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Caravelle

O futebol no Brasil: reflexões sociológicas


Mauricio Murad

Citer ce document / Cite this document :

Murad Mauricio. O futebol no Brasil: reflexões sociológicas. In: Caravelle, n°89, 2007. pp. 109-128;

doi : 10.3406/carav.2007.3162

http://www.persee.fr/doc/carav_1147-6753_2007_num_89_1_3162

Document généré le 01/06/2016


C.M.H.L.B. Caravelle
n° 89, p. 109-128, Toulouse, 2007

O futebol no Brasil: reflexões sociológicas


PAR

Mauricio MURAD
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

I) Prólogo
O objetivo do presente trabalho é fazer uma reflexão em torno de
algumas questões históricas e sociológicas, que possam ajudar à
comprensão do futebol, como importante fenômeno da cultura
brasileira. É evidente que não temos a pretensão de esgotar todas as
análises sobre essa problemática. O futebol é um dos maiores eventos da
cultura da massa (e não somente de massa) no Brasil, mobiliza paixões
coletivas, expressa os fundamentos antropológica de nossa formação e
representa o nosso sistema simbólico, como poucos acontecimentos da
estrutura social.
Por isso, não se pode dar conta de toda a importância do futebol para
o Brasil, num só texto. Vamos, então, tentar expor um quadro de
reflexões, sobre alguns elementos, que julgamos relevantes, para o
entendimento do futebol brasileiro. Muitas das informações, aqui
relatadas, têm a finalidade de esclarecer o leitor estrangeiro, podendo
parecer óbvias, para aqueles mais familiarizados com o tema.
O futebol é o mais significativo fenômeno da «cultura das multidões»
no Brasil, estimulando corações e mentes, em regiões diversas, em
classes sociais distintas, em diferentes faixas etárias, níveis de
escolaridade e relações de gênero. Mais até do que o carnaval (de imensa
importância para uma análise do Brasil), o futebol se espalha por todo o
país e se manisfesta o ano inteiro. Costuma-se dizer, que o «reinado do
Rei Momo» dura 4 dias e que o «reinado do Rei Pelé» dura o ano todo. O
Núcleo de Sociologia do Futebol, da Universidade do Estado do Rio de
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Janeiro, realizou uma pesquisa junto a todas as cidades brasileiras, de


pequeno, médio e grande porte, para contabilizar os espaços públicos
existentes no país e efetivamente utilizados pela população. Resultado: os
«campinhos» de futebol são os espaços mais constantes na geografia
social brasileira, até mesmo mais do que os templos religiosos e de
qualquer seita.
Neles, as comunidades se encontram, se organizam, celebram suas
festividades, valorizam a cultura local e contribuem para a inclusão
social, principalmente de crianças e adolescentes. Através do futebol,
tentam muitas vezes recuperar o valor da escola e do trabalho, fatores
indispensáveis para uma sociedade com o mínimo de justiça e de
dignidade. As «escolinhas» só permitem a prática do futebol, para aqueles
jovens que comprovarem vínculos ou com a escola ou com o trabalho,
mostrando o boletim escolar e a carteira profissional.
Os esportes coletivos em geral e o futebol em particular, por ser
considerado o mais popular e democrático dentre todas as modalidades,
tem uma importância sociológica que vai além do «jogo em si». Do
ponto de vista da História e da Sociologia, o que mais importa no
futebol é a sua possibilidade pedagógica, de inclusão e de cidadania.
Como é evidente, o futebol nem sempre é aproveitado em suas máximas
possibilidades. Contudo, onde se tentou fazer da prática do futebol, um
«exercício de cidadania», os resultados foram bem sucedidos. Essas
experiências estão espalhadas por quase todos os países do mundo, sob
o apoio da ONU, da FIFA, do COI e da Comunidade Européia1.
O futebol pode ser um processo lúdico que ajuda a reeducar, uma vez
que sua lógica desportiva está fundamentada na igualdade de
oportunidades, no respeito às diferenças e na assimilação de regras e
normas de convivência com o outro. O futebol em particular – outros
esportes coletivos, também – permite uma fina sintonia entre os planos
individual e grupal. Realiza a prática de um dos ideais fundadores da
democracia, daquilo que os gregos clássicos (os atenienses) consideravam
que era o melhor e o mais produtivo das atividades humanas: a ação

1 Para uma consulta mais ampla de experiências bem sucedidas, no âmbito da pedagogia
esportiva, consultar Murad (2004). Uma grande listagem de experimentos é apresentada e
como parte dos fundamentos teórico-metodológicos da tese de doutorado defendida, em
03 de fevereiro de 2004, na Faculdade de Desporto, da Universidade do Porto/Portugal.
O modelo de tese inédito na época elaborado pelo autor, sob a orientação do Professor
Catedrático Rui Proença Garcia, do Gabinete de Sociologia, da Fade/UP e co-orientação
da Professora Catedrática Maria Jose Mosquera, do INEF, de La Coruña/Espanha,
cruzou os dados de dois levantamentos que foram feitos, no transcorrer dos trabalhos. O
primeiro, das práticas de violência na história da humanidade e dos estudos sobre a
violência feitos pelo saber humano através da Mitologia, da Filosofia, das Ciências e das
Artes. O outro, sobre as inúmeras experiências que utilizam os esportes (especialmente o
futebol), como instituições educacionais e contrapontos (atenuantes) a realidades sociais
violentas.
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deve ser sempre coletiva, mas sem excluir o brilho da iniciativa pessoal.
E isto é um valor que o futebol procura dentro e fora dos campos.
Dentro, pela estrutura e dinâmica próprias do jogo. Fora, no
estabelecimento dos laços de inserção e no sentimento de pertença a
uma coletividade. A identidade individual é ritualisticamente socializada
na liturgia antropológica do futebol, sem se eliminar, contudo, a delicada
e necessária idiossincrasia. Um bom e didático exemplo é a equação a
seguir: EU = individualidade SOU = identidade EQUIPE = coletividade
Por um ângulo sociológico, o futebol possibilita a vivência concreta
das categorias de totalidade e de interação, entre o indivíduo e seus
contextos, suas mediações e intercâmbios. Por um ângulo psicológico,
também, possibilita o mesmo e necessário exercício da vivência concreta
entre o racional e o emocional, bem como de suas mediações e
intercâmbios. E igualmente por um ângulo ontológico, o futebol permite
a mesma e necessária experimentação global e dinâmica, entre o real e o
simbólico.
Na estratégia de juntar esporte e socialização, nesta cidade-símbolo
do Brasil, que é o Rio de Janeiro, a mais importante das experiências
recentes é a Vila Olímpica da Mangueira, que serve de modelo para
centenas de experimentos semelhantes na cidade e no Brasil.
Desenvolvendo trabalhos comunitários, através de diversas modalidades
esportivas, concentra seus esforços principalmente no futebol, a
modalidade mais popular, motivadora e atraente. Nos dias de hoje há
alguns milhares de pequenos, médios e grandes projetos no campo da
Pedagogia Desportiva, em todos os estados brasileiros, que têm a Vila
Olímpica da Mangueira como referência. Esta, embora não tenha sido
uma idéia totalmente original, teve o mérito de integrar atividade
esportiva e cultura local, valorizando-a e dando-lhe uma dimensão
sociológica mais abrangente.
Considerado pela ONU o projeto social mais importante do mundo,
em 2001, a Vila Olímpica iniciou seus trabalhos em 1986. A emblemática
Escola de Samba resgatou a idéia do desporto pedagógico comunitário,
cujas origens remontam às primeiras décadas do século XX, com as
ações pioneiras do sociólogo e educador Fernando de Azevedo, no Rio
de Janeiro e em São Paulo. Desta maneira, várias modalidades,
especialmente o futebol, recuperaram jovens do morro, há muito tempo
expostos à marginalidade do tráfico de drogas e da violência, que toma
conta das áreas pobres do Rio de Janeiro e da grande maioria das cidades
brasileiras.
Isto fez cair a zero o envolvimento dos adolescentes da Mangueira
com o chamado «crime organizado», de acordo com as estatísticas do
Juizado de Menores, a ponto dos traficantes terem que recrutar jovens
em outras favelas da cidade. Claro está que isto não resolveu a enorme
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problemática sócio-econômica do local, mas foi e ainda é um meio de


denunciá-la, um contraponto «civilizatório» à situação de barbárie, que
domina as favelas cariocas e suas áreas adjacentes.
Outros «morros» do Rio de Janeiro, a partir de 1990, seguiram o
exemplo da Mangueira, como Salgueiro, Borel e Casa Branca, no bairro
da Tijuca, Vidigal e Rocinha, na Zona Sul da cidade, Complexo do
Alemão, no subúrbio carioca, Cantagalo, em Copacabana, este com
significativo trabalho na área da dança, com o projeto «Dançar para não
dançar», nome revelador dos sentidos da iniciativa. Esses programas
envolveram muitos ex-atletas, alguns de grande prestígio, como Jair Rosa
Pinto (craque do selecionado de 1950), no Morro do Salgueiro, lugar de
tradição também no samba, por causa da Escola de Samba Acadêmicos
do Salgueiro.
Dança clássica e popular, música, rap, hip-hop, teatro, poesia, artes
plásticas, fotografia e até cinema são formas de expressão artística que
complementam muitos desses eventos sócio-esportivos. Das várias
modalidades de esporte oferecidas nesses projetos – atletismo, box, judô,
capoeira, natação, ginástica olímpica, basquete, vôlei – o destaque
indiscutível é o futebol, o que acompanha a tendência dominante não só
no Brasil, como no mundo, segundo as estatísticas da ONU, do COI e
da FIFA. Desta maneira, o esporte e a arte aproximam da sociedade
aqueles que a economia e a política separam e excluem e por isso podem
atuar como «laboratórios» de experimentação para novas (e superiores)
formas de convivência e cidadania.
No caso brasileiro, a importância do futebol alcançou um patamar
incomparável, devido à inserção de sua história social, na história geral
do país. A história do futebol brasileiro é um capítulo da história de
nossas lutas sociais, pela democratização e pela inclusão social. É
capítulo da resistência à exclusão e às ideologias discriminatórias, que
dominam as nossas classes e grupos dirigentes, desde o ingresso do país
na lógica da dominação mercantil e colonial, no início do século XVI,
primórdios da «era moderna» e do capitalismo. Portanto, é no interior de
nossa história e de nossa sociedade, de nossas contradições e de nossos
embates, que o futebol dever ser compreendido. O processo tenso, de
elitização/exclusão versus democratização/inclusão, que é marca de nossa
realidade, esteve presente, também, no futebol desde os primeiros
tempos. A luta pela inclusão de negros e pobres, por exemplo, não foi
fácil e é uma etapa que ajuda a revelar as nossas origens estruturais e
históricas. As elites brasileiras se esforçaram para manter sua
exclusividade no futebol «punhos de renda», lazer de amadores, desde
seu início oficial (!), em 1894. Grupos sociais médios e proletários foram
incorporando o futebol como diversão e valor cultural, elemento de seus
hábitos cotidianos e de suas identidades.
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É somente a partir das décadas de 1920/30, que começou a ganhar


mais força no futebol brasileiro uma nova cultura, diferente da tradição
elitista e racista dominante. Estava nascendo um futebol mais
identificado com as nossas raízes, cujo estilo iria encantar o mundo e ser
o primeiro em resultados internacionais. Este movimento no futebol
estava em sintonia com a conjuntura política e cultural, marcada por
projetos que, direta ou indiretamente, tentavam medidas de inclusão
social, como o Tenentismo, o Modernismo e o Comunismo, de 1922, a
Revolução de 30, o Manifesto da Escola Nova, de 32 e a Constituição de
34. E isto na etapa final e de transição de nossa chamada «República
Velha» (1889-1930).
No Rio de Janeiro, capital do país desde 1763, os grandes clubes,
como Fluminense, Botafogo e Flamengo mantiveram o futebol, mas sem
abrir mão da ideologia de cor e classe, esta que pode ser considerada a
primeira forma de violência, no futebol brasileiro. Isto foi geral e não
regional: São Paulo, Grêmio, Coritiba, Cruzeiro, Náutico, Remo e outros
mais demonstram que a situação era nacional. «Naquela época, nem o
Pelé jogaria nos clubes ricos», declarou, em depoimento ao Núcleo de
Sociologia do Futebol da UERJ, o craque Domingos da Guia (1912-
2000). «Eu vi Fla-Flu (Flamengo x Fluminense, um dos mais importantes
clássicos do futebol brasileiro – esclarecimento do autor) sem nenhum
preto em campo». Clubes tradicionais da época, como o Paissandu
(ligado à Light, companhia canadense de luz do Rio de Janeiro) e na
cidade de Niterói, o Rio Cricket («clube dos ingleses»), junto com o
Paulistano («clube dos Jardins», dos «paulistas de 400 anos», em São
Paulo) ou o Baiano, em Salvador/Bahia, são exemplos dos que fecharam
as portas ao futebol, em protesto contra sua popularização e
democratização. Uma verdadeira e universal democratização das
instituições sociais no Brasil, ainda é um projeto político a ser alcançado,
em seus resultados plenos.

II) Um pouco de história e de análise sociológica


A formação social brasileira foi marcada pelo colonialismo, pelo
escravismo, pela exclusão social e por suas resultantes econômicas,
culturais e simbólicas. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e
convém dizer que a Lei Áurea de 13 de maio de 18882, assinada pela

2 Este diploma jurídico sugere uma firmeza política, não desprezível para a complexa e
conflituosa conjuntura em questão: final do século XIX, desagregação do Império
(1822/1889) e implantação da República (Proclamação, em 1889, e Primeira
Constituição, em 1891). Contém apenas dois artigos e um parágrafo único: no primeiro
declara abolida a escravidão no Brasil e no último revoga quaisquer disposições em
contrário.
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Princesa Isabel, embora importante, representa tão somente uma


liquidação formal do regime de trabalho escravo. Em mais de um século
de vigência da Lei, não houve políticas concretas de incorporação real do
negro e seus descendentes (maioria da população), à sociedade brasileira,
nem mesmo ao mercado de trabalho ou ao acesso igualitário às
diferentes instituições sociais.
Em 506 anos de «história oficial», o Brasil viveu mais de 350 anos de
relações escravistas, o que resultou numa estrutura social diferenciada,
concentradora, estereotipada e excludente, com elevados índices de
pobreza, miséria e violência. Abaixo, alguns (apenas alguns) dos números
mais recentes da desigualdade e da violência no Brasil3.
* Enquanto 50,84% dos brasileiros mais pobres detêm 14% do
conjunto da renda nacional, apenas 1% dos mais ricos controla
13,8%, parcela equivalente à outra;
* 33% da população brasileira, 55 milhões de pessoas, vivem abaixo
da chamada «linha da pobreza»;
* Desta massa de excluídos, 63% são negros e 37% são brancos;
* Dentre os 10% mais ricos no país, 85% são brancos e 15% negros e
pardos. Já dos 10% mais pobres, 30% são brancos e 70% são negros
e pardos;
* Cerca de 1% da população brasileira, 1 milhão e 700 mil pessoas,
detêm uma renda semelhante àquela auferida por 85 milhões, ou seja,
um pouco mais de 50% do total;
* O Brasil ocupa o 69º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano
da ONU;
* 15% dos brasileiros são portadores de algum tipo de deficiência
− física, mental ou ambas − e somente 3% são atendidos por
programas governamentais;
* É o quarto país mais violento do mundo, no ranking oficial das
Nações Unidas;

«A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e


remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que
corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as
relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda
comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria
privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a
deplora, como se esta fosse uma conduta natural. (...) a dilaceração desse
mesmo povo por uma estratificação classista, de nítido colorido racial e

3 São oficiais e suas fontes de consulta, além da ONU, são os órgãos governamentais:
IBGE − Indicadores Sociais; IPEA (Ministério do Planejamento): Desenvolvimento
Humano e Condições de Vida: Indicadores Brasileiros e FGV (Centro de Políticas
Sociais): Mapa do Fim da Fome.
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do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber» (Ribeiro,


1999: 24).
Assim, como resultado desse processo histórico, as «camadas
populares» no Brasil, pobres, negras e mestiças, estão a uma imensa
distância social dos setores hegemônicos da economia, da política e da
cultura institucionalizada. No Brasil, a chamada «Questão Social» ainda é
muito grave e a superação de nossos problemas mais agudos é adiada
com preocupante freqüência, pelos diferentes governos. A corrupção, a
impunidade, os desmandos políticos, as violências e os privilégios,
constantes estruturais de nossa formação, ainda estão muito presentes no
cotidiano brasileiro e em muitos casos têm se agravado nos últimos anos.
Em verdade, a opressão é um dado fundador e definidor do Brasil.
Contudo, o contraponto da opressão foi, desde sempre, uma resistência
de tipo emancipatória, poder-se-ia dizer, a qual teve sua emergência já no
século XVI, nos Quilombos, aldeias de luta dos negros escravos. «Muitas
vezes conscientes da necessidade de organização e luta, outras nem
tanto, apenas com um, digamos, ‘instinto político’ aguçado pela violência
daquele regime de trabalho, a verdade é que os negros e os pobres
sempre resistiram, diretamente, através de seus combates e conflitos,
indiretamente, por via de suas culturas» (Carneiro, 1968: 71).
Havia, então, de um lado, a estrutura dominante, com suas formas de
produção e sistemas de poder, fundados nos valores da monocultura
escravista, latifundiária, monopolista e exportadora; de outro, em
paralelo ou em oposição com as instâncias de poder, esses setores
«populares» produzindo no seu cotidiano laboral e pós-laboral, inúmeras
modalidades alternativas de expressão e afirmação sociais. Para um
entendimento mais amplo dessa dimensão de nossa história, torna-se
necessário investigar a representação social impressa no corpo do negro
– especialmente –, antes dele do brasilíndio e em todos os grupos de
seus descendentes, pobres e mestiços, de ontem e de hoje.
O corpo, concebido como espaço simbólico, unidade semiológica e
lugar privilegiado da síntese entre dois elementos paradoxais da vida
brasileira: a exclusão e a inclusão. O corpo como a fonte de criação e
lugar de preservação de rituais de permanência e transmissão da cultura
original, por meio de danças, jogos, religiosidades. O mesmo corpo
«torturado» pelos regimes escravistas e semi-escravistas de trabalho,
dominantes em grande escala na história do Brasil, foi também a
ferramenta «natural» de combate nos conflitos de resistência, violentos
por vezes. Aqui, o destaque mágico foi a capoeira, o «jogo de mãos e pés
para a libertação da alma negra», inscrição, esta, contida no ancestral
aprendizado do capoeira, do lutador, do praticante da roda, lição de
origem desconhecida, quilombola com certeza.
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Observemos um instigante antagonismo. Em Cultura e Opulência do


Brasil, um dos clássicos da historiografia colonial brasileira, Antonil
(1967), em relação ao negro, disse como síntese da vida na colônia que
«os escravos são as mãos e os pés dos senhores de engenho». Então: mãos e pés,
fronteiras do corpo, elementos constitutivos da repressão escravista e do
fluxo desejante da emancipação. Uma espécie de phármakon, conforme o
conceito trabalhado por Jacques Derrida, inspirado em Platão, onde
«veneno» e «remédio» se instalam na mesma presença semiológica.
Uma semiologia política, sem dúvida4. O corpo humano é concebido
socialmente e sua análise como representação oferece uma chave
compreensiva a uma sociedade particular (Mauss, 1979; Le Breton,
1990). Como resultante desse processo histórico, a nossa assim
designada «cultura popular» ou como prefiro «cultura das multidões»
(Murad, 1996) é rica em criações corporais artísticas, lúdicas e rituais, que
se constituem em indicadores das realidades acima referidas e metáforas
da vida brasileira. Essas metáforas, para além de sínteses e expressões da
coletividade, operam como verdadeiros instrumentos metodológicos,
para a investigação antropológica e sociológica. A música popular, o
teatro de cordel, as danças, a capoeira5, o carnaval, a religiosidade e o
futebol podem ser apontados como densas exemplificações.

III) O Futebol no Brasil


Após a declaração formal de nossa Independência, em 7 de setembro
de 1822, e da I Constituição, denominada da Independência ou do
Império, em 25 de março de 1824, a questão do desporto começou a
tomar vulto no Brasil. Durante o Período Monárquico – 1822 a 1889 –,
inúmeros trabalhos científicos tematizaram a prática esportiva (chamada
sempre desportiva, nesta altura, por forte influência portuguesa),
investigaram sua importância para a saúde física e mental, bem como
sublinharam a necessidade da educação física, enquanto experiência
pedagógica.
E não somente nas escolas militares, como era costume, mas para
todo o sistema regular de ensino. É bem verdade que naquele momento
histórico, as pesquisas estavam concentradas na área médica, através da
faculdade de medicina da capital, nesta época chamada de Colégio do
Rio de Janeiro. Rui Barbosa (1849/1923), expoente da vida pública

4 «A Farmácia de Platão», 1991, edição em português da Iluminuras, é considerado um


dos textos mais importantes de Derrida, cuja publicação original data de 1972, como
parte do livro La Dissémination.
5 «A melhor feição do futebol brasileiro, por lhe ser peculiar, parece constituir sucedâneo
do jogo da capoeira (...)» (Lyra Filho, 1973: 59).
FUTEBOL NO BRASIL 117

brasileira, política, intelectual e jurídica, autor do nosso primeiro Código


Civil (1916), junto com Clóvis Bevilaquia, foi um dos primeiros
pensadores a sinalizar o valor dos esportes entre nós. Em 1881, a aula de
ginástica passa a fazer parte do ensino fundamental no Brasil, por
projeto dele. É de Rui Barbosa, também, o parecer ao Projeto sobre a
Reforma do Ensino Primário e da Instrução Pública, de 1882, que
preconiza a Educação Física para ambos os sexos, já que antes era um
direito oferecido somente aos homens.
«Rui era um entusiasta dos desportos e de seu carácter educacional.
Considerava-os como o lugar da prevalência do mérito e dos ideais de
igualdade, na medida em que as condições igualitárias, ponto de partida
de suas práticas, eram altamente estimuladoras de uma fraternidade ética.
Para ele, os jovens precisavam dos desportos, para que no futuro se
tornassem adultos melhores»6.
O footballl association foi regulamentado e formatado na Inglaterra, a
partir de 1863, no contexto da Revolução Industrial, do Imperialismo
Britânico, da Era Vitoriana e da afirmação do Capitalismo. Deixou as
ruas e os folguedos de carnaval, abdicando de suas raízes do mob football
e, deste modo, nasceu como esporte de gentlemen, com os nobres e seus
filhos que frequentavam as public schools da conservadoríssima Inglaterra
da época. A reunião realizada em Cambridge, em 1848, e a fundação em
Londres da Football Association, em 26 de outubro de 1863, a partir da
histórica reunião na Old Freemanson’s Tavern, na Great Queen Street, foram
momentos decisivos para a construção do futebol atual.
À altura, no Rio de Janeiro7, marinheiros ingleses jogaram futebol,
mas foram eventos pontuais, sem fixação de raízes, divertimento de
tripulantes à espera da liberação dos navios. Há registros históricos, mais
ou menos consistentes, dessas «peladas imperialistas», em 1864, 1874 e
1878. «Esta última parece ter sido disputada em frente à casa da Princesa
Isabel, na Praia da Glória, a qual teria assistido e torcido com
entusiasmo, amante que era dos esportes, especialmente dos colectivos e
viris» (Mazzoni, 1950: 47). Respeitado historiador do futebol brasileiro,
particularmente das primeiras décadas, Thomaz Mazzoni escreve e

6 Depoimento de Francisco de Assis Barbosa, Historiador e Presidente da Casa de Rui


Barbosa, no Rio de Janeiro. Fonte: Núcleo de Sociologia do Futebol, DPCIS/IFCH,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1992.
7 No final do século XIX, o Rio de Janeiro, uma cidade desportiva, transformou-se na
primeira metrópole brasileira, ditando para todo o país modas, comportamentos e formas
de viver (Melo, 2001). Separada da Província do Rio de Janeiro e transformada em
Município Neutro, pelo Ato Adicional de 1834, a cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro foi fundada em 1º de março de 1565 por Estácio de Sá e a partir de 1763 tornou-
se capital do Brasil, medida da administração do Marquês de Pombal. Em 21 de abril de
1960 perdeu o status de capital para Brasília.
118 C.M.H.L.B. Caravelle

documenta amplamente seu livro e faz dele um clássico indispensável


para os estudiosos.

IV) O Pontapé Inicial


O futebol foi introduzido oficialmente no Brasil em 1894, em São
Paulo, por Charles William Miller, 6 anos após a Lei Áurea e 5 após a
Proclamação da República (15 de novembro de 1889, pelo Marechal
Manuel Deodoro da Fonseca), contexto de intensos fluxos imigratórios8,
acentuados pela abolição do regime de trabalho escravista e a transição
para as relações assalariadas. Mais especificamente, ainda, em São Paulo e
no Rio de Janeiro, «os dois principais centros urbanos brasileiros,
protagonistas políticos da implantação da modernidade em nosso país»
(Murad, 1999 a: 26).
Descendente de família britânica, Miller nasceu em 24 de novembro
de 1874, na Freguesia do Brás, capital paulista. Aos 9 anos foi estudar na
Inglaterra (no Banister Court School, em Southampton), como era habitual
naqueles tempos para os jovens de famílias abastadas. Excelente jogador,
habilidoso no trato da bola e artilheiro implacável. Em 25 partidas
oficiais de seu colégio marcou 41 gols, uma admirável média de 1,64 gol
por jogo. Foi convocado entre os melhores atletas para jogar no time do
Southampton, uma espécie de selecionado regional. «Chegou a disputar
uma partida, na qual teve brilhante atuação, contra a famosa equipe do
Corinthian, que, anos mais tarde, inspirou a criação do Corinthians
paulista» (Mazzoni, op. cit.: 62), a segunda maior torcida do Brasil, atrás
somente do Flamengo.
Ao voltar para o Brasil, 10 anos depois, em 1894, Charles Miller
trouxe em sua bagagem 2 bolas de futebol, 2 uniformes, 1 livro de regras,
1 par de chuteiras, 1 bomba de ar e 1 agulha. As bolas pioneiras que
chegaram ao país eram inglesas e da marca Shoot, aquelas com cadarço
para fechar a passagem aberta na costura entre os gomos de couro, por
onde era introduzida uma câmara de ar e que machucava um pouco os
jogadores na hora do cabeceio. Também rolaram no Brasil as bolas
alemãs da marca Fussball, trazidas por Hans Nobiling, outro pioneiro que
jogou na equipe do Germânia, na Alemanha, além de ter incentivado a
prática do futebol no estado de São Paulo.

8 Ver «O Futebol no Brasil» (Rosenfeld, 1973), texto paradigmático de nossa Sociologia


do Futebol. Em 1993 foi republicado como parte do livro Negro, macumba e futebol, escritos
de Anatol Rosenfeld, Editoras Perspectiva/Edusp/Unicamp, São Paulo.
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Oscar Cox, filho de ingleses que estudou na Suíça, trouxe deste país
as da marca Dupont9. Igualmente pioneiro, em particular na «cidade
maravilhosa», organizou, em 1901, o primeiro jogo entre Cariocas e
Paulistas – célebre derby do futebol brasileiro, e fundou o Fluminense
Futebol Clube, em 1902. Já as bolas que foram manufaturadas dentro do
país, a 1ª artesanal foi confeccionada em Petrópolis, cidade da serra do
Rio de Janeiro (a antiga fazenda do Córrego Seco da Mata Acima,
estância de fim-de-semana da Família Real Portuguesa, deu origem à bela
aldeia, homenagem a D. Pedro I), pelo padre Manuel Gonzales, no início
do século XX. Chamada de «peluda», porque era de couro cru, com
depilação imperfeita, ou seja, o couro ainda apresenta alguns pelos. O
padre Gonzales foi um dos difusores do futebol no Estado do Rio,
destacadamente na Região Serrana, chegando mesmo próximo a Magé,
localidade onde se situa o distrito de Pau Grande, no qual nasceu e
apareceu para o futebol, um dos maiores jogadores de todos os tempos:
Garrincha. A relevante participação do Padre Manuel Gonzales
simboliza um elemento que deve ser sublinhado na história social do
futebol brasileiro: a atuação dos colégios religiosos, principalmente os
católicos, como o de Itu, no Estado de São Paulo, tido como pioneiro.

V) Do elitismo à democratização
No Brasil, o futebol começou extremamente elitista e racista.
Aristocrático, branco, elegante, rico, falando inglês. Dos atletas e
praticantes oficiais eram exigidos riqueza e escolaridade, além da
tradição. Uma tradição expressa no sobrenome duplo ou na linhagem
familiar. A exemplo da Cavalaria Medieval – guardadas as devidas
diferenças – que exigia a comprovação de nobreza por 3 ou 4 gerações,
os primeiros clubes de futebol no Brasil impuseram critérios de cor e
classe. «O futebol era jogado no final das manhãs de domingo, naquele
momento gostoso, logo depois da missa, quando as famílias dirigiam-se

9 Monteiro Lobato (1882/1948), o maior nome da literatura infantil brasileira, autor de


inúmeros clássicos como O Sítio do Pica-pau Amarelo, 12 Trabalhos de Hércules, Urupês, foi
também autor de textos importantes sobre a cultura e a vida social no Brasil. Pensador
pioneiro, com elevada respeitabilidade intelectual, escreveu sobre futebol, a partir de
1905, e publicou em A Literatura do Minarete, pela Editora Brasiliense, 1946, de São Paulo,
algumas de suas idéias sobre o recém-chegado «esporte bretão». É de destacar que
criticava o palavreado em inglês − «estrangeirismo», como afirmara −, mas reconhecia a
imensa aceitação do futebol, principalmente por parte da juventude, e antecipava «para
um futuro não muito longínquo» a implantação de uma indústria de material esportivo,
altamente lucrativa e que evitaria a importação «até de bolas».
120 C.M.H.L.B. Caravelle

com a melhor das roupas para apreciar seus jovens de estirpe, os bons
partidos para as raparigas ricas» (Filho, 1947)10.
Então, nessa primeira fase da história social do futebol brasileiro, que
vai de sua implantação, em 1894, até meados dos anos de 1920, quando
começa a configurar-se um processo de popularização e democratização,
foram erguidas barreiras sociais rígidas, quase intransponíveis, verdadeira
violência contra negros, mulatos e brancos pobres. «Assim, as primeiras
notícias de caráter esportivo que realmente atiçaram a curiosidade do
público, foram aquelas que mostravam a discriminação social e racial nos
clubes e nos times»11.
Esta, sim, como já foi dito, a primeira forma de violência no futebol
brasileiro e contra as nossas «camadas populares», as mesmas que, mais
adiante, farão uma verdadeira revolução no estilo de jogo, que resulta
por encantar o planeta e transformar nossa equipe nacional na única que
participou de todas as Copas, desde a primeira em 1930, no Uruguai, e a
única pentacampeã do mundo. Essa exclusão social estava enquadrada
no zeitgeist da época, na conjuntura pós-abolição e não é mais do que a
expressão, num dado momento histórico, das constantes estruturais
discriminatórias, concentradoras da riqueza, do poder e das
oportunidades, de nossa formação social.
Mas todo lado tem dois lados e paralelamente ao elitismo racista,
vinha sendo criado, no seio das «camadas populares», um processo
subterrâneo, clandestino, de difusão futebolística. Driblando com
engenho e arte essas interdições, pretos, mulatos e brancos pobres
engendraram uma posição firme e marcante historicamente: a
apropriação e inversão do código vigente, (segundo a conceituação de
Mikhail Bakthine), ou seja, popularizaram e democratizaram o futebol no
Brasil.
10 Mário Filho é considerado o fundador do jornalismo esportivo brasileiro e tem
importância decisiva na história de nosso futebol. Para Gilberto Freyre ele era, em
verdade, o «sociólogo do futebol brasileiro». Foram 40 anos de militância nos desportos
em geral e no futebol em particular, desde a histórica entrevista com Marcos Carneiro de
Mendonça (o primeiro goleiro do selecionado nacional), em 1927, até sua morte em
1966, de ataque cardíaco, ao que parece motivada pela derrota do Brasil, no mundial da
Inglaterra. Criou e assinou colunas desportivas nos jornais A Manhã, Crítica, O Globo,
Jornal dos Sports (foi fundador e editor chefe) e na revista Manchete. Oficialmente, o mítico
Maracanã (nome de um pássaro que havia no local) chama-se «Estádio Mário Filho», em
virtude da incansável luta que capitaneou para a construção daquela praça esportiva.
Portanto, quando em 1947 publicou O Negro no Futebol Brasileiro, 20 anos de estudos e
pesquisas já haviam se passado. «Florestan Fernandes, um dos maiores nomes da
Sociologia Brasileira, elogia Mário e aponta para a sua qualidade de investigador
obsessivo, em conferir tudo aos mínimos pormenores, antes de escrever» (Murad, 1999
b: 433). Considerada como «clássica», esta obra mereceu o prefácio de Gilberto Freyre e a
sua indicação de livro indispensável para se conhecer o Brasil, não apenas o futebol
brasileiro.
11 «Almanaque Esportivo Olimpicus», São Paulo, 1945-46, p. 291.
FUTEBOL NO BRASIL 121

Já no início do século XX e mesmo antes surgiram agremiações que


incluíam jogadores de perfil sócio-econômico mais baixo. O chamado
«futebol de fábrica» foi relevante, para compor as possibilidades do
período. No Rio, o Bangu (1906), da fábrica de tecidos homônima e
times suburbanos como o Andaraí, da fábrica Confiança, o Cerâmica e o
Mangueira, ao pé do famoso morro e o Carioca, formado por operários e
motoristas de caminhão. Em São Paulo, 1910, o Corinthians («equipe
dos operários do Bom Retiro»), destaque do período, e associações de
bairros operários, como Brás, Bom Retiro, Ponte Grande, Canindé. Em
Salvador, Bahia e Operário da Baixa; Britania, no Pará, América, em
Minas. Além disso, havia clubes ou ligas formados somente por «homens
de cor» (eufemismo racista, típico daquele momento), para fazer frente
aos congêneres de brancos. Os setores da elite brasileira fizeram até
campanha, através dos jornais, para tentar impedir a popularização do
futebol.
O processo de democratização e inclusão deste esporte entre nós foi
pontilhado por tensões e atritos, avanços e recuos. O futebol expressou
aquilo que era dominante nas relações sociais do Brasil. Apesar das
resistências, sua difusão foi irreversível e culturalmente relevante. Hoje
com a grandeza de sua simbologia e representação, o futebol é, para o
Brasil, um «fato social total» (Marcel Mauss, 1925), aqueles fenômenos
da vida coletiva, que conseguem sintetizar toda a vida social. E por isso é
um fecundo objeto de estudo das Ciências Sociais.
Este processo de democratização atravessará os anos da Belle Époque
(1900/1914), mais ou menos no anonimato e verá instalada e
reconhecida sua vigência, a partir da década de 20, mais precisamente,
1923, quando o Vasco da Gama (clube fundado por comerciantes
portugueses de «secos e molhados», da Rua do Acre, no centro do Rio
de Janeiro) sagrou-se campeão carioca. Foi uma campanha
extraordinária, quase invicta, perdendo somente uma partida para o rival
Flamengo, por 3-2, no célebre Jogo das Pás de Remo, onde «os robustos
remadores rubro-negros agrediam com as suas pás de remo os
torcedores vascaínos e ameaçavam entrar em campo, intimidando a
todos»12.
No ano seguinte, em 1924, o Vasco reedita a façanha, agora
bicampeão e invicto, com um timaço de pretos e pobres, basicamente o
mesmo, todos eles trabalhadores braçais – pintores de parede, operários
de fábrica, motoristas de caminhão. O capital simbólico acumulado não
foi pequeno e seus efeitos na realidade brasileira logo se fizeram sentir,
até porque esses acontecimentos no Rio de Janeiro não eram únicos, mas
sim a culminância de um processo que se enraizava no dia-a-dia da
população. «O Vasco da Gama massificou o futebol, uma quase

12 Jornal do Commércio, resumo do ano de 1923, 30 de Dezembro, p. 47.


122 C.M.H.L.B. Caravelle

revolução, quando formou um time de gente modesta, vinda da segunda


divisão. Isto foi o ápice, mas já estava espalhado na sociedade, com o
Corinthians (destaque), o Bahia, Britania, no Pará, América, em Minas»
(Mazzoni, op. cit.: 165). A partir daí, os clubes foram lentamente
incluindo esses grupos de jogadores em suas equipes, o que causou uma
transformação de largo alcance.
Tal processo não ocorreu sob a égide da cordialidade e da conciliação.
Antes, foi produto de um contexto marcado por confrontos. O Vasco, primeiro,
viu acontecer sua expulsão «branca» da liga de futebol e, depois, a pressão para
que construísse um estádio próprio, como pré-requisito para permanecer na I
Liga, com exigências várias, a fim de dificultar a sua consecução. Em 1927, uma
partida entre Vasco X Santos, inaugurava o imponente Estádio de São Januário
(até hoje um dos mais importantes do país), na Barreira do Vasco, em São
Cristóvão, Rio de Janeiro, localidade agora denominada por Lei Municipal,
Vasco da Gama.
Na base da sociedade brasileira, portanto, germinava um processo de
popularização do futebol, já nos primeiros anos do século XX. O
respeitado sociólogo e pedagogo Fernando de Azevedo (1894-1974), um
dos precursores da educação brasileira, signatário (com Anísio Teixeira,
Lourenço Filho e outros) e redator do Manifesto dos Pioneiros da
Escola Nova, de 1932, já em 1920 propôs a criação da 1ª Praça Pública
de Jogos Infantis, em São Paulo. Mas será somente após a Revolução de
1930, que os espaços esportivos comunitários alcançarão relevo na
paisagem brasileira.
Azevedo (1930) frisou reiteradamente a importância educativa dos
esportes e destacou a sua qualidade socializadora. Em relação ao futebol,
especificamente, foi um dos primeiros teóricos de respeitado conceito
nas Ciências Sociais do Brasil, a chamar atenção para seu valor
sociopedagógico e psicodinâmico. Demonstrou que desde a primeira
década do século XX, as peladas de rua no Rio e a várzea em São Paulo e,
depois, em todo o país enraizaram o futebol na «cultura popular» e
transformaram-no em atividade de alto teor comunitário.
Fácil e barato de jogar, sinal de oportunidades iguais, o futebol tem
sido considerado por muitos especialistas como um dos rituais de maior
substância da «cultura das multidões» no Brasil e metáfora privilegiada de
nossas estruturas básicas (Freyre, 1945; DaMatta, 1982). Estudá-lo é
abrir um leque de possibilidades temáticas, de pesquisa e de
conhecimento em torno da realidade brasileira. Como rito, o futebol
compreende densa formação discursiva, metalinguagem complexa das
relações e dos significados da vida e das comunidades brasileiras, de suas
contradições e dos modos históricos de sua manifestação. Em outras
palavras: uma combinação de simbologias, por intermédio das quais
podemos estudar o Brasil.
FUTEBOL NO BRASIL 123

A partir dos anos 1920 e 1930, como dissemos, a tradição elitista e


racista no futebol, sustentada por uma ideologia de exclusão, é pari passu
questionada e alterada no interior da história que realiza a implantação da
«pós-modernidade» entre nós e propõe a emergência de novas
identidades culturais. Um novo ethos de inclusão dos múltiplos elementos
da «cultura popular» e do cotidiano, constante nos novos projetos e
propostas da época, ajuda a definir uma conjuntura de revisão ética,
estética e ideológica da tradição brasileira. Em sintonia com as
ocorrências da estrutura global, a história do futebol brasileiro vai forjar
os antecedentes de uma nova fase, a mais original, produtiva e
espetacular de sua trajetória, ou seja, a sua popularização e
democratização, obtidas através da entrada em cena de negros, mestiços
e brancos pobres, esses excluídos estruturais.
Mário de Andrade (1893/1945), escritor, musicógrafo, intelectual de
vanguarda, notabilizou-se como mentor e líder da Semana de Arte
Moderna de 1922, realizada em São Paulo. É o autor de Macunaíma, um
dos mais conhecidos livros de nossa literatura e «amplamente
considerado como o herói brasileiro, como uma descrição altamente
ilustrativa da identidade brasileira» (Ribeiro, 2000: 57). Investigador
incansável de nossas tradições populares, nomeadamente das danças e
músicas, seu livro (de 1941) Música do Brasil é leitura indispensável para
estudar a nossa riqueza musical.
Sintonizado com todas as coisas «do povo», não ficou indiferente ao
futebol, que a seu tempo vivia essa fase aguda de expansão. Na coluna
que assinava no jornal Folha da Manhã, de São Paulo, entre o final dos
anos 30 e início dos 40, espelhou o «movimento» que estava nas ruas e
escreveu sobre «o nosso jeito sambístico de jogar o futebol» e sobre a
musicalidade corporal dos jogadores ao tratar «do futebol, esse bailado
mirífico» (Pedrosa, 1967: 228).
Quando Gilberto Freyre (1900/1987) escolheu os jogadores Leônidas
da Silva e Domingos da Guia, nomes fundamentais deste período de
transição e de sempre, para interpretar o futebol no quadro geral da
miscigenação e da cultura brasileiras, foi precisamente porque a interação
entre ambos compunha uma metáfora desse esporte, em analogia ao
país. O primeiro, Leônidas, negro dionisíaco inventor da «bicicleta» (o
atleta fica deitado no ar e chuta a bola sobre a própia cabeça) ; o
segundo, Domingos, mulato apolíneo inventor do «drible curto» (drible
de movimento muito rápido). Ambos de origem muito pobre, são os
mitos indiscutíveis do início da transição do futebol elitista e racista, num
país historicamente elitista e racista, para um futebol popular e
democrático, na segunda metade dos anos 1930, em especial na
conjuntura da Copa do Mundo na França, no ano 1938. Leônidas e
Domingos lideraram a seleção brasileira e construíram um equilíbrio de
124 C.M.H.L.B. Caravelle

estilos, glorificado à altura e até hoje lembrado com a mais distinta


respeitabilidade.
Leônidas foi o artilheiro da Copa com 8 gols (recentemente a FIFA
escreveu em seu site, que são 7 e não 8, questão polêmica e ainda em
aberto) e recebeu dos franceses o apelido de «O Homem Borracha», por
causa de sua elasticidade. O Brasil ficou em 3º lugar, na classificação
final. O histórico notável do futebol brasileiro teve início precisamente
na Copa de 38, já que suas participações anteriores – em 30, no Uruguai,
e em 34, na Itália – foram pífias, tendo sido desclassificado logo no início
das duas competições.
Freyre é um dos primeiros e mais importantes cientistas sociais
brasileiros a ver o futebol como objeto de estudo e a indicar linhas
interpretativas, teóricas e metodológicas. Num de seus livros, referência
para nossa cultura acadêmica, Sociologia (1945), no capítulo «Das
Sociologias Especiais», Freyre desenvolve suas primeiras noções sobre a
problemática, as quais serão ampliadas em 1947 no prefácio à 1ª edição
do, também clássico, O Negro no Futebol Brasileiro, de Mário Filho. Essas
são as indicações de suas primeiras reflexões, que marcaram época,
fizeram «escola» e auxiliaram a afirmação de uma Sociologia do Futebol,
indispensável para a construção de uma Sociologia Geral da sociedade
brasileira.
Entre os anos 40 e 70, o futebol brasileiro consolidou sua
popularidade interna e externa e espalhou-se por todos os recantos do
país. Parcela significativa dos melhores compositores de nossa música
popular, rendeu-se ao futebol e ajudou a difundi-lo: Noel Rosa, Wilson
Baptista, Lupicínio Rodrigues, Lamartine Babo, Vinícius de Moraes,
Tom Jobim, Chico Buarque, Jorge Benjor. O rádio, no início dos 40, e a
televisão, a partir dos 50, passaram a transmitir os campeonatos e a
mostrar as imagens das epopéias dos grandes clubes, principalmente o
Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha.
Em fins dos anos 50, Carlinhos Niemeyer cria o «Canal 100»,
considerado o maior acervo de imagens sobre futebol do mundo,
documentários que passavam antes de todas as sessões de cinema. No
período, ganhamos o primeiro tricampeonato da história do futebol
mundial: 1958/Suécia, 1962/Chile e 1970/México. A vida institucional
do país passou por instantes difíceis, após o golpe militar de 1964 e a
totalização da ditadura, com o Ato Institucional n.º 5, de 13 de
dezembro de 1968. Nesta conjuntura, o uso político do futebol alcança o
seu extremo13, mas a experiência acumulada nos decênios anteriores
consegue preservar a sua qualidade, até o auge, em 1970, no México.

13 «Onde a ARENA (partido político da ditadura – grifo nosso) vai mal, mais um time
no (campeonato) nacional», Almirante Heleno Nunes, Presidente (nomeado pelo regime)
da Confederação Brasileira de Futebol.
FUTEBOL NO BRASIL 125

Após esta conquista, com a brutal repressão instalada no país, a


tecnocracia e a ideologia da militarização, que marcaram treinadores14,
preparadores físicos e até torcidas organizadas, o futebol do Brasil sofre
direta ou indiretamente as consequências dessa conjuntura e entra numa
curva mais ou menos descendente, interna e externa15. Só voltamos a
ganhar uma Copa do Mundo 24 anos depois, 94/EUA, com a geração
de atletas cujo símbolo é Romário, jogador que resgata o nosso estilo:
ginga, liberdade, habilidade, improvisação, arte. Parece que quando o
futebol brasileiro assume sua identidade cultural, suas raízes estilísticas,
vai bem. Quando não, vai mal. Toda regra tem exceção e a exceção
confirma a regra.

VI) Conclusões
Eis aqui, à guisa de conclusão e de modo bem resumido, uma
proposta (didática) de periodização para a História Social do Futebol
Brasileiro: a) 1894/1923- «pré-história»: elitismo, racismo e exclusão; b)
1923/1933- clandestinidade: fase inicial mais definida do ingresso de
pobres, negros e mestiços; c) 1933/1950- transição: popularização,
democratização; d) 1950/1970- revolução: consolidação e conquista do
tricampeonato mundial; e) 1970/1990- retrocesso: reelitização?; f)
1990/2006- uma nova era: modernização e crise nas federações e clubes.
Toda periodização corre riscos de simplificar e, por isso, nunca deve ser
taxativa.. Nesta proposta, tomamos como critério teórico a tensão
estrutural e histórica da vida brasileira, aquela existente entre
exclusão/inclusão das «camadas populares».
A partir dos anos 50, o futebol consolidou-se no Brasil como um
espetáculo de massas, com os setores populares encontrando nele um
espaço de afirmação social, o que não solucionou os estigmas da
exclusão, mas questionou-os, denunciou-os e neutralizou-os, mesmo que
parcial e provisoriamente. O chamado estilo brasileiro de jogar fez escola
e é a expressão da cultura musical e corporal brasileira, de nossas raízes
negras, principalmente, mas também índias e portuguesas do Norte de
Portugal. Todas essas origens e nessa ordem são musicais e corporais, o
que ajuda a entender o nosso modo de jogar o futebol, cheio de
habilidade, criatividade e drible, este que talvez seja a marca mais
distintiva do nosso estilo.

14 «Treinar uma equipa de futebol é como treinar um pelotão do exército», Capitão


Cláudio Coutinho, técnico do Flamengo e da Seleção Brasileira de 1978, na Copa da
Argentina.
15 Honrosa excepção para os grandes jogadores, comandados por Telê Santana, da
geração de Zico, Falcão, Sócrates, Cerezo, na Copa de 82, em Espanha.
126 C.M.H.L.B. Caravelle

A capoeira, o samba, o lundu, o jongo, o frevo são exemplos de


nossa «cultura sinuosa», traço de nossa musicalidade, de nossa arte, de
nosso futebol. Esta sinuosidade, constitutiva do Brasil, ajuda a explicar o
ethos brasileiro, as nossas identidades e o jeito de jogar o futebol por aqui,
além de indicar algumas das razões de sua intensa popularidade, entre
nós. Villa Lobos e Gilberto Freyre chegaram a pensar em escrever um
balé épico sobre os «fundamentos do Brasil», baseados na ondulação dos
canaviais, porque julgavam ser isso importante para uma interpretação
brasileira do Brasil. Pena que não o fizeram. O futebol certamente
poderia compor parte significativa da obra. Como disse Nelson
Rodrigues, um dos maiores nomes do teatro brasileiro e cronista
esportivo conceituado, «numa simples ginga de Didi há toda uma
nostalgia de gafieiras eternas». (Murad, 1996: 132)
Apesar de ser muito nosso, brasileiríssimo, o futebol é um evento
mundial. Pode-se dizer que a Copa do Mundo é o maior espetáculo da
Terra. Em audiência e interesse das multidões, nada pode ser comparado
com um Mundial de Futebol. É o esporte que mais cresce no mundo:
quase todos os países o têm como paixão ou estão investindo nesta
conquista. Mas a importância maior do futebol, não se restringe ao
esporte profissional, com exposição midiática, altos salários e idolatria
heróica. O valor simbólico do futebol transborda para toda a vida social
e atinge bilhões de pessoas, espalhadas por todo o mundo.
Que o futebol explore e aprofunde a melhor dimensão de sua
história, aquela que combina esporte e arte e amplie o seu lado de
inclusão e cidadania. Isto para todos os cantos do planeta. E para
sociedades como a brasileira, mergulhada em graves problemas sociais,
que o tempo consolide e a história confirme a lição pedagógica que o
futebol pode dar, a necessária ética para uma reeducação de caráter
universal: o ponto de partida de todas as atividades humanas deve ser a
igualdade de oportunidades; o ponto de chegada a vitória, sim, mas por
mérito e merecimento.

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FUTEBOL NO BRASIL 127

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Ano 1, n.º 4. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

RESUMO - O futebol no Brasil visto como a expresão maior da «cultura da


multidão» e do sistema simbólico social. Considerações sobre a história do
futebol brasileiro como um capítulo da história das lutas sociais pela
democratização e inclusão social no país.
128 C.M.H.L.B. Caravelle

RÉSUMÉ - Le football au Brésil, vu comme expression majeure de la « culture


des multitudes » et du système symbolique social. Considérations sur l’histoire
du football brésilien comme chapitre de l’histoire des luttes sociales pour la
démocratisation et l’intégration sociale dans le pays.

ABSTRACT - Football in Brazil is seen as the major expression of «crowds’


culture» and of the social symbolic system. Considerations about Brazilian
football’s history are presented here as a chapter of social struggles to obtain
democracy and social integration in the country.

PALAVRAS-CHAVE : Brasil, Futebol, Cultura popular, Identidade, Política.

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