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Vítor Rosa

Doutorando em Sociologia (ISCTE)


Praticante de karaté e aikido

As artes marciais como campo de estudos sociológicos


As artes marciais inserem-se num campo mais abrangente – o desporto. Não é
necessário demonstrar com números ou gráficos que o desporto é importante. Basta pensarmos,
por exemplo, na atenção que os meios de comunicação social lhe prestam regularmente; na
quantidade de dinheiro (público e privado) que se investe; na dependência da publicidade; na
maior implicação do Estado por razões tão diversas como o desejo de combater a violência dos
espectadores, melhorar a saúde pública, aumentar o prestígio nacional; no número de pessoas
que com regularidade praticam desporto ou assistem como espectadores, para não falar dos que
dependem directa ou indirectamente dele; no emprego de metáforas desportivas em esferas
aparentemente tão diversas da vida como a política, a indústria, o exército, etc.; e, para concluir,
nas ramificações a nível nacional e internacional, sociais e económicas, negativas e positivas, de
competições internacionais como as Olimpíadas e os mundiais de futebol, karaté, rugby, etc.
Nenhuma actividade terá servido com tanta regularidade de centro de interesse e tanta gente em
todo o mundo.
As chaves da importância do desporto emanam da psicologia dos atletas e espectadores.
Do ponto de vista pós-estruturalista e foucaultiano, John Fiske (1992) sugeriu que uma das
razões da popularidade do desporto, como actividade contemplativa, é a sua capacidade de
desconectar o mecanismo disciplinado do mundo laboral. E já na década de ‘60, Norbert Elias e
Eric Dunning empreenderam um exame preliminar dos desportos numa perspectiva parecida à
de Fiske (Elias e Dunning, 1986). Versava principalmente sobre o desporto e o controlo social.
Mais concretamente, os autores sugeriram que as funções principais de ver ou praticar desporto
permitem às pessoas tornarem-se «controladores» ou «controlados» – sejam de classes baixas
ou altas –, procurando emoções.
Segundo estes dois autores, o desporto é um antídoto à rotina da vida diária das
sociedades industriais avançadas e relativamente “civilizadas”. Para eles, o desporto é mais uma
actividade voluntária do que obrigatória. Para isso, esboçam a hipótese de que o desporto
implica uma procura de uma actividade emocional agradável que quebre a rotina através do que
chamam «motilidade», «sociabilidade» e «mimésis», ou a combinação das três coisas. Quer isto
dizer, que o desporto voluntário parece orientar-se em grande medida para a obtenção da
satisfação da actividade física e do contacto social que se mantém nos desportos, despertando
afectos. Como diz Maguire (1992), o desporto implica toda uma procura da importância das
emoções.
Nas sociedades modernas, o desporto adquiriu uma importância a nível
individual, local, nacional e internacional. Na valorização concreta do desporto em geral
e em particular numa sociedade, o grupo desempenha um papel importante na formação
da identidade dos indivíduos. Assim, os desportos modernos são algo mais do que o
simples dirimir quem corre mais rápido, salta mais alto ou marca mais golos; são
também formas para provar a identidade, da qual as pessoas aprendem o valor social do
desporto. Certamente que o desporto não é unicamente importante para provar a
identidade individual, mas também para processos afins inter-grupos e para a estrutura
hierárquica dos países. Basta para isso pensar nas competições desportivas entre escolas
de aldeias ou cidades, equipas e clubes que representam localidades ou cidades em
questão e nações em competições com as Olimpíadas e os campeonatos do mundo. Em
resumo, e baseado no «património acumulado de interpretações provisoriamente
validadas a que se chama teoria» (Almeida e Pinto, 1986: 56), é possível afirmar que o
desporto é importante para as sociedades modernas para a identificação dos indivíduos
com as colectividades, e para a formação de manifestações de sentimentos colectivos e
de equilíbrio do(s) grupo(s).

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As pessoas mais comprometidas com o desporto recebem o nome de “fans” e para
muitos destes torna-se uma “religião suplente”. Provas disto, temos a atitude reverente de
muitos fans às suas equipas e a idolatria de atletas concretos. Também não é invulgar que
transformem os seus quartos em autênticos templos. E “celebrar” ou “adorar” uma ou mais
colectividades coloca características religiosas, no sentido de Durkheim (1996).
Segundo Diem (1971), todos os desportos têm a sua origem num culto. A análise de
Durkheim sobre a «efervescência colectiva» gerada por rituais religiosos dos aborígenes
australianos, nos quais viu a raiz da experiência e o conceito do «sagrado», pode transladar
mutatis mutandis os sentimentos de emoção e celebração comunitária que constituem a
experiência no contexto do desporto moderno.
Norbert Elias (1992: 40), um dos maiores estudiosos da expansão do fenómeno
desportivo na era moderna, e que elevou «as funções corporais ao nível do objecto histórico e
sociológico» (Le Goff e Truong, 2005: 17), lançou uma questão fundamental: que espécie de
sociedade é esta onde cada vez mais pessoas utilizam parte do seu tempo na assistência ou
participação de confrontos regulados de habilidades corporais a que chamamos desporto? E
procurou a resposta na macro-estrutura social, no amplo conjunto de transformações morais e
comportamentais que denominou «processo civilizacional» – que assenta, simplificando, no
auto-controlo da violência e na interiorização das emoções – através do estudo dos costumes e
das «técnicas do corpo», nomeadamente na Idade Média e no Renascimento.
A ideia de processo em Elias não admite uma sociedade estática. Para ele, a civilização
«é cegamente posta em movimento pela dinâmica própria de um tecido de relações, por
alterações específicas na maneira como os homens têm de viver uns com os outros» (Elias,
1990: 189). A história das sociedades é, assim, uma constante mudança sem sentido ou
racionalidade próprios, é a história de processos variados que têm como principais elementos o
indivíduo e o grupo ou cultura no qual está inserido. «O que muda no decurso a que chamamos
história são as relações mútuas entre as pessoas e a modelação a que o indivíduo é sujeito dentro
delas» (Elias, 1990: 224).
A dinâmica da sociedade, ou seja, a ordem social que sustenta todo o processo, é
mantida através de normas externas ao indivíduo segundo padrões legais e morais constituídos.
Grosso modo, o que ocorre no processo civilizacional descrito por Elias é que tais normas
passam, para os indivíduos, do âmbito cultural ao natural. Por outras palavras, elas são
interiorizadas pelos homens e perdem o seu carácter de normas impostas externamente, passam
a funcionar como uma espécie de “superego colectivo” regulando as relações sociais.
Com uma formação académica que contava com estudos de Medicina, Psicologia,
Filosofia e Sociologia, nas cidades de Breslau, Freiburg e Heidelberg, e com a sua experiência
de trabalho nos anos 30, no Instituto de Investigações Sociológicas de Frankfurt, onde é
assistente de Karl Mannheim (1893-1947) naquela Universidade, este autor, no caso particular
da Sociologia do desporto, vem dizer que esta área está esquecida ou que, pelo menos, não tem
merecido a devida atenção. Na página 17 afirma que

«Está implícita a ideia de que os sociólogos têm esquecido o desporto, principalmente


porque só alguns conseguiram distanciar-se o suficiente dos valores dominantes e das
formas de pensamento características das sociedades ocidentais, enfim, para terem a
capacidade de compreender o significado social do desporto, os problemas que este coloca
ou o campo de acção que oferece para a exploração de áreas da estrutura social e do
comportamento que, na maior parte, são ignoradas nas teorias sociais».

A desatenção da Sociologia face ao fenómeno desportivo mantém-se actual, bastando


para isso ler os argumentos de autores como José Esteves (1967), Gilles Combaz (1992),
Salomé Marivoet (1998), Carlos Nolasco (2000), José Raposo (2002), só para dar alguns
exemplos. Tanto assim é, que estes autores exortam para que os sociólogos do desporto
escrevam textos sobre esta matéria para que o grande público possa beneficiar deste
“instrumento” de análise.

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Neste sentido, e para terminar este texto, apelo aos cientistas sociais para não ficarem
desatentos e para desenvolverem estudos sobre o desporto. As artes marciais e os desportos de
combate oferecem matéria riquíssima de investigação.

Referências bibliográficas

RAPOSO, José Vasconcelos (2002), «Obstáculos e exigências do campo profissional da Sociologia do


Desporto», in Um Olhar Sociológico sobre o Desporto no Limiar do Século XXI – Actas das III
Jornadas de Sociologia do Desporto, organizadas pelo Sesd da Associação Portuguesa de
Sociologia e Faculdade de Motricidade Humana, Centro de Estudos e Formação Desportiva,
Lisboa, Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, pp. 165-173.
NOLASCO, Carlos (2000), «Entre a técnica da força e a força da técnica. A competição jurídica pelo
espaço desportivo», in Acta do Congresso Português de Sociologia, pp. 1-11.
MARIVOET, Salomé (1998), Aspectos Sociológicos do Desporto, Lisboa, Livros Horizonte.
COMBAZ, Gilles (1992), Sociologie de L'Education Physique, Paris, PUF.
LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicholas (2005), Uma história do corpo na idade média, (trad.: Telma
Costa), Lisboa, Editorial Teorema.
ALMEIDA, João Ferreira e PINTO, José Madureira (1986), «Da teoria à investigação empírica.
Problemas metodológicos gerais», in SILVA, Augusto Santos e PINTO, José Madureira (org.),
Metodologia das Ciências Sociais, Porto, Biblioteca das Ciências do Homem, Edições
Afrontamento, pp. 55-78.
ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric (1992), A Busca da Excitação, Lisboa, Difel.
DIEM, C. (1971), Weltgeschichte des Sports, 2 Bände, Stuttgart.
ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric (1986), Quest for excitement: sport and leisure in the civilising
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MAGUIRE, Joseph (1992), «Towards a Sociological Theory of Sport and the Emotions: A Process-
Sociological Perspective», in Eric Dunning and C. Rojek (eds.), Sport and Leisure in the Civilizing
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ESTEVES, José (1967), O Desporto e as Estruturas Sociais, Lisboa, Prelo Editora.
DURKHEIM, Émile (1996), Formas Elementares da Vida Religiosa, Rio de Janeiro, Ed. Martins Fontes.
FISKE, John (1992) Power Plays, Power Works, London, Verso.

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