiu nem correspondeu o surgimento de um regime democrático e, menos ainda,
um processo de desenvolvimento humano e social” (ARIAS NETO, 2006, p. 225).
Sejam variáveis referentes ao campo do simbólico e cultural, ao nível
institucional das relações políticas ou ligadas às estruturas econômicas, todas con-
firmam que o modelo de modernização social da Primeira República ficou circuns-
crito aos setores mais abastados da sociedade. A modernização excludente que,
segundo Margarida Neves, se expressava na imagem paradoxal da capital federal
com vida acelerada pela experimentação das novas tecnologias em contraposição
ao marasmo da vida arcaica no resto do Brasil rural (NEVES, 2006), retirou a abso-
luta maioria da população dos espaços de sociabilidade que tinham como escopo
consagrar as práticas civilizadas do homem público que se moldava à imagem e
semelhança dos padrões estéticos ingleses e franceses. E foi sob o signo da exclusão
e do elitismo que surgiram os primeiros clubes de futebol no país.
Já falamos na introdução sobre a fundação do Fluminense em 1902. Ins-
pirados pelo cosmopolitismo e refinamento que a prática do futebol conferia aos
sportsmen, outros clubes começaram a se organizar na cidade na mesma época. Em
abril de 1904, o Bangu Athletic Club foi fundado por um grupo de técnicos ingleses
que trabalhavam na Companhia Progresso Industrial. Em agosto do mesmo ano,
oito jovens de famílias ricas do bairro do Humaitá, entusiasmados com as partidas
do Fluminense, criaram uma nova agremiação. Em assembleia realizada no dia 18
de setembro, os sócios batizaram o novo de clube com o nome Botafogo Foot-Ball
Club (PEREIRA, 2000, p. 34). Também em setembro de 1904, no bairro da Tijuca,
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 101

foi fundado o America Foot-Ball Club. Já em 1905, o futebol chegou a ser retratado
na imprensa como um modismo elegante (PEREIRA, 2000, p. 35).
Com o surgimento de tantos clubes na cidade, logo se iniciaram as
negociações para a organização de campeonatos. E as questões que envolvem as
ligas de futebol no Rio de Janeiro são fundamentais para compreensão do esporte
como um objeto de interesse social.
A primeira Liga Metropolitana de Football (LMF) foi criada ainda
em 1905 e contou na sua fundação apenas com o Botafogo, Fluminense, Pays-
sandu, Bangu, Sport Club Petrópolis e o Foot-Ball and Athletic Club. Essa ins-
tituição original teve como objetivo organizar o primeiro campeonato que foi
disputado em 1906, vencido pelo Fluminense (NAPOLEÃO, 2006). Em 1907, o
nome da liga foi alterado para Liga Metropolitana de Sports Athleticos (LMSA),
e o campeonato foi marcado por diversos problemas. Para se ter uma ideia, a
decisão sobre o vencedor do torneio somente foi tomada pela Justiça despor-
tiva nos anos 1990, quando Botafogo e Fluminense foram declarados campe-
ões.2 Diversas dissidências e alterações de nomes e regras ocorreram – e ainda
ocorrem – nas ligas e federações do Rio de Janeiro. Mas um detalhe sobre 1907
nos interessa mais do que as brigas dos dirigentes e clubes de futebol. E esse
detalhe envolve os motivos da desistência do Bangu de disputar o campeonato.
O clube da Zona Oeste do Rio de Janeiro abandonou a liga por conta da
proibição da inscrição de um jogador na sua equipe. Esse jogador se chamava Fran-
cisco Carregal, e ele era negro. Esse é um dado que merece destaque. Ao longo das
primeiras décadas de campeonato, o regime que vigorava nas relações entre clube e
jogador era o amadorismo. No que consistia o amadorismo? Em termos formais, o
amadorismo estabelecia que os jogadores não podiam receber dinheiro para atuar
pelas equipes. Inicialmente, os times eram formados por atletas que eram sócios

2 A confusão ocorreu por conta da indefinição sobre os critérios de desempate na última rodada do campeonato. Para mais detalhes, v.
Napoleão (2006).
102 Futebol na sala de aula

das agremiações. Com o tempo, começou a haver maior rotatividade dos jogadores
pelos clubes, mas, mesmo com as trocas de camisa, as ligas estabeleciam regras que
exigiam que o jogador comprovasse que estava empregado em profissões que garan-
tissem seu sustento sem a dependência dos ordenados do clube. Na prática, o ama-
dorismo visava impedir que jogadores negros e pobres disputassem o campeonato.
Sem dúvida, as tensões sobre os critérios de participação nas ligas foram
os maiores fatores de instabilidade política no desporto carioca. Isso porque o fute-
bol se popularizava com grande rapidez, e houve pressões crescentes dos clubes
de origem popular para a supressão das regras excludentes. Mas, especialmente os
grandes clubes da Zona Sul da cidade, Fluminense, Botafogo e Flamengo – que pas-
sou a contar com um departamento de desportos terrestres a partir de 1911 –, em
articulação com agremiações menores, mas compostas por figuras proeminentes
da economia e vida política da capital federal, se utilizavam de todo tipo de artifício
para inviabilizar a democratização da prática desportiva. Isso porque o esporte,
segundo as diretrizes do ideal de progresso da elite da cidade, não era um benefí-
cio da civilização acessível para todos. Afinal de contas, as classes trabalhadoras e
suas práticas e valores sociais eram vistas ainda pela elite cosmopolita da Primeira
República como empecilhos para o progresso da sociedade.
Vale apresentar exemplos de como os clubes da elite visavam conter a
popularização do futebol. Em 1914, o aristocrático Payssandu, clube de origem
inglesa que foi um dos fundadores da liga em 1905, ficou entre os rebaixados
para a segunda divisão. Nesta estavam clubes vistos pela liga como “sociedades
pouco escrupulosas que têm como diretores indivíduos de educação duvidosa”
(PEREIRA, 2000, p. 112). O Fluminense, se valendo do seu prestígio, reivindicou
a alteração da regra para que o Payssandu não fosse rebaixado, com o objetivo de
impedir que alguma agremiação “mal educada” entrasse no lugar da “sociedade
inglesa”. A proposta tricolor foi aceita pelos clubes, e tivemos na ocasião uma his-
tórica “virada de mesa”.
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 103

Em 1914, o jogador Carlos Alberto, oriundo do América, se


transferiu para o Fluminense. Em uma das suas primeiras atuações, foi xingado
pela torcida de “mulato pernóstico” (PEREIRA, 2000, p. 114). Para tentar atender
aos padrões do refinamento excludente dos torcedores, o jogador resolveu passar
pó de arroz para mudar o tom da cor da sua pele. O uso do pó de arroz, símbolo que
até os dias atuais pode ser visto nas arquibancadas da torcida tricolor, demonstra
bem a medida das condições restritivas que eram impostas aos jogadores negros
nos espaços esportivos.
Porém não há dado mais esclarecedor sobre o perfil excludente dos
tempos do amadorismo do que as regras para a filiação dos clubes e jogadores. E
sobre esse assunto, vamos ao acontecimento mais emblemático. O caso do Vasco
da Gama.
O Vasco da Gama foi fundado como clube de regatas em 1898 e fun-
diu-se ao Clube Lusitânia em 1915, passando a ter também um departamento de
futebol. Rapidamente, o clube se filiou à liga e venceu as divisões de acesso, che-
gando à primeira divisão em 1923. Ao contrário dos outros clubes da liga, o Vasco
recrutou jogadores nos campos do subúrbio do Rio de Janeiro e passou a pagar
salários para os seus atletas, que se submetiam a uma rotina profissional de treina-
mentos. Para burlar as regras do campeonato, que proibia atletas profissionais, os
dirigentes que eram comerciantes registraram seus jogadores como funcionários
dos seus estabelecimentos.
Com jogadores de qualidade e bem treinados, o Vasco sagrou-se cam-
peão de forma incontestável no seu primeiro ano na primeira divisão. Com apenas
uma derrota para o Flamengo, o clube da Zona Norte colocou em xeque a hegemo-
nia dos clubes refinados da Zona Sul.
Em 1924, a liga novamente mudou de nome. A recém-criada Associa-
ção Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea) trouxe, além da nova sigla, um
novo regulamento que visava explicitamente afastar o Vasco da Gama da disputa.
104 Futebol na sala de aula

Dentre os artigos que definiam os critérios e requisitos de inscrição dos jogadores


no novo estatuto, vamos destacar os seguintes:
Não poderão, porém, ser inscritos: 1- os que a troco de dinheiro, tenham
tomado parte em festas, partidas, campeonatos ou concursos esportivos de
qualquer natureza, dentro ou fora do país; 2- os que tirem os seus meios
de subsistência de qualquer profissão braçal, considerando como tal a que
se predomine esforço físico; [...] 5- os que se entregarem a exploração dos
jogos de azar; [...] 7- os que não saibam escrever e ler corretamente; [...] 9-
os que habitualmente não tenham profissão ou empregos certos; 10- os que
exerçam profissão ou emprego subalternos; tais como: contínuo, servente,
engraxate e motorista; 11- os que exerçam profissão ou emprego que exija,
permita ou facilite o recebimento de gorjetas (NAPOLEÃO, 2006, p. 97).

A interpretação não precisa ser sofisticada para percebermos que, ainda


em 1924, as representações do mundo do trabalho por parte da elite que dirigia o
campeonato e os clubes refinados era absolutamente negativa. Desprezando o tra-
balhador comum e suas práticas cotidianas, as regras formais da liga buscavam dis-
tanciar o futebol das camadas populares em nome de um perfil amador que alegava
preservar a virtude dos praticantes, mas que acabava por enquadrar o trabalhador
numa lógica associada aos vícios e à falta civilidade.
Esse cenário de resistência ao diálogo com as camadas populares perdu-
rou até o início dos anos 1930. Com o país vivendo uma nova ordem institucional,
os agentes sociais do campo esportivo vivenciaram o surgimento de uma nova pro-
posta para a regulamentação das relações entre clubes, jogadores e torcida: o profis-
sionalismo.
Marcado pela ascensão de uma nova classe dirigente e pela formata-
ção de novas representações sobre a função social do trabalhador, o debate entre
amadoristas e profissionais que abalou o futebol carioca e brasileiro nos anos 1930
acabou por redefinir inteiramente os significados das instituições futebolísticas
da cidade. Novas configurações se estabeleceram, novas regras foram criadas e os
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 105

trabalhadores entraram em campo. Nos anos 1930, o futebol sofreu e reivindicou


intervenções estatais, novas lideranças se consolidaram no campo esportivo e as
multidões despertaram para o jogo. Veremos os elementos fundamentais que nos
ajudam a compreender esse processo nas próximas páginas.

O desporto nos anos 1930:


o tempo da modernização nacional-estatista

A década de 1930 foi um momento de radical transformação dos arran-


jos institucionais na política brasileira, desde as esferas locais até a nacional. A crise
desencadeada pelos embates entre as oligarquias na indefinição sobre as compo-
sições das alianças para as eleições de 1930 acabou por implodir o sistema polí-
tico federalista implantado na Primeira República (VISCARDI, 2001). Em última
análise, a chegada de Getúlio Vargas ao poder em 1930 pode ser definida como o
momento em que o Estado brasileiro reorientou suas políticas, a partir das diretri-
zes centralizadoras e regulamentadoras de uma nova classe dirigente antiliberal e
intervencionista (FAUSTO, 1997).
Em importante artigo sobre as elites dirigentes dos anos 1930, a histo-
riadora Angela de Castro Gomes analisa o surgimento e a construção das teses cen-
tralizadoras no Brasil ainda durante a Primeira República (GOMES, 2005). Atentos
aos problemas do atraso brasileiro, os intelectuais nacionalistas, a partir da década
de 1910, começaram a questionar os modelos explicativos europeus e passaram a
se dedicar sobre as singularidades da formação política brasileira. Destacando a
obra de Oliveira Vianna, a autora mostra como um consenso foi construído nessa
geração de pensadores e políticos: a ideia de que a origem do atraso brasileiro se
assentava na ausência do espaço público e na predominância do privado. Formada
com base no latifúndio e nas relações familiares, a sociedade brasileira se constituiu
de maneira insolidária. Essa tese, exposta no livro Populações meridionais do Brasil
106 Futebol na sala de aula

(VIANNA, 2005), publicado pela primeira vez em 1918, sustenta que os agentes
sociais brasileiros são incapazes de organizar formalmente as relações sociais no
espaço público porque historicamente os interesses privados se sobrepuseram às
organizações coletivas. E apenas um Estado nacional, capaz de solapar as oligar-
quias regionais, seria o ente responsável pela organização, regulamentação e fisca-
lização dos espaços públicos de sociabilidade. Ou seja, nessa concepção, cabe ao
Estado o papel de organizador das relações sociais modernas.
As ações intervencionistas dos governos Vargas nos anos 1930 são notá-
veis em diversas áreas. Sem dúvida, a regulamentação e organização do mundo do
trabalho, por meio da construção de uma ampla legislação trabalhista, é o exemplo
mais bem acabado de centralização estatal. Mas, para além das relações trabalhis-
tas, a nova classe dirigente atuou como mediadora e regulamentadora em diversas
áreas. Na imprensa com os órgãos de censura, na educação por meio do Minis-
tério da Educação e Saúde Pública, na política ambiental pela criação de parques
nacionais, nas políticas estaduais por meio dos interventores, na administração
pública pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). Enfim, os
campos de atuação intervencionista do governo chefiado por Vargas foram abran-
gentes. O Estado, conforme sua orientação antiliberal, buscou organizar o processo
de modernização do país de forma autoritária, mas a partir da convicção de que
o espaço público brasileiro necessitava ser ampliado. Em outros termos, era parte
dessa concepção de Estado intervencionista a visão social que englobava as cama-
das sociais populares em um projeto de integração nacional. Pois apenas o pro-
cesso de integração das classes em uma comunidade nacional poderia pôr fim ao
privatismo liberal das elites oligárquicas que haviam conduzido o país ao atraso na
Primeira República.
Intervenção, regulamentação e integração. Palavras caras à relação entre
Estado Nacional pós-1930 e o nosso objeto neste artigo, o futebol. Se o governo
Vargas atuou em todas as direções, a fim de organizar o acesso público aos espa-
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 107

ços modernos de sociabilidade – trabalho, educação, saúde, meio ambiente –, no


campo desportivo essa tendência não foi diferente.
E como o Estado Nacional interveio de maneira decisiva nos rumos do
futebol carioca e brasileiro? Ora, vamos lembrar que nos primeiros anos da década
de 1930 se acentuavam as críticas ao modelo excludente do amadorismo e suas
regras de filiação impopulares. Somado à crise de legitimidade do amadorismo, o
momento de reconfiguração das relações sociais de trabalho no Brasil fortaleceu a
proposta profissional, que encontrou terreno fértil para sua difusão. Os defensores
do profissionalismo questionavam os critérios de filiação dos jogadores e demanda-
vam a regulamentação da atividade do jogador, que passaria a ter salário e que não
precisaria mais comprovar sua origem social. Mas, antes de investigarmos as ações
concretas de intervenção do Estado no futebol, vamos analisar como a historiografia
interpreta as tensões que houve no desporto carioca no início dos anos 1930.
Pois bem, diante do embate desses dois projetos, o futebol carioca
rachou. O dissídio esportivo colocou de um lado os clubes amadores em uma liga,
e os clubes profissionais em outra. Entre 1933, momento de criação da Liga Carioca
de Futebol, que era profissional, e 1937, momento em que o dissídio teve fim e o
modelo profissional se impôs, os clubes do Rio de Janeiro se dividiram, e dois cam-
peonatos foram realizados.3
O historiador Mauricio Drumond, em instigante pesquisa sobre o tema,
chama a atenção para um elemento que não passa pela distinção dos dois projetos,
amador e profissional. Drumond defende que o embate entre amadoristas e pro-
fissionais refletia uma disputa entre diferentes grupos de dirigentes marcados por
clivagens geracionais (DRUMOND, 2014). Segundo o autor, o dissídio resultou da
disputa pelo controle do campo esportivo entre os antigos dirigentes liderados por
Arnaldo Guinle, ligado ao Fluminense, e os dirigentes que ingressaram na Con-

3 Em 1933, a Liga profissional contou com a presença de America, Flamengo, Fluminense, Bangu, São Cristovão, Bonsucesso e Vasco. A
AMEA, liga amadora, teve o Botafogo, Olaria, Andaraí, Coocotá, Mavilis, Portuguesa, Brasil e River. Em 1934, por conta de uma confusão nas
regatas com o Flamengo, o Vasco abandonou a LCF e migrou para a Liga amadora (NAPOLEÃO, 2006, p. 103).
108 Futebol na sala de aula

federação Brasileira de Desportos (CBD), após a chegada de Vargas ao poder. O


embate teria ocorrido entre o grupo da CBD, liderado por Luiz Aranha, dirigente
do Botafogo, amador, próximo a Getúlio Vargas, e o grupo defensor do profissio-
nalismo encabeçado pela família Guinle, que, segundo Drumond, perdera espaço
com a ascensão de novas lideranças nos anos 1930.
A contribuição de Drummond é indispensável para a compreensão
do dissídio, pois nos mostra como as estratégias de poder dos agentes sociais
do campo esportivo são fundamentais para entender o embate entre profissio-
nais e amadores. Por exemplo, podemos notar que clubes historicamente asso-
ciados ao amadorismo, como Flamengo e Fluminense, a partir de 1933, estavam
em um polo oposto e lideravam o grupo profissional. Porém, para compreender
esses movimentos estratégicos e redefinições políticas, precisamos olhar também
para dentro dos clubes, e não apenas para as disputas nas ligas e confederações.
Quando fazemos isso, percebemos que internamente os clubes passavam por
grandes embates políticos, e o início da década de 1930 marcou a ascensão de
novas lideranças profissionais dentro dessas instituições amadoras que pensavam
a função social de outra maneira.
Vejamos o caso do Flamengo. O rubro-negro desde a sua fundação
esteve atrelado às diretrizes excludentes do sport. Engessado no modelo amador, o
Flamengo chegou ao ano de 1933 falido. Sem campo para treinar, com apenas 700
sócios, com um time fraco e enfiado em uma enorme briga política. Na eleição de
1933, o vitorioso Pascoal Segretto Sobrinho defendeu a manutenção do amado-
rismo como modelo de gestão do futebol. Em menos de um mês, diante das pres-
sões políticas e da inviabilidade financeira do clube, ele renunciou, e uma nova
liderança política assumiu a presidência do clube: José Bastos Padilha. O empre-
sário Padilha era amigo da família Guinle e tinha ótimas relações políticas e com
a imprensa. Padilha entendia o clube de futebol como um elemento de constitui-
ção da identidade e da integração nacional. Formado na escola alemã e defensor
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 109

de teses centralizadoras, Padilha não apenas estabeleceu o profissionalismo como


modelo de gestão, como associou deliberadamente os símbolos do Flamengo ao
arcabouço conceitual nacionalista do governo Vargas. Mais do que uma gestão que
disputava poder no campo esportivo, as ações à frente do Flamengo de Padilha
demonstraram com clareza que o clube passava a ter um projeto redefinido sobre a
função social do clube, que deixava de ser o símbolo da elegância e refinamento da
Zona Sul carioca para se afirmar como um instrumento de integração nacional, por
meio de diversas campanhas de marketing que transformaram o clube na institui-
ção desportiva mais popular do país em apenas cinco anos de mandato.
Voltamos, então, à tese do Drumond para fazer uma ressalva. Se o
governo Vargas estava comprometido com o grupo político amadorista por conta
das relações interpessoais do presidente com os dirigentes da CBD, como o pro-
jeto profissional em tão pouco tempo, e em uma conjuntura autoritária, encontrou
caminho tão favorável para sua implantação?
De fato, Drumond tem razão em mostrar que Vargas era próximo a
Luiz Aranha, pois era irmão do ministro Osvaldo Aranha, figura proeminente no
governo. Mas é importante atentar que Vargas, até 1937, foi hábil em lidar com
as diferentes forças que compunham a coalizão do seu governo. A heterogenei-
dade da Aliança Liberal foi um desafio político encarado pelo executivo ao longo
do Governo Provisório e do Governo Constitucional. Mas notemos. Em nenhum
momento, o grupo dos profissionais liderado por Guinle e Padilha, ou seja, pela
dupla Fla x Flu, contou com a resistência ou antipatia do presidente do país.
Vejamos, finalmente, os exemplos de intervenção do Estado no futebol
que favoreceram a vitória do profissionalismo. Certamente, no campo das relações
de trabalho, a ação mais relevante ocorreu ainda em início de 1935. O governo
estabeleceu que os contratos de trabalho dos jogadores passavam a ser controlados
pela Censura Teatral, um órgão da polícia que enquadrava as práticas de diversão
pública. Segundo esse decreto governamental, os contratos entre os jogadores e clu-
110 Futebol na sala de aula

bes passavam a ser fiscalizados pelo governo, e as transferências de clube dos atletas
profissionais passavam também a ser mediadas pelo Estado. Acabava, assim, a con-
dição fundamental para as práticas de exclusão do amadorismo, que eram as regras
e relações diretas, sem mediação das leis, entre dirigente e jogador. É certo que a
censura teatral criou dispositivos de dominação. Mas, pela primeira vez, estabelecia-
se alguma medida de controle e fiscalização das ações dos dirigentes em relação aos
jogadores. No mesmo sentido das ações trabalhistas que regulamentavam o chão da
fábrica, o gramado também passou a ser mediado pelo árbitro trabalhista: o Estado.
Em 1936, mais uma manifestação de apoio ao profissionalismo da
dupla Fla x Flu. Por iniciativa do presidente Padilha, o Flamengo decidiu executar
o Hino Nacional brasileiro antes da partida. Essa era uma atitude inédita no futebol
e atendia a exigência de um recém-criado decreto que determinava a execução do
hino em eventos cívicos. Além do som nos amplificadores, o clube também tinha
como plano imprimir e distribuir dez mil folhinhas com a letra, para que o tor-
cedor acompanhasse cantando. Rompendo com a tradição excludente que via no
espectador o ser passivo que apenas assistia à partida, essa iniciativa do Flamengo
consagrava a arquibancada como espaço de participação e organização do torcedor
comum, que, a partir de então, por meio de campanhas de marketing do clube no
Jornal dos Sports, passava a ser visto como protagonista, sujeito do espetáculo.
O evento foi realizado e contou com a presença de autoridades civis e
militares, além do presidente Getúlio Vargas, que esteve no campo do Fluminense.
No mesmo ano, após uma briga com a CBD por conta da participação do Flamengo
em uma competição de remo em Berlim, Padilha concedeu o título de presidente de
honra ao presidente Vargas, que aceitou e ainda congratulou o clube pela brilhante
figura no exterior. Como resposta aos dirigentes amadores da CBD, Padilha afirmou:
“Não creio que a CBD ponha em dúvida a palavra de honra do presidente da Repú-
blica” (apud COUTINHO, 2014, p. 85). Na disputa com o amadorismo, os profis-
sionais recorreram e contaram com o apoio institucional e simbólico do presidente.
O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) 111

O fim do dissídio esportivo marcou a derrota inconteste do amadorismo.


A solução encontrada pelo governo Vargas foi deixar o futebol profissional dos clu-
bes sob a direção da Federação Brasileira de Football (FBF), criada durante o dis-
sídio, e deixar apenas a Seleção Brasileira sob os cuidados da antiga CBD. Mas, já
durante a ditadura do Estado Novo, a seleção foi objeto de grande interesse estatal.
Além de grandes investimentos financeiros, a equipe que embarcou para a Copa do
Mundo de 1938 na França contou com apoio simbólico do presidente, que nomeou
sua filha, Alzira Vargas, madrinha do selecionado. A copa mobilizou milhões de
brasileiros através das transmissões de rádio, e o retorno dos jogadores para o Brasil
foi marcado por diversas manifestações nacionalistas e populares.
A partir dos anos 1930, o espaço de sociabilidade do futebol sofreu
a intervenção direta do Estado Nacional. Mas, vale destacar, essa intervenção
atendeu ao pedido dos clubes profissionais e às demandas sociais do trabalhador,
que lutavam desde a Primeira República, por meio de variadas estratégias – seja
usando pó de arroz, seja usando registros falsos de trabalho – para ingressar no
campo esportivo. O estado autoritário nos anos 1930, ao reconhecer o futebol
como um instrumento de integração das classes sociais, regulamentou as práti-
cas esportivas e contou com o anseio de redefinição simbólica e institucional de
alguns clubes do país. Nem todos aderiram ao projeto. Em grande parte, esses
sumiram. Já os que se associaram ao projeto nacionalista do governo contaram
com grandes subsídios, doações de terrenos, investimentos em estádios públicos,
respaldo da imprensa e grande adesão popular por parte do trabalhador, que expe-
rimentou no campo de futebol a vivência em um espaço de reconhecimento que
lhe foi negado por décadas na Primeira República. Destaco: nos anos 1930, as
multidões despertaram para o futebol, mas não foram despertas pelo Estado. As
demandas populares estavam postas há décadas. Coube ao projeto de moderniza-
ção nacional-estatista reconhecê-las.
112 Futebol na sala de aula

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KOSMOS. Ano 1, n. 8, ago. 1904.


História oral e futebol
Sérgio Settani Giglio e Marcel Diego Tonini

A formação do campo no Brasil

Durante muito tempo, a construção de histórias e memórias do esporte


no Brasil foi tarefa assumida por antigos praticantes, entusiastas, jornalistas espor-
tivos e de formados em Educação Física (FILHO, 2003; MELO, 1998). Pesquisa-
dores das ciências humanas mantiveram-se distante do fenômeno esportivo, em
geral, e futebolístico, em particular, até fins da década de 1970 e início da de 1980,
quando as primeiras pesquisas foram realizadas e publicadas (DAMATTA, 1982;
MEIHY; WITTER, 1982).
Aportes teóricos de várias disciplinas (Antropologia, História e Socio-
logia, em especial) possibilitaram a tomada do esporte como objeto de estudo, des-
construindo visões distorcidas, a partir de obras marxistas e frankfurtianas que
o caracterizavam como “ópio do povo”, “hobby”, produto “alienante” da indústria
cultural ou vetor de desagregação social (TOLEDO, 2001, p. 139). Autores como
Johan Huizinga, Roger Caillois, Victor Turner, Clifford Geertz, Norbert Elias,
Pierre Bourdieu, Mickail Bakhtin e Michael Foucault produziram, direta e indire-
116 Futebol na sala de aula

tamente, textos que tiveram grande influência nos estudos da área, sobretudo por
suas reflexões sobre jogos, mitos, dramas, culturas, processo civilizatório, práticas
sociais, festas e corpo, respectivamente.
Somente no decênio seguinte, no entanto, os trabalhos se avolumaram
e houve uma consolidação do tema como objeto de estudo, bem como de linhas
de pesquisa.1 Dentre elas, destacam-se as conexões dos esportes com processos
identitários, relações raciais, relações de gênero, corpo, práticas sociais e socia-
bilidade urbana.
Não obstante, houve neste século um crescimento vertiginoso das pes-
quisas sobre esportes no Brasil. Os megaeventos esportivos sediados no país, a
Copa das Confederações (2013), a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos
de 2016, sem dúvida, fomentaram esse aumento, porém o campo esportivo já estava
formado antes mesmo dos anúncios oficiais, ocorridos, respectivamente, em 2007
e 2009. Algo que se torna nítido pelo número de dissertações e teses defendidas em
vários programas de pós-graduação no Brasil (GIGLIO; SPAGGIARI, 2010), pelo
surgimento de grupos de estudo e pesquisa nas universidades e pelo consequente
cadastro deles no CNPq. Uma das consequências dessa criação dos grupos de pes-
quisas foi a formação de grupos de trabalho em diversos congressos, tais como o
da Associação Nacional de História (Anpuh), o da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e até mesmo da Associação
Brasileira de História Oral (ABHO). O uso de procedimentos metodológicos da
história oral em pesquisas acerca do futebol é prática ainda mais recente e merece
maior atenção.
Apesar dos esforços de entusiastas2 e pesquisadores na realização de
importantes registros sonoros, fossem no Museu da Imagem e do Som, do Rio de

1 Cabe assinalar o papel importante desempenhado pela Educação Física, que, por ofício e desprendida de interpretações sobre teóricos clássicos,
conseguiu fundar desde o fim do século passado vários centros de memória do esporte, da Educação Física e do lazer espalhados pelo Brasil e invaria-
velmente relacionados às universidades públicas. Cf. Goellner (2014).
2 Ou, nos termos de Ferreira (2002, p. 316), “historiadores amadores”, autores que tiveram produções de cunho historiográfico sem neces-
sariamente atentar para as discussões metodológicas desse campo.
História oral e futebol 117

Janeiro, entre as décadas de 1960 e 1990, fossem no museu homônimo e congê-


nere de São Paulo entre o fim dos anos 1970 e o início dos 1980, fossem ainda no
Núcleo de Sociologia do Futebol (da Uerj), no início da década de 1990, projetos de
pesquisa com fontes orais elaborados desde então exigiam maior circunscrição da
problemática, fundamentação teórica e tratamento metodológico. A própria con-
solidação da história oral no meio acadêmico brasileiro e mundial, naquele decê-
nio, requereu e contribuiu de algum modo para tal.3
Diante de novos parâmetros de pesquisa que passaram a estruturar e
sistematizar o fazer em história oral, buscou-se superar o caráter aleatório, frag-
mentado e diletante das entrevistas, bem como os questionamentos historiográ-
ficos em torno da memória, por sua falibilidade, intencionalidade e subjetividade
inerentes. Nos últimos anos, assim, pesquisadores acadêmicos vêm sendo vistos
como um elemento novo e estranho ao universo esportivo, concorrendo, ainda
que desproporcionalmente, com jornalistas a fim de entrevistar atletas, treinado-
res, dirigentes, dentre outros atores do meio e testemunhas de acontecimentos
esportivos.
Dos projetos na área, destacamos três tanto pela importância, quanto
por nossa relativa proximidade com quem os desenvolveu. Primeiro, o “Futebol,
memória e patrimônio”, fruto de uma parceria entre Museu do Futebol e Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC-
FGV), contou com a coordenação do professor Bernardo Borges Buarque de
Holanda (CPDOC-FGV) e de Daniela Alfonsi (Museu do Futebol), cuja finali-
dade era constituir um acervo audiovisual de entrevistas em história oral para
a instituição paulista sediada no Estádio Pacaembu. Com a definição do Brasil
como sede da Copa do Mundo de 2014, organizou-se um projeto que visava rea-
lizar entrevistas de histórias de vida com futebolistas que participaram da Sele-

3 Lembramos que a fundação da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) data de 1994 e a da International Oral History Association
(IOHA), de 1996.
118 Futebol na sala de aula

ção Brasileira nos campeonatos mundiais anteriores. Até o momento, foram rea-
lizadas mais de 50 entrevistas, as quais em conjunto propõem articular memória
esportiva, memória coletiva e história política do país.4
Em segundo lugar, o projeto “Memórias olímpicas por atletas olímpicos
brasileiros”, coordenado pela professora Katia Rubio (EEFE-USP) e iniciado muito
antes de o Rio de Janeiro ter sido escolhido como cidade-sede da XXXI Olimpíada.
Ainda mais ambiciosa, a pesquisa, também em curso, visa registrar as memórias de
todos os atletas que representaram o Brasil em Jogos Olímpicos da Era Moderna.
Trata-se de quase 1,8 mil atletas, desconsiderando-se aqueles que participaram da
Rio 2016 e de Tóquio 2021/2021. Por meio de narrativas de cunho autobiográfico,
a proposta é não apenas registrar as memórias dos protagonistas dos esportes, mas
também encadear essas histórias individuais em memória coletiva, partindo de
questões pessoais para aquelas de ordem macroestruturais (RUBIO, 2014).
Em terceiro, “Memórias de boleiros”, uma investigação que continha,
dentre outros, pesquisadores dos dois projetos supracitados.5 Ainda que tenha sido
apoiado pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades
Lúdicas (Ludens-USP), tratava-se de uma parceria entre esse núcleo, o Museu do
Futebol e o portal acadêmico Ludopédio.6 Ao Ludens, criado em 2010, interessava
o desenvolvimento de projetos e outras atividades acadêmicas que justificassem
o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo. Ao Museu do
Futebol, o aumento de seu acervo de história oral. Ao Ludopédio, por sua vez,
a publicação de entrevistas inéditas. Sendo desenvolvido entre 2012 e 2014, seu
objetivo central foi registrar as memórias de futebolistas brasileiros que tivessem
atuado no exterior nas últimas três décadas. Pretendíamos não apenas constituir

4 Outras informações sobre esse projeto podem ser obtidas no site: https://cpdoc.fgv.br/museudofutebol. Acesso em: 28 mai. 2019.
5 Participaram dessa pesquisa: Aira Bonfim (Museu do Futebol), Amanda Macedo (Ludens-USP), André Feres (Ludens-USP), Breno Macedo
(Ludens-USP), Bruna Gottardo (Museu do Futebol), Bruno Jeuken (Ludens-USP), Daniela Alfonsi (Ludens-USP, Museu do Futebol), Guilherme
Manzoni Leite (Ludens-USP), Marcel Diego Tonini (Ludens-USP, NEHO-USP), Paulo Nascimento (GEO-USP, Ludens-USP, Museu do Futebol), Pedro
Sant’Anna (Museu do Futebol), Sérgio Settani Giglio (GEO-USP, Ludens-USP) e William Contini (Ludens-USP).
6 Portal acadêmico sobre futebol, cujo endereço eletrônico é: https://ludopedio.org.br.
História oral e futebol 119

documentos orais, mas também refletir sobre as trajetórias, memórias e experiên-


cias vividas por esses profissionais fora do Brasil.
Tomando esta última experiência coletiva de pesquisa como base,
desenvolvemos este capítulo e abordamos as possibilidades que a história oral
proporciona quando a utilizamos como método para pesquisas que envolvam o
futebol. O texto está estruturado de modo a apresentar e a dialogar com três eixos
fundamentais desenvolvidos no projeto Memórias de Boleiros: em um primeiro
momento, tratamos da peculiaridade do grupo profissional entrevistado; em
seguida, falamos de nossas experiências de pesquisa, do contato e das gravações
das entrevistas, bem como traçamos diferenças principais entre o trabalho reali-
zado por jornalistas esportivos e o fazer de pesquisadores que se valem da história
oral; por fim, debatemos algumas notas sobre a memória e o esquecimento, tra-
zendo como exemplo um excerto de uma narrativa de um dos futebolistas entrevis-
tados. Nosso intuito é mostrar a riqueza possibilitada pelo método da história oral
para a análise do fenômeno futebolístico.

Os boleiros

Considerando o Brasil um grande exportador de pés de obra (DAMO,


2007; TONINI, 2016), nós tínhamos muitas possibilidades para encontrar entrevis-
tados. Nosso foco não era jornalístico, embora reconheçamos seu valor como pro-
dução. Estávamos interessados em buscar outras histórias, reflexões e pensamentos
sobre a experiência de ser um estrangeiro atleta de futebol. É óbvio que a informa-
ção já publicada pelos veículos de comunicação poderia compor o quadro narrativo
do entrevistado, o que, de modo algum, seria um problema. No entanto, estávamos
atentos para aquilo que Portelli (1997a, p. 31) afirma: “Entrevistas sempre revelam
eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos”.
120 Futebol na sala de aula

Em relação aos atletas mais famosos, leia-se aqui os jogadores que pos-
suíram um destaque profissional em sua experiência no exterior e, portanto, acu-
mularam ao longo de suas carreiras um grande número de entrevistas, o desafio
foi o de tentar romper a narrativa marcada por factualismos, objetividade profis-
sional e imagem triunfal, repetido exaustivamente ao longo de sua vida (MEIHY;
RIBEIRO, 2011). Embora esse tipo de fala seja sobre a vida do entrevistado, ela, por
sua vez, produz um relato repetitivo, modelado, quase mecânico. Como concordá-
vamos com o argumento de Portelli (1997a), qual seja o de que um testemunho oral
nunca é igual duas vezes, teríamos de criar possibilidades para acessar outros lados
das histórias contadas.
A realização de uma pesquisa de história oral com pessoas públicas é
muito complicada. A categoria profissional em que essas pessoas atuam muitas
vezes já lhes confere certa notoriedade. Se, além disso, elas são profissionais bem-
sucedidas, sua fama atinge público de diversos meios. Esse é o caso, por exemplo,
de futebolistas, cantores, atores, em suma, artistas, cujas atividades profissionais
são extremamente valorizadas socialmente. No Brasil, alguns jogadores de fute-
bol são vistos não apenas como ídolos de seus clubes, mas também como “heróis
nacionais”. Isso ocorre, principalmente, com aqueles que vestem ou vestiram a
camisa da Seleção Brasileira. Na sociedade do espetáculo (DEBORD, 2003), mar-
cada pela representação, aparência e consumo de imagens, os meios de comunica-
ção transformaram os atletas profissionais de futebol em celebridades.
Ainda que correspondam a uma ínfima parte do todo ou da realidade
da profissão, os futebolistas bem-sucedidos, inclusive aqueles que já terminaram a
carreira, aparecem constantemente nas mídias, seja em um programa de televisão,
em uma entrevista para rádio ou em matérias para sites, jornais e revistas. Eles
passaram a ser mais assediados pela imprensa no Brasil, a partir principalmente da
metade da década de 1990, quando houve a fundação de vários canais de televisão
exclusivamente esportivos e a criação de diversos sites e blogs. Se isso não bastasse,
História oral e futebol 121

a cada data comemorativa (aniversário de atletas, clubes, títulos ou eventos), Copa


do Mundo e Jogos Olímpicos, a procura pelos protagonistas do jogo intensifica-se.
Tamanho assédio contribuiu indubitavelmente para o estabelecimento de novos
agentes no universo do futebol: assessor de imprensa (dos clubes e pessoal), empre-
sário ou “agente” e até mesmo familiares próximos. Esses profissionais interme-
diam o contato e são mais uma barreira a ser transposta por entrevistadores acadê-
micos como nós.
Portelli (1997a, p. 31) esclarece um aspecto crucial no fazer da história
oral, haja vista que ela “[...] nos conta menos sobre eventos que sobre significados”.
Eis uma diferenciação básica para com o jornalismo, sobretudo o esportivo brasi-
leiro, o qual tem optado por captar mais eventos do que significados. A abordagem,
o tipo de entrevista, os procedimentos e o produto final são completamente diferen-
tes. Sem dúvida, a dimensão subjetiva da memória do entrevistado, como veremos
adiante, é o grande trunfo da história oral.
Nós tínhamos clareza que nossos entrevistados já haviam concedido
inúmeras entrevistas em sua carreira esportiva dentro dos moldes do jornalismo.
Nossa intenção, portanto, era sugerir um outro tipo de diálogo e narrativa, aces-
sando, se possível, temas pouco explorados pelas mídias. Outra menção necessária,
nesse sentido, é a de que cada entrevista é importante exatamente por ser dife-
rente de todas as outras e por fornecer um campo de possibilidades compartilhadas
(PORTELLI, 1996; 1997b).

Experiências de pesquisa

Qualquer pesquisa nessa área com futebolistas consagrados terá de lidar


com uma dificuldade inerente ao processo de pesquisa: a busca por contatos e o
agendamento de entrevistas. O primeiro contato tem uma importância, digamos,
relativa para a viabilização da entrevista. De qualquer maneira, requer dos pesqui-
122 Futebol na sala de aula

sadores usar poucas e apropriadas palavras, além, é claro, de educação e cordiali-


dade. Ao obter algum número de telefone, fosse de instituições, de assessores de
imprensa dos clubes, fosse de empresários ou sócios desses atletas, nós ensaiáva-
mos várias vezes o que íamos dizer durante os poucos segundos de conversa. Não
podíamos falar nem demais, nem de menos.
Por indicação dos colegas da própria instituição museológica paulista, as
palavras “obrigatórias” utilizadas foram: pesquisador do Museu do Futebol, pesquisa
sobre futebolistas que atuaram no exterior e nomes dos entrevistados (Djalminha,
Careca ou Evair). Portanto, em uns 30 segundos, sintetizávamos uma apresentação
pessoal e da pesquisa, solicitando ao final uma entrevista e um e-mail para que se
pudesse explicar melhor do que se tratava.
A ideia era valorizar a importância dessa pessoa em uma entrevista dife-
rente – não nos moldes do jornalismo – para uma pesquisa acadêmica e, posterior-
mente, para o acervo do Museu do Futebol. A capacidade de sedução, porém, não
tinha como ir muito além disso. A concretização da entrevista dependia bem mais
do interesse do futebolista contatado. Se ele tivesse realmente vontade de dar seu tes-
temunho, acharia o tempo que sempre lhe servia de desculpa para não concedê-la.
Em muitos casos, o pedido de descrição da pesquisa partia dos próprios
intermediários. Alguns nos solicitaram comprovação do vínculo institucional com
a Universidade de São Paulo, outros acharam que o fato de nós anexarmos uma
declaração de matrícula no e-mail era uma atitude arrogante de nossa parte. Ou
seja, não havia uma solução que servia para todos os entrevistados, e cada um deles
reagia de uma maneira às nossas escolhas no primeiro contato.
Nenhum dos jogadores, curiosamente, disse não ter interesse em con-
ceder entrevista, possivelmente para não ser indelicado ou não arranhar a própria
imagem. De qualquer maneira, trata-se de pessoas que não têm tempo a perder,
muito ocupadas e de difícil acesso. É sabido que os futebolistas em atividade têm
uma rotina de trabalho intensa, com muitos treinos, concentrações, viagens, jogos
História oral e futebol 123

duas vezes por semana e poucas folgas (raramente passando de um dia). Além
disso, muitos deles têm compromissos com patrocinadores individuais e investem
parte dos seus rendimentos em negócios fora do futebol. Nesse sentido, outro fator
importante a ser levado em conta é o fato de eles passarem ou terem passado, no
caso dos ex-atletas, grande parte de suas vidas longe da família e dos amigos. No
pouco tempo que lhes resta, acreditamos que dificilmente concedem entrevista
para pessoas anônimas, como nós, embora tenhamos sempre valorizado no curto
tempo de contato com eles a importância de seu relato e da discussão sobre a vida
de atletas no exterior.
Quando o projeto Memórias de Boleiros foi iniciado, esperávamos que a
parceria com o Museu do Futebol facilitasse não só os contatos como o agendamento
de entrevistas com os jogadores e ex-jogadores de futebol. Não foi isso, porém, o que
ocorreu, apesar de reconhecermos que tenha havido algum progresso nesse sentido
por conta do auxílio e esforço dos demais colegas que participaram desta pesquisa,
em especial do pessoal do museu. Ao longo de semanas, conversávamos com fute-
bolistas ou com seus assessores, mesmo assim, sem sucesso. De tempos em tempos,
retomávamos alguns contatos, e nada de conseguirmos entrevistas.
Por vezes, ficávamos com a impressão de que as ligações não eram aten-
didas pelo fato de serem facilmente identificáveis, uma vez que o DDD 19 (Cam-
pinas-SP) já indicava, de antemão, que a ligação vinha de fora da cidade de São
Paulo. Aqui se faz necessário o diálogo com um adendo de Portelli (1997b, p. 21)
ao afirmar que “[...] quando fazemos uma entrevista, invadimos a privacidade de
outra pessoa e tomamos seu tempo”. Certamente, por isso, o contato com jogadores
e ex-jogadores de futebol para o projeto Memórias de Boleiros tenha se dado com
muita dificuldade. De todos os contatos frustrados, um nos chamou muito a aten-
ção: um ex-jogador que atuou por muitos anos na Europa e na Seleção Brasileira,
tendo sido campeão mundial. Em algumas das conversas pessoais que tivemos, ele
até concordou com relevância do debate, mas disse não ter tempo para tal.
124 Futebol na sala de aula

Essa questão de ter ou não ter tempo para a entrevista está ligada, em
boa parte dos casos, a quando a pessoa que será entrevistada não possui qual-
quer referência sobre o entrevistador. Essa condição é amenizada quando algum
entrevistado nos coloca em contato com outras pessoas que cumprem o critério
de recorte estabelecido para a pesquisa e entrevista. Quando isso ocorre, o tempo
entre o primeiro contato e a realização da entrevista reduz consideravelmente.
Vencida essa etapa inicial e com a entrevista agendada, fazíamos uma
pergunta simples, estimulando e dando ampla liberdade para o entrevistado iniciar
sua narrativa. O Museu do Futebol, pelo trabalho desenvolvido em outras pesquisas
com história oral e por ser influenciado pelo método utilizado pelo CPDOC/FGV,
tinha um roteiro da carreira do jogador a ser entrevistado em formato de linha
do tempo cronológica. Não raramente, as intervenções dos membros do museu
tinham por finalidade reconduzir os entrevistados para a sequência que haviam
estruturado.
Nós, como pesquisadores de outras linhas, preferíamos seguir um
roteiro mais aberto, de modo a permitir que o entrevistado escolhesse os cami-
nhos que quisesse para contar sua história de vida. Mesmo com essa possibilidade,
alguns entrevistados optaram por seguir em uma linha cronológica.
Apesar da disparidade em termos de conceitos e procedimentos de his-
tória oral, isso nunca foi um empecilho, muito menos dificultou o desenvolvimento
da pesquisa. Havendo sempre respeito, boa vontade e interesses comuns, o con-
junto de pesquisadores sempre encontrou um meio-termo capaz de satisfazer a
todos. Acreditamos, inclusive, que foi um grande aprendizado coletivo, uma vez
que, em conjunto, dividimos tarefas, debatemos procedimentos, realizamos entre-
vistas e conversamos sobre os temas abordados e as experiências reveladas pelos
entrevistados.
História oral e futebol 125

Algumas notas sobre a memória e o esquecimento

A memória registrada a partir da entrevista, carregada de subjetividade,


revela o quanto ela é seletiva. O não dito, aquilo que é silenciado, esquecido, omitido
ou mesmo a confusão de datas e/ou nomes, inclusive fatos, vão aparecer nas entre-
vistas em virtude de a narrativa sobre sua história se materializar no tempo presente
(BOSI, 2003; BLOCH, 2001; POLLAK, 1989; RICŒUR, 2007).
Para Bosi (2003, p. 54), “O conjunto de lembranças é também uma cons-
trução social do grupo em que a pessoa vive e onde coexistem elementos da escolha e
rejeição em relação ao que será lembrado”. A lembrança se torna mais efetiva quando
compartilhamos momentos vividos com pessoas importantes ou situações signifi-
cativas mesmo que isso aconteça tantos anos depois. Na mesma medida, teremos
dificuldades em nos lembrar de situações corriqueiras que ocorreram recentemente,
pelo fato de não terem sido compartilhadas com pessoas importantes. Isso porque
nossa memória se apoia na história vivida, em que as lembranças coletivas se aplicam
sobre as individuais. Para que isso ocorra, contudo, é preciso que as lembranças indi-
viduais existam, pois, do contrário, a memória funcionaria no vazio (HALBWACHS,
2006). E será nessa relação entre o vivido e a memória coletiva que guardaremos algu-
mas informações e descartaremos outras de nossa lembrança. Se o fato ocorreu numa
situação isolada em relação ao coletivo, a tendência será o esquecimento.
É preciso ressaltar que Portelli (1997b) faz uma crítica ao uso do termo
memória coletiva. Entende o autor que, sendo a memória social, ela apenas se torna
concreta quando é mentalizada ou verbalizada. Sua cautela parte do argumento de
que a memória é um processo individual, produzida em um meio social dinâmico,
e que, portanto, é muito arriscado situar memórias que estejam fora do indivíduo.
O que as entrevistas nos fizeram pensar sobre essa dimensão da memó-
ria coletiva pode ser pontuado pela noção de experiência, em especial quando ela
é compartilhada por um grande número de pessoas. Embora a percepção dessa
126 Futebol na sala de aula

experiência possa ser a mais diversa possível, ela produz, em certa medida, uma
dimensão coletiva. Nesse sentido, podemos pensar que o futebol, para o brasileiro,
pode pontuar sua vida, e que contar sua história é também um modo de contar a
história do clube pelo qual torce. Para além dessa dimensão, e como forma de enten-
der a importância da memória coletiva, podemos lembrar do dia 8 de julho de 2014.
Se perguntarmos para as pessoas onde e com quem estavam nesse dia, um grande
número delas conseguirá relatar em detalhes sua experiência da derrota brasileira
na semifinal da Copa do Mundo disputada em solo nacional, o famigerado “7 x 1”,
mesmo que a pessoa entrevistada não goste de futebol.
De acordo com Pollak (1989; 1992), é impossível resgatar e preservar a
memória pelo fato de que, ao contar sua história, o indivíduo estabelece, a partir de
uma seleção de fatos mais significativos, uma estrutura lógica, contínua e conden-
sada. Não se pode desconsiderar que a memória comporta uma série de elementos
quando ela é acionada e, por isso, poderá ser falível, mentirosa, tendenciosa, inten-
cional, seletiva, provisória, ambígua, emocional, construída, fluida, dinâmica.
Nas palavras de Portelli (1997a, p. 33), a memória não é “[...] apenas
um repositório passivo de fatos, mas também um processo ativo de criação de
significações”. Ao selecionar, a partir dessas significações, a memória vai sendo
recriada e repensada ativamente pelo entrevistado fazendo que sejam destacados
eventos significativos de sua vida e ocultadas experiências traumáticas.
Ao não contar algo, seja por esquecimento, seja por não querer tornar
público um determinado acontecimento, torna-se, paradoxalmente, um elemento
importante da entrevista. Não é sem razão que Portelli (1997a, p. 34) argumenta
que “[...] a informação mais preciosa pode estar no que os informantes escondem e
no fato que os fizeram esconder mais que no que eles contaram”.
Como a memória irá selecionar fatos localizados no tempo e no
espaço, a partir de eixos comuns (BOSI, 2003), não saberemos se o fato vivido
narrado foi realmente esquecido pelo entrevistado ou se ele o omitiu/censurou
História oral e futebol 127

por não querer citar nomes ou envolver terceiros. O tempo entre o primeiro con-
tato e a realização da entrevista permitiu ao entrevistado pensar sobre sua car-
reira esportiva e reconstruir alguns fatos, inclusive durante as gravações, sobre-
tudo quando se trata de um assunto espinhoso (fracasso esportivo, por exemplo)
ou tabu (racismo). Especialmente acerca da experiência no exterior, estávamos
interessados em ouvir sobre temas que poderiam gerar algum tipo de reflexão
e análise, principalmente a questão das identidades (clubística, profissional,
nacional, étnica, social). Afinal, tendo como recorte das entrevistas a condição
de terem atuado no exterior, um elemento que estaria presente na subjetividade
das entrevistas era exatamente a condição que os uniam: a de ter sido em algum
momento da carreira um imigrante, por mais que não se enxergassem como tal.
De modo a exemplificar a discussão aqui elaborada acerca de memória
e esquecimento, trazemos um excerto de uma das entrevistas da pesquisa Memó-
rias de Boleiros, especificamente a de José Marcelo Ferreira, que nasceu na cidade
de Oieiras, Piauí, no ano de 1973, vinha de família numerosa (dez filhos) e viveu
na pobreza até se profissionalizar. Nele, Zé Maria, como é conhecido no universo
do futebol, revela ter sofrido um caso de racismo durante uma partida na Itália,
onde atuou por oito temporadas (1996-1998, 2000-2006). Vejamos:
Dentro de campo, já aconteceu comigo de um adversário me xingar. Foi
uma coisa que eu fiquei muito chateado porque aconteceu em Parma.
Era Parma e Perugia, esse jogo nós perdemos de 5 a 1, jogamos mal pra
caramba... E um jogador do Parma fez uma falta no final do jogo. Quando
eu fui bater, ele me segurou, e eu falei:

— Cara, para com isso. Pô, vocês estão ganhando de 5 a 1, não tem neces-
sidade disso.

— Sai pra lá, negro...

O árbitro estava a meio metro de distância e me disse:

— Zé, deixa pra lá. Esse cara é ignorante, ele é assim mesmo.
128 Futebol na sala de aula

Era o Collina, o melhor árbitro do mundo... Se o racismo vem da torcida


é uma coisa, agora se vem do seu companheiro de profissão, na tua frente,
falar uma besteira dessas?! Ali, sim, tem o problema de o jogador reagir, que
é uma coisa bem direta. Eu tive que contar não foi nem até dez, mas até mil!...
Repliquei:
— Cara... não vale nem a pena falar com você.
Não vale mesmo. Se eu fosse um cara com a cabeça um pouco mais quente,
teria reagido ali no campo e seria pior pra mim porque eu seria expulso e
ninguém saberia o que ele me falou. O árbitro escutou, mas não falaria nada.
Se ele quisesse fazer alguma coisa, teria expulsado o cara... São detalhes que
um jogador negro precisa ter autocontrole, senão, acaba se perdendo...

Zé Maria relatou um episódio que teria ocorrido em um jogo entre


Parma e Perugia, disputado no Estádio Ennio Tardini, arbitrado por Pierluigi
Collina, e cujo placar final teria sido 5 x 1 a favor da equipe local. Embora tenhamos
pesquisado em outras fontes, não encontramos nenhuma partida com a convergên-
cia de todas essas específicas informações. Dois foram os jogos encontrados com
os quais ele pode ter se confundido. No primeiro e mais plausível deles, os dados
conferem, exceto o placar (Parma 5, Perugia 0) e o árbitro (Roberto Rosetti). No
segundo, as informações discordantes são o clube em que Zé Maria atuava (Inter de
Milão) e o placar do jogo (2 x 2).
Os aspectos essenciais desse trecho de sua narrativa são o caso de racismo
sofrido pelo entrevistado, obviamente, a ocorrência do episódio em/contra o Parma,
e a perpetração ter sido cometida por um colega de profissão. O clube exato em que
ele atuava naquele momento, o árbitro e o placar da partida são elementos menos
importantes. Ainda assim, as distorções provocadas por sua memória sugerem a
traumaticidade do episódio. A goleada supostamente sofrida por sua equipe serve
para ressaltar como aquela ofensa racial era “evitável” – aliás, quando não o é? O uso
desse termo polêmico, talvez por falta de outro mais expressivo, se deve ao fato de o
racismo no futebol ser encarado, por vezes, inclusive por nossos entrevistados, como
História oral e futebol 129

uma forma de “provocação”. Em outras palavras, trata-se de uma maneira de deses-


tabilizar emocionalmente o atleta adversário durante o prélio, a fim de ele produzir
esportivamente menos do que pode, e o clube do agressor sair vitorioso.
A referência ao “melhor árbitro do mundo”, por sua vez, mais até do que
ao Pierluigi Collina precisamente, tem a intenção de revelar como a “cultura do
futebol” é estruturalmente permissiva ao racismo (TONINI, 2016). Afinal, se nem
o juiz que supostamente melhor fazia cumprir as regras dessa modalidade espor-
tiva naquela época, ao testemunhar um caso de racismo, era capaz de expulsar o
atleta agressor, o que se pode esperar de todos os outros que não aplicavam a regra
com a mesma hipotética competência? Além de ter ouvido, demonstrado discor-
dar e não ter tomado nenhuma atitude contra o perpetrador, o árbitro em questão
ainda tentou persuadir Zé Maria a não reagir diante do insulto racial, dizendo a
seguinte frase: “Zé, deixa pra lá. Esse cara é ignorante, ele é assim mesmo”.
Até a inexatidão dos dados objetivos, assim, é reveladora da intensi-
dade da experiência subjetiva narrada. Não sem razão, o futebolista disse ter ficado
“muito chateado” pelo fato ter acontecido justamente em Parma, cidade onde
morara, e contra o clube homônimo, no qual atuara por duas temporadas (1996-
1998), exatamente para o qual havia sido transferido do Brasil para a Itália. Zé
Maria, no fim, foi quem estabeleceu entre os entrevistados o limite da tolerância
ante o racismo no futebol: “Se o racismo vem da torcida é uma coisa, agora se vem
do seu companheiro de profissão, na tua frente, falar uma besteira dessas?!” Ao
passo que o ato racista praticado pelo torcedor adversário é visto por alguns entre-
vistados como fruto da “paixão”, aquele realizado por um “companheiro de profis-
são” é encarado pela maioria deles como inaceitável. Face a face com o racista, é
preciso ter “autocontrole” e “contar até mil!”, conforme expôs Zé Maria. Enfim, se
ele retrucasse a violência verbal com a violência física, certamente a federação de
futebol imporia uma dura pena a ele, enquanto o agressor talvez saísse ileso por ser
difícil comprovar sua ofensa racial.
130 Futebol na sala de aula

Considerações finais

Nesse jogo entre lembrança e esquecimento, provavelmente, algumas


experiências traumáticas podem não ter sido compartilhadas. Se se esqueceram ou
não quiseram contar, os fatos narrados indicam que os entrevistados nos contaram a
sua verdade (BOSI, 2003). Nossa mais importante função como entrevistadores era
dar-lhes ouvidos, registrar a memória deles e, com os textos resultantes das narrati-
vas orais que compõem um projeto de pesquisa, discutir elementos importantes das
vivências desse grupo profissional peculiar.
Sem a história oral, esse tipo de abordagem subjetiva dificilmente seria
registrado. Documentos oficiais (como súmulas) nem mencionam a existência de
casos de racismo, por exemplo. Documentos escritos (como jornais), no máximo,
citam a ocorrência desses episódios e mostram as reações momentâneas das vítimas
de racismo. Entrevistas diretas feitas por jornalistas trazem-nos apenas respostas cur-
tas e pouco introspectivas a respeito. Em especial, quando se trata de um tema tabu
como esse, a história oral pode trazer grandes contribuições para o conhecimento.
Em nosso capítulo, procuramos abordar as possibilidades que a história
oral proporciona quando a utilizamos como método para pesquisas que envolvam
o futebol. Ao tensionar novas fontes documentais, ela pode apresentar novos cami-
nhos de acesso a esse esporte, de descoberta de histórias que foram desconsidera-
das pela análise da historiografia tradicional e que são fundamentais para entender
e analisar esse fenômeno em sua dimensão multifacetada e plural.

Referências

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TOLEDO, Luiz Henrique de. Futebol e teoria social: aspectos da produção científica brasileira
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TONINI, Marcel Diego. Dentro e fora de outros gramados: histórias orais de vida de futebolistas
brasileiros negros no continente europeu. 2016. Tese (Doutorado em História Social) - Facul-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

Sugestões de fontes para uso em sala de aula


Documentário
CONVERSA com JH. Direção e roteiro: Ernesto Rodrigues. Produção: Carolina Lauriano,
Renata Fazzio e João Rodrigues. Elenco: João Havelange, Geneton Moraes Neto, George Moura,
Ricardo Pereira e outros. Rio de Janeiro, Brasil: Bizum Comunicação, 2013. HD (93 minutos),
son., color.

Filmes
BOLEIROS: era uma vez o futebol. Direção: Ugo Giorgetti. Produção: Malu Oliveira. Elenco: Otávio
Augusto, Adriano Stuart, André Abujamra, Cazé Peccini, João Acaiabe e outros. São Paulo, Brasil:
Paris Filmes, 1998. 1 DVD (93 min), son., color.

OS REBELDES do futebol. Direção: Gilles Perez e Gilles Rof. Produção: Eric Cantona, Jean
-Marie Cantona, Joel Cantona, Cyrille Perez e Gilles Perez. Elenco: Eric Cantona, Didier Dro-
gba, Carlos Caszely, Rachid Mekhloufi, Predrag Pasic, Sócrates e outros. Issy-les-Moulineaux,
França: ARTE France, 13 Productions, 2012. 1 DVD (92 min), son., color.
História oral e futebol 133

Textos
MELO, Victor Andrade de; DRUMOND, Maurício; FORTES, Rafael; SANTOS, João Manuel
Casquinha Malaia. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.

SANTHIAGO, Ricardo; MAGALHÃES, Valéria Barbosa de. História oral na sala de aula. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
SEGUNDO TEMPO
No campo das torcidas
organizadas de futebol:
interações sociais e aprendizagens
Felipe Tavares Paes Lopes e
Rosana da Câmara Teixeira

Introdução

A primeira geração de torcidas organizadas do Brasil surgiu no fim da


década de 1930 e começo da década de 1940, em pleno Estado Novo (1937-1945)1
e durante a Segunda Guerra Mundial. Esses grupos foram gradualmente perdendo
força para novos modelos de associações, que passaram a ocupar cada vez mais
espaço nas arquibancadas brasileiras. Essa segunda geração de torcidas, ainda
muito atuante, também despontou durante um regime antidemocrático: a ditadura
civil-militar (1964-1985). Mais exatamente, no fim dos anos 1960 e no começo dos
anos 1970, nos chamados “anos de chumbo”, período considerado mais opressor.
Ao mesmo tempo em que a oposição sofria com a atuação brutal dos aparelhos
repressivos de Estado, apoiados frequentemente por organizações paramilitares de

1 Regime político de caráter centralizador, autoritário e anticomunista, que foi instaurado por Getúlio Vargas.
138 Futebol na sala de aula

extrema direita, o país vivia certa estabilidade econômica. O futebol brasileiro, por
sua vez, tornava-se mais profissional e espetacularizado, com as primeiras trans-
missões ao vivo e em cores, e com a realização dos primeiros campeonatos nacio-
nais. Também não podemos esquecer que, no período, o mundo vivia, ao mesmo
tempo, as disputas, tensões e conflitos resultantes da Guerra Fria2 e uma renovação
de valores, levada a cabo por movimentos juvenis de diferentes partes.3
Inspirados pelo espírito contestador desses movimentos, jovens torce-
dores decidiram fundar associações, reivindicando autonomia à diretoria dos clu-
bes de futebol e adotando um novo estilo de torcer, a fim de demarcar distinção
em relação aos primeiros agrupamentos caracterizados pelo etos carnavalesco das
arquibancadas, pelo apoio incondicional ao time, por seus torcedores-símbolo,
pelo comportamento amistoso no estádio e pelo reconhecimento da mídia (TEI-
XEIRA; HOLLANDA, 2016).
No fim da década de 1970 e durante a década de 1980, o Brasil passava
pelo período da redemocratização, marcado por uma ampla campanha por eleições
diretas para presidente, que levou milhares de pessoas às ruas das cidades em 1984.
Nesse contexto, o estilo de torcedor representado pela segunda geração de torcidas
organizadas, até então concentrado no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, espalhou-se
pelas outras regiões do país. Ao longo dos anos, essas associações se tornaram,
cada vez mais, burocráticas e empresariais. Em virtude do crescimento significa-
tivo, foram se dividindo em uma miríade de subgrupos espalhados pelos bairros
das cidades, revelando-se, cada vez mais, autônomos, o que dificultava o controle
por parte das lideranças (TEIXEIRA; LOPES, 2018). É nesse momento, também,
que a música funk começa a entrar nos estádios e que tais torcidas têm sua imagem

2 A Guerra Fria faz referência ao período histórico que envolveu uma série de conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Esses conflitos produziam uma grande tensão no mundo todo, devido ao poderio militar de ambas as nações, que dispunham de armamentos
nucleares. Oficialmente, tal período vai do fim da Segunda Guerra Mundial (1945) à dissolução da União Soviética (1991).
3 Esses movimentos tinham forte caráter contestatório e realizaram manifestações em diversas partes do mundo contra os regimes autoritá-
rios vigentes e contra a Guerra do Vietnã. Dentre esses movimentos, destaca-se o movimento hippie, que privilegiava um modo de vida comunitário
e abraçava aspectos do budismo, do hinduísmo e do xamanismo norte-americano. Os hippies se contrapunham ao patriarcalismo, ao autoritarismo,
ao capitalismo, ao consumismo e pregavam, dentre outras coisas, o amor livre e o pacifismo.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 139

atrelada à delinquência juvenil, ao consumo de drogas e à violência urbana em


geral (HOLLANDA, 2009; TEIXEIRA, 2004).
Observou-se, ainda, a presença significativa de jovens de classes popu-
lares, com destaque para aqueles vindos das periferias das grandes cidades, muito
embora se encontre, entre seus adeptos, segmentos das classes médias.
Já na primeira metade dos anos de 1990, uma série de confrontos vio-
lentos, principalmente envolvendo as principais torcidas de São Paulo, maculou
ainda mais a imagem das organizadas, e o Poder Público começou a adotar diversas
medidas repressivas, que vigoraram fortemente na segunda metade da década. Nos
anos 2000, a incidência desses combates entre torcidas (envolvendo tanto a luta
física, quanto o uso de facas e armas de fogo), eclodiu em diferentes regiões do
país. Ao mesmo tempo, começaram a se constituir no Rio Grande do Sul e no Rio
de Janeiro os movimentos populares de torcedores, inspirados nas barras argenti-
nas. Tais movimentos buscavam se distinguir do modelo de torcer das organiza-
das, cada vez mais criminalizado pelo Poder Público e estigmatizado nos meios de
comunicação.
Por outro lado, a realização dos megaeventos esportivos no Brasil
(Copa do Mundo de Futebol de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016) desencadeou
uma série de transformações estruturais afetando a dinâmica dos diferentes agru-
pamentos torcedores. A fim de receber esses megaeventos, estádios foram refor-
mados, outros, construídos, passando a contar, dentre outras coisas, com cadeiras
em todos (ou quase todos) os setores, muitas áreas exclusivas (e, portanto, exclu-
dentes) e diversos aparatos tecnológicos (grandes telões, por exemplo). Esse novo
padrão de estádio, seguindo o modelo das arenas europeias, visava oferecer mais
segurança e conforto para o torcedor, individualizando o ato de torcer e dificul-
tando a formação de massas compactas e fervilhantes. Ademais, buscava atrair um
público com um alto poder aquisitivo, mais preocupado com a fruição estética do
jogo e em consumir os produtos e serviços oferecidos a ele, do que com o apoio ao
140 Futebol na sala de aula

time. Como não poderia deixar de ser, esse novo contexto trouxe impactos para a
relação das torcidas organizadas com espetáculo futebolístico.
Este capítulo aborda justamente o estado atual dessas relações. Mais
exatamente, objetiva contribuir para a compreensão das interações estabelecidas
no campo das torcidas organizadas de futebol, analisando, dentre outras coisas, os
processos de aprendizagem na construção dos corpos e das subjetividades de seus
integrantes. Também serão analisadas as instituições, os agentes, as regras e os
objetos de disputa em torno dos quais tal campo se constitui. Para alcançar o obje-
tivo definido, nos baseamos em resultados de nossas próprias pesquisas sobre o
tema, iniciadas há mais de 20 anos, e recorremos à literatura acadêmica disponível.
O texto foi organizado em três seções. Começamos pela análise das
propriedades específicas do campo de interações das torcidas organizadas. Depois,
examinamos a estrutura, convenções, atores sociais, recursos mobilizados e as lutas
dessas associações em prol da defesa de seus interesses. Feito isso, discutimos os
processos de socialização e aprendizagem envolvidos na construção dos corpos e
das subjetividades dos torcedores organizados e as estratégias de transmissão dos
seus saberes e práticas.

Algumas propriedades específicas do campo de interações


das torcidas organizadas

O campo de interações das torcidas organizadas constitui um micro-


cosmo relativamente autônomo. Assim, para compreendermos sua dinâmica, não
podemos nos contentar em estabelecer uma relação direta com o contexto social,
político e histórico mais amplo. Nossa hipótese é que não é possível, por exemplo,
entendermos o acirramento das tensões em determinada região, ou ainda, o sur-
gimento de novas modalidades de agrupamentos de torcedores, exclusivamente a
partir da mudança de um determinado governo, ainda que este possa ser um ele-
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 141

mento importante. O campo em questão, como qualquer outro, obedece a leis mais
ou menos específicas, e seu funcionamento depende da existência de
[...] objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de
habitus que impliquem no conhecimento e reconhecimento das leis imanen-
tes do jogo, dos objetos de disputas, etc. (BOURDIEU, 1993, p. 89).

Uma das manifestações mais visíveis da (relativa) autonomia do


campo de interações das torcidas organizadas é a sua capacidade de escapar às leis
externas, refratando demandas e pressões de outros campos sociais. Por exemplo:
existe uma espécie de “código de ética” implícito que diz que os problemas e con-
flitos entre agrupamentos rivais devem ser resolvidos entre eles, sem a mediação
do Estado. Com efeito, se uma torcida é alvo de uma emboscada e seus integrantes
são gravemente feridos, seus líderes tendem a não registrar um boletim de ocor-
rência e apelar para os mecanismos legais tradicionais. Contudo, possivelmente,
planejarão um revide, procurando, assim, dar o troco, como se diz na linguagem
torcedora. Uma das principais consequências disso é a constituição de um ciclo
sangrento de vinganças, muito difícil de ser rompido (TEIXEIRA, 2004).
O pertencimento ao referido campo de interações produz (ou, ao
menos, reforça) nos seus integrantes a crença de que vale a pena jogar seu jogo
específico e lutar por seus troféus particulares. Certamente, um dos principais tro-
féus desse campo é a obtenção, por meio da pilhagem, de materiais de agrupamen-
tos rivais, tais como camisetas, bonés e bandeiras. A pilhagem é uma prática que
confere muito prestígio. Não à toa, o material roubado costuma ser publicado nas
redes sociais virtuais, como páginas do Facebook (LOPES, 2019).
Como qualquer campo de interações, o das torcidas organizadas é assi-
metricamente estruturado. Existem, pois, torcidas dominantes e torcidas domina-
das. O vocabulário nativo é muito revelador: para os torcedores organizados, há as
torcidas de “primeiro”, “segundo” e “terceiro escalão”. As primeiras tendem a ser
as maiores em número de integrantes e as últimas, as menores. Essa classificação
142 Futebol na sala de aula

também pode ser utilizada para identificar aquelas que são consideradas as mais
temidas, impondo respeito em função das brigas que se envolvem.
Assim como ocorre no referido campo, a estrutura interna das torcidas
é assimétrica. Há torcedores com maior ou menor poder de intervir nos rumos
dos seus acontecimentos. Tal poder depende, em grande medida, da quantidade
do capital simbólico acumulado, ou seja, do reconhecimento dos outros torcedores
(BOURDIEU, 1993). Nesse campo de interações, o reconhecimento é conquistado
por meio de uma série de provas de virilidade, cujo propósito é avaliar a capacidade
de aguentar as adversidades. Dentre essas provas, destacam-se a frequência em
caravanas para acompanhar os jogos fora de casa, especialmente nos lugares mais
distantes e mais hostis4 e a disposição para participar de confrontos (ALABAR-
CES, 2012; TEIXEIRA, 2004). Essa participação, todavia, não é caótica ou espontâ-
nea, mas, ao menos no plano discursivo, obedece a uma série de regras e códigos de
honra. Utilizar arma de fogo, pisotear adversários caídos no chão e/ou deixar um
colega de torcida para trás são vistas como ações covardes. Com frequência, crises
e conflitos são motivados justamente em função da quebra dessas regras e códigos,
que altera o sistema de interações entre elas.
Ademais, é preciso observar que o significado e a função social dos
confrontos entre torcidas organizadas variam de acordo com a “ideologia” de cada
uma, ou seja, segundo o conjunto de valores que norteia sua ação. As chamadas
“torcidas-chopes” e “torcidas-rastas” (pelas suas ligações com o hábito de consumir
bebidas alcóolicas e com a cultura rastafári, respectivamente) são mais conhecidas
pela sua irreverência e bom humor. Para elas, o incentivo ao time é central, e a riva-
lidade tende a se resumir às provocações na arquibancada. Já as torcidas de “pista”
são aquelas que valorizam a disposição para o embate físico como uma espécie de
“obrigação moral” e demonstração de fidelidade ao coletivo. Para muitos de seus

4 Nos quais existe um longo histórico de confrontos violentos com a torcida local e/ou com as forças policiais, por exemplo.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 143

integrantes, a adrenalina e o risco oferecidos por esses embates são bastante atrati-
vos. Mas, mesmo entre estas últimas torcidas, tais embates são, com certa frequên-
cia, encarados como uma resposta, uma consequência, e não uma atitude intencio-
nal (TEIXEIRA; LOPES, 2018).
Também é interessante notar que a circulação pelo campo das torcidas
organizadas permite que seus agentes adquiram o domínio de suas leis imanentes,
que não estão escritas, mas inscritas na realidade, em estado de tendências. Isso possi-
bilita, como diria Bourdieu (1993), que adquiram certo sentido do jogo. Assim como
um atacante que sabe onde a bola será lançada e se antecipa ao zagueiro para chegar
antes e partir livre em direção ao gol, um torcedor organizado experiente consegue se
antecipar à ação de uma torcida rival, sem necessariamente recorrer ao cálculo. Sabe
o que ela fará na arquibancada ou no trajeto ao estádio, por exemplo. Sabe, inclusive,
se deslocar pela cidade. Isso porque esta é demarcada em territórios amigos e inimi-
gos. Existe toda uma divisão territorial invisível para os leigos no tema. Apenas quem
é de torcida tem conhecimento de quando, como e onde é possível circular com rela-
tiva segurança com o uniforme de sua organizada. Afinal, entrar “fardado” em terri-
tório inimigo é, em qualquer momento, visto como uma afronta e sinônimo de risco.

Estrutura, convenções, recursos, atores sociais


e lutas políticas das torcidas organizadas

Até aqui, destacamos alguns recursos, esquemas, regras e convenções


do campo de interações das torcidas organizadas. Agora, focalizaremos as dinâmi-
cas características dessas associações. Estas são instituições sociais no sentido de
que apresentam sua própria constelação de regras e recursos relativamente está-
veis, que dão forma às relações sociais que são estabelecidas por elas e dentro delas
(THOMPSON, 2000). Em geral, essas instituições são constituídas por jovens do
sexo masculino, entre 14 e 25 anos de idade, com origens e trajetórias sociocul-
turais e econômicas distintas, mas que tendem a compartilhar um “estilo de vida
144 Futebol na sala de aula

de periferia”,5 que envolve a adoção de uma série de condutas verbais, corporais e


éticas. O uso de gírias e expressões típicas das zonas mais afastadas da cidade, por
exemplo, é recorrente. O compartilhamento de determinados valores morais, tam-
bém. Por exemplo: as torcidas paulistas costumam exigir de seus integrantes “pro-
cedimento”, termo muito utilizado nos discursos populares no contexto da cidade
de São Paulo e que se refere ao compromisso de honrar acordos e estabelecer alian-
ças no domínio da sociabilidade urbana (TOLEDO, 2012).
Em relação à estrutura física das torcidas organizadas, as maiores pos-
suem sedes, que ficam diariamente abertas e servem de ponto de encontro para
seus integrantes e de apoio para as torcidas aliadas. Nas sedes, são realizadas festas,
churrascos, feijoadas e até campeonatos de futebol. Seus contornos e significados
não são, consequentemente, sempre os mesmos, mas dependem do evento reali-
zado. Contudo, mesmo naquelas que possuem uma estrutura mais modesta, a sede
é um espaço social fundamental. De lá, costumam partir as caravanas para os jogos
fora de casa. As sedes comercializam produtos da torcida, tais como jaquetas, cami-
setas, bonés, chaveiros, adesivos e canecas. Esse material é uma das suas principais
fontes de receita para as torcidas organizadas, que também faturam com caravanas,
festas e, em alguns casos, com a revenda (ilegal) de ingressos.
Em relação à distribuição e circulação do poder, algumas possuem um
grupo e lideranças que se reproduzem por anos no poder, inclusive por meio do uso
da força bruta. Outras são mais democráticas e realizam eleições periódicas para pre-
sidente e para o conselho deliberativo. A despeito dessas (importantes) diferenças,
tais torcidas tendem a ser instituições fortemente hierarquizadas, estruturadas, a par-
tir de uma relação de mando e obediência. De certa forma, reproduzem, no seu inte-
rior, o autoritarismo que caracteriza a sociedade brasileira. Conforme Chauí (2006),
estamos acostumados a pensar que o Brasil passa, de tempos em tempos, pelo auto-

5 Esse perfil, de acordo com Toledo (2012), não pode ser aplicado diretamente às lideranças das torcidas organizadas, que apresentam
algumas particularidades do ponto de vista etário, geracional e participativo.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 145

ritarismo das ditaduras. Esse costume, todavia, oculta o fato de que o autoritarismo é
estrutural, ou seja, de que ele é o próprio modo de ser e de se organizar dos brasileiros
– que conservam, em suas relações cotidianas, os traços dos séculos de escravidão
que marcaram a história do país.
Outro traço característico da sociedade brasileira que é reproduzido
no interior das torcidas organizadas, mas que, com certa frequência, aparece mas-
carado é o sexismo.6 Sob a imagem da proteção, várias práticas que oprimem as
mulheres são legitimadas, encobrindo sua real força e limitando seu campo de ação
(CHAUÍ, 2006). Por exemplo: em jogos considerados de risco, as mulheres não
podem participar das caravanas. Vistas como frágeis, são estimuladas, muitas vezes,
a se engajarem em práticas habitualmente associadas ao universo feminino, como
aquelas relativas ao cuidado. Assim, se, por um lado, com raríssimas exceções, não
existem presidentes de torcidas mulheres ou ocupando a “linha de frente” das brigas,
por outro, é possível encontrá-las nos departamentos sociais, onde são responsáveis,
muitas vezes, pela organização de campanhas e eventos.
Vale destacar que as mulheres, em algumas torcidas, sequer podem
bandeirar ou tocar instrumentos. Essa falta de acesso aos bens simbólicos mais
valorizados é reveladora de que elas fazem parte de uma subcategoria de torcedores
organizados, menos valorizada. Inclusive, muitos torcedores homens costumam
dizer que as mulheres só entram na torcida para arrumar namorado. Ou, ainda,
que vivem fazendo fofoca. Por essa razão, as torcedoras organizadas têm de provar
o tempo todo que realmente se importam com a associação. Outra questão que
indica que elas participam de uma subcategoria de torcedores é que não precisam
passar pelos rituais de batismo dos homens.
O sexismo nas torcidas organizadas relaciona-se aos padrões de mascu-
linidade vigentes orientados pelo elogio da força e da virilidade, conforme já anteci-

6 Aqui, vale ressaltar que ainda existe uma lacuna na literatura sobre torcidas organizadas relativa à discussão sobre as práticas e representações
das integrantes mulheres dessas torcidas. Consideramos, portanto, que, para o aprofundamento das análises aqui apresentadas sobre o sexismo, é de
fundamental importância o desenvolvimento de novos estudos sobre o tema.
146 Futebol na sala de aula

pamos. Estes, por sua vez, estabelecem e sustentam uma série de práticas homofó-
bicas. O uso de brincos, por exemplo, tende a ser visto como coisa de “veado” e, por
essa razão, a ser rejeitado. Aqui, cabe salientar que a homofobia está visceralmente
ligada à lógica da dominação. Nesse sentido, o estigmatizado é, principalmente, o
homossexual passivo. Um dos gritos de guerra contra a torcida do Corinthians é
revelador: “Ei, galinha preta, vem cá fazer chupeta!” Também cabe destacar que,
longe de se restringir às organizadas, a homofobia é um problema presente nos
mais diferentes setores dos estádios. Não à toa, uma prática herdada do México e
muito difundida no futebol brasileiro é o grito de “bicha” para o goleiro adversário,
quando este repõe a bola em jogo. Mas, se o machismo e a homofobia são práti-
cas amplamente difundidas dentro das torcidas organizadas, o mesmo não se pode
dizer em relação ao racismo. Com isso, não estamos, obviamente, afirmando que
esse tipo de prática não ocorra. Já houve casos, inclusive, em que a Polícia Militar
identificou grupos neonazistas nesses agrupamentos, como ocorreu em 2007 no
Rio Grande do Sul.7 Todavia, de modo geral, as torcidas organizadas condenam
publicamente a discriminação racial, levando, inclusive, grandes bandeiras para
denunciá-la, principalmente no dia da Consciência Negra.8
A luta contra o racismo soma-se a diversas outras. Historicamente, as
torcidas organizadas defendem um futebol mais popular, realizando protestos, por
exemplo, contra o alto valor do preço dos ingressos e pela supressão das cadeiras
nos locais destinados a elas. Hoje em dia, compartilham a agenda global do movi-
mento contra o “futebol moderno” e criticam, fortemente, a elitização dos estádios
e a ampliação dos dispositivos de controle e de repressão, estimulados pela realiza-
ção dos megaeventos esportivos supramencionados.

7 Disponível em: https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,pm-identifica-movimento-neonazista-em-torcida-do-gremio,59388. Acesso


em: 18 abr. 2019.
8 Esse dia é celebrado em 20 de novembro, data que coincide com a morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares, em 1695. Hoje em dia,
é feriado em diversos municípios e estados brasileiros.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 147

Em alguns momentos específicos, a luta política das torcidas organizadas


transcendeu o campo do futebol e alcançou o campo social mais amplo. Por exemplo,
no fim da década de 1970, quando o Brasil ainda vivia sob o jugo da ditadura civil-
militar, algumas torcidas, como os Gaviões da Fiel, do Corinthians, fizeram campa-
nha pela anistia ampla, geral e irrestrita dos exilados políticos. Mais recentemente, em
2016, a torcida organizou uma série de protestos, dentro e fora dos estádios, a favor da
abertura da “CPI da merenda”, após denúncias de desvios de verbas para alimentação
nas escolas públicas da rede de ensino do estado de São Paulo. Dentre os acusados,
estava o então presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp)
e antigo desafeto das organizadas paulistas, o deputado Fernando Capez9 (LOPES;
HOLLANDA, 2018). Já em 2018, várias torcidas homenagearam a vereadora Marielle
Franco, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e defensora dos direitos humanos,
que foi executada a tiros junto ao seu motorista Anderson Mathias Pedro Gomes.
No entanto, devido ao histórico de rivalidades violentas, as torcidas
organizadas formam um campo fragmentado – o que, com frequência, as impede
de se transformarem num desafio real às forças dominantes do futebol brasileiro.
Tendo em vista essa fragmentação, elas criaram, ao longo das décadas, entidades
representativas. Com isso, procuraram estabelecer algum tipo de unidade, inde-
pendentemente das diferenças e divisões que possam separá-las. Atualmente, a
mais importante é a Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil (Ana-
torg). A Anatorg representa, segundo seus diretores, cerca de um milhão e meio de
pessoas e foi anunciada em 2014, no III Seminário Nacional de Torcidas Organiza-
das, realizado em Belo Horizonte.10 Basicamente, a associação objetiva fomentar o
diálogo entre as próprias torcidas organizadas e entre elas e o Poder Público, além
de defender os direitos dos torcedores organizados.

9 O deputado ganhou notabilidade pública em meados da década de 1990, quando atuava como promotor público e realizou uma cruzada
jurídica contra as organizadas paulistas. Os protestos dos Gaviões da Fiel não deixaram de ser, portanto, também uma resposta a essa cruzada.
10 Esse, assim como outros seminários de torcidas, contou com o apoio logístico e financeiro do Ministério do Esporte. Aqui, cabe destacar que
a relação entre o Estado brasileiro e as torcidas organizadas foi fortalecida principalmente durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
148 Futebol na sala de aula

A construção social do corpo e


da subjetividade dos torcedores organizados

Ainda que para se associar oficialmente a uma torcida organizada seja


necessário apenas o preenchimento de um cadastro informando alguns dados pes-
soais e retirar a carteirinha, os novos membros tornam-se efetivamente torcedores
organizados por meio do engajamento em uma série de rituais, práticas e sociali-
zações. Além dos encontros antes dos jogos e da participação nas arquibancadas,
a primeira caravana possui um papel importante: é lá onde são realizados os trotes
– que muitas vezes envolvem algum tipo de agressão física e humilhação – que
legitimam a entrada do novo integrante no grupo.
Com o passar do tempo, o novato vai adquirindo uma espécie de habi-
tus de torcedor organizado (BOURDIEU, 1993). Esse pode ser entendido como
uma espécie de matriz comum das práticas e representações de todos os (ou, ao
menos, dos mais ativos) membros das associações. Graças a essa matriz, decorrente
de uma percepção comum de mundo forjada e interiorizada durante a trajetória
no mesmo universo, cada torcedor organizado tende a ser levado a agir, como os
demais, em condições análogas de existência. Afinal, suas experiências torcedoras
engendram esquemas similares de percepção, classificação e avaliação do mundo
social. Esquemas que constituem um tipo de saber prático, ou seja, um conheci-
mento voltado para a ação, para a práxis. Um conhecimento que se aplica, antes de
tudo, ao próprio corpo.
O campo de interação das torcidas organizadas estabelece e sustenta,
assim, determinadas formas de se relacionar com o corpo. Formas que seguem os
princípios de visão e divisão sexual do trabalho dessas torcidas. Já vimos que, no
referido campo, os homens são guiados por um modelo de “masculinidade agres-
siva”, que deve ser permanentemente colocado à prova em desafios que exigem
grande capacidade de aguentar as adversidades, como os embates corporais. Os
corpos dos torcedores organizados são, de certa forma, guardiões desses princípios.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 149

Mais exatamente, são modelados por eles, ao mesmo tempo em que os expressam.
E, ao fazerem isso, forjam uma identidade e delimitam o pertencimento grupal, que
distingue os iguais dos “outros” (ZUCAL, 2010).
Um torcedor organizado deve possuir um corpo “viril”, e isso significa
rejeitar, por oposição, um corpo visto como “feminino”, “frágil” e “passivo”. Traços
associados às mulheres e aos homossexuais tendem a ser eliminados ou ocultados.
Já vimos, por exemplo, que o uso de brincos é condenado. Da mesma forma, cabe-
los curtos ou raspados são valorizados em detrimento dos longos. O corpo deve ser
grande e forte. Aqui, as mascotes das torcidas são emblemáticas. Quase todas são
musculosas e possuem expressões raivosas. Nas torcidas “chopes” e “rastas”, elas
também podem aparentar estar entorpecidas. O andar do torcedor, por sua vez,
deve ser firme e duro. Revelar um corpo-armadura (DIÓGENES, 2003). Trejeitos
afeminados são inaceitáveis.
A fim de provar virilidade, alguns torcedores organizados tiram a camisa
e mostram seus peitos desnudos, mesmo em dias mais frios. Devem permanecer na
arquibancada em momentos de tensões e hostilidades, como quando a polícia joga
gás lacrimogêneo ou a torcida adversária arremessa pedras. Cicatrizes são motivo
de orgulho, pois constituem a “prova viva” da participação em embates corporais.
A cabeça é uma parte na qual se observa com frequência tais marcas. Inclusive,
quando circulam em outros espaços sociais, alguns torcedores utilizam bonés, a
fim de ocultá-las, dispensando, assim, maiores explicações.
De modo geral, as artes marciais mistas (MMA) são muito apreciadas,
justamente por sua capacidade de formar bons combatentes e corpos capazes de
aguentar chutes e pontapés. Não à toa, muitas torcidas oferecem aulas da moda-
lidade em suas sedes, e alguns torcedores ostentam a famosa “orelha couve-flor”,
causada pelas contusões decorrentes do intenso contato físico com os lutadores
adversários. Contato que faz com que, muitas vezes, tenham a cabeça esfolada
no tatame.
150 Futebol na sala de aula

O fato de as cicatrizes, a cabeça raspada e as orelhas “couve-flor” serem


apreciadas demonstra a capacidade do campo de interações das torcidas de trans-
formar signos habitualmente estigmatizantes – porque associados à criminalidade
– em signos de prestígio. Por sua vez, o fato de as torcidas oferecerem aulas de
MMA demonstra que as técnicas corporais de luta e de resistência à dor são apren-
didas também de forma mais formal e especializada. O que é ensinado na academia
se articula a todo um saber informal sobre lutas, aprendido por meio da observação
e/ou da participação em combates “reais” nas ruas ou “simulados” nas constantes
“brincadeiras de mão” com outros torcedores.
As torcidas organizadas de futebol têm se constituído, assim, ao longo
da história desse esporte no Brasil, em importantes espaços de interação social, nos
quais podem ser observadas a produção e a transmissão de saberes e experiências,
na tensão entre a propagação de uma tradição cultural e sua reinvenção. Configu-
ram-se, nessa perspectiva, em lugares estratégicos de socialização para inúmeros
jovens,11 envolvendo aprendizagens e a participação em relações sociais.12 Essa par-
ticipação, por sua vez, favorece a criação de laços sociais, vínculos de amizade, de
afeto e de solidariedade, mas, igualmente, relações de oposição e rivalidade.
Por outro lado, a imersão no cotidiano do grupo permite a socializa-
ção em procedimentos relacionados às exigências da vida associativa, tais como a
divisão de tarefas, organização dos subgrupos e das caravanas, a definição de estra-
tégias de ação e o desenvolvimento de projetos e campanhas sociais. Essas aprendi-
zagens se tornam possíveis porque os sujeitos se situam em um contexto de práticas
“em um mundo real de pessoas, objetos e relacionamentos” (INGOLD, 2010, p.
19). Ser aceito e reconhecido como membro significa “vestir a camisa”, fazer parte

11 Neste trabalho, partimos do pressuposto de que há múltiplos modos de ser jovem e de viver a condição juvenil, sendo fundamental, em uma
análise, considerar de que modo seus diferentes percursos, trajetórias e perspectivas interagem em uma mesma experiência social.
12 A aprendizagem está sendo aqui considerada na perspectiva de Ingold (2010), que a concebe como uma prática social relacionada à cultura,
um fenômeno social-coletivo, que se processa a partir da imersão dos indivíduos em certos contextos, não sendo resultado da mera transmissão de
informações passadas de uma geração a outra. Nos termos do autor, os sujeitos constroem, eles próprios, o conhecimento por meio da “redescoberta
orientada” e da “educação da atenção”.
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 151

de uma tradição, encontrar iguais (TEIXEIRA, 2004). Tornar-se torcedor organi-


zado envolve, pois, a aprendizagem de técnicas corporais (formas de se mover e se
expressar), de sentimentos e regras de convívio e relacionamento que propiciam a
constituição de redes de sociabilidade. Redes reveladoras dos sentidos atribuídos à
paixão pelo futebol e do lugar que esta representa em seu projeto de vida.
Tais aprendizagens ocorrem, em parte, de modo informal e sem um
planejamento específico, por meio de processos livres (GOHN, 2006) em que ver,
ouvir e atuar, nas viagens, nos estádios, nas sedes, nas festas, produzem um enga-
jamento físico e emocional. Disposição física e autocontrole são valorizados e cul-
tivados pelos membros das organizadas como formas de expressar a paixão pelo
agrupamento. Segundo Marcel Mauss (1924/1974), todos os fenômenos sociais
são, também, e ao mesmo tempo, fisiológicos e psicológicos: “no fundo, corpo,
alma, sociedade, tudo se mistura” (MAUSS, 1924/1974, p. 198). Desse ponto de
vista, as torcidas promovem experiências coletivas que exigem dos seus partici-
pantes um envolvimento moral, mental e corporal e sua expressão em diferentes
esferas de ação social.

Considerações finais

Neste capítulo, buscamos mostrar que o campo de interações das torci-


das organizadas de futebol é um espaço relativamente autônomo e bastante com-
plexo, com inúmeros elementos que só podem ser analisados em conjunto, porque
estão interligados. Um campo que, há anos, tem despertado nossa atenção e a de
vários outros pesquisadores, mostrando-se um “laboratório” privilegiado para o
estudo não apenas do futebol e do esporte em geral, mas, também, para a refle-
xão em torno dos diversos processos de aprendizagem social. Esses processos não
são estabelecidos somente dentro das instituições e dos campos tradicionalmente
associados à educação, como a família e a escola, mas, igualmente, no cotidiano
152 Futebol na sala de aula

de universos que, às vezes, ficam à margem dos estudos sobre o tema, como o das
torcidas organizadas.
Nesse último universo, conforme buscamos mostrar ao longo de todo
o capítulo, milhares de jovens aprendem modos de pensar, de se comportar, de
se relacionar entre si, enfim, modos de ser e de viver. Aprendem técnicas corpo-
rais, experimentam sentimentos (alegria/tristeza; euforia/raiva, medo/coragem)
e aceitam princípios coletivos de convivência e padrões de comportamento. Nas
arquibancadas, produzem e transmitem saberes e símbolos, ritos para demonstrar
a paixão pelo clube e pela torcida (TEIXEIRA, 2004). O compartilhamento cons-
ciente de experiências e a intencionalidade da participação favorecem a constitui-
ção de laços de pertencimento. Vendo, ouvindo e atuando, o torcedor se insere
em um processo de descobertas, de engajamento físico e emocional, por meio do
qual a identidade coletiva do agrupamento vai se fortalecendo. Imersos no coletivo,
fabricam sua própria subjetividade, experienciando formas de agir e de sentir. Nas
palavras de Mauss (1924/1974, p. 200):

O homem total. Quer estudemos fatos especiais ou fatos gerais,


no fundo é sempre com o homem completo que temos de lidar
e eu já o disse. Por exemplo, ritmos e símbolos colocam em jogo
não simplesmente as faculdades estéticas ou imaginativas do
homem, mas todo o seu corpo e a sua alma de uma só vez.

Importante destacar que mesmo entre os indivíduos que demonstram


um engajamento militante e de longa duração, em que a participação na torcida
ocupa um papel central na construção de seu projeto de vida, essa trajetória não é
linear, mas sujeita a “altos” e “baixos”, num constante processo de reavaliação e de
reflexão. A identidade de torcedor organizado relaciona-se diretamente à capaci-
dade do sujeito de construir uma narrativa a respeito da sua própria história. Isso
significa que mudanças na vida pessoal (casamento, emprego, filhos), a escalada
de confrontos, a morte de colegas, o aumento da repressão policial, as crises vivi-
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 153

das pelas associações (disputas de poder, questões financeiras), a discordância em


relação ao modo de atuação das lideranças, podem levar os torcedores a se afasta-
rem temporariamente ou, até mesmo, em caráter definitivo. Alguns ingressam em
outros coletivos, na tentativa de viver experiências que estejam mais em conso-
nância com suas expectativas e sentidos atribuídos à paixão pelo futebol naquele
momento. Portanto, o modo e a intensidade da participação torcedora estão sujei-
tos a reflexões e reavaliações constantes que podem suscitar novas modalidades de
engajamento e, consequentemente, novas aprendizagens, que geram, por sua vez,
outras práticas e interações sociais.

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TEIXEIRA, Rosana da Câmara; HOLLANDA, Bernardo Buarque Borges de. Espetáculo futebo-
lístico e associativismo torcedor no Brasil: desafios e perspectivas das entidades representativas de
torcidas organizadas no futebol brasileiro contemporâneo. Esporte e Sociedade. n. 28, p. 1-26, 2016.

TEIXEIRA, Rosana da Câmara; LOPES, Felipe Tavares Paes. Reflexões sobre o “Projeto Torce-
dor” alemão: produzindo subsídios para o debate acerca da prevenção da violência no futebol
brasileiro a partir de uma perspectiva sócio-pedagógica. Revista de Antropologia. v. 61, n. 3, p.
130-161, 2018.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2000.

TOLEDO, Luiz Henrique de. Políticas da corporalidade: socialidade torcedora entre 1990-2010.
In: HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de et al. (orgs.). A torcida brasileira. Rio de Janeiro:
7Letras, 2012, p. 122-158.

ZUCAL, José Garriga. Nosotros nos peleamos: violencia e identidad de uma hinchada de fútbol.
Buenos Aires: Prometeu Libros, 2010.

Sugestões para o trabalho em sala de aula


Filmes
HOOLIGANS. Direção: Alexander Lexi. EUA/Reino Unido: California Filmes, 2005. (110 min).
No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens 155

OS SELVAGENS da noite. Direção: Walter Hill. EUA: Paramount Pictures, 1979. (93 min).

THE REAL football factories. Direção: Peter Day. Reino Unido: Bravo, 2006. (6 episódios).

Livro
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MEDEIROS, Jimmy; TEIXEIRA, Rosana da Câmara.
A voz da arquibancada: narrativas de lideranças da federação de torcidas organizadas do Rio de
Janeiro (FTORJ). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.

Podcast
CENTRAL3. Som das Torcidas. Podcast. Disponível em: http://www.central3.com.br/category/
podcasts/som-das-torcidas/.

Reportagem
LAROZZA, Felipe. Mulheres organizadas: sinalizadores, bandeiras e fogos de artifício: um papo
com torcedoras organizadas do São Paulo. Vice, 05 jun. 2015. Disponível em: https://www.vice.
com/pt_br/article/4xgbzj/mulheres-organizadas.

Sites
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS TORCIDAS ORGANIZADAS DO BRASIL (Anatorg). Dispo-
nível em: https://anatorg.com.br/x/.

MULHERES de arquibancada: resistência e empoderamento. Facebook. Disponível em: https://


www.facebook.com/mulherdebancada/.

Vídeos
A VOZ da arquibancada. Direção e roteiro: Bernardo Buarque. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=7&v=okzLEvrdYto.

TERRITÓRIOS do torcer. São Paulo: CPDOC/FGV; Museu do Futebol-SP, 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=lvIKWd6yZms.
Violência verbal e a performatividade
de gênero no currículo de
masculinidade dos torcedores de
estádio de futebol em questão
Gustavo Andrada Bandeira e Fernando Seffner

Performatividade de gênero no torcer

Existe certo consenso de que os esportes, como os conhecemos, são um


fenômeno próprio da modernidade. Os esportes modernos, seja em sua prática
ou em sua fruição, acabam sendo um espaço privilegiado de investigação sobre as
masculinidades. No futebol de espetáculo existem hierarquias de gênero bastante
marcadas com conteúdos específicos, abordando não apenas a predominância da
masculinidade como representação legítima nesse espaço, como limitando as pos-
sibilidades de vivências dessa masculinidade.
O contexto de produções de masculinidades dos estádios de futebol é
marcado por um forte heterossexismo e por manifestações constantes que des-
valorizam masculinidades que fujam de representações heteronormativas. Nos
estádios, também existe, de forma um tanto permanente, certa promessa de con-
158 Futebol na sala de aula

frontos físicos, a “resolver” as diferenças entre diferentes grupos de torcedores,


assegurando pela força, afinal, a superioridade de uns sobre outros. Curiosamente,
nesse espaço, também aparecem grandes manifestações públicas de sentimentos e
de afetos masculinos, multiplicadas em tapinhas nas costas, abraços, afagos, even-
tuais beijos, choros, gestos de carinho e consolo, danças, rebolados, movimentos
em que um homem se debruça sobre o corpo de outro e até mesmo prolongados e
intensos abraços acompanhados de cafunés nos cabelos. Nos estádios de futebol,
demonstrações de afetos entre homens parecem não causar o mesmo impacto de
reprovação que em outras esferas de nossa cultura heteronormativa.
No estádio se está, ao mesmo tempo, em casa e no espaço público. Os
palcos onde ocorrem os jogos carregam e instauram representações importantes
na cultura do futebol. A performatividade da masculinidade e do torcer nos está-
dios de futebol acaba atravessada por essa exigência de manifestações violentas
e afetos, além de permitir algumas práticas que seriam autorizadas no espaço
privado, mas rechaçadas no espaço público. Aqui, reiteramos a centralidade do
conceito de performatividade, a partir de Judith Butler:
Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo
ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do
jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o prin-
cípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações,
entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essên-
cia ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações
manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursi-
vos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele
não tem status ontológico separado (BUTLER, 2003, p. 194).

Para Judith Butler, o que faz a inserção em determinado gênero, e


nele uma inserção de modo “correto”, “adequado” à norma, são atos de repetição.
Gênero, aqui, não é algo que se é, mas algo que se faz, não é substantivo, mas é
verbo, é ação. A cada partida de futebol, repetem-se gestos e mais gestos, a produzir
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 159

pertencimentos de gênero e inserção em modos de ser homem, de acordo com a


norma. A norma não é algo dado de uma vez e para sempre, é algo que repetimos
sem cessar, de modo a garantir, a todo instante, nossa pertença ou adesão a ela, que
“naturalmente” nos traz privilégios, na comparação com outros que infringem a
norma. Basta pensar nas pesadas críticas que. por vezes, recaem sobre jogadores
que, fora da arena do futebol, se permitiram algum gesto de carinho com outros
jogadores ou com amigos. Essa repetição de atos que marca o conceito de perfor-
matividade, aqui especialmente referido ao corpo, não é algo que o sujeito realize
de modo lúcido e intencional. Repetem-se os gestos como estratégia de sobrevivên-
cia social, e para garantia de privilégios. Mas na repetição moram possibilidades de
produção da diferença, lapsos, descuidos, falhas, vazamentos, por conta da intera-
ção com os demais, terreno sempre imprevisível da vida social. Por conta disso, o
cenário de produção das masculinidades nos campos de futebol contempla tanto
estratégias de reiteração, quanto estratégias de modificação da norma.
Neste artigo, pretendemos discutir como o currículo de masculinidade
e do torcer nos estádios de futebol (BANDEIRA, 2010) exige uma performativi-
dade específica em que a violência verbal é uma constante. A violência verbal é
ato corporal, ela é falada e também encenada corporalmente, é disposição de mús-
culos tanto quanto linguajar. Mais do que isso, a partir de diálogos gravados com
pequenos grupos de torcedores no estádio em dias de partidas, nos propomos a
tentar verificar como os torcedores justificam essas manifestações. Para tanto, este
texto está dividido em cinco partes. Após essa breve apresentação, nos propomos
a discutir a relação entre masculinidade e estádios de futebol. A terceira parte do
artigo discute como o estádio de futebol se constitui em um local em que práticas
rechaçadas no cotidiano seriam autorizadas borrando entendimentos sobre vio-
lência, suas permissões e interdições e a relação dessas com a masculinidade, o que
fazemos marcados pelo conceito de performatividade. Na sequência do trabalho,
apresentamos algumas lógicas explicativas dadas pelos torcedores interpelados por
160 Futebol na sala de aula

nós durante uma investigação que resultou no doutoramento de um dos autores


(BANDEIRA, 2017) e nos achados de pesquisa de projeto ora em andamento para
o que é dito nos estádios e seus significados. Finalizamos esta escrita apontando
algumas considerações provisórias sobre os limites de pensar as práticas nos está-
dios como naturalizadas, lembrando que a norma de um determinado contexto
é sempre um acordo muito provisório entre diferentes pontos de vista e é sempre
resultado de lutas por significação, e não de consensos.

Pedagogias de masculinidade e estádios de futebol

Os esportes em geral, e o futebol em específico, acabam trabalhando


fortemente na circulação e na produção de valores e de representações associados
a masculinidades. Eles podem ser lidos como uma das instituições generificadas e
androcêntricas de nossa cultura. Nos estádios de futebol, os sujeitos acabam sendo
constituídos por uma série de elementos valorizados dentro da “cultura masculina”,
e que atuam na ótica da performatividade, por estratégias de repetição. Na sociali-
zação masculina que ocorre nos estádios, muitos desses elementos são considera-
dos na hora de “avaliar” os comportamentos constituídos como adequados.
A associação entre esporte e construções de masculinidade é uma pos-
sibilidade de visualizar de que forma o gênero funciona como um atravessador
das instituições (LOURO, 2004; MEYER, 2003). O que está em questão quando se
aprende a jogar ou mesmo a torcer não são apenas as melhores maneiras de exe-
cutar essas práticas, mas se está ingressando em uma instituição repleta de signifi-
cados. As masculinidades constroem-se em um complexo campo de disputas por
legitimidade entre diferentes representações de suas possibilidades.
Nos estádios e nas torcidas de futebol, podemos verificar a existên-
cia de contextos eminentemente masculinos em que os “outros” relevantes para
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 161

a construção da identidade masculina não são as mulheres ou as feminilidades,


mas outros homens e outras masculinidades (ARCHETTI, 2003). Os estádios de
futebol podem ser pensados como um local privilegiado para a inscrição de sujei-
tos masculinos em uma comunidade afetiva. Por constituírem-se em espaços de
homossociabilidade, as torcidas permitem que os homens disputem valores mas-
culinos. Não se trata apenas de construir a masculinidade afastando-se das mulhe-
res ou das feminilidades, mas daquilo que, na performatividade de outros homens,
pode ser nomeado perigosamente como do campo do feminino.
O público de futebol é predominantemente masculino. Entretanto,
dentro do processo de modernização dos estádios existe certo investimento para
que as mulheres passem a frequentar mais esse espaço. Mesmo reconhecendo esse
aumento, ele não significa uma imediata alteração nas construções generificadas
que ocorrem nesse cenário cultural específico. No contexto argentino, Verónica
Moreira (2005) apontava que as mulheres frequentavam os estádios, mas que essa
participação era subordinada às lógicas culturais masculinas. Isso não significa
constituir esse contexto cultural específico como exclusivamente masculino, mas,
sim, destacar a preponderância discursiva dessas disputas entre masculinidades na
construção do que entendemos como um currículo de masculinidade dos torcedo-
res de estádio de futebol.
Existe uma associação da masculinidade dos estádios de futebol com
certa estética representada como popular. Essa representação funciona como marca
distintiva desse espaço. Sírio Possenti (2013) aponta que se entende o popular como
mais direto, um tanto mais realista, uma vez que suas aprendizagens viriam mais
“da vida” que “dos livros”. Dentro dessa lógica, o mundo do “povo” seria mais ver-
dadeiro porque sem retoques. A representação de masculinidade que possui maior
legitimidade dentro dos diferentes grupos de torcedores parece estar vinculada a
uma associação com o popular, entendendo este como mais bruto, grosseiro ou
menos refinado, em uma visão bastante enviesada por uma lógica preconceituosa,
162 Futebol na sala de aula

dominante nas classes médias. Em alguma medida, seria possível visualizar certa
disputa estética entre essa representação do popular contra o maior refinamento de
uma suposta elite mais polida.
Os estádios de futebol são espaços singulares para a investigação de
masculinidades. Diferentes discursividades no esporte carregam conteúdos de
uma masculinidade bastante fixa e tradicional. Ao mesmo tempo, estar situado em
um coletivo de homens impregnado pela sensibilização das emoções, pode permi-
tir comportamentos um tanto transgressores dentro da lógica heteronormativa de
nossa cultura. Os estádios de futebol podem ser pensados como um contexto cultu-
ral específico, que ensinam comportamentos, valores, formas corretas ou adequa-
das de práticas diversas por meio de seu desenho arquitetônico, cânticos repetidos
e performances explicitadas. Os estádios são coisas concretas, não apenas porque
são feitos de concreto, mas porque se constituem como artefatos portadores de
pedagogias de gênero e de sexualidade, dentre outras pedagogias culturais.
O jogo de futebol possui alguns códigos particulares que permitem que
diferentes ações executadas nesse local não sofram os mesmos interditos que sofrem
em outros espaços do cotidiano. O comportamento dos torcedores nos estádios de
futebol não é “natural”. Os indivíduos são inseridos em um currículo, aqui enten-
dido como um percurso cíclico, e que a cada partida seus elementos se repetem
em sintonia com a noção de performatividade. O currículo é sempre um campo de
forças. Esse currículo apresenta uma série de narrativas e práticas que produzem
as formas de expressão permitidas e mesmo as emoções adequadas nesse espaço
cultural. As manifestações públicas das emoções de apoio ou de rechaço, como as
que acontecem nas praças esportivas, não são fenômenos exclusivamente psicoló-
gicos ou meramente fisiológicos. Elas estão inseridas em um contexto pedagógico
que limitará o número de ações possíveis para aqueles que pretendem identificar-se
com determinados grupos identitários.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 163

O estádio de futebol e a relação entre masculinidade e violência

O ambiente dos estádios de futebol, no Brasil, “assim como diversas


situações relacionadas a uma partida de futebol, são percebidos como lugares em
que as emoções são consideradas manifestações não apenas aceitáveis, mas até exi-
gidas” (COSTA, 2014, p. 188). Essas emoções aceitas e exigidas acabaram autori-
zando um ambiente com presença significativa de insultos que, por serem produzi-
dos nesse espaço distinto do cotidiano, não carregariam as mesmas sanções morais
e mesmo estéticas em relação a outros espaços.
A Copa do Mundo da Fifa de 2014, realizada no Brasil, auxiliou a cata-
lisar a reforma dos estádios no país. Algumas formas de materialização dos já exis-
tentes processos de “modernização” poderiam ser visualizadas nas novas arenas
edificadas no período de preparação para o evento. Junto a um maior controle e
disciplinamento dos corpos e do aumento do preço das entradas, diferentes peda-
gogias culturais apareceram no contexto mais amplo do futebol nacional e interna-
cional, apresentando problemas até então quase esquecidos nesse ambiente.
Diferentes proibições sobre manifestações de torcedores têm apare-
cido nos estádios de futebol. Em março de 2013, a Fifa criou uma força-tarefa para
combater o racismo. Uma equipe composta por advogados, jornalistas, jogadores e
outros propôs a criação de um guia de boas práticas para as federações, a criação de
sistemas de monitoramento, a identificação de partidas de alto risco e a nomeação
de embaixadores antidiscriminação.1 Durante a premiação dos melhores futebolis-
tas de 2013, em janeiro de 2014, o então presidente da Fifa, Joseph Blatter informou
que a federação ampliaria seu olhar contra ofensas de ordem sexual, conjuntamente
com as de conteúdos religiosos e étnico/raciais, que até aquele momento já haviam
implicado em sanções para clubes, torcedores e atletas.2 Em alguma medida, o reco-

1 RUSTEN, Pablo Vande. O jeito estranho da Fifa de combater o racismo. El País, 29 set. 2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/
brasil/2016/09/28/deportes/1475055785_480275.html. Acesso em: 27 mai. 2019.
2 RIZZO, Marcel. Fifa cria projeto contra a homofobia no futebol. Folha de S. Paulo, 31 jan. 2014. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.
164 Futebol na sala de aula

nhecimento da necessidade de enfrentamento a determinadas manifestações pela


entidade máxima do esporte nos permite apontar que existe um entendimento de
que o dito nas praças esportivas pode, sim, ser entendido como prática de violência.
A Fifa chegou a punir, no segundo semestre de 2015, seis federações por
cânticos, entendidos por ela como homofóbicos.3 A CBF foi punida em 20 mil francos
após a partida contra a Colômbia pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018,
realizada no dia 6 de setembro de 2016. A Conmebol recorreu às punições sugerindo
que o uso dos termos identificados pela Fifa não seriam homofóbicos, mas fariam
parte da cultura do torcer no continente. A federação negou o recurso e informou que
a luta contra os diferentes preconceitos no esporte seria de longo prazo.4
Parece-nos pertinente discutir alguns entendimentos de violência que
nos permitem dialogar com as manifestações dos torcedores de futebol, especial-
mente nos estádios. Com forte expressão na mídia especializada, a violência rende
intermináveis debates, especialmente nas discussões que envolvem as torcidas,
com maior constância quando se tratam das torcidas organizadas. Práticas corpo-
rais dos atletas poderão ser chamadas de violentas ou serem entendidas como parte
inerente das partidas. O que alguns poderão chamar de violência, outros poderão
ler como parte do jogo.
Segundo Huizinga (1993), os jogos podem ser entendidos como sus-
pensão temporária da vida comum. Esse espaço de experimentação permitiria
alguns deslocamentos, principalmente aos entendimentos de seriedade que pro-
duzem as ações do cotidiano. As manifestações dos torcedores são atravessadas
por essa alteração da vida ordinária. Em alguma medida, manifestações verbais
que seriam facilmente lidas como violências, como machismo, racismo, homofobia

br/esporte/folhanacopa/2014/01/1405125-fifa-cria-projeto-contra-a-homofobia-no-futebol.shtml. Acesso em: 27 mai. 2019.


3 MATSUKI, Edgard. Fifa multa federações de futebol por cantos homofóbicos de torcida. Sul21, 13 jan. 2016. Disponível em: http://www.
sul21.com.br/jornal/fifa-multa-federacoes-de-futebol-por-cantos-homofobicos-de-torcida/. Acesso em: 27 mai. 2019.
4 CHADE, Jamil. Fifa rejeita pedido da Conmebol para frear punições por homofobia. Estadão, 14 out. 2016. Disponível em: https://esportes.
estadao.com.br/noticias/futebol,fifa-rejeita-pedido-da-conmebol-para-frear-punicoes-por-homofobia,10000082128. Acesso em: 27 mai. 2019.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 165

ou outras nos dias comuns, poderiam ser colocadas em suspensão nesses tempo e
espaço específicos. O ambiente do jogo, porém, nunca é fixo e seguro. A “vida quo-
tidiana” sempre pode reafirmar sua proeminência devido a uma quebra de regras
ou a um desencanto (HUIZINGA, 1993).
A violência, como qualquer outro conceito que tem seu significado pro-
duzido na cultura, não é um conceito essencial, fixo ou estável, mas “aquilo que se
entende, se nomeia, se pratica e se sofre como violência muda ao longo do tempo,
e também no mesmo tempo, nas diferentes sociedades e nos grupos culturais”
(MEYER, 2009, p. 214). Algumas manifestações violentas poderão ser adjetivadas
de monstruosas, hediondas, terríveis. Outras poderão ser entendidas como legíti-
mas e desejáveis, sendo naturalizadas em um determinado contexto e entendidas
como não violentas, quando em outros contextos poderiam ser até mesmo crimi-
nalizadas. É produtivo pensar que essas classificações e adjetivações não são um
“reflexo” das ações, mas são constitutivas do entendimento possível que acabam
por produzir algumas ações como violentas e outras como não violentas.
Algumas das manifestações de violência que aparecem nos estádios de
futebol podem ser entendidas como características importantes e desejáveis em
certas representações de masculinidades e de torcedores de futebol. Se pensarmos
que os estádios de futebol são um importante lugar em que se realizam construções
de masculinidade, algumas violências serão permitidas, incentivadas e naturaliza-
das por serem vistas como um exercício saudável para expressão de modos de ser
homem. Para alguns, ser violento ali, no campo ou na torcida, durante aqueles 90
minutos, poderia ser algo positivo, pois extravasaria o que poderia causar proble-
mas em outros locais, utilizando a ludicidade e a lógica de um espaço não ordinário
para realizar um exercício mais permissivo em relação a diferentes manifestações.
Para outros, ao contrário, as atitudes violentas produzidas nos campos de futebol
tendem a reforçar esses comportamentos que serão transferidos para fora dos 90
minutos e do seu “local apropriado”, o estádio, e, com isso, poderiam gerar violên-
166 Futebol na sala de aula

cia contra outras pessoas não diretamente envolvidas ou demarcadas por aquele
contexto separado do cotidiano.
Jornalistas esportivos e alguns pesquisadores acadêmicos demarcam
uma hierarquização entre o que poderia ser entendido como violência “simbólica”
de violência “real”. Heloísa Reis conceitua essa separação da seguinte maneira: “a
violência real [...] é perceptível pelas agressões físicas de contato, enquanto a vio-
lência simbólica é visível pelas agressões verbais e/ou gestuais” (REIS, 2005, p. 114).
Para Norbert Elias, essa divisão entre violências passou a fazer sentido, a partir da
constituição do estado moderno e do monopólio do uso legítimo da força.
Formas de violência não física que sempre existiram, mas que até então sem-
pre estiveram misturadas ou fundidas com a força física são agora separadas
destas últimas. Persistem, mas de forma modificada, nas sociedades mais
pacificadas (ELIAS, 1993, p. 198).

Entendemos que a divisão entre violência “real” e “simbólica” apre-


senta o risco de deslegitimar as reivindicações contra uma violência que seria
diferente da “real”. Apesar da potência que o conceito bourdiano de violência
simbólica adquire, preferimos trabalhar com uma distinção diferente. Ao invés
de separar as violências entre “real” e “simbólica”, utilizamos os termos violência
física e violência verbal, por acreditar que a hierarquia entre elas seja um tanto
menor. As duas manifestações são violentas. Elas apenas utilizam elementos dife-
rentes em sua expressão. “‘Viado’, ‘crioulo’, ‘bicha’, ‘sapatão’, ‘loura burra’ não são
expressões inocentes. Elas produzem efeitos; elas parecem machucar” (LOURO,
2017, p. 67).
Nas torcidas de futebol, comportamentos violentos ou agressivos
podem acontecer entre diferentes grupos de homens heterossexuais (duas torcidas
adversárias, por exemplo), mas também aparecem contra uma espécie de coletivo
de “outros” sujeitos, especialmente homens não heterossexuais. A preocupação em
relação a essa socialização masculina aumenta quando essa aversão aos homosse-
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 167

xuais é valorizada, e esse discurso de ódio acaba sendo entendido como desejável
nessa socialização. Dentro dos estádios, os torcedores utilizam os palavrões como
moeda corrente. Essas formas de violência são vividas e pensadas em um contexto
bastante específico. Os estádios de futebol e as torcidas podem ser lidos como insti-
tuições que possibilitam determinadas práticas e impossibilitam outras. A relação,
um tanto cristalizada entre masculinidade e a exigência de algumas manifestações
violentas, permite diminuir, e muito, as possibilidades de se solicitar a homofobia
como uma violência ou, mesmo, um problema nos estádios de futebol:
[...] injúrias [...] que classificam o adversário como homossexual, ou fazem
referência à passividade em relações sexuais, ocorrem rotineiramente nos
estádios, sem que sejam levantadas discussões ou polêmicas quanto ao seu
caráter homofóbico (ANJOS, 2015, p. 13).

A dinâmica dos jogos de futebol e das torcidas, que coloca dois grupos
arbitrariamente em polos opostos, permite catalisar manifestações que coloquem
na diferença seu principal pressuposto. E é aqui que os valores culturais ordinários
poderão solicitar seu ingresso no mundo extraordinário dos jogos, do lazer e do
esporte. Faltando elementos que possam separar torcedores rivais “naturalmente”
dentro do jogo, é necessário que se acionem conteúdos “de fora” do enfrentamento
para essa separação. Nesse contexto, é necessário saber, inclusive, o que poderá ser
considerado ofensivo.
Mesmo que estejamos em um contexto de certas permissividades, e que
seria um tanto apressado acreditar que o torcedor que se expressa de forma homo-
fóbica, racista, xenófoba ou antissemita em um estádio de futebol mantenha essa
postura nas demais práticas cotidianas, ignorar o conteúdo dessas manifestações ou
tirá-las de seu contexto violento também parece equivocado; “a força de seus insultos
reside, precisamente, ou pelo menos em grande parte, na longa história desse dis-
curso. É verdade que as palavras não têm um significado fixo nem único; mas os ves-
tígios de seu passado também não se apagam completamente” (LOURO, 2017, p. 68).
168 Futebol na sala de aula

O futebol é uma importante instituição masculina. Ele é produzido por


pressupostos de masculinidade, ao mesmo tempo em que participa da produção, da
circulação e da hierarquização de diferentes possibilidades de masculinidades. Nessa
masculinidade específica, assim como nas demais construções que nos permitimos
chamar de tradicionais, a virilidade aparece como um valor muito caro, hierarqui-
zando os homens entre si. É bastante comum, na construção identitária de macho
viril, utilizar como referência, como fronteira constantemente vigiada e que nunca
deve ser ultrapassada, a construção do personagem antagônico, fazendo dele deposi-
tário do que de ruim poderia ser atribuído a determinado grupo identitário.

Como os torcedores justificam suas falas nos estádios de futebol

Entre os torcedores com quem conversamos parecia existir certa discor-


dância em relação ao controle das manifestações nos estádios e as punições apli-
cadas pela Fifa. Os torcedores disputam legitimidade no que é manifestado nos
estádios. Essas disputas aparecem tanto nos gritos coletivos, quanto nas falas indi-
vidualizadas. Eles afirmam5 que o manifestado nos estádios não poderia ser enten-
dido como algo sério. O dito em estádios de futebol estaria associado à ludicidade.
Os xingamentos fazem parte de uma forma específica de relacionamento. Para os
torcedores, a discriminação precisaria ser feita com ações de exclusão, e não com
palavras ofensivas. A hierarquização entre diferentes violências colocaria a violên-
cia verbal praticada nos estádios como menor ou menos importante. Em alguma
medida, problemas mais sérios precisariam ser enfrentados antes de se enfrenta-
rem os conteúdos que circulam nas manifestações torcedoras. Os entrevistados
demonstraram conhecer um conjunto de situações potencialmente discriminado-
ras e violentas, e estabeleceram entre elas uma clara hierarquia de efeitos, situando
os estádios em um nível relativamente “leve” nessa hierarquia.

5 Para dar fluidez ao texto, optamos por relatar as falas dos torcedores. A compilação feita por nós está baseada nas manifestações literais
que compõem a tese de doutorado de um dos autores (BANDEIRA, 2017).
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 169

As ofensas de cunho sexual ou racial acabam sendo entendidas como


fazendo parte do jogo, em um tempo diferente da vida cotidiana, como entendido
por Huizinga (1993). Nesse caso, as ofensas poderiam ser lidas como compondo
parte do contexto dos enfrentamentos. Adrenalina do jogo, calor do momento ou
do jogo, estar no meio ou nas “pilhas” da torcida, da empolgação seriam motivado-
res para eventuais expressões inadequadas. Com isso, ofensas dirigidas a jogadores,
árbitros e/ou torcedores não possuiriam a intenção de discriminar esses atores por
quaisquer origens étnicas/raciais ou sexuais e de gênero. Roger Raupp Rios lembra
que “independentemente da intenção, a discriminação é um fenômeno que lesiona
direitos humanos de modo objetivo” (RIOS, 2009, p. 76).
Existe a percepção de que as ofensas proferidas em um estádio de fute-
bol constituiriam um único conjunto sem a valoração de seus conteúdos específi-
cos. Essa liberação para a discriminação seria restrita ao tempo de jogo e seu espaço
pontual fazendo com que, no fim da partida e a saída do estádio, essas permissi-
vidades terminassem. O contexto do enfrentamento também pode ser valorizado
marcando que em qualquer discussão, a intenção de seus participantes seria ofen-
der e humilhar, ao máximo possível, seu contendor. Essa intenção autorizaria, por
exemplo, que uma pessoa negra fosse chamada de “macaco”, uma vez que prova-
velmente não existiria pior termo para diminuir esse indivíduo. Ao mesmo tempo,
essa lógica aponta que, em alguma medida, o “alvo” das ofensas poderia ser porta-
dor de algo passível de ser utilizado de maneira depreciativa.
É interessante verificar que atitudes que poderiam ser lidas como
homofóbicas em outros espaços do circuito da cultura não são assim percebidas
pelos torcedores que as praticam nos estádios. Mesmo entendendo que um grupo
homossexual poderia sofrer agressões dentro dos estádios, os torcedores não visu-
alizam manifestações de violência nos cânticos que diminuem as sexualidades não
heteronormativas. Naturalizadas dentro do cenário futebolístico brasileiro, esses
gritos não são noticiados, não parecem possuir valor-notícia, não fogem do ordi-
170 Futebol na sala de aula

nário. Eles acabam, em alguma medida, recebendo a autorização dada pelo humor
ou pelas jocosidades que acabam marcando os espaços de socialização torcedora.
Outra afirmação relevante aponta que o questionamento das práticas tor-
cedoras não seria algo que surgiria de dentro do estádio. Nesse raciocínio, um público
externo às costumeiras práticas do torcer, geralmente nomeado de politicamente cor-
reto, estaria questionando práticas aceitas e naturalizadas nas práticas esportivas. Os
torcedores reconheciam a importância de diferentes demandas das minorias sociais,
sejam elas étnicas ou sexuais. Apesar disso, eles também reclamaram do policia-
mento sobre os dizeres nos estádios de futebol. Há um entendimento de que racismo
e homofobia precisariam ser enfrentados, mas o pudor com o dito no estádio se asso-
ciaria a algo “chato” ou “exagerado”. O estádio é apontado como um local de manifes-
tações específicas, e que eventualmente o excesso de interdições poderia atrapalhar
o contexto das partidas. Há aqui certa noção de suspensão do tempo vivido quando
decorrem as partidas, com uma eventual licença para praticar atos que fora dali não
seriam adequados, mas que ali praticados não chegam a influenciar a “vida lá fora”.
Torcedores afirmavam que a “corneta” e as brincadeiras eram algo
necessário e salutar para o ambiente do estádio. Para eles, as brigas é que precisa-
riam ser evitadas. É possível visualizar um rechaço à violência física, enquanto a
violência verbal estaria autorizada. Naturalizadas nesse contexto, elas poderiam,
inclusive, não ser nomeadas como violência. Para os torcedores os gritos nos está-
dios estariam vinculados a piadas e/ou brincadeiras. Se, por um lado, o ambiente
dos estádios e seu entendimento de templos dos insultos autorizaria uma série de
manifestações que poderiam transitar entre o humorístico ou o violento, a rivali-
dade, constituidora do clubismo na construção identitária das diferentes torcidas,
ainda autorizaria a utilização de termos rejeitados em outros espaços do circuito
mais amplo da cultura por sua presença histórica. A rivalidade acaba aumentando
o número de elementos nesse campo de disputas pela definição do legítimo e do
não legitimo de ser manifestado nos estádios de futebol.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 171

Práticas torcedoras em questão

O currículo de masculinidade dos torcedores de estádio produz uma


representação do torcedor que avalia e hierarquiza a conduta de todos os sujeitos
no estádio, sejam eles homens, mulheres, crianças, idosos... Essa performatividade
de gênero esperada para o torcedor de futebol inclui, além da masculinidade, a
heterossexualidade e o heterossexismo. Essa masculinidade possui uma estética
popular como normatividade – os xingamentos, as injúrias e as permissividades
fariam certa associação com o popular, muito mais pela falta de certa polidez, do
que por pertencimento de classe econômica. Por fim, a tradição da torcida autoriza
práticas e acaba naturalizando manifestações que poderiam ser apontadas como
inadequadas por atores externos à torcida ou por torcedores que estivessem bas-
tante atravessados por outros conteúdos, lógicas ou currículos.
O tempo do jogo foi solicitado em diferentes oportunidades para jus-
tificar que o que se passa no estádio de futebol seria restrito àquela socialização
bastante pontual, que envolveria os processos de chegada ao estádio e se dissiparia
quando da saída desse ambiente. Parece-nos que essa não seria a principal questão
a ser colocada. É bastante verificável que os conteúdos utilizados para “brincar” ou
mesmo para “ofender” no período excepcional das partidas são buscados no con-
junto mais amplo da sociedade. É possível realizar essa visualização não somente
por observar que esses “alvos” do estádio também são mirados em outros contex-
tos, mas, também, porque em estádios diferentes se cantam, se xingam ou se brin-
cam com conteúdos diferentes. Mesmo sendo tão somente uma brincadeira, essas
práticas terminam constituindo o currículo de masculinidades e de torcedores no
estádio, e acabam ensinando que é adequado rir de algumas identidades específicas.
Ao pedirem uma ética e estética próprias ao estádio e ao pertencimento
ao coletivo da torcida, os torcedores borrariam a percepção entre a individualidade
e a coletividade. Estar na torcida seria o que autorizaria práticas que o sujeito, em
172 Futebol na sala de aula

suas outras sociabilidades, não repetiria. O indivíduo torcedor que solicita autori-
zação para o insulto durante sua sociabilidade no estádio poderia somar-se àqueles
que reclamariam desse mesmo insulto em outro contexto.
Em diferentes oportunidades, o questionamento às práticas torcedoras
acaba nomeado ou acusado de “politicamente correto”. Os torcedores entendem
que essa suposta ética do politicamente correto estaria espalhada no circuito mais
amplo da cultura, ocupando certa normatividade sobre o discurso público. Há um
entendimento de que essa demanda politicamente correta teria entrado nos está-
dios de futebol. Eventualmente, a modernização das praças esportivas e o recebi-
mento da Copa do Mundo de 2014, que lançaram diferentes luzes para as práticas
torcedoras no Brasil, podem ter facilitado a entrada de tal discurso politicamente
correto nos estádios. Na realidade, diferentes demandas colocadas no circuito mais
amplo da cultura parecem ter sensibilizado diferentes agentes, incluindo clubes
e federações para problematizar essa lógica considerada, até então, como mais
fechada ou específica dos estádios de futebol.
Muito mais do que uma essência, as práticas torcedoras são uma perfor-
matividade repetida. Elas funcionam por meio de constantes repetições. A norma
do torcer precisa da reiteração nos estádios para funcionar. E é justamente nessa
reiteração que seus conteúdos poderão ser naturalizados ou questionados. O que
aparece como normatividade para o torcer não é resultado de um acordo entre
aqueles que frequentam os estádios, mas um ponto muito provisório entre disputas
por significados que incluem diferentes atores com diferentes protagonismos nesse
contexto específico.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 173

Referências

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torcedor a partir de um episódio de homofobia. Movimento, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 11-24,
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sobre preconceito e discriminação. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual
na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; UNESCO, 2009, p. 53-83.

Sugestões de materiais para o trabalho em sala de aula

Sobre masculinidade e o torcer


Sobre o que os torcedores cantam nos estádios: VOZ das arquibancadas. Folha de S. Paulo, 20
jun. 2017. Disponível em: http://arte.folha.uol.com.br/esporte/2017/voz-arquibancadas/#/
introducao.

Sobre a homofobia no futebol:

BRAZICA: episódio 2. Brasil: Vice, 2018. (28min23s). Disponível em: https://www.vice.com/


pt_br/article/439qvj/brazica-ep-2-bicha.

Sobre as diferentes discriminações no futebol:

OBSERVATÓRIO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO FUTEBOL. Disponível em: https://


observatorioracialfutebol.com.br/.
Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão 175

Sobre a relação entre masculinidade e violência nas torcidas de futebol:

GREEN Street Hooligans. Direção de Lexi Alexsander. Estados Unidos e Reino Unido: OddLot
Entertainment, 2005. (109 min).

Sobre a participação das mulheres no futebol


KESSLER, Cláudia (org.). Mulheres na área: gênero, diversidade e inserções no futebol. Porto
Alegre: EdUFRGS, 2016.
Futebol e gênero:
o som do machismo e da homofobia
que vem das arquibancadas
Leda Maria da Costa

Sobre futebol, machismo e escola

No Brasil, as torcidas de futebol se constituem como um dos mais popu-


lares veículos em que discursos e práticas machistas são reiteradas, isso porque
estamos falando de agrupamentos nos quais aprende-se a “ser homem” (BAN-
DEIRA, 2009). Os modos pelos quais se dá esse aprendizado, assim como suas
implicações, serão analisados ao longo deste texto, atentando-se para a possibili-
dade de a escola, como instituição, oferecer vias de desconstrução – e por que não
dizer de “desaprendizado” – de práticas fundadas naquele tipo de preconceito. É
válido dizer que o futebol se faz presente na vida de inúmeros estudantes, seja na
prática lúdica das ruas, nas quadras das escolas, seja por intermédio da televisão e
diversas outras mídias como os jogos eletrônicos. Sendo assim, é importante que
sejam fomentados espaços nos quais algumas noções consensuais que ainda cer-
cam o universo futebolístico precisam ser discutidas. E a escola pode ser um desses
178 Futebol na sala de aula

espaços. Para tanto, é válido tomar o futebol – e os esportes de um modo geral –


como veículo capaz de dramatizar uma série de questões presentes na sociedade,
pondo em evidência “as relações, valores ou ideologias que de outro modo, não
poderiam estar devidamente isoladas das rotinas que formam o conjunto da vida
diária” (DAMATTA, 1982, p. 21).
Uma das dramatizações do futebol diz respeito à desigualdade de
gênero e aos preconceitos que circulam na nossa vida diária. Longe de ser uma
democracia, o futebol carrega consigo preconceitos já presentes na sociedade que
os toma de volta, muitas vezes, mais fortes e naturalizados. Um dos maiores sím-
bolos da vida moderna e que, na atualidade, é um rendoso espetáculo midiático,
ainda permanece como um arauto de masculinidades. Embora constantemente
anexados a um imaginário da democracia e igualdade, os esportes são um dos mais
exitosos espaços “donde se simbolizan y ritualizan los cuerpos masculinos, se fir-
man y refirman los pactos varoniles, expropriando e inferiorizando los femininos”
(HUERTAS ROJAS, 2002, p. 112). Esse fenômeno gera como consequência uma
série de dificuldades de inserção de identidades que fujam ao padrão hegemônico
do ambiente esportivo como, por exemplo, as mulheres e os homossexuais.
Algumas pistas históricas nos mostram que, desde sua origem, no século
XIX, as práticas esportivas modernas foram atividades voltadas para a afirmação de
um ethos masculino, a partir da disciplinarização de jovens da elite, estudantes das
public schools inglesas, meninos sobre os quais se tentava inculcar “virtudes viris
dos futuros líderes: o esporte é concebido como uma escola de coragem e de virili-
dade” (BOURDIEU, 1983, p. 140). Em um contexto histórico, marcado por guerras
e um intenso nacionalismo na Europa, os esportes desempenharam papel impor-
tante ao se associarem a valores de uma masculinidade agressiva, própria à atuação
no Exército (DUNNING; MAGUIRE, 1997). Em seu nascedouro, as práticas espor-
tivas são relacionadas às classes abastadas, formada por homens, brancos, modelos
de um tipo de masculinidade desejada no ambiente burguês e competitivo.
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 179

Esse predomínio dos homens foi um forte obstáculo à inserção das


mulheres no território esportivo, em especial, naqueles considerados como brutos
e violentos, como é o caso do futebol (HOLT; MASON, 2000). Na década de 1920,
a Associação de Futebol Inglesa, proibiu que seus clubes cedessem espaço para a
modalidade feminina (GIULIANOTTI, 2002). Nos anos 1940, foi a vez de o Brasil
vetar oficialmente a prática do futebol por mulheres, o que perdurou até a década
de 1980 (BRUHNS, 2000). A primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino foi
realizada em 1991, mais de 60 anos após sua primeira versão masculina. É ver-
dade que, nos últimos anos, a presença das mulheres tem se tornado frequente no
ambiente futebolístico, seja como profissional, seja como torcedora. Porém ainda
estamos longe de uma política de igualdade de gêneros naquele que é, não somente,
o esporte mais popular do país, mas também um dos pilares de sua identidade
(GUEDES, 2000).
Entretanto, se muitas são as dificuldades enfrentadas por mulheres,
grandes, também, são os empecilhos colocados para os homossexuais, sobretudo
se for homem. O futebol se mostra um campo em que há o pleno incentivo – e por
que não dizer, a obrigação – de se manter dentro do armário, com risco de punição
concreta ou simbólica para quem dele se atrever a sair.

Alteridades imaginadas

Em diferentes momentos da história do Ocidente são notáveis os meca-


nismos de distinção entre um eu e um outro. Na Antiguidade Grega, bárbaros eram
todos aqueles que não fossem gregos e, por isso, costumavam ser escravizados e
levados para duros trabalhos braçais. Na Idade Média, temos a figura do pagão,
cuja filiação divina lhe era negada, o que levou à proibição de suas festas. E no
século XVI, vimos a oposição civilizados x selvagens justificar a dominação e o
extermínio de diversos povos pelo mundo afora, incluindo a América, em espe-
180 Futebol na sala de aula

cial o Brasil.1 Em todos esses exemplos, a diferença foi pensada como um desvio
da normalidade tendo como consequência diversas modalidades de discriminação
que até hoje perduram.2
A construção de alteridades imaginadas como sendo entidades radical-
mente opostas – e inferiores – a um nós é mecanismo notável, também, na história
da sexualidade. A oposição que aqui nos interessa é homossexualidade x heteros-
sexualidade. O indivíduo homossexual é uma “invenção”, no sentido de Hobsbawn
e Ranger (1997), que se coaduna com os esforços de normatização das subjetivi-
dades, a partir da sexualidade. “Ou seja, um dispositivo histórico do poder que
marca as sociedades ocidentais modernas e se caracteriza pela inserção do sexo em
sistemas de unidade e regulação sexual” (FOUCAULT, 2007, p. 100). A homosse-
xualidade se torna uma classificação demarcada discursivamente como uma dege-
nerescência, passível de apreensão e tratamento científico.3
A heterossexualidade é naturalizada e consolidada como norma, tor-
nando-se com o tempo compulsória (RICH, 1994). Aos indivíduos que fugiam a
esse padrão restava ora a perseguição, ora o silêncio e a invisibilidade. Restava-lhes
entrar e permanecer em seus “armários”, escondidos e, ao mesmo tempo, protegi-
dos de possíveis castigos. No período posterior à Segunda Grande Guerra, o armá-
rio passa a fazer parte permanente do mobiliário de gays e lésbicas, consolidando-
se como uma máscara social da vida pública. É nos Estados Unidos que estar “in
the closet” se transforma em regra de conduta, derivada de um momento em que a
homossexualidade é vista como um risco ao pacato American Way of Life, funda-
mentado na composição tradicional da família (SEIDMAN, 2002).

1 No caso do Brasil, já na Carta de Caminha, evidencia-se o viés da negatividade pelo qual o indígena é interpretado. Antes de tudo, os
indígenas não civilizados, portanto, não são cristãos, cabendo a Portugal, levar seu domínio para a Terra de Santa Cruz. Antes de uma aceitação e
encantamento com a alteridade indígena, temos “uma ética do controle”, explicitada por Caminha (GIUCCI, 1993, p. 63).
2 Recomenda-se como leitura o belíssimo livro de Edward Said, Orientalismo (Companhia das Letras, 2007). Nele, o autor demonstra que
grande parte do que o Ocidente conhece do Oriente é derivado de projeções imagéticas pautadas no exotismo e na criação de uma imagem
demonizada e inferiorizada do Oriente.
3 A homossexualidade é uma categoria que substitui a sodomia, prática condenada tanto pelo direito, quanto pela religião e passível de
punição. A homossexualidade é considerada uma doença, alvo de controle e tratamento psiquiátrico (FOUCAULT, 2007).
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 181

Entrar no armário significa, antes de tudo, esconder a homossexuali-


dade, tendo em troca a possibilidade de continuar atuando no cotidiano, com certa
segurança e, até mesmo, sem perda de prestígio individual. Porém esse ato cobra
um alto preço: “living a lie. Not surprisingly, the closet is often likened to a ‘prision’,
‘an apartheid’ [...] It is said to emasculate the self by repressing the very passions
that give life richness an vitality”4 (SEIDMAN, 2002, p. 445). Seidman entende que
a necessidade de se entrar no armário se funda na dominação heterossexual, cujo
polo negativo seria a homossexualidade.
Essa dominação sofreu abalos, na década de 1970, quando se intensi-
ficaram as lutas pelos direitos de diversas minorias, dentre as quais, os gays. Em
termos teóricos, essa luta recebeu contribuições das Ciências Sociais e, em especial,
os estudos culturais que promoveram importantes problematizações acerca das
relações de poder, muitas vezes ocultadas, mas que influenciavam decisivamente
as relações sociais (BORDINI, 2006). Nos últimos anos, há um maior incentivo
a processos públicos de “coming out” (saídas do armário), como ocorreu com as
recentes manifestações de atrizes como Jodie Foster e Ellen Page, que assumiram
publicamente sua homossexualidade. Filmes, séries norte-americanas e novelas, no
Brasil, cada qual com sua especificidade, levaram personagens gays para o centro
da cena. Em termos de Direito Civil, há de se destacar a legalização do casamento
entre pessoas do mesmo sexo, nos Estados Unidos, o que é uma conquista política
bastante representativa.
Entretanto, chama a atenção que nesse cenário emancipatório, os espor-
tes, de um modo geral, continuem na tentativa de se preservarem como uma espécie
de ilha que abriga identidades fixas, à prova de ambiguidades e, sobretudo, protegi-
das da homossexualidade. Os armários do esporte ainda continuam fechados, em
sua grande maioria. Pois, se em outras esferas da sociedade, a homossexualidade

4 “Vivendo uma mentira, o armário é frequentemente comparado a uma prisão, a um apartheid. [...] É como pedir para se castrar o eu, repri-
mindo-se as próprias paixões que dão riqueza e vitalidade à vida” (Tradução da autora).
182 Futebol na sala de aula

possui algum direito de manifestação, não podemos dizer que o mesmo ocorra nos
esportes, em especial, no futebol.
Como propõe David Coad (2005) em seu livro Gay Athletes and the Cult
of Masculinity, há nos esportes uma necessidade de os atletas permanentemente
darem provas de sua heterossexualidade. Essa necessidade se dá quando o atleta
possui algum comportamento que fuja aos padrões da masculinidade hegemônica
do ambiente esportivo:
Homophobic discourse is used indiscriminately against and boys who acts
in discord with masculine behaviors wheter he is gay or not. In fact, many
straight athletes tell me that they questioned their sexuality because of the
labeling of their feminine behavior5 (CONNEL, 2006, p. 30).

Um exemplo que chama a atenção é o episódio protagonizado pelo,


então, jogador do Corinthians Emerson “Sheik” que, em 2013, após divulgar uma
foto na qual aparecia dando um beijo de selinho em um amigo, foi alvo de críti-
cas, sobretudo de protestos vindos de parte da torcida do time paulista. A reação
da Gaviões da Fiel – a principal torcida organizada do Corinthians – foi fazer um
protesto na sede do clube onde mostrava-se uma grande faixa dizendo frases como:
“‘Vai beijar a P.Q.P’; ‘Aqui é lugar de homem’; ‘Veado, não’; ‘Respeito’”.6
Ao que parece, o que de fato incomoda os torcedores é o risco de ter no
seu time de coração um jogador cuja masculinidade seja posta em xeque. Por isso,
na esfera torcedora são frequentes as expressões de homofobia, associadas a uma
série de preconceitos contra as mulheres. Essas expressões se fazem presentes nos
cânticos, nos gestuais, nas ofensas direcionadas à torcida ou ao jogador adversário,
assim como aos árbitros. Essas atitudes são naturalizadas e compreendidas como
parte do espetáculo e transmitidas de geração a geração.

5 “O discurso homofóbico é usado indiscriminadamente contra garotos que agem em desacordo com comportamentos masculinos, sendo eles
gays ou não. Na verdade, muitos atletas héteros me dizem que sua sexualidade é contestada porque seus comportamentos são rotulados como
femininos” (Tradução da autora).
6 RAMOS, Raphael. Torcedores do Corinthians protestam contra beijo de Emerson em amigo. Estadão, 19 ago. 2013. Disponível em: http://espor-
tes.estadao.com.br/noticias/futebol,torcedores-do-corinthians-protestam-contra-beijo-de-emerson-em-amigo,1065637. Acesso em: 20 out. 2020.
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 183

Torcidas de futebol: uma escola de preconceitos

É no fim dos anos de 1930 e início da década de 1940 que o torcedor


ganha novas formas de representação.7 Os concursos de torcidas feitos pelo jorna-
lista Mário Filho, assim como o surgimento das Torcidas Uniformizadas, como é o
caso da Charanga Rubro-Negra, de 1942, conferem ao torcedor a legitimidade de
protagonista do espetáculo futebolístico (HOLLANDA, 2010). Hoje em dia, seus
cânticos ecoam pelos estádios, e seria difícil imaginar um jogo de futebol sem a
presença de um público massivo. Seja nas transmissões televisas, seja na capa das
primeiras páginas esportivas ou como consumidores de bens mercadológicos do
futebol, ser torcedor é parte identitária importante no Brasil (TOLEDO, 1996).
Entretanto, se por um lado a figura do torcedor está anexada ao lado fes-
tivo, há também constantes associações aos casos de violência no futebol do Brasil
e do mundo.8 A questão da violência e da morte entre torcedores é assunto farta-
mente abordado pelas Ciências Sociais e Humanas.9 Não é objetivo deste artigo
adentrar o assunto, mas apenas fazer um brevíssimo recorte referente a formas de
agressão perceptíveis na esfera torcedora, porém, muitas das quais, tomadas como
simples piadas ou atitudes jocosas, comuns e aceitáveis no ambiente futebolístico.
A violência à qual se deseja fazer referência é de natureza simbólica
e diz respeito às manifestações de homofobia presentes em camisas, souvenirs e,
sobretudo, nos xingamentos e músicas entoadas pelo público presente nos estádios.
Nas torcidas, evidencia-se que a manutenção de uma identidade precisa da “[...]

7 É razoavelmente recente a concepção que temos de torcida, compreendida como um agrupamento festivo que paga ingresso para assistir a
um jogo de futebol, em um estádio da cidade. Nos primeiros anos de sua chegada ao Brasil, o futebol era uma prática quase que restrita a clubes
esportivos oriundos das classes abastadas. Símbolo de modernidade e da adoção de hábitos europeus, a introdução do futebol se conformou aos
ideais civilizatórios e higienizadores, comuns no fim do século XIX, no Brasil (PEREIRA, 2000). É somente nos anos de 1910 que a denominação
“torcedores” passa a ser gradativamente usada pela imprensa para fazer referência aos espectadores que incentivam seus times com gritos e
gestos (MALAIA, 2012, p. 61).
8 Nesse caso, as acusações recaem na atuação das chamadas torcidas organizadas, quase sempre responsabilizadas por acidentes e mortes
ocorridos nos estádios ou em seus arredores (TOLEDO, 1999).
9 Um dos temas mais abordados nas pesquisas sobre futebol diz respeito às torcidas organizadas, em especial, sua relação com os casos
de violência. Sobre esse tema, temos o importante livro de Toledo (1996). Recentemente foi publicado o livro Hooliganismo e a Copa de 2014,
organizado por Bernardo Buarque de Hollanda e Heloisa Baldy (2014).
184 Futebol na sala de aula

invención de un Otro, en tanto la dinámica de invencion de una identidad exige su


alteridad” (ALABARCES, 2002, p. 48). Um dos mecanismos usados para a afirma-
ção identitária se dá a partir da oposição a uma alteridade negativizada, construída
do rebaixamento do adversário, ao imputar-lhe características que o feminizam e
questionam sua masculinidade.
A listagem de exemplos que demonstram esse fato é grande. Podemos
começar pela rivalidade mineira Cruzeiro x Atlético. Em sua playlist, a torcida da
raposa10 costuma tocar o hit “Melô das Frangas”, que diz o seguinte: “Dia de jogo é
um desespero, as frangas ficam se espremendo no poleiro/E perde pena e bate asas,
olha as franguinhas, “tão” ficando assanhadas/No c* das frangas, no c* das frangas,
no c* das frangas, olê, olê (2x).11 Essa letra pode ser acessada com facilidade em um
famoso site que também disponibiliza um vídeo no qual, a cada vez que o refrão
da música é repetido, aparece o desenho de uma franga de costas para uma raposa,
simulando, desse modo, uma relação sexual.12
Saindo de Minas Gerais e chegando a São Paulo, temos mais exemplos.
A música “Bando de Bambi”, cantada pela torcida Mancha Verde contra os são-pau-
linos, diz: “Baila, baila, baila… Baila, seus viados… Vamo, seus Bambi, vamo, seus
Bambi…Fica de qua-a-tro!”13 Os tricolores, por sua vez, cantam para a torcida do
Corinthians: “Gambá, me diz como se sente/Por que você gosta de beijar?/Ronaldo
saiu com dois travecos/O Sheik, selinho ele foi dar/Vampeta posou pra G/Dinei
desmunhecou/Na Fazenda, de calcinha, ele dançou/Não adianta argumentar/Todo
mundo já falou/Que o gavião virou um beija-flor”.14
Seria possível continuar por páginas e páginas, com outros exemplos
vindos de estados diversos do país, incluindo os quatro grandes clubes do Rio de

10 Raposa é a mascote do Clube Cruzeiro e Galo, mascote do Atlético Mineiro.


11 MÁFIA AZUL. Melô das frangas. Letras.mus. Disponível em: http://letras.mus.br/mafia-azul/1650312/. Acesso em: 20 out. 2020.
12 Ibidem.
13 MANCHA VERDE. Bando de bambi. Letras.mus. Disponível em: http://letras.mus.br/mancha-verde/1394648/. Acesso em: 20 out. 2020.
14 TORCIDA tricolor prepara grito homofóbico para jogo contra o Corinthians. Placar, 16 set. 2014. Disponível em: http://placar.abril.com.br/
materia/torcida-tricolor-prepara-grito-homofobico-para-jogo-contra-o-corinthians/. Acesso em: 20 out. 2020.
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 185

Janeiro. Mas basta, por enquanto, afinal, temos o suficiente para dar mostras do
quanto as torcidas podem ser preconceituosas. Todos os cânticos mencionados são
vinculados aos chamados torcedores organizados. Porém há de se considerar que
o coro desses agrupamentos é, frequentemente, acompanhado pelo restante das
vozes presentes nos estádios. Além dos cânticos, ofensas comuns como “bicha”,
lançadas contra os goleiros, quando batem o tiro de meta, ou “arrombado”, para
os árbitros, são parte do vocabulário compartilhado por jovens, adultos, mulheres
e crianças que assistem a uma partida nas arquibancadas, nas cadeiras de bares ou
nos sofás de casa.
Tentativas de se criar torcidas gays como a Coligay e Flagay15 tiveram
vida curta, sendo fortemente repelidas por outros torcedores. Hoje em dia, circu-
lam na internet e redes sociais algumas tentativas de dar visibilidade aos torcedores
gays, como é o caso da Galo Queer, criado por uma cientista social, cujo nome
sabemos ser apenas Nathália. A Galo Queer atua como comunidade virtual, rara-
mente se mostrando presente nas arquibancadas. Em entrevista, alguns dos partici-
pantes da comunidade relatam ameaças sofridas, caso decidissem estender alguma
bandeira ou cartazes nas arquibancadas.16 Mesmo que de modo virtual, a iniciativa
de se criar a Galo Queer demonstra certa demanda pelos direitos LGBT sendo leva-
dos ao futebol, uma das mais importantes manifestações culturais do país.
Infelizmente, trata-se de uma luta difícil. Como já dito, o futebol, no
Brasil, é uma escola onde se aprende “a ser homem”, a partir de um “currículo de
masculinidade”17 (BANDEIRA, 2010) que é seguido por torcedores no estádio – e

15 A Coligay foi a primeira torcida organizada gay do Brasil. Criada para apoiar o Grêmio (RS), a Coligay durou de 1977 a 1983. Sobre sua
história, v. Gerchmann (2014). Já a Flagay foi criada em 1979 por Clóvis Bornay, mas durou apenas um jogo tendo sido hostilizada por outros
torcedores. Recentemente em 2003, o ativista Raimundo Pereira (já falecido) anunciou a volta da torcida às arquibancadas, mas torcedores e
dirigentes do Flamengo se mostraram contrários à iniciativa.
16 MACHADO, Thales. A corajosa "Galo Queer": cientista social funda movimento anti-homofobia na torcida do Atlético-MG. ESPN, 11 abr.
2013. Disponível em: http://espn.uol.com.br/noticia/322413_a-corajosa-galo-queer-cientista-social-funda-movimento-anti-homofobia-na-tor-
cida-do-atletico-mg. Acesso em: 20 out. 2020.
17 Segundo Bandeira (2010, p. 346): “O conceito de currículo da ciência pedagógica parece-me produtivo para pensar as práticas exercidas
nos estádios de futebol. [...] O currículo seria mais bem entendido aqui se pensado como uma série de prescrições, algo que os sujeitos são
reiteradamente convidados a fazer”.
186 Futebol na sala de aula

mesmo fora dele –, tendo como matriz “pedagógica” um conjunto de atitudes não
somente homofóbicas, mas “sexistas – los hombres son superiores a las mujeres – y
heterosexista – los heterosexuales son los normales, superiores a los homosexu-
ales” (OLAVARRÍA, 2006, p. 120).
O que há de interessante nesse fenômeno é o fato de que ele explicita
algo fundamental: a necessidade de se “aprender a ser homem” dá mostras de que
as masculinidades – assim como as feminilidades – estão longe de poderem ser
consideradas a partir de características inatas, mas, sim, como derivadas de cons-
truções culturais que podem variar em diferentes contextos, dentro de uma mesma
sociedade. Sendo assim, não nascemos homens ou mulheres, mas nos tornamos
homens e mulheres por meio de performances que reforçam atos, comportamentos
e ações que demarcam os sujeitos. O sentido de performance como proposto por
Judith Butler é “aquele poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos,
que regula e constrange” (BUTLER, 2001, p. 152).
A torcida de futebol, no Brasil, é um lócus privilegiado da performa-
tividade masculina. Nela, constantemente, são reiterados os modos adequados de
“ser homem”, a serem reproduzidos em diversos momentos do cotidiano. A mascu-
linidade hegemônica do futebol pressupõe virilidade, heterossexualidade e subjuga
– às vezes, de modo violento – masculinidades que desviem do padrão considerado
adequado e desejável. Trata-se, portanto, de identidades erguidas, a partir de pro-
cessos de hierarquização, mediadas por relações de poder e status social:
Sin embargo, las diferentes masculinidades no se encuentran unas junto a
otras como plastillos en una mesa, como estilos de vida altyernativos entre
los cuales los hombres escogen libremente: existen relaciones definidas entre
las diversas masculinidades – principalmente relaciones que dependen de la
jerarquia y la exclusión. Por exemplo, en la sociedade australiana contempo-
rânea existe um modelo de masculinidad (autoritária, agressiva, heterosse-
xual, con cuerpos capaces, valiente) a la cual se respecta más que a las otras
(CONNEL, 2006, p. 186).
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 187

Nos últimos anos, muitas manifestações têm enfatizado a necessidade e


o direito de as mulheres se mostrarem presentes e atuantes nas arquibancadas dos
estádios. Há. no momento, alguns movimentos que merecem atenção. Um deles é
o “Mulheres de Arquibancada” que já realizou dois encontros nacionais, o primeiro
deles no Museu do Futebol, em 2017, e o segundo, em agosto de 2018, na capital do
Ceará, Fortaleza. Um problema grave a ser combatido são os casos de assédio em
estádios, e daí nasceu o “Vascaínas contra o Assédio”, composto por torcedoras do
Vasco da Gama (RJ), clube que abriu as portas para que as reuniões do movimento
se realizem. Um dos objetivos é criar uma ouvidoria voltada às mulheres e à presença
nos jogos do clube carioca de um grupo interdisciplinar com psicólogos e assistentes
sociais. Essa mesma luta também tem sido uma bandeira das jornalistas esportivas.
Esse é o caso do “Deixa Ela Trabalhar”, uma iniciativa que partiu de 52 jornalistas que
trabalham com esporte, dentre apresentadoras, repórteres, produtoras e assessoras de
vários veículos de comunicação. O objetivo do grupo é lutar contra o assédio moral e
sexual sofrido por elas nos estádios, nas ruas e nas redações.
Ainda faltam estudos mais amplos e sistematizados que demonstrem
dados mais completos a respeito da participação das mulheres nas arquibancadas
do Brasil. Entretanto, alguns dados apontam para números interessantes a respeito
da relação futebol e mulheres. Em pesquisa realizada em 2013 pela agência Box
1824, sob encomenda da Rádio Globo, 900 pessoas que residem no Rio de Janeiro
e São Paulo foram ouvidas sobre seus hábitos de torcer, e o resultado mostrou, por
exemplo, que 38% das mulheres afirmam ir ao estádio mais de uma vez por mês
contra 41% dos homens. Cinquenta e nove por cento das torcedoras declararam
assistir a jogos de futebol até duas vezes por semana, enquanto 40% dos homens
afirmam fazer o mesmo.
No Brasil, as torcedoras estão dispostas a reivindicar respeito, legitimi-
dade e para fazer uso de uma expressão pertinente ao contexto atual, as torcedoras
estão se empoderando e indo em busca do direito de serem representadas como
188 Futebol na sala de aula

admiradoras do futebol, como alguém que torce e, também, consome o esporte


mais popular do país. A busca pela igualdade de gêneros no futebol está intrin-
sicamente atrelada à luta contra o machismo, elemento que é também o alicerce
da homofobia, tipo de preconceito que, mesmo que aos poucos, tem sido alvo de
combate. A Fifa já puniu a Federação Mexicana algumas vezes devido ao grito “Eh,
puto!” entoado na hora em que o goleiro adversário cobra o tiro de meta. Muitas
torcidas no Brasil, traduziram para “Bicha”, grito que podia ser ouvido com frequ-
ência em diversos jogos da Copa do Mundo de 2014, o que motivou uma investiga-
ção promovida pela Fifa, que ameaçou multar a Confederação Brasileira de Futebol
(CBF). Mas cânticos homofóbicos ainda podem ser ouvidos em diversos estádios
espalhados pelo país. Recentemente, o coro “veado, time de veado” que costuma
ser direcionado à torcida do Fluminense no Rio de Janeiro foi parar na boca de um
jogador, Felipe Bastos. O volante do Vasco da Gama foi filmado comemorando o
título da Taça Guanabara – conquistado em jogo contra o Fluminense – gritando
aquele mesmo cântico homofóbico. O Fluminense, em sua página oficial, publicou
uma carta em que dizia que “O Fluminense, assim como todo clube de futebol, é
feito de homens e mulheres de várias cores, condições sociais, sexualidade. E tem
muito orgulho de seus torcedores”.18
Em 17 de maio de 2019, Santos e Grêmio mostraram incisivo apoio ao
dia internacional de combate a LGBTfobia com campanhas em suas redes sociais
buscando, sobretudo, atingir o público torcedor. Esporte Clube Bahia, que tem
realizado um interessante trabalho de marketing voltado ao combate a diversos
tipos de preconceito,19 lançou a camisa “Não há impedimento” visando “Abraçar a
pluralidade de nossa torcida”. Diversos outros clubes, também, lembraram da data

18 OBSERVATÓRIO. Opinião: em pauta após vídeo de Fellipe Bastos, LGBTfobia deve ser combatida com ações no futebol. Observatório da
Discriminação Racial no Futebol, 20 fev. 2019. Disponível em: https://observatorioracialfutebol.com.br/opiniao-em-pauta-apos-video-de-fellipe
-bastos-lgbtfobia-deve-ser-combatida-com-acoes-no-futebol/. Acesso em: 20 out. 2020.
19 No Dia da Visibilidade Trans – 29 de janeiro –, o Bahia postou em suas redes um manifesto no qual passaria a adotar o nome social nos
processos administrativos do clube. Cf. GUITZEL, Virgínia. Nome social. Esporte Clube Bahia, 29 jan. 2019. Disponível em: https://www.esporteclu-
bebahia.com.br/nome-social/. Acesso em: 20 out. 2020.
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 189

em suas redes sociais, especialmente o Twitter. Embora ainda continue presente


na fala cotidiana, a frase “futebol é coisa de homem” tem perdido forças, o que
mostra também que o futebol não está à parte da sociedade. Afinal, a luta contra o
machismo e a LGTBTfobia também faz parte da pauta de reivindicações de igual-
dade de tratamento de gênero em diversas esferas da sociedade.
Desconstruir esses preconceitos torna-se tarefa relevante, e a partici-
pação da escola se faz fundamental. Mas como realizar essa desconstrução? E qual
poderia ser o papel da escola e da educação nesse processo?

Arquibancadas e escola: por uma “ pedagogia queer”

Como lidar com as diferentes composições identitárias que também se


fazem presentes no ambiente escolar? Como lidar com os sujeitos divergentes ou
mesmo considerados “esquisitos” que causam estranhamento ou abjeção, inclusive
em nós professores? O que fazer com os preconceitos trazidos de fora da escola,
mas nela mantidos e, muitas vezes, por ela fomentado? Os desafios são muitos,
porém necessários de ser enfrentados, pois representam demandas às quais a escola
precisa estar atenta.
Nesse momento, sigo de perto as propostas de Guacira Lopes no que
se refere à necessidade de a escola adotar “uma pedagogia e um currículo queer”
(LOURO, 2001, p. 550), o que implica um esforço em desconstruir as pretensões à
fixidez, sejam saberes ou identidades. Queer, palavra originalmente usada de modo
ofensivo para designar indivíduos considerados desviantes e estranhos, denomina
também um conjunto de estudos que têm se mostrado muito fecundos, pois que
ancorados na “desconfiança com relação aos sujeitos sexuais como estáveis e foca
nos processos sociais classificatórios, hierarquizadores, em suma, nas estratégias
sociais normalizadoras dos comportamentos” (MISKOLCI, 2009, p. 169).
190 Futebol na sala de aula

De acordo com Louro (2001, p. 550):

Uma pedagogia e um currículo queer estariam então voltados para o pro-


cesso de produção das diferenças e trabalhariam, centralmente, com a insta-
bilidade e a precariedade de todas as identidades. Ao colar em discussão as
formas como o outro é constituído levariam a questionar as estreitas relações
do eu com o outro.

Questionar a arbitrariedade das categorizações e explicitar as relações


de poder nelas presentes é papel que pode ser desempenhado pela escola como
local que produz e põe em circulação saberes diversos. A escola precisa realizar um
esforço na busca pelos porquês que fundamentam as muitas tentativas de padroni-
zação, o que pode representar um incrível desafio para quem, como ela, se ergueu
“tradicionalmente como espaço da normatização e do ajustamento” (LOURO,
2001, p. 550).
A incorporação e o aproveitamento de temas que fazem parte do coti-
diano dos alunos se mostram fundamentais. O futebol, especificamente o torcer, é
um dos assuntos que pode ser plenamente incorporado como conteúdo de variadas
disciplinas (NICÁCIO, 2012) para se discutir relevantes questões, como é o caso da
homofobia, do sexismo e outras formas de preconceito, naturalizados e tomados
como brincadeiras inocentes, típicas de torcedores. Se as arquibancadas, os bares
e o sofá de casa ensinam a como “ser homem”, a escola pode ser uma instância de
problematização desse aprendizado.
A escola pode ser – e deveria ser – um lugar onde os diversos armários
pudessem ser abertos, não somente para que deles saiam quem neles se esconde. A
escola pode também entrar nesses armários, vasculhar seus cantos, observar os diver-
sos monstros que neles habitam e os diversos sonhos de liberdade. Mais do que um
exercício de alteridade, entrar nos variados armários, onde se escondem os ‘esqui-
sitos”, os desviantes, é fundamental para se compreender sua natureza arbitrária e
opressiva. Essa compreensão é fundamental para que possamos pensar em estratégias
Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 191

– a partir do conhecimento e aprendizagem – por intermédio das quais seja possível


promover caminhos de libertação, sabendo que “A libertação depende da construção
da consciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da
consciência e da apreensão da possibilidade” (HARAWAY, 2009, p. 33).
Depois de visitarmos os armários, teremos mais clareza para respon-
der a seguinte pergunta: “Por que uma guerra é declarada contra uma criança?”.
Esse questionamento foi feito pelo sociólogo peruano Giancarlo Cornejo, no ótimo
texto “A guerra declarada contra o menino efeminado”.20 Nele, o autor narra o
quanto foi assombrado pelos olhares e falas agressivas, vindas de colegas e profes-
sores da escola que não aceitavam seu jeito pouco masculino de ser. Esse mesmo
estranhamento persegue muitos daqueles que, por algum motivo, não cumprem
certas expectativas socialmente compartilhadas.
Seria importante que a escola – e todos nós – repetisse, sempre que pos-
sível, a pergunta “Por que uma guerra é declarada contra uma criança?”, sabendo
que esse mesmo questionamento pode ser estendido a jovens, adultos, idosos etc.,
e todos aqueles contra os quais declaramos batalhas. Batalhas que não se limitam
ao ataque à sexualidade, à identidade de gênero, mas que se faz presente nas mais
variadas e nocivas pedagogias opressivas. É importante que a escola não seja uma
mera reprodutora das “ansiedades culturales y pánicos morales” (TRON; FLORES,
2013, p. 9), mas, sim, pense os sujeitos como “como sujetos de derecho cuya garan-
tía debe conjurarse no sólo en un corpus jurídico-normativo sino, y especialmente,
en la trama de prácticas y significaciones cotidianas” (TRON; FLORES, 2013, p. 9).
Para além de reformas curriculares – que incluem a formação dos pro-
fessores – é fundamental a existência de um aparato legal que assegure os direi-
tos civis dos indivíduos. Sem esse resguardo, qualquer tentativa para se promover
uma sociedade menos discriminatória e preconceituosa, por intermédio da escola

20 CORNEJO, Giancarlo. A guerra declarada contra o menino afeminado. Disponível em: http://www.ufscar.br/cis/2011/04/a-guerra-declarada-
contra-o-menino-afeminado/. Giancarlo se inspira no texto How To Bring Your Kids Up Gay de Eve Kosofsky Sedgwick (1991). Disponível em: http://
faculty.law.miami.edu/mcoombs/documents/sedgwick_GayKids.pdf.
192 Futebol na sala de aula

ou não, perde força. É necessário também garantir à escola a viabilidade de poder


ministrar conteúdos, livre de interferências de ordem religiosa ou ideológica, para
que ela, assim, possa se constituir como um espaço de conhecimento e aprendiza-
gem que vise à formação de sujeitos emancipados.

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Sugestões de fontes para o trabalho em sala de aula

Filmes
BILLY Elliot. Direção: Stephen Daldry. Reino Unido: BBC Company, 2000. (111 min).

COM AMOR, Simon. Direção: Greg Berlanti. EUA: Fox 2000 Pictures, 2018. (110 min).

DRIBLANDO o destino. Direção: Gurinder Chadha. EUA/Reino Unido/Alemanha: Kintop Pic-


tures, 2003. (112 min).

GAME Face. Direção: Michiel Thomas. EUA/Bélgica, 2016. (95 min).


Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas 195

TOMBOY. Direção: Céline Sciamma. França, 2012. (88 min).

Quadrinhos
BECHDEL, Alison. Fun home: uma tragicomédia em família. São Paulo: Conrad, 2007.
Ditadura civil-militar e
homossexualidades transgressoras:
o caso da torcida Coligay
Luiza Aguiar dos Anjos

Introdução

Em 1977, foi fundada a torcida gremista Coligay. Formada predomi-


nantemente por homens gays, ela foi presença constante em estádios por onde o
clube gaúcho jogava até o princípio da década de 1980. O grupo era constituído
por frequentadorxs da boate gay Coliseu, capitaneados pelo proprietário do esta-
belecimento, Volmar Santos. Mesmo diante de um inóspito cenário futebolístico
machista e heteronormativo, a torcida não apenas reconhecia publicamente a
orientação sexual de seus integrantes, como fazia de tal identidade sexual o nor-
teador de sua performance estética nas arquibancadas, com integrantes vestindo
kaftas, plumas e paetês, dançando em coreografias e gritando de forma estridente.
A Coligay representou não apenas uma afronta ao conservadorismo
hegemônico no futebol, mas também à moral defendida pelo governo militar
198 Futebol na sala de aula

então em vigor no país, para quem as homossexualidades foram um dos alvos pri-
vilegiados de políticas de repressão e controle. Por outro lado, apesar do esforço
do Estado, é também nesse período que as cidades brasileiras, especialmente as
grandes capitais, observam a ampliação de um circuito de diversões voltados ao
público LGBT+, que passaram a estar cada vez mais visíveis nos espaços públi-
cos, assim como nos meios culturais e intelectuais (GREEN; QUINALHA, 2014). É
também quando seus movimentos de militância passam a se organizar (SIMÕES;
FACCHINI, 2009).
O campo das artes, por sua vez, também foi um espaço no qual, ape-
sar das restrições impostas pela censura, circularam diversas ideias subversivas. O
cinema, o teatro, a música popular, a literatura e as artes plásticas acompanhavam,
a seu modo, o ritmo de contestação à ordem que se fazia nas ruas via luta armada
(TREVISAN, 2011). Obras de diversos artistas não apenas reivindicavam o retorno
à democracia, como também tiveram importante papel na ruptura com parâme-
tros tidos como adequados de uso e exploração dos corpos, envolvendo nesse bojo
aspectos de gênero e sexualidade.
A ambiência revolucionária se fazia notar ainda no ambiente fute-
bolístico. Se, por um lado, esse esporte foi utilizado pelo Estado ditatorial como
ferramenta de disseminação de suas ideologias, em especial, a partir da Seleção
Nacional, o futebol também foi tomado por atitudes contestatórias de jogadores,
torcidas organizadas e clubes (BERTÉ, 2016; COUTO, 2010; FLORENZANO,
2010; HOLLANDA, 2009). A presença da Coligay, nesse sentido, pode ser inserida
em um conjunto amplo e diverso de manifestações que exerciam e reivindicavam
liberdade e democracia (FLORENZANO, 2017).
Tendo em vista esse cenário, este texto se propõe a refletir acerca do
caráter contestatório e subversivo da Coligay perante o contexto cultural e político
da época. Para isso, recorro a entrevistas com alguns de seus/suas integrantes, além
de registros em periódicos.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 199

Coligay e a rebeldia de corpos e performances dissonantes

A Coligay era e é reiteradamente apontada como uma torcida diferente


de outros agrupamentos de torcedorxs com os quais conviveu e que a sucederam.
Suas características distintivas eram a animação, o torcer ininterrupto, a estética
chamativa e original, mas, sobretudo, a afeminação, a qual atravessava todos os
demais atributos. Nas descrições do grupo se destacam a menção a suas vestimen-
tas extravagantes, os gritos e rebolados de seus/suas integrantes, suas músicas e
brincadeiras irônicas. Classificadas como alegres, festivas, animadas e engraçadas,
remetem a uma espécie de performance torcedora gay, ou seja, composta por ele-
mentos – gestos, expressões, músicas etc. – associados a representações, frequente-
mente estereotipadas, da homossexualidade.
Sua apropriação do futebol e das arquibancadas, portanto, não se dava
de forma assimilacionista, aderindo ao modelo de torcer já vigente, associado à
noção hegemônica de masculinidade. Não buscaram se misturar ou camuflar, mas,
sim, se destacar com manifestações chamativas, criativas e inusitadas, e que justa-
mente deslocavam a relação imediata e obrigatória entre o futebol, a virilidade e a
heterossexualidade.
Entre torcedorxs, jogadores, dirigentes e jornalistas, aquelas performances
transgressoras, inovadoras e alegres conseguiam produzir, ao mesmo tempo, incô-
modo, choque, estranhamento e admiração. Goellner e Fraga (2004) trataram de
situação similar referente às strongwomen ou mulheres “forçudas”, que se apresen-
tavam em feiras, circos, shows de teatro e music halls de vários lugares do mundo,
ao longo da transição do século XIX e XX. “Seus espetáculos percorriam a Europa
e os Estados Unidos e se caracterizavam, fundamentalmente, por demonstrações
de força física em que cada qual inventava diferentes formas de exibir sua arte e,
assim, adquirir prestígio e respeito” (GOELLNER; FRAGA, 2004, p. 78). Os corpos
delas, em sua estética e exercitação física, representavam a fuga da norma imposta
200 Futebol na sala de aula

às mulheres da época. Mas a condição de excentricidade lhes possibilitava ocupar


lugares nos quais a exibição desses corpos produzia admiração. Respeitando as dife-
renças entre essas mulheres “forçudas” e os integrantes da Coligay, o que viso des-
tacar é como corpos e performances abjetas podem, também, ser alvo de fascínio.
Esse interesse, assim, não necessariamente deve ser interpretado como
ausência ou superação do preconceito. O próprio Volmar Santos defende tal com-
preensão. “Era gozado, era interessante, era alegre, era bonito, mas na concepção
deles não eram pessoas normais. Eles achavam que os gays eram... Que nem o pre-
conceito que tem contra os negros [...]” (SANTOS, 2016, p. 13).
Em que pese o sucesso que a Coligay alcançou e o interesse que gerou,
uma torcida como aquela, se não era inédita, era algo raro.1 Mas, analisando a cena
artística e cultural da época, é possível identificar um cenário alinhado à subversão
proposta pelos integrantes da Coligay.
Olhando para o marcante ano de 1968, Antunes e Ridenti (2007) identi-
ficam, de forma resumida e simplificada, dois grandes grupos que dividiam os artis-
tas contestadores ao status quo: o dos vanguardistas e o dos nacionalistas. Enquanto
os nacionalistas buscavam uma linguagem dita autenticamente brasileira, estavam
mais próximos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e procuravam desenvol-
ver uma luta nacional-popular que visava abrir caminhos para uma posterior ação
socialista, os vanguardistas – liderados pelo movimento tropicalista – criticavam o
nacional-popular e inspiravam-se em movimentos de vanguarda norte-america-
nos e europeus, particularmente com a contracultura.2 Os autores apontam, ainda,
que independentemente das divergências, representantes de ambas as linhas sofre-
ram perseguições do governo ditatorial e foram alvo de censura, prisões e exílio.

1 Em Anjos (2018), abordo a existência de outras torcidas gays brasileiras nas décadas de 1970 e 1980.
2 A contracultura foi um movimento internacional que teve sua ramificação brasileira. O eclético conjunto de referências desse movimento
estético psicossocial envolvia orientalismo, drogas alucinógenas, pacifismo, ecologia, pansexualismo, discos voadores, um novo discurso amoroso,
transformação here and now do mundo, dentre outras (RISÉRIO, 2005). Para Coelho (2005), tal qual a luta armada, a contracultura foi um modo
de combater a sociedade vigente, contestando o que, para seus integrantes, era entendido como o fundamento do autoritarismo: a racionalização
da vida social.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 201

Rodrigues (2014), por sua vez, situa a Tropicália em um momento


anterior à chegada das ideias contraculturais. Também destacando a relevância do
movimento para o comportamento e sentimento daquela geração, ele identifica
que é aproximadamente no momento de exílio de duas de suas personagens mais
importantes, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que começam a chegar e circular no
Brasil os debates acerca do uso de drogas, circuitos alternativos, poetas beats ame-
ricanos, feminismos, movimento gay e black power.
Para além da luta política pelo retorno à democracia, os vanguardistas
também tiveram importante papel na ruptura com parâmetros tidos como adequa-
dos de uso e exploração dos corpos, envolvendo nesse bojo aspectos de gênero e
sexualidade. Essas transformações não se restringiram ao universo artístico, sendo a
maior liberdade no que tange ao comportamento uma das marcas daquela geração.
A moda — ou a vida que ‘pregava’ essa geração de jovens mulheres entre
20 e 30 anos — consistia em questionar os valores institucionais que davam
sustentação ao que chamavam com desdém de ‘casamento burguês’: a mono-
gamia, a fidelidade, o ciúme, a virgindade. Na prática, isso significava para
elas deixar a confortável condição de apêndice econômico, a segurança psi-
cológica de um lar, e partir para a arriscada aventura da experimentação
existencial, que se podia traduzir na busca de uma profissão, em novas e
descomprometidas relações, ou, às vezes, em um mergulho na solidão. Só
isso já faria de 68 um ano marcante no destino dessa geração, que se autode-
nominava orgulhosamente de ‘pra frente’ (VENTURA, 1988, p. 26).

Se, para o regime, essas práticas eram vistas como manifestações de sub-
versão que necessariamente precisavam ser coibidas, seja por representarem fugas
à norma, seja por acreditarem que elas eram parte de um complô comunista, tam-
bém entre muitos movimentos de esquerda essas transformações de costume eram
mal vistas (QUINALHA, 2018). Conforme lembra Zuenir Ventura (1988, p. 33),
aos olhos de muitos oposicionistas, “aderir aos novos costumes era um inaceitável
desvio ideológico”. Segundo o autor, para o PCB, aquelas mudanças comportamen-
202 Futebol na sala de aula

tais eram um retrocesso associado à burguesia, que ia de encontro à ideia de pureza


moral vinculada ao proletariado. Dentre as libertinagens indesejáveis, estavam as
práticas homossexuais, identificadas pela esquerda tradicional como “uma doença
da burguesia” (VENTURA, 1988, p. 36-37).
Mesmo diante dessas resistências, sobretudo a partir da década de 1970,
não apenas no Brasil, mas em diversas partes do mundo, em especial nos Estados
Unidos e na Europa, a sociedade começa a conviver com um aparato cultural gay
e lésbico formado por jornais, revistas, literatura e obras de arte (LOURO, 2001;
LOPES, 2002).
Especialmente quando comparada à invisibilidade de períodos anterio-
res, Trevisan (2011) chega a afirmar que nessa década ocorreu um boom gay. Mais
do que a simples exposição de uma orientação não heterossexual, a década de 1970
viu nascer uma série de iniciativas subversivas e questionadoras, desalinhadas aos
padrões de ordem e moral hegemonicamente estabelecidos. Nesse sentido, Trevi-
san (2011) conclui:
Daí porque uma das palavras-chave do período foi ‘desbunde’ ou ‘desbum’.
Alguém desbundava justamente quando mandava às favas – sob aparên-
cia frequente de irresponsabilidade – os compromissos com a direita e a
esquerda militarizadas da época para mergulhar numa liberalização indivi-
dual, baseada na solidariedade não-partidária e muitas vezes associada ao
consumo de drogas ou à homossexualidade (então recatadamente denomi-
nada ‘androginia’) (TREVISAN, 2011).

No cenário musical, podem ser citados como símbolos de transgressões


de gênero desse período os cantores Ney Matogrosso e Caetano Veloso, e o grupo
Dzi Croquettes. Cada um à sua forma, os cantores e os atores/bailarinos questiona-
vam e criticavam convenções, padrões e tabus – que não tinham sido criados, mas
foram intensificados pelo regime militar – por meio de suas performances andró-
ginas, composições provocativas e posicionamentos progressistas.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 203

No cinema, o erotismo também passou a ser mais frequente, e a homos-


sexualidade estava dentre os temas recorrentes de movimentos como o Cinema
Marginal e o Cinema Novo, no primeiro, de forma mais explícita e escrachada, e
no segundo, de forma mais sutil (MARTINS, 2012). Martins (2012) aponta que a
homossexualidade foi um problema para vários filmes, sendo um conteúdo sempre
registrado para cortes pelos órgãos de censura. Contudo, apesar do intervencio-
nismo, havia também um interesse governamental em viabilizar a indústria cine-
matográfica nacional, o que, por vezes, amenizava a rigidez dos censores. Além
disso, quando não conseguiram liberar os trechos censurados, os produtores aca-
bavam optando por acatar as alterações demandadas como forma de viabilizar o
lançamento do filme. Desta forma, segundo o autor, nenhuma película brasileira
chegou a ser integralmente vetada à exibição, apesar de grande parte delas terem
sofrido cortes e restrições etárias. Isso possibilitou que, mesmo diante de reservas,
certos conteúdos tidos como socialmente reprováveis fossem veiculados.3 Assim,
mesmo diante do controle governamental, Moreno (1995) afirma que, a partir da
década de 1970, ocorreu uma explosão de filmes que abordavam temáticas relacio-
nada às homossexualidades.
Trevisan (2011, p. 294) identifica, também, o surgimento de um “certo
estilo de ‘teatro guei’” no Brasil, especialmente a partir da década de 1970. O autor
destaca que 11 peças das 25 que estavam em cartaz no primeiro semestre de 1978
da temporada paulistana tratavam, direta ou indiretamente, da homossexualidade.
Ao mesmo tempo em que o autor julga serem de baixa qualidade a maioria das
produções, percebe um interesse popular pela temática.
De forma semelhante, também na televisão muitos personagens homos-
sexuais tornaram-se um grande sucesso em programas humorísticos, podendo ser
citados como exemplo o Capitão Gay, de Jô Soares, e Painho, de Chico Anísio.

3 Alguns exemplos de filmes lançados nesse período que expuseram a homossexualidade são “Nos Embalos de Ipanema” (1978); “Os
Machões” (1972); “Toda Nudez Será Castigada” (1972); “O Beijo da Mulher Aranha” (1985); “Aqueles Dois” (1985); dentre muitos outros.
204 Futebol na sala de aula

Essa presença não se restringiu aos programas de comédia. Na década


de 1980, o estilista Clodovil Hernandez passou a dar conselhos em programas
femininos e acabou ganhando sua própria atração na TV Bandeirantes. Na mesma
década, a transexual Roberta Close tornou-se celebridade nacional.
O interesse popular no “teatro guei” e na presença de personagens
homossexuais no cinema e na televisão se direcionava principalmente para produ-
ções nas quais eles eram retratados de forma estereotipada, tornando-se objeto de
deboche. Por isso, ao mesmo tempo em que tais obras geravam críticas de grupos
conservadores e moralistas, também provocavam a revolta de militâncias homos-
sexuais que não gostavam de serem retratadas de forma pejorativa e como alvo de
riso nacional (TREVISAN, 2011).
A mesma crítica pela representação de uma afeminação exacerbada
e jocosa atingiu as performances da Coligay, por meio do jornal O Lampião da
Esquina, periódico voltado a questões de interesse do público homossexual. Para o
autor do texto publicado, João Antônio Mascarenhas (1978), a presença dessa tor-
cida nas arquibancadas não lhes conferia nenhum tipo de integração com os outros
torcedorxs; pelo contrário, a performance de seus integrantes os distinguia e segre-
gava dos demais, além de servir como espetáculo “de circo para o Establishment e
para o povão” (MASCARENHAS, 1978, p. 5). O autor assim explica:
Os componentes do grupo, ao unirem-se pela identidade dos gestos afeta-
dos, dos requebros e do agressivo exibicionismo, representam exatamente o
papel que a eles atribuem os machões, o de bichas efeminadas e escandalosas,
ainda que de briga, quando fisicamente agredidas, o que lhes confere maior
pitoresco. Sem se darem conta, atuam como machistas, pois introjetaram os
estereótipos da nossa sociedade, que erradamente – e de má-fé – identifica
homossexualidade com efeminação (MASCARENHAS, 1978, p. 5).

Sobre essa posição, Rosa (2010) levanta a ressalva de que, mesmo rei-
terando o estreitamento entre homossexualidade e efeminação, a performance da
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 205

Coligay provoca deslocamentos significativos ao elaborar uma paródia, a partir da


recontextualização ou ressignificação do fenômeno futebolístico que, até então,
presumia-se imaculadamente masculino e heterossexual.
É importante considerar, ainda, que nesse período a discrição era um
signo de masculinidade valorizado pelos homossexuais, o que provocava certa
rejeição a atitudes efeminadas. Assim, mesmo rompendo com a norma sexual ao
relacionarem-se com outros homens, parte deles defendia a manutenção de parâ-
metros de gênero, inclusive como forma de amenizar o preconceito (LOPES, 2011).
O contexto do desbunde e a expansão da visibilidade de LGBT+s sofrem
uma mudança na década de 1980, quando se dissemina a epidemia da aids. Jeffrey
Weeks (2010) relata que muitas pessoas
apresentavam a AIDS como um efeito necessário do excesso sexual, como
se os limites do corpo tivessem sido testados e não tivessem passado no
teste da ‘perversidade sexual’. De acordo com os mais óbvios comentaristas,
era a vingança da natureza contra aqueles que transgrediram seus limites
(WEEKS, 2010, p. 37).

A disseminada associação da doença com a liberdade sexual e, sobre-


tudo, com a homossexualidade provocou, segundo Trevisan (2011), uma compre-
endida atitude regressiva de expoentes do período anterior, diante de uma maior
repressão da sociedade.
A Coligay, todavia, já tinha se extinguido nos primeiros anos dessa
década, em função da mudança de seu líder, Volmar Santos, para a cidade de Passo
Fundo. O fim se deu, então, antes que os primeiros casos da doença fossem identi-
ficados em Porto Alegre. A epidemia, assim, não afetou a torcida, ainda que tenha
impactado a vida de seus/suas integrantes.
206 Futebol na sala de aula

O combate às homossexualidades pela ditadura civil-militar


brasileira e a experiência da Coligay

Como previamente dito, as homossexualidades4 foram um dos alvos


privilegiados de políticas de repressão e controle do governo ditatorial, por serem
vistas como uma forma de degeneração e corrupção da juventude (GREEN; QUI-
NALHA, 2014; QUINALHA, 2018). Assim, os grupos que, tal qual a Coligay, não
se alinhavam à moralidade conservadora defendida, estavam sujeitos a represálias
do regime. Isso não significa, todavia, que todo sujeito LGBT+ foi atingido de uma
mesma forma. Reflito, aqui, sobre a experiência dos(as) integrantes da Coligay,
assim como da própria torcida, como coletivo.
As duas formas de censura desenvolvidas durante o regime militar brasi-
leiro atingiam a população LGBT+: a censura da imprensa e a censura das diversões
públicas. Fico (2014) explica que, enquanto a primeira estava voltada, sobretudo, para
temas políticos e ocorria de maneira acobertada, por meio de bilhetes e ligações a
redações de jornais e revistas, a segunda era uma regulação reconhecida e antiga,
legalizada desde 1945, e que estava voltada às produções artísticas. Esta era praticada
por funcionários especialistas, com a função de zelar pela “moral e os bons costumes”
de nossa sociedade, evitando a veiculação de conteúdos considerados impróprios.
Apesar dessa separação entre as censuras, uma voltada à política e outra
ao comportamento, nas ações repressivas dos dois tipos é evidente o vínculo que se
supunha entre “desvio moral” e “subversão política”. “Drogas, liberalidade sexual e
até mesmo o rock seriam portas de entrada para o comunismo, perigo que estariam
sujeitos, sobretudo, os jovens” (FICO, 2014, p. 15).
A censura se constituía, ainda, como parte de um efetivo aparato de
repressão política, fundado em diversos pilares: “a polícia política (representada,

4 Os autores explicam que, nesse período, a travestilidade e a transgeneridade eram vistas, hegemonicamente, como formas de homosse-
xualidade.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 207

emblematicamente, pelos DOI-Codi5), a espionagem (organizada a partir de


grande rede de órgãos de informações), a censura política e moral, a propaganda
política e o julgamento sumário de supostos corruptos” (FICO, 2014, p. 14). Esse
aparato incorporava uma dimensão “saneadora”, reagindo contra o indesejável,
seja prendendo, interrogando, torturando e até mesmo matando os inimigos do
regime, e uma dimensão “pedagógica”, que deveria educar xs brasileiros a adotar
determinadas noções de civilidade, higiene e moral.
Apesar das evidências de operações violentas contra LGBT+s em diversas
cidades brasileiras (COWAN, 2014; MORANDO, 2014; OCANHA, 2014), as fontes
que dispus indicam que o circuito de diversões voltadas a esse público em Porto Ale-
gre não sofreu de forma mais ostensiva com as ações policiais da época (CUNHA,
2017; GOLIN, 2015; RODRIGUES, 2017; SANTOS, 2015, 2016; Diário de Campo, 22
jun. 2016). Volmar Santos (2016), líder e fundador da Coligay e dono da boate que lhe
servia de sede, conta que o Coliseu nunca teve uma apresentação ou show censurado
pela ditadura, assim como nunca foi alvo de operações repressivas. O empresário des-
creve a presença frequente de policiais no estabelecimento, mas justifica dizendo que
eles tinham o objetivo de fiscalizar o local em busca de eventuais “problemas”, o que,
para ele, trazia segurança aos(às) frequentadorxs (SANTOS, 2016).
Entretanto, cabe pontuar que as ações policiais contra estabelecimentos
de frequência LGBT+ geralmente tinham como justificativa justamente a procura
de menores, a identificação de irregularidades ou queixas de vizinhos com relação
a barulho, por exemplo (MORANDO, 2014). Morando (2014) verificou que tais
argumentos geraram a abertura de inquéritos contra proprietários de uma série de
boates em Belo Horizonte, levando a seu fechamento.
De todo modo, é possível que a ausência de episódios de censura e
violência por parte da polícia e de convívio pacífico entre frequentadorxs e poli-

5 Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) foram dois órgãos complementares
(por isso, a frequente menção conjunta) subordinados ao Exército atuantes durante a ditadura civil-militar. Exerciam ações de inteligência e
repressão contra indivíduos e organizações que representassem alguma ameaça à segurança do regime.
208 Futebol na sala de aula

ciais relatados por Volmar podem indicar menor vigilância dos circuitos LGBT
de Porto Alegre em relação às outras capitais nas quais se evidenciou a ocorrên-
cia de frequentes rondas e batidas policias (COWAN, 2014; MORANDO, 2014;
OCANHA, 2014). Por outro lado, pode também ser sinal de negociações entre
xs proprietárixs e frequentadorxs e as forças policiais que vigiavam tais espaços
(OCANHA, 2014).
Para além do controle das diversões, o policiamento também agia nas
vias públicas. A contravenção penal de vadiagem6 foi uma ferramenta recorrente-
mente utilizada para a prisão arbitrária de uma série de indivíduos, entre elxs gays,
lésbicas e, sobretudo, travestis7 (OCANHA, 2014; PERLONGHER, 1987). Essa
experiência de recorrente abuso do poder policial foi relatada por Marcelly, travesti
que integrou a Coligay:
[Era presa] quase todo dia. Porque no tempo da ditadura a gente era conside-
rada de acordo com o artigo 55, que é a vadiagem, entendeu? Mas a gente era
presa praticamente todo dia, na prostituição. E durante o dia tu não podia
sair porque... Da maneira de vestir roupa feminina a gente não podia porque
já era considerada vadiagem. Ainda existe até hoje, mas a vadiagem naquela
época era considerada pras travestis (MALTA, 2015, p. 14).

O vínculo com a prostituição certamente agravava a imagem de sub-


versão das travestis para os órgãos ditatoriais, mas a ruptura com os padrões de
gênero cis-heteronormativos bastavam para que elas fossem alvo preferencial da
repressão. Segundo Ocanha (2014), havia rondas específicas voltadas a estabeleci-
mentos e a regiões frequentadas pelo público homossexual que não se limitavam a
coibir aqueles em atividade de prostituição. Nesse sentido, a vigilância e violência

6 Ocanha (2014) explica que o Código Penal de 1890 previa a vadiagem como crime. Já no Código Penal de 1941, seu status foi alterado
de crime para contravenção penal, uma tipologia jurídica que descreve crimes tidos como leves.
7 A comprovação do status de trabalhador dependia da posse da carteira de trabalho assinada, coisa que muitos trabalhadores pobres não
possuíam. Ocanha (2014), ao analisar fichas de inquéritos policiais referentes à vadiagem na década de 1970, identifica que, diferentemente
de outros crimes, bastava uma testemunha, na maioria das vezes o próprio investigador de polícia, além da não comprovação de renda, para a
formulação do inquérito. Tais exigências deixavam grande parte da população em situação de vulnerabilidade, permitindo à polícia determinar
alvos aos quais a contravenção penal seria aplicada.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 209

eram influenciadas pela expressão de gênero, potencialmente havendo uma maior


possibilidade de circulação quanto mais “discretos” fossem.8
Talvez privilegiados por uma maior discrição, nenhum dos demais
integrantes da Coligay que entrevistei mencionou ter sido abordado por qualquer
ação policial, nem mesmo sentir-se cerceado de alguma forma. O torcedor Miguel
afirma que a homossexualidade nunca lhe gerou problemas com a polícia ou com
algum transeunte qualquer. Como exemplo de sua tranquilidade, inclusive no perí-
odo ditatorial, ele conta que, após as noitadas no Coliseu, costumava ir para o Par-
que Farroupilha – tradicionalmente chamado pelos gaúchos de Redenção – com
o rapaz com quem estivesse naquela noite. Passavam o fim de noite se beijando
em uma praça pública, sem jamais ter sido incomodado. Ele é enfático ao afirmar
que nunca sofreu agressões, nunca teve problema em lugar algum, nunca sofreu
homofobia, por fim, que a ditatura militar nunca o afetou (Diário de Campo, 22
jun. 2016; 22 jun. 2017).
De forma similar, o gremista Serginho, quando perguntado sobre como
foi ser gay durante a ditadura, respondeu:
Olha, todo mundo pergunta isso e quando eu respondo isso as pessoas as
vezes não acreditam. Eu nunca tive problema, eu frequentava a rua da praia,
quando jovem, adolescente, menor ainda né, era o point das bichas na rua da
praia né. Vinham aqueles carros, pegavam quem fazia programa né, não era
o meu caso, mas quem fazia programa isso ai. Eu nunca tive problema com
isso, eu só ouvia muito é comentário né, fulano bateu porque era gay na tele-
visão, enfim não aceitavam. Mas Luiza, eu não tive problema nenhum. Então
assim ó, eu não senti na pele a ditadura com relação a gay, eu senti assim de
ouvir falar, mas eu nunca senti absolutamente nada (CUNHA, 2017, p. 30).

Outro antigo integrante do grupo, Careca, chega a defender o governo


militar:

8 A noção de discrição é comumente acionada para se referir à não expressão de gestualidades associadas à homossexualidade. Um
homossexual discreto, assim, poderia passar-se por heterossexual no ambiente público.
210 Futebol na sala de aula

Bom, eu te digo com sinceridade uma coisa, eu queria a ditadura de volta.


Porque nós éramos respeitados, nós nunca fomos agredidos, na boate nunca
entrou soldado nenhum lá para revistar ninguém, na rua você andava normal-
mente, você não tinha aquela coisa de ser parado pela polícia, pelo exército...
Acho que a ditadura fez bem, mesmo que as pessoas não queiram acreditar,
mas fez bem, porque todo mundo tinha respeito, nós nunca desrespeitamos
ninguém, nós andávamos na rua, fazendo campanha do Grêmio, vestidos com
as roupas da Coligay e nunca fomos paralisados (RODRIGUES, 2017, p. 10).

A fala de Careca demonstra o entendimento que a maior sensação de


segurança nos espaços públicos percebida por ele seria fruto do governo ditatorial,
o que justificaria seu desejo do retorno dos militares ao poder. Volmar não chega
a defender abertamente tal volta, mas também faz associação similar entre a maior
segurança e o governo:
Porto Alegre na época a segurança era bem melhor do que hoje né, bem
melhor, então obviamente que as pessoas entravam não só na boate Coli-
seu como em todas as outras boates, restaurantes e havia sim uma fiscali-
zação geral né, rígida, ver se não tinha menor na boate como deveria acon-
tecer hoje que não acontece mais, devido aos governos ou desgovernos
(SANTOS, 2016, p. 8).

O antigo empresário defende, assim, que a presença e fiscalização de


policiais são necessárias para a manutenção da segurança. Em outro momento,
ele complementa esse raciocínio em relação ao controle do comportamento das
pessoas. Ele descrevia seu sentimento de tristeza em relação a chacotas e histórias
mentirosas e pejorativas feitas sobre a Coligay:
V. S. – Fico triste, fico triste. Fico triste porque eu acho uma ignorância
muito grande. Se fosse na época da ditadura não aconteceria isso. Estavam
todos presos. É verdade, todos presos. Que aliás o povo está querendo isso
porque está uma confusão nesse nosso país que, nossa! Eles não sabem o que
é ditadura, eles não sabem o que é ditadura.
L. A. – Quais são suas lembranças com relação a isso, com relação à ditadura?
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 211

V. S. – Eu acho, assim, muito respeito entre as pessoas. Tinha-se um medo


de fazer qualquer coisa contra o... Não fariam o que estão fazendo hoje! Hoje
eles não respeitam mais a justiça, não respeitam mais ninguém. É diferente,
né? Na ditadura eles são obrigados a respeitar (SANTOS, 2016, p. 23).

Apesar do entrevistado identificar a ignorância como causa das práti-


cas de preconceito citadas, ele não defende ações de conscientização. Há, aí, uma
defesa do autoritarismo, a imposição de respeito por meio da força e do medo.
Há hipóteses que podem explicar essa visão positivada sobre um
governo que supostamente os via como inimigos. Segundo Cowan (2014, p. 36):
A homossexualidade nunca chegou a ser a razão principal pela qual as pes-
soas foram presas, torturadas e sujeitas aos abusos dos direitos humanos e
civis – mas formou parte de um conjunto de ansiedades sobre a ameaça, vaga
e supostamente difusa de subversão.

A homossexualidade era entendida, assim, como parte de “um com-


plô mais amplo, inspirado no comunismo internacional e baseado na dissolução
moral” (COWAN, 2014, p. 49). A crença de conexão entre diferentes “inimigos
do regime” não era totalmente descabida. Diferentes movimentos englobados pelo
rótulo genérico de “minorias” eventualmente constituíam alianças (MACRAE,
1990). Isso porque, apesar de suas reivindicações específicas e inúmeras discordân-
cias, em comum, esses movimentos tinham a luta contra o regime militar e a diver-
gência quanto à oposição tradicional, baseada exclusivamente na luta de classes.9
Assim, em contrapartida, também a vigilância e repressão sobre os emergentes ati-
vistas gays acontecia conjuntamente com outros movimentos identitários, sobre-
tudo os movimentos feministas e negros. Nesse sentido, o não envolvimento dxs
meus/minhas entrevistadxs com movimentos sociais e, em alguns casos, mesmo

9 Exemplo da disputa de movimentos de militância contra aqueles que defendiam o foco exclusivo na luta de classes é retratado por
Trevisan (2011), quando relembra a participação do Somos – reconhecido como primeiro grupo de militância homossexual do Brasil – em um
debate sobre homossexualidade organizado pela Faculdade de Filosofia e Letras da USP no ano de 1979, parte de uma série de eventos sob
o tema “Minorias”. No encontro, segundo Trevisan relata, a maior resistência às visões apresentadas pelo incipiente movimento homossexual
não era a de grupos conservadores tradicionais, mas, sim, de grupos de esquerda fiéis à luta de classes. Aqueles oponentes defendiam, assim,
prioridades revolucionárias, entendendo que as demais lutas eram não só irrelevantes, mas também divisionistas.
212 Futebol na sala de aula

certa concordância com práticas do governo ditatorial podem ter sido outros fato-
res a contribuir para que eles não tivessem sido impactados individualmente pelo
autoritarismo e repressão do regime ditatorial.
No que tange à percepção de alguma atenção policial nos estádios,
nenhum dxs torcedorxs mencionou qualquer controle ou repressão à Coligay,
nem mesmo Marcelly, a única a mencionar que foi alvo de abordagens policiais em
outros espaços.
Não. Não tinha. Tinha fora, lá dentro não. Na rua, as manifestações eram
muito grandes. A questão, travesti ser preso, aquela coisa toda. [No estádio]
Tinha segurança, tinha Brigada Militar, tinha tudo isso, porque tem que ter,
muita brigada militar, mas ali a gente não sofria aquela retaliação...
L. A. – Você nunca foi abordada junto com a torcida?
M. M. – Tsc tsc tsc [som indicando negação], nunca (MALTA, 2015, p. 14).

Nesse sentido, apesar de ser comum que a dimensão do caráter de


ousadia e subversão da Coligay seja dada pela afirmação que eles existiram “em
plena ditadura”,10 as falas dxs integrantes da Coligay sobre o período indicam que o
governo não lhes impôs dificuldades, como sintetiza o relato de Volmar:
L. A. – Em que medida vocês existirem durante o governo militar afetou a
própria existência da torcida? Vocês sentiram algum tipo de repressão?
V. S. – Não, não afetou nada, não afetou em nada. Até quando começou a dar
aquelas repercussões todas lá, eu achei que poderia dar problemas, muitas
pessoas inclusive me disseram “cuidado que a polícia vem”, mas vem para
que? Ninguém está fazendo nada de mais, inclusive, foi muito elogiada a
atitude da polícia, em relação, a Coligay. Nunca, nunca nos falaram absolu-
tamente nada, nunca nos procuraram, nunca nos criticaram, acho que isso
foi realmente bem interessante, talvez seja pelo comportamento da torcida
(SANTOS, 2015, p. 24).

10 Isso ocorre nas entrevistas, em reportagens sobre a torcida, assim como no livro Coligay: Tricolor e de todas as cores (2014), de Léo
Gerchmann, e no documentário “Para o que Der e Vier” (2016), de Pedro Guindani, ambas obras sobre a Coligay.
Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay 213

Considerações finais

A situação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêne-


ros piorou ou melhorou sob a ditadura durante os anos 1960, 1970 e 1980?
Houve uma consequência real na vida do “homossexual comum” quando
os generais substituíram os civis no governo, quando a Lei de Segurança
Nacional fortaleceu o poder arbitrário do Estado, quando a censura passou a
exercer maior influência sobre a produção cultural e quando o novo regime
acabou com as liberdades democráticas impondo uma moral baseada em
valores conservadores? (GREEN; QUINALHA, 2014, p. 19).

Sem questionar o caráter repressivo e violento de ações desenvolvi-


das durante o regime militar, a experiência da Coligay evidencia que a dúvida
levantada por Green e Quinalha é procedente. A não obviedade de uma (talvez
esperada) piora na vida de LGBT+s se justifica não apenas pelo fato de diversos
LGBT+s terem encontrado lacunas, a partir das quais não foram atingidos pelas
ações de controle ditatorial, quanto pela ampliação dos espaços de exploração da
sociabilidade, sexualidade e mesmo de militância desses sujeitos ao longo desse
mesmo período.
A Coligay representou um desses espaços possíveis de sociabilidade
e sexualidade, ainda que não de uma militância formal e tradicional. Cabe pon-
tuar que ainda que não tenha havido qualquer ação policial contra a torcida,
uma reportagem da revista Placar mencionou uma fala do comissário Teotário
Pielewski, chefe do Setor de Meretrício e Vadiagem da Delegacia de Costumes,
na qual afirma: “Estamos de olho nos rapazes e até agora não notamos nenhuma
atitude inconveniente. Se algum provocar os outros torcedores, será retirado.
Só isso. Nem a faixa que os identifica como homossexuais é ilegal” (FONSECA,
1977, p. 49). Vê-se, assim, que apesar de não haver menção a repressões contra a
TO, o policiamento se mostrava atento a suas atividades, pronto a controlá-lxs,
se necessário fosse.
214 Futebol na sala de aula

Esse controle, todavia, não foi percebido ou produziu incômodo nxs


integrantes do grupo, que sentiam-se permitidos a gritar, brincar e requebrar com
suas kaftas e paetês nas arquibancadas dos estádios que frequentavam.
A maioria daqueles torcedorxs que entrevistei também apontou que
não teve sua vida cotidiana afetada diretamente pelas ações da ditadura. O fato de
que alguns chegam, inclusive, a defender um governo que lhes atribuía o rótulo de
inimigos, demonstra como outros marcadores identitários e capitais sociais lhes
davam certas condições de existência bastante distintas da de outros sujeitos que
não podiam gozar dos mesmos privilégios, caso de Marcelly, cuja identidade tra-
vesti era motivo de violência e prisões recorrentes.
De toda forma, não tenho dúvidas que a Coligay foi um ato de rebeldia,
e que é justo afirmar que esgarçou as possibilidades de manifestação torcedora nas
arquibancadas. Também me parece razoável assumir que o agrupamento estava
conectado a seu tempo, sendo, consciente ou inconscientemente, influenciado
pelas práticas contestatórias e subversivas militantes, éticas ou estéticas que a cer-
cavam. O que não significa que entre essxs torcedorxs não houvesse alguns que
defendessem práticas de autoritarismo e conservadorismo.

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DZI Croquettes. Direção: Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Rio de Janeiro: TRIA Productions;
Canal Brasil, 2009. (98 min).

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em: 20 out. 2020.
Do Kanjire ao futebol:
dinâmica dos “jogos de guerra”
no tempo entre os Kaingang
José Ronaldo Mendonça Fassheber

Jogos tradicionais Kaingang1

Arco e flecha, bodoques, subidas ao pinheiro por tempo. Não é preciso


inventariar todos os jogos praticados pelos Kaingang nos tempos wãxi. Vale a pena,
no entanto, se dedicar a apenas um tipo de jogo praticado pelos Kaingang. Trata-se
de um jogo de guerra que foi destacado pela literatura de missionários, tutores e
por alguns etnógrafos desde o século XIX.
Mas, mesmo na memória dos anciãos, desse assunto perdeu-se já há
muito tempo o interesse em contar, em ouvir. Parte dessa perda de interesse deve-
se, a nosso ver, ao sentimento de pudor e vergonha em executá-los, visto que a base
desses jogos era considerada como beligerante. Imitando a guerra, se preparavam

1 Os Kaingang são um dos maiores grupos indígenas no Brasil, estimados em cerca de 35 mil indivíduos. Pertencem ao tronco linguístico
Macro-Jê e são denominados Jê Meridionais. Atualmente, estão distribuídos entre os estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, ocupando a região compreendida entre as bacias dos rios Tietê e Uruguai. Anteriormente, também viviam na região de Missio-
nes, no nordeste da Argentina.
220 Futebol na sala de aula

para ela com esses jogos. Horta Barbosa (1947), então diretor do SPI, em confe-
rência realizada em São Paulo na década de 1920, descreve o embate entre grupos
Kaingang, isto é, como se praticava no século anterior:
Estando os guerreiros armados com os ‘cá’, enormes e pesados porretes de
madeira fortíssima, avançavam, de um lado e de outro, estendidos em linha,
os Camens dos dois partidos, soltando gritos e insultando-se mutuamente,
dando pancadas no chão ou nas árvores, tudo com o fito de atemorizarem os
contrários e incentivar a própria coragem; enquanto isso, os Canherucrens
ficavam em outra linha, à retaguarda, brandindo os ‘cá’ e juntando seus gritos
aos dos da vanguarda. Num dado momento, chegada a exaltação no auge,
começava o recontro, e os combatentes, ora defendendo-se, ora atacando, a
manejarem os porretes em paradas parecidas com as do conhecido ‘jogo do
pau’, trocavam-se pancadas terríveis que, se colhiam a cabeça do adversá-
rio, estendiam-no morto no chão, se a uma perna ou braço, quebravam-no.
Nisto os Camens iam se retirando para a retaguarda e sendo substituídos
pelos Canherucrens; a pugna tornava-se então mais encarniçada, referviam
os golpes tremendos, aumentava o clamor das vozes e o solo se ia juntando
de mortos e estropiados (BARBOSA, 1947, p. 66).

Embora seja a descrição de um embate nada esportivo, o relato de Bar-


bosa aproxima-se sobremaneira dos jogos beligerantes que veremos abaixo. É de
1867 o primeiro registro de tais jogos, feito pelo alemão Franz Keller:
Como prova ou illustração do caracter bellicoso d’esses índios, não devo
finalmente deixar passar sem reparo os jogos que em certas occasiões arran-
jão entre os habitantes de differentes Ald.tos. Os de S. Pedro d’Alc.ra p.ex. con-
vidão os de S. Jeronymo, e chegando esses no dia marcado encontrão uma
arena asseiada e um monte de porretes curtos de madeira dura e pesada,
pontudos em ambas extremidades que repartem entre si, e divididos os com-
batentes, começão a lançar os porretes uns aos outros com tanta força que
freqüentemente resultão feridas serias. Apezar das prohibições, não quizêrão
largar tão bárbaro passa-tempo [...] (KELLER, 1974, p. 19).
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 221

No caso de registros de base etnográfica – e especificamente sobre os


jogos tradicionais –, Telêmaco Borba (1908) foi quem coletou os seguintes jogos:
o Kanjire, que simula um campo de batalhas, no qual dois grupos, frente a frente,
arremessam-se mutuamente os tocos estocados pelas mulheres, que também
recolhem os feridos; e o Pinjire, que é semelhante ao anterior, só que feito à noite
quando os tocos são acesos. Resultados do jogo são descritos: grandes ferimentos,
contusões, olhos furados e dedos quebrados, mas nenhuma inimizade. Descreveu
ainda que os Kaingang
[...] costumam fazer um exercício e divertimento que chamam caingire, que
parece, e realmente é, um verdadeiro combate, comquanto não resulte das
offensas nessas occasiões recebidas nenhuma inimizade. Para fazer este diver-
timento, preparam um largo terreiro, cortam grande quantidade de cacetes
curtos, que vão depozitando nas duas extremidades deste;convidam os de
outros arranchamentos para se divertirem; aceito o convite, preparam tam-
bém seos cacete, e, carregados com elles, vêm se aproximando cautelosamente
do logar do divertimento; alli chegados, sahem-lhes os outros a combater;
arremessam-se mutuamente os cacetes com grandes vozerias, simulando um
verdadeiro combate, até que um dos grupos abandona o terreiro, soffrendo
por essa causa, grandes vaias e apupos. As mulheres, cobertas com uma espe-
cie de escudo feito de cascas de arvore, vão juntando os cacetes que são arre-
messados, e depositando-os junto aos combatentes; quando algum desses cae
mal ferido, ellas o retiram do terreiro e tratam. Nestas luctas sempre há gran-
des ferimentos, contusões, olhos furados e dedos quebrados; mas, dahi não
procede nenhuma inimizade. Os que sahem mais mal tratados, em peiores
circumstancias, são considerados os mais valentes (turumanin), e como taes
gabados. [...] Também uzam este divertimento de noite e chamam-lhe pingire
porque os cacetes são accesos em uma das extremidades; dá o mesmo resul-
tado que o cangire, apenas com o accrescimo das queimaduras. Exercitam-se
desde pequenos na lucta corporal; o que derriba um, tem de supportar a prova
de todos os outros que queiram experimentar, até que, exhausto de forças, suc-
cumba a seo turno. Todos os outros seos brinquedos e divertimentos são sem-
pre mais ou menos grosseiros e brutaes (BORBA, 1908, p. 17-18).
222 Futebol na sala de aula

Os Kaingang tinham duelos de pedras ou tochas que frequentemente


terminavam em morte, sem maiores mágoas ou desejos de vingança entre as par-
tes. Os Kaingang consideravam-no um divertimento quase infantil. Piza (1938)
descreve o treinamento infantil para a caça e principalmente para a guerra em jogos
semelhantes:
desde a tenra idade que as crianças se dedicavam ao exercício do arco e do
tacape [...] os jovens se divertiam com uma espécie de jogo de guerra, imitação
de briga verdadeira, que não passava, afinal, de troca violenta de lambadas,
dadas com talos de palmito em qualquer parte do corpo (PIZA, 1938, p. 209).

Loureiro Fernandes (1941) coletou informação na memória dos Kain-


gang. Ele descreve a utilização de “clavas-bastôes” com as quais eles guerreavam
contra os colonizadores. O manejo da clava era ensinado e exercitado pelas crian-
ças para ter Tare até a vida adulta:
Costumavam fazer um exercício de caráter belicoso a que denominavam
candjire. Após a prática, os que tomavam parte eram felicitados e proclama-
dos turumanin, isto é, bravos e fortes. Afirmam outros que esses jogos eram
praticados à noite; lançavam então uns contra os outros bastões em chamas.
Além de contusões, produziam queimaduras. Davam-lhe o nome de pind-
jire, o que quer dizer – jogo de fogo. Com estes jogos de armas, tinham em
mira se adextrarem para a guerra, a qual em outros tempos era freqüente,
quer entre os próprios Kaingang, quer contra elementos de outras tribus
(FERNANDES, 1941, p. 185).

Essas descrições não são homogêneas: aparecem-nos aqui e ali peque-


nas diferenças na dinâmica do jogo – formas de condução, número de participante,
quem participa, papel das mulheres, jogo das crianças –, o que nos leva a admitir
que mesmo em um jogo “tradicional” indígena, há por certo, transformações ao
longo do tempo obedecendo às dinâmicas culturais que lhes são próprias.
Com a colonização – o ethos e o cronos cristão dos diversos coloniza-
dores –, várias manifestações culturais Kaingang se tornaram proscritas. Tal qual o
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 223

processo de interrupção dos rituais do Kiki, considerada demoníaca, ocorre o pro-


cesso de interrupção de certos jogos tradicionais, principalmente esses descritos
até aqui e que têm caráter beligerante. Tempos do Urí (TOMMASINO et al., 2000).
Com o processo civilizador do Urí, os embates de risco foram sendo regrados e
simbolizados, guiando-se para uma direção de apaziguamento, mas não o fim, das
violências. De fora desse processo, práticas como esses jogos Kanjire e Pinjire, bár-
baros para o colonizador, e quase infantis para os Kaingang, mas, enfim, treina-
mentos de guerra, foram retirados da cena pelos primeiros.
Todavia, há aqui uma nova dificuldade: os dados históricos apresentados
anteriormente são insuficientes. E a memória dos Kaingang para esses jogos sem-
pre foi muito vaga, mesmo entre os anciãos. Tommasino (1995) conseguiu algu-
mas informações orais dos anciãos Kaingang do Tibagi, Paraná, que se lembravam
dessa diversão “que praticavam com sabugos acesos que jogavam uns nos outros”
(TOMMASINO, 1995, p. 289). Não há dúvida de que, por trás desse quase esqueci-
mento, exista um necessário e envergonhado silêncio imposto por décadas de refre-
amento de tais jogos, já que eram considerados como de comportamentos violentos.
Daí a encorporação do futebol ter soado como boa metáfora das guerras
e dos jogos de guerra Kaingang. Jogo de guerra ressignificado pela faculdade mimé-
tica, com novas configurações de identidade. Afinal, como lembra o professor Flávio
Campos (2004) a respeito de muitos esportes modernos, “avançar sobre o território
adversário, conquistar posições, inibir seus movimentos, arremessar uma bola e até
golpeá-lo são lances de diversas modalidades lúdicas que lembram a guerra”.

Etnodesporto

Técnicas corporais com regras, incluem, dentre outras coisas, jogos e


esportes. Regras são controles sociais presentes em ambos os casos. A diferença
entre ambos está, talvez, tanto na maior rigidez de regras no segundo caso, quanto
224 Futebol na sala de aula

há de espontaneidade no primeiro. Entre os dois, insiro o caso dos jogos tradicionais


indígenas e a não tão recente incorporação dos denominados esportes modernos
dentro das TIs, principalmente o futebol. É o que chamamos de etnodesporto (FAS-
SHEBER, 2006). Podemos falar, por um lado, em uma mimesis2 dos jogos tradicio-
nais, se reconhecermos que na construção dos jogos tradicionais também houve
contato no aprendizado com outras culturas. Pela mímesis, ela não copia o origi-
nal, mas recria e dá uma identidade própria ao que foi aprendido. Por outro lado, a
incorporação da tradição inventada dos esportes modernos, principalmente o fute-
bol, tornou-se uma realidade nos cotidianos das aldeias e é facilmente observável.
No caso do futebol, a faculdade mimética também pode ser demons-
trada da seguinte forma: ao mesmo tempo em que há o processo do esporte glo-
balizado, a difusão de diversas práticas desportivas e o entendimento das regras
universalizadas, a mímesis opera nas identidades que o jogo pode criar. Essas
identidades são “naturalizações” que as diferentes culturas fazem do uso do jogo,
ou melhor, dizem respeito à capacidade que as culturas têm de fazer do futebol,
por exemplo, um jogo congruente às especificidades de cada cultura ou, por assim
dizer, criam uma “segunda natureza” futebolística ou, como defendemos, o etno-
desporto. Nesse sentido, entendemos que a mímesis opera na construção de novas
e inigualáveis relações sociais – uma nova forma de organização de equipes, tor-
neios, torcidas, identidades e rivalidades. Mas também pode ser marcado no corpo
físico por meio do corpo social, isto é, os esportes não são apenas copiados, ao con-
trário, sobre eles recaem as construções corporais específicas de cada sociedade.
Assim, como tantos outros elementos trazidos do contato, mas de uma
forma menos rude que outras invasões – como o mundo do trabalho, as religiões
etc. –, o futebol tornou-se prática incorporada à vida Kaingang há mais de cem
anos. Segundo alguns informantes mais antigos, eles já praticavam o futebol em

2 Conceito que emprestamos de Taussig (1993).


Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 225

suas infâncias, de onde podemos levantar a hipótese de que o futebol é quase tão
antigo para os Kaingang como o é para os demais brasileiros. Um amigo falecido
na década passada, em quase nove décadas vividas, o viu em sua infância, quando
ainda os Kaingang estavam no território de Missiones, na Argentina, e depois que
vieram de lá, praticou-o no Imbu e no Xapecó, em Santa Catarina. Em Palmas, um
ancião de mais de 90 anos o viu já moço de 20 e poucos anos e jogou até os seus
40. Nesses dois casos, o futebol era apreciado há, pelo menos, 90 anos, o que nos
remete para o raiar da década de 1930.
Uma das primeiras impressões que anotei em todas as terras indígenas
que conheci ao longo de minhas viagens de campo foi a centralidade dos campos
de futebol nas aldeias. É comum as terras Kaingang serem divididas em diversas
aldeias, variando seu número conforme a extensão territorial de cada uma. Palmas,
por exemplo, é considerada uma terra pequena, com pequena população, enquanto
Rio das Cobras e Xapecó, maiores, dispõem de milhares de indivíduos. Mas, em
todos os casos, existe um centro que geralmente é chamado de Aldeia-Sede e que
concentra um grande número de habitantes. Em geral, nelas estão dispostos os pos-
tos da Funai, a enfermaria, a escola, diversas igrejas, galpões de máquinas, a casa do
cacique e as de muitas lideranças indígenas. E há também campos de futebol e, na
maioria das vezes, quadras poliesportivas, sendo algumas delas fechadas e cobertas.
No Xapecó, existem vários campos de grama e de terra, de diversos tama-
nhos, demarcados ou improvisados em todas as aldeias que vi, e existe na Aldeia-
Sede um campo e uma quadra poliesportiva coberta, com iluminação, onde se rea-
lizam jogos noturnos. Recentemente, foi construído mais um ginásio de arquite-
tura moderna em forma de tatu. Em Palmas, na Aldeia-Sede, há um campo central
contornado por uma “arquibancada natural” em semicírculo, onde muitas famílias
se sentam para apreciar os jogos, uma quadra de futsal (ou futebol de salão, como
aprendi) aberta, na frente da escola, e diversos campinhos de futebol improvisados
até mesmo na estrada que a corta. O mesmo ocorre em Mangueirinha e na Marreca
226 Futebol na sala de aula

dos Índios e, como se tratam de terras maiores, há campos nos centros de outras
aldeias. Em Rio das Cobras, é inevitável se chegar às instituições da Aldeia-Sede
sem ter de contornar seu campo central. E mais uma vez, ao lado da escola, também
no centro da Aldeia, construíram recentemente uma quadra coberta.
Essa centralidade dos campos de futebol por diversas terras indígenas
ocupa uma dimensão ritual importante, pois o futebol “é para eles se verem”. É
um espaço de sociabilidade bastante agregador. No caso dos Kaingang, as joco-
sidades entre os pertencentes de diversas igrejas “metidas” dentro de suas ter-
ras parecem ser abrandadas no momento do futebol. Enquanto os adultos estão
jogando, há meninos e meninas brincando de bola nos espaços vizinhos aos limi-
tes do campo.
O futebol introduzido nas TIs influenciou, sobremaneira, a vida comu-
nal dos Kaingang. A tal ponto que podemos identificar as predileções clubísticas.
Não raro, eles se reúnem em torno das casas que, porventura, tenham televisão
para assistir a partidas de futebol, principalmente em se tratando da Seleção Bra-
sileira. Vemos também camisas de clubes paulistas (Corinthians, principalmente,
São Paulo, Palmeiras, Santos), gaúchos (Grêmio e Internacional), cariocas (prin-
cipalmente, mas não exclusivamente, Flamengo) e raramente clubes paranaenses
e de outras regiões do país. Não raro também, vemos essas mesmas camisas em
várias imagens de povos indígenas amazônicos. É obvio que muitas dessas camisas
com as quais eles aparecem vestidos não dizem respeito à paixão pessoal por eles
determinada; são, via de regra, camisas antigas, envelhecidas, geralmente doadas a
eles em campanhas assistenciais. Sempre as vemos no dia a dia do trabalho Kain-
gang, mas também nas quase diárias “peladas”.
Outra característica do futebol Kaingang é a relação que podemos obter
entre futebol e pratilinearidade. Grosso modo, é o modo de fazer com que os filhos
de uma liderança estabelecida em uma TI formem uma das ou a equipe principal.
Em Palmas, observei que, além da patrilinearidade futebolística, existe uma influên-
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 227

cia em “escalar genros”, pois, na tradição, o genro tem de prestar serviços ao sogro,
depois de desposar sua filha. Tal como ocorre entre outros Jê. Assim, nem sempre
o que determina a montagem dos times são critérios técnicos, futebolísticos, mas o
critério do parentesco do jogador com a liderança ou do jogador ser componente
da própria equipe. Em Rio das Cobras, tendo uma liderança mesclada com bastante
jovens, estes compõem uma equipe com seus parentes mais próximos.
Nesse caso específico, cabe analisar a proximidade que tecem os per-
sonagens: boa liderança e habilidade no futebol. Em outras palavras, arriscamos
dizer que tendo habilidade destacada no futebol, o Kaingang se aproxima do rol
de lideranças (ou é trazido para perto), chegando a compô-la ou mesmo liderá-la.
Desta forma, o futebol acaba por revelar identidades, pois o bom jogador muitas
vezes acaba por se tornar também um bom político. Pertencer às lideranças parece
ser status almejado desde o tempo dos antigos. O cacique e as lideranças Kaingang
de cada TI exercem uma relação de poder fundamental nas tomadas de decisões a
tudo o que infere a vida social dos Kaingang. Poderíamos somar a essas decisões
alguns critérios de escolha e montagem das equipes representantes das TIs. Em Pal-
mas, ao contrário de Rio das Cobras, temos lideranças mais “veteranas” que hoje
pouco se arriscam a chutar bolas. Nem por isso deixam de interferir na montagem
das equipes. Em diversos torneios que os acompanhei, sempre disputando com
duas equipes, sua montagem sofria essa interferência, já que reservavam vagas para
filhos e genros de seus membros na equipe principal. Desta maneira, nem sempre a
equipe considerada como a principal da TI, era a que obtinha melhor desempenho
e sucesso dentro do campo de futebol.
Além de campos, outras instituições estão centrais, como dissemos, o
posto da Funai, o de Saúde, a escola e várias igrejas cristãs. Sobre estas últimas
instituições, é preciso demonstrar que à sua volta se avizinham seus seguidores:
sendo centrais nas aldeias, promovem um grande núcleo de moradores à sua volta.
Principalmente no caso das igrejas pentecostais e neopentecostais.
228 Futebol na sala de aula

É fato que os Kaingang da maioria das terras não possuem mais a prá-
tica da religião de seus ancestrais: o Kiki, ritual que era realizado até 1997 somente
na terra indígena do Xapecó. A explicação desse “abandono” é a de que, por muito
tempo, por influência de missionários cristãos e de funcionários do antigo SPI e
da Funai (pessoas com ethos evidentemente cristão), a religião Kaingang foi sendo
tachada de demoníaca, mais do que pagã. Atualmente, além das igrejas católicas, as
áreas Kaingang estão “ocupadas” por outras religiões cristãs. A disputa de religiões
acarreta uma jocosidade entre os Kaingang chamados de católicos e os chamados
de crentes. E entre os crentes, embora sem a mesma disposição, a jocosidade tam-
bém costuma ocorrer, segundo a igreja à qual se pertence, isto é, entre as evangéli-
cas pentecostais e neopentecostais.
Em Palmas, uma neopentecostal proibia a prática do futebol, bem como
de outras atividades consideradas “pagãs”. Mas mesmo proibições desse tipo são
dinâmicas. Hora se vê os Kaingang frequentando uma igreja que os proíbem, hora
outra que os permitem. E mesmo dentro de uma religião que os proíbe, tal proibi-
ção pareceu-me contextual. Por exemplo, quando determinado Kaingang ligado a
essa religião assume a liderança do grupo, tal relação pode se inverter, ou seja, esse
cacique pode permitir e mesmo estimular a prática antes proibida para seus pares
de religião. Em outras palavras, a transformação das religiões entre as terras indí-
genas Kaingang gerou uma divisão do grupo entre as igrejas que lá se instalaram.
Mas o momento do futebol consegue reagrupá-los. Não em torno de uma ordem
cosmológica, como nas religiões – e não é isso, obviamente, que evoca o futebol,
mas, gera, sem sombra de dúvida, um novo espaço de sociabilidade, onde se reú-
nem novos e velhos Kaingang, homens e mulheres, de quase todos os credos em
que creem os Kaingang.
Uma outra particularidade do futebol entre os Kaingang é que ele
demanda um deslocamento social dos Kaingang entre suas terras. Por exemplo,
como os Kaingang de Palmas têm relações diretas de parentesco com os do Xapecó
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 229

ou os de Mangueirinha, o trânsito de pessoas entre essas terras indígenas é cons-


tante. Não obstante as relações de parentesco, uma das características do trânsito
é justamente o “empréstimo” de jogadores entre essas terras. Desde que não seja
uma disputa entre terras indígenas, é normal alguns jogadores de Mangueirinha
atuarem pela equipe de Palmas ou de Rio das Cobras, ou vice-versa, pois lá, como
cá, sempre irão encontrar o acolhimento de seus parentes e justificar a dinâmica
de seu trânsito. E não obstante os critérios internos de montagem das equipes
já descritos – por regras de patrilinearidade, por compra e venda do “passe” ou
por “passe livre” –, o empréstimo de jogadores proporciona uma singular troca de
favores, principalmente entre lideranças de diferentes terras indígenas, conforme
suas necessidades.
Tal ocorre também no caso de expulsão de indígenas de uma terra indí-
gena, e a expulsão das terras indígenas, principalmente de lideranças depostas, é
recorrente entre os Kaingang. O consequente trânsito dos expulsos torna-se uma
forma de referendar a participação de um jogador por outra terra indígena a qual
ele não habitava, mas que mantém laços históricos e ancestrais que precisam ser
sempre revisitados e reconstruídos. Desta forma, o futebol parece estabelecer uma
espécie de salvo-conduto do Kaingang por várias terras indígenas, e serve ainda
para justificar o retorno à terra natal. Mas, acima de tudo, o futebol proporciona
uma interação interterras indígenas estabelecida por esse trânsito de Kaingang por
suas terras de parentesco e ancestralidade, o que marca mais uma vez sua identi-
dade tradicional e territorialidade.

A identidade Kaingang no futebol

Apropriar-se do futebol parece-nos estratégico em termos das relações


que podem estabelecer com os Fóg Kupríg,3 cooperando com eles ou competindo

3 Fóg é uma palavra utilizada para definir todo aquele que não é Kaingang. Kuprig significa branco. Portanto, os Kaingang utilizam Fóg Kuprig
para definir os “colonizadores”.
230 Futebol na sala de aula

contra eles. Mais que isso, cria novas situações de organização interna em cada
aldeia de cada terra indígena e também se organiza fora delas. Cria ainda um novo
entendimento de sua identidade corporal. Além de jogarem por outras equipes de
Kaingang em demais terras indígenas, a fama de alguns bons jogadores transfor-
ma-os em reforços de equipes urbanas nos municípios em que o contato é mais
proximal. Obviamente, estamos falando de jogos e torneios citadinos para os quais
as equipes indígenas não se inscrevem para disputar, pois a prioridade seria, via
de regra, equipes indígenas. Mas há, inclusive, os que recebem uma ajuda – em
dinheiro, material esportivo ou alimentos – pela participação nas equipes Fóg.
E, como em todas as terras indígenas há os que trabalham na cidade durante a
semana, é natural (ou social) que eles participem de equipes por lá, montadas em
seus ambientes de trabalho.
Uma outra forma de formar equipes interétnicas são as seleções das
cidades para eventos como jogos abertos do estado, jogos da juventude, jogos esco-
lares etc. Isso é mais evidente em Rio das Cobras, pois, como vimos, a população
indígena é parte significativa em relação ao total de habitantes do município de
Nova Laranjeiras.
A equipe indígena de Mangueirinha, por exemplo, é famosa na região e
bem falada entre os Kaingang de Palmas e de Rio das Cobras por conquistar segui-
damente torneios municipais (do município de mesmo nome), regionais e tor-
neios entre equipes indígenas. Mas eles não são os únicos. Em geral, os Kaingang
obtêm bons resultados onde quer que joguem. Em Rio das Cobras, notoriamente,
essas redes externas também se estabelecem: não raros são os convites do pequeno
município de Nova Laranjeiras e de Laranjeiras do Sul, além dos de interterras
indígenas. Apesar dos reclames Kaingang contra as arbitragens, que sempre rela-
tam ser tendenciosas contra os índios. O reclame com as arbitragens em torneios
que os Kaingang participam ocorre também em Palmas. Mas reclamar da arbitra-
gem expressa um pouco da tensão entre Kaingang e sociedade Fóg. Esse reclame é
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 231

manifestado sob a forma de uma performance, no sentido em que Turner (1987)


analisa o drama social usando uma terminologia do teatro para descrever situações
de desarmonia ou de crises. As forças dos dramas sociais consistem nas experiên-
cias ou nas sequências de experiências existidas, as quais influenciam as formas e
funções dos gêneros culturais performativos. Tais gêneros, em parte imitando a
forma processual dos dramas sociais, por meio da reflexão, assinam significado
para eles. Para esse autor, tais situações – argumentos, embates, ritos de passagem
– são inerentemente dramáticos porque os participantes não fazem simplesmente
coisas, eles tentam mostrar outras que estão fazendo ou já fizeram; ações realizadas
num aspecto performed-for-an-audience do reclame Kaingang como um meio de
restabelecer relações com os Fóg, a partir de sua identidade indígena.
Não é exagero dizer que, quando esses jogos são realizados entre Kain-
gang de terras indígenas diferentes ou quando realizados com vizinhos assentados
e acampados, as relações de rivalidade entre equipes parecem mais amistosas do
que quando esses jogos são realizados com equipes da cidade. Isso é notado mais
no comportamento da torcida do que nos jogadores em campo. Dentro de campo, o
jogo é franco, determinado pela igualdade de regras de enfrentamento. Fora dele, a
identidade se manifesta de modo dinâmico: ela parece bem mais jocosa e agressiva
contra as equipes da cidade de Palmas. Os gritos em português e no idioma tradi-
cional marcavam bem a oposição não apenas entre equipes, mas entre dois tipos de
sociedades diferentes, rivalidade que pode ser demonstrada na longa e conflituosa
história dessa relação. Afinal, a beligerância com que esses grupos se tratavam – e
com maiores perdas para os Kaingang, até bem recentemente, tempera um pouco
mais essa rivalidade e o preconceito dos Fóg contra eles. Não obstante tal rivalidade,
o fato de irem disputar jogos ou receber jogos em suas terras indígenas, demonstra,
por um lado, um tipo de integração entre os Kaingang e a sociedade Fóg.
Para uma sociedade de outsiders – o que se tornaram os estabelecidos
Kaingang –, de uma história dos contatos beligerantes e tachados de jogadores
232 Futebol na sala de aula

duros, o Fair Play torna-se uma estratégia eficaz no restabelecimento das relações
entre Kaingang e Fóg. Por diversas vezes na terra indígena Palmas, ao ouvir a pre-
leção das lideranças Kaingang antes de torneios e amistosos, havia a grande pre-
ocupação em se fazer um discurso do joga-limpo e mostrar que eles eram uma
sociedade “do bem” e, por isso, deviam ser respeitados, e não temidos. Em Rio das
Cobras, havia a preocupação semelhante em manter o jogo limpo e não cair em
provocações das torcidas. A preocupação com o Fair Play mimeticamente ideali-
zado – fazendo-os aparecer bem quando saem ou fazendo-os receber bem em suas
terras – é, portanto, estratégia idealizada para dar maior visibilidade aos índios e
seus estilos de vida. E o futebol materializa essa visibilidade.
A reunião em torno do futebol faz mais do que aproximar eventualmente
os componentes do grupo: é um local para se exercer a identidade, de se construir a
identidade etc., ou seja, permite a afirmação da identidade étnica, no sentido de que
os Kaingang, “gente do mato”, possuem mais Tare, isto é, têm mais força e resistência
física para o futebol do que outros grupos de Fóg. Além disso, esse esporte permite
a afirmação da etnia perante a sociedade, já que são “temidos” e respeitados como
o “time dos Kaingang” ou simplesmente o “time dos índios”. E, afinal, os sucessos e
elogios que recebiam como jogadores e equipes, remetiam-lhes novamente à tradição
dos antigos: a noção de que o Tare, aplicado ao futebol, era arma de uso exclusivo dos
Kaingang. Pois, apesar de procurarem jogar limpo, os Kaingang admiram aqueles
que não se importam em se machucar, como ocorria nos antigos jogos de guerra, já
que aguentar a dor fazia parte do treinamento e da vida do guerreiro. O Tare não está
disposto em uma natureza Kaingang, embora, como em toda cultura, eles tentem
naturalizá-la. Ele diz respeito ao treinamento corporal e à identidade ante os Fóg,
marcando deles a diferença por meio do corpo. Além de treinamento cultural, por
vezes, usam a ingestão de remédios do mato, administrados em sua forma forte.
Mas a noção de força – Tare – parece ser a forma de maior expressão da
identidade Kaingang porque, mais que uma força física adquirida, treinada e diferen-
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 233

ciada em relação aos Fóg, a expressão da diferença simbólica entre eles – diferença
positiva em relação a si próprios, Kaingang –, parece ser uma marca do Tare. Assim,
entendemos o desportista como uma categoria nativa que opera papel estratégico
na construção do corpo Kaingang, tal como ocorria antes em seus Kanjire e Pinjire.
O futebol se apresenta, enfim, como fato social total, no sentido que
emprestamos de Mauss (2003), pois pode ser analisado sob vários ângulos: é um
fato jurídico (no sentido da mímesis das organizações esportivas, das padroniza-
ções de regras e das relações entre índios e não índios), ao mesmo tempo em que é
fisiológico (pois leva em conta a construção e o uso do Tare), é sociológico (reuni-
ões intra, inter e extraterras indígenas) e, ao mesmo tempo, carregado de dramas
e performances discursivas. E apresenta-se também como peça fundamental do
entendimento que faço do etnodesporto: a mímesis do futebol encorporado e res-
significado em e por seus corpos, e justificado nas relações sociais que se podem
obter a partir dele e por meio dele. Em resumo, o futebol demonstra ter mesmo
uma eficácia social – na reinserção dos Kaingang ante o mundo dos Fóg – e uma
eficácia simbólica –, pois significa manter sua identidade étnica.

Considerações finais

As lentes indígenas, cada uma à sua maneira, interpretam e reinterpre-


tam os novos conhecimentos que ora, como outrora, lhes chegam desavisadamente
à sua porta. Mas a faculdade mimética que eles possuem para transformar e ressig-
nificar esses conhecimentos pode ser claramente identificada quando analisamos
a introdução do futebol e de outros processos de institucionalização do esporte
– como os anuais Jogos dos Povos Indígenas, os torneios regionais de futebol e os
eventos interculturais.
Os Kaingang parecem mesmo ter lapidado uma lente para enxergar
e praticar seu futebol. Hoje, essa lente pouco enxerga a difusa imagem dos jogos
234 Futebol na sala de aula

de guerra Kanjire e Pinjire de seus antepassados. A lente que tampouco enxerga


a mímesis – advinda do processo civilizatório – a produz sob seu foco e se torna
visível sob análise, pois a mímesis sintetiza a “tradição” – dos jogos tradicionais, do
parentesco – à sua conveniência, e a novidade – o futebol, a organização dos espor-
tes e dos eventos – emerge de uma “segunda natureza”: o etnodesporto.
Assim, a inter-relação entre corpo, jogo tradicional e esporte moderno
adquire contornos interessantes quando tratados na diversidade e na dinâmica
cultural, nas quais cabem os Kaingang. Vale lembrar, mais uma vez, o pensa-
mento de Clastres (1978) de que cada sociedade, à sua maneira, marca suas leis
nos corpos de seus indivíduos. Então, leis diferentes de diferentes sociedades
implicam na produção de corpos diferenciados. As identidades que os esportes
conseguem, pela mímesis, são o exemplo disso, como procuramos demonstrar
com o caso Kaingang. Nesse caso, o futebol permite-nos estabelecer a ligação
entre corpo e tradição, já que o Tare – a força gravada em seus corpos – é também
“escalado em campo”.
No corpo, o Tare, a noção de força construída desde a ancestralidade
permanece expressa, física e simbolicamente, no corpo. Talvez, mesmo que os
jogos tradicionais estejam no silêncio ou no esquecimento, eles representavam
uma cosmologia Kaingang que, de uma forma ou outra, está também no esporte
atual. Se não está mais no Kanjire e no Pinjire, se não está mais no tempo Wãxi, está
certamente, como vimos, no Urí, no futebol.
Ademais, o futebol introduzido entre os Kaingang nesses últimos 80
anos, permitiu-me algumas análises sociológicas importantes. Desde a centrali-
dade dos campos nas aldeias-sede das terras indígenas Kaingang, até o justificado
trânsito por entre seu vasto território cultural. O futebol pode ser percebido, então,
pela interação e integração social dos moradores das terras indígenas entre si, des-
tes com os de outras terras indígenas e com a população e equipes da cidade, dado
que vários amistosos e torneios são marcados com os Kaingang e que alguns Kain-
Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang 235

gang participam de equipes da cidade em competições municipais e regionais. O


futebol serve-lhes, pois, de poderoso “salvo-conduto” por suas terras e pelas cida-
des. Enfim, podemos analisar o futebol como fato social total entre os Kaingang,
em que, por meio do lúdico provocado pelo futebol, a sociedade se desembaraça do
atomismo cotidiano e se faz visível como um todo, conseguindo gerar e expressar,
em ação, uma imagem modelar de si mesma.

Referências

BARBOSA, Horta. Epidemias entre os Kaingang. Revista do Museu Paulista, São Paulo, 1947.

BORBA, Telêmaco. Actualidade Indígena. Curitiba: Imprensa Paranaense, 1908.

CAMPOS, Flávio. O Processo Civilizador do Esporte. Folha de S. Paulo, São Paulo, 08 ago.
2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0808200403.htm. Acesso
em: 20 out. 2020.

CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

FASSHEBER, José Ronaldo Mendonça. Etno-Desporto Indígena: contribuições da Antropologia


Social a partir da experiência entre os Kaingang. 2006. Tese (Doutorado em Educação Física) –
Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

FERNANDES, Loureiro. Os Caingangue de Palmas. Curitiba: Arquivos do Museu Paranaense,


1941.

KELLER, Franz. Noções sobre os Indígenas da Província do Paraná. Boletim do Museu do Índio.
Rio de Janeiro, Antropologia, n. 1, p. 9-29, 1974.

MAUSS. Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

PIZA, Marcelo. Notas sobre os Caingangs. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
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TAUSSIG, Michael. Mimesis and Alterity: a particular history of the senses. New York/London:
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236 Futebol na sala de aula

TOMMASINO, Kimiye. A História dos Kaingang da Bacia do Tibagi: uma sociedade Jê Meridio-
nal em Movimento. 1995. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.

______. et al. Uri e Wãxi. Londrina: EDUEL, 2000.

TURNER, Victor. The anthropology of performance. New York: Performing Arts Journal Publi-
cations, 1987.

Sugestões de fontes para o trabalho em sala de aula

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Biblioteca Curt Nimuendajú. Disponível em: http://


www.funai.gov.br/index.php/servicos/biblioteca.

ONU e governo lançam publicação sobre os jogos mundiais dos povos indígenas. Organização
das Nações Unidas, 09 ago. 2017. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-e-governo-lan-
cam-publicacao-sobre-os-jogos-mundiais-dos-povos-indigenas/.

PORTAL KAINGANG. Disponível em: http://www.portalkaingang.org/.

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Disponível em: https://pib.socioambiental.org.

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL MIRIM. Disponível em: https://mirim.org/.


O futebol como espelho da
sociedade brasileira: o que as quatro
linhas podem nos ensinar sobre
relações raciais no Brasil1
Rolf Malungo de Souza

O futebol é um espelho da nossa realidade,


e isso não se resume apenas a xingamentos racistas
(AROUCA2)

Olhar o futebol como um espelho da nossa realidade, como sugere o


jogador Arouca, seria tentar compreender como as relações raciais se dão no Bra-
sil por meio do esporte mais popular do país que, como lembra o jogador, não se
resume apenas a xingamentos racistas. Os avanços e retrocessos no futebol nos dão
uma pista sobre as relações raciais na nossa sociedade. O futebol é bom para pensar
sobre o Brasil.

1 Neste texto não utilizei uma linguagem inclusiva, ou seja, que contemple os gêneros masculino e feminino, isso se deu porque ele trata de
um universo quase que exclusivamente masculino. Dedico este texto à minha querida ex-orientadora, amiga e mentora, Simoni Lahud Guedes, que
já nos deixou. Sentirei sua falta.
2 Declaração do ex-jogador do Santos, logo após ser vítima de ofensas racistas durante uma partida.
238 Futebol na sala de aula

Durante as discussões sobre o destino de africanas(os) e seus descen-


dentes que antecederam a Abolição, e se seguiram posteriormente, as elites bra-
sileiras pensaram em várias soluções para superar o “atraso” que essa população
representava para os destinos do país, já que seus planos eram criar, no Brasil, uma
nação à imagem e semelhança das nações europeias. Essas mudanças passariam
por uma transformação na arquitetura da capital, mas também, ou principalmente,
na transformação da composição étnica de nossa sociedade. Desta forma, o fim
do século XIX e início do XX são testemunhas de mudanças que foram sentidas
especialmente na antiga capital da recém-proclamada República, assim, a cidade
do Rio de Janeiro passa por um processo de gentrificação que tem como objetivo
transformar a cidade em uma Paris nos Trópicos (BENCHIMOL, 1992).75
O modelo a ser seguido era muito semelhante ao que havia sido imple-
mentado na Cidade-Luz pelo prefeito à época, Georges-Eugène Haussmann, entre
1852 e 1870. Lá, a intenção era transformar a cidade, estética e estrategicamente,
pois, além de embelezá-la, havia a preocupação de controlar a movimentação da
classe trabalhadora, pois a burguesia francesa ainda sentia o cheiro de pólvora
das revoltas de 1848, assim essa reforma deveria prevenir possíveis levantes civis
(ORTIZ, 2000). Aqui, em terras tupiniquins, o espírito era muito parecido, mas
com algumas especificidades. Além de embelezar a cidade, transformando-a no
símbolo de uma nação que acabara de nascer com a Proclamação da República,
teria também como controlar levantes populares, como a Revolta da Vacina, que
havia acontecido em 1902, um ano antes do início das obras que ficaram conhe-
cidas como “Bota Abaixo” (1903-1906). A Reforma de Haussmann deveria, além
da questão estética, facilitar a circulação de pessoas e mercadorias e controlar a
movimentação e revoltas populares.
Aqui, no Brasil, a elite sonhava com uma cidade moderna, onde pes-
soas (brancas) e mercadorias circulariam livremente, contudo, o Rio de Janeiro,
diferentemente de Paris, tinha a sua própria classe perigosa: pobres e negros(as)!
O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil 239

Esses(as) deveriam ser excluídos(as), ou melhor, também deveriam ser postos


abaixo e substituídos(as). E assim o foi. Prédios antigos foram derrubados, lagoas
aterradas, rios canalizados e ruas foram alargadas; nada poderia deter o progresso.
E as pessoas que moravam nesses locais? Foram sumariamente expulsas da Região
Central da cidade. Como disse acima, para a elite, o “problema” dos(as) negros(as)
era uma das principais preocupações que deveria ser resolvida, e uma das soluções
encontradas para isso foi incentivar a imigração de europeus para embranquecer o
país, ou seja, a ideia era excluir a população negra, não só simbolicamente, mas em
longo prazo, essa exclusão seria física. Nesse mesmo período, fim do XIX e início
do século XX, o futebol reflete isso muito bem.
Sem entrar no debate sobre a primazia de quem realmente introduziu o
futebol no Brasil, se foi o anglo-brasileiro Charles Miller, em 1895, em São Paulo,
ou o escocês Thomas Donohoe, um ano antes,3 na cidade do Rio de Janeiro,4 sabe-
mos que, quando o antigo esporte bretão chegou ao Brasil no fim do século XIX,
primeiramente caiu no gosto da elite do país. Nos primeiros anos, o futebol no
Brasil era um esporte da e para a elite, os brancos bem-nascidos. Os clubes que eram
espaços de socialização dessa elite restringiam o acesso aos populares, pois
Os estatutos da Sociedade Regata, de fato, indicavam posturas restriti-
vas [aos pobres]. Os interessados em se associar deveriam ter seus nomes
aprovados pela diretoria e pagar uma joia de 12$000 [aproximadamente, a
metade do salário de um trabalhador da época], além de uma mensalidade
de 2$000. Era ainda prevista a proibição da emissão de convites para outros
que não autoridades (como ministros e diplomatas). Os sócios somente
poderiam levar para os eventos seus familiares, definidos como ‘os que vive-
rem debaixo do mesmo teto e subordinados restritamente ao chefe deste’
(MELO, 2015, p. 218).

3 Curiosamente, Thomas Donohoe foi operário de uma fábrica de tecidos em Bangu, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Seria coincidên-
cia que o nome mais festejado seja justamente o de um membro da elite?
4 MOLINARI, Carlos. Nós é que somos banguenses – 1889 a 1903. Bangu Atlético Clube. Disponível em: http://www.bangu.net/informacao/
livros/nosequesomosbanguenses/1889a1903.php. Acesso em: 8 mai. 2019.
240 Futebol na sala de aula

Ou seja, essa forma de sociabilidade era apenas para a “fina flor” da


sociedade (MELO, 2015, p. 219), que obviamente não era preta ou parda... É nesse
contexto que o futebol é introduzido no Brasil.
Quando o futebol chegou ao país, segundo a versão hegemônica, trazido
por Charles Miller, no início do século XIX, era considerado um esporte nobre, por
isso, as competições só poderiam ser praticadas pelas elites do Rio e São Paulo. Não
era permitido que negros ou pobres jogassem. Nesse período as mulheres eram
proibidas de jogar, de participar de todo o universo que envolve o futebol, sendo
permitido apenas assistir aos jogos.
A reação contra a participação de pretos e pobres foi coerente com o
pensamento hegemônico da época, pois vivíamos o auge das teorias do racismo
científico que pregavam a superioridade do sangue branco sobre o sangue de
negros(as) e mestiços(as). Desta forma, essa crença endossava ações diretas con-
tra essas pessoas, assim, houve proibições explícitas como em 1905 que fez com
que “a Liga Metropolitana de Football (equivalente à atual Federação de Futebol
do Estado do Rio de Janeiro – Ferj) publicasse uma nota proibindo o registro de
“pessoas de cor” como atletas amadores de futebol” (MANERA et al., 2015, p. 20).
Esses clubes tinham evidente orientação racial, que não se restringiam
ao acesso exclusivo de pessoas brancas nos seus quadros, mas também por meio
de mensalidades e títulos caros, o que seria impagável para a maioria dos negros
naquele período, contudo, se essas restrições não fossem o bastante, ainda “havia a
condição de que um novo associado deveria ser aceito por dois terços dos sócios já
existentes” (MANERA et al., 2015, p. 19), repetindo a estratégia das Sociedades de
Regatas citadas acima.
A nota produzida pela Liga Metropolitana de Football foi publicada
pelo fato de o Bangu Atlético Clube ter escalado um jogador negro, Francisco
Carregal, e, em resposta a essa nota, o Bangu abandonou a liga, não disputando
o campeonato carioca. As tentativas de criar dificuldades para que negros fizes-
O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil 241

sem parte dos times de futebol, continuaram, contudo, afrontando o status quo
da época. O Bangu, além de contratar mais quatro jogadores negros, acabou
ainda com a divisão nas arquibancadas, criando lugares chamados de “geral”,
onde todos poderiam assistir juntos às partidas, sem distinção de cor ou classe
(MANERA et al., 2015, p. 20).
Como era de se imaginar, a reação dos outros times não tardou a che-
gar. Fluminense, Flamengo, Botafogo, dentre outros, no ano seguinte, fundaram a
Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amea). Essa entidade criou uma
comissão de sindicância para saber se os jogadores teriam condições materiais de
fazer parte dos seus quadros, e o alvo, dessa vez, era o São Cristóvão, que tinha em
seus quadros vários jogadores negros. O Vasco da Gama era também acusado de
incentivar o profissionalismo de seus jogadores negros pagando prêmios para os
jogos que ganhavam, o que eles chamavam pejorativamente de “profissionalismo
marrom”, que veremos mais à frente. A Amea exigiu que o São Cristóvão demitisse
seus 12 atletas pobres, a maioria negros, mas o time recusou-se a acatar tal exi-
gência e se retirou da associação. A pressão contra os clubes que incentivavam o
ingresso de negros nos seus quadros continuou nos anos seguintes. Em dezembro
de 1917, o Diário Oficial carioca publicou a Lei do Amadorismo que dizia:
Não poderão ser registrados os que tirem os meios de subsistência de profis-
são braçal [...] aqueles que exerçam profissão humilhante que lhes permitam
o recebimento de gorjetas, [...] os analfabetos e os que embora tendo profis-
são estejam, a juízo do Conselho Superior, abaixo do nível moral exigido.
(SILVA, 2006, p. 318).

No mesmo espírito, o presidente da República Epitácio Pessoa, em 1921,


pediu pessoalmente aos diretores da Confederação Brasileira de Desporto (CBD)
que convocassem apenas jogadores brancos. O País, em setembro de 1921, denun-
cia o que a CBD fez: “Os senhores absolutos do esporte, num golpe reprovável, sem
base, anti-esportivo, excluem do quadro nacional […] os negros e mulatos”.
242 Futebol na sala de aula

É importante salientar que os negros não assistiam passivamente às


discriminações que sofriam no futebol: em 1907 é criada no Rio de Janeiro a
Liga Suburbana; em Porto Alegre, em 1910, é criada a Liga Nacional de FootBall
Porto Alegrense, que também era conhecida como Liga da Canela Preta; e, nesse
mesmo período, nasce em Salvador a Liga Brasileira de Desportos Terrestres,
também conhecida como a Liga dos Pretinhos (SANTOS, 2009, p. 5). Essas enti-
dades foram importantes espaços de sociabilidade e enfrentamento à discrimi-
nação racial.
Para que não tenhamos dúvida sobre a ideologia do momento, que era
a da superação do negro pelo branco, João Baptista de Lacerda, diretor do Museu
Nacional, participou, em julho de 1911, do Congresso Universal das Raças, reali-
zado em Londres, financiado pelo governo do marechal Hermes da Fonseca, logo,
representando a posição do Estado Brasileiro, e apresentou esse projeto de nação.
No fim da sua apresentação,
Lacerda enunciaria sua principal tese acerca do resultado da miscigenação no
Brasil. Segundo ele, o cruzamento racial tenderia a fazer com que negros e
mestiços desaparecessem do território brasileiro em menos de um século, ou
seja, antes mesmo do final do século XX, possibilitando o branqueamento da
população [...]. Em sua compreensão, esse processo deveria ocorrer por três
motivos principais. Em primeiro lugar, devido à ‘seleção sexual’, os mulatos
procurariam sempre encontrar parceiros que pudessem ‘trazer de volta seus
descendentes para o tipo branco puro’, removendo os aspectos característicos
da ‘raça negra’, inclusive o atavismo. (SOUZA, 2012, p. 745, grifos nossos).

A ideia da miscigenação como forma de purificar a raça brasileira e criar


um branco puro era a ideologia hegemônica até o início dos anos 1930, e mais ou
menos nesse período, temos o “operário-jogador”.
Ser operário-jogador é uma oportunidade para que os trabalhadores de
fábricas pudessem ter uma renda extra jogando futebol, porém, não tardou para
que surgissem as críticas ao que foi chamado depreciativamente de “profissio-
O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil 243

nalismo marrom”. Vários jornais, como a Folha da Manhã, na sua edição de 7 de


agosto de 1929, criticam a
[...] infiltração crescente de um profissionalismo sórdido, de uma ação sub-
terrânea e proteiforme, é que determina esse desvirtuamento, e essa confu-
são dos verdadeiros valores esportivos com os meros ‘profiteurs’ da situação.
[...] As expressões ‘amador’ e ‘profissional’, palavras atualmente ocas de sen-
tido, devem ter um objetivo bem definido na prática. Em caso contrário, não
será de se espantar que qualquer dia se chegue a por em dúvida o que sempre
representou o modo de ser do esporte: a honestidade de suas intenções cul-
turais. (YAMANDU; GÓIS JUNIOR, 2012, p. 10).

A partir dos anos de 1930, os jornais parecem mudar de ideia quando


defendem um “profissionalismo às claras, do que um amadorismo falso que pos-
sibilitava aos clubes pagamentos de remunerações menores” (YAMANDU; GÓIS
JUNIOR, 2012, p. 10). E essa remuneração menor fazia com que jogar no exterior
se tornasse mais atrativo do que jogar no Brasil, acarretando que os melhores joga-
dores fossem embora do país...
Em 1932, um grupo de jogadores publicou no jornal Gazeta Esportiva
um manifesto no qual pediam pelo direito de exercer sua profissão de jogador de
futebol. Ao clamor desses futebolistas, foram se juntando também os dirigentes de
clubes, insatisfeitos com a situação do “profissionalismo marrom”, que não era nem
amadorismo nem profissionalismo. Desta forma, profissionalizando os atletas, se
poderia assegurar a permanência dos craques nas equipes, embora o profissiona-
lismo do futebol tenha sido motivado por vários fatores, inclusive porque os times
estrangeiros estavam contratando os melhores jogadores, independentemente da
cor. Enquanto a Itália e Espanha contratavam jogadores da Argentina e Uruguai,
estes países passaram a contratar jogares negros no Brasil. Talvez não seja coinci-
dência que nessa década tenhamos a Revolução de 1930 e, dois anos depois, o lan-
çamento do livro Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. Cada um a seu modo,
significou uma mudança de paradigma sobre as relações raciais no Brasil
244 Futebol na sala de aula

Com a Revolução de 1930, houve uma ressignificação do trabalho e do


trabalhador, pois havia pouco mais de 40 anos que o regime escravagista havia
sido abolido, logo, trabalho e trabalhado(a) ainda tinham uma conotação nega-
tiva na nossa sociedade e ambos eram associados à escravidão e ao escravo(a).
Para essa mudança, o Estado precisaria implementar uma nova visão na qual
tanto o trabalho, quanto o(a) trabalhador(a) eram fundamentais para o progresso
da nação.
O livro de Gilberto Freyre trazia mudanças nas teorias raciais brasi-
leiras, pelas quais os(as) negros(as) são revistos e positivados como elementos
importantes para formação do povo brasileiro, sem, contudo, mexer necessa-
riamente nas hierarquias sociais. Assim, a mestiçagem passa a ser valorizada e
os(as) africanos(as) e seus descendentes são vistos como importantes auxilia-
res dos(as) portugueses(as) na construção da nação, e essa miscigenação era o
que distinguia e singularizava o Brasil de outros países. Aqui, as relações raciais
eram mais harmônicas e pacificas que em outras nações que também tiveram a
experiência de um regime escravagista. Embora raça tenha deixado de ser uma
característica biológica, mas social, não deixou de ser vista como uma “fase” a
ser superada pela intelectualidade. Isso foi incorporado em várias áreas da socie-
dade, inclusive na educação, pois
[p] ara os educadores brasileiros e sua geração intelectual, raça não era um
fato biológico. Era uma metáfora que se ampliava para descrever o passado,
o presente e o futuro da nação brasileira. Em um extremo, a negritude signi-
ficava o passado. A negritude era tratada em linguagem freudiana como pri-
mitiva, pré-lógica e infantil. Mais amplamente, as elites brancas equiparavam
negritude à falta de saúde, preguiça e criminalidade. A mistura racial simbo-
lizava o processo histórico, visualizado como uma trajetória da negritude à
brancura e do passado ao futuro (DÁVILA, 2006, p. 25, grifos nossos).

Assim, as características culturais atribuídas aos(às) africanos(as) e seus


descendentes passaram a singularizar o futebol brasileiro. A capoeira, que até há
O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil 245

muito pouco tempo era proibida e perseguida,5 passou a ser vista como respon-
sável pelos dribles e jogo de corpo, marcas importantes dos jogadores brasileiros,
agora qualidades dos brasileiros, independentemente da cor. Aliás, o samba6 tam-
bém fazia parte desse amálgama cultural, contudo, embora as discussões sobre as
relações raciais tenham mudado, e o futebol acompanhava essas mudanças, e os
jogadores negros passaram a ser aceitos, essa aceitação tinha limites.
Na Copa do Mundo de 1938, na França, embora a maioria da Seleção
Brasileira fosse branca, havia jogadores negros. Leônidas da Silva, o Diamante
Negro, que era reconhecido como um excelente jogador, foi mantido no banco de
reserva, e a derrota da seleção fez com todo o ônus desse fracasso fosse jogado
sobre os ombros de um jogador negro, Domingos da Guia, acusado de perder um
pênalti. Essas acusações se repetiriam nas Copas de 1950 e 1998. Na Copa de 1950,
no Brasil, todos os jogadores negros foram acusados de culpa na derrota em pleno
Maracanã, porém, o goleiro Barbosa foi condenado à pena perpétua.7 Na Copa da
França, em 1998, a culpado da vez foi o jogador Ronaldo, mesmo não se reco-
nhecendo como negro, foi considerado o culpado pela derrota da Seleção Cana-
rinho. Os exemplos poderiam se repetir exaustivamente, e as reações aos jogado-
res negros, dentro e fora das quatro linhas, são um espelho como inspiradamente
declarou o jogador Arouca em 2014. As mudanças nas relações raciais, nesses mais
de cem anos de futebol no Brasil, refletem o que vemos nessa sociedade.
Esse espelho não reflete apenas coisas ruins; os jogadores negros con-
seguiram ascensão social e prestígio por meio do futebol. Transfomaram-se em
reis e ídolos com reconhecimento internacional, e, embora, muitos deles tenham
feito e ainda fazem questão de se manter afastados das discussões raciais por vários
motivos, cooptação, temor de represálias de seus clubes etc., outros sequer se iden-

5 Somente em 7 de dezembro de 1940, com o Decreto-Lei nº 2.848, a capoeira deixou de ser proibida no Brasil.
6 Que também foi perseguido por muitos anos até se tornar um dos principais símbolos de brasilidade.
7 ROSAS, Frederico. A pena perpétua de Barbosa. El país. 11 jun. 2014. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/11/depor-
tes/1402498066_930352.html. Acesso em: 31 jan. 2020.
246 Futebol na sala de aula

tificam como negros, como Ronaldo8 e Neymar;9 nos últimos anos, vemos cada vez
mais jogadores negros falando abertamente sobre as discriminações que sofreram
dentro e fora dos campos. Há um maior pertencimento étnico e percepção de que
a ascensão social e mobilidade na escala de classe elimina o racismo e a exclusão
de pessoas que não sejam brancas, não estruturais da sociedade brasileira, segundo
vem dizendo o Movimento Negro há décadas.
Se, no início do século XX, o Movimento Negro discutia formas de inte-
grar uma sociedade que criava meios de excluir os(as) negros(as) da pífia cidadania
que se tentava criar após a Proclamação da República depois dos anos 1930, esse
movimento social começou a denunciar a ideologia de negar o racismo, ao mesmo
tempo em que divulgava, interna e externamente, a ideia de que aqui as relações
raciais eram exemplares. Essa ideologia de Estado é o que ficou conhecido como o
“Mito da Democracia Racial”, cujo Vade Mecum era o livro Casa grande e senzala.
Foram precisos mais de 70 anos de luta do Movimento Negro para que
o Estado brasileiro admitisse oficialmente ser uma sociedade racista, e o presidente
Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2003) se tornou o primeiro dirigente bra-
sileiro a admitir que o Brasil é um país racista. Embora não tenha sido o primeiro
a criar politicas públicas para o combate ao racismo – Sarney havia criado a Fun-
dação Palmares –, o fato de um presidente ter declarado o que o Movimento Negro
vem dizendo há anos teve um peso simbólico muito grande.
Uma vez desmascarado o Mito da Democracia Racial, que, embora
ainda seja muito forte e presente em setores reacionários de nossa sociedade, per-
deu força e fez com que o Movimento Negro passasse para uma nova etapa da luta.
A atual pauta é fazer com que a questão chegue a todos os segmentos de nossa

8 Ronaldo declarou: "Acho que todos os negros sofrem. Eu, que sou branco, sofro com a ignorância". Cf. CAPRIGLIONE, Laura. Cor de cele-
bridades revela critérios "raciais" do Brasil. Folha de S. Paulo Especial, 23 nov. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/
fj2311200827.htm. Acesso em: 31 jan. 2020.
9 ANJOS, Márvio dos. “Neymar não se acha negro”: canalhice ou desinformação? Blog Márvio dos Anjos, 01 mai. 2014. Disponível em:
http://globoesporte.globo.com/platb/marvio-dos-anjos/2014/05/01/neymar-nao-se-acha-negro-canalhice-ou-desinformacao/. Acesso em: 31
jan. 2020.
O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil 247

sociedade dessacralizando, inclusive, o mais sagrado dos esportes nacionais, que


chegou a ser considerado o símbolo da identidade nacional, o futebol.
Continuando com a metáfora do espelho, nos últimos anos a resistência
à participação das mulheres – até os anos 1940, as mulheres eram proibidas de
jogar futebol, e hoje temos uma das melhores jogadoras do mundo –, fez com que
o futebol feminino ganhe adeptos e adeptas Brasil afora. Da mesma forma, a luta
contra o racismo, discriminação que é uma das marcas da nossa sociedade, faz com
que este se torne cada vez menos tolerado. Sabemos que há muito o que fazer, mas
as vozes contra o racismo estão cada vez mais altas.
Se conseguimos, a duras penas, criar as ações afirmativas para assegu-
rar acesso de pretos e pardos às universidades públicas, lócus privilegiado para a
ascensão social e onde até há poucos anos os(as) alunos(as) eram quase que exclu-
sivamente brancos(as), ainda temos resistência de setores conservadores de nossa
sociedade. Nas declarações de jogadores e de raros técnicos de futebol, cada vez
mais temos demonstrações de repúdio às manifestações de racismo nos campos,
tal qual ocorre nas entradas de bancos, abordagens policiais, falta de representa-
tividade na TV, cinema e em diversos setores e segmentos de nossa sociedade. As
relações no “mundo do futebol” ilustram os avanços e retrocessos de um país que
se fundou sobre a exclusão da população negra e pobre. Mas o Movimento Negro
continua a postos, sabendo que não pode baixar a guarda, pois uma sociedade
como a nossa não perde maus hábitos facilmente.

Referências

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do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de
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248 Futebol na sala de aula

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50. Estud. afro-asiát., v. 25, n. 2, p. 215-235, 2003.

SOUZA, Vanderlei Sebastião de; SANTOS, Ricardo Ventura. O Congresso Universal de Raças,
Londres, 1911: contextos, temas e debates. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v.
7, n. 3, p. 745-760, set. /dez., 2012.

YAMANDU, Walter; GÓIS JUNIOR, Edivaldo. Profissionalismo“marrom” do futebol e a


imprensa paulista (1920-1930). Recorde: Revista de História do Esporte Artigo, v. 5, n. 2, p.
1-13, jun./dez. 2012.

Sugestões de fontes para uso do professor em sala de aula

BOLEIROS - Era uma vez o futebol... Direção: Ugo Giorgetti. Brasil, 1998. (93 min).

Sinopse: Em um bar de São Paulo, um grupo de ex-jogadores de futebol se encontra para relembrar as
antigas glórias e histórias interessantes do tempo em que ainda eram jogadores. 1998.

O NEGRO no futebol brasileiro. Direção: Gustavo Acioli. Brasil: HBO Latin America; Filmes do Equador,
2018. (4 episódios).

Sinopse: Série documental inspirada no livro homônimo do jornalista Mario Filho. Reflexão sobre as difi-
culdades enfrentadas por jogadores de futebol negros no esporte e como o racismo ainda está presente nos
estádios. A obra conta com entrevistas com jogadores como Cláudio Adão, Júnior, Romário e Adriano,
além de personalidades como Gilberto Gil e Haroldo Costa.

PROCURA-SE Irenice. Direção: Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça. São Paulo, 2016. (25 min).

Sinopse: O resgate de uma personagem silenciada. O documentário curta-metragem Procura-se Irenice é


a busca por uma atleta esquecida. O encontro com uma história apagada pela ditadura.
O futebol nas aulas de educação
física para além da bola rolando
Silvio Ricardo da Silva, Luiz Gustavo Nicácio
e Priscila Augusta Ferreira Campos

Cena 1

No ano de 2008, em uma escola municipal da periferia do município de Ribei-


rão das Naves, Minas Gerais, na aula de Educação Física, durante o conteúdo
futebol, uma aluna exclamou: “Professora, que bom que teremos futebol. Meu
sonho é ser a Marta, mas minha mãe não me deixa jogar bola, fala que é coisa
de menino”. Nesse momento, a relação de gênero e futebol foi tematizado na
aula, e o futebol praticado por mulheres foi discutido a partir do filme Dri-
blando o Destino,1 devido à faixa etária do grupo.

Cena 2

Em 2014, em uma escola de classe média alta, em Belo Horizonte, Minas


Gerais, dentro da unidade didática Copa do Mundo para alunos do ensino
fundamental I, um dos planos de aula previa a atividade de “derruba cone”,
na qual cada criança representaria uma das 32 seleções. Todos os alunos cor-

1 DRIBLANDO o destino. Direção: Gurinder Chadha. Reino Unido, 2002. (115 min).
252 Futebol na sala de aula

riam e mostravam vontade para derrubar o cone adversário ou proteger seu


próprio cone. Em meio àqueles alunos, um se destacava, não apenas pelo suor
e dedicação, mas pelo choro derramado ao ter seu cone derrubado. Não era um
aluno que costumava chorar em situações parecidas. Na parte final da aula, em
roda, o professor conversou com a turma sobre o jogo e a forma de organização
dos grupos na Copa do Mundo. Quando as crianças foram para o recreio, esse
aluno voltou a chorar. Ao ser indagado sobre o motivo do choro, ele disse que
estava representando a Nigéria no jogo. E complementou dizendo que seus pais
eram descendentes de nigerianos escravizados e que estava muito triste por
não ter representado bem a Nigéria. A conversa se estendeu por temas ligados
às competições, até que ele se tranquilizou e entendeu que sua dedicação no
jogo já era uma excelente representação para a Nigéria.

Cena 3

Em agosto de 2008, durante as Olimpíadas de Verão, disputadas na China,


houve em uma escola pública de Belo Horizonte, Minas Gerais, um grande
interesse dos alunos do terceiro ciclo (sétimo, oitavo e nono anos) pelo evento,
sobretudo pelo desempenho da Seleção Brasileira de Futebol Feminino, que,
na referida edição, chegou à final. Por conta própria, um grupo de estudantes,
representando os demais, solicitou ao professor de Educação Física que pudes-
sem coletivamente assistir à partida da semifinal entre Brasil e Alemanha.
Diante de tamanho interesse, o professor consultado propôs aos colegas, além
de assistirem ao jogo, realizar um trabalho coletivo discutindo a Olimpíada,
como megaevento, e a questão da participação das mulheres no esporte, espe-
cialmente no futebol. Para sua surpresa, a professora de História se negou a
liberar os estudantes da sua aula e desqualificou a proposta, afirmando que o
futebol era mera distração, desprovido de reflexões importantes.

Que atire a primeira pedra o(a) professor(a) de Educação Física que


nunca presenciou ou vivenciou situações parecidas com essas em sua prática
docente. E, nesses casos, o que fazer? Como resolver? Fazer vista grossa ou intervir?
Transformar essas situações em prática pedagógica ou deixar de lado?
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 253

Em outras palavras, sendo o futebol um catalisador de sentimentos,


uma prática sociocultural por meio da qual a sociedade brasileira se manifesta, tão
presente no cotidiano escolar – um microcosmo social –, como trabalhá-lo com
finalidades educativas no interior da escola tanto pela educação física, quanto pelas
demais disciplinas?
Assim, o objetivo deste texto é apresentar o futebol como conteúdo das
aulas de Educação Física na escola para além do saber jogar.
Conforme Paulo Freire (1996), o ato de ensinar é uma prática humana
que denota uma intencionalidade do educador, e expõe, implícita ou explicita-
mente, as suas perspectivas de educação e de formação humana, traduzindo uma
maneira de intervenção no mundo.
Por outro lado, Saviani (2005) ressalta que não é possível compreender
o processo educativo sem compreender as condições das estruturas sociais que o
produzem, já que em uma concepção dialética de educação, o homem é visto como
uma síntese de múltiplas determinações.
A partir disso, no contexto do ensino do futebol, acreditamos que as
respostas às perguntas quem?, para quem?, o quê?, para quê?, onde?, como?, por
que ensinar? somente poderão ser respondidas adequadamente se forem conside-
radas à luz das implicações históricas e sociais, já que os esportes são reproduções
de valores de uma cultura e de uma determinada ordem social (SANTIN, 1996).
Este texto se divide em duas partes: 1) apontaremos o cenário de forma-
ção do professor de Educação Física, privilegiando a discussão acerca do currículo
escolar; 2) apresentaremos possibilidades para o ensino do futebol, levando em
consideração seu caráter procedimental, conceitual e atitudinal.2
Temos percebido que o futebol, como conteúdo da educação vem sendo
tratado no interior da maioria das escolas brasileiras de forma reducionista. Por

2 O caráter procedimental se relaciona ao fazer; o conceitual, aos fatos, conceitos e princípios envolvidos; e o atitudinal, às normas, valores e
atitudes (BRASIL, 2000).
254 Futebol na sala de aula

meio de constatações cotidianas ou mesmo de trabalhos de pesquisa (NICÁCIO,


2010; ARAÚJO, 2014), vemos que durante as aulas de Educação Física, o futebol
ocorre apenas como prática, o fazer pelo fazer (caráter procedimental), despro-
vido de reflexões teóricas sobre o saber fazer corporal ou sobre as referidas cone-
xões sociais que permite (caráter conceitual); também é vivenciado, na maioria
das vezes, de maneira sexista, sendo oferecido como atividade apenas ao grupo
masculino. Poucas vezes é abordado na perspectiva da cultura corporal de movi-
mento, isto é, como conteúdo cultural que deve ser ensinado pela vivência prática
do movimento, como também refletido, contextualizado e redimensionado.
Daolio (1997) afirma que trabalhar com uma prática esportiva nas aulas
de Educação Física é muito mais do que o ensino das regras, técnicas e táticas. É
necessário, acima de tudo, contextualizar essa prática na realidade sociocultural em
que ela se encontra.
Entretanto, o que vem ocorrendo ao longo dos tempos é que a escola
ainda não reconhece o futebol, entendido de forma mais ampla, como uma possi-
bilidade de educação e de formação para a vida social. E, especificamente na Edu-
cação Física (área de formação e atuação de onde viemos) – uma disciplina recente
no contexto escolar (sua obrigatoriedade se dá a partir da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação)3 – são poucos(as) os(as) docentes que tentam ampliar o conteúdo
futebol para além da bola rolando.

O currículo do curso de Educação Física

Ao pensar a presença do futebol na escola é comum que a porta de entrada


seja a Educação Física. Isso ocorre por meio de olhares limitados tanto sobre o
futebol, quanto sobre a escola. Para ampliarmos o olhar, precisamos, inicialmente,
compreender a formação dos currículos dos cursos de Educação Física.

3 Até então, ela era tratada dentro do contexto escolar como atividade. Temática que iremos desenvolver ao longo do capítulo.
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 255

As primeiras instituições civis para o ensino de Educação Física surgi-


ram na década de 1930, durante o governo Vargas. O currículo enfatizava a téc-
nica desportiva e os aspectos médicos, militares e higienistas presentes no cenário
nacional (ISAYAMA, 2003). Em 1969, foi elaborado outro currículo para a Educa-
ção Física, por meio da Resolução nº 69/69 – conhecida como currículo mínimo
– que conferia ao profissional formado o título de “Licenciado em Educação Física”.
Esse profissional poderia atuar em qualquer segmento de ensino tanto o escolar,
quanto o não escolar, já que era possível obter o título de “técnico desportivo”,
desde que fossem cursadas duas disciplinas da área esportiva em detrimento das de
cunho social (MENDES, 1997).
Nesse período, o campo Educação Física teve uma aproximação muito
forte com o campo esportivo, diminuindo seu caráter pedagógico. Na educação
básica, diferentemente das outras disciplinas, a Educação Física era concebida
como atividade que desenvolvia e aprimorava forças físicas, morais, cívicas, psíqui-
cas e sociais do educando (BRACHT, 2010). Enfatizava-se a aptidão física tanto no
seu controle, quanto na sua avaliação. A iniciação esportiva também se tornara um
dos eixos fundamentais de ensino, buscando a descoberta de novos talentos que
pudessem participar de competições representando a pátria e o tecnicismo era a
metodologia de ensino vigente (BRASIL, 2000).
As modalidades esportivas que mais se fizeram presentes e, de certa forma,
ainda persistem, são o futebol/futsal, o voleibol, o basquetebol e o handebol.
A proeminência desses esportes tornou-se tão grande que em alguns contex-
tos são caracterizados como o ‘quarteto mágico’4. Além destas modalidades,
também o atletismo ganhou algum destaque e, em algumas poucas escolas
que dispõem de piscina, a natação (BRACHT, 2010, p. 2).

No fim da década de 1970 e nos anos 1980 várias discussões sobre a


temática do currículo começaram a surgir no Brasil. No campo da Educação Física

4 Também conhecido como “quarteto fantástico”.


256 Futebol na sala de aula

não foi diferente. Em um contexto em que a abertura política e a reorganização da


sociedade civil começavam a se fazer presentes, em que as teorias críticas do campo
da educação ganhavam força, a busca pela identidade e legitimidade do campo da
Educação Física tornou-se uma consequência que refletiu na mudança de para-
digma, no descontentamento da formação profissional pautada na aptidão física e
no esporte e na crítica ao modelo de currículo proposto pela Resolução nº 69/69.
Além disso, a criação dos primeiros cursos de pós-graduação em Educação Física e
o aumento do número de eventos acadêmicos trazia a emergência de uma nova pro-
posta de currículo para formação de professores e professoras de Educação Física.
Nesse contexto, foi aprovada a Resolução nº 03/87 que trouxe uma
mudança grande para a área da Educação Física, já que houve uma dicotomia entre
licenciatura e bacharelado. Segundo Borges (1998), apesar de ter trazido alguns
avanços para a formação profissional na Educação Física, tais como a ampliação de
áreas do conhecimento (filosófico, do ser humano, da sociedade e técnico), obser-
vou-se um inchaço dos currículos, predominantemente dos conteúdos esportivos
e biomédicos.
Concomitantemente, no âmbito escolar, uma nova forma de se pensar a
Educação Física surgia. Costa, Wortmann e Bonin (2016) apontam que os estudos
culturais entraram, de maneira mais consistente, na área da educação na década de
1990 e apontam como um dos marcos dessa entrada as discussões sobre currículo.
E é nas discussões sobre a constituição dos currículos escolares que se desenha o
embate de forças para entrada, permanência ou retirada de determinadas temá-
ticas. Em meio a essas transformações, em 1996, é aprovada a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação que insere a Educação Física como componente curricular
obrigatório (BRASIL, 1996).
Sendo assim, para a educação física escolar outra possibilidade de cur-
rículo passou a ser vislumbrada, uma vez que abarcava objetivos educacionais mais
amplos (não apenas voltados para a formação de um físico que pudesse sustentar
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 257

a atividade intelectual), conteúdos diversificados (não só exercícios e esportes) e


pressupostos pedagógicos mais humanos (e não apenas adestramento) (BRASIL,
2000, p. 23).
Recentemente, a Resolução CNE nº 2, de 1º de julho de 2015, que define
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior para
licenciados e de formação pedagógica, prevê a “articulação com o contexto educa-
cional, em suas dimensões sociais, culturais, econômicas e tecnológicas” (BRASIL,
2015), abrindo maior possibilidade de diálogo com o currículo crítico, os estudos
culturais, o trabalho interdisciplinar e ampliação do diálogo com a área das huma-
nidades na formação do licenciado.

Futebol, educação e escola

Darido e Souza Júnior (2007) destacam que a Educação Física teve, ao


longo de sua história, predileção pela dimensão procedimental de seus conteúdos,
ou seja, sobre a prática, o saber fazer.
Essa concepção foi tensionada em meados dos anos de 1980 e início de
1990 quando a educação física escolar passa pelo “Movimento Renovador da Edu-
cação Física”, isto é, diversos estudiosos da área questionaram de maneira intensa
e sistemática os paradigmas da aptidão física e esportiva que sustentavam a prática
pedagógica nos pátios das escolas (BRACHT, 2010). Esse movimento visava a um
conjunto de propostas que buscaram romper com os pressupostos didático-peda-
gógicos tradicionais da Educação Física, alinhando-se com a perspectiva dos estu-
dos críticos e culturais.
O trato do futebol e demais conteúdos da Educação Física passaram a
ter objetivos de aprendizagem que não mais se restringiam ao jogar, abrindo outras
possibilidades para o trabalho didático-pedagógico.
258 Futebol na sala de aula

De acordo com Bracht (2010), o ensino da Educação Física deveria


encampar os conhecimentos construídos pelas diferentes ciências sobre essas prá-
ticas, de modo que o “conteúdo da Educação Física assume assim um duplo caráter:
trata-se de um saber fazer e de um saber sobre esse fazer” (BRACHT, 2010, p. 4).
Ademais, sob esse viés, o objeto/conteúdo da componente curricular Educação Física
deve ser tematizado de forma historicizada, uma vez que as formas de movimento,
seus sentidos e significados são construções socioculturais de dado tempo e espaço.
Uma das obras de referência desse movimento traz uma proposta de
ensino do futebol para além do saber fazer. A obra Metodologia do ensino da Edu-
cação Física foi pioneira em pensar outros aspectos relevantes ao ensino do futebol
na escola:
O futebol enquanto jogo com suas normas, regras, e exigências físicas,
técnicas e táticas; O futebol enquanto espetáculo esportivo; O futebol
enquanto processo de trabalho que se diversifica e gere mercados especí-
ficos de atuação profissional; O futebol enquanto jogo popularmente prati-
cado; O futebol enquanto fenômeno cultural/que inebria milhões e milhões
de pessoas em todo o mundo e, em especial, no Brasil (COLETIVO DE
AUTORES, 1992, p. 49).

O entendimento do futebol para uma dimensão conceitual proporciona


o diálogo da Educação Física com as Ciências Humanas e Sociais. E esse diálogo
se torna válido ao fornecer arcabouços ao professor para entender sua prática de
forma contextualizada.
Entretanto, Darido e Souza Júnior (2010) afirmam que o futebol é o
conteúdo que mais está presente nas aulas de Educação Física no Brasil, sem, con-
tudo, ultrapassar aspectos técnicos e o jogar livremente.
Ainda que a obra Metodologia do ensino da Educação Física tenha tido
grande impacto na formação dos professores, Nicácio (2010), ao investigar as per-
cepções dos professores de Educação Física sobre a presença do torcer como tema
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 259

nas aulas de Educação Física em escolas públicas da cidade de Belo Horizonte,


Minas Gerais, pontua que:
a partir da década de 1980, há uma hipertrofia das discussões pedagógicas e
uma atrofia das discussões da didática da Educação Física escolar (CAPAR-
ROZ e BRACHT, 2007). É provável que nos cursos de formação tenha pro-
fessores mais capacitados em responder qual é o papel da Educação Física
na escola do que em propriamente exercer este papel, em decorrência deste
quadro apontado pelos autores. Sabe-se o que deve ser feito, todavia não se
conhece as formas de fazê-lo (NICÁCIO, 2010, p. 62).

Segundo o autor, nessa perspectiva é possível inferir que os professores


têm dificuldades em transformar em aula as reflexões sobre os temas da cultura
corporal de movimento, em especial aquelas que não se referem à prática, uma vez
que em apenas quatro escolas, no universo de 66 pesquisadas, haviam professores
que já tinham ampliado o trabalho com o futebol para além do saber fazer.
Portanto, segundo Nicácio (2010), o volume de produção relativo ao
futebol no âmbito das Ciências Humanas e Sociais não dá, por si só, condição de
que o olhar e a prática docente sejam convertidos em ações nessa direção nas aulas.
O trabalho de Araújo (2014) também aponta na mesma direção. Ao
analisar a relação entre atuação e formação profissional em educação acerca do
tema esporte e lazer, tendo a Copa de 2014 como referência, o autor verificou que,
no universo de 23 entrevistados, apenas oito abordaram o tema Copa do Mundo
em suas aulas. Desta maneira, concluiu que a ação docente não foi subsidiada nem
por diretrizes por parte dos organizadores da copa nem por diretrizes educacio-
nais. De modo que a formação e atuação dos docentes sobre o evento Copa do
Mundo ficou restrita, individualizada e à mercê do senso comum. Assim sendo,
os saberes trazidos para a atuação com essa temática se resumiram a saberes da
experiência associados ao ensino de conteúdos obrigatórios a determinada série
do ensino médio.
260 Futebol na sala de aula

Portanto, fica evidente que a noção de autoria nas aulas precisa ser aliada
a processos formativos para que os professores possam ser sujeitos de sua própria
prática. Nesse sentido, é necessário munir os professores com instrumentos para
desenvolver essas aulas. Sejam planos de aula, materiais didáticos, cursos, textos,
dentre outros. Além disso, Caparroz e Bracht (2007) lembram que conhecer aulas
propostas por outros professores pode subsidiar o labor criativo na preparação das
aulas, não como uma repetição, mas como ação autoral.

Então... como fazer?

Cientes e fundamentados sobre a inserção do conteúdo futebol na


escola, cabe a cada um de nós buscarmos o como fazer. Para isso, não há receitas e,
sim, a expectativa da busca de tentativas contextulizadas diante da realidade encon-
trada e com as teorias que podem dar sustentação a essa intervenção.
Porém todo mundo precisa, nas suas tentativas, da segurança de algo
que já foi realizado, da troca de informações entre os parceiros e parceiras, os quais
nos identificamos em termos de concepção educacional, política e social.
Em 2016, com a intenção de abrir o diálogo para o ensino do futebol
na escola, o Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/FMG) publicou
o livro O ensino do futebol: para além da bola rolando (SILVA; CORDEIRO; CAM-
POS, 2016). A obra, que tem por objetivo servir de apoio didático ao professor
com a temática futebol, aborda esse esporte em suas diversas nuances (história,
gênero e sexualidade, jogos eletrônicos, racismo, violência, artes, dentre outras),
além de sugerir filmes e atividades para a condução dos temas. Nesse momento,
relataremos algumas experiências realizadas em contextos diferentes, mas que, em
comum, intencionam provocar a formação e a atuação profissional para o ensino
do futebol na escola para além da bola rolando, isto é, abarcar também o saber
sobre o fazer. Para os que atuam com a formação de professoras e professores,
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 261

incentivamos a realização de projetos de extensão, nos quais, a partir da formação


de um grupo, possa haver atuações em escolas de realidades diversas, com conteú-
dos e metodologias diferenciados.
Para além dessas intervenções reflexivas e lúdicas com os estudantes,
sugerimos que os(as) discentes busquem disciplinas afeitas à temática nos diversos
cursos de graduação, promovendo a circularidade do conhecimento e a perspectiva
do trabalho interdisciplinar.
Para quem já é graduado, entendemos como fundamental a insistência
na formação continuada por meio de cursos de curta duração, pós-graduação lato
e stricto sensu ou mestrado profissionalizante, bem como a participação em eventos
acadêmicos.
Sobre atividades a serem vivenciadas, expomos aqui algumas possibi-
lidades que já foram repetidamente experimentadas em nossas ações como for-
madores que se debruçam sobre o ensino do futebol para além da bola rolando.
Primeiramente, apresentaremos uma proposta de uma unidade didática e, na sequ-
ência, algumas atividades. Ressaltamos, apenas, que essas atividades são exemplos,
visto que devem estar inseridas em uma proposta pedagógica mais ampla.

1. Unidade didática
Tema: Futebóis Número de aulas: 8 Ano escolar: a partir do 7º ano
Objetivo: Aprendizagem de aspectos técnicos do futebol; refletir acerca das consti-
tuições históricas do futebol nos clubes brasileiros; debater acerca da presença da
mulher no futebol; investigar a constituição identitária presente na formação de
alguns clubes.
Aula 1 – Preparando a turma
Divisão da turma em duas equipes mistas. Explicação sobre a forma e a constituição de avalia-
ção: elaboração de um portifólio para cada equipe que deve se apresentar como um clube de
futebol, com nome do clube, cores, líder da torcida, divisão das equipes com atletas (masculino
e feminino), ficha de atletas, técnicos (do masculino e feminino), presidente do clube, história
262 Futebol na sala de aula

de fundação do clube, desenho do escudo, desenho da mascote, hino, cantos de torcida. Essa
produção deve ocupar toda a unidade didática, sendo feita em pequenas partes a cada aula.
Para essa primeira aula, os clubes devem definir o nome do clube, suas cores e seu presidente,
que ficará responsável por guardar todo o registro que for produzido para as próximas aulas (20
minutos iniciais). Nos 30 minutos finais da aula, propor brincadeiras que propiciem o exercício
de aspectos táticos do futebol. Exemplo: bobinho, artilheiro, derrubar cone, dentre outros.

Aula 2 – Experiência e jogar


Nos primeiros dez minutos, os clubes devem se reunir para definir jogadores e técnicos das equi-
pes. Na segunda parte da aula, 20 minutos, o professor deverá propor, segundo sua avaliação da
turma, atividades de treinamento de habilidades técnicas de jogo. Nos 20 minutos finais, realizar
os primeiros jogos, entre os clubes, das equipes masculinas e femininas. Solicitar como tarefa
para casa a criação das fichas técnicas de cada jogador(a) (o professor pode criar um modelo ou
deixar livre para os alunos).

Aula 3 – Exibição do documentário “Minas do Futebol”


Não há produção para o portifólio em sala. Solicitar às equipes, como tarefa para casa, a criação
do escudo do clube.

Figura 1
Exemplos de escudos criados por turmas do primeiro ano do ensino médio

Escudo Equipe Balalaika Escudo Equipe Zodyaco

Fonte: Acervo pessoal de Luiz Gustavo Nicácio


O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 263

a Aula 4 – Texto “Omelete de Amoras”, de Walter Benjamin (1995, p. 219-220)


. Fomentar a noção de experiência, a partir do futebol entre alunas e alunos da turma. Em seguida,
, uso da estratégia metodológica “Vídeodebate”, a partir do documentário “Minas do Futebol”.
Não há produção para o portifólio em sala. Solicitar às equipes, como tarefa para casa, a criação
o do mascote do clube.

Figura 2
Exemplos de mascotes criados por turmas do primeiro ano do ensino médio

-
a
r
a
u

Mascote Equipe Balalaika Mascote Equipe Zodyaco


Fonte: Acervo pessoal de Luiz Gustavo Nicácio

Aula 5 – A partir das discussões da aula anterior, promover partidas entre meninas e meninos
buscando estratégias que minimizem as diferenças de experiência, entendida aqui como tempo
de prática ao longo da vida, quando estas forem discrepantes. Uma estratégia sugerida é que
aquelas e aqueles que possuem muita experiência fiquem limitados a jogar com o pé não domi-
nante. Os últimos dez minutos de aula devem ficar reservados a uma roda de conversa sobre a
atividade proposta. Tarefa para casa: criar o hino das equipes da turma.

Aula 6 – Uso da estratégia navegando


Ponto para a pesquisa: história da criação de clubes tradicionais no Brasil e no mundo. Tarefa para
casa: criar a história das equipes da turma, podendo ou não se inspirar nas dos clubes tradicionais.
264 Futebol na sala de aula

Aula 7 – Entrega do portifólio completo


Leitura das histórias e canto dos hinos. Debate sobre a produção realizada em aula e proposição
de um amistoso entre as equipes da turma e das diferentes salas (quando for o caso de mais de
uma turma desenvolvendo a unidade didática) para a aula seguinte.

Aula 8 – Jogos entre equipes


Com clubes constituídos, promover uma ação que mobilize a escola para essa atividade. Suge-
rimos espaçar essa aula, da aula número 7 para que os alunos possam criar bandeiras, cantos de
torcida, aprenderem o hino criado e constituir um evento significativo na escola, que posterior-
mente pode se apropriar dessa ação para outros debates.

2. História viva
Contar partes da história do futebol e do torcer por meio de brincadeiras e ativida-
des que recriem ou se aproximem de formas de se jogar futebol ou de se torcer em
épocas passadas. Utilizar imagens e vídeos.
Sugestão de vídeo: COMO foi o primeiro título da seleção brasileira, em 1919. [S.l.
: s.n.], 29 mai. 2019. 1 vídeo (32min57s). Publicado pelo canal Jornal O Globo.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xRccfvjQb8Q.

3. Futebóis: experimentar diferentes formas de jogar o futebol


Exemplos: futebol de botão, futebol de prego, totó (pebolim), brincadeiras com
futebol (pé na lata, peruzinho, paulistinha), futebol de dupla, totó humano, futebol
de cego, futebol hemiplégico, futebol nos videogames.

4. Futebol virtual/Jogos eletrônicos


Os jogos eletrônicos oferecem possibilidades para o aprendizado sobre futebol,
já que possibilitam a discussão sobre esquemas táticos, função de jogadores em
campo, regras, mercado, marketing, mídia, gênero, dentre outros aspectos.
Sugestões: Fifa Soccer, Pro Evolution Soccer; App CartolaFC, Soccer Manager –
Gestão do Futebol.
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 265

5. Roda de conversa
Convidar pessoas pertencentes ao meio futebolístico para falarem sobre as respec-
tivas realidades e vivências com o futebol.
Exemplos: árbitros e bandeirinhas, torcedores organizados, jornalistas, pesquisa-
dores da área, ex-atletas, jogadores e jogadoras de futebol, Polícia Militar, represen-
tantes de federações e outros órgãos, dentre outros.

6. Visita guiada a museus de futebol e estádios5


• Museu do Futebol/Estádio Paulo Machado de Carvalho – Pacaembu (SP)
Disponível em: https://www.museudofutebol.org.br/.

• Museu Brasileiro do Futebol/Estádio Mineirão (MG)


Disponível em: http://estadiomineirao.com.br/museu-e-visita/.

• Tour Maracanã (RJ)


Disponível em: https://www.tourmaracana.com.br/.

• Tour Arena das Dunas (RN)


Disponível em: https://arenadunas.com.br/arena-tour/.

• Arena Fonte Nova (BA)


Disponível em: https://www.itaipavaarenafontenova.com.br/tour-na-fonte/index.html.

• Tour Arena Grêmio e Museu (RS)


Disponível em: https://arenatour.superingresso.com.br/.

• Tour Visita Colorada/Estádio Beira-Rio (RS)


Disponível em: https://www.internacional.com.br/.

• Tour Arena da Amazônia (AM)


Disponível em: http://www.fvo.am.gov.br/arena-da-amazonia-2/.

• Tour Estádio Mané Garrincha (DF)


Disponível em: https://www.estadiomanegarrincha.com.br/visita-ao-estadio-nacional-mane-
garrincha/.

5 Alguns oferecem horário especial para escolas e serviço educativo.


266 Futebol na sala de aula

7. Filmes e documentários

FORA de jogo. Direção: Jafar Panahi. Irã: Sony Pictures Classics, 2006. (93 min).
Sinopse: Filme iraniano que mostra o universo das mulheres no futebol pela história de
uma garota que tem como sonho assistir a um jogo da Copa do Mundo da Alemanha e
precisa superar a proibição de seu país às mulheres frequentarem estádios.

HOOLIGANS. Direção: Alexander Lexi. EUA/Reino Unido: California Filmes,


2005. (110 min).
Sinopse: Um estudante americano de jornalismo vai morar com sua irmã e sua
família em Londres. Lá, ele conhece Pete Dunham, que o introduz em uma relação
de conflito e brigas entre torcedores de times rivais.

MINAS do Futebol. Direção: Yugo Hattori. Brasil: Alvorada Filmes, 2017. (50 min).
Sinopse: O documentário acompanha a trajetória do time de futebol feminino do A. D.
Centro Olímpico no Campeonato Moleque Travesso de equipes masculinas e o desen-
rolar na participação do primeiro Campeonato Paulista Feminino Sub-17.

O DIA em que o Brasil esteve aqui. Direção: Caíto Ortiz e João Dornelas. Brasil:
Prodigo Films, 2005. (70 min).
Sinopse: Conta a história do Jogo da Paz, um amistoso realizado em 2004 entre
a Seleção Brasileira de Futebol, Campeã do Mundo em 2002, e a Seleção Haitiana
de Futebol.

PRETO contra branco. Direção: Wagner Morales. São Paulo: Cultura Marcas, 2004.
(55 min).
Sinopse: Uma tradição de três décadas é o ponto de partida do documentário. O filme
discute o preconceito racial no Brasil, usando como referência um “clássico” do fute-
bol de várzea entre moradores de dois bairros periféricos de São Paulo.

8. Júri simulado
O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando 267

9. Futquiz
Jogo de perguntas e respostas relacionadas aos temas estudados.

10. Jornal falado

11. Sites

ALMANAQUE DO FERRÃO. Disponível em: https://almanaquedoferrao.net/.


(Complemento das pesquisas que renderam livro sobre os 80 anos do Ferroviário;
dar atenção a um clube do Nordeste, Ceará).

BRASIL. Ministério da Educação. Portal do professor. Disponível em: http://portal-


doprofessor.mec.gov.br/index.html.

FUTBOX. Disponível em: https://www.futbox.com/pt. (Registros históricos a par-


tir de artes visuais).

GRUPO DE ESTUDOS SOBRE FUTEBOL E TORCIDAS. Disponível em: www.


gefut.com.br. (GEFuT da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupa-
cional da UFMG).

LUDOPÉDIO. Disponível em: https://www.ludopedio.com.br/.

PLANETA FUTEBOL FEMININO. Disponível em: https://planetafutebolfemi-


nino.com.br/. (Site focado no futebol feminino).

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Matemática – Probabilidades


no Futebol. Disponível em: http://www.mat.ufmg.br/futebol/matematica/. (Fute-
bol e estatística)

12. Livros

CORNELSEN, Elcio L.; SILVA, Silvio R. da; CAMPOS, Priscila A. F. (orgs.). Fute-
bol, linguagem artes, cultura e lazer 2: produção acadêmica sobre futebol - análises
e perspectivas. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2017.
268 Futebol na sala de aula

DAOLIO, Jocimar. Futebol, Cultura e Sociedade. Campinas: Autores Associados,


2005.

FRANCO JUNIOR, Hilário. A Dança dos Deuses: futebol, sociedade e cultura. São
Paulo: Cia. das Letras, 2007.

TOLEDO, Luiz H. Lógicas do Futebol. São Paulo, Hucitec, 2002.

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2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cur-
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ciatura) e para a formação continuada. Brasília, 2015. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/
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bol: para além da bola rolando, v. 1. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2016.
SOBRE AS ORGANIZADORAS/AUTORAS

Lívia Gonçalves Magalhães. É professora adjunta de História do Brasil República do Depar-


tamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Graduada em História, mestre em Estudios Latinoamericanos e doutora em
História. É pós-doutora em História pela Unimontes-MG (Bolsista Capes 2014-2016) e pela
Universidade de Paris-Est Marne-la-Vallée (Bolsista Capes – dez. 2017/mar. 2018). Foi pesqui-
sadora temporária do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, responsável pelo projeto
“Diplomacia do Esporte” (jan./jul. 2013). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos
(NEC), Brasil Republicano (BR-PHCP), Laboratório de Estudos de Gêneros e Subjetividades
(LEGES) e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (Nepess), todos da UFF.
Publicou/organizou as seguintes obras: Histórias do futebol (primeiro volume da Coleção Ensino
e Memória, Apesp, 2010); Com a taça nas mãos (Faperj; Lamparina, 2014); Lugar de mulher –
Feminismo e política no Brasil (organizadora, Oficina Raquel, 2017); Violência política no século
XX (organizadora, Faperj; EdUPE, 2019) .

Rosana da Câmara Teixeira. Professora associada da Faculdade de Educação da Universidade


Federal Fluminense. Pesquisadora do Laboratório de Educação e Patrimônio Cultural (Laboep
-UFF) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (Nepess-UFF). Bacharel
e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em Sociologia
e Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
(PPGSA-UFRJ). Pós-doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional (PPGAS-UFRJ).
Publicou/organizou as seguintes obras: Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas
(Annablume, 2004), Krig-Ha Bandolo! Cuidado aí vem Raul Seixas (Faperj; 7Letras, 2008); Raul
Seixas: Estudos interdisciplinares (Carlini & Caniato; EdUFMT, 2015) com Juliana Abonízio; A
voz da arquibancada. Narrativas de lideranças da Federação de Torcidas Organizadas do Rio de
Janeiro (7Letras, 2015) com Bernardo Buarque de Hollanda e Jimmy Medeiros.
HOMENAGEADOS

Gilmar Mascarenhas. Doutor em Geografia (Geografia Humana) e professor associado na Uni-


versidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Programa de Pós-Graduação em Geografia
(PPGEO-Uerj). Bolsista de Produtividade CNPq 2, foi líder e mentor do Grupo de Pesquisa
Megaeventos Esportivos e Cidades.

Simoni Lahud Guedes. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Antro-


pologia da Universidade Federal Fluminense. Mestre (1977) e doutora (1992) em Antropologia
Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq, nível 1
B. Membro do INCT-Ineac-UFF e do Nepess-UFF.
AUTORES e autoras CONVIDADOS/as

Adriano de Freixo. Doutor em História Social pela UFRJ. Professor do Departamento de Estu-
dos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade
Federal Fluminense (Inest-UFF), onde atua nos Programas de Pós-Graduação em Estudos
Estratégicos (PPGEST) e Ciência Política (PPGCP). Publicou como autor e/ou organizador,
dentre outros, Futebol: o outro lado do jogo (Desatino, 2014), Manifestações no Brasil: as ruas em
disputa (Oficina Raquel, 2016) e 2016: o ano do golpe (Oficina Raquel, 2016).

Bernardo Buarque de Hollanda. Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio


Vargas (FGV-CPDOC) e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Pós-doutor pela Uni-
versity of Birmingham (2018) e pela Maison des Sciences de L’Homme (2009). Autor de livros
e organizador de coletâneas sobre história social do futebol, com especial interesse no tema das
torcidas organizadas. Pesquisa também vida literária e história intelectual no Brasil.

Felipe Tavares Paes Lopes. Graduado em Comunicação Social (ESPM) e Filosofia (USP). Mestre
e doutor em Psicologia Social (PUC-SP e USP, respectivamente), realizou pesquisas de pós-dou-
torado na FEF-Unicamp, no CPDOC-FGV e na Universidade Autônoma de Barcelona. Atu-
almente, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e
desenvolve pesquisa sobre ativismo no futebol, com auxílio da Fapesp.

Fernando Seffner. Professor do PPGEdu-UFRGS, na linha de pesquisa Educação, Sexualidade


e Relações de Gênero. Sua ênfase temática é a pesquisa dos modos de produção, manutenção e
modificação das masculinidades. Atualmente, é coordenador do Grupo de Estudos de Educação
e Relações de Gênero (Geerge) e do GT 23 - Gênero, Sexualidade e Educação da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped).
276 Futebol na sala de aula

Gustavo Andrada Bandeira. Doutor e mestre em Educação (PPGEdu-UFRGS). Especialista


em Jornalismo Esportivo (PPGCom-UFRGS). Técnico em Assuntos Educacionais na Escola
de Administração/UFRGS. A partir do conceito de currículo de masculinidades e do torcer,
tem trabalhado sobre machismo, heterossexismo, racismo, emoções e elitização nos estádios
de futebol.

José Ronaldo Mendonça Fassheber. Antropólogo filiado à Associação Brasileira de Antropo-


logia, educador físico e docente do colegiado de História na Universidade Estadual do Paraná
(Unespar), Campus Paranaguá. Membro do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Ra-
ciais do Centro de Educação dos Direitos Humanos da Unespar (Nera-CEDH). Trabalha com
história e etnologia indígena, história e antropologia do corpo e da saúde, movimentos sociais e
ambientais, jogos tradicionais e etnodesporto.

Leda Maria da Costa. Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social da Universidade


do Estado do Rio de Janeiro. Professora do curso de Jornalismo da Unicarioca. Pesquisadora do
Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Leme) do Programa de Pós-Graduação em Comu-
nicação-Uerj e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (Nepess-UFF).

Luiz Gustavo Nicácio. Mestre e doutorando em Estudos do Lazer (Universidade Federal de


Minas Gerais / UFMG), professor do Colégio Técnico (Coltec) da UFMG. Membro do Grupo
de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), do Coletivo Pensando a Educação Física Escolar
e co-líder do Caparaó (UFMG) – grupo de estudos sobre natureza.

Luiza Aguiar dos Anjos. Professora Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG) – campus Timóteo. Graduada em Educação Física, é especialista e mestre em
Estudos do Lazer, todos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Ciên-
cias do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Inte-
gra o Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT-UFMG), o Grupo de Estudos sobre
Esporte, Cultura e Corpo (Grecco-UFRGS) e o Pensando a Educação Física Escolar (IFMG).
Suas pesquisas tematizam o gênero e a sexualidade em contextos esportivos, em especial no
futebol e nas torcidas.

Marcel Diego Tonini. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador
do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens-USP).
Autores convidados 277

Marcelino Rodrigues da Silva. Professor da Faculdade de Letras da UFMG, atuando na área de


Teoria de Literatura e Literatura Comparada. Graduado em Letras, é mestre em Teoria da Litera-
tura e doutor em Literatura Comparada pela UFMG. Tem desenvolvido pesquisas sobre a cultura
esportiva brasileira nas suas relações com o campo artístico e literário. Publicou os livros Mil e
uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho (Editora UFMG, 2006) e Quem desloca
tem preferência: ensaios sobre futebol, jornalismo e literatura (Relicário, 2014).

Priscila Augusta Ferreira Campos. Doutora em Educação Física pela Unicamp, é professora
da Escola de Educação Física da Universidade Federal de Ouro Preto e membro do Grupo de
Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Renato Soares Coutinho. Professor Adjunto de História do Brasil Republicano no Instituto de


História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Brasil Republicano – Pesquisadores em História Cultural
e Política” (BR-PHCP). Foi editor da Revista Tempo/UFF (2019-2021). Doutor em História
Social pela Universidade Federal Fluminense (2013); mestre em Ciência Política pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul (2008); Atua principalmente nos seguintes temas: História
do Brasil Republicano; Governos Vargas; História do Futebol Brasileiro; Identidade Nacional;
Cultura Política.

Rolf Malungo de Souza. Antropólogo, é professor adjunto do Infes-UFF. Assessor da Assessoria


de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (AFiDE-UFF). Coordenador do Núcleo de Estu-
dos e Pesquisas Saberes, Conflitos e Territórios (Necter). Pesquisador do INCT-InEAC – Insti-
tuto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos-UFF.

Sérgio Settani Giglio. Docente da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Educação


Física da Universidade Estadual de Campinas. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Esporte e Humanidades (Gepeh) e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre
Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens-USP).

Silvio Ricardo da Silva. Professor titular da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia
Ocupacional da UFMG e coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).
Formato: 16 x 23cm
Tipologia: Adobe Devaganari, 11 pt/19,4 pt
Papel: Pólen Soft 80g/m2 (miolo) / Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Número de páginas: 277

Impresso e acabado na Gráfica e Editora Aliança, Rua Palmeiras, n. 39, quadra 10,
lote 8, sala 01, Campestre de Goiás, GO, Brasil, 75385-000, em outubro de 2021.

O papel usado neste livro é produto de árvores


originárias de manejo florestal certificado.

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