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Contempla também a trajetória do aboroso e fundamentado re-

N
Euclides de Freitas Couto

Euclides de Freitas Couto


futebol nos anos em que o Brasil, as últimas décadas, a produção acadêmica sobre o futebol lato histórico sobre o futebol
embora com diferenças regionais, aumentou sensivelmente, em função de seu indiscutível no Brasil da década de 1930 à
se transformou em um país urbano alcance na realidade social. O universo do futebol assumiu de 1970 o leitor encontrará nas pá-
e industrializado. Esses foram tem- tamanha abrangência ao ser percebido como fenômeno sociocul- ginas deste livro, de autoria de Eu-
pos de popularização crescente
do futebol e de profissionalização
tural, expressando-se por meio de: pertencimento clubístico, ges-
tos simbólicos, atitudes ritualísticas, códigos de conduta, estilos de Da ditadura à ditadura clides Couto. Trata-se de um texto
originário de tese de doutorado em
acentuada dos jogadores. Viajar vida, relações de sociabilidade, narrativas memorialísticas, afirma- História na Universidade Federal de
pelos caminhos do futebol brasilei- ção pessoal, exteriorização de ideais políticos, rivalidades, dentre uma história política do futebol Minas Gerais que, ao se converter
outras representações individuais e coletivas vinculadas à constru-
ro desde o Estado Novo de Getúlio
ção de identidades. É inegável sua dimensão econômica, um ren-
brasileiro (1930-1978) em livro, ganhou fluência e sabor
Vargas até os duros anos da dita- literário. Ao longo das páginas que
dura militar, sem desconsiderar as tável negócio na indústria do entretenimento. Gradativamente, vai o compõem, diferentes aspectos da

uma história política do futebol brasileiro (1930-1978)


sendo superada a visão de que o futebol, pelo seu forte envolvimento
peculiaridades das diferentes fases complexa trama social que consti-
emocional, despolitiza a sociedade e limita-se a ser considerado o
que constituem essa temporalida- tui o futebol brasileiro podem ser
“ópio do povo”. Elias e Bourdieu perceberam a autonomização desse
de não é tarefa simples. Ao contrá- identificados. Entre eles destaca-se
esporte, observado como um campo de regras próprias, de dispu-

Da ditadura a ditadura
rio, supõe competência histórica e sua relação com a política e com
tas e de consagrações. Nessa linha de análise, integra-se o livro de
paixão pelo futebol. Euclides Couto Euclides Couto, resultado de meticulosa pesquisa documental e da governos, que inúmeras vezes fize-
atende a esses dois pressupostos. consulta a preciosas fontes orais, cujos dados instigantes e depoi- ram dos resultados positivos nos
mentos reveladores pontuam as relações nem sempre harmoniosas estádios ingredientes de propa-
Lucilia de Almeida Neves Delgado ganda governamental. Em contra-
entre Estado e futebol. As implicações analíticas de Couto são subs-
Historiadora – UnB e UFMG ponto à usual associação futebol
tanciais para se perceberem diferentes temporalidades históricas
do Brasil, identificadas politicamente pela experiência autoritária e e políticas governamentais, Couto
por agentes sociais que se utilizaram de sutilezas simbólicas, através também analisou as dissensões de
do futebol, para expressar a insatisfação à ordem estabelecida. alguns jogadores frente ao discur-
so político oficial nos anos de 1970,
Marcelo de Araújo Rehfeld Cedro quando o autoritarismo da ditadu-
Historiador – PUC-Minas ra implantada em 1964 alcançou
seu ápice e iniciou sua lenta der-
rocada. Nesse caso, vale conferir a
postura de Afonsinho, Paulo Cezar
ISBN 852281017-6
Caju, Reinaldo e Tostão. Baseado
em ampla pesquisa que contem-
plou livros, jornais, revistas, docu-
mentários e entrevistas, o livro des-
9 7 8 8 5 2 2 8 1 0 1 7 8

taca a construção do imaginário


dos brasileiros sobre o esporte que
se confunde com sua alma social.
Da ditadura à ditadura
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Euclides de Freitas Couto

Da ditadura à ditadura:
uma história política do futebol brasileiro

(1930-1978)

Niterói, 2014
Copyright © 2014 by Euclides de Freitas Couto

Direitos desta edição reser vados à Editora da UFF - Editora da Universidade Fede-
ral F­ luminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 242 20-9 0 0
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É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Normalização: Maria Lúcia Gonçalves


Edição de texto e revisão: Rita Godoy
Projeto gráfico capa e editoração eletrônica: Alternativa Editora e Produção Cultural Ltda.
Supervisão gráfica: Leandro Dittz

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - CIP

C871 Couto, Euclides de Freitas


Da ditadura à ditadura: uma história política do futebol brasileiro (1930-1978) / Euclides de
Freitas Couto. – Niterói : Editora da UFF, 2014. – 277 p. : il. ; 21 cm. –

Bibliografia p. 259

ISBN 978-85-228-1017-8
BISAC HIS 024000 HISTORY / Latin America / General

1.Futebol - Brasil - História. 2. Futebol - Aspectos Políticos. I. Título.


CDD 796.3340981

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Reitor: Roberto de Souza Salles


Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e Inovação: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Diretor da Editora da UFF: Mauro Romero Leal Passos
Editoração e Produção: Ricardo Borges
Distribuição: Luciene Pereira de Moraes
Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos

Comissão Editorial
Presidente: Mauro Romero Leal Passos
Ana Maria Martensen Roland Kaleff
Eurídice Figueiredo
Gizlene Neder
Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Luiz Sérgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Maria Lais Pereira da Silva
Editora filiada à
Renato de Souza Bravo
Rita Leal Paixão
Simoni Lahud Guedes
Tania de Vasconcellos
A Dani, que me despertou paixões
para além das quatro linhas.

Ao Sócrates, por tudo que fez pelo


futebol e pela política.
Agradecimentos

Este livro é resultado da pesquisa realizada ao longo do meu


processo de doutoramento em História, realizado no Programa de
Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG. Durante quatro anos, além da convivência frutí-
fera com os colegas, tive a oportunidade de construir uma amizade
sólida e grandiosa com meu orientador, o prof. João Furtado, a quem
devo eterna gratidão.
A temática, um tanto desafiadora, já que pouquíssimos colegas
haviam se aventurado pelos meandros do futebol no Programa de
Pós-Graduação em História, rapidamente ganhou receptividade en-
tre os professores e os colegas. Assim, os momentos de estudo me
proporcionaram a convivência intelectual e o companheirismo dos
colegas.
Embora a publicação de um livro pareça ser fruto da produção
do conhecimento individual, é, na verdade, a tradução do esforço de
muitas pessoas que contribuíram direta ou indiretamente para que
ela se tornasse possível. Desculpo-me, antecipadamente, por qual-
quer omissão.
Agradeço ao vovô Júlio (em memória), que me inspirou a amar,
incondicionalmente, o GALO. Não tenho nenhuma dúvida de que
meus sentimentos mais profundos fomentaram essa pesquisa.
Agradeço aos meus pais pelo incentivo e por compreenderem
meu distanciamento.
A Lucília Neves, pela amizade sincera e pelas importantes aná-
lises e sugestões dadas ao longo do trabalho.
Ao Marcelo, pela irmandade e pelas inúmeras inspirações ofe-
recidas ao longo da minha trajetória acadêmica.
A Vanessa, Dadá, Matheus, Sílvio, Záira, Lu e Nando por esta-
rem sempre próximos, mesmo na minha ausência física.
Ao Rodrigo, pela interlocução constante, cuja sabedoria me
instigou a levantar inúmeros questionamentos ao longo da pesquisa,
e a Ju pela atenção nos momentos mais difíceis.
A Laiz, pela amizade e pela ajuda indispensável no trabalho de
levantamento das fontes.
Ao Raphael Rajão e aos demais colegas do Cepif, pelas trocas
de saberes e dúvidas acerca do futebol.
Ao Reinaldo e a Jane, funcionários da Biblioteca da PUC-Minas,
Coração Eucarístico, pela amizade e disponibilidade.
Ao Lúcio, Ângelo, Magá e demais amigos da “pelada”, pelo co-
nhecimento empírico.
Ao Fred, pelo companheirismo e pelos exemplos.
Aos amigos Alan e Helivane, pelo apoio decisivo nos momen-
tos finais.
Aos amigos Isaac (Barçagalo), Gema, Gunda, Alexandra e
Glória, pelos conteúdos – raça e amor – indispensáveis nas grandes
conquistas.
Ao Éder e a Vivian, novos e eternos amigos.
À sociedade brasileira, que por meio da sua contribuição pos-
sibilitou que essa pesquisa fosse realizada em uma instituição de en-
sino pública e de qualidade.
À Universidade Federal Fluminense e à Editora da UFF, que, por
meio do Edital Copa do Mundo, viabilizaram a publicação e a circula-
ção dessa pesquisa.
A todos os entrevistados, meu agradecimento especial pela
contribuição à história do futebol brasileiro.
Para entender a alma de um brasileiro
é preciso surpreendê-lo no instante de
um gol.
Armando Nogueira
Lista de siglas e abreviaturas

ACDE - Associação de Dirigentes Cristãos de Empresa


ACM - Associação Cristã de Moços
Aerp - Agência Especial de Relações Públicas
AI - Ato Institucional
ALA - Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil
ALN - Ação Libertadora Nacional
Amea - Associação Metropolitana de Esportes Atléticos
AP - Ação Popular
Apea - Associação Paulista de Esportes Atléticos
Arena - Aliança Renovadora Nacional
BNDE - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
CBD - Confederação Brasileira de Desportos
CBF - Confederação Brasileira de Futebol
CEC - Centro de Estudos Cinematográficos
Cepal - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CIA - Central Intelligence Agency
CLT - Consolidação das Leis do Trabalho
CND - Conselho Nacional de Desportos
Cned - Campanha Nacional de Esclarecimento Esportivo
Coba - Comitê pelo Boicote da Organização da Copa do
Mundo de Futebol
Codi - Centro de Operações e Defesa Interna
Colina - Comandos de Libertação Nacional
CPC - Centros Populares de Cultura
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
CTI - Comando dos Trabalhadores Intelectuais
DED - Departamento de Educação Física e Desporto
DEF - Divisão de Educação Física
DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda
DOI - Destacamento de Operações e Informações
Dops - Departamento de Ordem Política e Social
Enef - Escola Nacional de Educação Física
Esefex - Escola de Educação Física do Exército
ESG - Escola Superior de Guerra
Fafi-BH - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte
Fafich - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais
Fifa - Federação Internacional de Football Association
F.C. - Futebol Clube
Fla - Clube de Regatas Flamengo
Flu - Fluminense Football Club
GEP - Grupo de Educação Seletiva
Ibad - Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Ibope - Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Ipes - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
Iseb - Instituto Superior de Estudos Brasileiros
JEC - Juventude Estudantil Católica
JK - Juscelino Kubitschek
JS - Jornal dos Sports
MDB - Movimento Democrático Brasileiro
MEC - Ministério da Educação e Cultura
MPB - Música Popular Brasileira
MPCG - Ministério do Planejamento e Coordenação Geral
NFB - O negro no futebol brasileiro
Oban - Operação Bandeirante
Paeg - Programa de Ação Econômica do Governo
PCB - Partido Comunista Brasileiro
PIN - Programa de Integração Nacional
Podh - Projeto Olímpico dos Direitos Humanos
PSD - Partido Social Democrata
PUC - Pontifícia Universidade Católica
SCLC - Southern Christian Leadership Conference
STJD - Superior Tribunal de Justiça Desportiva
TV - Televisão
UDN - União Democrática Nacional
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Unap - União Nacional de Amparo à Pesquisa
UNE - União Nacional dos Estudantes
URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
VPR - Vanguarda Popular Revolucionária
Lista de figuras

Figura 1 – Maracanã: o grandioso, 67


Figura 2 – Em ritmo de samba, 68
Figura 3 – Peça publicitária da Antarctica nos anos 1950, 71
Figura 4 – Peça publicitária da Kosmos Capitalização S.A., nos anos
1950, 72
Figura 5 – Charge “Assim são os brasileiros”, 79
Figura 6 – Matéria “Deverão honrar as tradições esportivas do
Brasil” 90, 82
Figura 7 – Comemorações da conquista da 1ª Copa do Mundo, avenida
Rio Branco, Centro do Rio de Janeiro, 93
Figura 8 – Recepção à seleção campeã em 1958, Palácio do Catete, 94
Figura 9 – Recepção à seleção campeã em 1958, sede da revista
O Cruzeiro, 95
Figura 10 – JK ouvindo a transmissão da partida final da Copa do
Mundo de 1958, 96
Figura 11 – Belini, o mocinho de Hollywood, 98
Figura 12 – Preparação para a Copa de 1966, 132
Figura 13 – Tostão despedindo-se do governador Israel Pinheiro
(1966), 133
Figura 14 – Tostão despedindo-se do presidente Castelo Branco
(1966), 134
Figura 15 – Enforcamento simbólico da CBD: Cinelândia, Rio de Janeiro,
julho de 1966, 138
Figura 16 – Repercussão da invasão promovida por João Saldanha à
concentração do Flamengo, 149
Figura 17 – Suposta ameaça de sequestro a Pelé em Manaus, 157
Figura 18 – Capitalização simbólica do tricampeonato de futebol, 160
Figura 19 – Yustrich, o “digno”, 189
Figura 20 – Paulo Cezar X Nilton Santos, 195
Figura 21 – Afonsinho em General Severiano, agosto de 1970, 202
Figura 22 – Tommie Smith, Peter Norman e John Carlos: pódio dos 200
metros rasos, Estádio Olímpico do México, 1968, 227
Figura 23 – Crítica ao Mundial da Argentina, 1978, 228
Figura 24 – Gesto de protesto, 229
Figura 25 – Reinaldo: bom de bola e bom de cuca, 231
Sumário

Prefácio, 17
Introdução, 19
1. A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas
para o mesmo fim (1930-1962), 37

1.1. Futebol na Era Vargas: o esporte como política de Estado, 38


1.2. Anos 1950: a afirmação do “país” do futebol, 60
1.2.1. 1954: o futebol tal qual o governo, 76
1.2.2. 1958: a vitória da mestiçagem, 83
1.3. 1962: o futebol-arte nas trincheiras da Guerra Fria, 99
2. Futebol no regime autoritário: cultura e política, 115
2.1. A polarização da sociedade, 119
2.2. política e cultura na década de 1960, 128
2.3. A Copa de 1966: o clientelismo supera a paixão, 130
2.4. A intervenção militar no esporte brasileiro, 139
2.4.1. A militarização da Seleção Brasileira, 143
2.5. 90 milhões em ação: a Seleção Brasileira e a propaganda oficial
na Copa de 1970, 151

2.6. Política e futebol no pós-1970, 163


3. A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo, 169
3.1. O ethos autoritário no futebol brasileiro, 171
3.2. A “linha dura” chega aos clubes, 184
3.3. Caju: tipo ideal do jogador-problema, 191
3.4. Afonsinho: barba, cabelo e atitude, 200
3.4.1. Passe livre: quando a busca por um direito
simboliza uma atitude de rebeldia, 206

3.4.1.1.Passe ou impasse? A lei, 208


3.5. Tostão: a dissonância dissonante, 216
3.6. Reinaldo: os gols do protesto, 222
3.6.1. Breve história de um gesto, 224
3.6.1.1. A (re)contextualização de um gesto, 227
3.6.1.2. A gênese do protesto, 241
Considerações finais, 251
Fontes, 259
1. Referências, 259
2. Periódicos, 275
3. Fontes fonográficas, 276
4. Meios eletrônicos, 276
5. Fontes orais, 277
6. Instituições pesquisadas, 279
7. Acervo particular, 279
Prefácio

Alcides Edgardo Ghiggia costumava dizer que só três pessoas


no mundo conseguiram calar o Estádio do Maracanã: Frank Sinatra,
o Papa e ele mesmo. Os dois primeiros dispensam maior explicação,
até por serem, respectivamente, “A Voz” e a “Voz de Deus”. Já o ter-
ceiro talvez possa ser relativamente desconhecido das novas gera-
ções, e por isso escrevo uma breve nota sobre ele. Trata-se do joga-
dor ítalo-uruguaio que foi autor do célebre gol que nos “tirou” das
mãos o título da Copa de 1950, disputada no Brasil, certame até então
inédito no país. Desde então, é também certame único, pelo menos
até o breve momento em que se iniciará uma nova edição.
Dirão os mais apressados que citar este evento às vésperas
de um novo mundial no Brasil poderia ser um mau augúrio, mas o
historiador, além de não escrever apenas para confortar, não pode
desprezar nada do que seja humano. Tampouco pode se calar diante
do que tenha efetivamente ocorrido. Calar um estádio do porte do
Maracanã não é tarefa fácil, mas não são poucos os remanescentes
daquele episódio que confirmam essa impressão. De fato, a energia
pulsional envolvida naquele evento, e em todos os congêneres, é um
fenômeno muito interessante que, além de revelador, ressalta a ma-
gia que o esporte, em geral, e o futebol em particular, exerce sobre os
homens e as mulheres que se apaixonam por ele.
Já nos alertavam vários mestres da Escola dos Annales, bem
como historiadores do porte de um Johan Huizinga, que o historia-
dor é como um “ogro”, sempre farejando o cheiro da carne humana
para dela se alimentar. O trabalho que o jovem historiador Euclides
de Freitas Couto ora nos apresenta tenta oferecer, e o faz de forma
muitíssimo competente e bem-sucedida, um nível mais elevado de
compreensão deste fenômeno da intensa interação entre o esporte,
a História e a apropriação política do futebol, e pelo futebol. Como
18
Prefácio

qualquer prática social, o esporte nos interessa, e o esporte bretão,


que conheceu sua maior relevância a partir do século XX, não pode-
rá mais ser excluído da própria avaliação de nosso tempo. É esse o
convite que Euclides Couto nos faz em Da ditadura à ditadura: uma
história política do futebol brasileiro (1930-1978), título da obra ori-
ginal que resgata outros certames também de suma importância,
quase uma reparação histórica. Ao desvendar, à luz de uma densa
e farta análise documental, diversas estratégias de dominação pos-
tas em curso pelos grupos de poder no universo do futebol, a obra
levanta um conjunto de interrogações sobre a questão da identidade
nacional, atrelando-as à sucessão das disputas pelo poder durante
boa parte do século XX.
Munido dos melhores instrumentos da crítica historiográfica
contemporânea e na esteira da notável expansão de objetos que mar-
ca a nova história política, Euclides nos apresenta um elegante pa-
norama das relações entre as lutas ideológicas e o futebol, trabalho
especialmente oportuno para aqueles que querem ir “além” da mera
torcida. Articulado a um sólido domínio das mais variadas tipologias
de fontes, o método aqui empregado é elegantemente exposto a par-
tir dos capítulos que se sucedem e nos impõem, graças ao estilo da
narrativa escolhido, crescentes graus de curiosidade sobre os segre-
dos que ainda estão por vir. Já é obra de referência nos estudos sobre
o esporte e, com certeza, marca agora de modo exemplar sua entrada
no universo mais amplo dos livros destinados ao grande público. De
fato, a obra tanto pode ser lida satisfatoriamente por especialistas e
estudiosos, como se prestar ao entretenimento, ao “pré-jogo”, para
aqueles que não tenham maior pretensão acadêmica quanto ao tema.
Seja num caso, seja em outro, é leitura altamente recomendá-
vel e com certeza trará algum conhecimento novo a seus leitores,
seja do ponto de vista meramente informativo, seja do ponto de vista
analítico. A obra chega para ficar, e que nos perdoe o velho Ghiggia,
mas a paixão que ela expressa e analisa não merece mais o silêncio
ou o esquecimento. Com ou sem cartolagem, desejo vida longa ao
futebol, alegria do povo, e boa leitura a todos.

João P. Furtado
Historiador –UFMG
Introdução

Palácio da Alvorada, Brasília, 23 de junho de 1970. O presidente


Médici recebe os jogadores brasileiros em meio a abraços e lágrimas.
A seleção de futebol havia alcançado um feito inédito na história das
Copas: sagrara-se tricampeã mundial; única, entre todas as nações, a
conquistar definitivamente a taça Jules Rimet.1

Quando recebeu Pelé, o Presidente chegou a chorar. O Rei fi-


cou entre os seus braços por algum tempo e o Presidente qua-
se não abraça o seu amigo Everaldo. Com Tostão foi a mesma
alegria e a Segurança pediu, então, que o Presidente entrasse,
pois Carlos Alberto já se dirigia para o Parlatório a fim de que
a taça fosse erguida ao povo. O Presidente Médici comandou
neste instante a festa, chamando os jogadores um a um, pedin-
do que erguessem a Taça. O povo delirava e gritava o nome dos
jogadores e “Brasil, Brasil”.2

Campus da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,


Belo Horizonte, abril de 1978. A manifestação política – rebelde e con-
testatória – inscrita nos muros da instituição chama a atenção da
imprensa alternativa. Às vésperas da Copa do Mundo da Argentina, o
centroavante do Clube Atlético Mineiro corria o risco de não embar-
car para Mar del Plata. Descontente com as agressivas declarações
dadas pelo jogador ao semanário alternativo Movimento, o almirante
Heleno Nunes, presidente da Confederação Brasileira de Desportos,

1 Vale recordar que a taça original, feita em ouro, foi furtada em dezembro de 1983 da
sede da CBF, localizada no Centro do Rio de Janeiro. Posteriormente, o capitão da
Seleção Brasileira em 1970, Carlos Alberto Torres, cedeu à entidade uma réplica da
taça que, após ser reproduzida, se encontra novamente exposta.
2 JORNAL DOS SPORTS, 24 jun. 1970, p. 3.
20
Introdução

ameaçava “cortar” Reinaldo da lista de convocados para a disputa


do mundial.

[...] em Belo Horizonte estudantes da Universidade Católica


chegaram a fazer murais mostrando reportagens e notícias
sobre o caso. Alguns universitários chegaram também a es-
crever nos muros da escola frases como “abaixo a repressão,
Reinaldo na seleção”, ou “por que Reinaldo não pode ter opi-
nião política?”3

***

A despeito do curto intervalo de tempo que separa as duas


cenas, elas são potencialmente reveladoras das ambivalências pre-
sentes no cenário político brasileiro durante o período da ditadura
militar. No decorrer desses anos, a exaustiva associação do futebol à
propaganda estatal contribuiu não somente para acentuar os víncu-
los de identidade nacional, mas também para torná-lo um espaço de
confluência das manifestações culturais e políticas. Se, na primeira
cena, a conquista do tricampeonato mundial no México representa
a coroação do discurso publicitário oficial que, desde o período pre-
paratório para a Copa, visava capitalizar simbolicamente o sucesso
da seleção, na segunda cena, as manifestações de apoio dos estudan-
tes ao jogador “rebelde” evidenciam que o futebol se apresentava
também como um espaço de interlocução política no qual diferentes
atores sociais podiam expressar seus posicionamentos ideológicos.
No início da década de 1970, projetava-se no imaginário polí-
tico brasileiro um otimismo substanciado pelos ilusórios números
do milagre econômico. No “país do futuro”, a economia apresenta-
va taxas de crescimento superiores a 8% por ano. Grandes cantei-
ros de obras infraestruturais abertos pelo Estado, como a rodovia
Transamazônica e a ponte Rio-Niterói, concorriam para legitimar os
ideais de otimismo e desenvolvimento.4 Pari passu à euforia desenca-

3 MOVIMENTO, 10 abr. 1978, p. 20b.


4 É notável que tais ideais se inscrevem na história brasileira num processo de longa
duração, cuja conformação, iniciada no século 19, sofreu forte influência dos matizes
ideológicos presentes no pensamento dos intelectuais ligados ao Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB). Durante o século 20, os pressupostos de brasilidade,
identidade nacional e otimismo se perpetuaram no campo das ideias, incorporaram
novas tendências e assumiram diferentes roupagens. Um balanço sobre a questão
21

Euclides de Freitas Couto


deada pelo crescimento econômico, no nível simbólico a propaganda
oficial elegia o futebol como um dos seus principais temas. A Agência
Especial de Relações Públicas (Aerp) buscava sintonizar suas diretri-
zes ideológicas aos elementos mais “caros ao cotidiano do homem
brasileiro”. Acompanhando as tendências publicitárias observadas
nos governos de ascendência populista, as conquistas nos gramados
foram catalisadas em prol da popularidade do governo militar, tal
como se dera nos mandatos dos presidentes Juscelino Kubitschek e
João Goulart.
No bojo desses acontecimentos, a campanha da Seleção
Brasileira na Copa do México mereceu um papel de destaque na
agenda do Estado. A serviço dos interesses ideológicos dos milita-
res, a tecnocracia estatal se empenhou sobremaneira no sentido de
oferecer apoio técnico e logístico ao futebol que, em contrapartida,
era associado às realizações do governo. Um meticuloso planejamen-
to pôde ser observado nas ações desencadeadas tanto pelos publi-
citários da Aerp quanto pela comissão militarizada que comandou
a preparação física da Seleção Brasileira.5 No mesmo ritmo em que
a marchinha “Pra frente Brasil” embalava a utopia de 90 milhões de
torcedores, os canais de televisão exibiam imagens das vitórias do
futebol brasileiro cuidadosamente selecionadas pela Aerp. Pelé, o
maior ídolo da seleção, dividia os holofotes com o presidente Médici,
cujas aparições nos campos de futebol – e também fora dele6 –, sem o
peso da farda verde-oliva, objetivavam identificá-lo como “o torcedor
número um do país”.

da identidade nacional brasileira pode ser encontrado no trabalho de REIS, 2005.


Uma valiosa análise comparativa sobre a apropriação do ideal de otimismo entre
os governos Vargas, Juscelino Kubitschek e os presidentes militares encontra-
-se exposta na pesquisa de FICO, 1997, especialmente no capítulo 1, intitulado
“Otimismo e pessimismo no Brasil”.
5 No período que antecedeu o mundial do México, ganhou destaque entre os
profissionais do futebol a discussão acerca dos cuidados especiais que deveriam
ser tomados com a preparação física dos jogadores. Ao treinamento da Seleção
Brasileira foram incorporadas diversas tecnologias de treinamento que visavam
amenizar os transtornos causados aos atletas pela altitude. Análises mais recentes
sobre o rendimento da seleção de 1970 creditam ao método desenvolvido pelo
professor Lamartine Pereira da Costa – e aplicado aos jogadores brasileiros – grande
parte da responsabilidade pela conquista do tricampeonato.
6 Consultar na pesquisa do historiador FRANCO JÚNIOR, 2007, s.p, FIG. 13, a
fotografia amplamente divulgada durante o ano de 1969 que exibe o presidente
Médici se arriscando em uma embaixadinha. Na cena inusitada, capturada pelas
lentes fotográficas, o presidente busca mostrar sua habilidade com a bola de futebol
ao tentar equilibrá-la sobre a cabeça.
22
Introdução

Já no ano de 1978, o cenário político assumia uma nova confi-


guração. O apelo populista percebido nas propagandas oficiais veicu-
ladas durante os anos de chumbo não se coadunava com os parâme-
tros ideológicos traçados pelo governo Geisel. Em meio ao clima de
esperança trazido pelos ventos libertadores da abertura política, era
possível sentir o cheiro exalado pelo entulho autoritário que manti-
nha acesas, ainda que em fogo brando, as brasas dos mecanismos de
repressão. Se, nos primeiros anos da década de 1970, o presidente
Médici podia se gabar dos altos índices de popularidade, no final do
decênio a ditadura via-se “encurralada”: a expressiva votação obtida
pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) nas eleições de 1974
evidenciava a linha descendente que acompanharia os índices de po-
pularidade dos militares até o fim do mandato do general Figueiredo.
A desarticulação do futebol da imagem do presidente da
República, verificada nos últimos anos da ditadura, não foi suficiente
para apagar da memória dos militantes e intelectuais de esquerda a
relação sinergética entre governo e futebol – presidente e ídolo – con-
sumada com a conquista do tricampeonato no México. A imagem do
presidente Médici ao lado dos craques da geração de 1970 parece ain-
da muito presente na lembrança daqueles que se opuseram ao regime
militar, o que se justifica pelo clima de terror vivenciado por grande
parte deles, principalmente durante os “anos de chumbo”. Nessa ló-
gica, a análise de suas histórias de vida pode esclarecer os fatores
que contribuíram para que, entre os setores mais ortodoxos da es-
querda brasileira, ainda seja disseminada a visão do futebol-como-
-ópio-do-povo.7 Da mesma forma, boa parte dos símbolos associados
à ditadura militar foi rejeitada ou esquecida pelos principais intelec-
tuais brasileiros. Isso provavelmente explica, em um passado recente,
a negligência ou mesmo o desinteresse dos intelectuais em estudar
o futebol. Além disso, a unilateralidade das interpretações colabora
para inibir a abertura de um campo extremamente fértil que, graças a
um esforço interdisciplinar que vem se consolidando atualmente no

7 Essa percepção ganhou força principalmente a partir dos trabalhos produzidos pelos
pensadores ligados à Escola de Frankfurt. Segundo ADORNO, 1986, o esporte moderno,
ao se inserir na racionalidade capitalista, absorveu simultaneamente as funções de
disciplinamento e entretenimento dos indivíduos. Na primeira delas, o objetivo é
treinar o atleta para que ele possa se adequar à lógica da competição, princípio
basilar das relações capitalistas; na segunda, o esporte, vítima da mercantilização
promovida pela indústria cultural, tornar-se-ia um mecanismo de despolitização da
sociedade, na medida em que o engajamento no jogo e o envolvimento emocional na
torcida afastariam os indivíduos das discussões políticas.
23

Euclides de Freitas Couto


campo das Ciências Humanas, tem suscitado análises e explicações
sobre inúmeros espectros presentes na realidade social brasileira.8
Nos anos da ditadura militar, percebemos que em torno do fu-
tebol se multiplicaram as manifestações de rebeldia, de contestação
aos valores sociais e de descontentamento político expressas por
diferentes atores sociais. Tais ações ganharam coro nas vozes de jo-
gadores e artistas, nas crônicas jornalísticas e também nas charges
e cartuns veiculados pelos periódicos da época. Lançando mão de
uma gama variada de repertórios de ação política reproduzidos por
diferentes linguagens, esses sujeitos se apropriaram do abrangente
espaço de interlocução proporcionado pelo futebol. Partimos da pre-
missa de que, assim como outros elementos presentes na cultura, o
esporte, à medida que se popularizou, assumiu novos significados,
tornando-se um fenômeno abrangente capaz de desvelar os confli-
tos, os interesses, os sentimentos e as lutas simbólicas9 travadas no
mundo social.
Inicialmente, as motivações que impulsionaram a escrita deste
livro se relacionavam diretamente aos desdobramentos políticos en-
contrados no campo do futebol ao longo do período em que o Brasil
esteve sob o poder da ditadura militar (1964-1985). No entanto, o
cotejamento inicial às fontes de pesquisa revelou que desde a Copa
do Mundo de 1938,10 quando o país vivia sob o regime ditatorial de
Getúlio Vargas, a Seleção Brasileira de futebol foi capitalizada e incor-
porada ao rol de símbolos da nação, utilizada, recorrentemente, pela
propaganda oficial. Não obstante, o curso da história política brasi-
leira revela que, nos governos que sucederam Getúlio Vargas, a con-
tinuidade dessa estratégia, alavancada por governos tanto democrá-
ticos quanto autoritários, demonstra a conformação de uma cultura

8 De acordo com TOLEDO, 2001, p. 134, a incursão das ciências sociais no universo
esportivo teve início em meados da década de 1970, especialmente em centros
de excelência acadêmica. Impulsionados, sobretudo, pelas investigações dos
fenômenos urbanos, os estudos sobre os esportes passaram lentamente a ocupar
espaço entre os temas consagrados nesse campo.
9 De acordo com a formulação de BOURDIEU, 1990, p. 161-162, no âmbito objetivo, as
lutas simbólicas são deflagradas pelas representações individuais ou coletivas que
procuram concretizar de modo visual ou oral determinadas realidades circunscritas
ao espaço social.
10 Embora a Seleção Brasileira tenha participado das duas edições anteriores da Copa
do Mundo Fifa, realizadas, respectivamente, no Uruguai (1930) e na Itália (1934),
sua efetiva apropriação política pela propaganda estatal se manifestou na Copa do
Mundo de 1938, ocorrida na França.
24
Introdução

política11 colocada em curso pelo Estado, materializada em ações


políticas, especialmente nos períodos das Copas do Mundo. São es-
sas mobilizações as responsáveis, até os dias atuais, por promover o
“deslocamento de significado de nação para seleção, e vice-versa”.12
Estabelecidas estas formulações preambulares, o livro se pro-
põe a enfrentar dois principais desafios: o primeiro de evidenciar, por
meio da incursão na história das Copas de Mundo de Futebol que se
realizaram entre os anos de 1938 e 1970, as formas de capitalização
ideológica da Seleção Brasileira, no interior da propaganda estatal. O
segundo, intimamente relacionado ao primeiro, diz respeito à manei-
ra pela qual o futebol, especialmente após 1970, se tornou um espaço
de manifestação política para os jogadores.
Ao longo da pesquisa, esta proposta inicial se desdobrou em
outros questionamentos igualmente desafiadores: em que medida
a popularização do futebol e sua concomitante apropriação políti-
ca pelo Estado – fenômenos consubstanciados durante a primeira
metade do século 20 – contribuíram para a conformação do futebol
como um espaço de interlocução política nas décadas de 1960-1970?
Durante esses anos, quais os sentidos assumidos pelas manifesta-
ções políticas dos jogadores e demais sujeitos que travaram lutas
simbólicas promovidas no universo do futebol brasileiro?
O enfrentamento dessas questões nos lançou um duplo proble-
ma: o primeiro remete à inteligibilidade dos processos desenvolvidos
no interior da história política brasileira, cujas estratégias publicitá-
rias oficiais elegeram o futebol, desde a década de 1930, como um ca-
talisador da identidade nacional. A contínua apropriação do futebol,
assim como de outras práticas culturais, pela propaganda oficial é
certamente um dos fatores essenciais para se compreender, especial-
mente durante o ano de 1970, o sucesso da “parceria” firmada entre o
governo e a seleção de futebol.
O segundo problema diz respeito à análise sobre a acumulação
de significados ocorrida durante o desenvolvimento do esporte bre-
tão no decorrer do século 20. Diacronicamente, o futebol, assim como
outras práticas esportivas, sofreu influências de diversas naturezas.

11 A historiadora Ângela de Castro Gomes, 2005, p. 31, sinaliza que a categoria cul-
tura política pode ser considerada como um conjunto de representações que são
compartilhadas por aqueles indivíduos e grupos cujo nível de participação varia de
acordo com sua adesão a determinado ambiente cultural.
12 DAMO, 2012, p. 54.
25

Euclides de Freitas Couto


Os sentidos observados no período de sua difusão no país, predomi-
nantemente o lúdico e o higiênico, passaram a dividir espaço com as
novas formas de engajamento coletivo decorrentes da constituição de
um público torcedor e da construção dos estádios; ou seja, da confor-
mação de redes de pertencimento clubístico, de identidades sociais e
da ampliação dos espaços de entretenimento e lazer, tudo ancorado
em uma complexa rede de comunicação que se desenvolveu ao longo
da primeira metade do século 20. Como se verá, somente o entrecru-
zamento de todos esses elementos torna possível a compreensão dos
desdobramentos políticos relacionados à trajetória do futebol no pe-
ríodo compreendido entre os anos de 1938 e 1978.

Como sugere Collingwood,13 “o dogmatismo é um sinal cons-


tante de imaturidade”. Atualmente, as investigações historiográficas
se articulam a partir de vários caminhos, matizes teóricos e recursos
metodológicos. Este livro não foge a essa tendência. Ao elegermos
um recorte temporal preciso – o intervalo de tempo entre 1930 e 1978
–, não invalidamos a necessidade de trabalhar com um conjunto he-
teróclito de fontes, as quais não foram, necessariamente, dissecadas
de forma homogênea ao longo do recorte temporal estabelecido.
Essa medida, pouco ortodoxa, visou estreitar um diálogo direto com
a produção historiográfica, especialmente com aquelas pesquisas
que se debruçaram sobre as análises do futebol no período da dita-
dura Vargas.
Diacronicamente à escolha do recorte temporal e do objeto de
estudo, abriram-se algumas possibilidades de acesso aos vestígios,
pistas e “sinais” encontrados nos discursos dos intelectuais, dos jo-
gadores e até dos artistas que descobriram no espaço midiático ocu-
pado pelo futebol espetáculo14 uma arena para a circulação das suas
ideias. Ao acompanhar os elementos norteadores da pesquisa histó-
rica reivindicados desde a Escola dos Annales,15 abdicamos também

13 COLLINGWOOD, 1972, p. 15.


14 Essa clivagem, definida pelo antropólogo Arlei Damo, 2003, p. 139, a partir da
teoria elisiana, oferece a possibilidade de estabelecer as distinções necessárias
para se compreenderem as diferentes configurações assumidas pelo futebol no
Brasil. O futebol espetáculo, em oposição aos outros futebóis praticados no país,
se caracteriza por ser um fenômeno altamente midiatizado, por inserir uma clara
divisão do trabalho e por produzir a circulação de um enorme fluxo de emoções
advindas dos torcedores.
15 Sobre a questão da abertura e ampliação do campo das fontes históricas, consultar
a abordagem clássica construída por FEBVRE, 1977.
26
Introdução

de quaisquer ortodoxias ou tentativas de hierarquizações em relação


às fontes.
Inicialmente, procuramos captar e investigar as representações
da imprensa relativas às questões culturais e políticas que envolviam
o futebol brasileiro. Em relação ao período que compreende a “Era
Vargas”, incluímos em nosso corpus documental, além de um conjun-
to inexpressivo de representações extraídas da imprensa esportiva,
inúmeros trabalhos produzidos por historiadores e cientistas sociais
que se dedicaram à análise sociocultural e política do futebol. Esse
recorte temporal tem sido, indubitavelmente, um dos mais visitados
pelos historiadores do futebol16 nos últimos anos.
Todavia, entre as décadas de 1950 e 1970, empreendemos nos-
sos esforços na análise direta dos discursos construídos pela im-
prensa esportiva. Procuramos identificar nas imagens, entrevistas,
narrativas e crônicas os discursos, as ideologias e as mentalidades
que compunham o cenário futebolístico. É, sobretudo, através des-
ses discursos que procuramos compreender as idiossincrasias pre-
sentes na tessitura social, as quais nos fornecem os elementos para a
apreensão dos significados das manifestações políticas desencadea-
das nesse período. A utilização de periódicos como fonte de pesqui-
sa para os historiadores remonta à tradição criada pela História Nova
nas décadas de 1920-1930, época em que a concepção de documento
foi problematizada e ampliada. Diante das novas demandas de co-
nhecimento, da possibilidade de renovação temática e, sobretudo,
da relativização da ideia de ciência,17 o movimento iniciado pelos an-
nales abriu novos horizontes para a pesquisa histórica, na medida
em que possibilitou a emergência de novos problemas e novos obje-
tos de pesquisa.18
Contudo, os mesmos ventos que impulsionaram a abertura
dos novos objetos e a incorporação de novas tipologias de fontes
à pesquisa histórica também trouxeram consigo novos desafios ao
pesquisador. Não cabe aqui realizar um balanço pormenorizado
de todas as implicações teórico-metodológicas e transformações

16 Para a análise das representações do futebol nesse período, recorremos principalmente


aos seguintes trabalhos: ANTUNES, 1994; FRANZINI, 2000, 2003; HELAL, GORDON JR.,
2001, 2004; PEREIRA, 2000; SANTOS, 1981; SILVA, 2000, 2004; e SOARES, 2001a.
17 Sobre a discussão em torno do campo de conhecimento histórico, consultar os
trabalhos de SCHAFF, 1978, especialmente o capítulo 1, da segunda parte, intitulado
“O condicionamento social do conhecimento histórico”, e REIS, 1996, 2000.
18 LE GOFF; NORA, 1977, p. 10.
27

Euclides de Freitas Couto


epistemológicas decorrentes do processo de renovação da história,
mas apenas compreender a importância delas. Tais metamorfoses
tornaram o terreno da pesquisa histórica mais pantanoso e cercado
de armadilhas. Ao nos depararmos com os periódicos, por exemplo,
faz-se necessário um exame criterioso que implica a realização de
procedimentos metodológicos como a crítica interna e externa dos
documentos.19 Em suma, é preciso tomar uma atitude cautelosa em
relação aos textos e imagens. Tais registros não “falam por si”. É in-
dispensável correlacioná-los ao contexto histórico em que foram
produzidos, procurando identificar tensões, conflitos e interesses
políticos presentes em suas entrelinhas. Nosso objetivo não é o de
descobrir “a verdade” nesses registros, mas de problematizá-los sob
as circunstâncias em que eles foram construídos.
Ademais, é preciso incluir no rol dos “cuidados” tomados no
processo de análise dos periódicos a questão das filiações e tendên-
cias adotadas pela linha editorial e as ligações dos jornalistas com
grupos de poder político e econômico, além de não desconsiderar
o fato de que os editoriais e as redações são espaços que aglutinam
diferentes linhagens políticas, elementos que igualmente contribuem
para a conformação do campo intelectual.20
A adoção desses procedimentos no trabalho de análise dos
periódicos possibilitou, de fato, a captação de elementos reveladores
dos bastidores políticos e do sentimento de nacionalidade presencia-
do tanto nas crônicas quanto nas manifestações populares ocorridas
nos períodos relativos às Copas do Mundo. No mundial de 1950, re-
alizado no Brasil, o clima de euforia despertado na população pelo
futebol foi captado pela imprensa em seus mínimos detalhes. Nesse
período, a publicidade, acompanhando as tendências internacionais,
passou a eleger o futebol como um dos seus principais ícones. Jornais
como o Diário de Minas e a revista O Cruzeiro veiculavam peças publi-
citárias que revelavam o grande espaço adquirido pelo jogo da bola no
imaginário coletivo dos brasileiros. A cobertura da Copa de 1950 tam-
bém explicitou a conformação dos sentimentos de nacionalismo e pa-
triotismo conduzida pelo futebol. Nas crônicas produzidas à época, o
povo era conclamado a “torcer pela seleção e se orgulhar do seu país”.

19 Detalhes sobre estes procedimentos podem ser encontrados no manual elaborado


por GLÉNISSON, 1977, especialmente no capítulo IV, intitulado “A crítica dos
testemunhos”.
20 LUCA, 2005, p. 141.
28
Introdução

Ao longo das décadas de 1960-1970, a partir das representa-


ções construídas pelos periódicos, também foi possível observar a
penetração do autoritarismo militar no seio da sociedade brasileira,
assim como as manifestações de descontentamento com esse qua-
dro desencadeadas, sobretudo, pelas atitudes de jornalistas e joga-
dores. Enquanto grande parte da imprensa procurava difundir os
fundamentos básicos do autoritarismo, elegendo a Seleção Brasileira
e os clubes como verdadeiras vitrines onde eram expostos os ideais
de disciplinamento, hierarquia e obediência, as atitudes de alguns
jogadores21 caracterizavam-se como manifestações de contestação
a esse modelo. Por outro lado, se a grande imprensa mostrava-se
alinhada aos ditames do autoritarismo, a imprensa alternativa22 pro-
curava fazer coro aos ataques à ditadura militar e às críticas aos pa-
drões de comportamento hegemônicos disseminadas pelas atitudes
e pelos discursos dos jogadores de futebol.
A pesquisa sobre os discursos construídos pela imprensa em tor-
no do futebol se iniciou pela busca de relatos sobre a década de 1930.
Nessa abordagem, procuramos, por meio da literatura histórica e so-
ciológica do período, compreender as particularidades sobre o proces-
so de incorporação do futebol pela propaganda estatal. Recorremos,
também, aos materiais empíricos colhidos pelos historiadores Elizar
Silva,23 Plínio Negreiros,24 Hilário Franco Júnior,25 Joel Rufino dos
Santos26 e pelo jornalista Tomaz Mazzoni,27 entre outros. A pesquisa
arquivística que encampou o recorte temporal entre os anos de 1950 e
1978 se iniciou em Belo Horizonte, na Hemeroteca Pública do Estado de
Minas Gerais e na Hemeroteca da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Na primeira foram encontrados os jornais A Noite, Diário
de Minas, Estado de Minas, Folha de Minas, Jornal do Brasil e O Diário,

21 Analisamos as manifestações de rebeldia e/ou contestação dos valores dominantes


em diferentes representações construídas a partir das atitudes e dos discursos dos
jogadores Afonsinho, Paulo Cezar Caju, Reinaldo e Tostão.
22 De acordo com o KUCINSKI, 2003, a imprensa alternativa, conhecida também como
imprensa nanica, além de reproduzir práticas não associadas à cultura dominante,
adotou uma postura combativa ao autoritarismo, utilizando estratégias que iam
desde a crítica direta aos governantes e atos do governo até o deboche expresso
por meio de comentários e crônicas, assim como pela linguagem caricatural.
23 SILVA, 2004.
24 NEGREIROS, 1998.
25 FRANCO JÚNIOR, 2007.
26 SANTOS, 1981.
27 MAZZONI, 1950.
29

Euclides de Freitas Couto


além das revistas Foto Esporte, Manchete, O Cruzeiro e Realidade. Na se-
gunda, consultamos os jornais Correio da Manhã, O Globo, O Estado de
S. Paulo e, ainda, os alternativos Movimento e O Pasquim. No arquivo do
jornal Estado de Minas encontramos também as edições mais recentes
deste periódico publicadas nas décadas de 1970-1980.
O trabalho de levantamento de fontes teve sequência na cida-
de do Rio de Janeiro, mais precisamente no setor de periódicos da
Biblioteca Nacional, onde encontramos um acervo bem conservado
contendo a coleção completa do Jornal dos Sports circulante entre os
anos de 1931 e 1994. Este acervo foi de fundamental importância para
nossas pretensões analíticas. Na Biblioteca Nacional, tivemos acesso
também aos jornais Folha de S. Paulo, O Globo, e ao jornal alternativo
Opinião, além da revista Placar.28
Apesar do número expressivo de representações extraídas das
diversas formas de discursos (crônicas, reportagens, ilustrações e
fotografias) veiculados pelos periódicos, julgamos prudente a com-
plementação do corpus documental. Assim, com o intuito de ampliar
a compreensão sobre as atitudes, os gestos e as simbologias adota-
das pelos jogadores, objetos centrais de nossa investigação, recor-
remos também às narrativas biográficas e às fontes orais. No primei-
ro caso, consultamos as biografias sobre o técnico e jornalista João
Saldanha;29 sobre os jogadores Reinaldo30 e Garrincha,31 além das
autobiografias do craque Tostão32 e do medalhista olímpico norte-
-americano Tommie Smith;33 também recorremos a uma pesquisa de
cunho sociológico que aborda a questão da rebeldia presente na tra-
jetória profissional do jogador Afonsinho.34
Em um valioso balanço sobre a questão das biografias no atual
contexto historiográfico, a historiadora Vavy Borges35 recupera diver-
sos argumentos construídos pela historiografia francesa que avali-
zam a utilização da narrativa biográfica como fonte histórica. Jacques

28 Um relato completo sobre a cronologia dos periódicos encontra-se anexado ao final


da obra.
29 MÁXIMO, 2005; SIQUEIRA, 2007.
30 Sobre Reinaldo, consultar LIMA, 2002; VIANNA, 1998.
31 CASTRO, 1995.
32 TOSTÃO, 1997.
33 SMITH, 2008.
34 FLORENZANO, 1998.
35 BORGES, 2005.
30
Introdução

Le Goff, por exemplo, argumenta que a biografia “é um complemento


indispensável da análise das estruturas sociais”.36 Além do interesse
dos franceses, o fetiche por este tipo de documento é perceptível
em outras correntes historiográficas: tanto os ingleses, de inspiração
marxista, como a nova história cultural norte-americana e a micro-
-história italiana37 – além dos historiadores brasileiros – têm se ren-
dido às trajetórias individuais.38 O trabalho com as biografias tem se
mostrado extremamente promissor, na medida em que o permanente
diálogo com a literatura vem enriquecendo a história com novas téc-
nicas e ferramentas teóricas oriundas dessa área de conhecimento.
Com efeito, tal aproximação impõe certas precauções39 de ordem
teórico-metodológica, uma vez que os sujeitos históricos, apesar de
observados a partir de uma trajetória singular, situam-se num passa-
do real, diretamente conectado a uma realidade social. Dessa forma,
as virtudes das fontes biográficas residem na possibilidade de se re-
construírem, por meio das trajetórias individuais, traços do imaginá-
rio coletivo, aspectos da vida cotidiana e, sobretudo, as tensões e os
antagonismos inscritos no passado.
Cientes dos limites impostos por essas fontes, recorremos
também ao uso da história oral como metodologia complementar de
pesquisa. Foram realizadas seis entrevistas entre os anos de 2007 e
2009. Além dos ex-jogadores Afonsinho, Paulo César Caju, Reinaldo
e Sócrates, entrevistamos o cantor e compositor Sérgio Ricardo, um
dos primeiros artistas a utilizar a temática do futebol com o intuito
de construir uma crítica social por meio da música. Em virtude de
sua trajetória marcada pela militância política e por possuir uma lon-
ga amizade com o jogador Reinaldo nos tempos de sua juventude,
entrevistamos também o psicólogo Leonardo Libânio Christo. Em
relação a esses depoimentos, optamos desde o primeiro momento
pelas entrevistas temáticas, uma vez que as narrativas de vida, na

36 BORGES, 2005, p. 209.


37 Em sua obra clássica O queijo e os vermes, o historiador italiano Carlo Ginzburg,
1998, narra a trajetória do moleiro Domenico Scandella, desenrolada numa pequena
aldeia nas colinas do Friuli. Menocchio, como era conhecido, diferenciava-se
dos seus contemporâneos por ter desenvolvido a capacidade de ler, escrever e,
principalmente, articular ideias que contrariavam os dogmas da Igreja Católica.
A narrativa de Ginzburg revela, para além da excentricidade do personagem e da
perseguição empreendida pela Igreja Católica, a própria circularidade das ideias
que permeavam o cotidiano da Itália renascentista.
38 SCHMIDT, 1997, p. 3.
39 Sobre esses procedimentos, consultar a análise construída por LEVI, 1996.
31

Euclides de Freitas Couto


maioria das vezes, desviam a atenção do entrevistado para outros
assuntos que não se inserem no universo da pesquisa. Assim, as
questões propostas buscaram, de forma geral, direcionar a rememo-
ração dos entrevistados para o objeto pesquisado. Este procedimen-
to, entretanto, não os privou da lembrança de situações particula-
res ou coletivas significativas em suas vidas, importantes, portanto,
para o afloramento das tensões políticas que permeavam o período
em questão. Partindo da premissa defendida por Lucília Neves40 de
que a memória é um dos “substratos da identidade”, acreditamos
que estas entrevistas se constituíram como momentos vivificadores
da relação entre história, memória e identidade. A produção desses
documentos orais permitiu a captação das idiossincrasias presentes
nas trajetórias pessoais dos entrevistados, e que só poderiam aflorar
pelo processo da rememoração.
Sobre essas potencialidades da memória, os trabalhos de
Pierre Nora e Lucília Neves41 foram importantes referências para nos-
sa análise e compreensão. Em comum, estes autores demonstram a
importância da memória para a recuperação dos vestígios históricos
que se perderam no passado. Além disso, o exercício de rememora-
ção constitui-se não apenas como a reconstrução da história, mas
como a busca da própria identidade que se desmanchou com o tem-
po. Esse aspecto ficou evidenciado nas entrevistas realizadas para
este livro. Na maior parte dos depoimentos colhidos, os ex-jogadores
deixaram transparecer sua emoção quando rememoraram experiên-
cias relacionadas a sua atuação política em um tempo passado.
Aspásia Camargo afirma que “o uso da metodologia da história
oral possibilita melhor compreensão de sistemas e realidades com-
plexas muitas vezes impenetráveis pela documentação tradicional”.42
Em relação às particularidades presentes no universo do futebol,
constatamos que os aspectos relacionados aos sentimentos pessoais
que envolviam a atuação política dos jogadores tornaram-se muito
mais perceptíveis quando captados nos depoimentos. Em sua aná-
lise sobre as virtudes da história oral, Paul Thompson43 argumenta
que, no processo que envolve a rememoração dos entrevistados, é

40 NEVES, 2000, p. 113.


41 NORA, 1993; NEVES, 2000.
42 CAMARGO, 1994, p. 27.
43 THOMPSON, 1992.
32
Introdução

possível reconstruir não somente suas narrativas pessoais, mas tam-


bém a história coletiva daquele período.
A utilização da história oral foi um exercício instigante. Assim
como as biografias, o contato com uma metodologia considerada
“emergente” impôs a adoção de alguns “cuidados” procedimentais,
os quais, segundo Pierre Nora,44 são fundamentais para que a carga
emocional do entrevistador e dos entrevistados não comprometa o
conteúdo histórico depreendido dos relatos. Seguindo este raciocí-
nio, o estudo de Lucília Neves alerta para a importância de se ado-
tarem critérios sólidos e objetivos para a realização das entrevistas,
buscando estimular entre os depoentes o “afloramento aberto e dia-
lético do ato de rememorar”.45
Em consonância com esses pressupostos teórico-metodoló-
gicos, as entrevistas feitas com ex-jogadores buscaram identificar e
analisar, por meio destes testemunhos, as manifestações de autori-
tarismo no futebol brasileiro, as questões políticas que envolviam a
profissão de jogador de futebol e, principalmente, os fatores que con-
correram para que o futebol se tornasse um espaço de interlocução
política durante as décadas de 1960-1970.
Além de mobilizar esse conjunto de fontes, também recorre-
mos a inúmeras publicações que forneceram subsídios teóricos e in-
formações sobre o panorama histórico-social e político brasileiro no
período analisado. Os estudos sobre o futebol, em especial aqueles
realizados nas duas últimas décadas, foram igualmente indispensá-
veis para a construção deste livro. É importante destacar que, nes-
se período, o interesse por tal tipo de estudo vem crescendo consi-
deravelmente em várias partes do mundo. No Brasil, os trabalhos
pioneiros publicados no início da década de 1980 por pesquisadores
ligados ao Programa de Pós-graduação do Museu Nacional do Rio
de Janeiro46 lançaram novas questões acerca das representações do
futebol, ampliando os horizontes para a pesquisa do tema no interior
das Ciências Sociais. No âmbito da História, temos observado um
crescente interesse dos pesquisadores pela história do futebol, in-
dubitavelmente o carro-chefe da formação do campo da história do

44 NORA,1993, p. 16.
45 NEVES, 2000, p. 112.
46 Referimo-nos, especialmente, à coletânea intitulada O universo do futebol: esporte e
sociedade brasileira organizada pelo antropólogo Roberto Da Matta, publicada em
1982.
33

Euclides de Freitas Couto


esporte,47 nas últimas duas décadas. A despeito das inúmeras abor-
dagens presentes nesse campo científico, sobressaem os estudos so-
bre a relação entre futebol e identidade nacional,48 cuja imbricação,
iniciada nos idos de 1930, perpetua-se até os dias atuais. Também
consultamos trabalhos que correlacionam o futebol às questões so-
cioculturais, como as relações de gênero, a violência urbana, a co-
municação e a economia. Por opção metodológica, o vasto material
consultado será devidamente apresentado à medida que for sendo
utilizado como referência às temáticas abordadas pelo texto.
Devemos advertir que neste livro, de forma proposital, não
trataremos de assuntos tais como a organização dos clubes de fu-
tebol e o desenvolvimento dos modelos das competições nacionais,
tampouco nos aprofundaremos nas questões relativas às políticas
públicas ligadas ao esporte. Reiteramos que a seleção dos temas es-
tudados – como as Copas do Mundo, por exemplo – obedeceu à lógi-
ca da repercussão dos fatos pela imprensa, bem como à análise dos
documentos orais e biográficos.
Trilhando os caminhos apresentados nesta introdução, pretende-
mos contribuir para o entendimento dos elementos que compõem a cul-
tura política brasileira que se manifesta no campo futebolístico. Nossa
intenção, ao decifrar os entrecruzamentos da história política e do es-
porte, é demonstrar que o futebol – para além das suas representações
hegemônicas de catalisador da ginga e da malandragem do nosso povo
ou de instrumento de manobra popular para os governos autoritários –
ganhou forma de fenômeno social abrangente, capaz de reproduzir os
tensionamentos políticos presentes na sociedade brasileira.

O livro é composto por três capítulos. No primeiro deles, ana-


lisamos o contexto da popularização do futebol no Brasil. Interessa-
nos, em particular, identificar as determinantes históricas e sociais
que permitiram que o futebol – para além dos sentidos de jogo e
espetáculo – se constituísse como um elemento fundamental da
cultura brasileira, agregando, entre outras funções, a de espaço de
interlocução política. Para tanto, iniciamos nossa investigação nos
anos de 1930, época da popularização do esporte no país. Durante a
“Era Vargas”, apropriado pela ideologia estado-novista, o futebol foi

47 Ver MELO et al. 2013.


48 Destacam-se nessa vertente os trabalhos de ANTUNES, 2004; SILVA, 2004; FRANZINI,
2000; e AQUINO, 2002.
34
Introdução

utilizado como instrumento de manipulação das massas, adquirindo


legitimação como um dos símbolos da identidade nacional. Tal cons-
trução ganhou força nos discursos de intelectuais como Gilberto
Freyre e também de jornalistas, como Mário Filho, cujas crônicas e
comentários, amplamente difundidos na época pelos periódicos e
pelo rádio, buscavam exaltar as virtudes técnicas e “estéticas” do
jogo praticado por negros e mulatos, associando-as ao discurso da
democracia racial. Durante as Copas de 1958 e 1962, período em que
o país foi governado respectivamente por Juscelino Kubitschek e
João Goulart, presidentes de ascendência populista, verificamos que
a Seleção Brasileira continuou sendo associada à imagem do governo
e da nação. Essa associação visava promover, nos moldes populis-
tas, uma perfeita sinergia entre o governante e a massa mobilizada
pelas Copas do Mundo. Nesse sentido, percebemos que, a partir da
conquista da Copa da Suécia em 1958, as vitórias nos mundiais pas-
saram a ser tratadas no Brasil como metas de governo, agregando
ao futebol um importante viés ideológico que se manteve nas ações
políticas do Estado até os tempos da ditadura militar.
No segundo capítulo, objetivamos compreender as formas e
circunstâncias em que o futebol foi apropriado pelos diferentes ato-
res sociais ao longo dos anos da ditadura militar no Brasil. Julgamos
que, em um período marcado pela efervescência cultural e pelo em-
bate político, o estudo das formas de apropriação social do futebol
pode desvelar tanto os mecanismos ideológicos utilizados pelos gru-
pos dominantes para se legitimarem no poder, como os sentidos in-
corporados pelo esporte no cenário político. Optamos também por
analisar os mecanismos de apropriação política da Seleção Brasileira
durante as Copas da Inglaterra (1966) e do México (1970). Se em 1966
verificamos, por meio da análise dos periódicos, a existência de um
processo de exploração comercial da Seleção Brasileira, desencadea-
do principalmente por políticos ligados à ala conservadora, em 1970
a militarização da CBD evidenciou a transformação sistemática dos
canarinhos em instrumento da propaganda ideológica da ditadura.
No terceiro capítulo, são investigadas as diferentes formas de
manifestação política presentes no universo do futebol brasileiro du-
rante os anos do regime militar. A gradativa militarização do futebol
observada ao logo desse período evidenciou a intenção do Estado de
incorporá-lo definitivamente ao panteão dos símbolos da propagan-
da oficial. No âmbito das relações sociais, especialmente na esfera
35

Euclides de Freitas Couto


esportiva, os pressupostos do autoritarismo, aliados ao discurso
modernizador da Educação Física, conduziram mudanças substan-
ciais nos modelos técnico e administrativo que vigoravam tanto na
Seleção Brasileira quanto nos clubes de futebol. Notamos que a im-
posição de regras disciplinares aos jogadores profissionais encontra-
va ressonância tanto nas palavras dos governantes como na maior
parte da imprensa que, por sua vez, procurava legitimar os ideais de
ordem e disciplina que se imiscuíam no universo do futebol brasilei-
ro. Todavia, apesar de se constituir como um dos principais elemen-
tos do imaginário social que permeou o futebol brasileiro ao longo
dos anos de 1970, o autoritarismo encontrou resistências. Embora se
apresentassem como exceções ao “tipo ideal” do jogador brasileiro,
personagens como Afonsinho, Paulo César Caju, Reinaldo e Tostão
conseguiram, cada qual ao seu modo, manifestar seu descontenta-
mento com os valores sociais e com as práticas políticas vigentes. Ao
assumirem diferentes estéticas e estratégias de ação política, esses
agentes transformaram o abrangente espaço simbólico promovido
pelo futebol espetáculo em uma arena na qual se digladiavam as lutas
políticas.
Capítulo 1

A capitalização política do futebol: diferentes estratégias


empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Se futebol desse estabilidade a governos,


Mussolini não teria sido morto e dependurado.
João Saldanha, Movimento, 1978.

No Brasil o futebol assumiu muitos significados desde que


desembarcou nas últimas décadas do século 19. Se, no período de
sua chegada, aparentava ser apenas mais uma novidade trazida pela
burguesia inglesa, em pouco tempo ele ganhou espaço entre os pés
descalços dos negros e mestiços dos subúrbios das principais cida-
des. A rápida difusão, principalmente nos grandes centros, fez com
que o esporte bretão assumisse, já na década de 1930, os contornos
de um fenômeno de massa. A partir de então, o futebol entrou defi-
nitivamente na agenda política, tornando-se elemento fundamental
tanto para a difusão dos discursos e das doutrinas oficiais, como de
construção de uma identidade popular. Em meados do século 20, não
seria nenhum exagero nos autodefinirmos como “a pátria em chutei-
ras”, como o fez Nelson Rodrigues (1994, p. 179).
Tendo em vista os desideratos desta obra, o objetivo deste ca-
pítulo é construir interpretações acerca das múltiplas configurações
socioculturais e políticas que o futebol assumiu no Brasil, entre os
anos de 1930 e 1960, período no qual, por fim, concentraremos nos-
sas análises no restante deste trabalho. Ao longo do século passa-
do, as transformações decorrentes do desenvolvimento capitalista
impulsionaram não apenas as inovações tecnológicas nos meios de
transporte e comunicação. No Brasil, elas abarcaram ainda os fenô-
menos culturais e as manifestações políticas, que assumiram novas
38
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

formas de expressão. No bojo dessas transformações, o futebol tam-


bém foi ressignificado na (e pela) sociedade, assumindo contornos
de um esporte de espetáculo, concomitantemente exibindo a feição de
uma arena na qual se reverberam as tensões ideológicas presentes
em cada contexto histórico.

1.1. Futebol na Era Vargas: o esporte como política de


Estado

A partir da chamada Revolução de 1930 o futebol acompanhou


os rumos da modernização iniciada pelos republicanos em 1889. O
rompimento com as oligarquias paulistas, delineado especialmente
pelos conchavos políticos que levaram Vargas ao poder, representa-
va, em outra dimensão, a ascensão dos segmentos médios urbanos e
do operariado que engrossava o eco daqueles que exigiam reformas
sociais. O modelo de estado implementado a partir de Prudente de
Morais não conseguiu atender plenamente aos anseios de nenhum
dos grandes grupos que controlavam a política brasileira. A situação,
agravada pela crise internacional do final dos anos 1920, suscitou a
participação de novos grupos urbanos compostos por civis de diver-
sas facções partidárias, por militares e pelas chamadas oligarquias
dissidentes que, apesar da heterogeneidade dos seus projetos, con-
seguiram unir forças e levar Vargas ao poder (FAUSTO, 2001).
A nova ordem política e social engendrada pelo Governo Vargas
na década de 1930 anunciava um projeto de intervenção pública em
várias esferas da vida social, especialmente após a criação do Estado
Novo em 1937. O controle dos partidos políticos e dos trabalhadores,
assim como as alianças firmadas com diversas instituições sociais,1
sinalizava a tentativa de se criar uma nação homogênea, um verda-
deiro corpo de brasileiros, que seguiria os passos ditados magistral-
mente pelo seu líder (LENHARO, 19863, p. 16, 17).
De inspiração claramente positivista, os preceitos de organi-
cidade social desenvolvidos por Durkheim constituem-se como a
base ideológica do projeto de nação engendrado pelo Estado Novo.
Nessa ótica, o corpo humano é “instrumentalizado”, disciplinado e
até militarizado; é preciso que ele esteja adaptado para o trabalho.
Esse modelo de crescimento da nação dependia fundamentalmente

1 Segundo Bercito (1990), dentre elas merecem destaque a Igreja Católica, os sindicatos,
a educação e o esporte.
39

Euclides de Freitas Couto


da produtividade do indivíduo; caberia ao Estado, portanto, instru-
mentalizar e disciplinar a utilização dos corpos, conforme já pregava,
no século 19, o médico higienista Georges Denemy (1931, p. 9 apud
SOARES 2002, p. 99), idealizador da ginástica francesa.
Foi nesse contexto que o esporte assumiu as funções de um
“órgão” de disseminação e materialização dos anseios nacionais.
A intervenção do Estado no setor esportivo projetava-se em dois
grandes focos: de um lado, retomava o discurso higienista, que pre-
conizava o ordenamento e a domesticação da população por meio
do controle dos seus movimentos corporais (LINHALES, 1996, p. 91);
de outro, pretendia fortalecer a imagem do Estado, associando-o às
vitórias no campo esportivo.

A propósito, Eliazar Silva (2004) revela que a Constituição de


1937 estabelecia a obrigatoriedade da Educação Física em todas as
escolas primárias, normais e secundárias. Por meio da Educação
Física, o esporte passou a ser incorporado, de maneira definitiva,
pelo projeto organicista do Estado, o que contribuiu para que, grada-
tivamente, ele perdesse sua autonomia e pluralidade e até sua dimen-
são conflituosa na sociedade.2
A despeito da obrigatoriedade em todas as escolas brasileiras,
não podemos afirmar que a Educação Física serviu como o principal
veículo de disseminação do futebol. Em 1937, foi criada a Divisão de
Educação Física, órgão submetido ao Ministério da Educação e Saúde
e controlado por militares. Nesse período, no ensino militarizado da
Educação Física, predominavam atividades que valorizavam a disci-
plina e a ordem, e que tinham no corpo seu principal instrumento de
disciplinarização. Esse caráter militar prestigiava atividades como a
ginástica francesa e a ginástica americana, em detrimento de espor-
tes como o futebol que, por sua vez, ampliavam as possibilidades de
diversificação dos movimentos corporais (LINHALES, 1996, p. 119).
Se, como atividade física, o futebol não mereceu destaque no
projeto educacional do Estado Novo, enquanto esporte espetáculo
ele se consolidou como um dos símbolos da identidade nacional
e elemento central na simbologia estado-novista (SILVA, 2004). A

2 A maior parte dos clubes esportivos fundados nas primeiras décadas do século 20
se caracterizava pela falta de organização e pelas relações pessoalistas (tal qual
definidas por Sérgio Buarque de Holanda na obra clássica Raízes do Brasil) mantidas
com suas associações, o que tornava o campo esportivo uma instância essencial-
mente conflituosa.
40
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

apropriação do esporte pelo Estado e sua utilização como difusor


das ideologias oficiais não foi uma exclusividade brasileira. Os regi-
mes totalitários na Itália e na Alemanha, especialmente na década de
1930, recorreram a este artifício para reforçar o sentimento naciona-
lista por meio das conquistas no campo esportivo. Nessas ditaduras,
o futebol tornou-se “o principal vínculo cultural entre o regime e o
povo” (MURRAY, 2000, p. 96). Nos jogos olímpicos de 1936, o bom
rendimento dos atletas alemães contribuiu decisivamente para legi-
timar o discurso de superioridade racial difundido pelos nazistas.3
Neste período, as produções cinematográficas apoiadas pelo Führer,
especialmente A vitória da Fé e O triunfo da vontade, ambas dirigi-
das por Leni Riefensthahl, utilizaram os sentimentos produzidos pelo
esporte para disseminar os princípios ideológicos da disciplina, da
superação e da busca da perfeição corporal presentes no ideário na-
zista. Além dos elementos exaltados no interior dos jogos, os filmes
buscavam destacar o papel desempenhado pela torcida que, ao in-
centivar os atletas com palavras de ordem, compunham um quadro
harmonioso e sinergético.
Um quadro semelhante a este pôde ser percebido no Brasil du-
rante a implantação da propaganda oficial pelo Governo Vargas. A as-
sociação do futebol às imagens do governo e do próprio governante
procurava construir um sentimento coletivo de coesão e identidade
nacional, tendo como “pano de fundo” os elementos da moral futebo-
lística: raça, superação, disciplina e espírito coletivo aliados à ginga e
às improvisações, características essenciais da identidade brasileira
emergente naquele contexto.4 Vale ressaltar que, a partir de 1930,
com a criação da Copa do Mundo pela Federação Internacional de
Futebol Association (Fifa), o futebol ganhou dimensões internacio-
nais, servindo como palco para a catalisação e dramatização das mais

3 Nos Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim, a Alemanha nazista, apesar de


ter conquistado o primeiro lugar na competição entre as nações, com 33 medalhas
de ouro, esteve longe de alcançar as metas traçadas pela cúpula do III Reich, que
objetivara ganhar 80% das medalhas de ouro daqueles jogos. Além disso, os alemães
tiveram que entregar quatro medalhas de ouro ao negro norte-americano Jesse
Owens, que havia ganhado as competições dos 100m, 200m, revezamento 4x100m e
salto em distância. Na prática, as várias derrotas sofridas pela “raça ariana” colocavam
em xeque os ideais de superioridade racial difundidos pelos alemães. No entanto, a
forte propaganda nazista conseguiu, sobretudo naquele país, construir uma imagem
altamente positiva do rendimento dos atletas alemães nos jogos de 1936.
4 Aqui nos referimos especialmente à ideia de democracia racial presente nos
trabalhos de Gilberto Freyre e a sua “adaptação” ao universo do futebol realizada
por Mário Filho, Thomaz Mazzoni e outros cronistas da época.
41

Euclides de Freitas Couto


variadas formas de nacionalismo. Desde então, a cada quatro anos,
os mundiais de futebol representam para muitas nações, dentre elas
o Brasil, momentos ímpares para a exacerbação dos sentimentos de
nacionalidade, instituindo-se como uma das mais representativas
festas de apelo cívico.
No bojo desses acontecimentos, o Governo Vargas iniciou, a
partir de 1930, um conjunto de ações que visavam controlar as entida-
des que organizavam o futebol no país por meio da criação de órgãos
normatizadores. Chama a atenção o documento intitulado Programa
de Reconstrução Nacional, no qual um dos tópicos aborda o futebol.
O fracasso da Seleção Brasileira nos mundiais do Uruguai, em 1930, e
da Itália, em 1934, motivado substancialmente pelas brigas políticas
entre as duas entidades que controlavam o futebol paulista e o fute-
bol carioca,5 abriu espaço para que os principais cronistas esportivos
da época criticassem duramente a organização do futebol brasileiro
(MAZZONI, 1941, p. 20, 21).
Ao analisar a obra do jornalista Thomaz Mazzoni, um “porta-voz
não oficial” do Estado Novo, Eliazar Silva 2(004 p. 89) revela a existên-
cia de uma transposição das disputas de poder do interior da socieda-
de para a burocracia esportiva. A nova engenharia política institucio-
nalizou um modelo burocrático baseado na fiscalização, na censura e
no controle hierárquico das entidades esportivas. A excessiva centra-
lização acabou prejudicando as pequenas entidades e clubes que, à
margem do “sistema esportivo”, não conseguiram sobreviver por falta
de recursos. Por outro lado, a Confederação Brasileira de Desportos
(CBD) ganhou amplos poderes de atuação,6 permitindo que as entida-
des com ela alinhadas obtivessem uma série de privilégios, especial-
mente no que diz respeito às liberações de verbas para a organização
de competições, a construção de estádios e de centros esportivos.

5 No período em questão, duas associações controlavam o futebol brasileiro, a


saber: a Apea (Associação Paulista de Esportes Atléticos) e a Amea (Associação
Metropolitana de Esportes Atléticos), localizadas respectivamente nas cidades de
São Paulo e Rio de Janeiro. Devido às disputas de poder entre as duas associações,
a equipe que deveria compor a Seleção Brasileira em 1930 sofreu vários desfalques,
uma vez que os melhores atletas de São Paulo não embarcaram para Montevidéu
(Cf. SILVA, 2004, p. 89-90).
6 Em 1934, Luiz Aranha, irmão do ministro da Fazenda de Vargas, Oswaldo Aranha, foi
nomeado para ocupar a presidência da CBD. O fato per si é bastante revelador das
relações políticas da época: apesar de todo o aparato propagandístico do Estado
zelar pela representatividade nacional das instituições, o que se via nos bastidores
da política brasileira era a continuidade das práticas clientelísticas, nepotistas e
pessoalistas servindo como sustentáculo das relações de poder.
42
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Na Copa do Mundo de 1938, disputada na França, a Seleção


Brasileira chegaria pela primeira vez à fase semifinal da competição.
Mesmo não tendo conquistado o título, a equipe chamou a atenção
do mundo pelo futebol “acrobático” e “vistoso” mostrado por seus
jogadores, majoritariamente negros e mulatos. Se no âmbito inter-
nacional o futebol brasileiro ganhava destaque entre os cronistas
pelas improvisações e pela técnica apurada de seus jogadores, no
território nacional, principalmente nos centros urbanos, formavam-
-se grandes aglomerações durante as transmissões dos jogos da
Seleção Brasileira. Entre os historiadores do futebol é consensual7
que o mundial de 1938 é um marco significativo para a compreensão
do processo de popularização da Seleção Brasileira, especialmente
para o entendimento das representações de nacionalidade. Em li-
nhas gerais, a partir desse momento foi possível perceber, no ima-
ginário coletivo brasileiro, uma sólida identificação entre a seleção
de futebol e o povo. Nesse período, a confluência de interesses polí-
ticos, os ambiciosos projetos de ordenação social que abarcavam as
manifestações culturais e esportivas, bem como a disseminação das
inovações tecnológicas, especialmente no campo da comunicação,
fornecem elementos preciosos para a compreensão da criação deste
marco pela historiografia futebolística.
Em 1937, o movimento de “pacificação”8 do futebol iniciado
por jornalistas, dirigentes de clubes e entidades esportivas paulistas
e cariocas corroborou para que o clima de rivalidade entre os dois
principais estados da federação não prejudicasse a escolha dos joga-
dores da Seleção Brasileira. O ideal de unidade nacional, amplamente
difundido pelo governo, parecia, pelo menos neste esporte, ter atin-
gido seus objetivos.
Nos meses que precederam a Copa de 1938, percebia-se uma
ampla mobilização de vários setores do governo e da sociedade ci-
vil no sentido de divulgar a competição, mostrar sua importância

7 NOGUEIRA, 2006, p. 232-233; FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 79; AQUINO, 2002, p. 59-
60; FRANZINI, 2003, p. 85; SILVA, 2004, especialmente no capítulo 2, intitulado “A
conquista do mundial de 1938 como uma das formas de propaganda de regimes
políticos”.
8 Na década de 1930, o movimento de pacificação do futebol brasileiro relaciona-se
diretamente com as políticas de integração nacional impulsionadas pelo Governo
Vargas. Nesse período, o futebol adquiriu funções estratégicas para a difusão do
projeto integrador nacionalista. Assim, deveria ser representado e controlado por
uma entidade que defendesse os interesses nacionais em detrimento das rivali-
dades locais e regionais (SILVA, 2004, p. 124-125).
43

Euclides de Freitas Couto


e envolver a população em um clima de nacionalismo esportivo. A
Confederação Brasileira de Desportos (CBD) promoveu a “Campanha
do Selo”, que visava arrecadar, por meio da venda de selos no valor
de 500 réis a unidade, um montante suficiente para arcar com as des-
pesas de transporte e hospedagem da delegação brasileira durante o
torneio. A campanha, que ainda previa o sorteio de uma viagem para
a Copa com todas as despesas incluídas, foi um sucesso na época e
contou com o apoio dos principais jornais do país, conforme levanta-
mentos realizados por Eliazar Silva (2004, p. 134, 135).
A seleção de futebol, ao assumir a condição de símbolo da na-
ção, tornava legítimas, na esfera econômica, campanhas dessa na-
tureza, revelando, entre outros aspectos, a dimensão simbólica que
o esporte adquiria na cultura brasileira. Isso nos permite elucidar
como as diversas modalidades de representação do ideal de “corpo
nacional” presentes nas ideologias estado-novistas9 foram ganhando
espaço no cenário político-social brasileiro.
O governo brasileiro não poupou esforços no sentido de envol-
ver a sociedade em torno da Copa do Mundo de 1938. Estudos reali-
zados pelo historiador Eliazar Silva (2004) evidenciam a utilização
de diferentes estratégias pelo Estado Novo, as quais visavam inserir
o futebol no rol dos símbolos nacionais. Estratégias políticas como
a indicação de Alzira Vargas, irmã do presidente da República, para
o posto de “Madrinha da Seleção” revelam uma face importante da
propaganda varguista. Podemos notar que essa medida visava, de
um lado, inserir a Seleção Brasileira no universo das práticas sociais
anteriormente restritas aos clubes que, desde os primeiros anos do
esporte no país, reservavam às mulheres um papel privilegiado nos
eventos sociais ligados ao futebol.10 De outro, a personificação do
futebol nas figuras representativas do Estado – como a filha do pre-
sidente e, em diversos momentos, o próprio Vargas – demonstrava a
importância que o esporte passava a ter no cenário político do país
ao ser enquadrado no rol das atividades que exploravam “as formas
inconscientes de desejo e identificação”. De acordo com Lenharo

9 Essa ideia é analisada nos estudos de Lenharo (1986, p. 17-18), conforme aborda-
mos anteriormente neste livro.
10 Nos primeiros anos do século 20, era comum realizar-se entre os torcedores dos
principais clubes brasileiros de futebol a eleição da “Madrinha do Clube”. Estes
eventos contavam com ampla participação da comunidade e dos órgãos de impren-
sa e se tornaram, ao longo do tempo, atividades tradicionais no universo futebolís-
tico do país (COUTO, 2003, p. 115-122).
44
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

(1986, p. 53), o projeto ideológico do Estado Novo, visando cons-


truir um repertório simbólico que promovesse a ligação sentimental
entre o povo e o governante, promoveu a burocratização da intelec-
tualidade ao selecionar, para compor os quadros da máquina estatal,
escritores, cientistas sociais e teóricos das mais diversas áreas do
conhecimento. A este seleto grupo caberia a função de planejar e
promover atividades culturais como a música, as artes plásticas e
o próprio esporte, incorporando-as à lógica apaziguadora difundida
pelo governo.
Nessa mesma toada, a imagem do líder da nação aparecia fre-
quentemente associada ao pai de uma grande família, estratégia cujo
objetivo era promover a aproximação entre o governante e os seus
governados. A relação de proximidade construída pelos discursos “ei-
vados de sentimentalismo”, ao mesmo tempo em que visava camuflar
os traços de autoritarismo do governo, dava-lhe também legitimida-
de para disseminar diretamente suas ideias, na medida em que cria-
vam a impressão da unanimidade em torno da comunhão nacional
(LENHARO, 1986, p. 50).
Getúlio Vargas utilizou como poucos governantes o espaço
simbólico construído em torno do futebol para promover sua autoi-
magem que, metonimicamente, confundia-se com a imagem do pró-
prio Estado. Nas solenidades oficiais promovidas costumeiramente
nos estádios de São Januário, no Rio de Janeiro, e do Pacaembu, na
cidade de São Paulo, o governante surgia de forma triunfal em desfi-
les em carro aberto, quando então era ovacionado pelas multidões.
A relação entre a pátria e o futebol estreitava-se à medida que os
estádios, lugares privilegiados para a população extravasar suas
emoções,11 passavam a servir como verdadeiras arenas políticas ca-
talisadoras das multidões.
Segundo Malhano e Malhano (2002), São Januário, inaugurado
em 1927 para abrigar a praça de esportes do Clube de Regatas Vasco
da Gama, era o maior estádio da capital federal. Após o golpe de 1930,
foi transformado em uma verdadeira ágora: uma praça pública onde
11 Elias e Dunning (1996), utilizando-se do aporte teórico weberiano, levantam a tese
de que o processo de racionalização pelo qual passou a mundo capitalista no início do
século 20 criou, na sociedade, novas formas para o extravasamento das emoções.
Segundo eles, esse processo conduziu a transformação dos jogos em espetáculos
esportivos. Se de um lado os jogos perdiam sua dimensão lúdica, devido à profis-
sionalização dos jogadores, de outro, abriam ao público a possibilidade de experi-
mentar o extravasamento controlado e coletivo das emoções, obedecendo às novas
regras sociais que se constituíam naquele período.
45

Euclides de Freitas Couto


o governante e os trabalhadores podiam ritualizar seus compromis-
sos. Assim, o “Estádio dos Trabalhadores”, como ficou conhecido,
passou a acumular uma dupla função: a de conjugar os momentos de
lazer oferecidos pelos jogos de futebol com os congraçamentos cívi-
cos promovidos pelo Estado. Durante o período do Estado Novo, São
Januário foi palco de diversas solenidades comemorativas do Dia do
Trabalhador, consolidando-se como um espaço simbólico e tradutor
(altamente representativo no imaginário coletivo) da íntima relação
que se solidificava entre o Estado, o seu líder, o povo e o futebol.
Simultaneamente, a figura do presidente era também associa-
da às solenidades que marcaram a história do estádio. A representa-
ção, formada a partir das referências fornecidas pela memória, refor-
ça a ideia de que São Januário se inseria harmoniosamente no rol dos
elementos simbólicos elegidos pelo ideário estado-novista.
As similitudes encontradas nas funções atribuídas aos está-
dios de futebol brasileiros neste período indicam que as edificações
dessas praças esportivas foram cuidadosamente incluídas no pro-
jeto de propaganda política do Estado Novo. Na capital paulista, o
Estádio do Pacaembu parece ter recebido a mesma destinação polí-
tica de São Januário. De acordo com Negreiros (1998, p. 219, 220), a
construção do Pacaembu simbolizava, para a cidade de São Paulo, a
necessidade de incorporar a crescente massa de trabalhadores aos
ideais das atividades físicas “devidamente organizadas e dirigidas” e,
paralelamente, a instituição de um monumento que estivesse à altura
de representar a força da emergente burguesia industrial que des-
pontava na cidade. À época da sua inauguração, houve uma ampla
mobilização para que o evento ganhasse reconhecimento nacional.
As festividades que marcaram a inauguração do estádio ganharam
repercussão nacional devido à presença de importantes autoridades
políticas do país, inclusive a do próprio presidente da República. De
acordo com o raciocínio de Alcir Lenharo, a utilização de espaços
públicos, como os estádios de futebol, para atingir de maneira di-
reta a população insere-se perfeitamente na lógica propagandista
do Estado Novo que, segundo ele, “explora um dado clima de reli-
giosidade constitutivo das relações entre chefe e comandados, que
se consubstancia principalmente no culto de veneração à pátria”
(LENHARO, 1996, p. 49). Desse modo, podemos notar que, apesar
de a maior parte das mensagens não estabelecer uma relação di-
reta com o “jogo da bola”, os discursos proferidos por Vargas nos
46
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

estádios acabavam por situar, em perfeita sincronia, dois elementos


importantes do imaginário coletivo do trabalhador: a paixão pelo fu-
tebol e a idolatria pelo seu líder.
Além dos discursos proferidos nos estádios esportivos, recur-
so muito utilizado por Vargas para estabelecer um contato direto
com milhares de pessoas, é importante considerar o papel decisivo
que os meios de comunicação passaram a exercer no processo de
difusão das ideologias estatais. Nesse contexto, o rádio, ao ampliar
as possibilidades12 de comunicação para todo o território nacional,
tornou-se um instrumento fundamental para a construção da imagem
“onipresente” do líder da nação, que adquiria um caráter pessoalista
à medida que seus discursos e sua “fala afetuosa” penetravam no dia
a dia dos lares brasileiros pelo programa “Hora do Brasil”, que pas-
sou a ser transmitido em 1935.
Além de acumular as funções de “suprir” a ausência do presi-
dente nas mais diversas regiões do país, provocando na população a
sensação de “participação política”, é possível relacionar a expansão
do rádio ao considerável aumento do interesse da população pelos
jogos de futebol nas décadas de 1930 e 1940. Nessa lógica, o impulso
dado pelos órgãos oficiais à difusão das transmissões radiofônicas
contribuiu, concomitantemente, para estimular o gosto pelo futebol
nas diversas camadas da população que passaram a ter acesso ao
rádio. Os dados levantados por Garcia (1982, p. 102) mostram um
expressivo crescimento da comunicação radiofônica no Brasil: no
período compreendido entre os anos de 1937 e 1945, o número de
estações de rádio no país cresceu de 63 para 111; simultaneamente, o
número de aparelhos receptores praticamente dobrou no mesmo pe-
ríodo. Este crescimento, alicerçado substancialmente nos objetivos
traçados pela propaganda estatal, pode ser compreendido a partir da
expressão do desejo de ampliação do alcance das transmissões ra-
diofônicas. O rádio adquiria, nesse contexto, as feições de um veículo
difusor das ideologias estatais que, por sua vez, buscavam promover
a dominação das massas por meio de um discurso exaltador do na-
cionalismo, do patriotismo, do civismo, da disciplina e do amor ao
trabalho. Entretanto, ao distanciarmos a lente analítica, o panorama

12 É importante salientar que estas possibilidades foram limitadas, em um primeiro


momento, pelo pequeno número de radiorreceptores encontrados nas áreas rurais
do país. Pelo levantamento realizado pelo Censo Demográfico de 1940, apenas 0,55%
dos lares brasileiros localizados no meio rural possuíam aparelhos de radiorrecep-
tores.
47

Euclides de Freitas Couto


que surge sinaliza que ao rádio coube também a tarefa de direcionar
as atividades culturais no país, na medida em que eram eliminados
de sua programação temas nocivos aos padrões de “nação”, “família”
e “trabalhador” difundidos pelo Estado. Ou seja, o modelo estado-
-novista de integração da sociedade, implementado em um projeto
político comum a todas as regiões do país, previa também a supres-
são dos traços culturais considerados “perigosos” para formação da
nação. Assim, principalmente após a criação do DIP (Departamento
de Imprensa e Propaganda) em 1939, o rádio tornou-se um importan-
te instrumento de controle social, na medida em que a programação
das emissoras passou a ser direcionada por meio da censura a pro-
gramas e músicas apologéticos à malandragem, à jogatina, à liberda-
de sexual e a quaisquer outros conteúdos que pudessem desviar a
sociedade dos rumos traçados pelo ideário oficial.
A coincidência temporal tem estimulado muitos historiadores
a estabelecerem uma série de semelhanças entre os modelos de go-
verno de Hitler e Vargas, sobretudo quando se trata das políticas de
difusão ideológica desses regimes. Enquanto Goebbels, ministro da
propaganda de Hitler, transformava o rádio na principal arma para a
difusão da propaganda nazista na Alemanha, quase simultaneamen-
te, no Brasil, o Estado Novo encampava a Rádio Nacional, uma das
maiores e melhor aparelhadas emissoras do país. Nunes (2000, p.
59) atribui esta iniciativa à necessidade de adequar a programação
da rádio aos interesses ideológicos do Estado. Em 1940, quando foi
estatizada, a Rádio Nacional possuía grande audiência entre as ca-
madas mais populares da sociedade. Esta popularização deveu-se,
principalmente, às iniciativas da emissora, que proporcionavam a
participação em programas de auditório aos artistas regionais oriun-
dos dos “quatro cantos do país”. Ao encampar a Rádio Nacional, o
governo apossou-se também de um fiel e numeroso público espec-
tador, mantendo na programação as “mais ecléticas manifestações
musicais brasileiras”, que balizavam a política cultural daquele pe-
ríodo. Além do Estado, outro importante aliado para o crescimento
do sistema radiofônico no Brasil dos anos 1930 foi, sem sombra de
dúvida, o crescimento do consumo nas grandes cidades impulsiona-
do pelo processo de industrialização. Com o seu alcance territorial
cada vez maior, o rádio ampliava também o número de ouvintes e
se consolidava como um poderoso instrumento de propaganda dos
bens consumíveis (ORTRIWANO, 1985, p. 15, 16).
48
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Os altos índices de analfabetismo observados na população


brasileira ao longo desse período impediam que a maior parte dessas
pessoas tivesse acesso direto aos jornais e às revistas, ao passo que
o rádio, ao fazer uso da linguagem oral, de assimilação instantânea,
ampliava sua atratividade à medida que os programas “educativos”
iam cedendo espaço a uma programação mais lúdica e voltada ao
entretenimento.13 O rígido controle das programações imposto pelo
DIP a partir de 1939 não conseguiu frear o rápido crescimento do rá-
dio no período. A facilidade de aquisição dos aparelhos e o impulso
financeiro dado pelas empresas patrocinadoras contribuíram para
que o rádio se transformasse, em um período de aproximadamente
duas décadas, em um dos principais meios de informação da popula-
ção que vivia nas grandes cidades brasileiras.14
Desde as primeiras transmissões futebolísticas ao vivo, realiza-
das a partir de 1931 pelo locutor Nicolau Tuma, da Rádio Educadora
Paulista, o rádio se destacou no cenário esportivo brasileiro como um
dos principais elos entre o torcedor, os clubes e a Seleção Brasileira.
Nas décadas de 1930 e 1940, aproveitando-se do impulso estatal dado
à radiofonia brasileira, o jornalismo esportivo despontou como uma
das áreas mais promissoras do rádio. As primeiras transmissões dos
jogos de futebol no Brasil caracterizavam-se pela frieza e imparciali-
dade dos narradores. Na tentativa de construir uma “imagem real”
das partidas por meio das narrações, os locutores se importavam
demasiadamente com a posição da bola no campo de jogo. A maior
preocupação dos narradores era proporcionar aos seus ouvintes uma
“visualização” fiel das jogadas e dos jogadores. Para atingir esse obje-
tivo, lançavam mão de artifícios interessantes como, por exemplo, a
divisão quadricular do gramado, que era realizada simultaneamente
na mente de narradores e ouvintes (BAUMWORCEL, 1999, p. 61).

13 De acordo com Calabre (2002, p. 33-34), na década de 1940 a programação radiofôni-


ca brasileira dividia-se, basicamente, em quatro núcleos: a música, o jornalismo, a
dramaturgia e os programas de variedades. Segundo a autora, a música e a drama-
turgia adquiriram grande popularidade a partir da inserção dos programas de au-
ditório protagonizados pelos “cantores populares” e da criação, em grande número,
das radionovelas.
14 Os números do Censo Demográfico de 1940 realizado pelo IBGE mostram que, na
cidade do Rio de Janeiro, 46,23% dos domicílios possuíam aparelhos de rádio. Nas
demais áreas urbanas do Brasil, a média de domicílios que possuíam rádio caía para
19,99%. Se considerarmos o mesmo censo, na média geral do país, os números não
ultrapassavam 5,74%, dados que demonstram, com certa clareza, o caráter urbano
assumido pelo rádio em suas primeiras décadas de existência no Brasil.
49

Euclides de Freitas Couto


Almeida e Micelli (2004, p. 10) argumentam que os locutores
esportivos, ao lançarem mão da utilização das músicas, das vinhetas
e, principalmente, da carga emotiva e da velocidade das palavras na
narração, proporcionavam às transmissões de futebol um clima de
“magia” e de fidelidade à realidade, mesmo que este clima só pudesse
ser alcançado com a participação efetiva da imaginação do ouvinte.
Para Edileuza Soares (1994, p. 67), a incorporação de neologismos15
e improvisações e a criação de bordões permitiram maior aproxima-
ção do futebol ao cotidiano do público, na medida em que as trans-
missões radiofônicas procuravam, por meio da dramaticidade criada
pelo locutor, reproduzir as situações de jogo a partir das reais ex-
periências de vida dos ouvintes. Segundo a autora, os signos cono-
tativos já eram utilizados desde a década de 1930. Já se ouvia, por
exemplo, Nicolau Tuma apelidar o uruguaio Friedenreich de El Tigre.
Abreu (2001, p. 2) sugere que, para conquistar a atenção do público,
os locutores precisavam recriar o objeto descrito, dando-lhe vida e
aproximando-o do imaginário popular.
Nessa época, os locutores criaram vários recursos de lingua-
gem que se tornaram verdadeiras marcas das transmissões radiofô-
nicas brasileiras. O locutor paulista Rebello Júnior foi o responsável
por alongar o grito de “gol”, e Raul Longras, por imortalizá-lo no rá-
dio brasileiro na década de 1940. Além do “gol esticado”, Longras
também seria o criador de expressões como “pimba”, que se refere
ao chute ao gol, “balançou o véu da noiva”, quando a bola tocava a
rede, e outros bordões que permanecem até hoje nas transmissões
radiofônicas no país (ALMEIDA; MICELLI, 2004, p. 13).
Os levantamentos históricos realizados sobre a Copa do Mundo
de 1938, como mencionamos anteriormente, sinalizam que este pare-
ce ter sido o clímax do casamento entre o rádio e o futebol. Gisele
Ortriwano (2000, p. 3) afirma que as transmissões ao vivo das cin-
co partidas disputadas pela seleção causaram um enorme frisson na
população brasileira das grandes cidades. A voz de Gagliano Neto,16
15 No Brasil, até a década de 1930, quase toda a terminologia futebolística era pro-
nunciada em língua inglesa, o que, em certa medida, traduzia de forma simbólica o
caráter cosmopolita e elitista do esporte (Cf. COUTO, 2003). A partir deste período,
os locutores esportivos criaram em português uma série de palavras e expressões
de natureza gráfico-morfológica semelhante às inglesas, que visavam dar uma nova
roupagem à língua-alvo. À guisa de exemplificação: goalkeeper se transformou em
goleiro; back se transformou em beque etc.
16 Leonardo Gagliano Neto foi o único radialista sul-americano a transmitir os jogos
da Copa do Mundo de 1938. Ele estava a serviço da cadeia de emissoras Buyngton,
50
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

locutor responsável pelas narrações, tornou-se nacionalmente co-


nhecida em poucos dias. Segundo a autora, em São Paulo, o largo do
Paissandu foi o ponto escolhido para ouvir a irradiação dos jogos,
tanto por aqueles que não possuíam o rádio em casa como pelos
transeuntes que se deslocavam para o trabalho. No Rio de Janeiro, as
maiores aglomerações foram registradas na Galeria Cruzeiro, situada
no centro da capital federal. As informações sobre as transmissões
radiofônicas da Copa de 1938 dão conta de que os ruídos e as inter-
ferências durante as partidas eram contínuos. No entanto, esses pro-
blemas pareciam não afetar o interesse das pessoas pelos jogos da
seleção, já que, a cada peleja disputada, tinha-se notícia de maiores
aglomerações em diferentes pontos do país. A pesquisa realizada pelo
historiador Plínio Negreiros (1998, p. 11, 12) sobre a cobertura jorna-
lística da Copa do Mundo de 1938, que teve como fonte principal as
notícias veiculadas pelo jornal A Gazeta, revela que de norte a sul do
país ocorreu um envolvimento significativo da sociedade brasileira
com os jogos da seleção nacional.
Além das aglomerações populares que se formavam nas cida-
des do Rio de Janeiro e de São Paulo, as duas principais “praças fu-
tebolísticas” do país, durante e após as transmissões radiofônicas
dos jogos da seleção, é possível perceber, por meio da cobertura da
Gazeta, que em outros pontos do país também aflorava o sentimen-
to de nacionalidade vinculado à Seleção Brasileira de futebol. Nesse
sentido, é possível construir duas percepções acerca da recepção
popular do Mundial da França no Brasil que se relacionam dialogica-
mente: a primeira refere-se aos significados que o futebol passou a
assumir na coletividade brasileira a partir das transmissões radiofô-
nicas; já a segunda diz respeito aos mecanismos sociopscicológicos
que explicam tanto o sucesso alcançado por essas irradiações como
o papel fundamental adquirido pelo rádio no processo de populariza-
ção do futebol nesse período.
O futebol, percebido no Brasil da década de 1930 como um espe-
táculo esportivo moderno, permitia à população urbana experimentar

composta pelas rádios Cosmos e Cruzeiro do Sul, de São Paulo, pela Rádio Clube de
Santos e pelas Rádio Clube do Brasil e Cruzeiro do Sul, ambas situadas na capital
federal (ORTRIWANO, 2001, p. 2). Além das transmissões radiofônicas, o Jornal dos
Sports e O Globo foram os órgãos brasileiros responsáveis pela cobertura jornalísti-
ca da Copa. É importante frisar que todas essas empresas tiveram o patrocínio do
Cassino da Urca, o que revela o interesse das empresas privadas em associar seu
nome aos eventos esportivos nesse período.
51

Euclides de Freitas Couto


novas formas de interação social eivadas de sentimentos nacionalis-
tas construídos com base nas experiências coletivas ligadas ao es-
porte. Norbert Elias e Eric Dunning (1996) partem da premissa de que
a vida nas cidades modernas é permeada por uma série de antago-
nismos e conflitos e que as emoções são duramente cerceadas por
instrumentos formais e informais de controle social. Segundo eles, a
fim de que houvesse o extravasamento controlado das emoções, a
sociedade formalizou a instituição dos espetáculos esportivos para
que tanto os atletas quanto os espectadores pudessem canalizar, em
ocasiões específicas, o que os autores denominam “liberação das
tensões”. Nessa lógica, a formação da aura nacionalista que envol-
veu a população brasileira em torno da seleção de futebol no mun-
dial de 1938 deve também ser creditada aos esforços empreendidos
pelo Estado Novo, que incentivou a disseminação das transmissões
radiofônicas e legitimou os espetáculos de futebol como verdadeiros
momentos de diversão para os trabalhadores, além de prestar total
apoio logístico e moral à Seleção Brasileira.
A grande mobilização popular vista nas ruas brasileiras du-
rante e após as partidas da Copa de 1938 permite, ainda, extrair do
futebol outros significados sociais que se anunciavam naquele perío-
do; referimo-nos, especialmente, ao ethos do torcedor brasileiro que
se conformava naquelas manifestações de amor à pátria. Ainda que
os clubes de futebol e a própria seleção nacional já tivessem ofere-
cido aos brasileiros outros momentos comemorativos e de grande
comoção popular, circunscritos, entretanto, a algumas localidades,17
as grandes aglomerações que se formaram em dezenas de cidades
brasileiras para acompanhar as irradiações da Copa da França pro-
moveram, além de uma ampla identificação entre o povo e a seleção,

17 Os jornais que circulavam nas grandes cidades brasileiras durante a década de 1920
constituem-se como fontes importantes para a compreensão desta questão, pois
nos relatam, por meio das crônicas e fotografias, a ampla mobilização popular nos
dias de jogos entre os clubes de futebol. Em relação ao interesse popular pela Se-
leção Brasileira, as pesquisas de Pereira (2000) e Franzini (2000, 2003), permitem
afirmar que, a partir do Campeonato Sul-Americano de Futebol realizado na cidade
do Rio de Janeiro em 1919, houve um grande interesse da população, especialmente
na capital federal, pela competição que, nesse ano, foi vencida pela Seleção Brasilei-
ra. No entanto, em outras importantes cidades do país, como São Paulo, Salvador e
Recife, a mesma mobilização não ocorreu. O fato pode ser explicado pela ausência,
nesta época, de transmissões radiofônicas, que ainda não haviam sido dissemina-
das pelo país, e pela própria falta de representatividade nacional do selecionado
brasileiro, que era formado, substancialmente, por jogadores paulistas e alguns
poucos cariocas (FRANZINI, 2003, p. 16).
52
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

a autoidentificação do povo consigo mesmo. Ou seja, ao reconhecer


o outro como seu par, o torcedor brasileiro transformava os momen-
tos de sociabilidade futebolística em comemorações que varavam as
madrugadas e se estendiam, nos dias subsequentes aos jogos, por
meio das discussões nas praças, nos bares, nos meios de transpor-
te, no ambiente de trabalho ou onde houvesse dois torcedores que
fortuitamente se encontrassem. O antropólogo Arlei Damo acredita
que no interior do universo futebolístico é produzida uma linguagem
coletiva que o transforma em um espaço privilegiado de interlocução
na sociedade: “os torcedores se pensam como nação, como uma co-
munidade que os engloba e os mantém coesos” (DAMO, 2002, p. 153).
Com relação ao rádio, acreditamos ser necessário tecer algu-
mas considerações acerca da sua relevância como novidade tecno-
lógica do período, assim como sobre suas potencialidades para pro-
mover a interação social por meio das transmissões esportivas.18 Ao
oferecer ao público ouvinte as possibilidades técnicas de apreciar o
jogo mesmo estando a milhares de quilômetros do local da partida,
e de forma simples e econômica, este meio de comunicação adquiria
grande simpatia por parte dos aficionados pelo futebol. A linguagem
simples e bem-humorada, a utilização de palavras com duplo sentido
e de expressões populares, características marcantes das transmis-
sões radioesportivas, somadas à mitificação dos jogadores, pareciam
conduzir as “imagens” do rádio por um percurso direto ao incons-
ciente coletivo das populações urbanas do Brasil.
Eliazar Silva (2004, p. 147) reforça a tese de que o tom apaixo-
nado com que os locutores esportivos irradiavam as partidas contri-
buiu para que o rádio, além de transmitir maior conhecimento sobre
o futebol, pudesse ampliar a emoção dos jogos e o brilho dos pró-
prios atletas. Incentivado pelo Estado Novo,19 o clima de nacionalis-
mo que envolvia a Seleção Brasileira contaminou as irradiações dos
jogos. As vitórias nos gramados franceses ganharam o aspecto de
grandes conquistas nacionais. As jogadas acrobáticas de Leônidas

18 Sobre esta questão, Eco (1984) oferece uma discussão aprofundada sobre a socia-
bilidade promovida a partir das conversas sobre o futebol que permeiam o cotidi-
ano das cidades. Segundo o autor, os meios de comunicação de massa, especial-
mente o rádio e a televisão, seriam os grandes fomentadores destes debates.
19 Dentre as várias ações direcionadas diretamente ao futebol pelo Estado Novo, já
destacamos anteriormente o “o movimento de pacificação do futebol”, a “campanha
do selo” e todo o apoio técnico, logístico e financeiro prestado à delegação brasile-
ira que embarcou para a Copa de 1938.
53

Euclides de Freitas Couto


da Silva e a precisão dos chutes de Domingos da Guia assumiram, na
voz do locutor e nas palavras dos cronistas, o papel de verdadeiras
ações do próprio povo brasileiro, o que transformava estes atletas,
em certa medida, em grandes heróis nacionais. Franco Júnior com-
partilha do pensamento de que a campanha vitoriosa do selecionado
azul no mundial da França, acompanhada da ampla mobilização dos
torcedores no território nacional, contribuiu para a mitificação dos
jogadores e a legitimação do ideário estado-novista:

Apesar da maioria esmagadora de jogadores do Rio de Janeiro,


a seleção foi celebrada pelos governantes como expressão da
unidade nacional. O negro Leônidas foi a grande estrela brasi-
leira, jogador aclamado como destaque individual da Copa e
artilheiro da competição, com oito gols. [...] O terceiro lugar
foi considerado uma vitória particular de Getúlio Vargas e de
seu regime autoritário. A partir de então, ao mesmo tempo que
se consolidava a figura do presidente, outros heróis nacionais
despontavam com a difusão do futebol através dos meios de
comunicação. (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 81)

Boa parte dos estudiosos do futebol compartilha da tese de


Franco Júnior que aponta Leônidas da Silva como o principal repre-
sentante da idolatria dos brasileiros nas décadas de 1930 e 1940.
Leônidas nasceu em 1913 e iniciou sua carreira aos 13 anos no time
infantil do São Cristóvão. Em seguida, foi jogar no quadro principal do
Bonsucesso, outro pequeno clube suburbano da primeira divisão do
futebol carioca. Nessa oportunidade, teve a sua formação direcionada
por Gentil Cardoso, o primeiro técnico negro do qual se tem notícia
no futebol brasileiro. Em 1932, foi convocado para disputar a Copa Rio
Branco pela Seleção Brasileira. Após realizar excelentes exibições nes-
se torneio, foi contratado pela equipe uruguaia do Peñarol, pela qual
teve uma rápida passagem. De volta ao Brasil em 1935, Leônidas jogou
pelo Botafogo do Rio e em 1936 foi contratado pelo Flamengo. No ru-
bro-negro o jogador desenvolveu seu melhor futebol. Foi nessa época
que ganhou os apelidos de “homem borracha”, pela invenção da bici-
cleta, e “diamante negro”, título que virou marca de chocolate e ganhou
notoriedade nacional. Após a disputa da Copa da França, Leônidas se
tornou celebridade nacional e em 1942 transferiu-se para o São Paulo
Futebol Clube, onde em 1949 encerrou sua carreira de jogador.
54
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

O ápice da popularidade de Leônidas se deu em 1938. No mun-


dial daquele ano, os brasileiros realizaram uma campanha notável.
Derrotaram a poderosa Tchecoslováquia pelas quartas de final e
também a Suécia na disputa pelo terceiro lugar. O selecionado, com-
posto por jogadores de todas as “raças”, destacou-se por mostrar
um futebol alegre e com um variado repertório de dribles, que se
contrapôs ao estilo europeu por apresentar uma maneira de jogar
em que as qualidades individuais dos atletas pareciam superar os
pressupostos coletivos. No entanto, não foram apenas as brilhantes
atuações de Leônidas e a boa colocação da seleção que fizeram com
que a Copa do Mundo da França se tornasse um marco para a popu-
larização do futebol no Brasil. Além desses fatores, atribui-se o cli-
ma de euforia da população ao sucesso da cobertura realizada pelo
rádio e pelos jornais que, amparados de perto pelo Estado Novo,20
ajudaram a semear o nacionalismo entre os torcedores.
Nem mesmo a derrota para a Itália, que obrigou o Brasil a dis-
putar o terceiro lugar com os suecos, desanimou a torcida. Na che-
gada ao país, a delegação brasileira foi ovacionada por milhares de
torcedores. Em Salvador, na primeira parada para o desembarque,
todos queriam ver de perto o negro Leônidas da Silva. Ele fora o arti-
lheiro da Copa e encantara o público europeu com jogadas inovado-
ras e esteticamente perfeitas:

Aquele negrinho de dentes muito brancos, embora não tivesse


jogado contra a Itália, voltou consagrado desta Copa de 1938.
Era o homem borracha, o inventor da bicicleta, o Diamante
Negro. Durante os próximos vinte anos, reinaria absoluto – só o
cantor Orlando Silva, o Cantor das Multidões, e Getúlio Vargas,
o Pai dos Pobres, fizeram-lhe alguma sombra. Reinou no Rádio,
nas páginas de rosto dos jornais e revistas, nos refeitórios das
fábricas, nos campos de terra suburbanos, na Avenida Rio
Branco e na Avenida São João. (SANTOS, 1981, p. 37-38)

Garoto de origem pobre, negro e semianalfabeto, Leônidas


tornou-se o primeiro ícone da dramatização social promovida pelo

20 Segundo Silva (2004, p. 146), o locutor Gagliano Neto e os jornalistas Thomaz Maz-
zoni, Afrânio Vieira e Everardo Lopes viajaram à França em 1938 como membros
oficiais da delegação brasileira. Esse fato demonstra os fortes laços que uniam a
imprensa esportiva e as proposições do regime estado-novista.
55

Euclides de Freitas Couto


futebol no Brasil. Sua trajetória serviria de inspiração para que mi-
lhares de outros meninos de origem humilde apostassem no futebol
a realização de seus sonhos de ascensão social. Alguns poucos con-
seguiram superá-lo no quesito “popularidade”. Após o “reinado” de
Leônidas, que se estendeu até 1950, outros jogadores que possuíam
em comum a mesma narrativa étnico-social – como Garrincha, Pelé,
Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho – foram coroados, em dife-
rentes contextos, como verdadeiros heróis nacionais.
A epopeia de Leônidas da Silva na Copa da França ilustra ape-
nas uma das páginas dos capítulos mais importantes do rádio brasilei-
ro. O êxito obtido com as transmissões da Copa possibilitou ao rádio
ampliar sua programação esportiva. Além do locutor, as transmissões
passaram a contar com repórteres de campo e comentaristas. Com o
maior interesse do público pelo futebol, os patrocinadores aumenta-
ram o valor de suas cotas, impulsionando as emissoras a investirem
grandes cifras nas inovações tecnológicas. Os craques da seleção,
ídolos em seus clubes, ganhavam cada vez mais notoriedade, o que
fez com que passassem a ser disputados por várias equipes, inclusive
do exterior.
Um efeito dominó desencadeado pela Copa de 1938 favoreceu
também o mercado de periódicos. Em 1938, o jornal O Globo, do Rio de
Janeiro, lançou o tabloide semanal O Globo Esportivo. Essa publicação
consistia em uma versão mais completa e ampliada da seção O Globo
nos sports (que integrava o jornal desde 1931) e trazia uma cobertura
diversificada estampada em matérias envolventes e criativas.21 O ta-
bloide, que em seus primeiros anos se tornou um sucesso de vendas,
circulou até 1945, concorrendo diretamente com o Jornal dos Sports
(SILVA, 2006, p. 166). Nesse período, em São Paulo, ocorreu um fato da
mesma natureza: lançado em 1928, o periódico semanal A Gazeta –
Edição Esportiva foi rebatizado A Gazeta Esportiva, passando a circular
em três edições semanais até 1947. O surgimento de diversos jornais
esportivos em vários pontos do país é um exemplo significativo da
atração que o futebol passava a exercer na vida cultural brasileira.
Assim, no cenário esportivo que se estabeleceu no final da
década de 1930, o movimento em torno da popularização do futebol

21 A “página 8” do periódico tornou-se tradicional no meio futebolístico por publicar


matérias que abordavam os bastidores do futebol, enfocando assuntos como a vida
pessoal dos principais jogadores, as peripécias dos dirigentes e a rivalidade das
torcidas (SILVA, 2006).
56
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

favoreceu, diacronicamente, a divulgação do trabalho dos cronis-


tas esportivos que, pari passu, passaram a usufruir de grande cre-
dibilidade junto ao crescente número de aficionados pelo esporte.
Atingindo grande popularidade, muitos deles acumulavam as tarefas
de comentaristas nas rádios e cronistas nos jornais, assumindo a
missão de disseminar entre a população, por meio do jogo da bola,
o sentimento de nacionalidade. O teor das discussões presentes nos
comentários, nas crônicas e nos livros publicados nas décadas de
1930 e 1940 dá mostras de que o envolvimento social em torno do
futebol constituiu um importante espaço para a transmissão das ideo-
logias oficiais. A ideia difundida pelos cronistas de que o brasileiro
incorporava em seu estilo de jogar os traços essenciais da cultura,
como a improvisação, a ginga e a malícia, transformou o jogo bretão
no “mais nacional” de todos os esportes, requalificando-o socialmen-
te como um dos símbolos mais importantes da identidade nacional.
A identificação do povo com essas narrativas permitiu que o
ideal da conciliação racial, tão caro aos teóricos do Estado Novo,
alcançasse os quatro ventos por meio das frases de Mário Filho,
Gilberto Freyre, Thomaz Mazzoni e José Lins do Rego, entre outros.
Nos últimos anos, os estudiosos do futebol têm promovido um amplo
debate sobre a questão da invenção das tradições no futebol brasilei-
ro. Essas discussões envolvem, especialmente nas décadas de 1930
e 1940, a questão da assimilação dos ideais de democracia racial pe-
los cronistas da época. Nas obras de Gilberto Freyre – sobretudo em
Casa Grande & Senzala, publicada em 1933 – o legado da mestiçagem,
ao contrário do que pregavam as teorias eugenistas,22 foi uma he-
rança extremamente positiva para a população brasileira. Segundo
Freyre, havíamos herdado as “melhores virtudes” de cada povo par-
ticipante no processo da colonização portuguesa. Assim, as manifes-
tações culturais de origem africana e indígena passaram a ser super-
valorizadas e redimensionadas, ganhando legitimação no cotidiano
do país. As festas religiosas, as danças folclóricas e a capoeira foram
consideradas traços essenciais da cultura nacional. Nesse contexto,
os cronistas esportivos e escritores surgem como grandes aliados da
política cultural nacionalista.23 Ao exaltar as qualidades técnicas dos

22 Sobre a difusão e interpretação das teorias eugenistas no Brasil, ver o trabalho de


Linhales (1996), especialmente os capítulos 2 e 3.
23 Um contraponto valioso sobre essa representação foi formulado pelo historiador
Luiz Carlos Ribeiro (2003, p. 1). Em seu julgamento, os elementos da brasilidade
57

Euclides de Freitas Couto


jogadores brasileiros, identificando-as como uma prova irrefutável
das capacidades físicas e intelectuais da população, os cronistas ele-
geram o futebol como o maior tradutor da identidade nacional, como
ilustra esta passagem extraída de uma crônica de Gilberto Freyre pu-
blicada no período da Copa do Mundo de 1938:

O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar com o


dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa,
de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneida-
de individual em que se exprime o mesmo mulatismo de Nilo
Peçanha, que foi a melhor afirmação na arte da política. Os
nossos passes, nossos pitu’s, os nossos despistamentos, os
nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança ou ca-
poeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que
arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por outros
europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece expri-
mir de modo interessantíssimo para psicólogos e sociólogos
o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo o malandro que
está em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil. (DIÁRIO DE
PERNAMBUCO, 17 jun. 1938 apud SOARES, 2001)

Frequentemente revisitada pelos estudiosos da história do fu-


tebol, esta crônica traduz, em certa medida, as inquietações dos in-
telectuais daquele período. A questão da conciliação racial, uma das
maiores preocupações dos teóricos do Estado Novo, é representada
na imprensa esportiva sob a forma de elogio à mestiçagem. A tipolo-
gia dessa representação sugere que o processo de popularização do
futebol, nas décadas de 1930 e 1940, contou com a efetiva participa-
ção dos cronistas e escritores que, ao lançarem mão das epopeias,
dramatizações e simbologias construídas em torno do sucesso no
futebol, supervalorizavam o negro, o mulato e o pobre, componen-
tes estruturais do “DNA simbólico” (SOUZA, 2011, p. 31) da sociedade
brasileira.
Temos observado nos últimos anos um considerável esforço
por parte da historiografia futebolística, e também dos literatos, no

elencados por Gilberto Freyre – mulatismo e malandragem – não se alinhavam aos


pressupostos disciplinadores dos grupos dominantes. Nesse contexto, a utilização
do esporte como instrumento de disciplinamento e ordenamento social teria se ma-
terializado com a criação do Conselho Nacional de Desporto (CND) em 1941.
58
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

sentido de problematizar, à luz das teorias e categorias de análise


das ciências sociais, da linguística e da literatura, a produção dos
escritores e jornalistas que se dedicaram à discussão do futebol,
especialmente nas décadas de 1930 e 1940. A escolha por analisar
este período, como oportunamente identificamos, é motivada pelo
crescente interesse que o futebol passou a despertar em diferentes
segmentos da população, sugerindo que seja possível, a partir des-
se marco temporal, destacar os elementos presentes na sociedade,
na cultura e na política que contribuíram para a popularização do
esporte no Brasil. A questão central, visitada nas obras dos princi-
pais autores (LOVISOLO, 2001; SOARES, 2001; SILVA, 2004; FRANZINI, 2003;
SILVA, 2006), remete-se à ideia de legitimação do ideal de democracia
racial via futebol encontrada nos escritos da época. Merecem desta-
que, neste caso, os estudos realizados sobre a representatividade do
livro O negro no futebol brasileiro, publicado em 1947 pelo jornalista
Mário Filho, cujo prefácio foi escrito por Gilberto Freyre.
Para se ter uma ideia da importância atribuída a este trabalho,
foi lançada no ano de 2001 uma coletânea de artigos organizada por
três cientistas sociais cariocas: Ronaldo Helal, Antônio Jorge Soares
e Hugo Lovisolo; a obra, intitulada A invenção do país do futebol: mí-
dia, raça e idolatria, dedica dois de seus artigos à representatividade
do NFB24 no interior das ciências sociais. No primeiro deles, intitula-
do “História e a invenção de tradições no futebol brasileiro”, Antônio
Jorge Soares critica os pesquisadores que, ao utilizarem o NFB como
uma fonte “verdadeira, objetiva e completa”, tomam-na como única
referência para compreender a história do período de popularização
do futebol no país. O autor levanta a tese de que a obra de Mário Filho
possui a estrutura de um conto, nos padrões definidos por Propp
(1984), onde os jogadores negros tornam-se heróis ao assumirem o
papel de fervorosos combatentes dos preconceitos raciais por meio
de suas conquistas no futebol. Segundo Soares, estes pesquisadores,
chamados de “novos narradores”, são oportunistas e utilitaristas, na
medida em que se apropriam do NFB para “inventar” novas formas
de resistência que são conformadas a partir da inclusão do negro no
cenário futebolístico do país. Para ele, essas visões acabam por cons-
truir no tempo presente a legitimação das ideologias nacionalistas
contidas no pensamento estado-novista.

24 Utilizaremos, a partir deste ponto, as iniciais NFB para nos referirmos ao livro de
Mário Filho.
59

Euclides de Freitas Couto


A utilização acrítica de dados e interpretações do NFB faz com
que os novos narradores acabem por incorporar o viés nacio-
nalista que inspirou Mário Filho, embora desejem atacar a de-
mocracia racial e acentuar o racismo ou a segregação na socie-
dade brasileira. Deixam de considerar que o NFB e seu autor
sofreram a influência dos anos 30 e 40, marcados, sobretudo,
pela mentalidade nacionalista e pela esperança de conciliação
racial. As elaborações de Mário Filho sofreram a influência
não só do pensamento de Gilberto Freyre, mas também de um
freyrismo popular. (SOARES, 2001, p. 115)

O ataque de Antônio Jorge Soares foi precisamente direcio-


nado aos trabalhos de Gordon Júnior (1995, 1996), Valdenyr Caldas
(1990) e José Sérgio Leite Lopes (1994). Durante a década de 1990,
estes autores se dedicaram ao estudo dos processos de difusão e po-
pularização do futebol no país, tomando, como fio condutor de suas
pesquisas, a análise dos elementos histórico-sociais que possibilita-
ram a assimilação do jogo de futebol nas camadas menos favoreci-
das da população, em suas dimensões esportiva, lúdica, econômica
e como forma de lazer.
O segundo artigo dedicado ao NFB na referida coletânea,
“Sociologia, história e romance na construção da identidade nacional
através do futebol”, oferece um contraponto às críticas proferidas
por Soares. Nele, Ronaldo Helal e César Gordon Júnior procuram, por
meio de uma análise das questões teórico-metodológicas que envol-
vem a produção do conhecimento histórico, desconstruir as críti-
cas apresentadas no primeiro artigo. Para Helal & Gordon Júnior, o
trabalho de Soares apresenta várias lacunas. A principal delas está
diretamente ligada a uma provável concepção restrita da História,
presente nos argumentos de Soares:

Apesar de louvarmos o mérito do trabalho de Soares ao apon-


tar um provável descuido metodológico dos “novos narrado-
res”, questionamos sua posição radical em negar qualquer
possibilidade de utilização histórica do texto de Mário Filho.
Tendo demonstrado que o livro do jornalista nada tinha de
“inocente” (ou objetivo) – pois trazia embutida uma deter-
minação que ajudava a construir uma história para o Brasil,
na qual, através do futebol, os personagens envolviam-se em
60
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

conflitos raciais para superá-los ao final da saga –, Soares é


levado a concluir que o NFB é uma obra “que não fala sobre
a história do futebol e das relações raciais no espaço do fute-
bol”. Segundo ele, o livro refletiria “um clima de época e não
uma história no sentido stricto do termo”, mesmo porque esta-
ria “mais preocupado com os detalhes dos pitorescos causos
que narra do que com a verdade positiva ou com a coerência
interna”. (HELAL; GORDON JÚNIOR, 2001, p. 54)

Para eles, ao desprezar a utilização do NFB como fonte históri-


ca, Soares demonstra que desconhece ou, pelo menos, não compac-
tua com a ampla discussão acerca da ampliação da noção de fonte
histórica produzida desde o surgimento da Escola dos Annales.
De um lado, o debate acadêmico em torno do NFB, além de
profícuo, é revelador de um novo paradigma que vem se consolidan-
do no cenário historiográfico contemporâneo. Muito desprezado nos
anos 1960 e 1970, o futebol vem se tornando, nas duas últimas déca-
das, um elemento fundamental para a construção do conhecimento
histórico, social e político das nações. Por isso mesmo, tem desper-
tado no meio acadêmico a preocupação com o rigor na produção,
na diversificação e na análise das fontes. De outro, o interesse dos
pesquisadores pelo NFB mostra quão relevante se tornou o estudo
do período do Estado Novo para a inteligibilidade do momento de
constituição do futebol como o esporte das massas no Brasil.

1.2. Anos 1950: a afirmação do “país do futebol”

Aos 34 minutos do segundo tempo, o atacante uruguaio Ghiggia


marcou o segundo gol que deu a Copa do Mundo de 1950 à “celeste
olímpica”. Naquele instante, nem ele nem, provavelmente, qualquer
outro estrangeiro tinha a noção exata da representatividade que o
futebol alcançava no imaginário coletivo dos brasileiros. Além dos
mais de 200 mil espectadores presentes no Maracanã naquela tar-
de de 16 de julho, uma nação inteira calava-se diante da eminente
derrota. O silêncio percebido no estádio25 parecia ter se espalhado

25 O atacante uruguaio Schiaffino, em entrevista ao jornal El Grafico y el Mundial,


descreveu da seguinte maneira o silêncio após o gol de Ghiggia: “Embora isso
pareça incomum, foi a primeira vez em minha vida que senti algo que não era ruído.
Senti o silêncio. Parecia que havia tudo terminado” (PERDIGÃO, 1986, p. 142).
61

Euclides de Freitas Couto


pela nação. Como é de costume no meio futebolístico, as crônicas
redigidas logo após a partida lançavam suas flechas contra um úni-
co culpado: o goleiro Barbosa. Nelson Rodrigues, após alguns anos,
descreveu o lance do gol uruguaio como “o frango eterno”. A tônica
das inúmeras discussões promovidas pela imprensa, nos dias que
sucederam ao jogo, se resumia na procura dos culpados pelo fracas-
so da seleção. Com o passar do tempo, surgiam entre os cronistas
novas versões para a derrota, nas quais os demais jogadores da de-
fesa também eram acusados. As críticas direcionavam-se ao fato de
eles não terem utilizado o recurso da falta para interromper o ataque
uruguaio (PERDIGÃO, 1986, p. 147-148). Contudo, a parte mais lúcida
da imprensa se autoculpou pela grande expectativa depositada na
seleção, como é possível perceber na crônica intitulada “Derrota da
Máscara”, redigida pelo jornalista David Nasser poucos dias após o
fracasso brasileiro:

Somos tão responsáveis por êsse desfecho esportivo quanto os


jogadores e o técnico. Nós, os jornalistas que criamos a lenda da
invencibilidade do onze brasileiro. E todos que ajudaram a afi-
velar a máscara de imbatíveis, criando a exagerada certeza da
vitória que não veio. Todos somos culpados. Que história é essa,
agora, de descarregar sôbre os ombros de Bigode, de Barbosa,
de Jair, de Flávio Costa, a responsabilidade por uma derrota que
é tão nossa quanto dêles e para qual contribuímos e pela qual
nos penitenciamos? A máscara estava atarrachada em nossos
rostos, desde as goleadas, e o Brasil perdeu o campeonato do
mundo naquela tarde em que esmagou o quadro da Espanha.
Ratificamos, então, a nossa classe. Era um time imbatível, o nos-
so. (O CRUZEIRO, 29 jul. 1950, p. 15)

O texto, além de informar sobre as inquietações da imprensa


esportiva em torno da derrota brasileira, revela, em um segundo mo-
mento, o grande espaço ocupado pelo futebol no contexto sociocul-
tural e político brasileiro. A revista O Cruzeiro, assim como os princi-
pais jornais que circulavam no país, promoveram um amplo debate
sobre o fracasso do nosso futebol. O vexame dos canarinhos abriu
espaço para que inúmeras críticas fossem proferidas à organização
do mundial, às mazelas sociais e à falta de responsabilidade das au-
toridades com a população.
62
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

A mesma revista, em matéria publicada em várias páginas de


sua edição do dia 29 de julho de 1950, relata uma série de problemas
ocorridos nas áreas interna e externa do Estádio do Maracanã nas
horas que antecederam a partida entre Brasil e Espanha. O tumul-
to criado pelas longas filas, formadas tanto por pessoas que com-
pravam ingressos como por outras que queriam entrar no estádio,
contabilizou um saldo de 262 feridos e um morto. Outras notícias
evidenciavam os problemas ocorridos na organização da Copa: na
primeira página da edição do dia 15 de julho de 1950, o jornal Diário
de Minas estampava, em uma de suas manchetes, que 17 mil ingres-
sos da partida final haviam desaparecido misteriosamente. A notí-
cia ainda informava que as autoridades policiais convocaram Irineu
Chaves, superintendente da CBD, para dar explicações sobre tal
sumiço. Esses fatos evidenciaram, simultaneamente, duas faces do
contexto histórico-político brasileiro vivido no início dos anos 1950:
de um lado, demonstraram a falta de preparo das autoridades para
organizar um evento internacional de tamanha proporção; de outro,
permitiram que, naquelas circunstâncias, a imprensa utilizasse o fu-
tebol para criticar as autoridades e denunciar as mazelas sociais do
país. A pesquisa da historiadora Gisella Moura oferece uma opinião
esclarecedora acerca do debate travado pela imprensa em torno da
questão sobre a construção do Estádio do Maracanã:

Enquanto o Jornal dos Sports não poupava elogios à obra, a


Tribuna da Imprensa, jornal de propriedade de Carlos Lacerda,
não parava de criticar o estádio. Lacerda e seus colaborado-
res atacaram o Estádio Municipal até o fim, estampando nas
primeiras páginas de seu jornal problemas da cidade, como
a crescente favelização, a falta de esgotos, de água e limpeza.
Consideravam o estádio uma realização de menor importância
para a cidade e levantavam dúvidas quanto ao seu custo e à efi-
cácia da venda das cadeiras cativas. Os cronistas esportivos do
jornal de Lacerda, apesar de considerarem o estádio uma im-
portante realização, criticavam a maneira de conduzir a obra,
dizendo que o objetivo era sobretudo enaltecer as figuras do
prefeito e do presidente da República. (MOURA, 1998, p. 47)

A Copa do Mundo de 1950 traduz nas linhas de sua história


uma infinidade de representações construídas sobre a sociedade
63

Euclides de Freitas Couto


brasileira naquele período. Em uma importante pesquisa, a socióloga
Fátima Antunes analisa a construção da identidade nacional por meio
das crônicas de José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues.
Em uma das peças selecionadas de “Zé Lins”, a autora chama a aten-
ção para o fato de que a representação criada na crônica traduz com
riqueza de detalhes o nacionalismo do povo brasileiro, dramatizado
no sofrimento com a derrota na partida final:

Vi um povo de cabeça baixa, de lágrima nos olhos, sem fala,


abandonar o Estádio Municipal, como se voltasse do enterro
de um pai muito amado. Vi um povo derrotado, e mais que
derrotado, sem esperança. Aquilo me doeu o coração. Toda
a vibração dos minutos iniciais da partida reduzidos a uma
pobre cinza de fogo apagado. E, de repente, chegou-me a de-
cepção maior, a ideia fixa que se guardou na minha cabeça, a
ideia de que éramos mesmo um povo sem sorte, um povo sem
as grandes alegrias das vitórias, sempre perseguido pelo azar,
pela mesquinharia do destino (JORNAL DOS SPORTS, 18 jul.
1950 apud ANTUNES, 2004, p. 84-85)

Fátima Antunes observa que a crônica de Zé Lins revela a ideia


de que o futebol, naquele momento, concretizava o sonho da unidade
nacional: conseguia reunir pessoas de diferentes classes sociais, re-
ligiões e sexos em um projeto comum, ou seja, torcer para a seleção
do seu país. Além dessa representação, muito explorada nos estudos
realizados por Roberto Da Matta nos anos 1980, é possível refletir
sobre outros aspectos presentes na crônica citada. Simultaneamente
à sua satisfação com a demonstração de nacionalismo em torno da
seleção, o autor mostra sua preocupação com o repertório de de-
cepções da seleção cujo ciclo se iniciara na Copa de 1938. Naquela
oportunidade, a seleção, apesar de ter mostrado um estilo de jogo
plástico e envolvente, havia sido superada pelos italianos, fato que
resultou na sua eliminação das finais e expôs as fragilidades táticas e
físicas do scratch brasileiro.26 A preocupação do autor com o fracas-
so brasileiro nos campos de futebol refletia, em outros parâmetros, a

26 De acordo com Nogueira (2006, p. 232), a ausência de Leônidas na partida semifinal


contra a Itália, motivada por uma distensão muscular, abalou psicologicamente o
grupo de jogadores brasileiros, que não estaria preparado para jogar sem seu maior
craque. Aquino (2002, p. 61) atribui a eliminação do Brasil ao descontrole emocional
de Domingos da Guia que, nesta mesma partida, agrediu um jogador italiano após
64
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

necessidade de afirmação da “nação brasileira” no contexto interna-


cional que se constituía após a Segunda Guerra Mundial.
Durante a Era Vargas (1930-1945), iniciou-se no Brasil um pro-
cesso “tardio” de industrialização alavancado pelo Estado. No curso
deste período, o governo adotou uma política de proteção tarifária
que visava transferir dos estados para a União os valores arrecadados
com tributos. Não obstante, observou-se a atuação direta do Estado
na produção de bens de capital e o significativo investimento de re-
cursos para o desenvolvimento da infraestrutura produtiva do país.
Essas medidas surtiram efeitos ambíguos no início dos anos 1950.
Ao mesmo tempo em que impulsionava o país nos trilhos da moder-
nização capitalista, colocando no mercado bens e serviços a baixo
custo, o Estado contribuía para o aumento do quadro inflacionário,
devido ao volume de emissões de moeda somado ao enorme fluxo de
remessas para o exterior de capitais referentes ao royalties pagos às
filiais de empresas estrangeiras instaladas no país (ANASTASIA, 2002,
p. 20-21). Em 1938, a renda do setor industrial já superava as registra-
das pelo setor agrícola, dado que demonstrava uma nova vocação da
economia brasileira.27 Como resultado da modernização capitalista,
a região sudeste do país, em especial, experimentou, destacadamen-
te após a década de 1940, um intenso processo de urbanização im-
pulsionado pelo crescimento vegetativo e pelos fluxos de imigrantes
nordestinos que buscavam seu espaço principalmente nas indústrias
e na construção civil, ocupando os morros do Rio de Janeiro e as
periferias de São Paulo (IANNI, 1977, p. 64-65).
Como consequência de tal processo, essas cidades experimen-
taram a rápida formação das camadas médias e populares, que incor-
poravam os funcionários públicos, trabalhadores autônomos, operá-
rios, trabalhadores da construção civil e uma pluralidade de outros
postos criados para aqueles com pouca qualificação profissional. O

ser exaustivamente provocado. Tal agressão resultou na marcação de um pênalti


que foi convertido a favor dos italianos.
27 É importante mencionar que, no período do Governo Dutra, entre os anos de 1946 e
1950, observou-se um rompimento com as políticas que conformavam o “capitalis-
mo de estado”. Entretanto, essas práticas retornariam, adquirindo outra roupagem,
com a volta de Vargas ao poder em 1951. Em um dos seus estudos clássicos, Ianni ar-
gumenta que a política econômica do Governo Dutra orientou-se, substancialmente,
no sentido de promover as condições necessárias para o desenvolvimento da inicia-
tiva privada. Para tal empresa, o governo promoveu, por meio de uma atabalhoada
política cambial, a entrada de enorme fluxo de capital estrangeiro que resultou em
um profundo desequilíbrio das contas públicas (IANNI, 1977, p. 83-88).
65

Euclides de Freitas Couto


Censo de 1950 indicava que 46% da população brasileira vivia nas
cidades, onde 60% dos domicílios possuíam energia elétrica, 39,5%,
água encanada, e 71,3%, instalações sanitárias (ALBERTI, 2002, p.
305). Foi nesse período que se verificou, entre as camadas médias ur-
banas, um aumento significativo do consumo de automóveis, eletro-
domésticos e alimentos industrializados. A incorporação dos hábitos
de consumo se inspirava principalmente nos modelos ditados pelo
american way of life. O supermercado tornou-se, nesse contexto, um
exemplo característico dos novos padrões de vida requisitados pelas
emergentes classes urbanas, como podemos perceber por meio do
estudo de Verena Alberti:

Iniciado nos Estados Unidos na década de 1930, em 1955 o sis-


tema de supermercados já tinha alcançado 52 países do mundo.
Tratava-se de um novo modelo de comércio de alimentos, que
precisava ser aprendido tanto pelos consumidores quanto pelos
próprios gerentes e funcionários. Como os produtos não eram
embalados, com exceção do açúcar e do café, os supermerca-
dos tinham de embalá-los para poder vender em auto-serviço.
[...] A relação com os fornecedores também criava novas práti-
cas, como o aluguel de parte das gôndolas e do espaço aéreo,
a degustação e as promoções. Nesse particular, o supermerca-
do soube aliar-se desde cedo à televisão. O supermercado Peg
Pag, por exemplo, inaugurado em 1954 e considerado a escola
de supermercados do Brasil, promovia um programa de televisão
chamado “Vale a pena ser pesado”, no qual o candidato, em uma
balança, ganhava em mercadorias a quantidade equivalente a seu
peso. (ALBERTI, 2002, p. 305)

Essa passagem revela, entre outras questões, que as transfor-


mações no consumo das grandes cidades brasileiras foram acom-
panhadas pela ampliação do mercado publicitário que, por sua vez,
contou com os avanços tecnológicos do pós-guerra,28 utilizados so-
bremaneira nos meios de comunicação. O sistema de radiofonia na-
cional continuava experimentando os altos índices de crescimento

28 Hobsbawm 1995, p. 260) aponta que as demandas de alta tecnologia exigidas pela
Segunda Guerra foram absorvidas pela indústria civil e disseminadas maciçamente
na sociedade após 1945. Dentre os produtos que entraram em circulação para o con-
sumo civil, e cuja tecnologia advém das pesquisas bélicas, o autor destaca o motor
a jato, a televisão e os gravadores de fita cassete.
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Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

da década de 1930: entre os anos de 1944 e 1950, o número de emis-


soras praticamente triplicou; a participação publicitária na progra-
mação foi estimulada a partir de 1952, quando uma nova legislação
ampliou para 20% a publicidade no rádio brasileiro.29 É neste período
que o cinema se torna, de fato, um bem de consumo para as popu-
lações urbanas brasileiras. Seja através da disseminação das produ-
ções norte-americanas, que viam na América Latina um mercado pro-
missor para suas películas, seja pela tentativa de criação da indústria
cinematográfica brasileira,30 a “sétima arte” se consolidou como uma
das formas de entretenimento mais importantes nas cidades.
Foi neste cenário que, em 1950, os brasileiros apostavam todas
as suas fichas na seleção de futebol. A Segunda Guerra Mundial havia
impedido a realização dos mundiais de 1942 e 1946. Com a Europa em
processo de reconstrução, a candidatura do Brasil a sede da próxima
Copa, apresentada oficialmente em 1946, foi vista com bons olhos
pelo comitê organizador da Fifa. Se, para Zurique, a realização da
Copa do Mundo em um país da América Latina inseria o Brasil defini-
tivamente no projeto expansionista traçado pela entidade maior do
futebol mundial, para o governo federal, a realização da Copa no país
era uma oportunidade única de mostrar ao mundo as potencialida-
des de uma nação que caminhava em pleno desenvolvimento. O fu-
tebol, neste aspecto, caía no gosto dos governantes por se inserir no
rol das práticas modernas, dignas de serem expostas como símbolo
nacional. Se, desde os primeiros anos do século 20, os europeus já
reconheciam o esporte bretão como uma arena legítima para a dra-
matização de suas rivalidades étnicas,31 foi no Brasil dos anos 1950
que o futebol adquiriu os contornos de um símbolo nacional à medi-
da que foi sendo amplamente apropriado pela população.32
29 ORTIZ, 1991, p. 40.
30 Referimo-nos especialmente às companhias Atlântida e Vera Cruz. A primeira era
conhecida por uma produção caracterizada pelas temáticas popularescas, como o
samba e o futebol, difundidas nas chanchadas. A segunda, inspirada em padrões
internacionais, produzia películas que ilustravam, por meio dos melodramas, o
imaginário pequeno-burguês preconizado pela elite paulistana (GALVÃO, 1981).
31 Sobre a questão da relação entre o futebol e as rivalidades étnicas, Giulianotti, 2002,
oferece, especialmente no segundo capítulo de sua obra, intitulado “O esporte no
século 20: futebol, classe e nação”, um panorama das disputas futebolísticas trava-
das no início do século 20 entre os países do Reino Unido, nas quais o “jogo da bola”
possuía um forte caráter de rivalidade étnico-nacional.
32 Conforme discutido nos itens anteriores, contribuíram decisivamente para esse fato
os investimentos políticos e econômicos realizados pelo Estado Novo, que obje-
tivaram a popularização do futebol, procurando integrá-lo à simbologia nacional.
67

Euclides de Freitas Couto


A esta altura dos acontecimentos, os meios de comunicação,
sobretudo o rádio e os jornais, já haviam dado sua grande parcela
de contribuição para a construção, na sociedade, de uma linguagem
compartilhada em torno do futebol, fornecendo os elementos neces-
sários para a disseminação do sentimento de nacionalidade. Richard
Giulianotti (2002, p. 43) argumenta que o nacionalismo condensado
em uma forma de jogo cria uma espécie de celebração da identidade
nacional na qual as outras formas de exteriorização da identidade
são “categoricamente excluídas”. Tal sentimento parece conspirar
para que todos os esforços racionais, sentimentais e simbólicos se-
jam direcionados para o esporte e o conjunto de símbolos que o cer-
cam. A Copa do Mundo de 1950 evidencia um momento em que é
possível perceber todo este “esforço” simbólico em torno do futebol.
Os periódicos que circulavam durante a disputa do mundial, além
de retratarem um quadro de grande esperança nacional em torno do
scratch brasileiro, estampavam em suas páginas o duplo orgulho dos
brasileiros, que se expressava na alegria em sediar a Copa e oferecer
às grandes nações o maior estádio de futebol do mundo:

Figura 1 – Maracanã: o grandioso


Fonte: O CRUZEIRO, 22 jul. 1950, p. 22.

Nesse quadro, destaca-se a difusão do esporte no país pelo sistema radiofônico e o


controle dos veículos de imprensa através da cooptação dos jornalistas esportivos.
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Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Ao evocar a grandiosidade do estádio e comparar o futebol


brasileiro à música, um dos traços culturais brasileiros mais evi-
denciados no exterior, a reportagem da revista O Cruzeiro procura
construir uma sinergia entre os dois elementos (música/futebol),
colocando-os no mesmo patamar. Em outra reportagem publicada
na mesma edição, também assinada pelo jornalista David Nasser, a
revista reforça a simbiose entre a música e o futebol ao comparar as
goleadas aplicadas pelos brasileiros nos suecos e espanhóis:

Figura 2 – Em ritmo de samba


Fonte: O CRUZEIRO, 22 jul. 1950, p. 13.

O ponto central da crônica de Nasser possibilita a seguinte in-


terpretação: à medida que os jogadores brasileiros vão, simbolica-
mente, vencendo seus adversários em ritmo de samba, o futebol vai
adquirindo feições de um jogo “brasileiro”, pois passa a ocupar, no
69

Euclides de Freitas Couto


imaginário coletivo, um espaço sobre o qual os brasileiros possuíam
amplo domínio. O samba, neste contexto, era definido como um rit-
mo musical autenticamente nacional, pois incorporava os elementos
definidores de nossa suposta identidade mestiça, difundida pela in-
telectualidade e pelos cronistas esportivos da época. Ginga, malícia,
sensualidade, improvisação e alegria – ao incorporarem ao futebol
essas características presentes no samba, os jogadores brasileiros
redimensionavam o esporte de forma simbólica, elevando-o ao status
de símbolo nacional, e consolidavam33 nos campos brasileiros uma
nova maneira de jogar que se contrapunha ao estilo de jogo euro-
peu, caracterizado pela racionalidade e pela obediência aos padrões
técnicos.
Na atmosfera criada em torno da Copa de 1950, percebemos
um clima – conduzido pelo futebol – de afirmação do nacionalismo
e do patriotismo. Os cronistas conclamavam o povo brasileiro a se
orgulhar do seu país. A realização da Copa do Mundo e, novamente,
a construção do Maracanã eram comparados a outros “importantes”
fatos históricos que ilustravam a trajetória “gloriosa” da nação:

Muita admiração tem tido o povo diante do Estádio Municipal.


As proporções do monumento, sagrado pela orgulhosa afirma-
tiva de ser o maior do mundo, as extraordinárias comodidades
previstas para os seus freqüentadores, a perfeição técnica da
estrutura, lisonjeiam a nossa vaidade. Enfim, fizemos alguma
coisa verdadeiramente única! Pois não é certo que, donos de
um dos maiores países do mundo e onde tantas obras da natu-
reza são agigantadas, sofremos um complexo de mesquinhez
que se revela pelo acanhado das realizações humanas? Aflige-
-nos o temor de realizar as coisas, tendo menos vista as neces-
sidades de hoje do que as de amanhã. É sabido que quando o
Prefeito Pereira Passos abriu a Avenida Central, considerava-se
que estivesse atacado de megalomania. Para que uma rua tão
larga, rasgada de mar a mar, se não há tráfego nem de veículos
nem de pedestres para justificá-la? Assim éramos no começo
do século. Assim continuamos a ser no meio do século. Mas
os aplausos com que está sendo recebido o Estádio, a gloriosa

33 No mundial de 1938, a imprensa esportiva já destacava os talentos individuais de


Leônidas da Silva e o estilo de jogo descontraído e repleto de improvisações apre-
sentado pela Seleção Brasileira (SILVA, 2004).
70
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

e consoladora sensação de possuir algo que é “o maior do


mundo”, batendo os “records” americanos nessa espécie de
grandeza, talvez nos libertem desse complexo de mesquinhez
que estabelece tão rude contraste entre o que faz o homem do
Brasil e as imponentes majestades com que nos dotou a natu-
reza. [...] Que Inglaterra, a França ou a Alemanha se metessem
conosco! Os feitos do Paraguai deixavam os de Napoleão na
sombra e a batalha do Riachuelo fazia de Trafalgar e de Nelson
coisas sem a mínima importância histórica. (O CRUZEIRO, 29
jul. 1950, p. 5)34

A crônica, assinada por Austregésilo de Athayde, insere-se no


conjunto de representações inscritas no imaginário coletivo dos anos
1950. O Brasil precisava se afirmar no contexto político internacional
como uma das grandes nações democráticas; para isso, a melhor so-
lução seria jogar no esquecimento a recente experiência autoritária
vivida nos tempos de Getúlio Vargas. Assim, os cronistas construíam
representações que visavam legitimar o caráter agregador e democrá-
tico do futebol. O esporte, representado pelo “estádio-monumento”,
assumia feições de uma arena democrática em que ricos e pobres
partilhavam das mesmas emoções, igualavam-se nas vitórias e nas
derrotas e aplaudiam os mesmos heróis. Nas crônicas e fotografias
que circularam no período da Copa, é possível perceber o forte ape-
lo à participação familiar desencadeado pela imprensa. Moura (1998,
p. 73) sinaliza que a função incumbida ao Maracanã de promover a
comunhão popular parecia ter surtido efeito. Notava-se nos jogos da
Seleção Brasileira a presença de muitas famílias e mulheres que ocupa-
vam as arquibancadas e cadeiras. Segundo a autora, a ausência femi-
nina nos jogos que precederam a construção do Maracanã poderia ser
atribuída à falta de conforto dos outros estádios do Rio de Janeiro.35
No cenário econômico, o país deveria apresentar os potenciais
humanos e tecnológicos que o credenciariam a marchar rumo ao de-
senvolvimento capitalista orquestrado pelos norte-americanos. Na
década de 1950, o Brasil já era conhecido mundialmente por suas
belezas naturais e pela espontaneidade de seu povo. Contudo, o ce-
nário internacional que se construía no pós-guerra exigia que o país

34 “Ufano-me do meu país!”.


35 Um relato bastante esclarecedor sobre esta questão pode ser visto na crônica intitulada
“A mulher na Copa do Mundo”, publicada no Jornal dos Sports em 26 de julho de 1950.
71

Euclides de Freitas Couto


modernizasse sua economia e sua infraestrutura produtiva, de forma
a promover as condições necessárias para a expansão do mercado
consumidor interno. Neste aspecto, a Copa do Mundo contribuiu
substancialmente para que muitos produtos brasileiros fossem co-
nhecidos internacionalmente. O jornal Diário de Minas, nas edições
que circularam durante a Copa de 1950, estampou diferentes infor-
mes publicitários alusivos ao Guaraná Antarctica (Figura 3) – o fa-
bricante havia assinado um contrato de publicidade com a seleção
uruguaia no qual uma das cláusulas previa que os jogadores não po-
deriam aparecer em público tomando outra bebida que não fosse o
refrigerante da empresa.

Figura 3 – Peça publicitária da Antarctica nos anos 1950


Fonte: Diário de Minas, 02 jul. 1950, p. 8.

Nas edições da revista O Cruzeiro circulantes no período da


Copa do Mundo, é possível perceber, em diversas peças publicitá-
rias, a vinculação dos produtos e das próprias empresas ao futebol.
Os publicitários, pelo visto, perceberam o interesse da população
pelo esporte e o transformaram em um espaço perfeito para o anún-
cio de seus produtos:
72
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Figura 4 – Peça publicitária da Kosmos Capitalização S. A. nos anos 1950


Fonte: O CRUZEIRO, 29 jul. 1950, p. 21.

Nessa peça, uma empresa do setor financeiro compara sua car-


teira de clientes ao número de pessoas que caberiam no Maracanã.
Do ponto de vista comunicacional, numa primeira impressão, o anún-
cio tenta apenas associar a imagem da empresa à grandiosidade do
estádio, estabelecendo uma relação direta entre o número de seus
clientes à capacidade de público da arena esportiva. No entanto, ao
analisarmos as imbricações da peça à extensa rede de sociabilidade
gerada pelo futebol espetáculo, percebemos que as referências sim-
bólicas extraídas do esporte passaram a permear a vida cotidiana dos
brasileiros em seus aspectos mais sutis. Em outras palavras, podemos
especular que os anúncios publicitários veiculados nos jornais, nas
rádios e, posteriormente, na televisão, ao tomarem o futebol como
referência simbólica, contribuíram, simultaneamente, para angariar
o interesse da população pelo esporte e ampliar a cultura midiática.
73

Euclides de Freitas Couto


A frequente associação de produtos, empresas e pessoas aos
símbolos do futebol, principalmente a partir de 1950, instiga-nos a
fazer duas considerações acerca dos significados assumidos pelo fu-
tebol brasileiro neste período. A primeira, de cunho sociológico, diz
respeito à identificação, no país, de um campo futebolístico36 que se
conformava a partir dos múltiplos esforços empreendidos pelas ins-
tituições sociais interessadas na difusão do futebol. A população via
no futebol uma forma legitimada pela sociedade de extravasar suas
emoções, construir laços de sociabilidade e compartilhar sentimen-
tos de nacionalismo (ELIAS; DUNNING, 1996). A segunda, inspirada
na teoria do utilitarismo de David Hume, leva a acreditar que os inte-
resses econômicos do Estado, das entidades organizadoras e das em-
presas se apropriaram do capital simbólico construído pela emoção
e pela fidelidade dos torcedores. Tal apropriação possibilitou que es-
tas instituições apelassem aos sentimentos dos torcedores para co-
mercializar e construir sua imagem, associando-a ao futebol. Nesse
sentido, as Copas do Mundo, organizadas quadrienalmente pela Fifa,
são ocasiões especiais para o aquecimento da economia em vários
segmentos do mercado. Os mundiais concentram, desde a década
de 1950, grande volume de investimentos em publicidade – por parte
das grandes empresas – e em obras de infraestrutura – por parte dos
governos –, promovendo o aquecimento do setor turístico, com a
reforma e a construção de hotéis e diversos equipamentos afins.

Isso permite compreender que, no novo contexto iniciado na


década de 1930 com o advento da profissionalização dos jogadores
e a efetiva participação do Estado, que controlava as entidades orga-
nizadoras, o futebol brasileiro experimentou um processo de racio-
nalização (na acepção weberiana do termo) no qual, paulatinamente,
foi perdendo suas características de um simples jogo e assumindo as
formas de um esporte moderno intimamente associado à ideologia
capitalista. Além da profissionalização dos jogadores, diversas áreas
de conhecimento procuraram se aprimorar para oferecer ao futebol
serviços mais qualificados. Observamos a especialização dos treina-
dores, preparadores físicos, médicos e fisiologistas, além da criação

36 Bourdieu (1983b, p. 138), ao se apropriar da teoria elisiana dos campos sociais, ar-
gumenta que, no momento em que as atividades físicas e os esportes de forma geral
passaram a ser organizados, administrados e conceituados pelas entidades perten-
centes ao Estado ou à própria sociedade civil, começaram a constituir um campo
esportivo.
74
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

de inúmeras novas funções no interior do jornalismo esportivo para


atender à crescente demanda dos aficionados pelos espetáculos de
futebol. Esse período de “transição” também pode ser caracterizado
pela incorporação de regras fixas, universalizadas e estabelecidas
por uma entidade organizadora – neste caso, a Fifa – que, sobretudo
após a Segunda Guerra, adquiriu legitimidade mundial.
A acumulação dos esforços empreendidos desde o início do
século 20 pelo Estado, pela imprensa e pelas próprias instituições
escolares, no sentido de difundir as teorias higienistas no interior da
sociedade, acabaram contribuindo para a construção, no imaginário
coletivo brasileiro, do que Bourdieu (1983b, p. 142) denominou de
uso legítimo do corpo. Para o sociólogo francês, as práticas esporti-
vas tornaram-se espaços socialmente legitimados para a encenação
das rivalidades individuais e coletivas, enquanto o corpo adquiriu
um novo status social hierarquizado por sua performance atlética.
A relação de proporcionalidade entre as adesões às práticas
e aos espetáculos esportivos, pensadas a partir das classes sociais,
auxilia na compreensão dos significados que o futebol passava a as-
sumir no cenário esportivo brasileiro que se conformava nos anos
1950. Neste período, a consolidação de uma sociedade urbano-indus-
trial possibilitou a formação de um mercado consumidor de espetá-
culos e produtos esportivos direcionados aos diferentes segmentos
sociais que se estruturavam nas cidades brasileiras. O futebol, espe-
cialmente no Brasil, “contrariou” algumas regras do mercado, pois
foi apropriado nos diversos extratos sociais, tornando-se o esporte
mais “consumido” por todas as classes. Essa democratização experi-
mentada pelo futebol brasileiro pode ser, em certa medida, explicada
pela conformação de sólidos vínculos identitários entre os torcedo-
res de uma mesma agremiação, sentimento denominado por Arlei
Damo de pertencimento clubístico:

A adesão a um clube, uma vez empenhada, é tida como definitiva


– “eterna”, no vernáculo êmico. Ela tem o mesmo estatuto dos
vínculos de sangue, tidos na nossa cultura como indissolúveis.
A hipótese mais provável é que tal peculiaridade esteja relacio-
nada com a tendência, apontada anteriormente, do clube do co-
ração ser uma escolha tutoriada pela parentela masculina con-
sangüínea – pai, avô, tio, primo etc. [...] O clube é uma entidade
sagrada: por representar a coletividade, por ser o elo temporal
75

Euclides de Freitas Couto


entre passado, presente e futuro; por se espelhar pertencimen-
tos extra-futebolísticos e, sobretudo, por ser uma projeção no in-
divíduo, dos afetos familiais. O clube sela a unidade da parentela
masculina, solidária no êxito e no fracasso. (DAMO, 2006, p. 50)

A abordagem de cunho antropológico realizada pelo autor


permite compreender, no universo futebolístico dos anos de 1950,
uma rica gama de dramatizações presentes nos vínculos sentimen-
tais observados na relação entre os torcedores e os seus respectivos
clubes. Em primeiro lugar, é possível reconhecer um forte sentimen-
to de pertencimento clubístico nas inúmeras demonstrações de riva-
lidade local que se consolidavam naquela época – a saber: Grêmio
x Internacional, em Porto Alegre; Flamengo x Fluminense, no Rio de
Janeiro; Atlético x Cruzeiro, em Belo Horizonte; Bahia x Vitória, em
Salvador – assim como tantas outras de menor repercussão espalha-
das em todo o território nacional. Em segundo, é preciso observar
que os laços de pertencimento clubístico possuíam também uma forte
relação com a hierarquia social. Os grandes clubes brasileiros, em
sua maioria fundados pelas elites no início do século 20, haviam, já
na metade do século, assumido uma representação social bem defi-
nida, de acordo com a trajetória de assimilação, em seus quadros, de
atletas, sócios e torcedores das classes subalternas. Clubes como o
Flamengo, o Corinthians, o Atlético e o Internacional ficaram conhe-
cidos como “times de massa”, enquanto o Fluminense, o São Paulo,
o Cruzeiro e o Grêmio representavam a elite. A esse respeito, Luiz
Baêta Flores oferece uma importante contribuição com sua análise
semiológica acerca dos mascotes dos clubes de futebol cariocas:

Tomando como exemplo o futebol carioca: o urubu: animal pre-


to, “sujo” e magro é o símbolo do Flamengo (time de preto); o
bacalhau: alimento típico da cozinha portuguesa ou um almiran-
te: português, gordo, bigodudo (satirizando o patrono do clu-
be), são os símbolos do Vasco da Gama; o pó-de-arroz: produto
supérfluo, apontado para a suposta riqueza, limpeza, dandismo
e elitismo “branco” do clube que simboliza – o Fluminense. Os
símbolos se antagonizam de maneira mais ou menos aguda: os
caracteres “preto”, “sujo”, “pobre” do Flamengo estão em oposi-
ção aos caracteres “branco”, “limpo” e “rico” do Fluminense, cuja
“finura” se opõe não só a “vulgaridade” do urubu flamenguista,
76
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

mas também a “grossura” portuguesa, cuja “abastança” (alimen-


to/gordura do almirante) se opõe à “magreza” do símbolo do
Flamengo. (FLORES, 1982, p. 53)

Nessa perspectiva, podemos avaliar que a criação dos masco-


tes dos clubes de futebol, sobretudo pelos jornalistas, acendeu ainda
mais o interesse da população pelo futebol, ao incrementar o univer-
so das rivalidades clubísticas com os elementos simbólicos de iden-
tificação social presentes no sistema de classes brasileiro. Na década
de 1950, a ligação com o “clube do coração” vinculava-se diretamente
ao status social. Assim, a condição de torcedor de determinado time
conferia também um traço identitário correspondente à posição do
indivíduo no sistema de estratificação social, o que facilitava a intro-
dução do futebol como um assunto recorrente na vida cotidiana.
Percebemos que tais correspondências presentes na relação
entre os clubes de futebol e a classe social de seus torcedores servi-
ram – e ainda servem – para fomentar as rivalidades clubísticas que,
por sua vez, se constituem como um dos elementos basilares para a
inteligibilidade das relações socioculturais e políticas que configuram
o universo do futebol brasileiro, especialmente a partir dos anos 1950.

1.2.1. 1954: o futebol tal qual o governo

Após amargar uma das maiores derrotas de sua história, a


Seleção Brasileira embarcou em 1954 para a Suíça sem levar consigo
a mesma credibilidade e expectativa dos anos anteriores. A “inferio-
ridade” do povo brasileiro, dramatizada no fatídico 2 a 1 que deu o tí-
tulo mundial aos uruguaios em 1950, simbolizava a fraqueza da nação
nos momentos das grandes decisões. A ausência de uma conquista
mundial no futebol, esporte mais popular do país, era explicada pelas
características psicossociais que conformavam a “raça” brasileira.
As discussões, que ultrapassavam em muito a esfera do jogo, traziam
à tona a velha e mal resolvida problemática da questão racial. Na im-
prensa esportiva, a questão da mestiçagem ganhava novo fôlego. As
derrotas no futebol serviam para reacender as discussões sobre as
potencialidades físicas e mentais do povo brasileiro. Fátima Antunes,
ao analisar as crônicas escritas por Nelson Rodrigues nos anos 1950,
sintetiza as representações dos traços psicológicos do brasileiro pre-
sentes na obra do escritor:
77

Euclides de Freitas Couto


O brasileiro, habitante de uma terra paradisíaca, seria dócil e
sem maldade, como os índios descritos nos relatos de viajan-
tes do período colonial ou nos romances de José de Alencar.
Para Nelson, enquanto os brasileiros eram idealizadores e so-
nhadores, os uruguaios, ao contrário, buscavam a vitória com
todo empenho possível, mesmo que, para isso, tivessem de re-
correr à violência. Diante desses diferentes comportamentos,
Nelson Rodrigues chegava à conclusão de que o brasileiro era
humilhado porque era humilde [...]. (ANTUNES, 2004, p. 218)

Em busca das prováveis causas dos fracassos da seleção, Nelson


Rodrigues recorria à análise dos traços que formavam a personalidade
do homem brasileiro. Segundo ele, a derrota para os uruguaios havia
deixado um trauma nos jogadores e na própria imprensa esportiva:
enquanto a questão (o trauma) não fosse superada, as chances de con-
quistas futebolísticas internacionais seriam muito reduzidas.37
Paralelamente às questões de “ordem psicológica”, a instabi-
lidade política pela qual passava o país parecia refletir na organiza-
ção da Seleção Brasileira. Em meio a inúmeras greves, nem mesmo
o aumento de 100% do salário mínimo – concedido em 1º de maio
de 1954 – foi suficiente para amenizar a crise no governo. Os gru-
pos opositores ao presidente iniciaram uma verdadeira cruzada
com o intuito de afastá-lo do poder. Políticos ligados à UDN (União
Democrática Nacional) e o jornalista Carlos Lacerda, por meio do seu
jornal A Tribuna da Imprensa, exigiam a renúncia do chefe de governo
e a decretação de um estado de emergência, sob a acusação de que
Vargas e o ex-ministro do trabalho João Goulart queriam transfor-
mar o país em uma República sindicalista (FAUSTO, 2002, p. 414). A
campanha antigetulista ganhava força também na caserna. Em feve-
reiro de 1954, o lançamento de um documento chamado Memorial
dos coronéis, dirigido ao alto-comando do Exército, representou a
insatisfação de parte dos militares brasileiros com a presidência da
República. Ao antever o aumento de 100% concedido aos trabalha-
dores, a carta, assinada por mais de oitenta oficiais entre coronéis
e tenentes-coronéis, sinalizava as principais preocupações dos mi-
litares com relação ao status da carreira e à ameaça comunista que

37 Antunes (2004, p. 219) relata que Nelson Rodrigues foi um dos primeiros cronistas
a sugerir a incorporação de um psicólogo à comissão técnica da Seleção Brasileira,
fato que viria a ocorrer na Copa do Mundo de 1958.
78
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

se fazia presente. Segundo Skidmore (1982, p. 164), a desvalorização


do salário das Forças Armadas era traduzida no interior da caserna
como um ato de desmoralização dos militares, denunciando a negli-
gência do governo para com a classe militar.
Diante deste quadro, de maneira oposta à sua última passagem
pela presidência, quando exerceu um forte controle sobre o coman-
do da Seleção Brasileira, Vargas não se envolveu diretamente nas
questões esportivas relativas à Copa de 1954. Os ataques empreen-
didos contra o Palácio do Catete pareciam ter minado as forças do
presidente de tal maneira que o futebol não parecia ser prioridade
em sua agenda política. Os reflexos da crise política que assolava a
presidência da República pareciam ser sentidos pela delegação bra-
sileira que embarcara para a Suíça. Em entrevistas publicadas pelo
jornalista Teixeira Heizer, os testemunhos de diversos jogadores que
integravam a seleção de 1954 dão mostras do descaso das autorida-
des brasileiras para com a competição:

Todo o trabalho ficava em cima de seu Zezé Moreira. Ele tinha


que cuidar de tudo: alimentação, uniforme, bolas, campo de
treinos, transporte, tudo enfim. Os cartolas viviam em bons
hotéis. Apareciam somente na hora das fotos. (SANTOS apud
HEIZER, 1997, p. 117)

O depoimento de Nilton Santos indica que o técnico Zezé


Moreira acumulava as funções de treinador, gerente de futebol e chefe
da delegação, o que o obrigava a se envolver em diversas tarefas que
o afastavam de sua verdadeira missão à frente da Seleção Brasileira.
Problemas de ordem disciplinar, como as “fugas noturnas” dos joga-
dores Pinheiro e Veludo, além da falta de conhecimento do regulamen-
to da competição, contribuíram para que a Seleção Brasileira tivesse
uma atuação discreta no mundial de 1954. Embora fosse apontada pela
crítica esportiva como uma das favoritas à conquista do título, creden-
ciada, principalmente, pelo vice-campeonato de 1950, sua campanha
se resumiu a uma vitória de 5 a 0 sobre os mexicanos, um empate de 1
a 1 com os iugoslavos e a derrota de 2 a 4 para os húngaros, nas quar-
tas de final, que decretou a sua eliminação. Além da derrota e da des-
classificação, uma briga generalizada, após a partida contra a Hungria,
evidenciou a falta de preparo emocional dos brasileiros diante da su-
perioridade técnica demonstrada pelos húngaros.
79

Euclides de Freitas Couto


As reportagens e imagens da época revelavam as representa-
ções construídas em torno da Seleção Brasileira que embarcou para
a Suíça. A charge a seguir, assinada pelo jornalista alemão R. P. Bauer
e publicada no jornal Diário de Minas, evidencia o estereótipo do fu-
tebol brasileiro construído pelo discurso imagético europeu:

Figura 5 – Charge “Assim são os brasileiros”


Fonte: Diário de Minas, 5 jun. 1954, p. 9.

Publicada pela primeira vez em um jornal da cidade alemã de


Augsburgo, a charge revela a percepção do desenhista com relação
aos jogadores brasileiros. Bauer, que havia acompanhado alguns
jogos da equipe do Bangu em um torneio realizado em Munique,38
traduziu em seus traços as habilidades individuais demonstradas
pelos brasileiros nas partidas. A bola, caracterizada com traços femi-
ninos, insinua a intimidade e a delicadeza com que nossos atletas a
conduziam. Em outra cena, o pé que a domina ganha, nos traços do
chargista, a forma de uma mão, o que evidencia a precisão com que
o jogador executa um dos mais importantes fundamentos do futebol.
38 O torneio, realizado nos meses de maio e junho de 1954 nas cidades de Berlim e
Munique, contou com a participação das equipes do Bangu e do Madureira, do Rio
de Janeiro, além dos alemães Bayer de Munique e Turbine (Disponível em: <http://
blogsoccerlogos.com.br>. Acesso em: 22 nov. 2008). Apesar de não possuírem
nenhum dos seus jogadores convocados para a seleção de 1954, o Bangu e o
Madureira eram considerados as equipes tradicionais do futebol brasileiro e, por
isso, assumiram, na visão europeia, o papel de representantes fidedignos do estilo
de jogo canarinho.
80
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Em outro lance, um jogador parece ludibriar o adversário esconden-


do a bola com apenas uma das pernas. Numa mirada panorâmica,
percebe-se que o malabarismo foi o tema escolhido pelo chargista
para caracterizar o futebol brasileiro.
Por outro lado, na mesma medida em que as habilidades indivi-
duais dos jogadores brasileiros denotavam uma superioridade em re-
lação ao estilo europeu, elas colocavam em xeque a capacidade coleti-
va do selecionado canarinho. Em entrevista concedida ao jornal Diário
de Minas, às vésperas do jogo das quartas de final, o húngaro Puskas,
considerado o melhor jogador da Copa, fez duras críticas à Seleção
Brasileira ao enfatizar que “os brasileiros não têm espírito de equipe”:

São grandes malabaristas e técnicos. Julinho, o maior ponteiro


do mundo. O Brasil será uma presa difícil. [...] Os brasileiros
são muito tecnicos e possuem notavel dominio de bola, mais
praticam um futebol individual sem espírito de conjunto. E
êste é o ponto fraco de sua equipe. (DIÁRIO DE MINAS, 24 jun.
1954, p. 10)

As palavras de Puskas aproximavam-se da ideia do “homem


cordial” difundida pela intelectualidade brasileira a partir da publi-
cação de Raízes do Brasil em 1936. De autoria do historiador Sérgio
Buarque de Holanda e de inspiração weberiana, a obra parece ter
influenciado o pensamento nacional de tal maneira que a identidade
do homem brasileiro passou a ser veiculada pelos padrões definidos
no livro: individualismo, aversão às formas de convenção e formalis-
mo social. Na sociedade, a herança portuguesa havia deixado marcas
sombrias: “frouxidão da estrutura social, das associações que impli-
quem solidariedade e ordem” (REIS, 2006, p. 124). A disseminação
deste pensamento pôde ser percebida não apenas nas representa-
ções construídas pelos estrangeiros acerca do nosso futebol, mas
também nas manifestações da própria imprensa brasileira:

Muita gente confunde o sentimentalismo brasileiro com a men-


talidade latina. São duas coisas diferentes. O espírito brasileiro
incorporou aquêle sentimento acolhedor do português, que é
uma espécie de solidariedade difusa do gênero humano, trans-
formando os compatriotas em membros de uma grande famí-
lia. Misturamos isso com uma certa doçura do negro e placidez
81

Euclides de Freitas Couto


do índio, para receber depois uma contribuição racionalista de
várias outras raças que entraram em nossa miscigenação. Esse
espírito é que possibilitou o “homem cordial” brasileiro a que
refere Buarque de Holanda, dando um traço comum na hospi-
talidade brasileira de norte a sul. [...] Agora mesmo, na prepa-
ração do nosso selecionado de futebol para o campeonato do
mundo dêste ano, ocorre êsse fenômeno. O selecionador deve
escolher 22 atletas para levar à Suíça, e só êsse número, por-
que é o limite máximo de inscrições. Pois bem, mesmo sendo
certo que só poderão aturar os 22 inscritos, o técnico está com
25 rapazes concentrados, porque tem pena de dispensar três
dêles. Mas a função do técnico é principalmente, a de escolher
os times e prepará-los para os compromissos.39

Na crônica intitulada “Mentalidade Latina”, o jornalista e es-


critor Vargas Netto,40 naquela oportunidade presidente do Conselho
Nacional de Desportos (CND), avaliza a atitude de Zezé Moreira, téc-
nico da Seleção Brasileira, diante do episódio do iminente corte dos
jogadores. Para ele, a decisão do treinador se inseria nos padrões de
comportamento característicos da “raça” brasileira, nos quais eram
supervalorizados traços como o sentimentalismo, de caráter per-
sonalista, em detrimento da aceitação das regras e normas sociais.
Naquele contexto, para além de representar uma inocente crônica
esportiva, as palavras de Vargas Netto constituíram-se como um pro-
nunciamento oficial do CND em relação à viagem de 25 jogadores
para os amistosos contra o Chile e o Uruguai. Essas partidas servi-
ram como preparação para o mundial de 1954. Logo após estes jogos,
três jogadores deveriam ser cortados para que fosse convocada a
delegação definitiva, com 22 jogadores, que embarcaria para a Suíça.
A atitude de Vargas Netto, ao endossar o caráter “sentimenta-
lista” do técnico Zezé Moreira, permite perceber como as represen-
tações sociopolíticas que permeavam aquele contexto foram disse-
minadas campo futebolístico brasileiro. A seleção de futebol assu-
mia, na ótica dos cronistas, representações muito mais amplas que

39 Mentalidade Latina, O CRUZEIRO, 05 jun. 1954, p. 38.


40 Vale ressaltar que Manuel Vargas Netto havia sido nomeado pelo seu tio, o então
presidente da República Getúlio Vargas, para ocupar a presidência do CND. Esse
fato é bastante elucidativo no sentido de evidenciar as estreitas relações que se
constituíam entre a política e o futebol no Brasil dos anos 1950.
82
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

aquelas instauradas no campo esportivo. No caso da Copa de 1954, a


instabilidade política que marcava os últimos momentos de Getúlio
Vargas no poder parecia se transferir para o campo de jogo, con-
tribuindo para abalar o estado emocional dos jogadores. O futebol,
representado, sobretudo, pela seleção nacional, ganhava as caracte-
rísticas de um drama social em que eram teatralizadas as questões
da hierarquia social, da política e da cultura de forma geral. Apesar
do clima político desfavorável para a mobilização social em torno da
Seleção Brasileira, os governantes da época faziam questão de mani-
festar seu apoio aos “representantes da nação”:

Figura 6 – Matéria “Deverão honrar as tradições esportivas do Brasil”


Fonte: DIÁRIO DE MINAS, 27 jun. 1954, p. 10.

Esta matéria, publicada às vésperas do confronto entre Brasil


e Hungria, exibe os depoimentos de vários políticos e autoridades de
Minas Gerais. Apesar do clima de desconfiança que pairava sobre a
seleção, a maioria dos depoimentos mostra a moderação das falas
proferidas em relação ao scratch. Chama atenção a mensagem oficial
enviada pelo governador Juscelino Kubitschek ao chefe da delega-
ção brasileira na Suíça. A manchete, extraída da mensagem oficial,
revela toda a astúcia e sutileza da conduta política de JK. Ao antever
83

Euclides de Freitas Couto


a possibilidade de eliminação dos brasileiros, dada a conhecida su-
perioridade da equipe húngara, o então governador de Minas Gerais,
de uma só vez, expressou sua confiança na seleção e invocou o brio
dos jogadores. Nas entrelinhas, a mensagem buscava ressaltar que a
vitória sobre os húngaros não era uma obrigação para os brasileiros,
mas que no “combate” não poderiam faltar aos jogadores ingredien-
tes como luta, voluntariedade e raça, elementos tão caros à repre-
sentação da identidade nacional. Ao enviar a mensagem represen-
tando oficialmente “O povo de Minas”, JK utilizou o espaço ocupado
pelo futebol na imprensa para se autopromover. As representações
simbólicas presentes nas palavras de JK remetem aos ideais de na-
cionalismo e de afirmação do Brasil no cenário internacional, que
seriam traços característicos de sua gestão à frente da presidência
da República.
Assim, apesar da campanha discreta da Seleção Brasileira, a
análise das representações em torno da Copa de 1954 indica que,
naquele período, à medida que aumentava o interesse da sociedade
pelo futebol, cresciam também as formas de apropriação política e
cultural em torno do “esporte das multidões”. Se a seleção de futebol
assumia metonimicamente – nas crônicas esportivas – a representa-
ção do “povo brasileiro”, os políticos também encontravam no mote
futebolístico um importante espaço para a autopromoção e a difusão
de suas ideologias.

1.2.2. 1958: a vitória da mestiçagem

Em poucas ocasiões o futebol refletiu de forma tão precisa a si-


tuação política e econômica em que se encontrava um país como no
mundial de 1958 disputado na Suécia; evento que não apenas revelou
ao mundo os dribles desconcertantes de Garrincha e a precisão e a
genialidade das jogadas de Pelé, como também marcou a ascensão
do Brasil no cenário econômico latino-americano.
O ideal de progresso difundido pelo governo JK foi alimentado
por uma incrível expansão industrial, possibilitada pela abundância
de capitais no mercado internacional e pela crescente demanda de
crescimento do mercado interno brasileiro. Os investimentos públi-
cos destinados, especialmente, às áreas de transporte e energia elé-
trica anunciavam a preocupação do governo com a desobstrução de
setores estruturais do país. Com o objetivo de expandir o consumo
84
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

interno e ampliar a oferta de emprego, o governo, paralelamente ao


desenvolvimento estrutural, adotou uma política de incentivos fis-
cais às empresas estrangeiras. Inspirada nas doutrinas cepalinas e
isebianas,41 a política de industrialização teria a função de elevar a
renda da população, o que culminaria com a incrementação da de-
manda e a consequente acumulação de capital, um dos pilares para a
sustentação do desenvolvimento econômico.

Após analisar os dados obtidos nos estudos da Comissão Mista


Brasil-Estados Unidos,42 que diagnosticaram a situação socioeconô-
mica do país, os técnicos da Cepal e do BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico) elaboraram um Plano de Metas com o
intuito de racionalizar as ações do governo. O documento consistia
em um planejamento detalhado das ações governamentais, visando
ao desenvolvimento socioeconômico do país por meio de investi-
mentos públicos e privados em setores considerados “estrangula-
dos” (SANTOS, 2002, p. 41).
A realização do Plano de Metas, possibilitada pela aplicação de
capitais estrangeiros, produziu, de forma contraditória, o crescimen-
to do capitalismo no país, acompanhado pelo aumento da dependên-
cia externa. Em sua tese do desenvolvimento dependente, o sociólogo
Otávio Ianni (1977, p. 173) considera que, ao tomar as rédeas da eco-
nomia e conduzir o país ao processo de industrialização, o Estado
assumiu a função de agente fomentador do desenvolvimento das clas-
ses urbanas no Brasil. Segundo ele, a transformação na estrutura so-
cial desencadeou uma série de mudanças na esfera cultural:

41 Referimo-nos, especialmente, às doutrinas difundidas pelos técnicos da Cepal


(Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), criada pelas Nações Uni-
das em 1948. Essa comissão, composta em sua maioria por economistas, cientis-
tas políticos e sociólogos, tinha como objetivo, entre outros, delinear estratégias
políticas e econômicas que, supostamente, poderiam auxiliar o desenvolvimento
das nações latino-americanas. No governo JK, essas doutrinas ganharam a simpatia
dos principais assessores do presidente que, influenciados pelos intelectuais liga-
dos ao Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), abraçaram a ideia do na-
cional desenvolvimentismo. O próprio Juscelino atribuía ao Iseb a função de órgão
de inteligência cuja missão seria a delineação intelectual do desenvolvimento do
país. Sobre as questões referentes à atuação da Cepal e do Iseb no governo JK, ler,
respectivamente, os trabalhos de Mantega (1991) e Toledo (1982).
42 A Comissão Brasil-Estados Unidos realizou suas atividades de pesquisa entre os
anos de 1951 e 1953. No governo JK, os dados aferidos sobre a economia e a socie-
dade brasileira serviram de base para a implementação de ações de ordem política
e econômica pelos governos dos dois países.
85

Euclides de Freitas Couto


A própria cultura, em um sentido amplo, transformou-se de
modo notável, pelo desenvolvimento de novas formas de pen-
sar e novas possibilidades de ação. Pouco a pouco, avançava
a hegemonia da cidade, enquanto universo cultural singular,
sobre a cultura do tipo agrário. [...] De fato, nesses anos, a
“cultura da cidade”, enquanto sistema de valores, padrões de
comportamento e modos de pensar peculiares às relações de
produção industrial e a expansão do setor terciário, passou a
exercer uma influência ainda maior nos debates políticos cien-
tíficos e artísticos realizados nos centros dominantes do País.
(IANNI, 1977, p. 172)

Nessa interpretação, Ianni não recorre a categorias como a di-


fusão cultural, aculturação e/ou hibridismo cultural, essenciais para
a inteligibilidade do processo de formação da cultura urbana brasi-
leira. Tampouco considera os traços culturais provenientes da tradi-
ção rural brasileira como fundadores de uma cultura urbana que se
engendra nos anos 1950-1960. Mas, por outro lado, seus estudos, de
linhagem economicista, contribuem para a inteligibilidade da nova
dinâmica sociocultural decorrente do intenso fluxo migratório per-
cebido nos grandes centros urbanos brasileiros. Essa interpretação
permite perceber que as transformações ocorridas na esfera produti-
va, com o consequente crescimento das classes urbanas, interferiram
substancialmente no modo de vida do brasileiro e o modificaram.
O crescimento econômico decorrente do acelerado processo
de industrialização, alavancado, sobretudo, pela expansão do capital
internacional, forçou a população a adotar novos hábitos de consu-
mo que vieram acompanhados de amplas transformações nos pa-
drões culturais e estéticos da época. Os ideais do desenvolvimentis-
mo kubitschequiano podiam ser percebidos tanto nos projetos con-
duzidos pelo Estado – a exemplo da arquitetura modernista da nova
capital – como no reconhecimento de novos valores simbólicos, cul-
turais e políticos que passaram a permear a sociedade brasileira. No
campo musical, por exemplo, o surgimento da bossa nova dentro do
restrito círculo de compositores da Zona Sul carioca marcou o rom-
pimento com a velha tradição do samba, “inadequada” aos novos
tempos. A atitude experimental e a aproximação com ritmos do ex-
terior, especialmente com o jazz norte-americano, sinalizavam a “afi-
nação” da nova música brasileira com o projeto desenvolvimentista
86
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

empreendido no governo JK. Santuza Naves tece comparações entre


a estética da bossa nova e o modelo político da época: “A estética da
bossa nova, com seu aspecto solar, harmonizava-se com o otimismo
que marcou o governo Juscelino Kubitschek e sua utopia desenvolvi-
mentista representada pela construção de Brasília, a capital do futu-
ro” (NAVES, 2004, p. 30). Para além das dimensões estéticas, a bossa
nova representou a integração da música brasileira aos padrões de
consumo preconizados pela indústria de comunicação de massa que,
a partir daquele contexto, se instalaria definitivamente no país.
Assim como ocorreu no campo da música, o momento de oti-
mismo, fruto das ações práticas e das utopias de JK, espalhou-se rapi-
damente pelo imaginário coletivo da sociedade. No futebol, a possibi-
lidade de conquista da Copa de 1958 representava, no cenário político
internacional, a afirmação do Brasil como uma emergente potência
capitalista sul-americana, alinhada ao modelo norte-americano de de-
senvolvimento. Internamente, a vinculação do futebol às realizações
políticas do governo JK tornou-se tão recorrente quanto a propaganda
política difundida pelos aparelhos ideológicos utilizados pelo Estado.43
Os elogios proferidos pelos órgãos de imprensa ao planejamento eco-
nômico do país, direcionados, sobretudo, ao Plano de Metas, estende-
ram-se à CBD pela organização demonstrada em 1958. Ao contrário do
que ocorreu no mundial de 1954, quando o técnico Zezé Moreira acu-
mulou várias funções administrativas, na Copa da Suécia formou-se
uma delegação composta por roupeiros, massagistas, médico, den-
tista, preparador físico, um supervisor de futebol e até um psicólogo.
O modelo de gestão governamental fundamentado no “plane-
jamento estratégico” das ações havia chegado ao futebol. A CBD pôs
em prática o Plano Paulo Machado de Carvalho, como ficou conheci-
do o planejamento orquestrado pelo dirigente e empresário paulista
que lhe emprestou o nome. O plano consistia num extenso crono-
grama de preparação física, psicológica e técnica cujo objetivo era
oferecer aos jogadores brasileiros condições de igualdade nas dispu-
tas contra os selecionados europeus, considerados mais fortes fisica-
mente e de temperamento frio, qualidades que os credenciava como

43 Santos (2002) analisa o papel da Revista Manchete no governo JK. Recorrendo às


categorias analíticas elaboradas por Althusser, o autor defende a tese de que a
revista se prestou como um verdadeiro aparelho ideológico do Estado, na medida
em que as realizações ligadas ao governo federal eram tratadas com parcialidade,
buscando construir uma imagem altamente positiva do líder político e de suas con-
cepções políticas e governamentais.
87

Euclides de Freitas Couto


favoritos para a conquista do mundial. A etapa de preparação teve
início no mês de maio de 1958, nas cidades mineiras de Araxá e Poços
de Caldas, onde os jogadores passaram por testes físicos, baterias
de exames médicos, tratamento odontológico e testes psicotécnicos
aplicados pelo professor João Carvalhaes (O CRUZEIRO, 19 jul. 1958,
p. 77). Simultaneamente aos treinamentos, a seleção disputou dois
jogos amistosos contra a seleção búlgara e um jogo treino contra
a equipe do Corinthians, no estádio do Pacaembu. As vitórias e o
bom nível técnico apresentado nesses jogos sinalizavam os futuros
resultados obtidos com o planejamento traçado. Na crônica intitula-
da “Boa administração também ajuda a fazer gols”, publicada após a
conquista da Copa da Suécia, o jornalista Mário de Moraes destaca a
importância da organização para o êxito obtido pela seleção:

Agora que as cabeças vão ficando mais frias, que as comemo-


rações vão diminuindo de intensidade, uma pergunta aflora
à boca de todos: – Por que vencemos a Copa do Mundo de
1958? Em outros selecionados não tínhamos tão bons jogado-
res? Os de 38 e 50 eram muitas vezes inferiores a este de 58?
Acreditamos que aos outros tenha faltado o que nos sobrou
neste: organização. (O CRUZEIRO, 19 jul. 1958, p. 77)

No mesmo texto, o jornalista ainda problematizou os ques-


tionamentos proferidos pela própria imprensa sobre a necessidade
dos inúmeros exames médicos aos quais se submeteram os jogado-
res e, principalmente, sobre a credibilidade da “ajuda” psicológica
prestada pelo professor Carvalhaes. Na edição do dia 12 de julho de
1958, a revista Manchete também destacou a importância do staff que
acompanhou a Seleção Brasileira em sua campanha vitoriosa. Na ma-
téria intitulada “Sinfonia no campo com maestros nos bastidores”,
a revista atribui o sucesso do futebol brasileiro ao trabalho realiza-
do pela comissão multidisciplinar que acompanhou os jogadores
(MANCHETE, 12 jul. 1958, p. 18).
As representações construídas pela imprensa da época dão
mostras do clima de otimismo que contaminava o país, principalmente
após a epopeia da Suécia: o scratch, além de conquistar a Copa, mos-
trou um futebol muito superior ao apresentado pelos adversários. O
estilo de jogo europeu, caracterizado pela previsibilidade das jogadas,
pela força física e pela obediência tática dos jogadores, havia sido
88
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

superado por um estilo que conjugava a habilidade individual com o


espírito de equipe que, finalmente, havia se consolidado em 1958:

O espírito de equipe brasileiro estêve à altura do valor moral e


de sua tática de jôgo. Foram vistos, na verdade, alguns gestos
para indicar o que deveria ser feito e como estava bem coloca-
do para um passe que não vinha. Algumas vêzes, os encoraja-
mentos foram mais numerosos, havendo mesmo aplausos de
reconfôrto quando um passe havia falhado, quando um cor-
ner era concedido ou quando havia um toque involuntário. (O
CRUZEIRO, 19 jul. 1958, p. 68)

A desobediência ao desenho tático traçado pelos treinadores,


a ausência de solidariedade entre os atletas e o excesso de individua-
lismo, traços que eram atribuídos à própria formação sociocultural
dos brasileiros, havia, como num passe de mágica, desaparecido em
1958. As consagrações de Pelé e Garrincha, construídas pelos lances
geniais, capazes de, em poucos segundos, destruir qualquer siste-
ma de marcação, foram creditadas à eficiência do estilo tático ado-
tado pelo técnico Vicente Feola. De acordo com o jornalista Teixeira
Heizer (1997, p. 143), o desenho tático era um 4-4-2 que, de acordo
com as necessidades de cada partida, poderia variar para um 4-3-3
ou, até mesmo, para um 4-2-4. Essa tática, supostamente, tornava o
ataque da Seleção Brasileira quase impossível de ser marcado.
A questão racial, sempre um tema latente entre a intelectua-
lidade brasileira, veio à tona após a conquista. Os intelectuais lan-
çaram um verdadeiro manifesto de exaltação à “raça brasileira”. O
“complexo de vira-latas”, anunciado por Nelson Rodrigues pouco
antes da estreia brasileira no mundial, havia sido superado. O senti-
mento de inferioridade aos europeus, apontado pelo escritor como
a causa principal dos nossos fracassos nos mundiais anteriores, de-
saparecia do “inconsciente coletivo” após os 5 a 2 aplicados sobre
os suecos em Estocolmo. Metaforicamente, os atributos individuais
dos jogadores transformavam-se em qualidades morais represen-
tativas do homem brasileiro. A superioridade brasileira no campo
do esporte assumia representações no campo da moral e da ética.
Depositárias de um nacionalismo nada comedido, as representações
rodrigueanas elevavam o brasileiro no complexo sistema de hierar-
quia racial internacional concebido pelos próprios intelectuais. Na
89

Euclides de Freitas Couto


crônica publicada logo após a conquista do mundial, intitulada “O
triunfo do homem”, Didi, o jogador que apresentou maior regularida-
de na Copa, assume o papel de síntese do homem brasileiro:

Não foi só o jogador único, que os críticos europeus mais exi-


gentes consideraram o maior da Copa. Foi algo mais: – um ho-
mem de bem. O que ele demonstrou de constância, de fideli-
dade, de entusiasmo, basta para caracterizá-lo como um bra-
sileiro de altíssima qualidade humana. A partir deste Mundial,
o brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito:
– passa a ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos
que nenhum escrete levanta nenhum campeonato do mundo
sem extraordinárias qualidades morais. De nada adianta o fu-
tebol se o homem não presta. O belo, o comovente, o sensacio-
nal do triunfo de ontem está no seguinte: – foi antes de tudo,
o triunfo do homem. (MANCHETE ESPORTIVA, 5 jul. 1958 apud
RODRIGUES, 1994, p. 59)

Na edição subsequente da revista Manchete Esportiva, Nelson


Rodrigues continua com seu discurso “superufanista”, atribuindo ao
futebol a capacidade de dramatizar as qualidades pessoais do povo
brasileiro:

Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vi-


tória nos seus limites estritamente esportivos. Ilusão! Os 5X2,
lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triun-
fo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da
República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao
pé-rapado, todos aqui percebemos o seguinte: é chato ser bra-
sileiro. (MANCHETE ESPORTIVA, 12 jul. 1958 apud RODRIGUES,
1994, p. 60)

Utilizando um tom mais moderado, Carlos Drummond de


Andrade recorre aos componentes do desenvolvimentismo kubits-
chequiano para estabelecer a relação entre a conquista da Copa e o
amadurecimento das instituições sociais no país:

Não me venham insinuar que o futebol é o único motivo nacio-


nal de euforia e que com ele nos consolamos da ineficiência ou
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Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

da inaptidão nos setores públicos práticos. Essa vitória tem


precisamente o efeito de abrir os olhos de muita gente para as
discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização,
de persistência, de resistência, de espírito associativo e de téc-
nica. Indica valores morais e eugênicos, saúde de corpo e de
espírito, poder de adaptação e de superação. Não se trata de
esconder nossas carências, mas de mostrar como vêm sendo
corrigidas, como se temperam com virtualidades que a educa-
ção irá desvendando, e de assinalar o avanço imenso que nos-
sa gente vai alcançando na descoberta de si mesma. (CORREIO
DA MANHÃ, 1 jul. 1958 apud, ANDRADE, 2002)

Drummond formula uma ligação direta entre o sucesso do


scratch brasileiro e as transformações estruturais promovidas pelo
governo JK. Na ótica do poeta itabirano, o futebol, ao contrário do
que postulavam os marxistas da década de 1950, não deveria ser
considerado apenas como um subterfúgio para camuflar as mazelas
sociais do país, mas um fenômeno social capaz de refletir o estágio
de desenvolvimento da nação. Na mesma crônica, ressalta o caráter
aglutinador das identidades sociais que o futebol adquiria naquele
contexto. Nas palavras do poeta, o futebol assume os contornos de
um fenômeno social capaz de eliminar a dicotomia entre o mundo ru-
ral e urbano, envolvendo os brasileiros em um sentimento unificador
e sincrônico:

Esses rapazes, em sua mistura de sangues e de áreas culturais,


exprimem uma realidade humana e social que há trinta anos
oferecia padrões menos lisonjeiros. Do Jeca Tatu de Monteiro
Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino Pelé,44
o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas. Já
tem caminhos abertos à sua frente e já sabe abri-los, por conta
própria, quando não é assistido pelos serviços oficiais ou de
classe a que cumpre melhorar as condições de vida coletiva.

44 É interessante o fato de Drummond, um modernista, escolher como nível mais


“baixo” dessa linha evolutiva (que culmina com Pelé e Garrincha) um personagem
de Monteiro Lobato, um pré-modernista. Sem entrar nos reducionismos que quase
sempre alimentam essas polêmicas, é fato que, entre o convencionalismo literário
deste e o vanguardismo daqueles, há, de maneira geral, uma mudança na maneira
como o brasileiro é visto e retratado: de humilde passa a sarcástico; de ingênuo, a
esperto. Não por acaso, mais adiante veremos uma comparação entre Garrincha e
Macunaíma, um “herói” tipicamente modernista.
91

Euclides de Freitas Couto


O futebol trouxe ao proletário urbano e rural a chave ao auto-
conhecimento, habilitando-o a uma ascensão a que o simples
trabalho não dera ensejo. (CORREIO DA MANHÃ, 1º jul. 1958
apud, ANDRADE, 2002)

Em um período de intensas transformações sociais, quando as


principais capitais experimentavam um intenso crescimento urbano
e, ao mesmo tempo, o mundo rural via a desagregação dos seus va-
lores, o futebol, na representação drummondiana, seria capaz de en-
volver a sociedade deste “novo país” em um espírito de comunhão, fé
e nacionalidade. Drummond resgata os elementos da crença tradicio-
nal brasileira inserindo-os no universo urbano do futebol:

No mais, é celebrar como começamos a fazer ao primeiro gol


e não sei quando acabaremos, que isso de sofrer rente ao rá-
dio, vezes e vezes repetidas, embora de coração esperançoso
ou por isso mesmo, exige expansão compensadora e farta, ai
meu Deus, minha Nossa Senhora da Cancha, meu Bom Senhor
Jesus do Tiro de Meta! Como deixar de lançar papeizinhos ao
ar, sujando a cidade mas engrinaldando a alma, e de estourar
bombas da mais pura felicidade e glória, mesmo que arreben-
temos nossos próprios tímpanos, se não há jeito de reprimir a
onda violenta de alegria que se alça até nos mais ignorantes do
futebol, criando esse calor, essa luz de unanimidade boa, de
amor coletivo, de gratidão à vida, que hoje nos irmana a todos?
(CORREIO DA MANHÃ, 1º jul. 1958 apud, ANDRADE, 2002)

O futebol, assim como outros elementos da vida social caracte-


rizados pela incerteza, imprevisibilidade e emoção, passou a ocupar
também o terreno da fé, onde as entidades do imaginário religioso
brasileiro atuam como representantes dos interesses futebolísticos.
Em uma sociedade urbana que nascia ancorada sobre as tradições
interioranas, os campos de futebol dramatizavam a ambivalência
presente no imaginário coletivo das grandes cidades.
A conquista da Copa de 1958 possibilitou aos brasileiros, prin-
cipalmente aos moradores das grandes cidades, compartilharem
suas emoções em verdadeiras celebrações cívicas. A presença da
delegação campeã promoveu, nas cidades em que ela desembar-
cou, manifestações de nacionalismo presenciadas em raríssimos
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Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

momentos da história brasileira. Nas duas escalas do “voo campeão”


realizadas em solo brasileiro, nas cidades de Recife e São Paulo, a de-
legação foi recebida por milhares de pessoas. Em Recife, a estrela da
festa foi o pernambucano Vavá que, mesmo debaixo de forte chuva,
foi ovacionado juntamente com seus companheiros (MANCHETE, 19
jul. 1958, p. 72). Na capital paulista, a revista Manchete destacou que a
presença da seleção campeã arrebanhou multidões de pessoas, res-
saltando a magnitude da comemoração:

Um milhão e quinhentas mil pessoas receberam os campeões


do mundo em São Paulo, na maior e mais entusiástica manifes-
tação da história da cidade – e (dizem os paulistas) do Brasil.
Todos os cordões de isolamento, sustentados por quatro mil e
quinhentos policiais, foram rompidos. Os discursos programa-
dos não puderam ser ditos. Toneladas de papel picado foram
despejadas das janelas dos edifícios, desde o Aeroporto de
Congonhas até o Anhangabaú. (MANCHETE, 19 jul. 1958, p. 71)

Na cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, obser-


vou-se uma festa de proporções gigantescas para os padrões da épo-
ca: a revista O Cruzeiro anunciava que “três milhões de brasileiros
receberam na capital da república os heróis de Estocolmo”.45 A re-
vista Manchete relatou que pessoas de vários estados deslocaram-se
para o Rio de Janeiro com o intuito de participar das comemorações,
e que, juntamente com os cariocas, fizeram a maior festa pública de
toda a história da cidade: “maior do que as manifestações da chega-
da dos pracinhas e do general Craveiro Lopes” (MANCHETE, 19 jul.
1958, p. 66).

45 O CRUZEIRO, 12 jul. 1958, Caderno Extra, p. 20.


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Euclides de Freitas Couto


Figura 7 – Comemorações da conquista da 1ª Copa do Mundo, avenida Rio Branco,
Centro do Rio de Janeiro
Fonte: o cruzeiro, 12 jul. 1958, Caderno Extra, p. 20.

Após a partida final, quando a Seleção Brasileira goleou a


Suécia por 5 a 2, foram registradas, em todo o país, aglomerações hu-
manas poucas vezes vistas nas cidades. Os belo-horizontinos, mes-
mo sem possuir um representante de seus clubes na seleção, com-
partilharam do mesmo clima de paulistas e cariocas. O jornal Estado
de Minas estampou a manchete: “A vitória modificou a fisionomia da
cidade”, fazendo uma alusão aos inúmeros locais de Belo Horizonte
onde ocorreram as comemorações:

A vibração popular, conforme salientamos anteriormente,


teve início muito antes do término da peleja. Além das come-
morações registradas nos diversos Restaurantes e Bares, o
ponto preferido pelos esportistas foi a Praça Sete. O entasta-
mado, intensificando-se gradativamente alcançou o seu ponto
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Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

culminante, à noite, quando a folia ultrapassou todas as ex-


pectativas. As Escolas de Samba davam as festas populares o
sabor de um verdadeiro “Carnaval”, não perdendo a oportu-
nidade de dançar e cantar pela Av. Afonso Pena. (ESTADO DE
MINAS, 1º jul. 1958, p. 2)

Em meio ao clima de mobilização nacional em torno da pri-


meira conquista de uma Copa do Mundo, os políticos aproveitaram
para divulgar suas imagens, tanto nos momentos de expectativa que
antecediam os jogos, como nas manifestações de êxtase coletivo pre-
senciadas ao final de cada partida. Após a conquista da Copa, o go-
verno federal, assim como alguns órgãos de imprensa, organizou um
grande aparato para recepcionar a delegação campeã. A associação
do futebol ao nacional-desenvolvimentismo foi inevitável. A figura do
presidente JK, personificada como o “torcedor símbolo” dos brasi-
leiros, era reproduzida exaustivamente pelos órgãos de imprensa.
Na recepção oficial à delegação vencedora, organizada pelo governo
federal no Palácio do Catete, a revista Manchete, de maneira emble-
mática, associa a imagem do presidente à conquista da Copa:

Figura 8 – Recepção à seleção campeã em 1958, Palácio do Catete


Fonte: MANCHETE, 19 jul. 1958, p. 69.

Em outra recepção, organizada pela revista O Cruzeiro para


os jogadores e suas respectivas famílias, diversas autoridades e
políticos também puderam se aproveitar de mais um momento de
exposição de suas imagens. Dentre as diversas personalidades da
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Euclides de Freitas Couto


imprensa e da política presentes, a revista destacou o senador mi-
neiro João Gomes, o jornalista Assis Chateaubriand e o vice-presi-
dente João Goulart que, no ponto mais alto da festa, entregou a Taça
“O Cruzeiro” ao chefe da delegação brasileira na Suécia, o dr. Paulo
Machado de Carvalho:

Figura 9 – Recepção à seleção campeã em 1958, sede da revista O Cruzeiro


Fonte: O Cruzeiro, 12 jul. 1958, Caderno Extra, p. 12.

Durante todo o período da Copa, é possível perceber, por meio


da análise dos periódicos, a frequente associação da imagem dos polí-
ticos ao futebol. O jornal Estado de Minas, por exemplo, publicou uma
série de entrevistas com os principais políticos de Minas Gerais. Nas
reportagens, sempre publicadas nos dias que antecediam as partidas
da seleção, os políticos invariavelmente expressavam sua confiança
nos jogadores brasileiros. Nelson Thibau, na época candidato à pre-
feitura de Belo Horizonte, teve sua participação como “comentarista
esportivo” ampliada pelo jornal. Seus depoimentos, acompanhados
sempre de uma fotografia, foram publicados nas edições do Estado
de Minas que circularam nos dias 19 e 29 de julho de 1958. O mesmo
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Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

periódico exibia também frequentes depoimentos do presidente JK,


que se mostrava sempre ansioso com os jogos e entusiasmado com
o desempenho dos brasileiros na Copa, caracterizando-se, a partir
de sua roupagem populista, como um fanático torcedor.46 A revista O
Cruzeiro também participava da construção da imagem do presiden-
te associada ao futebol. Durante o período da Copa, as fotografias de
Juscelino remetiam à ideia do “presidente-torcedor”. Na peça a seguir,
ele é exibido como um autêntico torcedor “de rádio ao pé do ouvido”:

Figura 10 – JK ouvindo a transmissão da partida final da Copa do Mundo de 1958


Fonte: O CRUZEIRO, 5 jul. 1958, Caderno Extra, p. 8.

O jornalista Cláudio Bojunga, autor de uma das biografias mais


conhecidas de JK, expõe a estreita relação entre a euforia futebolísti-
ca e as realizações do governo:

Juscelino acompanhou a partida numa poltrona do living do


Brasília Palace Hotel, cercado pela família, auxiliares e jorna-
listas. Mandou um telegrama altissonante para a Suécia: “É o
Brasil Novo que começa a conquistar suas vitórias. É o Brasil

46 ESTADO DE MINAS, 29 jul. 1958, 4ª seção, p. 3.


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Euclides de Freitas Couto


de Brasília, que plantado no coração da pátria, tem agora um
espírito novo a dirigir-lhe os destinos”. Em suas memórias, diz
que pensou nas vitórias dos sertanejos das caatingas, dos ma-
teiros das margens do Amazonas, que haviam passado fome
nas regiões em que haviam nascido e estavam transmudados
em operários do Planalto. No dia 30, inaugurou o Planalto da
Alvorada. (BOJUNGA, 2001, p. 492)

Na mensagem enviada por telegrama à delegação campeã, é


possível perceber que a tônica do discurso oficial remetia à cons-
trução de uma relação direta entre a conquista do scratch brasilei-
ro e o sucesso das realizações do presidente. Além de enaltecer o
empreendedorismo do seu governo, Juscelino associa o sentimento
de integração nacional aos dois fatos marcantes daquele período: a
conquista da Copa e o êxito na construção de Brasília.
Eliazar Silva (2004), ao analisar as edições do jornal O Estado
de S. Paulo que circularam no período da Copa do Mundo de 1958, in-
dica que a associação dos políticos ao futebol se tornou um fenôme-
no suprapartidário. As reportagens veiculadas pelo periódico mos-
tram que, de Luiz Carlos Prestes a Juscelino Kubitschek, a associa-
ção da imagem pessoal ao futebol era unanimidade entre os políticos
da época. Esse artifício permitia que, de forma sutil, estes políticos
participassem do clima de união cívica e otimismo que tomou con-
ta do país. Os jogadores, por sua vez, elevados ao status de “heróis
nacionais”, também tiveram suas imagens associadas aos principais
líderes políticos. Após a Copa de 1958, houve por todo o país uma
overdose de comemorações organizadas por órgãos do governo, nas
quais as homenagens aos jogadores transformavam-se em inflama-
dos discursos políticos regados de ufanismo.

Além de criar uma relação sinérgica entre os políticos e o fute-


bol, a imprensa teve um papel decisivo na promoção da imagem dos
jogadores. Durante o mundial da Suécia, mas, sobretudo, após a con-
quista, foram veiculadas inúmeras reportagens exaltando os traços
pessoais dos atletas. Os mais requisitados – Didi, Garrincha, Pelé e
Belini – eram representados como heróis nacionais.47 Atribuindo-lhes

47 Ver, especialmente, as revistas Manchete e O Cruzeiro que circularam nos meses de


junho e julho de 1958. Silva (2004) também sugere a consulta das edições do jornal
O Estado de S. Paulo que circularam no mesmo período.
98
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

um caráter irretocável e descrevendo-os com atributos físicos e técni-


cos que os tornavam insuperáveis diante de jogadores de outra nacio-
nalidade (O CRUZEIRO, 12 jul. 1958, p. 106), as representações cons-
truídas pela imprensa aproximavam os jogadores brasileiros dos atle-
tas gregos que, após as grandes conquistas olímpicas, eram elevados
à categoria de semideuses.48 Belini, o capitão de 1958, foi comparado
pela revista Manchete a um “mocinho” de Hollywood. Na fotografia em
que o jogador posa montado sobre um cavalo e vestido como um cow-
boy, a revista insinuava que o “bom rapaz”, de traços europeus e inglês
fluente, poderia perfeitamente atuar como ator nos Estados Unidos:

Figura 11 – Belini, o mocinho de Hollywood


Fonte: Manchete, 26 jul. 1958, p. 106.

Belini, de pele clara e olhos verdes, assumia o papel do homem


cosmopolita, habilitado para desempenhar as tarefas mais nobres
designadas pela sociedade moderna, tornando-se o representante
fiel do desenvolvimentismo kubitschequiano. Pelé e Garrincha, por
outro lado, despontavam como símbolos da identidade brasileira de

48 O paralelismo entre as descrições das honras prestadas pelos helenos aos heróis
olímpicos da antiguidade e as homenagens aos heróis da Copa de 58 no Brasil
permite associar os dois momentos aos sentimentos de identidade coletiva e
nacionalismo, ambos ligados às conquistas esportivas. Sobre as honras esportivas
e a identidade coletiva na Grécia Antiga, consulte Andronicos et al. (2004, p. 153).
99

Euclides de Freitas Couto


matiz freyriana: originais, multirraciais, improvisadores, maleáveis e
geniais.49
Se a Copa do Mundo de 1958 simbolizou a redenção do povo
brasileiro, inferiorizado com o fracasso de 1950, também contribuiu
paralelamente para a afirmação do país no cenário internacional.
Se de um lado a vitória nos gramados ampliou o reconhecimento
do Brasil no campo esportivo, de outro, abriu espaço para a inser-
ção do país no seleto grupo das nações que trilhavam o desenvol-
vimento capitalista. A superação das dificuldades impostas pelos
adversários europeus representava, simbolicamente, a possibilida-
de de se ultrapassarem os obstáculos que o país encontraria para
conquistar as “trilhas do progresso”. Não menos eficiente que as
estratégias políticas empreendidas por Getúlio Vargas em torno do
futebol, o repertório de ações utilizado por JK continuou zelando
para que a nação, assim como o governo, fosse representada pelas
virtudes encontradas nos campos de futebol. O espírito democrá-
tico e a aura populista que contagiaram o país no final dos anos
de 1950 foram importantes aliados para que políticos, das mais va-
riadas vertentes, recorressem a diferentes artifícios para associar
suas imagens ao sucesso dos canarinhos. O clima de união nacional
vivenciado em todo o país e recorrentemente dramatizado nas ati-
tudes do presidente da República reforçou os sentimentos de na-
cionalismo em torno do futebol. Desde então, as Copas do Mundo
passaram a ser traduzidas como momentos singulares de expres-
são da identidade nacional brasileira. Em todos os governos que
precederam 1958, verificamos que, independentemente da ideolo-
gia política dominante, toda a mobilização popular em torno das
Copas do Mundo foi sempre canalizada para servir aos interesses
políticos dos grupos detentores do poder.

1.3. 1962: o futebol-arte nas trincheiras da Guerra Fria

Em 1962, enquanto a Seleção Brasileira conquistava o bicampeo-


nato mundial no Chile, o Brasil vivia um dos momentos mais conturba-
dos de sua vida política. Após a renúncia de Jânio Quadros em agosto

49 É possível perceber essas características atribuídas aos jogadores brasileiros ao


longo das coberturas jornalísticas da Copa de 1958, especialmente nos periódicos
Jornal do Brasil, O Cruzeiro e Manchete. As crônicas de Nelson Rodrigues, publicadas
na revista Manchete Esportiva, inserem-se também nesse tipo de representação.
100
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

de 1961, um acordo firmado entre o Congresso Nacional e os mili-


tares garantiu a posse do vice-presidente João Goulart, instaurando
o regime parlamentarista. O pacto político conduzido por Tancredo
Neves (quem assumiu o cargo de primeiro-ministro) esvaziava o po-
der do presidente da República, que só poderia governar com aval
do Conselho de Ministros. A solução encontrada nos bastidores polí-
ticos evitou que o país enfrentasse uma guerra civil; entretanto, não
foi suficiente para frear o processo inflacionário que reduzia o poder
aquisitivo dos trabalhadores e acirrava as tensões sociais.
Enquanto articulava a “retomada” da presidência por meio de
um plebiscito que garantiria o retorno do regime presidencialista,
realizado em janeiro de 1963, João Goulart trabalhou incansavelmen-
te para obter o apoio das forças políticas conservadoras e da clas-
se média brasileira: aproximou-se do presidente Kennedy, acentuou
seus princípios anticomunistas e exaltou, como poucos, os princí-
pios democráticos que deveriam imperar no Brasil (SKIDMORE, 1982,
p. 265). No cenário interno, em meio à efervescência política que to-
mava conta do país, a conquista da Copa do Mundo do Chile serviu
para cimentar o elo que unia a população brasileira aos ídolos que
vestiam a camisa da seleção de futebol. No contexto internacional,
marcado pelo complexo sistema de alianças políticas deflagrado pela
Guerra Fria, o Brasil afirmava cada vez mais sua posição no bloco
capitalista liderado pelos Estados Unidos.
Mantida a base do grupo vencedor de 1958, a Seleção Brasileira
repetiu também a mesma estratégia de planejamento que triunfou na
Suécia, mais uma vez sob o comando de Paulo Machado de Carvalho.
Com a grave doença que afastou Vicente Feola de suas atividades, o
comando técnico foi transmitido a Aimoré Moreira. De maneira am-
bígua, o treinador carioca era reconhecido tanto por sua grande ca-
pacidade de organizar sistemas táticos quanto por suas dificuldades
na condução da disciplina da equipe (HEIZER, 1997, p. 159). No con-
sagrado grupo que viajara para o Chile, o grande desafio do treinador
não era encontrar os melhores jogadores para colocar em campo,
mas escalar um time que pudesse aliar a apurada técnica individual
ao padrão tático previamente definido. Craques como Garrincha, Didi
e o ainda jovem Pelé eram ídolos em seus clubes e, naquela oportu-
nidade, cobiçados por várias equipes europeias, fato que os deixava
excessivamente individualistas e autoconfiantes. Entretanto, o maior
obstáculo enfrentado por Aimoré Moreira em 1962 foi encontrar um
101

Euclides de Freitas Couto


substituto para Pelé; afinal, após o estiramento muscular que tirou
o “melhor jogador do mundo” da partida contra a Tchecoslováquia,
a imprensa especulava que seria impossível substituí-lo, visto que,
além da perda na qualidade técnica da equipe, o grupo ainda enfren-
taria o trauma psicológico decorrente da ausência do “Rei do Futebol”
durante o restante do campeonato (DIÁRIO DE MINAS, 5 jun. 1962,
p. 12). A solução foi escalar Amarildo, o jovem ponta-esquerda do
Botafogo – apelidado de “Possesso” por Nelson Rodrigues –, que jus-
tificou sua fama e atuou de forma brilhante nas três partidas finais.
Os dirigentes políticos, assim como nos outros mundiais,
acompanhavam de perto a campanha da seleção. No Chile, um acon-
tecimento marcante evidenciou a relevância que o futebol adquiria
no contexto político. Com a expulsão de Garrincha na partida semi-
final disputada contra o Chile, a Seleção Brasileira perderia seu me-
lhor atleta para a disputa da grande final. No entanto, uma manobra
artificiosa da diplomacia brasileira – que contou com a participação
do primeiro-ministro Tancredo Neves e do presidente do Peru, país
do árbitro daquela partida – garantiu a escalação do ponta-direita do
Brasil na decisão contra a Tchecoslováquia.50
A interferência direta dos chefes de estado do Brasil e do Peru
em uma questão que aparentemente estaria reduzida ao campo es-
portivo evidencia, de forma clara, o redimensionamento do futebol:
para além das dimensões lúdico-esportivas, projetava-se aí o ima-
ginário da nação, o que justificaria, portanto, esforços de qualquer
natureza em sua defesa. Assim, as ações da diplomacia brasileira,
orquestradas por Tancredo Neves, foram não só posteriormente
legitimadas, como ainda repetidas por outros chefes de Estado em
outros mundiais.51 A dimensão que o futebol adquiria no contexto
geopolítico daquele momento pode também ser avaliada pelas mani-
festações de felicitação ao povo brasileiro proferidas pelo presidente
John Kennedy após a conquista do bicampeonato:

Minhas mais sinceras congratulações à Seleção Brasileira de


Futebol na ocasião da conquista, pela segunda vez consecutiva
do título de campeão mundial em Santiago do Chile. O povo do

50 Mais adiante, retomaremos este episódio detalhadamente.


51 Entre outros exemplos, podemos citar o caso da ditadura argentina no mundial de
1978 que, de acordo com inúmeras fontes, manipulou o resultado de algumas partidas
com o intuito de beneficiar a seleção do seu país (AGOSTINO, 2002, p. 176-177).
102
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Brasil deve sentir-se muito justamente orgulhoso de seus cam-


peões da corajosa maneira pela qual realizaram sua brilhante
façanha. (FOLHA DE MINAS, 18 jun. 1962, p. 6c)

As singelas palavras do chefe de estado norte-americano re-


presentavam, naquele contexto, muito mais do que simples formali-
dades atribuídas a uma conquista esportiva. No ápice da Guerra Fria,
a vitória do Brasil sobre a Tchecoslováquia, uma das mais importan-
tes aliadas da União Soviética, simbolizava a vitória do bloco capita-
lista liderado pelos norte-americanos. Somando-se a esse episódio, a
aproximação política com os Estados Unidos, conduzida no período
parlamentarista do governo João Goulart, credenciava o Brasil como
um dos seus principais aliados. Do ponto de vista geopolítico, essa
aliança resguardava aos norte-americanos um importante apoio na
América do Sul, insuflada, naquele período, por inúmeros movimen-
tos de esquerda.
Durante toda a Copa do Mundo do Chile e também após a parti-
da final que sacramentou a conquista do bicampeonato pela Seleção
Brasileira, repetiram-se por todo o país os rituais festivos que haviam
modificado o cotidiano das principais cidades brasileiras durante a
disputa do mundial anterior.52 As calorosas recepções à seleção de
futebol realizadas em 1958 no Rio de Janeiro e em São Paulo se esten-
deram a Brasília em 1962, onde o presidente João Goulart recebeu a
delegação com a notícia de que cumpriria uma promessa feita qua-
tro anos antes pelo ex-presidente JK: todos os jogadores seriam pro-
movidos a funcionários públicos federais.53 Mostrando uma postura
muito agressiva no que diz respeito à cooptação dos atletas, Jango
ainda ofereceu a cada jogador um luxuoso automóvel Aero-Willys e
uma quantia de 100 mil cruzeiros, como premiação pela conquista
do título.54 No Rio de Janeiro, um projeto apresentado na Assembleia
Legislativa pelo deputado Adolfo Oliveira propunha a premiação
de 200 mil cruzeiros para os campeões nascidos naquele estado.55
Políticos de vários estados não mediram esforços para trazer a
52 Inúmeras reportagens retratando essas comemorações foram veiculadas pelos
principais órgãos de imprensa do país. Elas podem ser verificadas nas revistas
Manchete e O Cruzeiro, assim como nos jornais Estado de Minas, Folha de Minas e
Diário de Minas.
53 ESTADO DE MINAS, 20 jun. 1962, 2ª seção, p. 1.
54 ESTADO DE MINAS, 19 jun. 1962, p. 1, 20 jun. 1962, 2ª seção, p. 1.
55 ESTADO DE MINAS, 21 jun. 1962, 2ª seção, p. 1c.
103

Euclides de Freitas Couto


seleção campeã as suas cidades, oferecendo banquetes, medalhas e
estada nos mais luxuosos hotéis.56
O sentimento de nacionalismo fomentado pela conquista do
mundial de 1962 foi rapidamente canalizado pelos governantes e de-
mais políticos. Percebia-se claramente que o futebol caíra nas graças
do povo e que a proximidade com os jogadores ampliava as possibi-
lidades de exposição da imagem nos meios de comunicação, o que
contribuía automaticamente para o aumento da popularidade. Antes
mesmo do início da Copa, ainda na fase de preparação realizada na
cidade de Friburgo, no interior do estado do Rio de Janeiro, os joga-
dores já reclamavam do assédio por parte dos políticos. Uma repor-
tagem publicada pela revista O Cruzeiro denunciava que um candi-
dato ao governo do estado havia entrado no hotel em que a seleção
realizava seus treinamentos com o objetivo de conseguir fotografias
ao lado dos principais craques:

Os aproveitadores das ocasiões, aquêles que levaram quatro


bandeiras brasileiras para o “Sans Souci”, que apertaram as
mãos dos nossos jogadores e lhes deram palmadinhas nas
costas, pensam de maneira diversa. Em proveito próprio, têm
como certa a nossa vitória. E não cansam de pedir fotos ao
lado de Pelé, Garrincha e Didi. Querem imortalizar-se junto aos
“bicampeões”. (O CRUZEIRO, 05 maio 1962, p. 29)

A mesma reportagem ainda relata que, devido ao assédio dos


políticos e torcedores, a comissão técnica solicitou que a concentra-
ção da seleção fosse transferida para o Hotel Paineiras, localizado na
Floresta da Tijuca, onde o acesso restrito e as melhores condições de
segurança ofereciam a tranquilidade necessária aos trabalhos diários
de treinamento do selecionado.
Em 1962, as representações construídas pela imprensa indica-
vam a aproximação das relações entre o futebol e o imaginário político
do país. Na crônica intitulada “Primeiro Ministro”, uma metáfora dire-
cionada ao treinador Aymoré Moreira, o jornalista Davi Nasser não dei-
xa dúvidas sobre a incursão do futebol no cenário político brasileiro:

56 Leonel Brizola, governador do estado do Rio Grande do Sul, convidou formalmente


a delegação campeã a passar alguns dias descansando em seu estado. O mesmo
convite foi feito por Amintas de Barros, que ocupava, naquela época, o cargo de
prefeito de Belo Horizonte (CESTADO DE MINAS, 19 jun. 1962, 2ª seção, p. 1b).
104
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

O futebol é a verdadeira política do Brasil. Nenhum governo


que estime a sua popularidade e queira manter vivas as suas
raízes no coração do povo – teria a coragem de omitir-se dos
tratadistas que escrevem com os pés as mais lindas páginas de
nossa História. Juscelino só se tornou realmente Juscelino, o
homem de sorte, quando o Brasil levantou o Campeonato do
Mundo. Era assim como se o Brasil se tivesse desencabulado
após longos anos de espera e de várias tentativas infrutíferas.
A implantação da fabulosa indústria de automóveis, a cons-
trução de Brasília, o parque fabril que cresceu à beira de São
Paulo (província que teve no inefável Juscelino o seu melhor
governador, depois de Carvalho Pinto), o reaparelhamento
dos estaleiros – nada disso, para o Juca Pobre das nossas an-
gústias, dos dias sem alegria, das mesas parcas, dos orçamen-
tos espremidos, teve a importância da Copa do Mundo.
Aquela caveira de burro, que nos perseguia desde as quadras
de 30, se acabou por fim – e o povo não separa esses momen-
tos felizes do tempo e do governo em que ocorreram. No curto
período do Senhor Jânio Quadros, o Brasil não conseguiu um
título. Ademar Ferreira da Silva teve seu recorde superado.
Maria Ester Bueno caiu de cama, vítima de uma hepatite, às
vésperas do Torneio de Wimbledon. O Flamengo foi para as
últimas colocações. O Corinthians desapareceu. O Santos foi
eliminado do torneio dos campeões. [...] O Brasil voltava a ser,
no futebol, no esporte, na política, o perna-de-pau azarado, en-
quanto as águas rolavam no Palácio da Alvorada. Logo o povo
se convenceu que Jânio dava azar até em pata de coelho ou em
breve do Bonfim. (O CRUZEIRO, 26 maio, 1962, p. 4)

Embora fosse uma representante genuína do discurso jornalís-


tico da daquele período, em função do seu tom exagerado, a crônica
assinada por Nasser pode ser reveladora das ideias que permeavam
o imaginário coletivo naquele momento. Nos fragmentos citados,
o futebol se apresenta como uma alegoria capaz de dramatizar os
sucessos e fracassos dos últimos presidentes brasileiros. De forma
paralela, as inabilidades políticas do governante se relacionam di-
retamente com o fracasso dos clubes mais populares do país. No
nosso entendimento, a crônica potencializa uma estreita relação
entre o futebol e os sentimentos, desejos, segredos e ritos que,
105

Euclides de Freitas Couto


posteriormente, ganharão destaque nas expressões linguísticas co-
tidianas (“jogo duro”, “perna de pau”, “bola murcha”), na música po-
pular, como também em outras manifestações culturais brasileiras.

No imaginário político dos anos 1960, o sentimento de naciona-


lismo exacerbado, fomentado, sobretudo, pelas conquistas no campo
esportivo a partir de 1958,57 não era uma unanimidade entre as diver-
sas correntes que compunham o quadro político e intelectual do país.
Se, para os políticos de centro e de direita, o futebol parecia um ins-
trumento interessante para a condução das massas via a exaltação da
nação, a mesma simpatia não era percebida nos círculos de esquerda,
para quem o futebol, assim como outros esportes de massa, conduzia
a população a um processo de alienação coletiva. A escritora e jor-
nalista Rachel de Queiroz é um bom exemplo desse tipo de postura.
Ao longo de sua carreira, ela demonstrou posicionamentos políticos
bastante ambíguos (BOSI, 1991, p. 447). No período anterior ao golpe
de 1964, Rachel se autointitulava socialista. Em 1932 chegou a filiar-se,
durante um curto período de tempo, ao Partido Comunista. Durante a
Copa do Chile, a escritora cearense condenou severamente os grupos
políticos por ela denominados “nacionalistas”. Segundo ela, utilizado
por eles como instrumento fomentador do nacionalismo, o futebol
perdia seu caráter esportivo e contribuía para acirrar a rivalidade en-
tre os povos:

Escrevo estas notas na terça-feira, 12 de junho, véspera de


Santo Antônio e dois depois da vitória do selecionado brasi-
leiro no jôgo contra os inglêses. E o delírio popular seria mais
simpático e compreensível se a coisa não fôsse arrastada do
terreno meramente esportivo para o campo do “nacionalismo”
mais exacerbado. Pois até o Presidente da República se permi-
te telegrafar aos craques em termos que deixam entender que
todo o prestígio internacional do Brasil estava empenhado na
destreza dos atletas que jogavam em Viña Del Mar.

57 Vale ressaltar que, além das conquistas da Seleção Brasileira de futebol, contribuíram
para a conformação do nacionalismo as conquistas do bicampeonato da Taça
Libertadores e do Mundial de Clubes pelo Santos F. C. em 1962 e 1963; o bicam-
peonato do Torneio de Wimbledon conquistado pela tenista Maria Esther Bueno
em 1958 e 1960, além do título mundial dos pesos galo conquistado pelo pugilista
Éder Jofre em 1961. Cabe ainda mencionar a conquista do bicampeonato mundial
pela Seleção Brasileira de basquete em 1959 (Chile) e 1963 (Brasil).
106
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

A primeira distorção lamentável, no feitio dessa comemoração,


é se perder de vista a regra básica de tôda manifestação espor-
tiva, que representa de fato o próprio espírito das competições
atléticas: para o bom esportista, o importante não é vencer, o
importante é competir segundo as regras do jôgo. Esporte não
é guerra, onde a vitória é a única que conta. Esporte é justa-
mente o contrário, o antônimo de guerra – mas todo mundo
no Brasil, a começar pelo Dr. Jango, parece completamente
esquecido disso. Ante a fúria jacobina que se desencadeou,
damos a ideia de que, em vez de vencer um simples jôgo de
futebol, tomamos pelo menos Gibraltar dos inglêses!

Mas o caso não seria tão sério, seriam talvez naturais veemên-
cias do nosso temperamento tropical, se a possível vitória do
Brasil no Chile e as vitórias parciais que lá conquistou o nos-
so selecionado não fossem tão descaradamente exploradas
pelos chamados “nacionalistas”, em apoio dos seus supostos
“postulados”.

Pode quem quiser me apedrejar, me apontar com o dedo, fa-


lar mesmo em traição. Não me importo e não tenho medo de
chantagem ideológica de ninguém. A verdade tem que ser dita,
e, quando os homens intimidados calam a bôca, falem as mu-
lheres! Hoje não há político, não há soldado, não há chefe que
não se dobre à pressão da propaganda dos “nacionalistas” e,
mesmo, violentando os seus sentimentos democráticos, não se
declare também um “nacionalista” vermelho, com mêdo de que
lhe duvidem do patriotismo. Ninguém ousa reconhecer de pú-
blico que essa doença de nacionalismo que grassa pelo mundo
em geral, e no Brasil em particular, não é sintoma de adianta-
mento político ou amadurecimento social: é atraso, é imaturi-
dade. Que esse nacionalismo que vemos por aí tem o mesmo
berço bastardo do racismo. Que paixão nacional exacerbada
até o fanatismo, não é virtude, é erro, não é um bem, é um mal.

A tendência para o progresso humano é para universalidade.


O ideal de todos os homens da terra, todos, sem exceção, se
integrarem numa só comunidade, onde não haja distinção de
cor nem raça, de credo, de ideologia, de localização geográfica.
107

Euclides de Freitas Couto


Êsse o ideal cristão, o ideal socialista, o ideal de tôda concep-
ção religiosa ou política adiantada. (O CRUZEIRO, 7 jul. 1962,
p. 122)

Os ideais do socialismo universal de linhagem trotskista58 pre-


sentes no discurso da escritora dão suporte ao argumento de que o
futebol, representado como o motor para a construção dos nacionalis-
mos, não deveria ser dimensionado daquela maneira pelos chefes de
estado. A utopia do socialismo internacional encontrava em diversos
tipos de nacionalismo uma barreira instransponível para sua dissemi-
nação. No caso brasileiro, as questões étnicas, linguísticas e religio-
sas, sempre presentes na composição dos nacionalismos europeus,59
cediam lugar ao futebol que, por sua vez, despontava como um dos
principais condutores dos sentimentos de nacionalidade.
As epopeias da Suécia e do Chile colocaram o Brasil em evi-
dência no cenário esportivo internacional. O estilo de jogo brasileiro,
conhecido no exterior como “futebol arte”, traduzia no esporte as
virtudes da mestiçagem elencadas por Gilberto Freyre na década de
1930. Nas décadas seguintes, redimensionados por meio das crôni-
cas esportivas, os ideais da mestiçagem foram revigorados pelos cro-
nistas a partir de uma relação direta estabelecida entre as qualidades
individuais presentes no futebol e as características psicoculturais
do povo brasileiro.
Desde a Copa de 1958, percebemos que o estilo de jogo prati-
cado por Garrincha despertou novamente nos cronistas a discussão
sobre a mestiçagem presente no interior do debate acerca da iden-
tidade nacional. A crônica “Descoberta de Garrincha”, escrita por
Nelson Rodrigues logo após a vitória de 2 a 0 sobre a União Soviética,
traduz parte dessa visão:

58 De acordo com Bobbio et al. (1999, p. 1262), a teoria da Revolução Permanen-


te elaborada por Trotski propunha que a única saída para a consolidação do
socialismo na própria União Soviética estaria na revolução do proletariado dos
países avançados. O isolamento do Estado proletário significaria a sua própria
ruína. Nesse sentido, a partir da IV Internacional organizada por Trotski em 1938,
as ideias de internacionalização do socialismo ganharam força nos discursos dos
intelectuais de esquerda espalhados pelo mundo.
59 Hobsbawm (2004, p. 197-198) argumenta que os movimentos nacionalistas que
eclodiram na Europa na segunda metade do século XX possuem reivindicações
separatistas cujas doutrinas rejeitam as formas modernas de organização política
nacionais e supranacionais.
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Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acre-


dita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado
contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a
Rainha Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversá-
rio. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde
nasceu, vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com
esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os
russos. [...] Cada vez que Garrincha passava por um, o público
vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse por mal. De modo
algum. Garrincha estava ali com a boa-fé inefável com que, em
Pau Grande, vai chumbando as cambaxirras, os pardais. Via
nos russos a inocência dos passarinhos. Sim: os adversários
eram outros tantos passarinhos, desterrados de Pau Grande.
(MANCHETE ESPORTIVA, 21 jul. 1958 apud RODRIGUES, 1994,
p. 54)

Individualista, malandro e – paradoxalmente – inocente,


Garrincha incorporava em seu temperamento os traços da identi-
dade mestiça cunhada por Gilberto Freyre que, posteriormente, foi
difundida de forma ampla nas crônicas futebolísticas de Mário Filho.
Ao recuperar a tônica do discurso de seu irmão (Mário Filho), Nelson
Rodrigues contribuiu para a generalização de traços identitários,
sobretudo da malandragem carioca, provocando o desencaixe das
outras identidades regionais (SILVA, 2006, p. 176). Arlei Damo (1999)
postula que Gilberto Freyre, ao representar a identidade futebolística
brasileira em oposição ao estilo europeu, provocou uma construção
“superficial” e “politicamente tendenciosa”. Para o antropólogo gaú-
cho, a formação da brasilidade futebolística deveria associar a mole-
cagem baiana, a capoeiragem pernambucana e a malandragem cario-
ca às características presentes na cultura dos mineiros, dos gaúchos
e dos paulistas, como também aos outros traços que caracterizam os
demais estados da Federação. No entanto, os “seguidores” da tradi-
ção freyriana, lidos nas crônicas de 1958 e disseminados nas falas da
época,60 parecem ter construído uma representação predominante
do futebol carioca que acabou se tornando hegemônica no imaginá-
rio coletivo do país.

60 A título de exemplo, podemos citar as palavras do presidente JK após a conquista


da Copa da Suécia: “Foi a afirmação de uma raça” (MANCHETE, 19 jul. 1958,
p. 67).
109

Euclides de Freitas Couto


Em 1962, logo após a contusão de Pelé, ainda no início da com-
petição, Garrincha assumiu a condição de principal jogador da sele-
ção canarinho. Com a experiência acumulada da Copa anterior, Mané
se mostrava então mais habilidoso: além dos dribles desconcertan-
tes que desarticulavam os sistemas de marcação planejados pelos
técnicos europeus, ele se superou marcando gols de cabeça e com
chutes de média distância. Ao incorporar os traços da molecagem61
brasileira, Garrincha transformava o jogo europeu, milimetricamente
calculado, em uma brincadeira62 imprevisível. Nelson Rodrigues in-
terpreta os dribles de Mané como traços essenciais da brasilidade:
a recuperação de características como a “ingenuidade e esperteza”,
presentes nas narrativas brasileiras desde o modernismo, permite ao
herói rodrigueano assumir as mesmas virtudes anteriormente credi-
tadas a outros heróis fundadores da identidade nacional:63

Se aparecesse, na hora, um grande poeta, havia de se arremes-


sar gritando: “– O homem só é verdadeiramente homem quan-
do brinca!” Num simples lance isolado, está todo o Garrincha,
está todo o brasileiro, está todo o Brasil. E jamais Garrincha foi
tão Garrincha, ou tão homem, como ao imobilizar, pela magia
pessoal, os onze latagões tchecos, tão mais sólidos, tão mais
belos, tão mais louros do que os nossos. Mas veriam como, va-
rado de gênio, o Mané põe num jogo de alto patético, um traço
decisivo do caráter brasileiro: – a molecagem. (RODRIGUES,
1994, p. 79)

61 Referimo-nos, especialmente, ao sentido de molecagem amplamente difundido nas


obras de Gilberto Freyre como um dos traços essenciais do caráter brasileiro. O
pensador pernambucano, no prefácio da obra O negro no futebol brasileiro, de au-
toria de Mário Filho, incorpora ao futebol brasileiro, ainda na década de 1940, as
características psicossociais referendadas anteriormente em suas análises acerca
da mestiçagem.
62 O termo brincadeira é empregado aqui, nos moldes conceituais desenvolvidos por
Johan Huizinga (2001), como uma forma de jogo lúdico cuja essência é a busca
do prazer. Antagonicamente ao esporte, que necessita de regras preestabelecidas
socialmente, a brincadeira possui sentido em si mesma, o que permite que suas
regras sejam maleáveis.
63 Antunes (2004, p. 31), comenta que Nelson Rodrigues, na elaboração do “mito Gar-
rincha”, recorre às características comportamentais presentes em heróis como o
Macunaíma de Mário de Andrade. Nessa construção é possível perceber também
a permanência de virtudes anteriormente atribuídas a Leônidas da Silva, especial-
mente após o sucesso da Seleção Brasileira na Copa de 1938 (RODIGUES FILHO,
1994).
110
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Na representação rodrigueana, o papel do jogador se confunde


com sua interpretação “artística” quando ele propicia à plateia uma
sequência de cenas que sobrepõem o sentido original do esporte. No
jogo convencional, a busca incessante do gol e a defesa da própria
meta contra o ataque dos adversários eram, até então, considerados
os fundamentos básicos que orientavam a dinâmica das disputas.
Com Garrincha em campo, no entanto, os dribles adquiriam autono-
mia no interior do espetáculo, tornando-se momentos de êxtase para
a plateia, além de ressignificarem o próprio jogo de futebol.
A exaltação das qualidades individuais do brasileiro por meio
das metáforas futebolísticas cria, simultaneamente, uma superva-
lorização do futebol, assim como reforça os traços singulares que
compõem a identidade nacional. A capacidade criativa dos jogadores
brasileiros alimenta, nas crônicas de Nelson Rodrigues, a esperança
de conformação de um caráter nacional original, moldado por virtu-
des extraordinárias. A elaboração do mito Garrincha não foi apenas
uma prerrogativa dessas crônicas. No mundial do Chile, quando “Seu
Mané” assumiu a condição de “salvador da pátria”, todos os holofo-
tes da imprensa se viraram para ele:

Perguntaram: quem é melhor, Mané ou Pelé? Respondo com


uma pergunta: quem é melhor, Racine ou Shakespeare? Racine
é mais certo, mais artista, mais completo; Shakespeare é mági-
co. Pelé é lógico; Mané é mágico. Pelé é dionisíaco. Pelé é Pelé:
Mané e Mané. Assim sendo, viva Pelé e viva Mané! [...] Ora, só
um jogador no mundo é capaz de jogar sozinho contra quatro e
um goleiro. Êste jogador é Garrincha, o rei da pelada brasileira.
Pois talvez os leitores não saibam disto: lá em Pau Grande, em
dias de folga, Garrincha arranja um goleiro e disputa acirradas
partidas contra times de cinco jogadores. Garrincha exatamen-
te contra quatro. Às vezes ganha, às vezes perde, mas o resul-
tado é sempre imprevisível. (MANCHETE, 23 jul. 1962, p. 9)

A crônica assinada pelo jornalista Paulo Mendes Campos vai


buscar nas peladas disputadas na cidade natal de Garrincha os ele-
mentos explicativos para a habilidade “nata” do ponta-direita botafo-
guense. Na perspectiva do cronista, as “peladas” resgatam os elemen-
tos lúdicos, populares e originais presentes na apropriação do futebol
no território nacional. A identificação imediata entre a população e
111

Euclides de Freitas Couto


o seu ídolo se dá na medida em que o herói brasileiro incorpora as
características genuinamente nacionais extraídas de sua trajetória de
vida, identificada “simbioticamente” com o imaginário popular.
Ao explorar exaustivamente sua imagem, a imprensa atribui a
Garrincha a responsabilidade de conduzir o Brasil ao bicampeona-
to de futebol. Um episódio em especial, anteriormente comentado, é
revelador da dimensão adquirida pelo jogador no imaginário socio-
político do país em 1962. Após revidar as agressões dos jogadores
chilenos na partida válida pela semifinal do mundial, Garrincha foi
expulso pelo árbitro peruano Arturo Yamazaki. Embora naquela épo-
ca não houvesse a suspensão automática prevista pelo regulamento,
era quase certo que o craque brasileiro seria penalizado e não dispu-
taria a partida final (CASTRO, 1995, p. 258). No entanto, logo após a
chegada da notícia ao Brasil, o primeiro-ministro Tancredo Neves re-
digiu uma carta em nome do “povo brasileiro” solicitando à comissão
julgadora a absolvição de Garrincha. Nos bastidores políticos houve
uma enorme movimentação. O presidente peruano solicitou que o
árbitro do seu país não relatasse na súmula do jogo nenhum fato que
comprometesse o jogador brasileiro. O “bandeirinha” uruguaio Luís
Esteban, que havia denunciado a agressão de Garrincha ao árbitro
da partida, “misteriosamente” não compareceu ao julgamento,64 e o
brasileiro foi absolvido por seu histórico de bom comportamento e
pela falta de provas, uma vez que o árbitro relatou na súmula que não
vira nenhuma agressão cometida por Garrincha.
Se, de um lado, o episódio revela a importância que o futebol
adquiria no contexto político internacional, tornando-se, naquele
momento, símbolo de desenvolvimento e educação esportiva das na-
ções, de outro, desvenda as implicações simbólicas que permeavam
as relações políticas no país. A experiência acumulada com a con-
quista da Copa de 1958 – quando um clima de euforia contagiou toda
a população – sinalizava que o título de 1962 poderia trazer maior
tranquilidade para que os grupos que se mantinham a duras penas no
poder pudessem dar continuidade ao processo democrático no país.
Em contrapartida, a perda do título poderia gerar um sentimento de
desilusão generalizada e acirrar ainda mais as tensões populares.

64 Conforme os relatos de Franco Júnior (2007, P. 137) e Castro (1995, p. 257), o referi-
do bandeirinha uruguaio, ex-árbitro da Federação Paulista, havia recebido pas-
sagens aéreas de dirigentes brasileiros e embarcado para Paris na manhã seguinte
ao jogo.
112
Capítulo 1 – A capitalização política do futebol: diferentes estratégias empregadas para o mesmo fim (1930-1962)

Nesse sentido, é possível notar que, à medida que – externa-


mente – o Brasil se consolidava como uma das potências mundiais
do futebol, a ampliação – no plano interno – do sentimento naciona-
lista intensificava a penetração dos políticos no campo futebolístico.
O fortalecimento da imprensa esportiva e sua associação aos grupos
políticos dominantes constituiu um fator preponderante para a mas-
sificação do futebol. Concomitantemente, as condições em que o jogo
foi disseminado no país – ocupando terrenos baldios e espaços pú-
blicos – permitiram que os segmentos populares tivessem acesso a
sua prática. A difusão democrática do futebol em todo o território na-
cional construiu uma espécie de senso comum “qualificado”, no qual
se insere boa parte da população brasileira. Como em poucos países
do mundo, especialmente a parcela masculina da população brasilei-
ra domina a discussão técnica e tática acerca do futebol, fato que os
possibilita assimilar de forma direta as reportagens veiculadas pelos
meios de comunicação. Nessa lógica, a associação das imagens dos
políticos e dos programas de governo ao futebol busca promover, nos
moldes populistas, uma perfeita sinergia entre o governante e os mi-
lhões de pessoas mobilizadas pelas Copas do Mundo. Por isso mesmo,
as conquistas dos mundiais passaram a ser tratadas no Brasil como
metas de governo. Este fato agregou ao esporte uma dimensão política
que percorre as trajetórias de todos os governos que se instalaram até
a atualidade no país. Simultaneamente a esse processo, o mito nacio-
nal, de matiz freyriano, formulado na virada culturalista dos anos de
1920-1930, disseminado pela ideologia estado-novista, se perpetuou no
discurso jornalístico esportivo, que se encarregou de materializar nos
jogadores do futebol as qualidades singulares do homem brasileiro.
Cristalizada ao longo dos anos no senso comum, essa formulação da
identidade brasileira possibilita à sociedade experimentar momentos
de intensa comunhão de sentimentos nacionalistas,65 na mesma me-
dida em que é instrumentalizada ideologicamente pelos governantes.
Um segundo aspecto da associação futebol/política exigia que
as entidades organizadoras do futebol fossem diretamente conduzi-
das pelos mecanismos de controle do Estado. Assim, desde o mo-
mento da organização do Estado Novo, as federações estaduais de
futebol e a própria CBD reproduziram em seus quadros as filiações

65 Segundo Jessé Souza (2009, p. 39), o mito nacional, fornecedor de “ilusões com-
pensatórias” permite à sociedade brasileira se alienar das mazelas produzidas
pela desigualdade social, estruturante das relações sociais no país.
113

Euclides de Freitas Couto


partidárias que se sustentavam no poder. A partir de 1946, com a
ascensão do Estado Democrático, o futebol, por meio de suas en-
tidades organizadoras, tornou-se um terreno fértil para as disputas
políticas partidárias, que envolviam as rivalidades clubísticas locais
e regionais.66 Durante o período da ditadura militar, toda essa orga-
nização será incrementada para atender de forma mais adequada aos
interesses ideológicos presentes no escopo doutrinário implementa-
do após o golpe de 1964.

66 Segundo Carvalhaes (1995, p. 81), esse tipo de organização fomentou a prática de


favorecimento dos interesses pessoais dos dirigentes de futebol. Muitos deles se
utilizaram da máquina estatal para se autobeneficiar, assim como para defender os
interesses de suas agremiações.
Capítulo 2

Futebol no regime autoritário: cultura e política



Por que não Pelé para biônico?
Teodomiro Braga, Movimento, 1978.

Em março de 1964, quando as tropas legalistas se mobilizavam


para tomar o poder do presidente João Goulart, o futebol brasileiro
ainda respirava os ares da conquista do bicampeonato mundial de
1962: o Santos Futebol Clube (bicampeão mundial de clubes em 1963)
e o Botafogo, agremiações que concentravam a maior parte dos jo-
gadores da Seleção Brasileira, excursionavam pela Europa, onde
recebiam cotas vultosas para exibir o “futebol-arte”; nos estádios
brasileiros, a média de público aumentava consideravelmente com
as competições regionais que impulsionavam as rivalidades locais
espalhadas por todo o território nacional; a Taça Brasil, criada pela
CBD em 1959, ampliava as rivalidades clubísticas em nível nacional (a
competição, organizada para selecionar uma equipe brasileira para
a disputa da Taça Libertadores da América, reunia as agremiações
campeãs estaduais em um torneio cuja representatividade equiva-
leria atualmente ao Campeonato Brasileiro). Diante deste quadro,
houve, por todo o país, uma enorme mobilização em torno da cons-
trução de grandes estádios1 que, a exemplo do Maracanã, pudessem
abrigar “confortavelmente” os torcedores, ávidos pelo espetáculo fu-
tebolístico. Os cartolas,2 assim como os principais políticos de cada
estado, apostavam que o futebol poderia promover mais do que um

1 Um exemplo típico da mobilização política em torno da construção de estádios


pode ser visto no caso da construção do Mineirão, em Belo Horizonte. SEIXAS
et al., (2005, p. 22-23) relatam que a construção do Mineirão, iniciada em 1960, foi
várias vezes questionada, devido aos confrontos políticos entre o PSD e a UDN.
2 Nome dado a dirigentes de clubes, de federações e de associações ligadas ao fute-
bol.
116
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

espetáculo esportivo e se tornar uma das principais fontes de renda


tanto para os clubes como para os órgãos públicos incumbidos de
administrá-lo. Com isso, na mesma medida em que crescia sua po-
pularidade, o esporte das massas era sugado pela perversa lógica do
patrimonialismo, na qual nem mesmo os bens culturais escapam da
apropriação pelos grupos que controlam o poder.
Enquanto o futebol ampliava sua abrangência no território na-
cional, a democracia recrudescia sob as armadilhas impostas pelo
autoritarismo, com a desmobilização das camadas populares e o fe-
chamento contínuo dos canais de participação política. Ao cercear um
amplo debate político e ideológico iniciado no final dos anos 1950, o
golpe de 1964 inaugurava uma nova fase na história política do país,
marcada pela tentativa de resguardar o status quo das elites. Seja por
meio do aniquilamento da força política que adquiriam os movimentos
sociais engendrados no interior das novas classes urbanas, seja pelo
efetivo combate às Ligas Camponesas que se movimentavam em torno
da reforma agrária, os militares, alicerçados pelo apoio político dos
grupos conservadores e valendo-se de um conjunto de medidas au-
toritárias e repressoras, conduziram um repertório variado de ações
que visavam desmobilizar todas as formas de oposição ao governo
(ALVES, 1989).
Diante deste quadro, concentramos a análise empreendida
neste capítulo na compreensão das formas de apropriação política
construídas em torno do futebol durante os anos da ditadura mili-
tar, já que foi neste período que no campo futebolístico foram po-
tencializadas as tensões ideológicas presentes no quadro nacional.
Direcionando o olhar para uma época permeada pela efervescência
cultural e pela tensão política, o estudo da apropriação social do fu-
tebol por diversos agentes pode evidenciar não apenas os mecanis-
mos ideológicos utilizados pelos grupos dominantes para se legiti-
marem no poder, mas também os significados assumidos por este
esporte no interior dos grupos de oposição, já que o espaço simbólico
construído em torno do campo futebolístico ofereceu aos chamados
grupos progressistas um meio eficiente para a expressão de suas
filiações ideológicas. Também fixamos nossas atenções nos meca-
nismos de instrumentalização política da Seleção Brasileira duran-
te os mundiais da Inglaterra (1966) e do México (1970): no primeiro
caso, observamos um processo de exploração comercial da seleção
conduzido pelo bloco de políticos conservadores; no segundo, uma
117

Euclides de Freitas Couto


gradual apropriação da CBD e da Seleção Brasileira pela alta cúpula
militar, transformando sistematicamente o escrete nacional em um
instrumento de propaganda ideológica do governo Médici.
Na década de 1960, o futebol atingiu uma incrível abrangência
social no país. O crescimento dos meios de comunicação de massa,
especialmente com o advento da televisão, possibilitou a ampliação
do espaço comunicativo que já se havia organizado em torno desta
prática esportiva. O crescente aumento do número de páginas dedica-
das ao esporte nos principais veículos da imprensa escrita, bem como
a especialização dos profissionais do rádio esportivo, possibilitou a
ampliação das formas de penetração do futebol nos diferentes extra-
tos sociais. Com isso, por meio dos mais variados simbolismos presen-
tes nas inúmeras formas de expressão cultural, o futebol serviu, por
vezes, como um instrumento condutor e/ou catalisador de ideologias,
tensões e opiniões dos grupos antagônicos que se constituíram no fi-
nal dos anos 1950.
Contudo, há no imaginário político brasileiro uma tradição histo-
riográfica que relaciona, de forma imediatista, o futebol ao sistema de
propaganda de massa organizado pelos militares para legitimar suas
ideologias. Essa visão, construída na academia e disseminada pelo sen-
so comum, é remanescente do discurso difundido pelos grupos radicais
de esquerda durante as décadas de 1960-1970. Tais grupos acreditavam
que todos os instrumentos utilizados pela propaganda dos militares
eram, em potencial, fatores de alienação e desmobilização política das
massas. Avalizada por parte dos historiadores e cientistas políticos,
essa interpretação ainda continua sendo amplamente difundida:

[...] a propaganda de massa foi amplamente utilizada pelo regi-


me, em especial para promover a figura do presidente Médici
como homem “simples”, ligado aos valores populares, como o
futebol. O regime militar, aliás, tentou vincular suas conquis-
tas políticas e econômicas à conquista da Copa do Mundo de
Futebol em 1970. (NAPOLITANO, 1998, p. 44)

*****
De modo geral, a sociedade não se empolgaria pela luta arma-
da. Os ecos das comemorações pelos gols marcados no México
pela seleção tri-campeão (sic) mundial ressoariam mais altos,
e cobririam, os gritos dos que estavam nas câmaras de tortura
118
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

da OBAN e dos DOI-CODIs – Destacamentos de Operações e


Informações/Centros de Operações e Defesa Interna.3

A sedimentação da tradição futebol-como-ópio-do-povo acabou


por inibir a possibilidade de se estudar o esporte das multidões com a
devida profundidade, levando-se em conta a proficuidade da produ-
ção cultural brasileira nas décadas de 1960-1970. Com isso, a maior
parte da produção historiográfica e sociológica dedicada ao futebol
no período da ditadura militar4 desprezou o campo futebolístico
como uma esfera significativa para a compreensão das manifestações
de oposição e/ou resistência surgidas no decorrer desse período. Tal
quadro leva a crer que este fenômeno se deu em razão da esquerdi-
zação da classe intelectual, ocorrida especialmente após o golpe de
1964, que contribuiu para que os cientistas sociais e historiadores,
de forma geral, associassem o futebol ao conjunto de bens culturais
instrumentalizados pelos grupos conservadores dominantes, oblite-
rando, assim, as potencialidades políticas oferecidas pelos diversos
sujeitos que – escapando a esta compreensão estreita – utilizaram o
espaço simbólico produzido pelo jogo da bola para expressar suas
críticas aos valores e às concepções políticas hegemônicos.
Uma vez descartada a teoria da alienação, se compreendido
como um fenômeno social amplo – e não apenas como um instrumen-
to a serviço do governo –, o campo futebolístico pode abrigar múlti-
plas formas de expressão política, ou de maneiras como indivíduos
distintos manifestam seus antagonismos e participam efetivamente
da vida política da nação; afinal, ao ser apropriado por agentes de di-
ferentes vertentes ideológicas, ele constituiu um importante espaço
simbólico, no qual se digladiavam os políticos. Nesse sentido, o cam-
po futebolístico representou um canal de comunicação privilegiado:
tanto para o Estado, que visava difundir sua ideologia, quanto para
os diversos grupos e agentes descontentes com o regime militar, que
desejavam expressar sua insatisfação com os valores hegemônicos e
protestar contra o regime autoritário.

3 REIS, 2004, p. 48.


4 Como expoentes dessa linha, podemos citar as pesquisas de Santos (1981) e Aqui-
no (2002). As exceções são os trabalhos de Florenzano (1998) e Franco Júnior
(2007), que procuram relatar a postura crítica exteriorizada por alguns jogadores
de futebol durante o período da ditadura militar.
119

Euclides de Freitas Couto


2.1. A polarização da sociedade

O caleidoscópio de sentidos presente nas interpretações pro-


duzidas sobre o golpe de 19645 não permite apontar uma única saída
para a compreensão de toda a complexidade de interesses – políticos
e econômicos – que cercava o Palácio da Alvorada no início dos anos
1960. No entanto, é possível captar, nas inúmeras pesquisas produ-
zidas, algumas singularidades que nos permitem traçar um plano ge-
ral sobre os acontecimentos ocorridos no período. Nesse sentido,
optamos por destacar as variantes circunscritas ao processo de po-
larização política e ideológica ocorrido no interior da sociedade e
iniciado ainda no final dos anos de 1950. Nesse período, é possível
notar, nos campos da política e da cultura, uma clara tendência de
formação de dois grupos de opinião (e também de ação) antagônicos
que, ao longo das décadas de 1960 e 1970, travariam uma verdadeira
batalha ideológica: de um lado, os intelectuais e políticos da direita,
empresários nacionais e executivos das multinacionais, que, apoia-
dos pelas agências norte-americanas (CIA, Pentágono), forneceram
aos militares brasileiros os subsídios políticos e os fundamentos
ideológicos necessários tanto para a arquitetura do golpe quanto para
a condução do processo político até 1984 (DREIFUSS, 1981); de outro,
os grupos que representavam a esquerda6 do país: os comunistas, os
socialistas, os movimentos sociais urbanos, a Liga Camponesa, inte-
lectuais, artistas e a parcela progressista da Igreja Católica.
Em seu clássico estudo sobre o golpe de 1964, René Dreifuss
(1981) atribui à elite orgânica, constituída pelos intelectuais do Insti-

5 Delgado (2004, p. 18-19), ao incorporar a dimensão da temporalidade em sua


análise historiográfica, argumenta que, durante a década de 1970, sob a influência
do estruturalismo, os trabalhos produzidos sobre a ditadura militar atribuíram a
responsabilidade pelo golpe ao colapso do modelo desenvolvimentista, o qual se
ancorava na concentração de renda e na dependência do capital estrangeiro. Para
a historiadora, algumas pesquisas mais recentes, produzidas ao longo das décadas
de 1980 e 1990, atribuem a movimentação política a favor do golpe e a implantação
da ditadura militar aos inúmeros fatos conjunturais de ordem política e econômica
que desestabilizaram João Goulart em seu último ano de governo. Para uma revisão
historiográfica mais abrangente sobre o governo Jango e o golpe de 1964, consultar
também a pesquisa de Mattos (2008).
6 Tomamos por empréstimo o significado do termo esquerda desenvolvido por Marce-
lo Ridenti (2000). Em sua compilação, o autor recupera as discussões anteriormente
formuladas por Jacob Gorender e Marco Antônio Garcia, fornecendo uma nova
orientação: “o termo ‘esquerda’ é usado para designar as forças políticas críticas da
ordem capitalista estabelecida, identificadas com as lutas dos trabalhadores para a
transformação social” (RIDENTI, 2000, p. 17).
120
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

tuto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de


Ação Democrática (Ibad), a responsabilidade pela conformação do
pensamento de direita. Financiados pelo capital estrangeiro, esses
grupos iniciaram um duplo e simultâneo movimento: a absorção do
anticomunismo norte-americano e a difusão do capitalismo liberal,
em oposição à nacionalização da economia e às demais reformas
estruturais presentes no discurso janguista. Posteriormente, essas
premissas moldariam o corpus ideológico da Doutrina de Segurança
Nacional implantada pelos governos militares.7 As teorias formu-
ladas pelas agências norte-americanas possuíam dois eixos que se
complementavam: em primeiro lugar, visavam controlar as ações po-
líticas e econômicas dos países da América do Sul, salvaguardando
os interesses das empresas multinacionais nestes países; em segun-
do, buscavam alinhar as ações governamentais às ideologias anti-
comunistas disseminadas a partir do Pentágono. Com o sucesso da
Revolução Cubana, os Estados Unidos, por meio do seu serviço de
inteligência, passaram a intervir diretamente na política interna dos
países latino-americanos com o intuito de desarticular os grupos e
movimentos de esquerda. No período de sua gênese, o IPES buscou
legitimar-se como uma organização apartidária cujo objetivo (apa-
rente) consistia em estudar, à luz das doutrinas liberais, as reformas
estruturais propostas pelo governo João Goulart. Os ipesianos pre-
gavam a “inocente” ideia de que pretendiam promover um amplo de-
bate com os diversos setores da sociedade, oferecendo, assim, uma
grande contribuição para o “fortalecimento das instituições demo-
cráticas do país”. Entretanto, na prática, as ações do Ipes e do Ibad
concentravam-se num esforço para cooptar setores estratégicos da
sociedade que pudessem ser orientados para promover a difusão de
suas ideologias: o combate ao comunismo, à oligarquia rural e à cor-
rupção que havia se instalado no poder público. As ações de “mo-
delagem”, inicialmente direcionadas aos setores dominantes da so-
ciedade, estenderam-se também às camadas intermediárias – Igreja,
estudantes, sindicatos – e à classe camponesa mobilizada.
Objetivando desarticular as bases políticas janguistas, a eli-
te orgânica lançou mão de uma gama de estratégias para assumir o

7 Dreiffus (1981, p. 369) elucida as estreitas ligações entre os militares e o Ipes. Segun-
do ele, diversos membros da Escola Superior de Guerra (ESG), órgão responsável
pela condução ideológica dos militares, participavam ativamente das decisões do
instituto.
121

Euclides de Freitas Couto


controle da opinião pública do país: associou-se a organizações civis,8
financiou manifestações sindicais e cooptou boa parte dos meios de
comunicação. A tática rapidamente surtiu os efeitos esperados: os
conservadores conseguiram manipular uma parcela significativa da
massa crítica da sociedade, fomentando no país um clima de pânico
e desordem que era atribuído à maneira desorganizada e “perigosa”
com que o presidente João Goulart conduzia o governo. Ao longo do
ano de 1963, os pronunciamentos do presidente, assim como as gre-
ves e as manifestações dos trabalhadores, serviram para alimentar
os alertas sobre o avanço do comunismo ou o inimigo interno. Esses
fatos, amplamente difundidos pelos meios de comunicação, produ-
ziam uma representação extremamente negativa da conduta do presi-
dente e, simultaneamente, colocavam em xeque os rumos democrá-
ticos do país. É imprescindível mencionar que, no contexto da bipo-
laridade mundial, o discurso anticomunista disseminado na América
Latina lançava contra os supostos conspiradores acusações que iam
desde a derrubada da democracia até a supressão da propriedade
privada. Maria Helena Alves (1989, p. 38) denominou de estratégia de
ação indireta ao comunismo o conjunto de ações formuladas pelo par
ESG/Ipes que visavam à disseminação de propagandas psicológicas
e ao controle ideológico da sociedade. Essas ações, realizadas por
meio de seminários, publicações, propagandas difundidas nos meios
de comunicação e, principalmente, pela cooptação de instituições de
grande credibilidade social, promoviam uma ferrenha oposição ao
governo João Goulart.
Toda a mobilização oposicionista alavancada pelos grupos
conservadores, ocorrida durante o ano de 1963, ganhou corpo no
movimento conhecido como a Marcha da Família com Deus pela
Liberdade: a primeira passeata, realizada em 19 de março de 1964,
em São Paulo, contou com a participação de aproximadamente 300
mil pessoas. A multidão, que pedia a deposição do presidente João
Goulart, insultando-o com o título de “demônio comunista”, protesta-
va severamente contra o comício organizado por ele, seis dias antes,
na Central do Brasil, no Rio de Janeiro: apoiado por sindicatos e par-
tidos da base governista, Jango reafirmara a necessidade urgente da

8 Dentre as várias organizações civis cooptadas pelo Ipes e que tiveram participação
fundamental no processo de difusão e legitimação da ideologia anticomunista, podemos
citaraAssociaçãodeDirigentesCristãosdeEmpresa(ACDE),aUniãoNacionaldeAmparoà
Pesquisa(Unap),aAssociaçãoCristãdeMoços(ACM)eoGrupodeEducaçãoSeletiva(GEP)
(Dreifuss, 1981, p. 257-258)..
122
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

implementação das reformas de base e da convocação da Assembleia


Constituinte. Ato contínuo, todo o simbolismo de 1937 foi retomado
pelos conservadores, e Jango, afilhado político de Vargas, imbuído
do papel de golpista e de refundador de uma República Sindicalista
(NAPOLITANO, 1998, p. 10). A segunda passeata, organizada no Rio
de Janeiro dois dias após o golpe militar, configurou-se como uma
grande comemoração dos setores conservadores pela queda de
Jango. Os dois movimentos, ambos organizados pela Igreja Católica,9
evidenciaram a abrangência social alcançada por meio da associação
da ideologia anticomunista aos valores tradicionais da família brasi-
leira. Especialmente nas camadas altas e médias, cujos status eram
legitimados pela moralidade católica, a opção política – que, obvia-
mente, deveria ser exteriorizada – configurava-se como um dos traços
essenciais do perfil identitário que conformava o habitus10 da família
média brasileira. No entanto, seria um exagero atribuir à totalidade da
classe média a participação efetiva no processo político que desen-
cadeou o golpe de 1964. Sabemos, por meio de outras análises, que a
maior parte dos seus integrantes adotava uma atitude de “apatia com-
placente” ou de “adesão passiva” ao autoritarismo (MARTINS FILHO,
1987, p. 79). Esses estudos indicam que o comportamento político
desta classe e das elites sofria a interferência do apelo ao consumo
presente no American Way of Life e disseminado pelos meios de co-
municação de massa. Atraídas pelos incentivos fiscais e pelo “prós-
pero” mercado consumidor, as indústrias multinacionais de bens de
consumo, especialmente a automobilística e a de eletrodomésticos,
compunham o quadro harmonioso de desenvolvimento econômico
pintado pelos conservadores.

9 Conforme argumenta Castro (1984, p. 80), vale frisar que, oficialmente, a Igreja
Católica apoiou o golpe militar. A maioria dos padres e bispos assumiu o discurso
anticomunista, direcionando suas pregações a favor dos grupos conservadores.
Betiato (1985, p. 71), relata que o Padre Patrick Peiton veio diretamente dos Estados
Unidos para lançar a Campanha do Rosário em Família. A partir da liderança exercida
sobre as classes médias, o religioso anticomunista travou uma grande “cruzada”
contra o governo João Goulart. Por outro lado, grupos progressistas presentes
no interior da Igreja Católica, como aqueles ligados à Teologia da Libertação, e
vozes dissonantes como a de Dom Hélder Câmara, arcebispo da diocese de Olinda
e Recife, constituíram-se como uma das principais frentes de oposição ao golpe e,
posteriormente, à ditadura militar.
10 Empregamos, de forma proposital, o conceito formulado por Pierre Bourdieu. Para
o sociólogo francês, a classe social em que o indivíduo se encontra define, entre
outras questões, aspectos de distinção social, valores de consumo e preferências
estéticas (BOURDIEU, 2005b, p. 74).
123

Euclides de Freitas Couto


Assim, se alargarmos nosso horizonte compreensivo, parece
nítida que a possibilidade de integração ao mercado de bens de con-
sumo proporcionado pelas multinacionais norte-americanas produ-
zia, sobre os brasileiros médios, um apelo maior do que o projeto
político da direita. Ademais, a extinção da propriedade privada e o
isolamento econômico do país, riscos iminentes veiculados pela pro-
paganda anticomunista, soavam como ameaças à continuidade do
modo de vida incorporado pelas classes médias brasileiras.
Se a articulação política dos grupos conservadores que toma-
ram o poder em 1964 contou com a adesão, mesmo que de forma
“passiva”, da classe média, os grupos progressistas, por sua vez, ini-
ciaram, desde o final da década de 1950, um amplo e heterogêneo
movimento de conscientização das massas. Seu objetivo consistia ba-
sicamente em levar informação política às populações carentes por
meio de eventos culturais das mais variadas naturezas. A utopia pre-
sente no caleidoscópio imaginário das esquerdas envolvia um aspecto
comum: somente por meio da “desalienação” dos grupos subalternos11
seria possível alcançar a mudança social. Dentre os diversos grupos
progressistas que participaram desse movimento, destacaram-se a
União Nacional dos Estudantes (UNE) – que, além de contar com a
participação dos estudantes, atraiu diversos artistas e intelectuais
– e a Ação Popular (AP) – uma extensão da Juventude Universitária
Católica (JUC) e ligada aos segmentos progressistas da Igreja.
Desde o início da década de 1960, a UNE consolidou sua pos-
tura de esquerda no cenário político brasileiro. A Declaração da
Bahia, documento produzido no I Seminário da Reforma Universitária,
realizado em 1960, em Salvador, exteriorizou a posição política dos es-
tudantes diante da situação de “falência da estrutura liberal-burguesa
do país” (DREIFUSS, 1981, p. 283).
Nos encontros subsequentes, realizados em nível nacional, a
UNE reafirmou sua posição de enfrentamento político e ideológico da
burguesia liberal, dos partidos de centro-direita e das organizações ali-
nhadas ao Ipes. Além disso, o movimento estudantil procurou alinhar a
reforma universitária, sua principal demanda, às outras reivindicações
presentes na agenda da esquerda brasileira. A aliança construída com

11 A categoria grupos subalternos a que nos referimos foi desenvolvida por Gramsci
(2002, p. 138-145). Nessa elaboração, o filósofo sardo amplia a noção de classe so-
cial presente na teoria marxiana, inserindo no proletariado os grupos explorados e
marginalizados pela sociedade capitalista.
124
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

os camponeses, os intelectuais progressistas, os militares democratas


e algumas lideranças sindicais possibilitou a realização de ações mais
efetivas e de maior penetração nos diversos grupos sociais. Os estu-
dantes tiveram uma participação destacada em campanhas que iam
desde a alfabetização de adultos a projetos sanitários desenvolvidos
nas áreas rurais pelo Ministério da Saúde. No entanto, foi o campo
da cultura que apresentou o solo mais fértil para o florescimento do
debate e da participação política: nas músicas, nos poemas, nas peças
fílmicas e teatrais produzidos pela vanguarda artística, ligada ao movi-
mento estudantil, estão os registros das contribuições mais significati-
vas do engajamento político nas décadas de 1960 e 1970.
Entre os anos de 1961 e 1964, os Centros Populares de Cultura
(CPC), diretamente ligados à UNE e ideologicamente alinhados ao
Partido Comunista Brasileiro (PCB),12 levaram a diversos pontos do
país uma grande variedade de manifestações culturais politicamente
engajadas. Em diferentes lugares e cidades, o CPC atraiu a atenção de
artistas, estudantes e intelectuais, que se envolveram no projeto de
difusão de ideologias progressistas por meio das mais variadas for-
mas de expressão artística. No intuito de conscientizar a população
carente e menos escolarizada sobre os graves problemas sociais que
afligiam o país, foram organizados inúmeros espetáculos teatrais,
shows musicais, saraus e intervenções circenses. Realizados gra-
tuitamente ou com a cobrança de preços populares, os espetáculos
tornaram-se um importante instrumento político das esquerdas, na
medida em que se constituíram como um elo entre os intelectuais
e artistas engajados e a população menos favorecida (HOLLANDA;
GONÇALVES, 1995, p. 10).
Apesar da heterogeneidade das concepções ideológicas e
estéticas presentes no pensamento dos seus integrantes,13 o CPC
conseguiu atrair um número considerável de artistas para seu pro-
jeto. O cantor e compositor Sérgio Ricardo, que iniciara sua trajetó-
ria artística seduzido pela temática contemplativa e pelos acordes
12 De acordo com Garcia (2004, p. 129), o projeto ideológico-nacionalista assumido
pelo PCB previa a articulação de uma “frente única” capaz de integrar todos os
segmentos sociais num movimento revolucionário anti-imperialista e democrático.
13 No início da década de 1960, favorecidos pela interpretação dos intelectuais do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), era nítida a influência de pensa-
dores como Marx, Engels, Mao Tsé-Tung e Che Guevara entre os membros do CPC.
Aos poucos, acompanhando um movimento alavancado pelos intelectuais de es-
querda, adotaram-se, dentre outros teóricos neomarxistas, Lukács, Gramsci e Ben-
jamim (GARCIA, 2004, p. 134).
125

Euclides de Freitas Couto


dissonantes da bossa nova, afirma que, sob a influência política do
CPC, mudou completamente o rumo de sua carreira musical. Para
ele, o engajamento político do artista era uma condição fundamental
para chamar a atenção da sociedade para as mazelas sociais do país:

Quando surgiu o CPC, nos fins dos anos 50, começo dos 60, me
chamaram porque eu tinha feito o “Zelão”, que saiu no meu
primeiro disco, e as pessoas começaram a achar que eu tinha
condições de fazer uma coisa mais social. E o CPC tinha muito
a ver com isso. Aí eu fui compondo as minhas coisas um pouco
mais voltadas pra realidade social porque, quando viemos pro
Rio, o meu pai conseguiu, com um pouquinho da reserva que
ele tinha, comprar uma casinha no Jacarezinho. Então, lá eu ti-
nha contato com a favela. Passava perto da favela e tal e come-
çava a ver essas injustiças sociais. Depois que eu comecei a tra-
balhar, a gente foi morar no Humaitá, onde nosso apartamento
dava pro morro. Foi nesse morro que uma vez eu assisti, da
janela, [a] um desbarrancado de uma pedreira lá, e com a chu-
va houve um grande desmoronamento de terra, uma movimen-
tação de terra, e cobriu um barraco. Eu fiquei apavorado com
aquilo, achei aquilo uma loucura. E, ao mesmo tempo, aquele
temporal daquele ano levou o Rio de Janeiro a uma catástrofe
danada. As pessoas, as vítimas da chuva, quase que todos fa-
velados, acabaram sendo abrigados no Maracanã enquanto se
descobria uma forma... quer dizer, ninguém descobriu forma
nenhuma pra eles sobreviverem. Eles que tiveram que se virar.
Foi aí que nasceu a minha música “Zelão”. Foi nessa situação
de preocupação com essa coisa que me emocionei muito com
essa situação e escrevi a música. (Informação verbal)14

A música “Zelão”, citada pelo compositor, simultaneamente


denuncia a falta de infraestrutura nas favelas cariocas e exalta o es-
pírito de solidariedade entre os moradores dos morros diante das
tragédias. Sérgio Ricardo afirma que a canção lançada em 1960, um
ano antes da fundação do CPC, sintetizava as mudanças culturais que
se anunciavam naquela conjuntura: artistas da Zona Sul carioca, mui-
tos deles precursores da bossa nova, incorporavam à sua produção
musical elementos e ritmos populares como o samba, o baião e o
14 Entrevista concedida por Sérgio Ricardo em 12 set. 2007.
126
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

xaxado, assim como outras influências vindas do Nordeste. A mistura


de ritmos, associada ao excesso de instrumentos, simbolizava a “pu-
jança geográfica e cultural da nação brasileira”:

Como poderia a linguagem de excesso ser posta a serviço de


um discurso político de protesto que ressaltava precisamen-
te a condição de subdesenvolvimento, opressão e pobreza de
um país visto como subordinado aos ditames do imperialismo
norte-americano? A contradição é apenas aparente: a afirma-
ção da nossa exuberância cultural se tornou uma estratégia
importante para apontar os caminhos da nossa redenção. [...]
Seria através de uma consciência profunda das nossas poten-
cialidades que conseguiríamos reverter o quadro da submis-
são cultural e alienação política. (NAVES, 2004, p. 37)

Nesse sentido, podemos perceber, no interior do projeto políti-


co-cultural arquitetado pelo CPC, a confluência de elementos do dis-
curso nacionalista atrelados ao cosmopolitismo da bossa nova, que,
posteriormente, conformariam a chamada Música Popular Brasileira.
Artistas e intelectuais,15 atraídos pela missão revolucionária
do CPC, se engajaram rapidamente no projeto que pretendia desen-
cadear, por meio da cultura, um processo de conscientização política
que, supostamente, conduziria a sociedade brasileira a uma grande
transformação social.16 Ao analisar o documento intitulado Manifesto
do CPC, redigido por Carlos Estevam Martins em 1962, Marilena Chauí
(1984, p. 90) critica a maneira equivocada como os intelectuais e ar-
tistas ligados ao movimento pretendiam se constituir como a van-
guarda do povo. Segundo ela, ao assumirem a condição de dirigentes
do processo histórico que – supostamente – conduziria as massas à
efetiva participação política, os intelectuais lançaram mão de uma es-
tratégia maniqueísta na qual o povo, com sua produção cultural “tos-
ca e desajeitada”, fruto de uma “sensibilidade embotada”, não pode-
ria ser referência para sua própria conscientização política. Em lugar

15 No período em questão, na maioria dos casos é quase impossível desassociar essas


duas categorias.
16 Apesar das similitudes com a filosofia política gramsciana, os estudiosos da política
afirmam que, no período genealógico, os intelectuais do CPC ainda não haviam tido
contato com as ideias do filósofo sardo (FREDERICO, 1998, p. 277). A valorização
da cultura popular vinculava-se a um movimento de reação contra o imperialismo
cultural imposto pelos Estados Unidos aos países latino-americanos.
127

Euclides de Freitas Couto


da arte “genuinamente” produzida em seu próprio meio, as classes
menos favorecidas deveriam assimilar as expressões culturais pro-
duzidas pela “arte popular revolucionária” conformada a partir das
reelaborações realizadas pelos artistas engajados. Na tentativa de
produzir obras que fossem facilmente assimiladas pela população,
o CPC realizou trabalhos artísticos considerados de baixa qualidade
pelos próprios dirigentes do grupo. Numa demonstração de autocrí-
tica, Ferreira Goulart, um dos principais dirigentes do movimento,
declarou ao historiador Marcelo Ridenti (2000, p. 111) que o CPC ha-
via sacrificado valores estéticos em nome de sua tarefa política.
Além dos “sacrifícios” inerentes à proposta missionária, uma
das características presentes no repertório de ação política do CPC
era a proposta de diálogo interpares com outros artistas e intelectuais.
O Manifesto de 1962 conclamava a classe artística a participar do
projeto de conscientização política da população, oferecendo aos ar-
tistas duas escolhas que direcionavam suas trajetórias em sentidos
opostos. A primeira consistia em integrar-se à jornada revolucioná-
ria do CPC, o que exigia uma transformação radical: o novo artista
seria um sujeito histórico, politicamente engajado, com sua carreira
vinculada à missão de produzir arte para as massas. A outra possi-
bilidade seria continuar na trilha da alienação política, produzindo
arte “pequeno-burguesa” para as minorias, “ao sabor” dos “ventos
incertos da história”.
Toda a agitação cultural do início da década de 1960 pode ser
percebida como um reflexo da efervescência política por que passa-
va o país. A reorganização dos grupos políticos e suas ideologias, so-
mada à participação efetiva do Estado, estimulou a entrada de novos
atores no cenário político. A presença de um número considerável de
intelectuais nas atividades do CPC indicava que, assim como os artis-
tas, a intelligentsia brasileira se integrava ao projeto da esquerda na-
cionalista. A formação do Comando dos Trabalhadores Intelectuais
(CTI),17 entidade que reunia profissionais de diversos matizes ideo-
lógicos, além de fomentar um espaço para a discussão das questões
profissionais, possibilitou a organização de um foco de resistência

17 Czajka (2004, p. 46) sugere que a atuação ideológica do CTI acompanhava as


tensões políticas presentes no interior do PCB, como, por exemplo, a discussão dos
problemas nacionais paralelamente ao debate sobre a questão da emancipação
política do país no que o autor denomina de protoesfera pública.
128
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

à ditadura militar. O caráter combativo18 das publicações assinadas


por membros do CTI caracteriza o engajamento político assumido
pelos intelectuais19 como uma forma de expressão e reação da classe
à opressão desencadeada pelo regime militar.

2.2. Política e cultura na década de 1960

No início da década de 1960, a polarização ideológica presente


nas camadas mais atuantes da sociedade brasileira contribuiu para
alterar as formas de produção e apropriação cultural. Decorrente do
engajamento político do meio artístico, a ressignificação das expres-
sões culturais resultava, dentre outros fatores, da aproximação de
intelectuais e artistas aos temas presentes no cotidiano das massas.
Se observadas com atenção, as críticas às questões sociais deveriam
tomar como ponto de partida as situações reais que, em potencial,
“dramatizavam” os conflitos inerentes à sociedade. Em inúmeras
produções artísticas e literárias desse período, é notória a busca por
um diálogo direto com o povo por meio de temáticas que propunham
a reflexão política e a discussão dos valores morais e éticos a partir
da vivência de situações do cotidiano.
No início da década de 1960, as opções estéticas assumidas pe-
los “poetas engajados” são reveladoras das tensões ideológicas pre-
sentes no meio intelectual. Ao analisar a coletânea de poemas Violões
de Rua – publicada em 1963 nos “Cadernos do Povo Brasileiro”, sob
a responsabilidade do CPC –, Heloísa Buarque de Hollanda (1981, p.
20) demonstra que o ideal revolucionário destes poetas pautava-se,
substancialmente, na criação de vínculos de proximidade com o povo
brasileiro. A aproximação dos segmentos menos favorecidos repre-
sentava, no universo destes autores, uma espécie de solidariedade
espiritual nos moldes benjaminianos, que lhes conferia, simbolica-
mente, o direito de compartilhar dos mesmos sofrimentos e alegrias

18 Ver, por exemplo, a crônica intitulada “A hora dos intelectuais”, publicada pelo
jornalista Carlos Heitor Cony em maio de 1964. No texto, que ganharia feições de
um manifesto, o autor convoca os intelectuais a participarem da resistência contra a
repressão e o autoritarismo impostos pela ditadura militar. Ao denunciar uma série
de arbitrariedades cometidas pelos militares, o jornalista legitima os intelectuais
como a única classe capaz de organizar a resistência no país.
19 Temos como exemplos mais contundentes desta reação, na década de 1960, a arte
plástica engajada (FREITAS, 2004), o afloramento da imprensa alternativa (KUCINS-
KI, 2003), os festivais da canção, o cinema novo e o teatro engajado (FURTADO,
2004).
129

Euclides de Freitas Couto


das classes subalternas.20 No entanto, de acordo com os críticos literá-
rios, a artificialidade desse empreendimento conduziu tal projeto de
“engajamento artístico” rumo às armadilhas colocadas pela própria
dinâmica cultural:

Ao reivindicar para o intelectual ao lado do povo, não ape-


nas se faz paternalista, mas termina – de forma “adequada” à
política da época – por escamotear as diferenças de classes,
homogeneizando conceitualmente uma multiplicidade de con-
tradições e interesses. A necessidade de um “laborioso esforço
de adestramento à sintaxe das massas” deixa patente as dife-
renças de classe e de linguagem que separam o intelectual do
povo [...] A linguagem do intelectual travestido em povo trai-se
pelos signos de exagero e pela regressão estilizada a formas de
expressão provinciais ou arcaicas. (HOLLANDA, 1981, p. 19 )

A poesia engajada, como sinaliza a autora, padeceu diante das


ciladas colocadas pelo distanciamento socioeconômico entre o in-
telectual e o povo. As diferenças culturais presentes no imaginário
social das duas “classes” foram reforçadas, simbolicamente, pelos
aspectos linguísticos. Tal apartamento culminou numa produção
“artificial”, caracterizada por um “falso mimetismo”, o que se tra-
duziu na impossibilidade de se atingirem, consistentemente, os ob-
jetivos revolucionários da arte engajada. Todavia, Heloísa Buarque
de Hollanda (1981, p. 30) considera que, apesar deste fracasso (atri-
buído a incompatibilidades sociolinguísticas), a iniciativa destes
artistas, contraditoriamente, deu novo fôlego à produção cultural.
Espaços simbólicos como o teatro, o cinema e a música ampliaram
suas possibilidades de comunicação, favorecendo, assim, a dissemi-
nação das ideologias políticas dos grupos progressistas. Aos poucos,
a produção cultural foi sendo direcionada para uma audiência de ori-
gem social mais próxima à dos artistas. Com isso, intelectuais e estu-
dantes de classe média se tornaram o público consumidor da “cultu-
ra revolucionária”. Esses novos agentes protagonizariam momentos
singulares da arte engajada, como o espetáculo musical Opinião e os
Festivais da Canção promovidos pelas redes televisivas ao longo dos
anos 1960.

20 De autoria de Paulo Mendes Campos, o poema “Vivências” é uma peça emblemática


enquanto exemplo desses sentidos (HOLLANDA, 1981, p. 20).
130
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

2.3. A Copa de 1966: o clientelismo supera a paixão

O favoritismo da Seleção Brasileira, bicampeã do mundo em


1958 e 1962, não foi suficiente para lhe assegurar uma boa jornada
nos gramados ingleses em 1966. A vitória contra a Bulgária na partida
inicial não provocou entusiasmo nos cronistas da época: os dois gols
de “bola parada” denunciavam a falta de criatividade do meio-campo
brasileiro e a desorganização tática da equipe (DIÁRIO DE MINAS,
13 jul. 1966, p. 12a). Não por acaso, os canarinhos foram eliminados
ainda na primeira fase da disputa, com derrotas para os selecionados
da Hungria e de Portugal.
No mundial de 1966, a preparação física, a obediência aos no-
vos desenhos táticos e a organização extracampo configuraram-se
como novos paradigmas, verdadeiros divisores de água do futebol
contemporâneo. A consagração do futebol-arte no mundial do Chile
(1962) lançara um novo desafio aos europeus: os brasileiros só po-
deriam ser superados pelos mais avançados métodos científicos a
serviço do esporte. No decorrer da década de 1960, foram desen-
volvidos na Europa novos métodos de treinamento físico e de va-
riação tática. Admildo Chirol, responsável pela preparação física da
Seleção Brasileira em 1970, salientava, logo após a Copa de 1966, que
seria impossível para um jogador brasileiro “correr” os 90 minutos
de jogo no ritmo imposto pelos adversários europeus. Segundo ele,
seria preciso implantar um novo modelo de treinamento físico, ain-
da desconhecido pela maioria dos profissionais da Educação Física
brasileira. O próprio Vicente Feola, treinador da seleção, reconheceu
as deficiências da preparação física implementada na campanha da
Inglaterra:

O que eles têm hoje – e nós não – é um fôlego extraordinário.


É preciso um treinamento perfeito para que uma equipe pos-
sa correr noventa minutos, no mesmo ritmo, nesses campos
úmidos e fofos. Nesta Copa, jamais poderíamos nos igualar em
preparo físico aos ingleses, alemães, portugueses, húngaros e
russos. Eu esperava que estivesse sendo feito um trabalho me-
ticuloso nesse sentido. Pensava que, na época da estréia, tivés-
semos uma equipe noventa por cento preparada para os duros
embates do campeonato. (MANCHETE, 13 ago. 1966, p. 13a. )
131

Euclides de Freitas Couto


Além da inferioridade no quesito – condicionamento físico –, o
fracasso brasileiro em 1966 foi atribuído também à desorganização
na fase preparatória para a Copa, assim como aos conchavos políti-
cos que marcaram a gestão da CBD naquele período. A convocação
de 45 jogadores três meses antes do mundial, além de provocar críti-
cas e desconfianças por parte da imprensa,21 causou enorme emba-
raço ao treinador Vicente Feola. Cedendo às pressões políticas, João
Havelange, presidente da CBD, atendeu aos caprichos dos cartolas e
dirigentes das federações estaduais, que viam na Seleção Brasileira
a possibilidade de valorizar seus respectivos jogadores. Para contor-
nar a situação, a comissão técnica dividiu os convocados em três gru-
pos de trabalho que rapidamente foram identificados pela imprensa
como os titulares, os reservas e os “degolados”. Estes últimos, na
eleição dos jornalistas, representavam aqueles que seriam cortados
da lista de 22 jogadores que embarcariam para a Inglaterra.
As críticas não pararam por aí. Os acordos políticos firmados
por João Havelange também previam, para a etapa de preparação,
a hospedagem da Seleção Brasileira em diversas cidades turísticas
– ou que oferecessem centros de treinamento – localizadas no inte-
rior dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.22 Neste
período, o número excessivo de deslocamentos realizados pela de-
legação impossibilitou a adaptação dos jogadores aos gramados e
à rotina de treinamentos, bem como provocou o desgaste físico dos
atletas (TOSTÃO, 1997, p. 50). Tal como nos mundiais anteriores, a
seleção de 1966 tornara-se uma espécie de troféu nas mãos dos po-
líticos brasileiros. Repleto de jogadores consagrados como Djalma
Santos, Belini, Pelé e Garrincha, o selecionado despertava grande
interesse por onde passava. Os políticos locais “disputavam” a pre-
sença da delegação em suas cidades, tendo em vista a possibilidade
de divulgar o potencial econômico e turístico de suas respectivas
localidades. Afinal, a visita da seleção era garantia de visibilidade nos
veículos de comunicação:

21 Como exemplos, temos a crônica intitulada “Os pecados mortais de Havelange”


(FOTO ESPORTE, ano II, n. 16, p. 4) e a entrevista de Paulo Machado de Carvalho
concedida à revista Manchete (6 ago. 1966, p. 18-19), assim como outras matérias
publicadas nos principais jornais do país entre os meses de abril e agosto de
1966.
22 A saber: Niterói e Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro; Caxambu e Lambari, em
Minas Gerais; e Serra Negra, no estado de São Paulo (MANCHETE, 14 maio 1966, p.
12b).
132
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

Figura 12 – Preparação para a Copa de 1966


Fonte: MANCHETE, 20 maio 1966, p. 14-15.

Como exemplo, temos um artigo da revista Manchete no qual o


texto, veiculado junto à imagem das montanhas que circundam a ci-
dade de Teresópolis, enfatiza as potencialidades naturais que justifi-
cavam a escolha do município como local de treinamento da Seleção
Brasileira:

Em Teresópolis, os craques da seleção brasileira encontraram


o clima ideal para os exercícios físicos e os jogos-treinos de
preparação para a Copa do Mundo. É que ali quando amanhece
ou quando a tarde começa, o ruço que esfuma as montanhas
ao longe é uma simulação quase perfeita do fog londrino. E a
temperatura é sempre fria. (MANCHETE, 20 maio, 1966, p. 15)

Além das semelhanças climáticas com a cidade de Londres,


o artigo também enfatiza as belezas naturais da região, prestando
grande contribuição para o marketing turístico da cidade fluminense.
Em Minas Gerais, a passagem da seleção pelas estâncias hidro-
minerais de Caxambu e Lambari fomentou na imprensa a publicação
de reportagens com o mesmo teor comercial. Em uma delas, o jornal O
Diário publicou uma matéria na qual o prefeito da cidade de Caxambu,
Abel Murta de Gouveia, divulgava o repasse de verbas no valor de
133

Euclides de Freitas Couto


CR$3 milhões à comissão organizadora da Seleção Brasileira como
contribuição ao abatimento às despesas de permanência dos craques
brasileiros na bela instância sul-mineira (O DIÁRIO, 24 abril 1966).
Já em Belo Horizonte, as atenções da imprensa se voltaram para
Tostão. Após a confirmação do seu nome na lista dos convocados,
o único representante de Minas Gerais na seleção23 foi pessoalmen-
te despedir-se do governador Israel Pinheiro, fato destacado pelo
Diário de Minas.

Figura 13 – Tostão despedindo-se do governador Israel Pinheiro (1966)


Fonte: DIÁRIO DE MINAS, 17 jun. 1966, p. 12a.

No período da Copa de 1966, apesar de sua indiscutível impor-


tância política, a Seleção Brasileira ainda não havia sido incorporada ao
audacioso projeto ideológico que, nos anos subsequentes, seria colo-
cado em marcha pelos militares. Ao examinar os periódicos que circu-
lavam na época,24 é possível verificar que, ao contrário dos seus ante-
cessores, Castelo Branco não se apresentava em público no momento
das transmissões radiofônicas dos jogos, demonstrando um comporta-
mento discreto com relação às questões esportivas. Em um dos raros
momentos em que a imagem do presidente da República foi associada
à seleção de 1966, ele aparece ao lado dos jogadores em uma solenida-
de oficial, organizada no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, nos
momentos que antecederam o embarque da delegação para a Europa.

23 Apesar de ter nascido na cidade de Três Corações, situada no sul do estado, Pelé
não era considerado mineiro pela crônica esportiva. Desde o período de sua
infância, no interior de São Paulo, os cronistas o consideravam um representante
“nato” do futebol paulista.
24 Para as análises formuladas neste item foram consultados os seguintes periódicos
circulantes no ano de 1966: os jornais Diário de Minas, Estado de Minas, O Diário e O
Estado de S. Paulo, além das revistas Foto Esporte, Manchete, O Cruzeiro e Realidade.
134
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

Figura 14 – Tostão despedindo-se do presidente Castelo Branco (1966)


Fonte: DIÁRIO DE MINAS, 15 jun. 1966, p. 1.

Em 1966, apesar da grande mobilização social em torno dos


jogos da seleção, o “Marechal”, assim como o alto-comando militar,
não se envolveu diretamente nas questões políticas que permeavam
os bastidores da CBD. A recente luta travada contra a democracia po-
pulista parece ter inibido o presidente de incorporar ao seu arcabou-
ço simbólico traços característicos associados a seus antecessores.
Octavio Ianni (1988, p. 59) lembra que o modelo político-econômico
adotado pelo grupo castelista, que assumira o poder em 1964, orien-
tava-se por princípios racionais que deveriam nortear a gestão eco-
nômica e a condução do processo político. De inspiração weberiana,
essa reorientação política apregoada por Roberto Campos, minis-
tro do Planejamento e Coordenação Econômica do governo Castelo
Branco, rejeitava o nacionalismo, a política de massas e as formas de
personificação do poder. A figura de Castelo Branco – e, mais ainda,
as figuras dos membros da alta cúpula militar – não possuía caris-
ma nem penetração popular; assim, a credibilidade do novo governo
deveria ser alcançada por meio do progresso econômico e da paz
social, frutos da organização, da responsabilidade e da eficácia do
novo regime.

Neste contexto, o futebol – identificado como um dos elemen-


tos mais expressivos da propaganda populista – não atraía, enquanto
elemento simbólico, o interesse do grupo castelista. Na verdade, a
dissociação entre a imagem do presidente e o esporte bretão, assim
135

Euclides de Freitas Couto


como a aparente neutralidade demonstrada em relação às questões
futebolísticas, representava o distanciamento pessoal de Castelo
Branco e seus ministros dos símbolos anteriormente requisitados
pelos políticos populistas que se sucederam no poder desde 1930.
A omissão da presidência da República nas questões esportivas
abriu lacunas para que os adversários políticos de João Havelange se
mobilizassem contra a suposta desorganização no comando técnico
da seleção. Pouco antes do embarque da equipe brasileira para a
Europa, o editorial do jornal O Estado de S. Paulo pedia a urgente
intervenção de Castelo Branco na CBD (O ESTADO DE S. PAULO, 14
jun. 1966, p. 11). Além de pleitear vagas para os jogadores paulistas, o
longo editorial justificava-se citando a universalização do esporte, a
importância assumida pelo futebol no Brasil e a indiferença do Poder
Público para com a campanha do tricampeonato, o que, segundo o
texto, era “um crime imperdoável”:

É tão grande o que se acha em causa que a Nação espera do Sr.


Presidente da República que use toda a sua autoridade para
que, em tempo, seja corrigida a irresponsabilidade com que
um soba qualquer, impelido pelos mais inconfessáveis propó-
sitos, se dispôs a manchar a história do futebol brasileiro. (O
ESTADO DE S. PAULO, 14 jun. 1966, p. 11)

Reconhecendo a legítima autoridade do presidente Castelo


Branco para intervir nas questões esportivas, os políticos paulistas,
utilizando o mesmo jornal, expressavam toda a sua insatisfação com
a direção do futebol brasileiro. No início daquele ano, o desligamento
do dr. Paulo Machado de Carvalho25 da diretoria da CBD provocara
grande rebuliço entre os cartolas de São Paulo – a discordância com
relação à indicação de Vicente Feola para o cargo de treinador da se-
leção deixou insustentável a situação do cartola dentro da entidade.
Os reflexos de sua saída foram sentidos principalmente pelos dirigen-
tes paulistas: habituados com o poder e o prestígio nos bastidores do

25 Carvalho acumulara experiência internacional comandando a delegação brasileira


nas jornadas vitoriosas do bicampeonato (1958 e 1962). Além de possuir amplo
conhecimento técnico acerca da logística que envolvia o futebol, o dirigente-em-
presário conduzia com muita habilidade os conflitos com a imprensa e os desen-
tendimentos entre os jogadores, no meio dos quais era muito respeitado.
136
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

futebol brasileiro, os bandeirantes tiveram que se contentar com as


concessões oferecidas pela presidência da confederação brasileira.
Embora a cisão entre João Havelange, então presidente da
CBD, e Paulo Machado de Carvalho, principal cartola do futebol de
São Paulo, houvesse fragilizado a direção técnica do futebol brasi-
leiro, os militares guardaram uma posição de aparente neutralida-
de. Após a precoce eliminação dos canarinhos, os paulistas, com o
apoio de políticos de vários estados, lançaram uma verdadeira cruza-
da contra João Havelange. O deputado Anísio Rocha, do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) de Goiás, propôs a abertura de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de apurar as
“causas” da derrota da seleção, além de investigar a aplicação dos re-
cursos federais que foram destinados à CBD para subsidiar as despe-
sas da campanha na Inglaterra (DIÁRIO DE MINAS, 20 jul. 1966, p. 2a).
Além da “caça às bruxas” promovida pelos adversários de
Havelange, o fracasso da Seleção Brasileira na Copa de 1966 também
causou grande agitação entre os políticos da oposição, que se aprovei-
taram do momento para lançar suas críticas contra o governo. Dentre
outros órgãos de imprensa, o jornal Diário de Minas publicou diversos
depoimentos proferidos pela oposição após a Copa do Mundo:

Políticos de expressão, ontem no Rio, afirmavam que a desclas-


sificação do Brasil na Copa do Mundo fatalmente determinará
sensíveis modificações no quadro político nacional, na medida
em que aumentará a frustração popular, provocada pelo ônus
da atual política econômico-financeira, frustração essa que po-
deria ser aliviada com uma vitória em Londres [...] O deputado
Hermógenes Príncipe, do MDB baiano, na Câmara distribuiu
declaração à imprensa atribuindo a culpa da derrota não aos
jogadores brasileiros. “Ao negativismo, às desesperanças, ao
empobrecimento e a infelicidade dos dias em que vivemos.” O
deputado Nelson Carneiro, também da Oposição, atribuiu as
derrotas do Brasil em futebol, em tênis, com Maria Ester Bueno
e à perda do título dos galos por Eder Jofre ao estado de ânimo
nacional, provocado pela atual situação política. (DIÁRIO DE
MINAS, 20 jul. 1966, p. 2a)

Estes comentários podem ser considerados como um fragmen-


to extremamente representativo do contexto político da época, no
137

Euclides de Freitas Couto


qual, por meio do futebol, se reproduzem as tensões, os embates e
as críticas impostas ao sistema de governo. Eles traduzem, com certa
fidelidade, os impactos sentidos nas esferas política e econômica,
decorrentes das transformações impostas pelo grupo castelista.26 De
maneira astuta, os oposicionistas, representados pela sigla do MDB,
buscavam associar o fracasso da Seleção Brasileira (e do esporte
brasileiro, de forma geral) ao conturbado momento político decor-
rente da institucionalização do regime militar.
Na mesma matéria, ao publicar os comentários dos ministros
militares, o periódico procura contrabalancear a discussão política:

O ministro Juraci Magalhães fez as seguintes declarações a


propósito do jogo do Brasil e Portugal: “Devemos estudar os
erros cometidos, para escolher melhor caminho para o futuro.
Perder uma competição esportiva não é deprimente para ne-
nhum povo. Haveremos de recolher do episódio os ensinamen-
tos necessários para aumentar o prestígio do futebol brasileiro
no mundo”. (DIÁRIO DE MINAS, 20 jul. 1966, p. 2a)

Os “panos quentes” colocados pelo ministro da Justiça eviden-


ciam a preocupação da alta cúpula militar com o futebol brasileiro.
Na mesma matéria, o general Costa e Silva, então ministro da Guerra,
lamentava a desclassificação da seleção e afirmava que os brasi-
leiros agora “tinham a obrigação de torcer para Portugal” (DIÁRIO
DE MINAS, 20 jul. 1966, p. 2a). A inesperada eliminação da Seleção
Brasileira na primeira fase da competição havia causado distúrbios
por todo o país. Na Cinelândia, região central da cidade do Rio de
Janeiro, um tradicional ponto de encontro de torcedores, ocorreu o
enforcamento simbólico da comissão técnica brasileira:

26 No plano político, os comentários publicados no jornal Diário de Minas refletem


as tensões produzidas pelo Ato Institucional no 3 (AI-3), decretado em fevereiro de
1966. O decreto anulava as eleições para o poder executivo municipal nas cidades
consideradas de “segurança nacional”. Nessas localidades, os prefeitos seriam no-
meados pelos governadores que, por sua vez, seriam eleitos pela Assembleia Legis-
lativa (SKIDMORE, 2004, p. 107). No âmbito econômico, o clima de insatisfação com
o governo Castelo Branco extrapolava as paredes dos órgãos de representação
política. O arrocho salarial, o aumento na carga tributária e, sobretudo, o fim da
estabilidade no emprego, consequências diretas do Programa de Ação Econômica
do Governo (Paeg), criaram um clima de grande antipatia popular pelo governo
(FAUSTO, 2002, p. 471; IANNI, 1977, p. 233).
138
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

Figura 15 – Enforcamento simbólico da diretoria e comissão técnica da CBD: Cinelândia,


Rio de Janeiro, julho de 1966
Fonte: Estado de Minas, 22 jul. 1966, 2ª seção, p. 2.

Em São Paulo, apesar do grande aparato policial montado na


praça da Sé, local onde se concentravam milhares de torcedores para
ouvir a transmissão radiofônica da partida entre Brasil e Portugal,
houve grande confusão, corre-corre e o disparo de tiros que feriram
dois torcedores. Além disso, registraram-se “quebra-quebras” e sa-
ques de casas comerciais em diversos pontos da cidade (ESTADO
DE MINAS, 20 jul. 1966, 2ª seção, p. 2). Para evitar incidentes com os
torcedores, o desembarque da seleção na Base Aérea do Galeão foi
organizado pelo Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e mobilizou
um enorme esquema de segurança que contou com o apoio de 400
homens.
Apesar da inoperância da presidência da República, os milita-
res reconheciam a importância do futebol para a população brasi-
leira. As derrotas da seleção haviam, indubitavelmente, agitado os
nervos da população; e o clima de insatisfação generalizada poderia
fomentar as condições ideais para uma revolta das classes popula-
res, descontentes com o arrocho salarial decorrente da política eco-
nômica do governo Castelo Branco. Sendo assim, os militares não
titubearam: após a posse do marechal Costa e Silva como presidente
139

Euclides de Freitas Couto


da República, em março de 1967, o futebol entraria novamente em
cena no Palácio do Planalto, tornando-se uma das prioridades do
“novo” governo.

2.4. A intervenção militar no esporte brasileiro

Alguns especialistas nos estudos sobre a história do futebol e


do período da ditadura militar27 afirmam que a conquista da Copa do
Mundo de 1970, realizada no México, foi resultado de um somatório
de esforços iniciado no governo Costa e Silva e concluído pelo gene-
ral Emílio Garrastazu Médici. Esse raciocínio indica que os militares,
ao vislumbrar o sucesso brasileiro em gramados mexicanos, busca-
ram associar a imagem da seleção ao seu aparato propagandístico.
Nesse sentido, o governo teria levado a cabo um sofisticado planeja-
mento, cujo objetivo era propiciar as melhores condições técnicas,
administrativas e organizacionais para os trabalhos dos profissionais
que dirigiam o selecionado brasileiro. Outros estudos, de cunho jor-
nalístico, atribuem o sucesso das “feras do Zagallo” às potencialida-
des individuais dos jogadores: eles pertenceriam à mais brilhante ge-
ração de futebolistas brasileiros, coroada nos gramados mexicanos
com exibições da mais refinada versão do “futebol-arte”. Este seleto
grupo dispensaria, portanto, esquemas táticos, técnicos e prepara-
ção física: ganhariam a Copa de qualquer forma; afinal, “jogavam por
música”. Menos preocupado com as razões da conquista, há também
o minucioso trabalho realizado pelo historiador Carlos Fico (1997)
que, ao investigar a construção do otimismo pela propaganda militar,
sugere que a vitoriosa campanha brasileira em 1970, bem como os
jogadores que dela participaram, serviu, de fato, como elemento cen-
tral para a produção de diversas peças publicitárias veiculadas pelos
governos militares. Em se tratando de uma investigação histórica,
todas essas abordagens são bastante úteis. Elas nos indicam alguns
caminhos a percorrer, trilhas que podem evidenciar não apenas os
bastidores do futebol brasileiro no período em questão, mas também
as ações desencadeadas pelos militares no sentido de obter o con-
trole político e administrativo do esporte e se apropriar do espaço
simbólico promovido pelo futebol, transformando-o, especialmente

27 Referimo-nos especialmente às pesquisas de Castellani Filho (1991), Linhales,


(1996) e Couto (1999).
140
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

no início da década de 1970, em um dos elementos mais expressivos


da propaganda oficial.

Em dezembro de 1968, em audiência realizada no Palácio


do Planalto – quando recebeu o então presidente da CBD, João
Havelange, o diretor da entidade, brigadeiro Jerônimo Bastos, e al-
guns deputados – o presidente Costa e Silva foi enfático:

O Brasil não pode perder a Copa de 1970. Temos que ganhá-


-la através da disciplina, de muito treinamento, hierarquia
e patriotismo. [...] Temos que ter humildade. O jogador não
pode perder-se pelo personalismo, como é o caso do Jairzinho,
um jogador formidável, mas como ele dribla, meu Deus.
Precisamos nos disciplinarmos para o jogo coletivo em bene-
fício da seleção, como fazem os ingleses e alemães. (JORNAL
DOS SPORTS, 4 dez. 1968, p. 3)

Além de evidenciar a importância adquirida pelo futebol, as


palavras do presidente da República revelam também o novo para-
digma político que se instaurava naquele período: o rígido controle
da sociedade, que se distendia no disciplinamento das mentes e dos
corpos, deveria abarcar igualmente o futebol (FLORENZANO, 1998,
p. 13-14). Os jogadores incumbidos de representar a pátria deveriam
assumir um novo papel social: o de soldado-jogador – disciplinado e
militarizado; portanto, obediente às ordens dos seus superiores. De
repente, as credenciais referendadas apenas seis anos antes com a
conquista do bicampeonato no Chile – o futebol-arte e o individua-
lismo; as características “sobrenaturais” atribuídas aos brasileiros
– tornaram-se obsoletas. Com efeito, o fracasso da seleção na Copa
da Inglaterra deixara brechas para que os militares, assim como os
jornalistas,28 lançassem suas críticas contra a organização, os méto-
dos de treinamento e o estilo de jogo brasileiro.
Nessa mesma audiência, o presidente Costa e Silva, diante dos
apelos de João Havelange sobre a necessidade de investimentos fi-
nanceiros na preparação da Seleção Brasileira, mostrou-se “muito
solícito”, afirmando que não pouparia esforços para ajudar o futebol
brasileiro; e, como uma das primeiras medidas, incumbiu o cartola
de presidir o grupo de trabalho que iria redigir o novo projeto da
28 “Torcida xinga comissão e aplaude jogadores”, DIÁRIO DE MINAS, 20 jul. 1966, p. 13.
141

Euclides de Freitas Couto


Loteria Esportiva. De forma descontraída, o general afirmou que a lo-
teria “daria tanto dinheiro ao futebol, que posteriormente, o próprio
presidente da república iria a CBD para tomar empréstimos”. Com
intuito de estabelecer um controle ainda maior sobre a equipe, Costa
e Silva também sugeriu a formação de uma Seleção Brasileira per-
manente, que seria custeada com os recursos advindos da Loteria
Esportiva. A proposta consistia em formar uma espécie de time ofi-
cial do governo que excursionaria para disputar jogos promocionais
durante todo o calendário esportivo do país. Entretanto, a ideia foi
descartada imediatamente por João Havelange. Após o cartola levan-
tar uma série de argumentos desfavoráveis sobre a criação da “sele-
ção permanente”, o presidente saiu convencido da inviabilidade de
tal empresa (JORNAL DOS SPORTS, 4 dez. 1968, p. 3).
A preocupação do marechal Costa e Silva com o futuro do fu-
tebol no Brasil, sobretudo com a preparação da Seleção Brasileira
para a Copa do México, não era um ato isolado de mais um presi-
dente apaixonado pelo jogo da bola. O futebol, assim como outros
esportes, constituía-se naquele momento como um dos setores es-
tratégicos do Estado. Mauro Betti (1991, p. 100) lembra que, a par-
tir de 1968, os governos militares elevaram os esportes à “razão de
Estado”, inserindo-o, juntamente com a Educação Física, na planifi-
cação estratégica do governo. Assim, as políticas educacionais e
esportivas deveriam se adequar ao modelo econômico definido no
Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico. O estudo das legis-
lações que vigoraram especialmente após o ano de 1968 indica que a
Educação Física escolar passou a ser considerada prioridade para os
governos militares. No bojo dos acontecimentos pós-AI-5, a chamada
“linha dura” do governo recorreu a diversas estratégias que visavam
ao controle ideológico da população. Além de tornar obrigatório o
ensino da Educação Física em todos os níveis de ensino, o Decreto nº
69.450, de 1º de novembro de 1971, recomendava a iniciação esporti-
va a partir da 5ª série do 1º grau, estabelecia três aulas semanais para
o ensino médio e ainda fixava os seguintes objetivos para a prática da
Educação Física escolar:

Consolidação de hábitos higiênicos; desenvolvimento corporal


e mental harmônico; melhoria de aptidão física; despertar do
espírito comunitário; despertar da criatividade; despertar do
senso moral e cívico; emprego útil do tempo de lazer; perfeita
142
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

sociabilidade; conservação da saúde; fortalecimento da vonta-


de; aquisição de novas habilidades; estímulos às tendências de
liderança e implantação de hábitos sadios.29

A análise contextualizada do documento permite perceber que


o uso da Educação Física como meio de promoção de atividades es-
portivas confiava à escola a função de oferecer atividades que ocu-
passem o tempo livre do aluno. Além de fomentar a vocação espor-
tiva nos jovens brasileiros, caberia à Educação Física desenvolver
princípios como a hierarquia e a disciplina, bem como promover a
“implantação de hábitos sadios”. Betti (1991, p. 106) acredita que,
com estas medidas, a Educação Física escolar assumiu um novo sta-
tus, já que ao esporte foi atribuída a dupla função da formação moral
e esportiva. Segundo ele, sob o prisma da aptidão física e da projeção
nacional via esporte de alto rendimento, a incorporação do conteúdo
esportivo no ensino do 1º e 2º graus visava à formação de novos ta-
lentos que seriam direcionados para as representações olímpicas e
para o futebol.
Como veremos adiante, a tentativa de “enquadrar” o espor-
te não se restringiu à esfera educacional: a partir da promulgação
da Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969, tornou-
-se competência da União legislar sobre as normas relativas ao des-
porto. Após realizar o Diagnóstico da Educação Física e Desportos no
Brasil,30 o governo Costa e Silva institucionalizou a Política Nacional
de Educação Física e Desportos com a criação do Departamento de
Educação Física e Desporto (DED), órgão que passou a centralizar as
ações do setor (LINHALES, 1996, p. 170). No novo modelo tecnocráti-
co, pautado no dirigismo absoluto, os militares passaram a controlar
diretamente as ações político-administrativas no esporte, incorpo-
rando-o à lógica das relações políticas vigentes.
A ênfase no esporte de alto rendimento prevista pela nova po-
lítica cumpria um duplo papel: além de objetivar a projeção nacio-
nal nas competições internacionais, o alto investimento na infraes-
trutura esportiva do país daria continuidade à lógica clientelística

29 BRASIL, Decreto-lei nº 69.450, 1º nov. 1971 apud BETTI, 1991, p. 104.


30 Essa ação foi realizada em conjunto pela Divisão de Educação Física (DEF), órgão
submetido ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), e pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), órgão ligado ao Ministério do Planejamento e Coorde-
nação Geral (MPCG) (LINHALES, 1996, p. 167).
143

Euclides de Freitas Couto


de redistribuição de recursos, prática que contribuiu sobremaneira
para a manutenção do poder pelo regime militar.31 Nessa mesma lógi-
ca, os cargos de chefia do Conselho Nacional do Desporto (CND) e da
Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidades anteriormen-
te influenciadas pelas ações clientelísticas das federações, passaram
a ser ocupados pelo oficialato. Essa medida acabou rompendo com
a hegemonia dos grandes clubes e, simultaneamente, reproduziu, no
espaço das relações políticas que permeavam o futebol brasileiro, o
embate Arena versus MDB.32

2.4.1. A militarização da Seleção Brasileira

As mudanças anunciadas pela nova política esportiva rapida-


mente chegaram à Seleção Brasileira. Em 1969, com exceção do treina-
dor João Saldanha, dos preparadores físicos Admildo Chirol e Carlos
Alberto Parreira, e do médico Lídio Toledo, toda a comissão técnica foi
militarizada.33 O projeto para a Copa do México incluía não apenas a
mudança dos nomes que coordenavam o futebol brasileiro, mas, prin-
cipalmente, previa uma ruptura total com a mentalidade até então vi-
gente. Franco Júnior34 avalia que a militarização da Seleção Brasileira
teria sido uma resposta dada pela linha dura à desorganização e à
ausência de uma preparação física adequada na Copa da Inglaterra,
apontadas como razão do fracasso brasileiro na competição.
A nova comissão técnica formada pelos militares foi incumbida
da missão de empregar na Seleção Brasileira os métodos mais avan-
çados de treinamento físico e técnico, mesmo que para isso fosse

31 De acordo com as análises de Cardoso (1973, p. 67-68), no período pós-64 o pacto


firmado entre o Estado e a burguesia industrial permitiu que o empresariado con-
seguisse, por meio de mecanismos de pressão direta, os financiamentos e investi-
mentos necessários à expansão dos seus capitais.
32 O almirante Heleno Nunes, além de presidir a CBD, tornara-se um dos líderes
mais importantes da Aliança Renovadora Nacional (Arena). Suas ações na esfera
esportiva respeitavam, sobretudo, suas prerrogativas partidárias e as diretrizes
políticas definidas pela alta cúpula militar. Na condução da presidência da CBD,
o Almirante enfrentou uma ferrenha oposição dos políticos e cartolas ligados
ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB) (Cf. CORREIO DA MANHÃ, 17 mar.
1970, p. 12).
33 A saber, chefe da delegação: major-brigadeiro Jerônimo Bastos; segurança: major
Roberto Guaranyr; supervisão técnica: capitão Cláudio Coutinho; preparação físi-
ca: capitães Kleber Camerino e Benedito José Beonetti; preparação de goleiros:
subtenente Raul Carlesso. (Cf. FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 142)
34 FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 142.
144
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

necessário dispor de grandes investimentos públicos. A condição fí-


sica dos jogadores, apontada como o “calcanhar de Aquiles” da equi-
pe no Mundial anterior, tornou-se uma das principais preocupações
da nova comissão. Não por acaso, Admildo Chirol, responsável pela
preparação atlética, trouxe para a seleção um método revolucioná-
rio implantado com sucesso no Botafogo, desde 1966. A metodologia
consistia em treinamentos individualizados que seriam aplicados de
acordo com as necessidades de cada jogador. Para colocar em práti-
ca o novo modelo, Chirol enumerou uma lista de exigências, dentre
as quais solicitava à CBD a contratação de mais três preparadores
físicos para auxiliá-lo; e também que a confederação destinasse um
período de pelo menos três semanas para a aclimatação dos jogado-
res ao México, onde, segundo ele, a altitude poderia oferecer danos
ao condicionamento físico dos atletas.35
Além do aperfeiçoamento da preparação física, a militarização
da CBD visava, em um sentido mais amplo, ao disciplinamento da
Seleção Brasileira. O futebol, tido como o esporte mais representa-
tivo do povo brasileiro, também deveria traduzir nos gramados me-
xicanos os ideais formulados pela Doutrina de Segurança Nacional.36
Ordem, disciplina, desenvolvimento e harmonia deveriam ser elemen-
tos incorporados ao comportamento e ao estilo de jogo da seleção de
futebol. A imagem do jogador boêmio, desligado e fanfarrão, muito
comum no início dos anos 1960, não combinava com a nova ideologia
disseminada pelos militares. Era preciso “transformar a mentalidade
do jogador brasileiro”, dizia o presidente Costa e Silva em 1968.
Para esmiuçarmos esse contexto, é fundamental mencionar
que tais transformações requisitadas pelos militares no comporta-
mento do jogador de futebol não se iniciaram pela Seleção Brasileira.
Logo após a eliminação do Brasil da Copa da Inglaterra, em 1966, de-
sarrolou-se no campo futebolístico um amplo debate sobre a neces-
sidade de se incorporarem novos métodos de treinamento às escoli-
nhas dos clubes brasileiros. Entre os cronistas esportivos, técnicos
de futebol e profissionais da Educação Física, ganhava unanimidade
a ideia da implantação de um modelo conhecido como “preparação

35 Cf. “Admildo Chirol: venceu nova mentalidade”, JORNAL DOS SPORTS, 25 jun. 1970, p. 8.
36 Um dos itens da doutrina, conhecido como estratégia de ação indireta, visava inserir
a propaganda psicológica com o objetivo de controlar ideologicamente as grandes
massas. O futebol, especialmente no período da Copa do Mundo de 1970, tornou-se
um dos símbolos mais requisitados pela Agência Especial de Relações Públicas (Aerp)
para a promoção da imagem do governo (ALVES, 1989, p. 39; FICO, 1997, p. 103).
145

Euclides de Freitas Couto


global”. O novo método aliava aos treinamentos técnicos e táticos a
disciplina e a preparação psicológica, conteúdos que deveriam ser
desenvolvidos por um profissional da área.
Tangenciando essa questão, José Paulo Florenzano tece impor-
tantes comentários sobre a função das “escolinhas” de futebol no
final da década de 1960:

Nas escolinhas de futebol, os técnicos do comportamento cui-


dam para que cheguem à equipe principal jogadores normali-
zados e bem formados do ponto de vista físico, técnico, tático
e disciplinar. O quanto antes o futuro jogador começar a ser in-
vestido pelos mecanismos disciplinares, tanto melhor. Desde
cedo, o corpo deve ser exercitado para obedecer, sentir prazer
na preparação física, cumprir horários, em suma, treinado pe-
las práticas de poder que buscavam a produção do corpo dócil
e útil. (FLORENZANO, 1998, p. 40)

Ao recorrer às ferramentas teóricas foucaultianas, o autor con-


sidera que as inovações implantadas pelo técnico Zagallo e pelo pre-
parador físico Admildo Chirol nas categorias de base do Botafogo se
inseriam no padrão disciplinador que tomava, naquele contexto, um
contorno estrutural na sociedade brasileira. Florenzano acredita que
a conjuntura pós-golpe ensejava a militarização dos clubes e da sele-
ção nacional. Tais mudanças, entretanto, deveriam ser iniciadas nas
categorias de base, ou seja, na formação do novo atleta. No caso da
seleção de 1970, composta em sua maioria por jogadores veteranos,
um trabalho de “reciclagem” dos atletas deveria ser proposto pela
nova comissão técnica.
No entanto, a surpreendente contratação do jornalista João
Saldanha para o posto de técnico da Seleção Brasileira de futebol –
contratação a cargo do então presidente da CBD João Havelange –
veio na contramão dessa lógica. Além de possuir estreitas ligações
com o PCB, Saldanha era um dos combatentes mais engajados na luta
contra a corrupção e contra as relações clientelísticas que envolviam
a CBD e as federações estaduais de futebol. Durante a Copa de 1966,
ele havia dirigido uma série de críticas à comissão técnica e ao próprio
presidente João Havelange; por isso, a divulgação do seu nome como
o novo comandante do selecionado brasileiro surpreendeu grande
parte da imprensa da época. Na opinião do jornalista Luiz Mendes,
146
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

a contratação de Saldanha não passou de uma estratégia maquiavé-


lica utilizada por Havelange. Como o cartola almejava a presidência
da Fifa, as contínuas críticas proferidas por João Saldanha poderiam
manchar sua imagem no plano internacional. Assim, trazer o inimigo
para perto eliminaria seu poder de fogo (SIQUEIRA, 2007, p. 286).
Embora fosse importuno, Saldanha era extremamente compe-
tente e popular. Muito mais do que sua experiência como treinador do
Botafogo entre os anos de 1957 e 1959, suas análises sempre seguras
e certeiras sobre as partidas de futebol o credenciavam para o posto
mais alto da comissão técnica. O “João sem medo”, apelido dado pelo
amigo Nelson Rodrigues, não possuía compromissos com nenhum
clube, tampouco com as federações. Ele convocaria aqueles que, em
sua opinião, fossem os melhores representantes do futebol brasileiro.
Esse fato corrobora a tese levantada por Luiz Mendes, na medida em
que o descomprometimento político37 de João Saldanha também co-
laborava para diminuir as pressões políticas sobre Havelange. Com o
jornalista “destemperado” no comando técnico da seleção, o cartola
poderia colecionar benefícios políticos ao dividir as responsabilida-
des nas convocações dos jogadores, nas escolhas dos locais de trei-
namento e até mesmo na definição dos jogos amistosos da seleção.

Se a contratação de Saldanha atendia aos interesses políticos


do presidente João Havelange, ela também poderia favorecer os
grupos de esquerda. Na interpretação do jornalista André Siqueira
(2007, p. 288), João Saldanha só havia aceitado o convite para “tra-
balhar para o governo militar” porque tinha consciência de que po-
deria utilizar politicamente o cargo. A competência de João Saldanha
foi confirmada durante as eliminatórias para a Copa do México, em
1969. Apresentando um estilo de jogo envolvente e ofensivo, a sele-
ção venceu as seis partidas que disputou. Além da classificação para
a Copa, os canarinhos recuperaram a confiança da torcida que lotava
o Maracanã nos dias dos jogos. O otimismo tomou conta novamente
do futebol brasileiro. Até mesmo os setores mais conservadores da
imprensa se renderam ao sucesso de Saldanha.38

37 Em sua primeira entrevista concedida como treinador da Seleção Brasileira, João


Saldanha, sem a prévia autorização do presidente João Havelange, retirou um pa-
pel do bolso e leu para os jornalistas os nomes dos jogadores convocados para as
equipes titular e reserva, cujas escalações ele acabara de fazer.
38 Na edição de 27 de agosto de 1969, a revista Veja, estampando uma foto de Tostão
em campo, veiculava a seguinte manchete de capa: “O novo futebol brasileiro”. Na
147

Euclides de Freitas Couto


Como já era esperado por muitos, seu temperamento forte
e seu engajamento ideológico impediram que Saldanha dirigisse a
Seleção Brasileira no Mundial do México. Após a classificação da
equipe para a Copa, no intuito de conhecer os sistemas táticos dos
adversários, o treinador viajou para a Europa, onde assistiu a diver-
sos jogos das seleções daquele continente. Na oportunidade, foi con-
vidado a participar de programas de televisão e conceder entrevis-
tas aos jornais. Os europeus queriam conhecer o homem que havia
devolvido o brilho ao futebol brasileiro. João Saldanha não titubeou
e usou o espaço cedido pela imprensa europeia para denunciar a re-
pressão no país: “Saiu no Le Monde, no Observer e no Excelsior, do
México. Repeti a cantilena de torturas, presos, desaparecidos. Era o
técnico do Brasil. Todo o mundo queria me ouvir. Não perdi a chan-
ce” (SIQUEIRA, 2007, p. 320).
Apesar da voracidade das declarações, sua popularidade pa-
recia ter criado uma espécie de escudo protetor ao seu redor: os
militares optaram por não demiti-lo naquele momento. Apenas cui-
daram para que a censura não permitisse que as declarações fossem
reproduzidas no Brasil, onde a repercussão causaria grandes danos
à imagem do regime.
A partir desse incidente, o governo militar ampliou os cuida-
dos com a Seleção Brasileira. Alguns jornalistas atribuem as nomea-
ções do major-brigadeiro Jerônimo Bastos, como chefe da delegação
brasileira, e do capitão Cláudio Coutinho, como auxiliar de prepara-
ção física, a uma estratégia que visava, simultaneamente, fiscalizar
as ações e desestabilizar a imagem do técnico.39 No entanto, tais
esforços poderiam ser dispensados: João Saldanha não articulava
silenciosamente suas ações. Tanto que, em viagem ao México, em

mesma edição, a matéria intitulada “O novo futebol”, utilizando-se de comparações


com a preparação realizada para a Copa de 1966, fazia uma série de elogios à orga-
nização da Seleção Brasileira, assim como ao técnico João Saldanha (VEJA, 27 ago.
1969, p. 13-17).
39 O major-brigadeiro Jerônimo Bastos, que possuía fortes relações pessoais com o
ministro da Educação Jarbas Passarinho, ficaria, supostamente, encarregado de
levar diretamente à cúpula militar informações sobre a conduta de Saldanha. Pas-
sarinho, por sua vez, ficou conhecido por suas ingerências no futebol. Em diversas
oportunidades, durante a preparação para a Copa de 1970, concedeu declarações à
imprensa nas quais criticou o trabalho de Saldanha, exteriorizou suas preferências
táticas e até sugeriu a convocação de jogadores (JORNAL DOS SPORTS, 10 abril,
1960, p. 4). Em relação ao capitão Cláudio Coutinho, corria à boca pequena, nos
bastidores da esquerda, o boato de que ele havia colaborado com a repressão,
chegando a participar de seções de tortura (SIQUEIRA, 2007, p. 323).
148
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

janeiro de 1970, quando foi assistir ao sorteio das chaves da Copa,


ele, mais uma vez, proferiu suas declarações bombásticas. Ao ser
questionado por um repórter sobre a existência de algum tipo de
tortura no Brasil, rasgou o verbo: “Alguma não. Muita. E terrível”
(SIQUEIRA, 2007, p. 328). Durante a entrevista, Saldanha ainda rela-
tou as arbitrariedades da ditadura contra membros do PCB e o clima
de intranquilidade que vivia o país após o AI-5.

Desta vez suas declarações caíram como uma bomba em


Brasília. Os militares estavam decididos a retirá-lo do comando da
seleção. O historiador Gilberto Agostino avalia que havia entre os
membros da cúpula militar o grande temor de que, durante a Copa
do México, diante dos holofotes de toda imprensa mundial, João
Saldanha chegasse com uma lista de presos políticos que estariam
sendo torturados no Brasil (AGOSTINO, 2002, p. 160). Os membros
da recém-criada Aerp (Agência Especial de Relações Públicas) tam-
bém temiam que a vitória na Copa fosse creditada a Saldanha, nome
que carregava consigo todo o simbolismo da esquerda brasileira.40
Contudo, diante de todas as circunstâncias, a estratégia para demiti-
-lo deveria ser muito bem articulada. O “João sem medo” gozava de
ampla popularidade junto às massas. A imprensa nacional e europeia
apontava o Brasil como o grande favorito à conquista do título no
México. Assim, os militares optaram por minar as forças do treina-
dor, atacando-o com boatos e provocações, principalmente por meio
dos veículos de comunicação. A ideia consistia em irritá-lo para que,
com o tempo, seu próprio temperamento explosivo o levasse a come-
ter algum ato intempestivo, cujas consequências seriam canalizadas
para justificar sua demissão.
Em pouco tempo, o complô que visava derrubar o treinador al-
cançou seus objetivos. Acuado pela interferência cada vez maior de
Jerônimo Bastos nos assuntos da seleção e pelos constantes boatos
que o colocavam contra Pelé e o General Médici,41 Saldanha perdia,
paulatinamente, o controle do grupo de jogadores com o qual tanto

40 Essa interpretação é corroborada pelo historiador Gilberto Agostino (2002, p. 161)


e pelo jornalista André Siqueira (2007, p. 323).
41 Após avaliar os exames médicos dos jogadores, Saldanha declarou que Pelé era
míope e que deveria procurar tratamento oftalmológico. No entanto, parte da im-
prensa superdimensionou a declaração, dizendo que Pelé ficaria no banco de res-
ervas num jogo amistoso contra a Argentina porque estaria cego (SIQUEIRA, 2007,
p. 346-347).
149

Euclides de Freitas Couto


se identificara nos meses anteriores. Contudo, acredita-se que o fato
que mais desgastou a imagem de João Saldanha perante a população
brasileira não possuía relação direta com os militares. Após tomar
conhecimento de uma declaração de Yustrich, técnico do Flamengo,
à revista O Cruzeiro, João Saldanha, de arma em punho, invadiu a
concentração da equipe rubro-negra para tirar satisfações com o trei-
nador. Após agredir dois funcionários do clube, Saldanha descobriu
que Yustrich não se encontrava naquele lugar. Apesar de a ausência
do treinador flamenguista ter minimizado as consequências do ato, a
imprensa não poupou críticas à atitude do técnico da seleção. Além
do Jornal dos Sports (Figura 16), diversos periódicos condenaram o
descontrole emocional de João Saldanha. Alguns deles colocaram em
xeque sua capacidade para dirigir a Seleção Brasileira.42

Figura 16 – Repercussão da invasão promovida por João Saldanha à concentração do


Flamengo
Fonte: JORNAL DOS SPORTS, 14 mar. 1970, p. 1.

De acordo com os levantamentos realizados pelo jornalista


André Siqueira (2007), aproveitando-se do momento de fragilidade
por que passava o treinador perante a opinião pública, a cúpula da
CBD arquitetou o golpe derradeiro contra João Saldanha: o presi-
dente João Havelange forçou o pedido de demissão de Antônio do
Passo, chefe da comissão técnica, que baseou sua decisão em incom-
patibilidades com o treinador, agravadas após o empate de 1 a 1 em
um jogo-treino contra a equipe do Bangu. Logicamente, a atitude de

42 “Para os torcedores Saldanha sempre foi maluco” (CORREIO DA MANHÃ, 14 mar.


1970, p. 11a.).
150
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

Passo, somada ao empate com a modesta equipe suburbana do Rio


de Janeiro, repercutiu negativamente na imprensa. Em 17 de mar-
ço, João Havelange convocou uma reunião na qual demitiu João
Saldanha.
Naquele tempo, assim como a posteriori,43 foram construídas
inúmeras interpretações na imprensa esportiva, sobre a conturba-
da passagem de João Saldanha pelo comando técnico da Seleção
Brasileira. Na maioria delas, é possível perceber que, apesar de todo
o desequilíbrio emocional demonstrado pelo treinador no curso dos
acontecimentos, as convicções ideológicas foram o fator decisivo
que levaram a sua queda. A escolha de Zagallo (então técnico do
Botafogo), homem “enquadrado” ao regime, como substituto de
Saldanha no comando técnico da seleção evidencia a preocupação
dos militares com a canalização política da Copa do México. Na co-
bertura dos sete jogos amistosos realizados pela Seleção Brasileira
sob o comando do novo treinador, percebe-se o apoio de grande
parte da imprensa esportiva aos novos métodos de treinamento im-
plantados, às novas táticas adotadas e, até mesmo, ao temperamen-
to do novo comandante da seleção.44 Naquela oportunidade, o ex-
-treinador do Botafogo possuía grande admiração por parte dos mi-
litares que compunham a comissão técnica: o chefe da preparação
física, Admildo Chirol, seu “braço direito” no ex-clube, e que man-
tinha fortes ligações com a Escola de Educação Física do Exército
(Esefex), foi um dos responsáveis por sua indicação para ocupar
o cargo de comandante da seleção. Assim, poucos meses antes da
Copa, Zagallo assumiu o selecionado brasileiro com o apoio e o res-
peito dos militares.

43 Naquele contexto, a imprensa pró-Saldanha tinha como principal representante


Nelson Rodrigues. Apesar das diferenças ideológicas que os separavam, a amizade
dos jornalistas ficou evidente após a “queda”, quando, por meio de suas crônicas,
Rodrigues saiu em defesa do amigo. Nos dias que precederam a demissão, outro
amigo, Carlos Drummond de Andrade, através do poema “Com camisa, sem camisa”,
fez um apelo à imprensa para que não houvesse mais perseguições a Saldanha
(JORNAL DO BRASIL, 14 mar. 1970, p. 7). Nos últimos anos, foram publicados,
majoritariamente por jornalistas, vários trabalhos biográficos sobre João Saldanha.
Consultamos, entre outros, as pesquisas de Manhães (2004), Máximo (2005) e
Siqueira (2007).
44 A título de exemplo, ver a matéria “A seleção dá show com jogo moderno” publicada
logo após a vitória dos titulares sobre os reservas em jogo-treino realizado no
Maracanã (JORNAL DOS SPORTS, 20 mar. 1970, p. 6).
151

Euclides de Freitas Couto


2.5. 90 milhões em ação: a Seleção Brasileira e a
propaganda oficial na Copa de 1970

A Copa de 1970 foi, notadamente, um dos momentos mais bem-


-sucedidos da história da propaganda oficial no Brasil. Não resta dú-
vida de que o êxito desta campanha publicitária não deve ser credi-
tado somente aos esforços do governo militar para aliciar o futebol a
sua comunicação, mas corresponde, obviamente, à competência do
trabalho desenvolvido pela comissão técnica e à qualidade individual
dos jogadores escalados.
Conforme já tratamos, desde 1968, no governo Costa e Silva,
os militares exteriorizavam suas preocupações com o futuro do fu-
tebol no país, especialmente com relação à Seleção Brasileira. A
reforma institucional que abarcou a esfera esportiva, assim como o
controle direto exercido sobre a equipe por meio da militarização
da comissão técnica, evidenciava a tentativa de cooptar o futebol
para o panteão de símbolos do regime.45 Todavia, percebemos que
a concretização dessa estratégia foi viabilizada, de fato, a partir da
decisão da Agência Especial de Relações Públicas (Aerp) de cana-
lizar as emoções promovidas pelo futebol em prol da propaganda
oficial.
Criada pelo Decreto no 62.119, de 15 de janeiro de 1968, a Aerp
iniciou suas atividades em meio a um clima de desconfiança por par-
te de algumas correntes da cúpula militar: os membros remanescen-
tes do grupo castelista, principalmente, mostravam-se relutantes em
aceitar a criação de uma propaganda oficial, dadas as possíveis seme-
lhanças com o modelo de propaganda adotado pelo DIP – a exaltação
do líder e a personificação do Estado eram fantasmas reminiscen-
tes da Era Vargas que deveriam ser afastados naquela conjuntura.
Contudo, a efetivação da agência apresentava-se como uma necessi-
dade imposta pela própria dinâmica dos acontecimentos que suce-
deram ao golpe. Afinal, o anunciado caráter transitório do governo
implantado pelos militares em 1964 não se concretizou em termos
práticos; e, apesar da sucessão permanente dos líderes, não havia
uma imagem formada deste governo (FICO, 1997, p. 93).

45 No campo da psicologia social, Tchakhotine (1967, p. 259) fornece uma interpre-


tação clássica acerca da função dos símbolos no processo de “condução” política
das massas. Segundo ele, os símbolos podem ser meios eficazes para aspirar e
inspirar as emoções das multidões, na medida em que fomentam o sentimento de
solidariedade e produzem, na maioria das vezes, efeitos excitantes sobre elas.
152
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

De acordo com os levantamentos realizados pelo historiador


Carlos Fico (1997), o primeiro trabalho requisitado à Aerp consistia
na criação de uma campanha publicitária cujo objetivo seria desviar
a atenção da população dos problemas econômicos que afligiam o
país. Na gestão de Hernani d’Aguiar, o responsável pela formação
da agência, buscou-se a valorização dos “fatos notáveis” do Brasil
por meio da criação de eventos promocionais.46 O futebol só entraria
definitivamente como uma possibilidade a ser explorada pela agen-
da publicitária dos governos militares após a nomeação do coronel
Octávio Costa para a direção da Aerp, no governo Médici, quando o
clima de repressão pós-AI-5 lança um grande desafio à propaganda
oficial: construir uma imagem positiva do governo em meio ao autori-
tarismo, à censura e às perseguições políticas. Diante dessa situação,
os propagandistas do governo optaram por desenvolver uma nova
retórica oficial:

[...] uma “estratégia retórica” que consistia em afirmar precisa-


mente o inverso que se tinha. Ernesto Geisel, no 10º aniversário
do Golpe de 1964, falou que a “semântica tortuosa dos demago-
gos transmudava o mal em bem e o bem e mal”; ele se referia,
naturalmente, aos inimigos do regime, mas é notável como o
enunciado pode ser relacionado a essa estratégia que os pro-
pagandistas do governo precisaram desenvolver. Segundo pa-
lavras de Octávio Costa em 1970, por exemplo, a comunicação
social no Brasil “não pretende fazer promoção e muito menos
propaganda e não só divulgar, mas dar seu quinhão de ajuda
para o entrelaçamento do caráter nacional”. (FICO, 1997, p. 95)

Objetivando despertar a atenção das grandes massas, as cam-


panhas publicitárias produzidas pela Aerp se travestiam de despo-
litizadas ao invocarem temáticas que apresentavam um teor educa-
tivo, como a limpeza urbana, a segurança no trânsito, a vacinação
das crianças e a exaltação dos valores nacionais.47 Por meio destas
campanhas, o clima de otimismo atribuído ao milagre econômico e

46 Sugeria-se, por exemplo, a criação de concursos para os jovens que mais se destacas-
sem nas escolas, o empregado mais eficiente dos órgãos públicos, o cidadão mais
idoso de determinada cidade etc (FICO, 1997, p. 93).
47 Dentre os elementos exaltados pelas peças publicitárias produzidas pela Aerp, de-
stacavam-se a valorização da família e o culto aos heróis e símbolos nacionais.
153

Euclides de Freitas Couto


percebido principalmente nas camadas médias e nas elites urbanas
deveria ser catalisado em prol da construção de uma imagem idealiza-
da do Brasil, cujos componentes pertenciam a um projeto de identi-
dade nacional encontrado em um tempo de longa duração: grandeza,
diversidade e harmonia das três raças. Nesse sentido, fazia-se neces-
sária a revalorização dos aspectos singulares presentes nesse pro-
jeto identitário. Desse modo, as imagens que remetiam ao futebol,
ao carnaval, à alegria e ao otimismo ganharam força nas campanhas
produzidas na década de 1970.
Na tarefa de disseminar suas ideologias às massas, a Aerp con-
tou efetivamente com o trabalho da imprensa “bajuladora”, tendo
como principal suporte a televisão, veículo que, segundo o próprio
Octávio Costa, era capaz de superdimensionar o impacto da mensa-
gem por meio dos seus recursos audiovisuais.48 A partir de fevereiro
de 1970, inúmeros “filmetes” publicitários produzidos pela Aerp come-
çaram a ser reproduzidos pelas emissoras de TV. Em um deles, o ideal
da união nacional é sugestionado pelo futebol:

Mas foi com o comercial divulgado em março de 1970, que


mostrava um gol de Tostão na Copa do Mundo, que eles real-
mente chamaram a atenção. A propaganda dizia que o futebol
e a vida se equivaliam: “o sucesso de todos depende da parti-
cipação de cada um”.49

A grande receptividade popular alcançada por essa peça des-


pertou a percepção dos publicitários do governo para o potencial
comunicativo do futebol. A identificação das massas com o esporte
tornava-o progressivamente um dos símbolos mais atraentes para o
governo; tanto que, paulatinamente, ele foi sendo incorporado pela
propaganda oficial como um dos bens simbólicos mais importan-
tes daquela época. Nos meses que antecederam a Copa do México,
as atenções da imprensa estavam todas voltadas para a Seleção
Brasileira, situação que despertou o governo para a necessidade de
conferir atenção especial ao futebol. No mundo dos publicitários não
foi diferente: a categoria apostava que o sucesso da seleção na Copa

48 Com o objetivo de ampliar a veiculação das propagandas oficiais na televisão, a


Aerp propôs a limitação do tempo das propagandas comerciais nas emissoras
brasileiras. (Cf. FICO, 1997, p. 102)
49 FICO, 1997, p. 103.
154
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

contribuiria substancialmente para a construção do clima de otimis-


mo disseminado pelas peças produzidas.
O primeiro passo tomado pela Aerp no sentido de resguardar
a imagem da Seleção Brasileira foi dado com a tentativa de legitimar
a substituição no comando técnico da equipe. A demissão do técni-
co João Saldanha, fato que aparentemente não denotava nenhuma
vinculação com a política, ganhara enorme repercussão nos corre-
dores da agência. Afinal, apesar do futebol medíocre apresentado
pela equipe brasileira nos amistosos do início de 1970 e do desgaste
provocado pelo episódio com Yustrich, João Saldanha havia classi-
ficado a “então desacreditada” seleção para a Copa. Além disso, o
novo contrato assinado com o Sistema Globo de Comunicação em
janeiro de 1970 permitia ao jornalista-treinador estabelecer um con-
tato direto com a população por meio das crônicas publicadas no
jornal O Globo e pelos comentários transmitidos pela rádio perten-
cente à empresa.
A escolha de Zagallo para assumir o comando da seleção de
futebol não chegou a surpreender a imprensa esportiva. No entanto,
além do suposto desentendimento com Pelé e com parte da comis-
são técnica, a CBD não havia dado explicações convincentes para a
demissão de João Saldanha. Foi nesse sentido que Aerp agiu rapi-
damente: encomendou ao Ibope uma pesquisa de opinião que visa-
va “aferir” a aprovação da população com relação à contratação do
novo técnico. A pesquisa, divulgada pela revista Placar e pelo Jornal
dos Sports, indicava a suposta preferência do público pelo novo trei-
nador. Em letras garrafais, a manchete do Jornal dos Sports destaca-
va: “O povo está com Zagalo” (JORNAL DOS SPORTS, 22 mar. 1970, p.
5). No texto ao qual remetia a manchete, o jornal publicou uma série
de resultados que indicavam, percentualmente, a percepção dos tor-
cedores com relação ao trabalho de João Saldanha à frente da sele-
ção, as opiniões acerca dos últimos resultados nos amistosos e, por
último, qual o nome mais indicado para assumir a Seleção Brasileira:
obviamente, Zagallo apareceu em primeiro lugar.
Nesse período, a Aerp também trabalhou intensamente para
associar a imagem de Pelé, o jogador mais popular do país, às reali-
zações do governo brasileiro. Ao lado do presidente Médici, Pelé foi
um dos maiores protagonistas da mídia brasileira durante o intervalo
de tempo que vai do período de preparação para a Copa do México
155

Euclides de Freitas Couto


até as comemorações relativas à conquista.50 Entre os meses de abril
e maio de 1970, Pelé foi convidado a participar de diversas solenida-
des oficiais, nas quais figurava ao lado do presidente da república
e dos ministros do governo. No início do mês de abril, o Ministério
da Fazenda sugeriu a criação do Fundo Pelé, uma espécie de arreca-
dação voluntária proposta à iniciativa privada que visava contribuir
para o Programa Nacional de Escolas de Comunidade. Ao chamar a
atenção para o fato, o Jornal dos Sports publicou uma foto de Pelé ao
lado do Ministro da Fazenda, Delfim Neto, com os seguintes dizeres:
“Pelé dá ajuda às crianças” (JORNAL DOS SPORTS, 3 abr. 1970, p.
5). Dando continuidade ao assunto, o mesmo jornal publicou, alguns
dias depois, uma fotografia de Pelé ao lado do ministro da Educação,
Jarbas Passarinho. No texto referente à reportagem, o ministro exal-
tava o nome do jogador pela iniciativa em prol da educação das
crianças carentes do país.51 Em 20 de abril de 1970, numa solenidade
composta por honrarias conferidas a grandes personalidades, Pelé
foi condecorado com a Ordem do Rio Branco.52 Além das imagens
divulgadas na televisão, a solenidade rendeu ao governo diversas fo-
tografias do “Rei do futebol” posando ao lado do presidente Médici e
dos ministros de Estado, os quais lhe assediavam pedindo autógra-
fos para os filhos.53
É importante mencionar que, a partir da Copa de 1958, quando
suas jogadas extraordinárias foram aplaudidas pelas plateias euro-
peias, Pelé também iniciou sua trajetória de pop star fora dos grama-
dos. Seu sucesso – consideravelmente ampliado, nos anos seguintes,
com a conquista do bicampeonato mundial pelo Santos (1962-1963)
– foi estrategicamente canalizado pela indústria de propaganda de
massa. Nos anos de 1960, sua figura representava a própria imagem

50 Essa afirmação pode ser verificada através da análise dos periódicos que circu-
lavam na época. Sobre essa temática foram consultados os seguintes periódicos:
os jornais Correio da Manhã, Estado de Minas, Jornal dos Sports, além das revistas
Placar e Manchete.
51 “Ministro recebe o plano do fundo Pelé”. JORNAL DOS SPORTS, 10 abr. 1970, p. 3.
52 Segundo o Ministério das Relações Exteriores, a Comenda da Ordem do Rio Branco
foi “instituída pelo Decreto n° 51.697, de 05 de fevereiro de 1963, com o fim de
galardoar as pessoas físicas, jurídicas, corporações militares ou instituições civis,
nacionais ou estrangeiras que, pelos seus serviços ou méritos excepcionais, se
tenham tornado merecedoras dessa distinção” (Disponível em: <http://www2.mre.
gov.br/Cerimonial/RioBranco/Regulamento-RB.htm> Acesso em: 8 fev. 2008).
53 “Pelé recebe sua comenda e abraços dos ministros”. JORNAL DOS SPORTS, 21 abr.
1970, p. 7..
156
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

do futebol e confundia-se com a representação (estereotipada; cons-


truída pelos estrangeiros) da identidade nacional brasileira, confor-
me sinaliza o antropólogo Luiz Henrique de Toledo (20045, p. 4).
José Miguel Wisnik (2008, p. 350) lembra que o processo de fu-
tebolização do mundo, iniciado a partir dos anos 1970, teve em Pelé o
seu principal ícone. Ao comercializar sua imagem para as principais
empresas do planeta, o “Rei do futebol” contribuía, simultaneamen-
te, para a divulgação de produtos e do próprio futebol, uma vez que
a associação da sua imagem ao esporte era quase instantânea. No iní-
cio da década de 1970, com a popularização mundial da TV, Pelé per-
correu o globo por meio de peças publicitárias que exibiam, desde
refrigerantes, até os mais sofisticados eletrodomésticos fabricados
na época. A International Advertising Association, organização que
monitora a comunicação em todo o mundo, considera que Pelé é o
homem que possui o maior número de aparições em peças publicitá-
rias no século XX, tornando-se, portanto, o maior garoto-propaganda
do planeta.
Assim, no início de 1970, quando os publicitários da Aerp de-
cidiram transformar Pelé no garoto-propaganda da seleção, sua ima-
gem já era amplamente conhecida em todo o país. Para além de uma
simples identificação pessoal, o craque representava, naquele con-
texto, a continuidade do projeto de conciliação racial iniciado por
Gilberto Freyre ao longo da década de 1930 e por Mário Filho, na dé-
cada de 1940. Exteriorizada principalmente nas crônicas desses es-
critores, a tentativa de respaldar a identidade brasileira por meio dos
talentos excepcionais exibidos pelos jogadores negros mantinha seu
fôlego nos anos 1970. Entretanto, ao invés das raramente registradas
acrobacias de Leônidas da Silva, a “arte do futebol” – reunida em um
só jogador de habilidade incomparável – era agora disseminada em
diversos ângulos, por todos os meios conhecidos de divulgação. Pelé
tornara-se um ícone do futebol e da comunicação.
A Aerp também tentou canalizar a representatividade simbó-
lica da imagem de Pelé ao divulgar, por meio da imprensa, a notícia
de uma suposta ameaça de sequestro do “Rei do futebol”. No perío-
do que compreende a última semana do mês de março e a primeira
semana de abril de 1970, diversos jornais do país noticiaram a des-
coberta, no México, de um suposto plano para sequestrar Pelé du-
rante a Copa do Mundo. O fato, que veio à tona após a prisão de um
guerrilheiro venezuelano, supostamente ligado a uma organização
157

Euclides de Freitas Couto


de esquerda latino-americana, foi amplamente divulgado no Brasil.
No cerne desses acontecimentos, algumas organizações de esquerda
instaladas no país54 buscavam se organizar financeiramente com o
propósito de iniciar a luta revolucionária contra a ditadura. Todavia,
as estratégias violentas destinadas a esse fim encampavam ações
que eram, substancialmente, repudiadas pelos meios de comunica-
ção. Em alguns episódios – como os assaltos a bancos, empresas e
residências de políticos, em que ocorriam morte ou ferimento de
civis – a repercussão negativa dada pela imprensa contribuía para
manchar a imagem dos grupos opositores perante a opinião pública
(RIDENTI, 1993, p. 111). A Aerp aproveitou esse clima de criminaliza-
ção das organizações de esquerda para lançar o nome Pelé como o
alvo dos supostos sequestradores revolucionários:

Figura 17 – Suposta ameaça de sequestro a Pelé em Manaus


Fonte: JORNAL DOS SPORTS, 4 abril 1970, p. 1.

Em Manaus, local onde se realizou um dos sete amistosos da


Seleção Brasileira que precederam o embarque para o México, a
Aerp divulgou que um forte esquema de segurança havia sido monta-
do para proteger Pelé e os demais jogadores brasileiros do ataque de
terroristas (JORNAL DOS SPORTS, 4 abril, 1970, p. 5). Naqueles anos,
a região da Amazônia era conhecida como um “território perigoso”
onde, em meio aos conflitos entre garimpeiros, seringueiros e tribos

54 Segundo Ridenti (1993, p.111), são elas: Ala Vermelha do Partido Comunista do
Brasil (ALA), Ação Libertadora Nacional (ALN), Comandos de Libertação Nacional
(Colina) e Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
158
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

indígenas, a baixa densidade demográfica facilitava o esconderijo de


grupos guerrilheiros pertencentes a diversas facções da esquerda
latino-americana (GASPARI, 1993, p. 406). Naquelas circunstâncias, a
ameaça a Pelé, “fomentada” pela Aerp, colocava em risco não apenas
a segurança de um jogador de futebol, mas, principalmente, do maior
símbolo do esporte no país, um verdadeiro “patrimônio nacional”.
Evidentemente, o clima de intranquilidade criado tinha o objetivo de
atingir as organizações de esquerda do país, que seriam prontamen-
te responsabilizadas por qualquer incidente envolvendo a Seleção
Brasileira.55 No calor dos acontecimentos, Pelé ainda declarou à
reportagem do Jornal dos Sports que não temia a suposta ação dos
terroristas, uma vez que possuía grande confiança no esquema de
segurança montado para proteger a Seleção Brasileira.56
Após a conquista da Copa do México, a imagem do “Rei do fute-
bol” permaneceu associada às realizações do governo. Seja empres-
tando seu nome para estádios, ruas e edifícios públicos, ou atuando
como garoto-propaganda de campanhas educativas veiculadas du-
rante a década de 1970, Pelé participou intensamente dos bastidores
políticos do país. Inserido nesse métier, ele soube capitalizar o seu
prestígio para barganhar aos governantes ações que promovessem o
bem-estar social e a valorização da profissão de jogador de futebol.
Nas várias audiências em que foi recebido pelo presidente Médici,
Pelé quase sempre trazia na pauta uma reivindicação coletiva dos
jogadores, conforme pode ser percebido pela manchete estampada
pelo Jornal dos Sports “Médici aprova os pedidos do Rei Pelé”:

A aposentadoria do jogador profissional, a concessão de pos-


tos de venda da Loteria Esportiva aos campeões do mundo,
o Imposto de Renda dos jogadores e a situação financeira do
Santos foram os principais assuntos tratados na audiência que
o Presidente Médici concedeu ontem pela manhã a Pelé, Carlos

55 Ações dessa natureza ocorreram com certa frequência durante o período da


ditadura militar. Num episódio bastante divulgado pela imprensa, um militar morreu
após a explosão de um artefato no Rio de Janeiro em abril de 1981. De acordo com o
jornalista Élio Gáspari (O GLOBO, 24 out. 1999, p. 8), enquanto acontecia um show
da cantora Elba Ramalho no auditório do Riocentro, duas bombas explodiam nas
proximidades do pavilhão: uma, perto da casa de forças, sem causar danos; outra,
no estacionamento, no colo de um sargento do Exército que estava dentro de um
automóvel da marca Puma. Além do sargento, que faleceu, também se envolveu no
incidente um capitão que servia no DOI-Codi do I Exército.
56 “Pelé não tem medo de sequestradores”. JORNAL DOS SPORTS, 05 abr. 1970, p. 3.
159

Euclides de Freitas Couto


Alberto, Athlé Jorge Curi e o General Osmã Ribeiro de Moura.
Pelé e Carlos Alberto trataram da aposentadoria, assunto que
já haviam abordado, numa audiência em Porto Alegre. Queriam
também esclarecimentos sobre a Loteria: foram informados de
que os tricampeões serão dispensados da caução exigida aos
concessionários. Pelé também havia falado com o Presidente
sobre o Imposto de Renda. Alegou que o profissional pode
ganhar muito numa temporada e pouco na seguinte, quando
tem que pagar o imposto anterior. Pediu a isenção do imposto,
que é o desejo de seus companheiros, mas essa reivindicação
pode não ser aceita. Entretanto, o Presidente encaminhará ao
Ministro da Fazenda o estudo do assunto. O Sr. Athlé Curi, pre-
sidente do Santos, disse que a situação econômica do Santos
é a melhor do mundo, mas a financeira não é boa. Afirmou que
o mesmo ocorre com os demais clubes. Como causa citou a
convocação de astros do Santos para a seleção. Desfalcado,
o Santos não teve condições de realizar rendosas excursões.
(JORNAL DOS SPORTS, 24 jul. 1970, p. 8 )

Como indica a reportagem, ao fazer uso do seu prestígio junto


ao presidente da República, Pelé reivindicava direitos e privilégios
para sua classe profissional. No interior da mesma lógica clientelís-
tica em que se operava a relação Pelé-Médici, atuavam, como coad-
juvantes, os cartolas e outros jogadores de menor expressão, como
Carlos Alberto e Dadá Maravilha.
Durante o ano de 1970, a imagem do presidente Médici foi
exaustivamente associada ao futebol. Tanto na imprensa escrita
como na televisão, construía-se um discurso que buscava associar
a imagem do governante ao clima de euforia decorrente das vitórias
brasileiras. Suas constantes aparições nos estádios para assistir aos
jogos da seleção, assim como seus encontros com Pelé, contribuí-
ram, paralelamente, para ampliar a difusão de sua imagem e estreitar
seu relacionamento com os jogadores. Diante das câmeras de tele-
visão, a aparente simplicidade e a simpatia do presidente eram re-
forçadas pela simbologia do torcedor de futebol. Ao desempenhar
este papel, Médici buscava incorporar à sua imagem características
emotivas altamente significativas para o povo brasileiro que, aliadas
à conjuntura econômica, contribuíam para a construção de um clima
de otimismo no país:
160
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

Uma das técnicas mais eficientes da AERP consistiu em asso-


ciar futebol, música popular, presidente Médici e progresso
brasileiro. Médici era excelente material para tal campanha.
Adorava posar de pai e era fanático por futebol. A AERP explo-
rou as duas preferências. (SKIDMORE, 1988, p. 223)

Médici participou ativamente dos eventos ligados à Copa do


México. Durante o período de preparação, assistiu à maioria dos jogos
amistosos realizados pela seleção, declarou suas preferências táticas
e chegou, inclusive, a tecer comentários sobre a escalação da equipe.
Após a conquista do tricampeonato mundial, diversas cerimônias ofi-
ciais foram organizadas com um duplo objetivo: celebrar o grande fei-
to e, paralelamente, divulgar a imagem de país vencedor. Novamente,
a figura do presidente dividia o espaço com os craques da seleção – o
Jornal dos Sports anunciava em sua primeira página: “Médici e o povo
recebem em lágrimas os tricampeões” (JORNAL DOS SPORTS, 24 jun.
1970, p. 1). O Correio da Manhã destacava: “Médici já decretou feria-
do nacional” (CORREIO DA MANHÃ, 23 jun. 1970, p. 10). Numa das
fotografias mais emblemáticas do período, o presidente levanta a taça
Jules Rimet ao lado do capitão da Seleção Brasileira, Carlos Alberto
(Figura 18):

Figura 18 – Capitalização simbólica do tricampeonato de futebol


Fonte: JORNAL DOS SPORTS, 24 jun. 1970, p. 3.

Esta imagem ganhou destaque nos principais jornais brasilei-


ros, chegando a ser veiculada também pela imprensa internacional.
A representação da taça, elemento potencialmente simbólico, nas
161

Euclides de Freitas Couto


mãos do presidente da República resgatava, no momento da glória,
os mecanismos coletivos de identidade nacional. Historicamente
construído desde a Era Vargas, o sentimento de brasilidade vincu-
lado ao futebol poderia ser reanimado nos grandes feitos da Seleção
Brasileira. Diante da sinergia criada entre o povo, o presidente e a
seleção de futebol, as legitimidades do governante e do próprio re-
gime militar pareciam ser objetos completamente inquestionáveis.
Logo após a conquista do tricampeonato, utilizando um tom bastante
emotivo, o presidente, em mensagem veiculada em rede nacional de
rádio e televisão, transfigurou-se para a condição de torcedor: ho-
mem simples, que se valia da conquista do futebol para desfrutar do
sentimento nacionalista compartilhado por todos os brasileiros:

“Como um homem comum, como um brasileiro que, acima de


todas as coisas, tem um imenso amor ao Brasil e uma crença
inabalável neste país e neste povo, sinto-me profundamente
feliz.” – disse ontem o Presidente da República, em mensa-
gem a todos os brasileiros. E acrescentou: “Nenhuma alegria
é maior no meu coração que a alegria de ver a felicidade de
nosso povo, no sentimento da mais pura exaltação patriótica.
[...] E identifico, na vitória conquistada na fraterna disputa es-
portiva, a prevalência de princípios de que nós devemos ar-
mar para a própria luta em favor do desenvolvimento nacional.
Identifico no sucesso de nossa seleção de futebol a vitória da
unidade e da convergência de esforços, a vitória da inteligên-
cia, da bravura, da confiança e da humildade, da constância e
da serenidade, da capacitação técnica, da preparação física e
da consistência moral. Mas é preciso que se diga, sobretudo,
que os nossos jogadores venceram porque souberam ter uma
harmoniosa equipe, em que, mais alto que a genialidade indi-
vidual, afirmaram a solidariedade coletiva. Neste momento de
vitória, trago ao povo a minha homenagem identificando-me
todo com a alegria e emoção de todas as ruas, para festejar, em
nossa incomparável seleção de futebol, a própria afirmação do
homem brasileiro”.57

57 “Médici enaltece a vitória como homem do povo”. JORNAL DOS SPORTS, 22 jun.
1970, p. 10, grifo nosso.
162
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

Na tentativa de canalizar o momento de euforia, a Aerp perce-


beu que a conquista esportiva poderia ser utilizada para recuperar os
sentimentos de coletividade, solidariedade e, sobretudo, de unidade
nacional. Chama a atenção a frase final da mensagem do presidente,
na qual o sucesso do futebol ganha contornos de um elemento basi-
lar, afirmador da identidade do “homem brasileiro”. A busca dessa
singularidade58 presente no imaginário futebolístico do país tornou-
-se, portanto, matéria fundamental para a construção da propaganda
oficial durante o ano de 1970.
Apesar de não admitirem que a agência tenha fomentado
o clima de euforia e otimismo por meio da paixão futebolística, os
dirigentes da Aerp concordam que a mobilização popular ocorrida
especialmente no período da Copa contribuiu sobremaneira para o
sucesso dos projetos publicitários do governo. Dentre eles, o coro-
nel Octávio Costa assumiu publicamente que a Aerp capitalizou o
momento de ufanismo, conforme podemos extrair do seu relato con-
cedido ao historiador Carlos Fico:

O que eu consegui fazer foi que a publicidade usasse isso. [...]


a AERP se beneficiou da vitória – temas da exaltação às qua-
lidades brasileiras, à nossa união, ao nosso talento, à nossa
força, à nossa capacidade de fazer, tudo isso é fato, era a onda,
era o mote, nós fomos a onda. Bom, uma frase que o Médici
disse, que os jornais publicaram, “Ninguém segura o Brasil”...
o Médici disse, o “Brasil, Potência Emergente” virou força das
circunstâncias. A exaltação musical do Miguel Gustavo e outras
coisas que apareceram, os plásticos [...] aquele triunfalismo foi
uma coisa absolutamente espontânea e também resultante da
ação publicitária. (COSTA, 18 jul. 1994, apud FICO, 1997, p. 137)

Além de apontar a constante exposição midiática da imagem


do presidente, as considerações de Octávio Costa confirmam as in-
tenções da agência no período pós-tricampeonato, quando a produ-
ção de peças publicitárias destinadas à exibição televisiva deu con-
tinuidade à exploração das imagens do triunfo brasileiro no México.

58 Referimo-nos especialmente à discussão presente no capítulo 1 deste trabalho. Os


argumentos ali apresentados indicam a ocorrência da sedimentação, na sociedade,
da interpretação freyriana que, ao atribuir ao futebol brasileiro as características
positivas da mestiçagem, o elege como um dos símbolos da identidade nacional.
163

Euclides de Freitas Couto


Em suma, a utilização política do futebol durante a Copa de
1970 exigiu do governo não somente a mobilização de um vasto apa-
rato publicitário em torno do esporte, mas também o controle das
instituições esportivas e jornalísticas com ele relacionadas. Ademais,
a militarização da comissão técnica, a substituição de João Saldanha
por Zagallo no comando da seleção e a cooptação de jogadores como
Pelé, símbolo maior do futebol no país, foram fundamentais para a
realização dos objetivos políticos traçados em 1968 pelo então presi-
dente Costa e Silva.

2.6. Política e futebol no pós-1970

Com a extinção da Aerp após a posse do presidente Geisel em


março de 1974, a publicidade oficial ganhou outros rumos. O novo
presidente considerava que a propaganda produzida pela agência
possuía apelos totalitaristas e, desse modo, não condizia com os
princípios ideológicos do “novo governo”. Entretanto, no início do
seu mandato, embora o presidente apresentasse uma postura discre-
ta, mantendo certo distanciamento da TV, a propaganda ideológica
continuou a ser disseminada pela imprensa escrita, especialmente
pelas revistas Manchete e Veja, cujas reportagens de teor bajulador
procuravam exaltar as realizações do governo, o crescimento econô-
mico e o “clima de liberdade política” que o país vivia.
A propósito, pesquisa realizada com os periódicos que circu-
lavam durante os períodos de preparação e disputa das Copas do
Mundo da Alemanha (1974), da Argentina (1978) e da Espanha (1982)
indica que houve uma mudança substancial na estratégia da propa-
ganda oficial no que diz respeito à utilização do futebol. Ao contrá-
rio de 1970 – quando, em qualquer banca de revistas, era possível
identificar imediatamente a imagem do presidente Médici ao lado
de um craque da seleção –, no vasto material levantado59 sobre os
períodos que compreendem as Copas de 1974-1978 (Geisel) e 1982
(Figueiredo), não foi possível observar a imagem do presidente da
República associada ao futebol. Essa constatação é duplamente re-
veladora: tanto sinaliza as mudanças na estratégia publicitária ofi-
cial quanto evidencia um deslocamento de sentido na cultura política
constituída nesse período. Em outras palavras: à exceção do gover-
no Castelo Branco, a associação da imagem do chefe de estado aos
59 Consultar a lista de fontes no final deste livro.
164
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

símbolos do futebol brasileiro tornou-se prática recorrente desde a


criação do DIP, em 1937; assim, do final dos anos 1930 até 1970, tanto
os governos de corte autoritário como os de linhagem democrática
recorreram ao mesmo artifício ideológico: associar a imagem de seus
líderes aos símbolos do futebol. Este fato, por si só, permite perceber
a importância do futebol espetáculo para a constituição de uma cul-
tura política caracterizada, justamente, pela conformação da imagem
do governante a partir dos símbolos da brasilidade emanados pelo
esporte. A existência de diferenças substanciais relacionadas aos sis-
temas de governo, às vertentes políticas e às ideologias partidárias
não impediu que o futebol espetáculo assumisse um papel singular em
diferentes configurações políticas e de poder, já que ele emprestou
sua simbologia tanto para a autopromoção da imagem do líder como
para a legitimação desses governos. No entanto, no período que com-
preende os dois últimos governos militares, o anúncio do processo
de redemocratização do país,60 assim como as mudanças impostas
pelo presidente Geisel nas diretrizes que norteavam a propaganda
oficial, acabou por afastar a simbologia futebolística do Palácio da
Alvorada.
No campo esportivo/futebolístico, percebia-se, ao longo dos
anos 1970, a ampliação do controle das entidades esportivas e a in-
tegração do futebol – e dos esportes, de maneira geral – aos proje-
tos estatais de maior envergadura, como o Programa de Integração
Nacional (PIN). Criada em 1969 pelo presidente Costa e Silva, a Loteria
Esportiva foi lançada no ano seguinte em meio ao clima de otimismo
que envolvia a Seleção Brasileira. O sucesso das arrecadações loté-
ricas contribuiu substancialmente para a captação de recursos para
a área esportiva no país. Os valores arrecadados61 possibilitaram a
ampliação do número de centros esportivos, escolas de Educação
Física, ginásios e praças esportivas. O investimento federal no espor-
te veio acompanhado de um forte apelo ideológico disseminado em
projetos como a “Campanha Nacional de Esclarecimento Esportivo”
(Cned), que visava convencer a população, especialmente os jovens,
a se interessar pela prática do esporte e das atividades físicas.

60 Sobre a “cuidadosa” condução do processo de abertura política no país, ver Skid-


more (1988, p. 321).
61 Cf. Decreto no 68.703/1971, que regulamenta a utilização de recursos da Loteria Es-
portiva (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto/1970-1979/
D68703.htm>. Acesso em: 7 fev. 2009).
165

Euclides de Freitas Couto


A disseminação da “mentalidade desportiva” no Brasil encon-
trou no futebol um dos seus principais sustentáculos; afinal, as maio-
res glórias esportivas do país foram alcançadas justamente pelo es-
porte mais praticado entre os brasileiros. Apesar do fato de a Seleção
Brasileira na Copa do México (1970) ser formada apenas por jogadores
que atuavam nas regiões Sul e Sudeste do país, o futebol possuía forte
identificação popular (especialmente no plano simbólico) em todas
as partes do território nacional, onde também se desenvolviam fortes
vínculos de pertencimento clubístico, além das inúmeras rivalidades
regionais. Foi neste contexto que ele foi integrado à ideologia do PIN:
a criação do Campeonato Brasileiro de Futebol em 1971 sinalizava as
intenções do governo federal em inseri-lo no rol dos instrumentos
capazes de realizar a integração nacional no plano sociocultural. No
bojo desta estratégia, a CBD não mediu esforços para ampliar a pe-
netração do futebol nas regiões consideradas longínquas e isoladas.
Assim é que, contando inicialmente com vinte equipes participantes,
o Campeonato Brasileiro, cuja representação se reduzia às regiões
Sul, Sudeste e Nordeste, foi gradativamente sendo ampliado: em 1979,
altamente “popularizado”, chegaria ao exorbitante número de 94 clu-
bes, representando quase todos os estados da Federação.
Na mesma proporção que o futebol ampliava sua abrangên-
cia territorial, crescia o interesse dos políticos: cartolas, governa-
dores, deputados e prefeitos disputavam abertamente as vagas no
Campeonato Brasileiro, os valores das arrecadações e, principalmen-
te, as verbas destinadas à construção de estádios. Com o “objetivo
de integrar todas as regiões ao Campeonato Brasileiro”, foram cons-
truídos, entre 1972 e 1975, trinta estádios por todo o país. Estratégias
dessa natureza, alavancadas por meio de consideráveis somas de
recursos públicos, dão mostras da pujança política adquirida pelo
futebol nos anos 1970. Personificada pelas ações paternalistas do
almirante Heleno Nunes, líder da Arena que também acumulava a
função de presidente da CBD, a dinâmica política do futebol acabou
se tornando fruto da lógica clientelística que conduzia os grandes
investimentos públicos no período militar, muito bem traduzida pela
máxima da época – “onde a ARENA vai mal, um time no Nacional” –
recordada por Gilberto Agostino (2002, p. 163).
Nas outras duas Copas do Mundo que se realizaram durante
os anos 1970, a Seleção Brasileira, cada vez mais militarizada, sentiu
o peso da renovação que ocorreria por toda a década. Na Copa da
166
Capítulo 2 – Futebol no regime autoritário: cultura e política

Alemanha, em 1974, com a aposentadoria dos seus principais ídolos,


Pelé e Tostão, os remanescentes da seleção de 70 não conseguiram
manter o mesmo nível de competitividade, tampouco o brilhantismo
visto nos estádios mexicanos. A imprensa brasileira – que, desde o
período de preparação, via com ressalvas o trabalho de Zagallo –,
após a eliminação do Brasil nas semifinais, em jogo contra a Holanda,
acusou o técnico de incompetente e “retranqueiro” (MANCHETE, 13
jul. 1974, p. 8).
Na Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina, apesar do
bom futebol apresentando pelos “soldados” comandados pelo capi-
tão Cláudio Coutinho, a Seleção Brasileira sofreu as consequências
de manobras extracampo orquestradas pela ditadura militar daque-
le país. O general Jorge Rafael Videla, cuja inspiração político-fute-
bolística guardava incríveis semelhanças com o presidente Médici,
após travar uma longa batalha contra grupos de direitos humanos
internacionais,62 havia conseguido realizar a Copa em seu país. No
entanto, a eminente possibilidade de eliminação dos argentinos da
fase final levou o presidente-general a lançar mão de suas práticas
autoritárias também no campo esportivo. Em um complô arquiteta-
do em parceria com o então presidente do Peru, Francisco Morales
Cerruti, os dois governantes convenceram os bons jogadores perua-
nos a permitir que a seleção da Argentina lhes aplicasse uma golea-
da, o que classificaria a equipe anfitriã e eliminaria o Brasil, conforme
relata o sociólogo argentino Pablo Alabarces:

El triunfo por seis goles contra Perú em la rueda semifinal, que


permite el paso de Argentina a la final desplazando a Brasil,
es reiteradamente calificado como producto de um acto de
corrupción, de negociaciones gobierno a gobierno, de sobornos
masivos; esta possibilidad, que la memoria de la dictadura
alimenta, impide incluso el simple goce de um triunfo deportivo
¿legítimo? (ALABARCES, 2008, p. 125)

62 Às vésperas da Copa da Argentina, grupos ligados à Anistia Internacional organi-


zaram o Comitê pelo Boicote da Organização da Copa do Mundo de Futebol (Coba),
cuja mobilização pretendia sensibilizar os líderes dos países classificados para
boicotarem a Copa da Argentina. O Coba foi responsável pela publicação de mani-
festos em diversos jornais europeus, que denunciavam a tortura e execução de mil-
hares de militantes de esquerda em todo o território argentino (AGOSTINO, 2002,
p. 175; ALABARCES, 2008, p. 124-125).
167

Euclides de Freitas Couto


O fato, conhecido na imprensa esportiva como “a maior vergonha
das Copas do Mundo”, revelou em âmbito global os sentidos políticos
assumidos pelo futebol na América Latina: de um lado, a sobreposição
do espírito esportivo pelo autoritarismo, insinuando as arbitrariedades
cometidas no país; de outro, a alucinação coletiva dos mais de 100 mil
argentinos que, indiferentes à armação ocorrida nos bastidores, vibra-
vam no Monumental de Nuñes com a conquista do título mundial.
Capítulo 3

A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Porque falo o que penso e antes penso no que vou falar e sei o
que devo e posso falar, sou muito visado, muito criticado. Não sei
se pela barba, pelo cabelo, por deter meu próprio passe ou por
ter a cabeça no lugar. Só tem uma coisa: não abro mão de nada
disso. Eu falo mesmo. E também assumo a responsabilidade de
meus atos.

Afonsinho, Folha de S. Paulo, 1973.

Ao longo deste capítulo, são analisadas as diferentes formas de


manifestação política presentes no universo do futebol brasileiro du-
rante os anos do regime militar. Nesse período, de maneira singular,
pudemos observar uma gradativa militarização do futebol brasileiro.
No âmbito institucional, tal processo foi desencadeado, entre outros
fatores, pelo controle estatal exercido sobre as entidades regulado-
ras do futebol: uma das principais estratégias levadas a cabo pelos
governos nas décadas de 1960 e 1970 consistia no preenchimento de
cargos técnicos, administrativos e operacionais – da seleção e das fe-
derações – com membros das Forças Armadas ou tecnocratas, todos
rigorosamente selecionados.1
Na esfera das relações sociais, a invasão dos militares no fu-
tebol brasileiro introduziu e incentivou uma variada gama de prá-
ticas autoritárias que se desenvolveram no comando da Seleção
Brasileira. Tais ações, aliadas ao processo de modernização da

1 A respeito da “invasão” da tecnocracia estatal no setor esportivo, consultar o


estudo elaborado por Linhales (1996), especialmente o subitem 4.2, intitulado
“Artimanhas do esporte burocrático-autoritário”.
170
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Educação Física,2 inspiraram e promoveram mudanças radicais tam-


bém nos principais clubes brasileiros: a partir de então, os modelos
de treinamento físico e técnico, a medicina esportiva, a nutrição e
a preparação psicológica deveriam somar esforços para a formação
e a manutenção do “atleta de futebol”. Paralelamente à especializa-
ção dos profissionais ligados ao futebol, o crescente enrijecimento
das regras disciplinares, que invadiam a rotina de trabalho e até a
vida privada do jogador, encontrava respaldo nos discursos oficiais
e, sobretudo, em grande parte da imprensa, legitimando, de fato, a
cristalização do ethos autoritário no futebol brasileiro.
Contudo, para a maior parte dos jogadores, tais mudanças
foram imperceptíveis. Somente em raras oportunidades3 eles se
organizaram coletivamente para lutar contra as práticas autoritá-
rias que balizavam a estrutura de trabalho dos clubes brasileiros.
Individualmente, no entanto, constatamos a presença de atitudes
dissonantes que evidenciavam o inconformismo, o descontentamen-
to e a rebeldia por parte de alguns dos grandes jogadores brasilei-
ros. Apesar de quase sempre solitários, esses agentes lançaram mão
de diferentes conteúdos, repertórios e estéticas para manifestar sua
contrariedade, fosse com relação à ordem social estabelecida, às
práticas autoritárias que se disseminavam no futebol ou ao mode-
lo político adotado pelo regime militar. Assim, o eixo norteador das
análises que empreendemos consiste em identificar e problematizar
tais manifestações, procurando compreendê-las no interior do am-
biente de rebeldia e contestação que permeou os anos da ditadura
militar no Brasil. O conteúdo político presente nas falas, atitudes e
nos gestos de atores como Afonsinho, Tostão e Reinaldo indica que
eles encontraram no espaço simbólico promovido pelo futebol uma
arena privilegiada para exteriorizar suas opiniões, difundir seus

2 Góis Júnior (2006, p. 123) salienta que, nesse período, o cenário acadêmico da Edu-
cação Física foi marcado pela transição entre os modelos de conhecimento empíri-
co e científico. Segundo ele, após a publicação, em 1968, da coletânea de artigos
intitulada Introdução à moderna ciência do treinamento desportivo, organizada pelo
professor Lamartine Pereira DaCosta, houve uma verdadeira revolução nos siste-
mas de treinamento esportivo no país. Tais mudanças foram rapidamente absorvi-
das pelo futebol profissional brasileiro.
3 Na década de 1970, uma das poucas manifestações coletivas de descontentamento
por parte de jogadores brasileiros ficou conhecida como o Manifesto de Glascow.
Durante uma excursão pela Europa, os jogadores da seleção, liderados por Piazza,
lançaram uma “lei do silêncio” em atitude de protesto por se sentirem “perseguidos”
pela imprensa até em seus momentos de folga. (Disponível em: <http://noticias.uol.
com.br/pelenet/porondeanda/ult2657u139.jhtm>. Acesso em: 7 abr. 2009).
171

Euclides de Freitas Couto


posicionamentos ideológicos e lutar por seus direitos individuais.
Neste sentido, o futebol espetáculo – ou melhor, o espaço de interlo-
cução criado em torno dele – serviu como um dos importantes cená-
rios nos quais se reproduziram os conflitos e as tensões que permea-
vam o imaginário político brasileiro.

3.1. O ethos autoritário no futebol brasileiro

Ao investigar o noticiário esportivo do período de quatro anos


compreendido entre as Copas do Mundo de 1966 e 1970, foi possível
perceber consideráveis transformações no universo do futebol bra-
sileiro. Visto por muitos como uma espécie de espaço sagrado no
qual, em uma abordagem straussiana, os ídolos carregavam consigo
a síntese das qualidades profundas da população, o futebol parecia
guardar certa imunidade às transformações que ocorriam na esfera
política. No entanto, conforme já mencionado, a partir da eliminação
precoce na Copa da Inglaterra, toda a organização administrativa,
os sistemas de treinamento, os modelos táticos e até mesmo o es-
tilo de jogo brasileiro foram colocados em xeque pelos militares. O
futebol-arte, eleito pelos cronistas esportivos do início dos anos 1960
como a maior representação da identidade nacional, perdia espaço
para novos paradigmas emergentes no velho mundo: o planejamen-
to, a preparação física e, principalmente, os inovadores padrões
táticos implantados pelas seleções de Portugal, da Inglaterra e da
Alemanha.4 Expressões como “Para vencê-los teremos que imitá-los”
e “É preciso mudar a mentalidade do jogador brasileiro” sinalizavam
as mudanças que a boa parcela da imprensa desejava ver aplicadas
ao futebol: somente uma radical transformação na organização es-
portiva e, principalmente, na postura dos jogadores faria com que o
Brasil retomasse a hegemonia do futebol mundial conquistada nos
anos anteriores. É interessante notar que este discurso, inicialmente
disseminado pelos veículos de comunicação, logo ganhou coro no
interior da caserna, como indicam as palavras do presidente Costa
e Silva: “A evolução do futebol tem sido mais rápida do que a do

4 Em entrevista publicada logo após a eliminação brasileira na Copa de 1966, João


Havelange, presidente da CBD, “assumiu publicamente” a culpa pelo fracasso nos
gramados ingleses. Segundo ele, a Seleção Brasileira não acompanhou as mudanças
ocorridas na preparação física e nos esquemas táticos, ambas promovidas pelas
equipes europeias, sobretudo após o bicampeonato conquistado pelos canarinhos
em 1962 (“João Havelange: Eu sou o culpado”, MANCHETE, 13 ago. 1968, p. 24a).
172
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

próprio país [...] Precisamos nos disciplinarmos para o jogo coletivo


em benefício da seleção, como fazem os ingleses e alemães” (JORNAL
DOS SPORTS, 04 dez. 1968, p. 3)
O discurso do chefe militar pode ser contextualizado no perío-
do em que, no interior da própria imprensa, se travava um caloroso
debate acerca do futebol no Brasil. Após a eliminação dos canari-
nhos, ou seja, a partir do segundo semestre de 1966, teve início entre
os cronistas a caça às bruxas na Seleção Brasileira. Dezenas de re-
portagens e crônicas denunciavam a falta de organização, o exces-
so de jogadores convocados na fase de preparação e a indecisão da
comissão técnica quanto à escalação do time titular. Entre os “con-
denados”, figuravam o técnico, Vicente Feola, o presidente da CBD,
João Havelange, e até mesmo Pelé – o “Rei do futebol” também não
fora poupado das acusações.5 Como ocorrera na derrota de 1950, a
perda do cetro na “terra da rainha” serviu para que novamente fosse
colocada em xeque a qualidade do futebol brasileiro e que fossem
apontados alguns vilões.
Num segundo momento, ganhou destaque na imprensa a dis-
cussão sobre o futuro da seleção e do próprio futebol brasileiro. A
tônica do debate foi direcionada para temáticas como o estilo de
jogo, as metodologias de treinamento e, principalmente, sobre o tipo
ideal do jogador de futebol. Nestas discussões era possível perce-
ber duas posições distintas. De um lado, a maioria dos jornalistas,
comprometida com os ideais do governo, assumia em suas crôni-
cas o discurso disciplinador dos militares; palavras de ordem como
disciplina, concentração, preparação física e obediência tática pau-
latinamente ganhavam legitimidade no universo esportivo do país.6
No outro extremo, algumas poucas vozes dissonantes, como as de
Nelson Rodrigues e João Saldanha, fortemente influenciadas pela in-
terpretação freyriana, defendiam a tese da superioridade do futebol-
-arte. Embora fossem visíveis as diferenças ideológicas entre os dois

5 Em declaração dada à imprensa, logo após a derrota para Portugal, Pelé dizia-se
desiludido com seu futuro na Seleção Brasileira. Segundo ele, os jornalistas não
compreendiam seus problemas de ordem física, exigindo que ele tivesse uma
performance igual à de 1958. Assim, afirmava que pretendia abandonar a Seleção
Brasileira e quiçá o futebol ( “Desiludido o Rei do Futebol”. ESTADO DE MINAS, 22
jul. 1966, 2a seção, p. 1a)
6 Embasando-se teoricamente nos fundamentos da sociologia interpretativa, GUEDES,
1998, p. 45, argumenta que os jornalistas esportivos usam da sua credibilidade
com o grande público para “transformar em realidade” determinadas ideologias e
interpretações.
173

Euclides de Freitas Couto


amigos jornalistas, é possível perceber a singularidade das reflexões
em suas crônicas e depoimentos:

Amigos, leio uma entrevista do técnico alvinegro, Admildo


Chirol, na qual ele condena “as estrelas solitárias do futebol
atual”. Eu admiro os portadores de certezas definitivas, imu-
táveis. E o que se sente, nas palavras de Chirol, é que ele não
faz a concessão de uma dúvida, de um “talvez”, de um “quem
sabe?”. Não. Tudo, em Chirol, tem a ênfase na última palavra.
Mas vejamos suas verdades. Diz ele que a Copa do Mundo de
66 veio trazer o “futebol brasileiro à realidade”. Ao ouvir fa-
lar em “realidade”, poderíamos perguntar: – “Qual delas?”. E,
então, Chirol explica a “sua” realidade. Diz textualmente: – “O
personalismo não é mais concebido dentro de uma equipe, e
sim o coletivismo.” Percebe-se que, ao falar assim, o simpá-
tico treinador vibra de certeza inapelável e eterna. Nada de
estrelas, de homem-chave, de vedetismo. Todos iguais entre si
como soldadinhos de chumbo. E assim vai a entrevista, resso-
ante de palavra encantadora: – “Coletivismo, coletivismo.” [...]
Seja como for, uma observação cabe inicialmente: - o ponto de
partida de Chirol é altamente discutível. Segundo ele, a recente
Copa trouxe o Brasil à realidade. Inexato, inexato. A Copa não
valeu como teste, e repito: o futebol brasileiro lá não esteve.
Apenas testou a inépcia, a incompetência e a burrice da nossa
Comissão Técnica. Fomos derrotados não pelo “coletivismo”
dos outros, mas pela burrice dos nossos dirigentes. Mas o
dramático na entrevista de Chirol é o fim que ele deseja e ele
anuncia do homem-chave, do homem-estrela, do craque qua-
se divino. E aqui começam as minhas dúvidas. Terá ele meios
de apagar as dessemelhanças individuais que fazem o charme
dos homens, povos, religiões e times? Em caso afirmativo, será
desejável esse nivelamento absoluto e alvar? Toda experiência
humana parece estar contra Chirol. Ninguém admite uma fé
sem Cristo, ou Buda, ou Alá, ou Maomé. Ou uma devoção sem
o santo respectivo. Ou um exército sem napoleões. No esporte,
também. Numa competição modesta de cuspe à distância, o
torcedor exige o mistério das grandes individualidades. No fu-
tebol, a própria bola parece reconhecer Pelé ou Garrincha e só
falta lamber-lhe os pés como uma cadelinha amestrada. Ai do
174
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

teatro que não tem uma Sarah Bernhardt ou uma Duse. Em fute-
bol, como em tudo o mais, o craque é decisivo. Evidentemente
que os onze são indispensáveis. Mas o que leva o público e
faz a bilheteria é o craque. Eu diria que, no time de Pelé, só
ele existe e o resto é paisagem. (O GLOBO, 4 ago. 1966 apud
RODRIGUES, 1994, p. 129-130, grifo nosso)

Naquele contexto, a crônica de Nelson Rodrigues assumia fei-


ções de uma carta-resposta às recentes declarações do então técnico
do Botafogo Admildo Chirol. O jornalista não admitia que o futebol-ar-
te fosse tão facilmente superado pelos ditames da disciplina tática e
da pujança física introduzidos pelo coletivismo europeu. Na acepção
rodrigueana, extrair o individualismo do jogador brasileiro significa-
va extirpar a sua alma, a essência de seu povo. Assim, como recorda
Fátima Antunes (2004, p. 215), para o jornalista e escritor, “o uni-
verso do futebol se oferecia como palco ao desfile dos dilemas, das
frustrações e dos dramas do homem brasileiro”. Nessa perspectiva,
as improvisações, os dribles e a molecagem presentes nos gramados
assumiam, nas crônicas rodrigueanas, a representação do caráter
deste homem. Aproximadamente dois anos após esse fato, Chirol se
tornaria o responsável pela preparação física da Seleção Brasileira.
Defensor ferrenho do futebol-força, ele implantaria métodos de treina-
mento inovadores; tanto que, após a Copa de 1970, o professor Chirol
foi apontado por grande parte da imprensa como um dos maiores
responsáveis pela conquista do tricampeonato mundial.7
No conturbado ano de 1968, em meio às grandes manifesta-
ções populares e à luta armada organizada pelos grupos dissidentes
do Partido Comunista, a imprensa pregava uma mudança urgente na
mentalidade do futebol brasileiro. A começar pela preparação físi-
ca, todo o sistema de treinamento deveria se adequar aos padrões
europeus. Em janeiro daquele ano, Aimoré Moreira, então treinador
da Seleção Brasileira, anunciava para o próximo mês uma viagem de
intercâmbio à Europa com o propósito de observar os modelos de
treinamento físico e técnico:

O técnico trará da Europa livros, anotações e até filmes sobre a


preparação física e, durante os 25 dias que estiver ausente do
Brasil, fará um relatório circunstancioso para a CBD, já visando

7 “O caminho do tetra II”, JORNAL DOS SPORTS, 08 jul. 1970, p. 12.


175

Euclides de Freitas Couto


a Copa do Mundo do México. Muito importante é saber o que
fizeram as seleções européias para o próximo mundial. [...] O
brasileiro criou uma imagem errada a respeito do seu poderio
técnico. Vejam vocês: enquanto eles mandaram “olheiros” e
mais “olheiros” para nos observar, nós fizemos a mesma coisa.
Muito pelo contrário. Tenho a impressão que o futebol brasi-
leiro se considerava o maior do mundo, porque não dava bola
para as observações dos adversários. Como resultado, eles
assimilaram o que tínhamos de melhor e nós estacionamos.
Precisamos deixar de ser tão narcisistas... Para Aimoré, é ne-
cessário mudar-se a mentalidade do jogador brasileiro: – De
um modo geral, os jogadores eram muito auto-suficientes. Os
europeus sentiam-se inferiorizados na técnica e no poder de
improvisação, e partiram para outros aspectos, esmerando-se
mais no vigor físico.8

Ao reconhecer os avanços do futebol europeu, o treinador da


seleção requisitava não somente a mudança nos aspectos táticos e
físicos do futebol brasileiro, mas uma completa transformação na
mentalidade, na postura e no comportamento do jogador de futebol.
Utilizando-se da autoridade de “treinador da seleção”, Aimoré procu-
rava reduzir a importância atribuída ao craque e, por consequência,
o próprio status do futebol-arte, por meio de adjetivações pejorativas.
Na mesma reportagem, o treinador ainda conclamava a imprensa a
se empenhar numa campanha em prol da preparação física.

– O que se tem de fazer – concluiu – é uma campanha com o


auxílio da própria imprensa esportiva, no sentido de mostrar-
-se ao jogador brasileiro que só aumentando o índice físico
pode melhorar. O próprio critério da CBD, revela isso: quando
se convocar, entre um jogador bom tecnicamente outro, bom
física e tecnicamente, preferiremos este último. (JORNAL DOS
SPORTS, 11 jan. 1968, p. 12)

As palavras do treinador são bastante reveladoras dos novos


sentidos que, subitamente, eram incorporados ao futebol. Se, para
alguns, o sucesso da seleção nas jornadas de 1958-1962 continuava

8 “Aimoré vai à Europa ver tudo sobre o futebol”, JORNAL DOS SPORTS, 11 jan. 1968,
p. 12.
176
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

sendo um elogio do individualismo e da genialidade e motivo de or-


gulho da nação, a fala de Aimoré Moreira representava, por seu tur-
no, o discurso oficial, reprodutor fidedigno da ideologia militar. O
futebol, apropriado definitivamente como um dos símbolos do país,
deveria promover a exaltação dos valores disseminados pela caser-
na. Fundamentos como a ordem, a disciplina e o espírito coletivo
deveriam nortear não somente os treinamentos, mas se constituírem
como elementos basilares do estilo de jogo e, principalmente, da
conduta profissional e pessoal do jogador de futebol.
Não que essa fosse uma discussão restrita ao futebol. Naquele
momento, em diversos ramos de atividade, os meios de controle ex-
plícitos e informais impostos pelos militares forçavam a mudança
de conduta de inúmeros profissionais. Principalmente nas ativida-
des ligadas à cultura, à educação e à comunicação, a censura e o
cerceamento das liberdades individuais modificavam substancial-
mente o trabalho de artistas, intelectuais, professores e jornalistas.
No caso do futebol, a imprensa conservadora prestou um grande
serviço ao governo, na medida em que procurou legitimar o dis-
curso disciplinador proferido por treinadores, dirigentes e, muitas
vezes, pelos próprios militares.
Obviamente, do mesmo modo que os entusiastas do futebol-
-força encontraram na imprensa um espaço privilegiado para difun-
dir suas ideias, os poucos defensores do futebol-arte buscavam, por
meio de suas crônicas, ampliar o debate sobre o melhor estilo de
jogo para os brasileiros. Às vésperas da promulgação do AI-5, a publi-
cação da crônica intitulada “Um debate sinistro”, escrita por Nelson
Rodrigues, refletia as inquietações do jornalista em relação ao futuro
da seleção nacional. Embora fosse considerado pelos intelectuais de
esquerda como reacionário e conservador, e de manter estreitos la-
ços de amizade com membros da cúpula militar, Nelson Rodrigues
refutava as tentativas de militarização do futebol brasileiro. A crôni-
ca demonstra com clareza os rumos que tomava o debate futebolís-
tico no Brasil:

[...] Não sei se me entendem, mas tentarei explicar. O europeu


faz um jogo de acordo com as suas virtudes e defeitos e, so-
bretudo, com seus defeitos. São duros de cintura, não sabem
inventar, a sua fantasia é escassa ou nula, e a beleza não os in-
teressa. Tiram partido, então, da sua saúde de vaca premiada.
177

Euclides de Freitas Couto


Daí as suas correrias furiosas, o ataque em massa e a defesa
em massa. Bem alimentados há mil anos, um time europeu
pode ir e vir os 90 minutos.

E, portanto, que devem fazer os brasileiros? Falta-nos a base


física do inimigo. Dirá alguém que nosso profissional já tem o
seu bom bife. Mas não se improvisa a saúde de um povo e repi-
to: a saúde de um povo representa um trabalho de gerações. Se
comemos bem há 15 dias, não adianta nada. Precisamos espe-
rar mil anos de nutrição. E então, sim, já poderemos competir
com a resistência animal dos europeus.

Por enquanto, temos que tirar partido das nossas caracterís-


ticas, isto é, das características que os outros não têm. Se os
europeus jogam assim, por causa dos seus defeitos, nós joga-
remos assado, por causa das nossas qualidades. Não temos o
fôlego dos ingleses, ou alemães. Portanto, vamos apelar para a
nossa imaginação, a nossa inventividade, a nossa originalidade
e, até a nossa molecagem.

Na minha discussão com Alan Fontaine e Achilles Chirol, falei


dos nossos resultados internacionais. Disse-lhes que tanto os
alemães como os ingleses são nossos fregueses de caderno.
Ganhamos o nosso último jogo com a Inglaterra por 5x1. Os
dois riram. E replicavam com um argumento que não resiste a
um sopro de apagar velinha de aniversário. Segundo eles, não
vale jogo amistoso, só de Campeonato Mundial. Imaginem vo-
cês que o escrete de 54 só ganhou amistosos e perdeu a Rimet
para a Alemanha. E, no entanto, o celebérrimo time húngaro
foi um dos mais belos momentos do futebol mundial em todos
os tempos. A adotarmos o critério do Achilles e do Fontaine, a
Hungria tem que ser excluída da História do Futebol.

Mas se só a Copa vale, somos bi-campeões e a Inglaterra só


ganhou uma vez e a Alemanha só ganhou uma vez. Em 62 e,
portanto, no Mundial, demos um banho de bola nos ingleses.
Com exceção de 54, a Alemanha só tem apanhado no Mundial.
Retrucam o Achilles e o Alan, que nosso bicampeonato é o pas-
sado. E 54 não passou e 66 não passou.
178
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Ah, o Brasil tem 80 milhões de técnicos, menos a maioria da


crônica futebolística.9

Para além de representar apenas um desabafo pessoal, as pa-


lavras de Nelson Rodrigues conseguem captar, no calor dos aconte-
cimentos, as transformações paradigmáticas que entravam em curso
no universo do futebol brasileiro. Primeiramente, o jornalista per-
cebe que os conhecimentos construídos pelo senso comum já não
possuem a mesma legitimidade para o debate futebolístico. Se num
passado recente o futebol era objeto de um debate democrático, no
qual a validade dos argumentos não estava condicionada à especia-
lização do debatedor, naquele momento a introdução de modelos
científicos de treinamento encontrava nos “especialistas” a credibili-
dade necessária para sua disseminação. O discurso científico repro-
duzido pelos “representantes da imprensa conservadora” apoiava-se
principalmente nos últimos resultados conquistados pelos europeus
na Copa da Inglaterra. A suposta superioridade europeia, credencia-
da pelo sucesso do futebol-força, deveria servir, portanto, para que o
todo o futebol brasileiro fosse repensado.
Em segundo lugar, a crônica rechaça a superioridade europeia,
definida substancialmente pelos atributos físicos dos jogadores, an-
corando-se em argumentos que procuram, de um lado, evidenciar as
limitações técnicas dos europeus e, de outro, exaltar a capacidade
inventiva e o individualismo dos brasileiros. Ao esboçar seu enten-
dimento de que a genética privilegiada dos europeus decorre de um
processo nutricional que se desenvolveu ao longo de vários séculos,
o jornalista procura desmitificar a ideia plantada pela imprensa de
que os brasileiros poderiam adquirir tais atributos físicos se fossem
submetidos aos modelos de treinamento europeus. Elencando ele-
mentos presentes no discurso da cultura da mestiçagem, Rodrigues
insiste na tese de que as características sincréticas presentes no fu-
tebol brasileiro são determinantes para a nossa superioridade – fato
que, segundo ele, pode ser comprovado pelos dados estatísticos ex-
traídos das Copas do Mundo. Desse modo, ao postular a construção
de um raciocínio lógico, o jornalista induz o leitor a acreditar que
somente por meio do futebol-arte, do craque e das jogadas geniais
poderíamos superar o futebol-força praticado na Europa.

9 “Um debate sinistro”. JORNAL DOS SPORTS, 4 dez. 1968, p. 3, grifo nosso.
179

Euclides de Freitas Couto


Por último, anunciando-se como um autêntico porta-voz do
povo, Nelson Rodrigues lança a defesa do “autêntico futebol brasilei-
ro”. Sua intenção consistia em, simultaneamente, invalidar a opinião
da “maioria da imprensa” e legitimar os “80 milhões de brasileiros”
como os verdadeiros sábios do futebol. Ao resgatar tais elementos,
o jornalista ofereceu contrapontos recheados de um saudosismo de
tonalidade extremamente nacionalista, os quais, naquela conjuntura,
destoavam profundamente do discurso proferido pela maioria dos
seus colegas de profissão.

A despeito das críticas proferidas por Nelson Rodrigues, a im-


plantação dos modelos europeus de treinamento logo se tornaria
uma febre entre os técnicos brasileiros. No mês de janeiro de 1968, a
manchete do Jornal dos Sports destacava: “Fla de método novo bota
time para treinar peso” (JORNAL DOS SPORTS, 6 jan. 1968, p. 4). A ma-
téria se referia a um programa de treinamento muscular “inovador”
ministrado pelos preparadores físicos do clube rubro-negro carioca.
A primazia atribuída ao treinamento físico alimentava as páginas es-
portivas de diversos jornais do país. O preparo físico, a disciplina e
o espírito de equipe tornavam-se palavras de ordem que se encai-
xavam perfeitamente ao discurso e à mentalidade militar, irradiada
em todos os setores da sociedade, inclusive no futebol. Durante o
período de preparação da Seleção Brasileira para a Copa do Mundo
do México, a tônica do discurso jornalístico exaltava princípios como
racionalidade, competência, método e disciplina. A evolução do pre-
paro físico dos jogadores da seleção era um dos pontos mais come-
morados pela comissão técnica, como evidencia a matéria publicada
pelo Jornal dos Sports em abril de 1970.10 Poucos dias depois, o mes-
mo periódico destacava em sua manchete: “Saúde é tema da Copa”. A
matéria trazia anexados depoimentos incisivos dos membros da co-
missão técnica brasileira – “Zagalo: título exige vigor; Coutinho: fracos
não têm vez” –, destacando a importância da preparação física para
a Copa do México (JORNAL DOS SPORTS, 18 abr. 1970, p. 6). Às vésperas
da estreia brasileira nos gramados mexicanos, foi a vez de a revista
Placar estampar em sua capa uma manchete cujo tom pretendia tran-
quilizar a população sobre as condições de preparação dos jogado-
res: “México urgente: estamos com um supertime”. Ao contrário do
que se possa inicialmente imaginar, a reportagem não se referia às
10 “Rendimento deixa Admildo vibrando”, JORNAL DOS SPORTS, 10 abr. 1970, p. 3.
180
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

virtudes extraordinárias de jogadores como Pelé, Tostão ou Rivelino,


mas ao método de treinamento físico empregado pela comissão téc-
nica, que visava, entre outros objetivos, superar os possíveis proble-
mas de aclimatação à altitude mexicana:

A influência da altitude na velocidade dos jogadores brasi-


leiros é assunto bastante discutido no México. O período de
superaclimatação foi reduzido para três semanas, seguidas de
apenas mais uma semana em Guadalajara. O medo geral é de
que a parte final do treinamento, que é exatamente a de veloci-
dade, fique prejudicada por isso. O Capitão Cláudio Coutinho,
preparador físico e supervisor da Comissão Técnica, explica
que o problema não tem a gravidade que muita gente pensa:
– Não houve prejuízos quanto à estrutura geral do treinamen-
to. O que poderíamos dizer é que o ideal seria mais tempo.
Quanto mais longo o período de aclimatação, melhor. A ver-
dadeira aclimatação não se vai dar com nenhuma das equipes
que vêm de fora. São necessários nove meses para isso. [...]
Todos dizem que a Seleção Brasileira está no apogeu, inclusive
o Capitão Coutinho. Mas nenhum torcedor brasileiro conhece
exatamente o mecanismo de duração do apogeu de um atleta,
principalmente dos jogadores da Seleção atual: – Gostaria de
explicar uma coisa: o atleta consegue obter seu rendimento
máximo durante um curto período de tempo, mas isso em es-
portes como o atletismo, a natação que duram de quinze a vin-
te dias. Mas para um jogador de futebol é diferente. Temos de
elevar ao máximo as qualidades físicas de um grupo e mantê-
-las durante uma competição mais longa, que não se decide
em dez segundos ou em um minuto. Temos que visar o apogeu
médio do grupo. Acreditamos que a equipe brasileira venha a
se manter em seu apogeu médio durante bastante tempo, mais
que a duração da Copa do Mundo. Estaremos em situação pelo
menos equivalente à dos outros competidores. Com toda cer-
teza, vamos atingir um nível bastante acima daquele que nor-
malmente se espera de um jogador brasileiro. (PLACAR, n. 11,
29 mai. 1970, p. 7, grifo nosso)

Ancorado nos fundamentos da fisiologia do esforço, o capitão


Cláudio Coutinho utilizava um vocabulário extremamente científico,
181

Euclides de Freitas Couto


tentando explicitar a metodologia do treinamento aplicado na Seleção
Brasileira. Ao ressaltar os fundamentos do trabalho com os jogado-
res, demonstrava confiança com relação ao sucesso da seleção. É in-
teressante notar que o próprio Coutinho reconhecia que os padrões
científicos adotados tornavam o futebol cada vez menos inteligível
ao povo. Às vésperas da Copa do Mundo, as discussões sobre fu-
tebol encontravam nos discursos dos novos atores – preparadores
físicos e fisiologistas – os pressupostos anteriormente extraídos no
imaginário popular. As expectativas antes depositadas no craque, na
improvisação e na superioridade do futebol-arte davam lugar ao pla-
nejamento, ao método e à eficiência (SOARES et al., 2006, p. 107).
Ao término da Copa do México, os “especialistas” se van-
gloriavam do sucesso obtido pela seleção, atribuindo os créditos
pela conquista à incorporação dos novos métodos de preparação.
Carlos Alberto Parreira, um dos responsáveis pela preparação física
da seleção, reivindicava a implantação do novo modelo nos clubes
brasileiros:

– Fizemos um trabalho pioneiro, assentado em bases científi-


cas, deixando de lado empirismo, para mostrar que o sucesso
só pode advir da maneira como se trabalhou. Procurou-se na
seleção, respeitando a individualidade biológica dos jogado-
res, “individualizar o trabalho”, fazendo com isso que cada
jogador atingisse, normalmente, seu rendimento máximo. [...]
Fica uma experiência positiva e que deve servir como para-
digma para as futuras seleções e para os próprios clubes. [...]
– Que os técnicos, desde os juvenis, sejam diplomados, porque
só assim o Brasil fará uma revolução total em seu futebol.11

Atribuindo à ciência um lugar de destaque no cenário que se


desenhava a partir da campanha do tricampeonato, o discurso do
professor Parreira marcava a tentativa dos defensores do futebol mo-
derno de assumir a vanguarda do processo de treinamento esporti-
vo nos clubes brasileiros. A revolução do futebol a que se referia o
professor encampava transformações que envolviam desde aspectos
práticos – como a organização, a logística e as preparações física e
tática – até questões subjetivas – como a mentalidade e os padrões
comportamentais do jogador.
11 “O caminho do tetra III”, JORNAL DOS SPORTS, 9 jul. 1970, p. 12.
182
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Nessa nova configuração, impunha-se a transformação comple-


ta do jogador em atleta de futebol. Para assumir essa nova função, já
não bastavam a habilidade, a técnica, a ginga e a malandragem. A ge-
nialidade só era bem-vinda se viesse acompanhada da obediência, da
disciplina e do espírito coletivo. Neste cenário, a Seleção Brasileira,
modelo para os clubes do país, cumpria um duplo papel: era laborató-
rio de experiências e vitrine da nova mentalidade. Com a militarização
da comissão técnica e o desejo de se aplicar as mais avançadas me-
todologias de treinamento, não havia espaço para o individualismo,
para atos de indisciplina ou comportamentos incoerentes com a fun-
ção de soldado-jogador.
José Paulo Florenzano (1998, p. 41) avalia que nesse período,
que ele considera o momento da gestação do futebol moderno no
Brasil, desejava-se o controle das ações corporais do jogador: “a ma-
gia do corpo cedia espaço ao automatismo do corpo-máquina”. Ao
invés do incentivo à criação, ao improviso e ao floreio das jogadas,
o atleta era estimulado a se adequar aos movimentos táticos e, so-
bretudo, a repetir insistentemente os exercícios de fundamentos.12
Sincronizadas com o modelo militar, as “escolinhas de futebol”, em
sua maioria pertencentes aos grandes clubes, passaram a desempe-
nhar um papel fundamental na difusão dos pressupostos disciplina-
res que se estruturavam no futebol brasileiro. A partir do início dos
anos 1970, além da formação técnica, as “escolinhas” também se de-
dicavam a esculpir o caráter dos atletas:

O treinamento nas escolas de futebol poderá operar sobre


o detalhe, porta de entrada do investimento político do cor-
po pelos mecanismos disciplinares. Observação minuciosa,
gestos, falas, atitudes, continuamente corrigidos, educados,
vigiados, no decorrer da cadeia serial percorrida pelo atleta,
numa sujeição sem termo pois esta se prolonga por toda a
vida profissional. Sem dúvida, um trabalho direcionado para
o aumento das potencialidades físicas da máquina natural, ao

12 Naquele contexto, o treinamento dos fundamentos do futebol consistia basica-


mente em desenvolver no atleta habilidades por meio da repetição dos movimentos
e jogadas: domínio da bola em vários pontos do corpo, condução, passes, cabeceio
e arremates. Um debate muito significativo sobre os métodos de preparação física
e modelos de treinamento técnico-tático empregados no final da década de 1960 é
apresentado na obra intitulada Boca do Túnel, organizada por Pedrosa (1968).
183

Euclides de Freitas Couto


mesmo tempo que a domesticação do animal que a habita.
(FLORENZANO, 1998, p. 43)

Nessa lógica, as escolas de futebol assumiam a função de ver-


dadeiros criadouros de jogadores. A várzea, conhecida como o “ce-
leiro de craques” do futebol brasileiro, perdia espaço para a escola
metodicamente organizada. A eminente especialização por que pas-
sava o futebol criava, no espaço controlado e disciplinado, o novo
modelo de jogador: o “craque formado em casa”.
Arthur Antunes Coimbra, o Zico, é um exemplo emblemático
dessas transformações ocorridas no universo do futebol brasileiro.
Aos 14 anos de idade, o garoto iniciou sua carreira na escolinha do
Flamengo exibindo muita habilidade, mas com um corpo muito fran-
zino para os padrões físicos preconizados na época. No entanto, em
um espaço de tempo relativamente curto, o trabalho em conjunto
realizado pelos fisiologistas e preparadores físicos das categorias
de base do clube carioca surtiu efeitos surpreendentes: o “Galinho”
transformou-se em um verdadeiro atleta:

Zico ganhou peso e massa muscular e passou a encarar as di-


vididas certo de que nem sempre levaria prejuízo. O menino
magro e baixinho – 37 kg e 1,55 m – de 1967 passou a apre-
sentar em 1970 vistosos 53 kg e 1,66 m. A evolução foi de tal
ordem, que naquele ano o seu rendimento melhorou conside-
ravelmente. (GARCIA et al., 2003, p. 43)

Além dos requisitos físicos exigidos para a função que lhe era
incumbida, Zico tornou-se também padrão de caráter e comporta-
mento. Orientado periodicamente pelos psicólogos do clube, o joga-
dor incorporou à sua habilidade com a bola adjetivos comportamen-
tais indispensáveis: educado, disciplinado e conhecido por possuir
uma vida extracampo irretocável, a trajetória vitoriosa de Zico se
tornou modelo para a educação esportiva dos garotos das gerações
seguintes. O sucesso nos gramados estava sempre relacionado à reti-
dão de sua conduta pessoal. Em contraposição ao modelo dionisíaco
de jogador de futebol, tão presente nas narrativas biográficas de ído-
los como Leônidas e Garrincha, exemplos emblemáticos que vigora-
ram até a metade dos anos 1960, o novo paradigma futebolístico pre-
conizava a justaposição dos papéis sociais de homem e jogador. Na
184
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

sociedade militarizada e controlada não havia mais espaço para ído-


los destemperados, boêmios e, tampouco, com atitudes agressivas
aos valores sociais dominantes. Parafraseando Hilário Franco Júnior
(2007, p. 142), da mesma maneira que o cidadão brasileiro se sujei-
tava aos mecanismos repressores da ditadura, o jogador rebelde, de
talento espontâneo, cedia espaço ao atleta-soldado, empregado do
clube, a serviço da nação.

3.2. A “linha dura” chega aos clubes

Simultaneamente à “militarização” das categorias de base e da


Seleção Brasileira, desenvolve-se no futebol profissional brasileiro
um modelo de treinador adequado aos novos padrões. Autoritário,
disciplinador, imbuído da missão de transformar jogadores fanfar-
rões em verdadeiros soldados. Esse era o perfil dos homens mais
requisitados para dirigir os grandes clubes brasileiros no final dos
anos 1960. Não que esse modelo fosse uma novidade no futebol
brasileiro. Mário Filho, em seu clássico livro O negro no futebol bra-
sileiro, já havia chamado a atenção para personagens como Flávio
Costa e Ondino Vieira, técnicos “ditadores” que reinaram durante
os anos 1950 (FLORENZANO, 1998, p. 54). No entanto, no período em
questão, homens como Paulo Amaral e Dorival Knipell, conhecido
como Yustrich,13 tornaram-se símbolos da eficiência, passando a ser
requisitados pelos maiores clubes do país. Após suas conquistas, a
imprensa os reverenciava, exaltando as características presentes em
seus métodos de trabalho: estratégia e técnica se transformavam em
qualidades de segunda grandeza se comparadas ao status que adqui-
riam a ordem e a disciplina.
Contratado para dirigir o Flamengo no início de 1970, Yustrich
chegava com a missão de “botar ordem na casa”. Segundo a impren-
sa da época, o rubro-negro possuía um bom grupo de jogadores, mas
muitos deles enfrentavam sérios problemas decorrentes da vida boê-
mia. Em pouco tempo, no entanto, esses problemas pareciam ter sido
resolvidos. O Homão, como também era conhecido Yustrich (em ra-
zão do seu avantajado porte físico), já havia “domesticado as feras”.
No mês de março daquele ano, a primeira edição da revista Placar

13 Na imprensa esportiva, o apelido Yustrich é grafado ora com “Y”, ora com “I”.
Ao consultar seu apelido, atribuído pela incrível semelhança física com o goleiro
argentino Juan Elias Yustrich, constatamos que a grafia correta se faz com o “Y”.
185

Euclides de Freitas Couto


estampava uma manchete em letras garrafais – “Yustrich e Flamengo,
o dopping do amor” – e, nas matérias que se seguiam, exaltava o tra-
balho do novo comandante:

O Flamengo nunca correu tanto, ganhou tanto, lutou tanto


como nos últimos meses. O Flamengo ganhou a fama de time
invencível, a glória de time quase perfeito. E um pouco mais da
paixão de sua torcida gigante. E seu futuro será o retrato do
Flamengo de hoje, pelo menos enquanto o Homão estiver lá,
berrando vitória. (PLACAR, n. 1, 20 mar. 1970, p. 30)

Naquela altura, o time do Flamengo parecia ter incorporado


os fundamentos do novo técnico. Em outras entrevistas concedidas
à imprensa, Yustrich deixara claro seu encantamento pelo futebol
moderno, estilo no qual todos os jogadores possuem a dupla função
de atacar e defender. Para ele, no futebol brasileiro, sobretudo nos
clubes cariocas, ainda se praticava um estilo de jogo muito caden-
ciado, cedendo-se muito espaço ao adversário para a armação das
jogadas (PLACAR, n. 7, 1 mai. 1970, p. 15). Nas equipes que dirigia,
Yustrich determinava uma maneira de jogar que exigia um enorme
esforço físico de todo o grupo de jogadores. Desabituados a realizar
o trabalho de marcação, os atacantes eram sempre os últimos a se
adaptar ao novo estilo de jogo e, consequentemente, os primeiros a
se desentender com Yustrich.
Não era esta, porém, a única bandeira do treinador. Os episó-
dios que mais despertaram a atenção da imprensa estão relacionados
aos seus métodos de controle extracampo e à truculência empregada
na prática de trabalho. Em outras palavras, Yustrich ficou conhecido
muito mais por sua interferência na vida pessoal dos jogadores do
que por suas qualidades de estrategista. Logo no início da sua pas-
sagem pelo Flamengo, a imprensa chamava a atenção para seus pro-
blemas de relacionamento com o atacante Doval: jovem, de cabelos
de grandes e com fama de boêmio, ele foi um dos jogadores que mais
sofreu as consequências do “período de adaptação” às novas meto-
dologias implantadas pelo treinador. Em entrevista pouco conven-
cional concedida ao jornal O Pasquim, Yustrich revela, no calor dos
acontecimentos, detalhes sobre seus métodos de trabalho, traços
de sua personalidade e, principalmente, seus posicionamentos acer-
ca das questões socioculturais e comportamentais que permeavam
186
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

o cotidiano da época. Questionado sobre seu relacionamento com


Doval, Yustrich deixa claros os motivos de sua “implicância” com o
jogador:
Luis Carlos Maciel – Você acha que antes de você ser treinador
do Flamengo havia uma má imagem pública do Doval pelo fato de ele
usar cabelo comprido?
Yustrich – Vocês acham que não? Eu pelo menos, como pro-
fissional tinha uma impressão horrível do Doval. Como eu, muitas
pessoas responsáveis. Hoje é o contrário, hoje o Doval, na minha opi-
nião, é tido como um rapaz integrado à nova ordem que está sendo
vivida no Flamengo. Ele não precisou mudar o meio de vida que ele
tinha anteriormente, apenas se enquadrou dentro de determinadas
ordens que a gente estabeleceu (O PASQUIM, 10-17 abr. 1970, p. 20).
É interessante perceber que, após se “enquadrar” às normas
que lhe foram impostas – dentre elas, o corte do cabelo –, Doval
tornou-se uma pessoa muito benquista pelo treinador. Em outro
momento da entrevista, ao ser provocado pelo jornalista Tarso de
Castro, Yustrich revela suas expectativas em torno do modelo ideal
de jogador:
Tarso – A sua imagem pública é daquele cara violento, radical
que empurra os jogadores pra frente, pra valer. Você é aquele sujeito
que corta cabelo e não sei o quê, embora eu ache que George Best,
um dos melhores jogadores do mundo, não precisa cortar cabelo pra
ser bom jogador. Agora a sua imagem do homem de casa ninguém
sabe. Eu queria que você falasse da sua filha, dessa coisa toda.
Yustrich – Primeiro, eu vou dar uma explicação que eu acho
racional. Eu, como vivo, apregoando, acho que a melhor vida que a
gente pode viver é uma vida livre. Se todos nós pudéssemos viver
num clima de liberdade autêntica cuja responsabilidade não pesas-
se nos ombros da gente, a gente podia viver como bem entendesse.
Mas nós, infelizmente, vivemos dando satisfação à sociedade. É uma
dessas fórmulas que a civilização impõe. Eu acho que a indumentária
fica bem dentro daquele provérbio popular que diz: o hábito faz o
monge. Se a pessoa é cantora de iê-iê-iê, faz parte de um conjunto,
seria impróprio que se apresentasse ao público de cabelo cortado,
todo diferente do que o meio impõe. É o caso do jogador de futebol.
O jogador tem que ter aquela condição, como aspecto, de um autên-
tico atleta. Vocês aceitariam esse jogador inglês, mas a Inglaterra é
diferente do Brasil. Nós temos uma mentalidade, eles tem outra. Lá
187

Euclides de Freitas Couto


talvez seja ótimo, aqui não é. Aqui é ridículo, expõe o jogador. Vocês
que têm o cabelo comprido admitem, têm que admitir porque isso é
verdade, que muitas pessoas olhem pra vocês de forma diferente (O
PASQUIM, 10-17 abr. 1970, p. 20, grifo nosso).

Na opinião do treinador, as expectativas sociais depositadas


sobre o jogador de futebol exigiam dele um “aspecto” de sobriedade,
seriedade e retidão de caráter. Antagonicamente ao jogador-artista pre-
conizado por Nelson Rodrigues, o tipo ideal requisitado por Yustrich
possuía os traços comportamentais de um soldado: obediência, disci-
plina e espírito de equipe. Ao longo da entrevista, ao ser estimulado
pelos jornalistas do Pasquim, Yustrich revelaria ainda uma série de
preconceitos presentes no discurso autoritário que permeava o ima-
ginário coletivo brasileiro dos anos 1970. Questionado sobre a possi-
bilidade de sua filha namorar, Yustrich respondeu categoricamente:
“É uma ignorância, uma boçalidade, uma estupidez da minha parte,
mas minha filha não se casará enquanto eu estiver vivo” (O Pasquim,
10 a 17 abr. 1970, p. 20). Em outro momento marcante da entrevista,
Yustrich relata toda sua intolerância com aqueles que apresentavam
quaisquer desvios em relação aos padrões sociais dominantes:

Jaguar – (...) Existem muitos casos de homossexuais entre os


jogadores?

Yustrich – Eu, graças a Deus, nunca tive oportunidade de traba-


lhar com jogadores com essa condição e acho que jogadores
homossexuais não existem porque não encontrariam oportu-
nidade de viverem num meio heterogêneo como é o futebol.
Todos os rapazes que têm essa condição de vida procuram
um meio isolado em que eles possam viver uma vida normal
e calma.

Sérgio – Se você tivesse um lateral esquerdo melhor que o


Paulo Henrique, só que você sabia que era homossexual, teria
coragem de barrar o Paulo Henrique?

Yustrich – Não. Aquilo que ele pudesse fazer dentro de cam-


po estragaria fora de campo, ele estragaria a condição moral
do nosso meio, não teria condição em hipótese nenhuma, nem
188
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

treinaria comigo porque eu acho que o jogador, no campo,


aquilo que eu chamo de disciplina de campo, gana, raça, é um
trabalho que vem de fora e que se condensa naqueles noventa
minutos. Se você for dispersivo fora, será também dentro do
campo, porque o rendimento de um jogador é o resultado de
uma coisa da qual se pode fazer uma imagem a de forças mecâ-
nicas. Você tem que obter uma resultante através de uma série
de forças. Se houver uma distorção, puxa pra cá e pra lá, nós
teremos uma resultante menor. Um homossexual no meio es-
tragaria a condição moral. (O PASQUIM, 10-17 abr. 1970, p. 20)

A fala do treinador reproduz substancialmente, a partir do uni-


verso futebolístico, os elementos do discurso machista-autoritário
que ganhava ressonância nos tempos da ditadura. Almeida (1995)
postula que, nas sociedades ibéricas, assim como em suas colô-
nias, desenvolveu-se ao longo da história uma modalidade particu-
lar de masculinidade conhecida como masculinidade hegemônica.
De forma resumida, podemos dizer que esse modelo é construído
socialmente a partir de práticas cotidianas que, em seu conjunto,
corroboram para criar hierarquizações no interior da própria no-
ção de masculinidade. Nessa perspectiva, os corpos masculinos são
“adestrados” por meio de brincadeiras violentas, esportes e diversas
outras práticas corporais cujo objetivo é reiterar corporalmente a
masculinidade (BOURDIEU, 1990, p. 17). No Brasil, o recorrente estí-
mulo familiar à prática do futebol e à adesão clubística, promovido
nos primeiros anos da infância do garoto, permite inserir o esporte
no rol das práticas sociais que mais contribuem para a formação do
ethos masculino. Assim, na fala de Yustrich, a exclusão do indivíduo
homossexual do futebol representa, em certo sentido, a legitimação
da autoridade masculina na sociedade.14 Naquela conjuntura, a into-
lerância ao homossexual, ao cabeludo, ao comunista e a quaisquer
outros estereótipos que confrontassem a autoridade do treinador

14 Sobre a questão da dominação masculina no futebol, Freitas (2004, p. 34-35) sugere


que o repúdio repetitivo ao homossexual no universo do futebol brasileiro sustenta
as provisórias fronteiras alicerçadoras da subjetividade de quem despreza
e também daquele que é desprezado. A exclusão de parte de si – o repúdio em
sentido estrito, base psicológica da homofobia e da misoginia – é uma forma
peculiar de exercício de poder, legitimando-o, sendo que tal dinâmica transcorre
como se aquele que despreza estivesse totalmente incólume em relação àquilo que
está rejeitando.
189

Euclides de Freitas Couto


é compreendida como um mecanismo de defesa (in)consciente do
ethos autoritário que se conformava no futebol brasileiro.
No início do ano de 1970, a conquista do Torneio Verão e a
boa campanha do Flamengo no Campeonato Carioca deram grande
projeção ao técnico disciplinador. Seu discurso autoritário ganhou a
simpatia dos órgãos de imprensa e legitimidade no meio futebolísti-
co. No mês de março do mesmo ano, o Jornal dos Sports veiculou uma
peça publicitária da Rádio Tupi – uma das emissoras cuja progra-
mação esportiva estava entre as mais populares – na qual o técnico
Yustrich era reverenciado por Ruy Porto, um famoso comentarista:

Figura 19 – Yustrich, o “digno”


Fonte: JORNAL DOS SPORTS, 8 mar. 1970, p. 7.

No Fluminense, problemas com a disciplina dos jogadores mo-


tivaram o clube a contratar outro técnico com fama de disciplinador,
conforme anunciava uma matéria de título muito sugestivo – “Linha
dura no Flu” – publicada pelo Jornal dos Sports:

Paulo Amaral é o novo técnico do Fluminense. Assumirá esta


manhã e com ele o tricolor procura estabelecer uma linha dura, a
exemplo do Flamengo, agora com Yustrich. Paulo Amaral, aliás,
se assemelha ao técnico do Flamengo. Ele é disciplinador. Não
190
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

é de brincar em serviço e nem de passar a mão pela cabeça dos


jogadores. Fora de dúvida, agora os jogadores do Fluminense
terão que se amoldar, porque o regime será severo e o traba-
lho será muito duro. Paulo Amaral esteve muito tempo inativo
e pretende aproveitar a oportunidade para mostrar seus co-
nhecimentos. É exatamente o que dele esperam os dirigentes
do Fluminense. Aos jornalistas, Paulo Amaral disse: “O que
Yustrich faz hoje no Flamengo eu já fazia quando estive na
Itália”. (JORNAL DOS SPORTS, 4 mar. 1970, p. 4, grifo nosso)

Consonante com o modelo de governo, o caráter salvador atri-


buído à disciplina, à ordem e à moralização do jogador repercutia
por todo o país. Jornalistas, treinadores e dirigentes encontravam
no imaginário coletivo marcado pelo autoritarismo os argumentos
necessários para combater quaisquer tipos de atos considerados
desviantes cometidos pelos jogadores. Se, no universo das ações po-
líticas, a partir de organismos do governo, disseminaram-se práticas
violentas de perseguição e tortura contra os indivíduos considera-
dos subversivos – sobretudo após o AI-5 –, no meio futebolístico, o
autoritarismo, o exagero e a truculência presentes nos métodos utili-
zados por alguns treinadores também deixaram suas marcas durante
o mesmo período.
No final dos anos 1960, a maioria dos clubes do Sul e Sudeste
do país adotaram uma série de mecanismos disciplinares organiza-
dos de tal forma que pudessem exercer um rígido controle sobre a
vida do jogador. Tais medidas objetivavam, primeiramente, adequar
a rotina do atleta profissional às exigências impostas pelos novos
padrões organizacionais: horários rígidos, treinamentos em tempo
integral, recuperação médica realizada obrigatoriamente na enferma-
ria do clube, entre outros. Como meio de sanção econômica, cada
clube implantou, à sua maneira, uma “tabela” de multas que consis-
tiam em uma taxa percentual descontada sobre os vencimentos dos
jogadores cuja variação acompanhava a gravidade do “ato infrator”.
Uma das primeiras punições salariais de que se tem notícia no fute-
bol brasileiro ganhou destaque na edição do Jornal dos Sports de 26
de novembro de 1968 – “Paulo César foi punido com multa”:

Paulo César, que não embarcou com a delegação do Botafogo


para São Paulo no final de semana, alegando cansaço, foi
191

Euclides de Freitas Couto


multado em 60 por cento dos seus vencimentos, segundo de-
cidiram ontem os dirigentes alvinegros, que na semana pas-
sada já haviam prevenido os jogadores sobre a volta da linha
dura em General Severiano. Alexandre Madureira, Chefe do
Departamento Técnico, ontem mesmo bateu o ofício dirigido
à tesouraria do clube, comunicando a multa em Paulo César. O
jogador deveria ser multado apenas em 40 por cento, por ser
a primeira vez que comete indisciplina. Todavia, a multa foi
maior porque a falta foi considerada grave, já que o Dr. Lídio
Toledo na sexta-feira, véspera do embarque para São Paulo,
constatou que o jogador estava em condições de participar da
partida contra a Portuguesa. (JORNAL DOS SPORTS, 26 nov.
1968, p. 5, grifo nosso)

É interessante salientar que tais medidas não eram respal-


dadas por nenhuma fundamentação legal. Cada clube criava, a seu
modo, formas de punição convenientes a sua política disciplinar. O
ex-jogador Afonsinho relata que o retorno da linha dura ao Botafogo,
fato destacado pela matéria, estava relacionado ao sistema de traba-
lho implantado pelo técnico Zagallo em 1967, ano em que o alvinegro
se sagrou campeão carioca. No ano seguinte, após a conquista do
bicampeonato estadual no primeiro semestre, percebeu-se um sen-
sível relaxamento no cumprimento das regras disciplinares, fato que
determinou o retorno da “tabela de punições”.15

3.3. Caju: tipo ideal do jogador-problema

Além dos meios de controle “formais” adotados por grande


parte dos clubes de futebol, a imprensa esportiva cumpriu impor-
tante papel no processo de disciplinamento do jogador brasileiro.
Vale ressaltar que, nesse período, além da crescente sofisticação do
trabalho da imprensa escrita, a midiatização dos eventos esportivos
contribuiu decisivamente para a produção e reprodução de uma
gama de significados culturais e enfrentamentos ideológicos que,
até a atualidade, permeiam o universo do futebol brasileiro. Essas
transformações, acentuadas nos anos 1960, além de promoverem a
diversificação das abordagens temáticas, determinaram um grande
deslocamento na atenção dos leitores. O jogo, elemento central da
15 Entrevista concedida por Afonsinho, 13 set. 2007.
192
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

cobertura jornalística, passou a dividir espaço com assuntos relati-


vos ao treinamento tático, à preparação física e, principalmente, à
vida pessoal dos atletas. Nesse processo de rearticulação dos signi-
ficados do futebol, os jornalistas desempenharam papel fundamen-
tal tanto na construção dos modelos ideais de jogadores quanto na
formulação do tipo jogador-problema – esse último exageradamente
mais explorado. Ao abordar essa questão pelo viés da mercantiliza-
ção do esporte, Pierre Bourdieu considera que os consumidores de
jornais e programas esportivos midiatizados tornam-se reféns das
representações construídas pelos jornalistas:

Mais do que os encorajamentos que o esporte dá ao chauvi-


nismo e ao sexismo, sem dúvida é a separação estabelecida
entre os profissionais, virtuoses de uma técnica exotérica, e
os leigos, reduzidos ao papel de simples consumidores, e que
tende a se tornar uma estrutura profunda da consciência cole-
tiva, que ele exerce seus efeitos políticos mais decisivos: não
é apenas no domínio do esporte que os homens comuns são
reduzidos aos papéis de torcedores, limites caricaturais dos
militantes, dedicados a uma participação imaginária que não é
mais do que a compreensão ilusória da despossessão em bene-
fício dos experts. (BOURDIEU, 1983b, p. 145)

Portadores de uma autoridade que se legitimava paulatinamen-


te na sociedade, os jornalistas usavam do seu “conhecimento cientí-
fico” não apenas na análise tática dos jogos, mas a credibilidade dos
seus posicionamentos encontrava espaço também quando emitiam
comentários sobre questões relativas à vida pessoal dos persona-
gens. Em sua maioria, reprodutores do discurso moralista que per-
meava a sociedade brasileira, os jornalistas foram responsáveis pela
construção de representações que criaram imagens estereotipadas
de uma série de jogadores. Os programas transmitidos pelo rádio e
pela televisão, além das páginas esportivas dos jornais, transforma-
ram-se em verdadeiros tribunais nos quais os atletas eram julgados
sumariamente (FLORENZANO, 1998, p. 14).. As atitudes intra e extra-
campo passaram a ser meticulosamente observadas e analisadas,
transformando-se em conteúdo para a programação radiotelevisiva,
assim como para as redações de jornais.
193

Euclides de Freitas Couto


Entre os anos de 1968 e 1979, encontramos na imprensa escrita
diversas matérias que reportavam às atitudes “inconvenientes” rela-
cionadas aos jogadores-problema. A maioria delas abordava questões
ligadas à vida pessoal dos atletas: o estilo de roupa, o corte de ca-
belo, os lugares que frequentavam e, principalmente, os boatos que
surgiam sobre as “noitadas” em boates e casas de prostituição. Ao
lado de Garrincha, que em 1972, devido aos transtornos decorrentes
do alcoolismo, finalizava melancolicamente sua carreira, Paulo Cezar
Lima, o Caju, foi, sem dúvida, o alvo predileto da imprensa brasileira,
tornando-se o modelo do jogador-problema.
Desde 1967, ano em que iniciou sua carreira profissional no
Botafogo, Caju se destacou tanto pelas brilhantes atuações como
ponta-esquerda quanto por sua vida boêmia, marcada pelos confli-
tos com dirigentes e jornalistas. Suas declarações polêmicas e sua
vida pessoal conturbada renderam farto material para uma impren-
sa ávida por fatos e especulações escandalosas. Convocado para
compor a Seleção Brasileira na Copa do México, Caju vangloria-se
de ser o único jogador “problemático” a fazer parte daquele elen-
co.16 Alvo constante das críticas da imprensa, sobretudo a partir de
1970, o craque passou a ter sua vida pessoal “vigiada” de perto pelos
jornalistas, proporcionando páginas inteiras de noticiário – além de
horas de acirrada discussão nos programas radiotelevisivos – a cada
atitude que confrontava os padrões disciplinares e comportamentais
da época:

Eu não podia ir a lugar nenhum. Sempre que eu saía, que fosse


pra tomar uma cerveja, havia um carro me seguindo. Quando
chegava lá (bar ou boate), tinha sempre alguém com uma câ-
mera fotográfica pra me pegar no pulo. [...] Eles (jornalistas)
pagavam outras pessoas pra me seguir de madrugada. Aquilo
me incomodava muito, porque muitas vezes eu queria apenas
respirar, entende? E os caras ali no meu pé [...]17

No ano de 1970, no período de preparação para a Copa do


México, Caju “sentiu na pele” os dissabores da exposição negativa de
sua imagem. Vaiado pela torcida carioca no empate entre brasileiros
e paraguaios, o jogador se queixava aos jornalistas:
16 Entrevista concedida por Paulo Cezar Caju, 10 nov. 2008.
17 Id.
194
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

– Eu nem consigo atacar. É só pegar a bola, para receber uma


vaia, coisa que nunca aconteceu na minha vida. Não sei por
que esta perseguição. Será que é porque sou carioca. Por que
jogo no Botafogo? Afinal de contas ninguém entende que esta-
mos preparando-nos para uma Copa do Mundo e que o ideal de
todos nós brasileiros é colocar bem no alto o nome do Brasil?
Confesso que não tenho tranqüilidade necessária para jogar
meu futebol, que todos no Rio, conhecem bem.18

No calor dos acontecimentos, perseguido pela imprensa, odia-


do pelos cartolas e reprovado pela torcida, o jogador-problema não
percebia que passava a ser estigmatizado19 pela sociedade. Apesar
de contabilizar boas atuações em campo, sua vida pessoal tornara-se
exemplo negativo para a “juventude do país”. A boemia, a malandra-
gem e o descompromisso com o trabalho, elementos marcantes em
trajetórias de craques como Heleno de Freitas e Garrincha, se mos-
travam anacrônicos em tempos de autoritarismo. Naquele contexto,
Paulo César destoava do padrão social imposto para o jogador de
futebol. Suas atitudes de contestação tornaram-no um sujeito pouco
aceito e, em certas situações, rejeitado; rejeição que crescia à medi-
da que aumentava seu grau de representatividade social. Assim, as
sucessivas vaias proferidas justamente quando Caju vestia a camisa
da Seleção Brasileira podem simbolizar a deterioração de sua identi-
dade social em nível nacional. Percebido como uma ameaça aos va-
lores morais que se solidificavam na sociedade brasileira a partir do
modelo autoritário de governo, Paulo Cezar carregava consigo não
apenas a representatividade individual do “mau-caráter”, da pregui-
ça e da malandragem, mas também a marca social de uma categoria
que passava a ser estigmatizada socialmente.
No final do ano de 1971, período em que encerraria seu contra-
to com o Botafogo, Caju seria, mais uma vez, o personagem central

18 “Paulo César se queixa da perseguição das vaias”, JORNAL DOS SPORTS, 28 abr.
1970, p. 3.
19 Reportamo-nos aqui ao conceito de estigma social desenvolvido pelo sociólogo
Erving Goffman. Influenciado pela sociologia simmeliana, em sua abordagem,
prevalece a ideia de que a sociedade estabelece modelos de comportamento, de
estética, de valores morais e éticos. Espera-se que, em sua maioria, os indivíduos
se adaptem a tais modelos. Quando ocorre o confronto de sujeitos ou grupos
aos padrões preestabelecidos, os demais indivíduos, assim como as instituições
sociais, passam a rejeitá-los, inferiorizá-los, convertendo-os em algo perigoso e
maléfico (GOFFMAN, 1993, p. 11).
195

Euclides de Freitas Couto


de uma história cujo desfecho lhe reservava o papel de “bandido”.
Motivado por um desentendimento com o ex-jogador Nilton Santos,
que naquele momento ocupava o cargo de diretor de futebol, o joga-
dor declarou aos jornalistas que não ficaria mais no clube. A notícia,
aparentemente corriqueira, ganhara, no entanto, grande repercus-
são na imprensa. Mais uma vez, Paulo Cezar via-se às voltas com uma
grande polêmica: desafiava, simultaneamente, um dos maiores ídolos
da história do Botafogo e um dos maiores símbolos de integridade no
meio futebolístico brasileiro. Obviamente, os veículos de comunica-
ção foram unânimes em condenar a atitude do jogador. O Jornal dos
Sports, por exemplo, dedicou ao fato uma página quase inteira:

Figura 20 – Paulo Cezar x Nilton Santos


Fonte: Jornal dos Sports, 01 out. 1971, p. 4.

Na parte superior da página figura a manchete chamando a


atenção dos leitores: “Paulo César desafia o diretor”. O texto que se
segue procura enfatizar o caráter agressivo do jogador, comparando-
-o ao pugilista norte-americano Cassius Clay:

Cassius Clay, nos áureos tempos que antecediam suas grandes


lutas e vitórias, ficaria reduzido a um simples principiante se
fosse comparado em provocação a Paulo César, ontem à tarde,
196
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

em General Severiano: ele iniciou, oficialmente, uma campanha


contra o novo Diretor de Futebol, Nilton Santos, reclamou da
imprensa e disse que não abaixou a cabeça para o dirigente, na
reunião de terça-feira, à noite.20

Logo abaixo, no lado esquerdo da página, outra matéria traz as


palavras firmes e ao mesmo tempo conciliadoras de Nilton Santos.
Assumindo uma postura de liderança, o diretor procura demonstrar
que o jogador problemático é quem deveria se adequar às normas do
clube, e não o contrário:

Pelo prestígio que adquiriu por sua conduta dentro do campo,


como titular do Botafogo por 18 anos e da Seleção Brasileira
por cerca de 12 anos, Nilton Santos parece que não vai aceitar
essa situação. Sentado num dos bancos paralelos à linha late-
ral do campo, o Diretor de Futebol estava calmo e conversava
com desembaraço com mais de quinze pessoas que o cerca-
vam. [...] Então, o gravador que estava ligado para ouvir a fita,
passou também a gravá-lo. Nilton Santos falou com decisão,
mas uma voz bastante calma: – Não pensem vocês que o Paulo
César faz isso por imaturidade. Ele faz isso conscientemente.
Está com 22 anos, é vacinado e não aceito essa de que é um
garoto. [...] Ele disse que queria ganhar igual ao Rivelino. Eu
lhe expliquei que estava apresentando a proposta do Botafogo.
Depois, mostrando força e disposição para enfrentar a luta
que se avizinha, Nilton Santos frisou que no Botafogo “não tem
babá e as coisas não vão ser com o carro atrás dos bois”.21

É interessante notar o antagonismo presente nas apresenta-


ções dos personagens transcritas de uma mesma página do perió-
dico. Enquanto o jogador-problema é comparado a um pugilista, ca-
racterizado por sua agressividade e por seu descontrole, o dirigente
é representado como um homem íntegro e calmo. Simultaneamente
ao confronto dos dois personagens, o Jornal dos Sports, d forma as-
tuta, utiliza o respaldo das palavras de Nilton Santos para legitimar o
trabalho da própria imprensa esportiva: referindo-se aos problemas

20 “Paulo César desafia o diretor”, JORNAL DOS SPORTS, 01 out. 1971, p. 04.
21 “Nilton Santos diz que não é babá de ninguém”, JORNAL DOS SPORTS, 1 out. 1971, p. 4.
197

Euclides de Freitas Couto


que Paulo Cezar enfrentava com os jornalistas, Nilton Santos sai em
defesa desta: “Eu sempre disse aos meus companheiros e volto a re-
petir agora para os meus jogadores: não dê chance, porque os repór-
teres ganham para contar o que acontece” (JORNAL DOS SPORTS, 1
out. 1971, p. 4).
O veredicto de jogador-problema, no entanto, é dado no final da
página, por meio de uma crônica assinada pelo jornalista Fernando
Horácio. No texto ele procura ressaltar os valores morais presentes
na trajetória futebolística do diretor alvinegro, os quais, supostamen-
te, o legitimam a adotar quaisquer medidas punitivas ao jogador;
enquanto, ao atleta, cabe ouvir os conselhos e as repreensões a ele
impostas:

Nilton Santos foi um dos maiores jogadores que o futebol bra-


sileiro já produziu. Como lateral esquerdo ele apareceu por
volta de 1948, jogando de uma forma que é considerada hoje
a ideal. Pode-se dizer que estava adiantado a mais de 20 anos,
ao revelar um estilo próprio que acabou se tornando um mo-
delo. Como todo jogador que supera o normal e atinge os limi-
tes do gênio, Nilton Santos recebeu seu título: a Enciclopédia.
Seu futebol fino e elegante sempre de toque e jamais de vio-
lência, abriu caminho para dignificar a profissão de zagueiro.
[...] Esse homem que dignificou como poucos o futebol bra-
sileiro e a camisa do seu clube, volta ao futebol para ajudar
o Botafogo que não lhe sai do coração. Em Nilton Santos, o
homem esteve de acordo com o jogador. E como diretor, Nilton
entra com a classe e a categoria que sempre manteve dentro
e fora de campo. O primeiro problema surge com a revolta de
Paulo César. A reação foi a esperada: a conversa tranqüila,
porém firme; a fala mansa; porém sábia. Paulo César, no en-
tanto, parece que não escutou direito. O problema, ao invés
de minimizar-se, aumentou. [...] E, mais uma vez seria bom
que Paulo César meditasse. Se não quer mais ficar no clube é
porque tem suas razões. Mas todo cuidado é pouco no trato
com Nilton Santos, para não atingir um homem cuja vida é
mais do que um exemplo.22

22 “O exemplo eterno de N. Santos”, JORNAL DOS SPORTS, 01 out. 1971, p. 04, grifo
nosso.
198
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

De maneira explícita, o jornal não apenas se manifesta contrá-


rio à atitude de protesto de Paulo Cezar, como também toma parti-
do em favor do diretor Nilton Santos. Apesar de serem praticamente
inquestionáveis as virtudes elencadas do curriculum desportivo e
pessoal do diretor e ex-jogador botafoguense, a maneira como são
compostas e articuladas as reportagens e crônicas aponta claramen-
te para a construção de um juízo de valor. Previamente condenado
pela imprensa, o jogador-problema passa a ser de forma automática
recriminado pela opinião pública:

Qualquer trabalhador pode ter um desentendimento no seu


ambiente de trabalho. Qualquer um pode tomar a sua cerveja
no final do dia. Qualquer um pode fazer essas coisas banais.
Menos o jogador de futebol. O jogador deve satisfação não só
à sua família, mas a toda torcida do seu clube. Sabendo disso,
os caras aparecem em cima de você. Esse lance da imprensa
realmente me deixava descontrolado. Eu não sabia muito bem
o que eu poderia fazer. De repente qualquer coisa viraria uma
bomba. E como esses caras gostam de vender bomba! Foi por
causa dessas bombas que eu saí do Botafogo. Eu nunca fui san-
to, mas os caras inventavam, aumentavam. No outro dia tava
todo mundo com cara de merda pra mim. [...] Por causa dessas
coisas eu me tornei um cara antipático e quando eu entrava em
campo, sofria as conseqüências dessa antipatia.23

Em 1974, novamente no período de preparação da Seleção


Brasileira para uma Copa do Mundo, a história se repetiria. Vaiado
de forma insistente, mesmo após marcar um dos gols na vitória brasi-
leira sobre o Haiti pelo placar de 4 a 0, em jogo realizado na cidade de
Brasília, Paulo Cezar ainda não percebia com clareza que a persegui-
ção da torcida possuía outras motivações que se encontravam fora
dos gramados. Em entrevista concedida à revista Placar, o jogador,
em tom de desabafo, mostrava seu desconforto com a situação que
se repetia a cada jogo:

Estou com a cabeça estourando, não entendo direito o que está


acontecendo. Durante muito tempo suportei críticas injustas,
mentirosas, campanhas contra o meu comportamento fora de

23 Entrevista concedida por Paulo Cezar Caju, 10 nov. 2008.


199

Euclides de Freitas Couto


campo. Mas agora ser vaiado em todos os estádios, ainda por
cima com a camisa da Seleção, é forte demais. As vaias no Rio
me deixaram chateado, mas não levei muito a sério – estou
acostumado a ser vaiado pela torcida do Flamengo. Estava pre-
parado para a coisa em São Paulo, devido ao grande número
de jogadores do meio-campo paulistas. Mas em Brasília senti
que se trata de uma marcação pessoal, exclusiva contra mim.
[...] Podem até pensar que quero chamar a atenção para mim.
Mas eu gostaria de ser entendido. Só não posso sair por aí a ex-
plicar a cada torcedor que me vaia nos estádios que eu, Paulo
César, não sou o que muitos pensam. Vou a boates sim. Mas
não fumo, nem bebo, nem esbanjo dinheiro. Paulo confessa que
a partir do jogo de Brasília tem passado os dias a procurar os
motivos para as vaias que o perseguem.24

No bojo dos acontecimentos, Paulo Cezar não compreendia


que o estilo de vida que havia adotado não condizia com o perfil
de jogador requisitado pela sociedade. Desfilando pelas noites ca-
riocas num carro conversível, usando calça boca de sino e camisas
estampadas, o craque exteriorizava sua irreverência, exibindo uma
cabeleira black power tingida na cor caju. Ao incorporar em sua apa-
rência elementos de uma estética subversiva, o jogador reforçava
sua identidade rebelde, contestatória, estimulando, dessa forma, os
esquemas classificatórios presentes no imaginário social. Ao se fazer
reconhecer socialmente como um representante da rebeldia, o joga-
dor estabelecia um confronto permanente com os padrões sociais
vigentes. Em função disso, e de suas aventuras boêmias, sua imagem
era, sistematicamente, explorada de forma negativa pela imprensa.

Se, por meio da imprensa, os traços de rebeldia eram reconhe-


cidos nacionalmente, o conflito estabelecido com os padrões sociais
encontrava nos estádios de futebol o espaço adequado para a sua
manifestação. Locus privilegiado para a exteriorização das emoções,
os campos de futebol forneciam as condições socioespaciais e sim-
bólicas propícias para que os torcedores pudessem coletivamente
exteriorizar suas convicções políticas e morais e seus preconceitos
de diversas naturezas, conforme sinalizam os sociólogos Norbert
Elias e Eric Dunning (1992b, p. 105).
24 “Futebol é a minha arma”, PLACAR, 3 mai. 1974, p. 2, grifo nosso.
200
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Espaço nos quais a atividade de lazer permitiria o relaxamen-


to das restrições sociais, os campos de futebol – como outras pra-
ças esportivas – favorecem a busca da excitação, ou seja, a busca da
emoção compensadora conquistada a partir de rituais controlados aos
quais são incorporados xingamentos, vaias, gritos de guerra e até
mesmo confrontos físicos. À luz da teoria elisiana, esses rituais ob-
servados nas arquibancadas fornecem, na verdade, representações
redimensionadas dos embates preexistentes nas sociedades. Assim,
os xingamentos e as vaias direcionados ao nosso personagem podem
ser compreendidos como uma sanção pública ao seu comportamen-
to desviante. Reunidos em um estádio, desprovidos das restrições
cotidianas, os torcedores encontram no jogo de futebol o lugar e o
momento adequados para exteriorizar sua reprovação ao jogador-
-problema. Com efeito, o sentimento de rejeição manifestado contra
Paulo Cezar pode revelar uma das diversas faces da instauração do
ethos autoritário na sociedade brasileira. A contínua reprovação das
atitudes contestatórias promovida pela imprensa25 – e sua ratifica-
ção nos estádios – sinaliza que o autoritarismo presente na esfera go-
vernamental encontrava aí solo fértil para sua disseminação. O fute-
bol tornava-se nessa outra dimensão uma arena em que se travavam
livremente os conflitos ideológicos presentes na sociedade.

3.4. Afonsinho: barba, cabelo e atitude

Em uma manhã de agosto de 1970, Afonsinho, meio-campo do


Botafogo, se apresentou para os trabalhos que abriam o segundo se-
mestre daquela temporada. A imprensa esportiva vangloriava-se da
inédita conquista do tricampeonato mundial no México. O técnico
Zagallo, retornando às suas atividades no alvinegro carioca, trazia
em sua memória o viço das imagens que, insistentemente reprisadas
pelas emissoras de todo o mundo, se tornariam ícones da perfeição
alcançada por uma equipe de futebol. No entanto, embora defendes-
sem as cores da mesma agremiação, o antagonismo ideológico im-
pediu que técnico e jogador unissem suas forças em prol do time
da estrela solitária. Naquele dia, ao exibir sua barba e seus cabelos

25 Marilena Chauí (1986, p. 28) acredita que, especialmente no período da ditadura


militar, os meios de comunicação de massa atenderam aos pressupostos
ideológicos do Estado, sendo por ela considerados instrumentos de propaganda e
doutrinação.
201

Euclides de Freitas Couto


ligeiramente fora dos padrões requisitados para um jogador de fu-
tebol, Afonsinho suscitou no técnico os sinais do autoritarismo de
coloração verde-oliva por ele incorporados durante a epopeia mexi-
cana: o jogador ficaria proibido de treinar com seus companheiros
enquanto não se apresentasse com a aparência “adequada”. General
Severiano, o centro de treinamentos do clube, fazia jus à patente des-
crita em seu nome. O clube ganhava feições de quartel, o jogador de
futebol assumia a fisionomia de soldado.
Ao ser indagado sobre o seu visual, Afonsinho garante que, no
dia em que se reuniu aos demais jogadores, com barba e cabelos um
pouco fora dos “padrões”, não desejava insinuar qualquer tipo de
provocação. Todavia, a partir do momento em que sentiu que sua
liberdade fora violada pela atitude autoritária do treinador, assumiu,
por meio da aparência, uma atitude de protesto:

Eu cheguei exatamente dessa viagem,26 comecei a deixar a bar-


ba e o cabelo. Tava bem ralinho, depois cresceu bastante. Mas
foi motivo também pra eles implicarem. Eu não podia treinar
com o grupo porque eu tava diferente. Isso é uma coisa ridí-
cula, não é? [...] Eu não queria provocar ninguém. Era só uma
questão de moda. Era uma influência daquela época de 68, da-
quilo tudo, eu era estudante e me assumia rebelde mesmo. Eu
era um jovem da época. Só que quando o Zagallo me proibiu
de treinar, eu mantive minha palavra. Aquilo virou uma atitu-
de de rebeldia e passou a ser dentro do futebol uma proposta
interessante. E depois veio 72 e o visual mudou totalmente. O
próprio Clodoaldo, um cara bem careta, deixou o cabelo cres-
cer. Tem o Carlos Alberto e vários outros jogadores que assu-
miram um visual moderno. (Informação verbal)27

26 Neste trecho da entrevista, Afonsinho se remete à excursão realizada pelo Olaria


durante o mês de junho de 1970. Nessa oportunidade, a equipe do subúrbio
carioca havia realizado jogos amistosos no sudeste asiático. No retorno ao Brasil,
Afonsinho resolveu se desligar da delegação na metade do percurso. Desembarcou
na Europa, onde realizou, por alguns dias, o que ele denominou de turismo cultural.
27 Entrevista concedida por Afonsinho, 13 set. 2007.
202
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Figura 21 – Afonsinho em General Severiano, agosto de 1970


Fonte: Arquivo particular Afonso Celso Garcia Reis.

O confronto, inicialmente travado com o técnico Zagallo, logo


contou com a participação dos diretores do clube, atraindo a atenção
de grande parte da imprensa esportiva do país. O bom desempenho
do jogador nas partidas que disputara pelo campeonato estadual,
quando defendeu as cores do Olaria, havia garantido seu retorno ao
alvinegro. No entanto, sua atitude contestatória desafiava não ape-
nas a autoridade do treinador do Botafogo, mas toda a ordem que se
instaurava no futebol brasileiro naqueles tempos.
Com efeito, após a conquista da Copa de 70, homens como o
preparador físico Admildo Chirol e o técnico Zagallo tornaram-se
símbolos de organização e eficiência, marcas substanciais incorpora-
das pelo novo futebol brasileiro. O treinador, admirado por implantar
um modelo de jogo que reunia as virtudes do futebol-arte ao preparo
físico e à disciplina, ganhava grande respaldo no meio futebolístico
do país.28 De volta às atividades na comissão técnica do Botafogo,
a experiência vitoriosa no México forneceu à dupla Zagallo/Chirol a
legitimidade necessária para que aplicassem, no alvinegro carioca, o
mesmo modelo de treinamento desenvolvido na seleção, conforme
28 “Admildo Chirol: venceu a nova mentalidade”, JORNAL DOS SPORTS, 25 jun. 1970, p. 8.
203

Euclides de Freitas Couto


ressaltava Carlos Alberto Parreira, naquela oportunidade prepara-
dor físico do selecionado brasileiro:

“Que os clubes façam uma revolução em seus métodos de tra-


balho e partam para o que foi feito na seleção” – Esse é o apelo
de Carlos Alberto Parreira, competente e aplicado integrante
da equipe de preparadores físicos da seleção brasileira que
conquistou o tricampeonato de futebol. [...] Discordando da
tese da formação de uma seleção permanente, Carlos Alberto
Parreira pede mais: “Que sejam mantidas a organização e a se-
riedade que marcaram a seleção-70”.29

É interessante notar como a imprensa legitimava o discurso


disciplinador proferido pelo preparador físico. Com efeito, as fan-
tásticas exibições dos canarinhos nos gramados mexicanos não só
representaram o retorno do futebol-arte, como também serviram
para credenciar os novos modelos de treinamento e sistema tático
implantados por Zagallo. Como lembra Florenzano (1998), naquele
contexto ressaltava também a obediência e a disciplina dos jogado-
res brasileiros:

Dir-se-ia que a conquista do tricampeonato encerrava a lição


segundo a qual: “A obediência é uma virtude. Para ministrá-la
nos clubes brasileiros, a seleção nacional traria da Copa de 70
o espectro do jogador-soldado”. (FLORENZANO, 1998, p. 74-75)

Afonsinho, por sua vez, ao exteriorizar sua rebeldia por meio


de atitudes contestatórias, destoava completamente do modelo de
jogador requisitado pelos padrões da época. No entanto, a cena an-
tes relatada não explica a origem do conflito entre o atleta rebelde
e o técnico autoritário. A desobediência e a insubordinação aos ca-
prichos e ordens do treinador já haviam motivado, anteriormente, a
transferência do jogador para outro clube, revelando claros sinais de
desgaste na relação entre ambos.
Afonsinho iniciou a carreira nos juvenis do XV de Novembro
de Jaú, cidade do interior paulista em que residia. Aos 16 anos, a
convite do Botafogo, transferiu-se para o Rio de Janeiro para atuar

29 “O caminho do tetra III: Parreira pede revolução nos clubes”, JORNAL DOS SPORTS,
9 jul., 1970, p. 12, grifo nosso.
204
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

nas categorias de base do clube alvinegro. Após a conquista do tetra-


campeonato brasileiro de amadores em 1966, Afonsinho despontava
como uma grande promessa do futebol carioca. No ano seguinte, já
figurava no elenco de profissionais da equipe comandada pelo ex-
-jogador Zagallo.

Apesar da boa qualidade do seu futebol, entre os anos de 1967


e 1969,30 Afonsinho teve poucas oportunidades de se apresentar com
a camisa alvinegra. Afinal, em sua posição jogava Gerson, conhecido
como o Canhotinha de Ouro, ídolo do clube que, posteriormente, tam-
bém se consagraria na Seleção Brasileira. Somente em julho de 1969,
com a transferência do craque para o São Paulo, se criou uma oportu-
nidade clara para que Afonsinho assumisse uma vaga no meio-campo
da equipe. No entanto, para surpresa de todos, Zagallo insistia em
escalar outros jogadores. O primeiro grande conflito entre técnico e
jogador era iminente.
Em janeiro de 1970, quando o Botafogo realizava uma excur-
são pelo continente americano, Afonsinho, ao receber do roupeiro,
ainda no quarto do hotel, a camisa de número 14, deduziu que, mais
uma vez, ficaria no banco de reservas. Em uma atitude desesperada
– como ele próprio narra –, procurou os companheiros e questionou-
-os se, de fato, havia um sentimento de rejeição por parte do treina-
dor com relação a ele. Convencido de que era perseguido pelo trei-
nador, mas contava com o apoio dos demais jogadores, Afonsinho
resolveu decidir seu futuro antes mesmo do retorno da delegação ao
Brasil, conforme narra a seguir:

Fui pro hotel! Fui pro hotel e procurei a direção. Eles me dis-
seram que iam se reunir com o treinador e tal. Eu aguardei e
não aconteceu nada. Fui isolado, eu falei: – Olha, vocês dis-
seram que ia ter uma solução desde os episódios anteriores.
Então não havia mais nenhum argumento. Não existe nenhum
argumento, que agora eu não posso aceitar mais essa situa-
ção, não é? Aí ele (diretor) disse: “Não, tá certo”. Eu já tinha
saído do Botafogo porque fiz um acordo que ficaria e porque

30 Nesse mesmo período, Afonsinho ingressou na Faculdade de Medicina da UFRJ,


dividindo seu tempo entre os treinamentos e os estudos. O jogador relata que
graças às paralisações nas atividades futebolísticas, conseguiu dar continuidade
ao curso e, posteriormente, concluí-lo.
205

Euclides de Freitas Couto


acreditava que as coisas iriam se esclarecer. Eu preferi, de uma
maneira ou de outra, não sair nesse episódio. Eu fui procurar a
resolução e eles, naquela atitude, deixaram pra lá. Sei que isso
acontecia em outros clubes e era sempre o jogador que levava
ferro. Depois do jogo eu procurei o chefe da delegação: – Ué,
mas vocês não iam ter uma resolução aí? Não encontraram
uma resolução para esse problema? Aí o treinador disse que
aquilo era coisa pra ser resolvida mais tarde ou no dia seguin-
te, sendo que aquilo já tinha rolado desde a parte da manhã né,
entendeu? Fiquei meio desnorteado. Aí eu não tinha mais nada
mesmo pra fazer, então falei com ele: – então tá bom, se é mais
tarde ou amanhã então eu vou esperar mais tarde ou amanhã!
E voltei, voltei pro hotel aí rompi o meu contrato realmente
nessa excursão. (Informação verbal)31

O conflito entre Zagallo e Afonsinho repercutiu entre os demais


jogadores, já que boa parte deles apoiava a atitude do companheiro
(Informação verbal).32 A melhor solução encontrada pela direção do
clube foi ceder o jogador por empréstimo ao Olaria, clube do subúr-
bio carioca. Tal medida visava, simultaneamente, manter o atleta em
atividade e colocá-lo em evidência no cenário esportivo nacional. Se
ele realizasse boas atuações no campeonato estadual, poderia ter
seu passe valorizado no mercado futebolístico. Afonsinho não desa-
pontou: naquela temporada foi um dos destaques do Campeonato
Carioca, sendo apontado como um dos responsáveis pela boa cam-
panha do Olaria.
Se, de um lado, as boas atuações nas partidas válidas pelo
Campeonato Carioca de 1970 garantiram o retorno de Afonsinho ao
Botafogo, de outro, elas não conseguiram retirar todos os espinhos
incrustados em sua relação com o técnico Zagallo. O embate com o
treinador ganhava repercussão nacional: Afonsinho, um mero desco-
nhecido, desafiava Zagallo, o técnico tricampeão mundial. A rebeldia
de um jovem colocava em xeque toda a ordem autoritária que se
estruturava no futebol brasileiro.

31 Entrevista concedida por Afonsinho, 13 set. 2007.


32 Entrevista concedida por Paulo Cezar Caju, 10 nov. 2008.
206
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

3.4.1. Passe livre: quando a busca por um direito simboliza


uma atitude de rebeldia

Diante do impasse com o técnico Zagallo, Afonsinho, em


uma atitude cautelosa, decidiu comparecer diariamente a General
Severiano para realizar seus treinamentos. Todavia, de forma sur-
preendente, poucos dias após o episódio com o treinador, o jogador
recebeu a notícia de que não poderia mais utilizar as dependências
do clube, tampouco teria acesso ao material esportivo destinado aos
atletas. Tal medida, segundo os relatos do jogador, visava acabar
com sua carreira: “Se eu não estivesse em forma, não poderia jogar
nem no Botafogo, nem em lugar nenhum! Eles queriam me dispensar,
queriam me tirar do futebol. (Informação verbal)”33
Preocupado com os danos que a ausência dos treinamentos
causaria em sua condição física, Afonsinho recorreu ao amigo e pre-
parador físico do Botafogo Admildo Chirol, que lhe prescreveu um
circuito de exercícios com o objetivo de minimizar os prejuízos causa-
dos pelo “recesso” de suas atividades. Contudo, preocupações ainda
maiores atormentavam o jogador: proibido de exercer temporaria-
mente a profissão, sua carreira poderia ser encerrada, caso não re-
visse sua atitude. Naquele tempo, a legislação que regulamentava as
relações trabalhistas no futebol ancorava-se na Lei do Passe, um dis-
positivo legal que impunha um alto grau de submissão do jogador aos
clubes de futebol, conforme denunciava o jornalista e político Carlos
Lacerda, aproximadamente quatro meses antes do episódio narrado:

Até hoje os cartolas resistem, a opinião pública, não insiste, os


jogadores de futebol desistem de tratar do problema central
do profissionalismo do futebol: a sujeição dos jogadores a uma
forma de escravidão que se disfarça, mas não esconde. O “pas-
se” todos sabem o que é. Um jogador contratado por um clube
é chamado para outro clube. Este paga àquele o “passe”, ou
seja, um preço pelo jogador. Até algum tempo atrás, esse “pas-
se” era um dinheiro de clube para clube. O jogador não via um
níquel. Depois, passou a receber uma gratificação ou “mata-
-bicho”. A certa altura, na Câmara dos Deputados, apresentei à
Comissão de Legislação Social – era deputado pela Guanabara
– projeto de Lei que regulava a profissão de jogador de futebol

33 Entrevista concedida por Afonsinho, 13 set. 2007.


207

Euclides de Freitas Couto


e outras do profissionalismo desportivo. Depois de muito boi-
cotado, desfigurado, sabotado, meu projeto transformou-se em
lei por outras mãos, com outros nomes. Mas no caminho des-
figuraram o projeto inicial. O que propus foi, pura e simples, a
extinção do “passe”. Atendi, com cuidado, a ponderações de
alguns cartolas de boa índole. Estes diziam: “Um clube faz in-
vestimentos num jogador desconhecido, que pode ou não dar
um craque. Trata dele, treina ele, cuida dele, depois ele pas-
sa para outro clube. Quem paga essa preparação toda?” Bem,
disse eu ao prezado paredro, é muito simples: no contrato do
jogador o clube prevê uma porcentagem para as despesas que
ele já tenha feito com o referido senhor. Comprova essas des-
pesas e depois se reembolsa. [...] Matreiramente, fez-se uma
lei de escravidão mal disfarçada. Segundo essa lei astuciosa,
o jogador recebe 15 por cento do “passe”. O clube fica com o
resto. [...] É uma exploração sórdida, uma escravidão em ple-
no século XX. [...] É preciso uma campanha abolicionista para
acabar com o passe. É preciso dar ao jogador a oportunidade
de vencer profissionalmente, sem ser tratado como menor de
idade mental, como incapaz perante a lei, à mercê dessa explo-
ração, que é sinal de atraso e de desprezo pela dignidade do
trabalho – e pela própria dignidade humana.34

Naquele contexto, Lacerda, protagonista de momentos decisi-


vos da história política do país,35 recorria ao mesmo repertório de
ação política já anteriormente utilizado: após ter o jornal de sua pro-
priedade, a Tribuna da Imprensa, previamente censurado a partir de
junho de 1968, utilizou outros veículos de comunicação para lançar
seus ataques à ordem social e à política vigente no país. No entanto,
o elemento realmente original a ser extraído das palavras do jornalis-
ta não é o que se refere às críticas à legislação, tampouco à compla-
cência dos governantes e cartolas com a situação de exploração do

34 “Carlos Lacerda: Escravidão”, PLACAR, n. 3, 3 abr. 1970, p. 5.


35 Nos anos 1950, o jornalista Carlos Lacerda liderou uma das maiores frentes de
oposição ao Governo Vargas. Em agosto de 1954, ao sofrer um atentado próximo à
sua casa, responsabilizou publicamente, por meio do seu jornal, o presidente pelo
incidente. O fato, que causou a morte do seu segurança, o major-aviador Rubens
Tolentino Vaz, também levaria a uma crise sem precedentes na presidência da
República, culminando com o suicídio do presidente Vargas (FAUSTO, 2002,
p. 417-418).
208
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

trabalho, mas o que se relaciona ao fato de Lacerda eleger o universo


das relações trabalhistas do futebol brasileiro para, por meio delas,
denunciar as mazelas sociais decorrentes da imobilidade das ações
políticas institucionais.
Fruto do patrimonialismo e da corporificação do Estado no po-
der executivo determinada pelo AI-5, a displicência com que o gover-
no tratava a exploração do jogador de futebol reproduzia com fide-
lidade a dinâmica dos bastidores políticos do país. De forma similar
ao que ocorria em outras instâncias da vida social, o fechamento dos
canais institucionais de ação política não impediu que os confrontos
se manifestassem em outros palcos. Como veremos oportunamente,
no “caso Afonsinho” as manifestações de apoio oferecidas ao jogador
pelos setores progressistas da sociedade, e a consequente pressão
exercida sobre os membros do Poder Judiciário, são indicadores de
que os embates políticos, assim como a luta pelos direitos indivi-
duais, deslocavam-se gradativamente para a arena cultural, encon-
trando espaços cada vez maiores nos meios de comunicação escrita
e audiovisual. Assim, a luta particular travada entre o jogador e o
clube de futebol – luta por direitos trabalhistas –, fato aparentemente
pontual, assumiu grandes proporções na história política e despor-
tiva do país.

3.4.1.1. Passe ou impasse? A lei

Notoriamente ultrapassada, devido ao gradativo processo de


profissionalização dos jogadores brasileiros, a Lei do Passe previa
que, após cinco anos de contrato com o mesmo clube, o jogador fi-
caria vinculado a ele até completar a idade de 32 anos. Antes disso, a
transferência para outra agremiação estaria condicionada a uma au-
torização que só poderia ser emitida pelo próprio clube. Em termos
práticos, tal documento só era emitido se o clube ao qual o jogador
estivesse vinculado obtivesse uma vantagem financeira na transfe-
rência. Ou seja, cabia ao clube a decisão de vender, emprestar ou
permanecer com o jogador. No caso “Afonsinho”, a queda de braço
entre o técnico e o jogador conduziu a questão para outro caminho: a
diretoria do Botafogo resolveu, em um gesto pouco comum, encerrar
o contrato do jogador, alegando que sua atitude feria os códigos dis-
ciplinares do clube (ARAÚJO, 1980, p. 75, apud FLORENZANO, 1998,
p. 96). Tal expediente culminaria no fim da carreira do atleta, uma
209

Euclides de Freitas Couto


vez que a Lei do Passe impedia que, mesmo nesses casos, o jogador
obtivesse sua transferência.
Impedido, em âmbito mundial, de exercer sua profissão em
qualquer clube de futebol profissional, a única saída para o jogador
foi recorrer à justiça. Todavia, no caso de Afonsinho, não se tratava
apenas de reivindicar um direito na esfera trabalhista, mas de travar
uma batalha contra o “passe”, uma instituição social estabelecida e
sustentada pelos cartolas e políticos mais poderosos do futebol bra-
sileiro. Prova disso era que, até então, nenhum outro jogador havia
vencido os clubes nos tribunais. No entanto, a estratégia montada
pelo sr. José Reis, pai do jogador, era inovadora:

Isso foi uma demonstração de inteligência do meu pai. Foi


ele quem enxergou o lado político da coisa. A questão tomou
um vulto muito grande. Ganhou uma repercussão enorme.
Grandes jornais e revistas passaram a publicar matérias sobre
a minha decisão: “Quem é esse jogador que está discutindo o
passe?” “O que você acha, o que você não acha?” A questão
virou assunto nacional. Meu pai viu que se nós arrastássemos
o processo iríamos ganhar apoio da opinião pública. Nós sa-
bíamos que no Tribunal da Federação Carioca não tínhamos
chance. Era viciado. Perdemos na primeira instância, mas no
STJD da CBF conseguimos vencer por unanimidade e, como
por unanimidade não cabia recurso, a batalha estava vencida
e eu estava livre. (Informação verbal)36

De fato, a estratégia de defesa arquitetada pelo pai do jogador37


mostrou-se eficiente, uma vez que a exposição do caso pela imprensa
trouxe à tona o tema da exploração do trabalho, uma faceta do futebol
praticamente desconhecida do grande público. Na medida em que a
questão do “passe livre” ganhava destaque em âmbito nacional, aumen-
tava o clamor da opinião pública a favor do jogador. Acredita-se que esse
fato possa ter influenciado o veredicto dos juízes (FLORENZANO, 1998, p.
105). Em março de 1971, Afonsinho saía do Superior Tribunal de Justiça
Desportiva (STJD) com a maior conquista de sua carreira de jogador.

36 Entrevista concedida por Afonsinho, 13 set. 2007.


37 É importante mencionar que Afonsinho contratou para sua defesa o ex-governador
da Guanabara, Rafael Almeida de Magalhães, um dos mais famosos e influentes
advogados da época.
210
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

No período entre setembro de 1970 e março de 1971, tempo em


que o litígio se arrastou na justiça desportiva, além da ampla cober-
tura dada pela imprensa, inúmeras pessoas ligadas ao movimento es-
tudantil e às classes artísticas, bem como intelectuais e políticos de
esquerda, manifestaram apoio à causa do jogador. Além da barba e
dos cabelos compridos – traços muito associados à estética corporal
dos membros das organizações de esquerda dos anos 1970 –, a luta
pelo “passe livre” se incorporava ao repertório de reivindicações dos
grupos progressistas, como relata Afonsinho:

Eu era estudante de medicina naquela época. As minhas idas e


vindas no futebol permitiram que eu fizesse uma matéria aqui,
um estágio ali. E estudante naquela época você já viu. [...] A
minha juventude foi nesse período de ditadura, movimentos so-
ciais. Nessa coisa eu entrei na universidade nessa época e tal,
então foi quando teve assembléias e eu cheguei a ter uma parti-
cipação, mas nada assim muito forte, pois eu jogava e tal... não
tinha muito tempo livre. E a questão de discutir o passe no mo-
mento de censura e repressão e tal, me aproximou de muitas
pessoas interessantes, inteligentes, participativas, combativas.
Aí eu fui estreitando o meu relacionamento com muitas pessoas
assim. Muitas delas me apoiaram abertamente, compraram mi-
nha causa, levaram pra imprensa. (Informação verbal)38

Solidários a sua atitude “revolucionária”, artistas e intelectuais,


principalmente no Rio de Janeiro, elegeram Afonsinho como um ver-
dadeiro guerreiro na luta contra a exploração imposta pelas classes
dominantes. Após a vitória nos tribunais, aumentou ainda mais o
assédio da imprensa. Nos encontros agendados para a elaboração
desta obra, uma das diversas entrevistas concedidas despertou a
memória do jogador:

Me chamaram para dar uma entrevista.39 Aquilo ali pra mim


foi uma verdadeira psicanálise. Era a imprensa alternativa,
como tudo era censurado, tudo era alternativo, alternativo.
Foi uma coisa bem extensa, com o gravador e eu tava com

38 Entrevista concedida por Afonsinho, 13 set. 2007.


39 Afonsinho não se lembra ao certo para qual jornal concedeu a referida entrevista.
Lembra-se, apenas, que foi logo após a conquista do “passe livre”.
211

Euclides de Freitas Couto


aquilo... Eu botei tudo aquilo pra fora e tal... E eu senti assim
bem melhor. (Informação verbal)40

O desabafo pelas perseguições sofridas no Botafogo, suas con-


vicções políticas e a representação da vitória alcançada nos tribu-
nais, posteriormente publicados pelo jornal alternativo, consolida-
ram a imagem subversiva do jogador perante a opinião pública. Ao
lançar suas farpas contra os clubes de futebol, seus dirigentes e, prin-
cipalmente, contra a conivência do governo autoritário, Afonsinho
assumia, com suas ações e sua aparência, todo o discurso libertário
das esquerdas do país: “Venci e agora a minha barba e meus cabelos
compridos são um símbolo da liberdade” (O ESTADO DE S. PAULO, 16
fev. 1972 apud FLORENZANO, 1998, p. 105).
Incorporando o papel de representante das esquerdas no meio
futebolístico brasileiro, Afonsinho aproximou-se de militantes e po-
líticos. Artistas como Chico Buarque, Sérgio Ricardo e Gilberto Gil
tornaram-se seus grandes amigos. Inspirado nessa amizade, Gil com-
pôs, no ano de 1973, a canção “Meio de campo”:

Prezado amigo Afonsinho


Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão.

Inscrita no contexto das canções de protesto,41 esta letra revela


nas entrelinhas as querelas presentes no discurso das esquerdas no
Brasil. Gil utiliza imagens relativas ao futebol para criticar o contexto

40 Entrevista concedida por Afonsinho, 13 set. 2007.


41 As canções de protesto, canções panfletárias e as canções revolucionárias en-
quadram-se no movimento de engajamento político da produção cultural brasileira
que se desenrolou, especialmente, a partir do final da década de 1950. Ao incorpo-
rar em suas letras diferentes conteúdos e temáticas, as músicas de protesto tra-
ziam à tona os inúmeros conflitos e tensões presentes na esfera política e social
212
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

político pelo qual o país passava. A figura de linguagem42 “aperfeiçoar


o imperfeito”, paralela a “desprezando a perfeição”, aponta para a
“meta” do artista, que não é colocar em questionamento uma pos-
sível “perfeição” estética e/ou política. O que parece estar em jogo
não é o modelo da perfeição, mas sim a tentativa de aperfeiçoar o
que nunca será perfeito – ou seja, uma luta constante e inglória que
usa o futebol como metáfora: “jogar muito para perder de pouco”.
A perfeição é “desprezada”, de um lado, porque não há o que fazer
quando nada mais pode ser feito; de outro, tomando o viés político-
-histórico-discursivo da questão, a perfeição é tratada com desprezo;
ou seja, não é levada em consideração, uma vez que é preciso ter
como “meta” “aperfeiçoar o imperfeito” – um gesto inútil. Marcar um
gol numa partida em que o “goleiro da seleção” – que representa me-
taforicamente a ideia de nação e o poder articulado pelo governo da
época – defende o modelo de “perfeição” política e social instituído
pela ditadura militar – e avalizado por várias camadas da sociedade
– é mesmo uma tarefa árdua; mas não custa tentar.
Na continuação da letra, a ideia de rejeição ao modelo oficial
de “perfeição” continua a ganhar força. Ao explorar dois ícones da
seleção de 1970, Pelé e Tostão, o compositor – o caráter pessoal in-
troduzido pela expressão “Prezado amigo” autoriza a fusão entre o
sujeito do discurso e o próprio Gilberto Gil – nega qualquer seme-
lhança entre sua própria imagem e a de Pelé, considerado um modelo
de jogador perfeito que, no entanto, corroborava a ideologia preconi-
zada pela ditadura militar; por outro lado, o mesmo Gil se compara a
Tostão, que trazia em sua trajetória as marcas da contestação,43 assim
como o interlocutor/destinatário do texto em questão, Afonsinho. As
marcas textuais do gênero carta pessoal44 (pertencente ao domínio
discursivo “carta”) denotadas pelos vocativos no primeiro verso –
“Prezado amigo Afonsinho” – e no último – “meu irmão” – evidenciam
a estratégia do compositor de se colocar em condição de igualda-
de e intimidade com Afonsinho. Equivalentes, artista e jogador (que

brasileira. Sobre a produção e recepção das músicas engajadas no período em


questão, consultar os estudos de Barradas (2004) e Caldas (2005).
42 A figura de linguagem, também conceituada como figura de estilo, é um recurso de
linguagem que consiste em apresentar uma ideia por combinações incomuns de
palavras. A figura resulta de um desvio da norma (FARACO; MOURA, 2003, p. 572).
43 Aprofundaremos a análise dessa questão ao longo deste capítulo.
44 Na linguagem jornalística, a carta é considerada como um recurso que permite a
expressão dos pontos de vista, reivindicações e emoção (MELO, 1985, p. 128).
213

Euclides de Freitas Couto


também pode ser considerado um artista, pois o futebol é visto por
muitos como uma arte) enfrentam as mesmas dificuldades estabele-
cidas pelas relações de poder vivenciadas naquele contexto. Nessa
lógica, o “gol” traduziria a possibilidade de vitória na luta travada
pelas esquerdas e por outros segmentos do país contra o governo
autoritário.

Apesar de não ter se filiado a nenhum partido ou organização


política, Afonsinho foi rotulado de “comunista”, “revolucionário”,
rebelde e até mesmo de mercenário.45 Embora saísse vitorioso do
STJD, o julgamento público de Afonsinho continuou nos “tribunais”
organizados pela imprensa. Nas inúmeras entrevistas que concedeu
após o processo judicial, ainda ostentando a barba e a cabeleira, o
jogador fazia questão de ressaltar fatos como a exploração dos atle-
tas, o enriquecimento dos cartolas e as restrições à liberdade de ex-
pressão impostas pelo governo militar. Num contexto marcado pelas
perseguições, torturas e desaparecimentos de militantes da esquer-
da, ele se mostrava consciente das possíveis consequências de suas
atitudes. Ao recordar o ano de 1972, quando assinou um contrato
com o Santos F.C., Afonsinho afirma, em tom bem-humorado, que ha-
via sentido o “bafo”, expressão que significava a proximidade das
autoridades militares. Nessa época, ele percebeu que sua vida estava
sendo investigada pelos agentes do governo:

Foi nessa época também que eu tive uma informação que eles
estavam de olho em mim. Na universidade a gente sabia que
estava toda ocupada por agentes e essa coisa toda. E havia
passeata e aquela coisa toda. Quando eu fui pro Santos é que
me ficharam lá no DOPS, mas eu tinha informações deles tam-
bém. Achavam que quando ia viajar nas excursões do time que
eu iria aproveitar pra visitar embaixadas dos países da corti-
na. Eu até tinha interesse na época, mas não, isso não aconte-
ceu. Não que eu não quisesse, eu não tive oportunidade de ir.
Tinha os torneios jogados em Buenos Aires, no Peru, no Chile,
no México. Tinha um também na Tchecoslováquia, outro na
Iugoslávia que se aprovassem a gente jogaria lá. Então os caras
acabavam cruzando todas essas informações e concluindo que

45 “Rebelde? Irresponsável? Moleque? Ou apenas um dos poucos jogadores de futebol


consciente e que sabe seus direitos?”, FOLHA DE S. PAULO, 17 set. 1973, p. 17.
214
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

eu tinha participação nesses movimentos. Mas eu não tinha...


Eu tive um interesse de conhecer, mas acabou não acontecen-
do. Eu até pensei, mas não aconteceu. Mas daí eles vigiavam
essa coisa toda, procuravam informações. Lá no DOPS você
pode ver na minha ficha todos os lugares por onde andei nessa
época. (Informação verbal)46

Esta narrativa revela como uma sucessão de fatos ocorridos


num curto espaço de tempo transformou o jogador em símbolo do
inconformismo e da rebeldia no país. Suas ações, inicialmente condu-
zidas por motivações particulares, assumiram sentidos coletivos ao
serem interpretadas pela sociedade. A luta travada contra o técnico
Zagallo pela manutenção do visual “agressivo”, assim como o poste-
rior litígio judicial contra o Botafogo, motivado pela busca do “pas-
se livre”, ganhou, entre os segmentos progressistas da sociedade,
a coloração de uma luta de classes47 estabelecida, respectivamente,
contra o cerceamento da liberdade de expressão e a exploração do
jogador de futebol. Assim, a suposta investigação da vida particular
de Afonsinho, conduzida por agentes do DOPS, evidencia o ethos sub-
versivo construído socialmente em torno de sua imagem.
Na opinião do ex-jogador Sócrates, um dos líderes do movi-
mento político conhecido como Democracia Corintiana,48 a rebeldia
exibida por Afonsinho, além de constituir um marco no futebol bra-
sileiro, semeou o espírito de contestação e de luta pelos direitos tra-
balhistas no país:

Na verdade o Afonso lutou por seus direitos. Uma ação polí-


tica, óbvio. Mas não tinha um contexto político institucional,

46 Entrevista concedida por Afonsinho 13, set. 2007.


47 Não consideramos nesta análise a categoria originalmente elaborada por Karl Marx,
mas uma de suas derivações culturalistas cunhada pelo sociólogo Pierre Bourdieu.
Nessa acepção, o embate de diferentes extratos sociais é exteriorizado também pelo
consumo, pela linguagem, pela aparência e pelas formas de utilização do corpo.
Assim, na sociedade contemporânea, a luta de classes encontra principalmente no
espaço simbólico o terreno adequado para sua difusão (BOURDIEU, 2007, p. 233-234).
48 O movimento, liderado pelos próprios jogadores do Sport Club Corinthians
Paulista, surgiu na esteira do movimento das Diretas Já, circunscrito ao período
de redemocratização da política brasileira. A Democracia Corintiana possuía como
principal bandeira a gestão democrática do clube de futebol. Nessa proposta, as
decisões sobre o cotidiano do clube deveriam ser tomadas a partir de sessões
de votação realizadas entre os jogadores, comissão técnica e pelos próprios
funcionários (GOZZI; SÓCRATES, 2003, p. 72-73).
215

Euclides de Freitas Couto


ele estava lutando por seus direitos. Quer dizer, você afrontar
um sistema absolutamente reacionário, em busca dos seus di-
reitos, já era uma grande guerra. Essa ação específica dele, de
ruptura do sistema, é uma ação política mais voltada para o
interesse do direito, e que até hoje os caras não têm conhe-
cimento. Quer dizer, quais são os seus direitos? Na verdade
uma boa parte dos trabalhadores nesse meio (futebol) são tra-
tados como gado, quer dizer, são manipulados o tempo todo,
fazem o querem com eles. Eles não discutem, não contestam,
não confrontam, porque não têm conhecimento dos seus di-
reitos. Quer dizer, o Afonso na verdade levantou uma questão
pública para este meio, e que por ser muito popular gerou, ob-
viamente, consequências, e à reflexão pública. Uma reflexão
da população sobre os seus próprios direitos. Obviamente
isso tem uma relação direta com a estrutura política institu-
cional. Então, naquele momento dentro do meio do futebol foi
um momento único. Digamos que foi um marco. Um marco da
conscientização. Uma forma de mostrar aos trabalhadores que
eles tinham que exteriorizar seu desejo e brigar por aquilo que
lhes interessava. Obviamente, não quer dizer que isso ocorreu,
que tenha ocorrido de forma uma revolução, algo coletivo, foi
muito pontual porque muito pouca gente tem coragem de bri-
gar por isso. Mas para mim, o mais importante são posições
políticas do Afonso. Quer dizer, ele sempre foi um cara que se
colocou claramente como um manifestante, um porta-voz da
população brasileira, acho que este aspecto é o mais importan-
te. (Informação verbal)49

Representante de uma geração de jogadores que iniciou a


carreira logo após Afonsinho conquistar o “passe livre”, Sócrates50
ressalta a importância das atitudes do ex-companheiro de profissão
para as gerações que o sucederam. Segundo ele, os jogadores de sua
época colhiam os frutos do espírito contestador plantado pelo co-
lega revolucionário. Essa impressão também pode ser extraída da
pesquisa do sociólogo José Paulo Florenzano (1998). A partir de uma

49 Entrevista concedida por Sócrates, 11 nov. 2008.


50 Sócrates iniciou sua carreira nas categorias de base do Botafogo de Ribeirão Preto
por volta de 1972. No ano de 1974, disputaria sua primeira temporada como jogador
profissional de futebol (SÓCRATES, 11 nov. 2008).
216
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

coleta de dados realizada nas edições da revista Placar que circu-


laram entre os anos de 1971 e 1974, o autor exibe diversas repor-
tagens cujo enfoque centraliza a luta de jogadores brasileiros pelo
passe livre. A análise desse material permite ao autor concluir que
a atitude de Afonsinho não foi um gesto solitário. Ao contrário, mui-
tos jogadores51 podem ter se inspirado no seu caso para também
impetrarem suas ações contra outros clubes. Ademais, vale ressal-
tar que o conjunto de ações e atitudes contestatórias desencadeado
por Afonsinho abriu espaço para uma ampla discussão na sociedade,
que possibilitou às massas, geralmente excluídas do debate políti-
co, construir percepções sobre questões relacionadas à exploração
do trabalho e às restrições da liberdade individual. Viabilizado pelo
espaço simbólico e discursivo promovido pelo futebol espetáculo, o
clamor popular em torno da questão se constituiu como elemento
fundamental de “pressão política” para que o poder público condu-
zisse o processo de remodelação da Lei do Passe, consubstanciado
na Lei Zico de 1990 e, posteriormente, na Lei Pelé de 1998.

3.5. Tostão: a dissonância dissonante

Simultaneamente aos acontecimentos protagonizados por


Afonsinho, outro jogador chamava a atenção da imprensa por sua
postura crítica em relação aos acontecimentos políticos do país e
por sua intolerância às práticas autoritárias que se instalavam no fu-
tebol brasileiro. Eduardo Gonçalves de Andrade, o Tostão, revelava
em suas palavras a mesma inteligência que o permitia “antecipar as
jogadas”, uma das suas maiores virtudes em campo. Considerado, ao
lado de Pelé, um dos principais jogadores da seleção de 1970, Tostão
é reconhecido atualmente por uma percepção refinada que o acom-
panha nas análises futebolísticas – tanto dos modelos táticos utiliza-
dos pelas equipes quanto das características técnicas dos jogadores.
Outras marcas sempre presentes na trajetória do ex-jogador são, in-
dubitavelmente, a discrição de sua vida pessoal e a sua aversão aos
holofotes.
Filho de uma tradicional família mineira, Tostão iniciou sua
carreira aos 13 anos de idade na categoria infantil do futebol de
salão do Cruzeiro Esporte Clube. Logo depois, transferiu-se para o

51 Essas reportagens enfocam principalmente as ações impetradas pelo goleiro Raul e


pelo meia Spencer: ambos possuíam o passe vinculado ao Cruzeiro Esporte Clube.
217

Euclides de Freitas Couto


futebol de campo, onde disputou duas temporadas pelo juvenil do
América/MG. Aos 16 anos, retornaria ao Cruzeiro, dessa vez para as-
sinar seu primeiro contrato como jogador profissional. Rapidamente
vieram os títulos e a glória: o Cruzeiro sagrou-se pentacampeão mi-
neiro entre os anos de 1965 e 1970 e campeão da Taça Brasil em 1966,
oportunidade em que os mineiros golearam, pelo placar de 6 a 2, o
famoso Santos de Pelé, considerado na época a melhor equipe do
futebol brasileiro. No mesmo ano, convocado para disputar a Copa
da Inglaterra, Tostão se tornaria um dos poucos jogadores poupados
pela torcida após o vexame da seleção.52
Contudo, as maiores glórias e os momentos mais dramáticos
de sua carreira de jogador ainda estavam por vir. Em setembro de
1969, no auge de sua forma, Tostão foi considerado o melhor jogador
brasileiro nas eliminatórias para a Copa de 1970; porém, um lance ca-
sual, ocorrido em uma partida entre Corinthians e Cruzeiro, daria iní-
cio a um longo drama que culminaria com o fim da carreira do joga-
dor em 1973. Após levar uma bolada no olho esquerdo, Tostão sofreu
um deslocamento de retina. O tratamento se deu às pressas, com
uma cirurgia realizada na cidade de Houston, nos Estados Unidos.
Tal procedimento tinha por objetivo recuperá-lo rapidamente para
a disputa da Copa do México – ao lado de Pelé, cujo histórico de
contusões também preocupava a comissão técnica, Tostão era uma
das maiores esperanças dos brasileiros para a almejada conquista
do tricampeonato mundial. Em abril de 1970, após seis meses de tra-
tamentos intensivos, Tostão se apresentou à Seleção Brasileira para
a preparação visando à Copa do Mundo. Apesar de conviver com os
constantes sangramentos no olho esquerdo e com a desconfiança
dos companheiros, o jogador apresentou uma performance brilhan-
te nos gramados mexicanos, se consagrando como um dos maiores
craques daquela geração. A conquista do tricampeonato soava como
uma recompensa após o enorme esforço empreendido para a recu-
peração do olho, conforme narra o ex-jogador em sua autobiografia
(TOSTÃO, 1997, p. 72.).
Apesar de sua conhecida aversão aos holofotes, traço que, se-
gundo ele, o afastou do meio político, Tostão não se mostrou isento
às questões vividas pela sociedade da época. No auge de sua carrei-
ra, sem causar grande estardalhaço, posicionou-se contra a ditadu-
ra militar, contra a política belicista norte-americana e, sobretudo,
52 “Torcida recebeu Tostão como herói da Copa”, DIÁRIO DE MINAS, 26 jul. 1966, p. 1.
218
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

contra o autoritarismo que contaminava o futebol brasileiro. Em en-


trevista concedida ao jornal alternativo O Pasquim, fica evidencia-
do que, no bojo dos acontecimentos, Tostão não se mostrava inti-
midado com o clima de tensão vivido pelos militantes de esquerda
no país. Tampouco se preocupava com as possíveis retaliações que
poderia sofrer por causa de suas declarações. Na primeira parte da
entrevista, o jogador declara-se leitor assíduo do semanário, que cir-
culava principalmente entre as camadas mais intelectualizadas da
população. Na sequência, depois de discorrer sobre os modelos táti-
cos existentes e o seu papel na Seleção Brasileira, o jogador passou a
ser questionado sobre suas opiniões políticas:

Tarso – Você é um ídolo nacional. Você acha que um ídolo tem


necessidade de participação política, já que ele empolga uma
multidão toda. Você não acha que ele não tem necessidade de
uma definição política permanente? Política no bom sentido,
não é essa besteira de UDN, política de participação, para o
bem geral do homem, da liberdade etc.

Tostão – A pior coisa do ídolo é parecer ser o que o povo é.


Então pra agradar o povo ele gosta do que o povo gosta. Eu
acho que a pessoa que é outra tem medo de dizer suas ideias.
Então, se ele der sua ideia diferente daquela que vai de encon-
tro ao povo, isso pode complicá-lo.

Tarso – E você não tem medo de dar suas ideias?

Tostão – Às vezes tenho realmente medo. Todo mundo, todo


ser tem às vezes suas ideias, suas convicções próprias e às ve-
zes o ídolo não pode dizer porque vai de encontro ao povo. [...]

Tarso – Eu, por exemplo, morro de medo de dizer que sou de-
mocrata, você entende? Se você tivesse que se definir politica-
mente, você acha que o homem tem o direito de dizer o que
quer, defender o pensamento que ele acredita que seja certo
em qualquer situação?

Tostão – Eu acho que sim, mas infelizmente ainda não podemos


agora dizer o que queremos porque estamos privados de muita
219

Euclides de Freitas Couto


coisa. Eu acho que isso é um direito de todo homem, está escrito
na Constituição, isso é lei. Mas infelizmente...

(Neste trecho Tostão havia se esquecido das mudanças pro-


movidas pelo AI-5, mas, rapidamente, foi alertado pelo jorna-
lista Tarso de Castro)

Tarso – Escrito onde?

Tostão – Quer dizer, na Declaração dos Direitos do Homem. Às


vezes a gente tem que ficar sujeito a coisas que vêm de cima,
então a gente não pode dizer o que quer, o que pretende. O
certo seria que todo mundo tivesse suas ideias, falasse as suas
ideias e mostrasse o que pensa, o que acha, e não a gente ficar
numa coisa só e ficar sujeito a aceitar isso e não poder dizer
mais nada, eu acho isso errado. (O PASQUIM, 3-10 mai. 1970, p.
17, grifo nosso).

Apesar do tom comedido, as declarações tinham endereço cer-


to: as restrições à liberdade ideológica impostas pela ditadura militar
nos anos subsequentes ao AI-5. Ao notarem sua percepção crítica
com relação aos acontecimentos políticos, os jornalistas do Pasquim
estimularam o jogador a opinar sobre inúmeras questões polêmicas
que percorriam o imaginário coletivo dos anos 1970: pílula anticon-
cepcional, participação política da Igreja, Guerra do Vietnã, autorita-
rismo no futebol etc. Em um dos momentos marcantes da conversa,
ao ser questionado pelo jornalista Jaguar sobre sua opinião acerca
da Guerra do Vietnã, Tostão não poupou críticas à política belicista
implementada pelos Estados Unidos:
Eu acho que é uma guerra realmente suja. Eu acho que nin-
guém é a favor da Guerra do Vietnam, é uma guerra mais econômi-
ca. A América do Norte precisa sempre manter sua produção de aço
em atividade, com isso eles estão lucrando. Eu acho que é mais uma
guerra econômica do que uma guerra de ideias (O PASQUIM, 3-10
mai. 1970, p. 17, grifo nosso).
Outro momento emblemático da entrevista foi quando o jorna-
lista Tarso de Castro questionou o jogador sobre sua filiação religio-
sa. Ao se confessar católico “não praticante”, o jogador declarou seu
apoio aos setores progressistas da Igreja:
220
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Tarso de Castro – Você é católico da linha do Gustavo Corção


ou está mais afinado com o D. Helder Câmara? Você é católico
na base da frescura de ir à Igreja, ajoelhar, ou é católico que
acredita na participação do homem em favor do homem?

Tostão – Eu sou mais da linha de D. Helder. [...] A igreja foi feita


para ir ao encontro do povo e não para o padre ficar dizendo:
nós temos de nos conformar em ser pobres. (O PASQUIM, 3-10
mai. 1970, p. 16-17)

Revelando uma excelente capacidade intelectual, Tostão se


mostrou capaz de articular suas opiniões em torno dos variados
temas propostos pelos jornalistas. A recente demissão de João
Saldanha do comando técnico da seleção e a militarização da CBD,
fatos que indicavam a apropriação da Seleção Brasileira pelos milita-
res, pareciam não intimidar o jogador. Publicada a menos de um mês
do início da Copa do México, a entrevista teve grande repercussão,
principalmente nos meios artísticos e intelectuais. Atentos a esses
acontecimentos, os agentes da censura tentaram intimidar o jogador,
conforme ele próprio revela em recente publicação:

Dei várias entrevistas nesse período de 1966 a 1970, o auge


da ditadura, falando de coisas que tiveram muita repercussão:
disse que gostava muito de Dom Helder Câmara, era a favor da
reforma agrária, contra a ditadura, e eleitor de Brizola na épo-
ca etc. Um dia recebi um telefonema, não sei de quem, dizendo
que eu seria chamado para prestar esclarecimentos. Até hoje
não sei se era trote, e continuei a dar opiniões. Recentemente
vi notícias na imprensa de que o filme Tostão, a fera de ouro
tinha sido objeto de uma longa perícia da censura. (TOSTÃO,
1997, p. 61-62)

Não são apenas as declarações polêmicas com relação aos pro-


blemas políticos enfrentados pelo país que indicam a postura crítica
exteriorizada pelo jogador durante os anos de chumbo. Tostão tam-
bém foi um dos poucos jogadores que se colocaram em posição de
enfrentamento contra os tentáculos do autoritarismo que se disse-
minavam pelo futebol brasileiro. Em 1972, quando ainda jogava pelo
Cruzeiro, diante da possibilidade de ser comandado por Yustrich,
221

Euclides de Freitas Couto


técnico conhecido por suas atitudes truculentas, o craque se negou
a continuar trabalhando no clube:

– Eu informei que se o Cruzeiro contratasse Iustrich, não con-


tinuaria no clube, quando o meu contrato terminasse. Nada
tenho contra o técnico, nunca briguei com ele, mas acho que
a diretoria do clube deve resolver estes problemas na base do
respeito mútuo com os jogadores.53

Nesse contexto os dirigentes atribuíam o fracasso do time ao


pouco empenho dos jogadores em campo. Falava-se em boemia, falta
de raça e preguiça. Influenciados pelo ethos autoritário que ditava as
relações no futebol brasileiro, os dirigentes do clube decidiram pelo
disciplinamento dos jogadores.
Apesar de não adotar um discurso panfletário, muito comum
no repertório das esquerdas dos anos 1970, Tostão mostrava uma
postura contestadora. É possível compreender que as atitudes do
jogador sintetizavam o comportamento de uma parcela significati-
va da população do país: apesar de não concordar com as atitudes
do regime autoritário, não foi às ruas, não se “filiou” a partidos de
oposição, tampouco se integrou à luta armada. Sem buscar as luzes
dos holofotes, as opiniões, convicções e contestações emitidas pelo
jogador só se reproduziram na história graças ao espaço das lutas
simbólicas criado em torno do futebol. Nesse sentido, ao incorporar
elementos de distinção – no seu caso, a exteriorização da intelectua-
lidade – associados ao seu capital simbólico,54 Tostão se diferenciava
dos seus pares, considerados, pela imprensa, analfabetos e incultos.
No âmbito das disputas simbólicas travadas no interior da sociedade,
tal diferenciação permitia que seu discurso fosse legitimado social-
mente. Isso se dava não por seu status construído por ser “jogador
de futebol”, mas pela diferenciação criada em virtude do seu “nível
intelectual”. De maneira similar à presenciada no caso “Afonsinho”, o
53 “Tostão confirma que não fica com Iustrich”, JORNAL DOS SPORTS, 20 fev. 1972,
p. 6.
54 Bourdieu (2005, p. 144-145), avalia que o capital simbólico ou a distinção são, na
verdade, as transfigurações simbólicas das diferenças produzidas a partir da
aplicação de esquemas de construção, ou seja, são diferenças percebidas no interior
de um espaço social a partir da hierarquização de categorias classificatórias. No
caso em questão, a intelectualidade do jogador, legitimada socialmente pelos
adjetivos empregados pela imprensa, produzia um efeito distintivo em sua imagem
social.
222
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

simultâneo reconhecimento social da inteligência do jogador, tanto


no interior das “quatro linhas” como fora delas,55 evidencia que o
futebol assume as funções de um espaço simbólico. Nessa lógica, o
esporte se constitui como um campo privilegiado para a reprodução
das disputas hierárquicas travadas no mundo social.
Assim, as convicções pessoais, os posicionamentos políticos
e a capacidade crítica tornaram-se ingredientes fundamentais para a
promoção da diferenciação social dos jogadores de futebol. Em um
período marcado pela dualidade alienação/politização, a dissonân-
cia, a desobediência aos modelos formais e a rebeldia exteriorizada
contra o autoritarismo, traços incomuns no meio futebolístico, evi-
denciam que o esporte reproduzia com fidelidade as tensões e as
lutas simbólicas travadas no interior da sociedade.

3.6. Reinaldo: os gols do protesto

Estádio José Maria Minella, tarde do dia 3 de junho de 1978, Mar


Del Plata, Argentina. A Seleção Brasileira estreava em mais uma Copa
do Mundo. Aos 45 minutos do primeiro tempo, ao receber um cruza-
mento do lateral direito Toninho, Reinaldo desvencilhou-se do zaguei-
ro e marcou o único gol do empate entre Brasil e Suécia. Não fosse
por um detalhe, este seria mais um entre outros trezentos e poucos
gols marcados ao longo da carreira do centroavante do Clube Atlético
Mineiro. No entanto, ao comemorar o gol erguendo o braço direito e
fechando o punho, Reinaldo repetia56 um gesto de protesto exterio-
rizado pelos atletas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos,
respectivamente detentores das medalhas de ouro e bronze conquis-
tadas na prova dos 200 metros rasos na Olimpíada de 1968, no México.
Obviamente, os dez anos que separam os dois episódios
guardam particularidades capazes de apartar completamente suas

55 É importante mencionar que, após abandonar o futebol em 1973, devido a compli-


cações decorrentes do trauma no olho esquerdo, Tostão ingressou na Faculdade
de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Concluiu o curso em
1981, especializando-se em clínica médica e, logo depois, tornou-se professor das
cadeiras de semiologia e residência médica. Em 1994, durante a Copa do Mundo, foi
convidado pela TV Bandeirantes para trabalhar ao lado de Gerson e Rivelino como
comentarista da emissora. Atualmente, Tostão é reconhecido como um dos mais
importantes cronistas esportivos do país. Semanalmente, publica seus artigos nas
colunas dos jornais Estado de Minas, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo.
56 Em entrevista concedida para a elaboração desta pesquisa, Reinaldo confirmou sua
inspiração gestual nos atletas norte-americanos (REINALDO, 29 set. 2007).
223

Euclides de Freitas Couto


representações, seus significados e, sobretudo, seu conteúdo ideoló-
gico. Entretanto, acreditamos que ambos são reveladores das repre-
sentações políticas observadas na recente história dos esportes. Tal
impressão se deve não apenas à homogeneidade formal dos gestos,
tampouco às suas motivações políticas, mas ao fato de ambos utiliza-
rem o mesmo espaço simbólico construído em torno dos fenômenos
esportivos.
De forma similar às Olimpíadas, as Copas do Mundo, organiza-
das quadrienalmente pela Fifa, podem ser percebidas como bens cul-
turais no sentido bourdiano, pois, além de colocarem em “jogo” a he-
gemonia futebolística stricto sensu, fomentam, de forma controlada, o
acirramento das rivalidades econômicas, nacionais, étnicas e religio-
sas. Tais componentes emocionais, canalizados pela imprensa mun-
dial, foram ingredientes indispensáveis para que tanto as Olimpíadas
quanto as Copas do Mundo se tornassem, a partir do final da década
de 1960, os eventos esportivos mais consumidos pelos telespectado-
res espalhados por quase todo o planeta. Conscientes da difusão in-
comensurável de seus gestos, Smith, Carlos e Reinaldo beneficiaram-
-se da abrangência midiática alcançada por esses grandes eventos
esportivos para dramatizar seus protestos em escala mundial.
Levando-se em consideração as questões relativas à recep-
ção, não podemos afirmar que o processo de assimilação das duas
imagens se deu de maneira homogênea nos quatros cantos do mun-
do. Na percepção dos significados envolvidos na transmissão de uma
imagem televisiva, de uma fotografia ou mesmo de um discurso oral,
estão obrigatoriamente imbricados fatores como a nacionalidade, o
regionalismo, a estratificação social, a escolaridade e o gênero do
receptor. Somando-se a eles, ainda poderíamos contabilizar dados
sobre as atividades de lazer, a adesão esportiva, o pertencimento
clubístico e o estilo de vida de cada um. Como sugere Bourdieu, a
ciência do discurso deve levar em consideração as relações simbó-
licas, assim como as condições de instauração dos componentes
comunicativos:
A verdade da relação de comunicação nunca está inteiramente
no discurso nem nas relações de comunicação. Uma verdadeira ciên-
cia do discurso deve buscar essa verdade no discurso, mas também
fora dele, nas condições sociais de produção e reprodução de pro-
dutores/receptores e da relação entre eles. Por exemplo, para que
a linguagem de importância do filósofo seja recebida, é preciso que
224
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

estejam reunidas as condições para que ela seja capaz de obter im-
portância que a elas se concede (BOURDIEU, 2003, p. 150).
A ilustração sobre a filosofia utilizada pelo sociólogo francês per-
mite compreender o alcance das ações protagonizadas pelos atores
citados. Tanto os atletas norte-americanos quanto o jogador brasileiro
tinham em mente, com certa precisão, o público que iriam atingir.

3.6.1. Breve história de um gesto

Tommie Smith e John Carlos valeram-se do podium olímpico


para protestar contra a sociedade norte-americana, cujo governo se
mostrava complacente com a segregação racial:

Na noite de dezesseis de outubro de 1968, eu estava no pódio


do Estádio Olímpico na Cidade do México com uma medalha
de ouro no pescoço, meias pretas nos pés e uma luva na mão
direita. E tinha medo. Eu rezei, rezei muito para que o próximo
som que eu ouvisse não fosse o disparo de uma arma. Rezei
para que a próxima sensação que tivesse não fosse a escuridão
de uma morte súbita. Eu sabia que existiam pessoas, muitas
pessoas que desejavam me matar pelo que eu estava fazendo
naquele momento. Seria necessário apenas uma pessoas na-
quela multidão de cem mil para disparar uma bala na minha
cabeça e encerrar aquele gesto que fiz para marcar minha po-
sição para sempre. A minha posição como negro, como repre-
sentante dos oprimidos da América, como porta-voz dos ambi-
ciosos objetivos do Projeto Olímpico dos Direitos Humanos57
(PODH). (SMITH, 2008, p. 1, tradução nossa) 58

57 Idealizado pelo antropólogo Harry Edwards, o projeto desenvolveu-se a partir


de 1967 na San José University, localizada no estado da Califórnia. O propósito
principal do projeto consistia na conscientização dos atletas negros em torno da
segregação racial. Conscientes da sua função como ativistas políticos, os atletas
eram incentivados a manifestar-se, de forma pacífica, utilizando a crescente visibili-
dade do meio esportivo. Estima-se que mais de 200 atletas participaram do projeto,
dentre os quais estavam John Carlos e Tommie Smith (SMITH, 2008, p. 114-134)
58 On the night of October 16, 1968, I had stood on a platform on the infield of the Olym-
pic Stadium in Mexico City, with a gold medal around the neck, black socks on my feet,
and a glove on the right fist I had thrust in the air. My head was bowed, and inside that
bowed head, I played – prayed that the next sound I would hear, in the middle of Star
Spangled Banner, would not be a gunshot, and prayed that the next thing I felt would
not be the darkness of sudden death. I knew there were people, a lot of people, who
wanted to kill me for what I was doing. It would take only one of them to put a bullet
225

Euclides de Freitas Couto


Embora dirigissem seus gestos para seus compatriotas, os
atletas negros norte-americanos inspiraram-se no espírito contesta-
dor que em 1968 se revelou com múltiplas colorações em diversas
partes do globo:

É uma grande diversidade, mas mesmo assim há uma grande


unidade dentro dele. Creio que essa unidade se deve ao fato de
em 1968, em todos os países, combina três operações, realiza
três grandes avanços: a primeira é de grande aspiração demo-
crática e libertária. O movimento de 1968 é dirigido contra to-
das as formas autoritárias de poder, em todas as instituições:
na escola e na universidade, é claro, mas também na família,
no casamento, nas empresas, em todas as organizações e, evi-
dentemente, na sociedade política. É a rejeição de toda forma
de poder baseada na força, na coação e na tradição. (WEBER,
2008, p. 22)

Caracterizados principalmente pelo espírito combativo no


presente e pela aposta em um futuro promissor, os últimos anos da
década de 1970 viram surgir inúmeros movimentos sociais que, ao
se mobilizarem em torno de questões comportamentais, ecológicas
e políticas, propuseram importantes modificações que, ao longo das
últimas três décadas, contribuíram para a substancial transformação
das formas de governo, das instituições e, sobretudo, do modo de
vida do mundo ocidental.
No caso norte-americano, a organização do modo de produ-
ção escravista efetivado nos estados do sul pela coroa britânica a
partir do século 17 deu início a um longo processo de segregação
racial. Apesar dos princípios liberais que marcaram o processo da
Independência Americana, em 1776, a escravidão só foi abolida ofi-
cialmente em 1865, após a Guerra de Secessão. A guerra civil deixou
marcas profundas nas relações raciais. O enfrentamento entre norte
e sul contribuiu substancialmente para o acirramento das tensões
entre brancos e negros. Dois anos após a abolição, foi realizada na
cidade de Nashville a primeira reunião da Ku Klus Klan, organização

through me, from somewhere in the crowd of some 100,000 to end my life because I
had dared to make my presence – as a black man, as a representative of oppressed
people all over America, as spokesman for the ambitious goals of the Olympic Project
for Human Rights – know to the world.
226
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

racista que objetivava impedir a integração dos negros à sociedade.


Durante o século 20, legitimadas pela população branca,59 essas or-
ganizações se multiplicaram pelo país, espalhando, por meio de atos
violentos, o medo e o terror nas comunidades negras (ONES, 1973,
p. 12). Em decorrência dessa situação, gradualmente se organizaram
nas comunidades negras diversas formas de enfrentamento do racis-
mo e da segregação racial.
A partir da década de 1950, destacaram-se no sul do país dois
movimentos de resistência, ambos com forte influência religiosa: o
primeiro, liderado pelo líder islâmico Elijah Muhammed, agrupava os
negros muçulmanos na luta em prol de uma revolução cultural nos
Estados Unidos. Tal pensamento, de cunho separatista, ganhou força
com o líder Malcom X, um dos responsáveis pela organização dos
Panteras Negras, uma espécie de milícia armada cuja principal fun-
ção seria defender as comunidades afrodescendentes dos ataques da
Ku Klus Klan. A segunda grande corrente de resistência negra norte-
-americana possuía como principal líder o pastor protestante Martin
Luther King que, em 1957, após liderar longa campanha por igualdade
de direitos, participou ativamente da criação da Southern Christian
Leadership Conference (SCLC). Apoiado principalmente pelas lide-
ranças batistas do sul do país, King organizou, durante a década de
1960, inúmeras manifestações não violentas em prol da igualdade
racial, trajetória condecorada em 1964 com o Prêmio Nobel da Paz.
A partir da análise dos relatos transcritos na autobiografia de
Tommie Smith,60 intitulada Silent Gesture (SMITH, 2008), é possível
perceber que a atitude de protesto planejada e executada pelos dois
atletas negros trazia em seu escopo diversos princípios ideológicos
disseminados pelas correntes que comandavam a resistência negra
nos Estados Unidos. Smith e Carlos não possuíam filiação a nenhuma
organização estabelecida; todavia, as reuniões do PODH mostraram-se
fundamentais para que, conscientes de suas funções sociais, os atletas
pudessem engendrar todo o ritual de contestação. O braço erguido e o
punho cerrado assumiam a representação da luta contra a segregação

59 Em 1896, a Corte Suprema declarou legal a segregação racial – “separados


mas iguais”. Segundo Jones (1973, p. 13), essa decisão abriu espaço para que
organizações, mesmo na clandestinidade, buscassem legitimação para seus atos
violentos.
60 Após doutorar-se em sociologia, Tommie Smith trabalha atualmente na educação
de jovens atletas. Segundo ele, “é preciso conscientizar as novas gerações acerca
do papel social do esporte na sociedade” (SMITH, 2008).
227

Euclides de Freitas Couto


racial; as luvas e as meias negras, associadas à cabeça baixa e ao silên-
cio, representavam o luto pelos negros mortos nos conflitos raciais.

Figura 22 – Tommie Smith, Peter Norman e John Carlos: pódio dos 200 metros rasos,
Estádio Olímpico do México, 1968
Fonte: <http://www.tommiesmith.com>. Acesso em: 21 dez. 2008.

3.6.1.1. A (re)contextualização de um gesto

Aproximadamente dez anos após as Olimpíadas do México, às


vésperas da Copa do Mundo, a Argentina também passava por um
grande clima de contestação. Nessa oportunidade, os protestos con-
tra a segregação racial cediam lugar às manifestações contra a trucu-
lenta ditadura que se instalara no país em 1976. Nos jornais clandesti-
nos, denúncias sobre perseguições políticas, assassinatos e desapa-
recimentos de militantes de esquerda se misturavam às críticas aos
desvios de verbas públicas destinadas às obras da Copa. Enquanto
isso, nos periódicos alinhados ao governo, conclamava-se a unidade
nacional por meio do apoio à seleção de futebol: “Veinticinco millones
de argentinos jugaremos el Mundial” (EL GRÁFICO, 23 jun. 1978 apud
ALABARCES, 2008, p. 118). No Brasil, a imprensa alternativa posicio-
nou-se radicalmente contra o mundial:
228
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Figura 23 – Crítica ao Mundial da Argentina, 1978


Fonte: MOVIMENTO, 29 mai. 1978, p. 1.

Pouco antes do início da Copa, a primeira página do jornal


Movimento estampava imagens muito significativas que acompanha-
vam as tendências lançadas por parte da imprensa ligada às esquer-
das europeias. Meses antes, um grupo de exilados políticos argentinos
havia criado na França o Comité d’Organization pour le Boycotte a la
Coupe du Monde en Argentine (Coba). Pacifistas e intelectuais de gran-
de expressão, como Alain Touraine, Jean Paul Sartre e Roland Barthes,
aderiram ao movimento, que contou também com a participação de
artistas e partidos de esquerda europeus. Apesar de não surtir efeitos
práticos, uma vez que nenhuma seleção estrangeira aderiu ao boicote,
os protestos tiveram grande repercussão no imaginário social, chegan-
do ao Brasil principalmente por meio da imprensa alternativa:

Os generais de Buenos Aires praticamente não fizeram nenhuma


tentativa de dissimular as vantagens políticas que eles espera-
vam obter a partir dessa competição internacional, cuja impor-
tância só pode ser comparada à dos Jogos Olímpicos (mais de
229

Euclides de Freitas Couto


um bilhão e meio de prováveis espectadores pela retransmissão
dos jogos. [...] Mesmo que a utilização da ideologia do esporte e
de seus organismos pelas grandes potências e por seus aliados
do Terceiro Mundo seja contestada, nem por isso ela deixa de
ser um instrumento poderoso da influência política.61

Conhecedor das questões políticas que naquele momento


envolviam tanto o Brasil quanto a Argentina, Reinaldo mantinha-se
firme em suas convicções. No bojo dos acontecimentos, tanto a im-
prensa brasileira como os militares temiam que o jogador pudesse
utilizar a visibilidade da Copa do Mundo para expor seu gesto de
protesto, muito conhecido nos gramados brasileiros.

Figura 24 – Gesto de protesto


Fonte: LIMA, 2002, p. 30.

Reinaldo se recorda que, às vésperas do embarque para a


Argentina, foi advertido em tom de brincadeira pelo presidente
Geisel:

61 “Esporte: a exploração da política”, MOVIMENTO, 29 mai. 1978, p. 13.


230
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Antes do embarque para a Argentina, nós fomos nos despedir


num jogo contra a Seleção Gaúcha. Fomos para uma solenida-
de oficial no Palácio Piratini. Lá estavam o governador, minis-
tros e um monte de políticos e autoridades. Então o Ministro
da Educação, o Nei Braga, me chamou e me apresentou o pre-
sidente Ernesto Geisel. Foi então que ele me disse: “Ah esse
menino! Você é muito bom de bola, mas você não deve falar de
política. Vai jogar bola! Deixa que a gente trata da política”. Foi
num tom de brincadeira, mas eu fiquei assustado. Eu era muito
jovem e eu nem sonhava em chegar perto do presidente com
aquele uniforme de general. Antes disso o André Richer, um
diretor da CBF, já havia me alertado: “você não deve fazer esse
gesto aqui na seleção. É um gesto revolucionário, que incita o
socialismo, essas coisas aí. Se você ficar fazendo isso aqui, vão
acabar te cortando”. (Informação verbal)62

Além do gesto repetido a cada gol marcado com a camisa do


Atlético no campeonato brasileiro (1977-1978), desde o segundo se-
mestre de 1977, Reinaldo emitia declarações polêmicas à imprensa
mineira, defendendo questões controversas como a anistia aos exi-
lados políticos, o voto direto e o fim da ditadura no país. A poucos
meses da última convocação para a Copa da Argentina, uma das suas
entrevistas concedidas ao semanário alternativo Movimento, veículo
ligado a grupos de esquerda do país, causou um grande mal-estar
nos bastidores da seleção. A matéria, que continha trechos do de-
poimento do jogador, procurava ressaltar suas virtudes intelectuais,
exibindo-o como um autêntico militante de esquerda:

62 Entrevista concedida por Reinaldo, 29 set. 2007.


231

Euclides de Freitas Couto


Figura 25 – Reinaldo: bom de bola e bom de cuca
Fonte: MOVIMENTO, 06 mar. 1978, p. 1.

Logo na chamada da matéria, o jornalista Aloísio Moraes bus-


cava diferenciar o centroavante atleticano do maior ídolo do futebol
brasileiro, Pelé, apontado pela imprensa alternativa como um joga-
dor reacionário:

O mais novo fenômeno do futebol, o centroavante Reinaldo


também é bom das ideias. A favor da organização dos jogado-
res em associações, critica o individualismo, defende a anistia,
a Constituinte e, ao contrário de Pelé, acha que o povo brasilei-
ro está preparado “como sempre esteve” para votar.63

O texto procurava enaltecer as virtudes intelectuais e as con-


vicções políticas de Reinaldo. Ao intercalar trechos das declarações
do jogador com suas próprias impressões sobre o assunto, o jornalis-
ta construía um discurso que equilibrava as opiniões do entrevistado
e as bandeiras levantadas pela esquerda naquele momento:

“Muitas vezes a gente não pode dizer o que pensa porque é


levado pela máquina. Aqui no Brasil o esquema é muito forte e
é difícil desfazer uma imagem criada. Não se pode fazer como a

63 “Reinaldo, bom de bola e bom de cuca”, MOVIMENTO, 6 mar. 1978, p. 8.


232
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

Jane Fonda porque há um esquema montado e a própria torci-


da faz resistência à mudança da imagem que ela tem da gente.”
Por essas e outras Reinaldo acha que a classe deveria ser re-
presentada junto às entidades de futebol através de entidades
associativas “para que o jogador tenha controle sobre seus
destinos e interesses, porque geralmente os dirigentes atuam
emocionalmente e nem sempre racionalmente, prejudicando o
futebol e submetendo os jogadores a jornadas estafantes que
só interessam ao clube”. [...] Ao comentar sobre o problema da
anistia, o artilheiro do Campeonato Nacional além de defendê-
-la diz que “ela vai acontecer mais cedo ou mais tarde porque
em tudo deve haver oposição, pois é assim que surgem no-
vas ideias e caminhos diferentes”. Também concordando com
a necessidade da convocação da nova Assembléia Nacional
Constituinte para eleger colaboradores na nova Constituição,
Reinaldo acrescenta que “em tudo o povo tem que ter partici-
pação. Nós temos que depositar confiança em quem votamos
para sermos retribuídos de alguma forma, nem que as futuras
gerações sejam beneficiadas”. (MOVIMENTO, 6 mar. 1978, p. 9)

Todavia, apenas a articulação discursiva promovida pelo jor-


nalista não seria capaz de gerar tanta polêmica: o próprio Reinaldo
confirma que, nesse período, não poupava críticas ao “sistema”; e,
nas oportunidades “oferecidas” pela imprensa, sempre procurava ex-
teriorizar, de forma consciente, suas opiniões políticas:

Foi consciente. Como eu te falei, eu tinha esse espaço na mídia


e tinhas essas tribunas. Eu recebia mais de 500 cartas por dia
do Brasil inteiro. Eu era artilheiro do campeonato brasileiro,
eu dava essas entrevistas todas. Eu era uma celebridade, an-
dava nas ruas e as pessoas me paravam. Eu era o destaque do
futebol brasileiro. Era um momento que eu tinha tudo ali pra
falar e eu quis aproveitar justamente esse momento que foi
também de muita coragem. E por isso eu também sofri mui-
tas retaliações que acabou até prejudicando a minha carteira.
(REINALDO, 29 set. 2007)

As declarações publicadas pelo semanário Movimento provo-


caram, de fato, uma enorme polêmica. Na época, a imprensa noticiava
233

Euclides de Freitas Couto


que o almirante Heleno Nunes, então presidente da CBD, cogitava o
corte de Reinaldo da lista dos convocados para a Copa da Argentina,
sob a alegação de que “Reinaldo não possui [possuía] as condições
físicas exigidas por uma competição de alto nível” (ESTADO DE
MINAS, 7 abr. 1978, p. 6). Desmentindo – ou camuflando – qualquer
motivação política para a provável decisão, o almirante isentava o
governo militar de qualquer intervenção nos assuntos futebolísticos.
A questão assumiu a dimensão de um debate nacional: O jo-
gador de futebol deve ou não expressar suas posições políticas?
Reinaldo deve ser cortado por não concordar com a política do
governo? – perguntavam os programas esportivos radiotelevisivos
(Cf. Reinaldo, 29 set. 2007). Em 1978 as garras da ditadura já não
se mostravam tão afiadas como no período das duas Copas ante-
riores. A imprensa já gozava de certa autonomia para promover
discussões políticas; mas, apesar disso, devido ao longo período
de intervenção oficial, os jornalistas não sabiam muito bem como
lidar com esta relativa liberdade. Ao recordar os acontecimentos
daquele ano, o jornalista Zuenir Ventura revela a sensação vivida
naquele momento:

Em 1978, o país vivia ainda sob o chamado entulho autoritário,


toda aquela herança malsã da ditadura, e havia sobretudo nes-
ta herança uma grande carga de medo, de autocensura. A cen-
sura oficialmente já tinha saído das redações, dos palcos, dos
filmes etc. Mas tinha deixado uma coisa que, do meu ponto de
vista de jornalista, foi talvez mais perniciosa que a própria cen-
sura. Foi quando introjetamos toda paranóia, toda a censura;
não precisava de ninguém ao lado para coibir, para reprimir...
Isso eu acho que foi realmente terrível. E durou muito tempo,
muitos anos vivemos com este fantasma, com esta sombra,
esta coisa que pairava em cima da gente na hora de escrever,
na hora de falar. (VENTURA, 2008, p. 130)

Além dos debates promovidos na mídia – importantes instru-


mentos para a formação da opinião pública –, a imprensa alternativa
da época também buscava pressionar a CBD. Denunciando as mano-
bras e falcatruas dos cartolas, os jornalistas explicitavam a estreita
relação entre futebol e política:
234
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

A tentativa do presidente da CBD – Heleno Nunes – de cortar


o jogador Reinaldo da seleção brasileira deixou claro, mais
uma vez, que o mundo do futebol, os cartolas não gostam de
jogadores que têm e expressam suas opiniões sobre política.
Não foram poucos cartolas que, nesta polêmica provocada
pelo caso Reinaldo, manifestaram-se a favor de que jogador
se limite a jogar futebol, deixando de lado a política. De outro
lado, no entanto, apesar desta ojeriza a participação do joga-
dor na política, os cartolas usam e abusam do futebol como
trampolim para a política, a começar pelo próprio Heleno
Nunes. [...] Se há cartola atrevido em matéria de jogo políti-
co, esse cartola é o presidente Oswaldo Teixeira Duarte, da
Portuguesa de Desportos de São Paulo. Eleito para o cargo
com um programa de conclusão do conjunto esportivo – in-
cluindo estádio de futebol, Duarte mobilizou os associados
com todos os recursos na mão, tapinhas nas costas, pedidos
de doação de material para as obras, visitas de porta em por-
ta. O expediente deu certo, tão certo que, tempos depois, ele
era eleito vereador, conseqüência natural do seu trabalho
paroquial. [...] O exemplo mais vivo dessa utilização do fu-
tebol como arma política é o do próprio presidente da CBD,
almirante Heleno Nunes, que acumula o cargo de presidente
da Arena do Rio de Janeiro. Manipulando autoritariamente
todo o futebol profissional brasileiro, Heleno Nunes come-
teu a façanha de excluir Campeonato Brasileiro de 1976, o
representante de Brasília, que não teve eleições municipais
por ser distrito federal. Neste ano eleitoral, o número de
participantes elevou-se para 72, ungindo-se equipes sem as
mínimas condições competitivas. [...] A nível regional, os di-
rigentes de federações se articulam para ajustar a máquina
do futebol aos interesses do poder. “Se jogador é para jogar
futebol, então o que os cartolas estão fazendo na política?”
(MOVIMENTO, 10 abr. 1978, p. 20a)

Se os cartolas, fazendo uso da popularidade conquistada por


meio dos clubes, podiam colher benefícios pessoais na esfera polí-
tica, por que um jogador de futebol não poderia exteriorizar suas
convicções? Ao colocar esta questão, a imprensa saía em defesa das
atitudes contestatórias expressas por Reinaldo.
235

Euclides de Freitas Couto


Outra arma frequentemente utilizada pela imprensa para pres-
sionar a CBD era a própria opinião pública. O descontentamento com
o possível corte de Reinaldo da Seleção Brasileira fez eclodir diferen-
tes manifestações de apoio ao jogador. De toda parte do Brasil che-
gavam cartas de solidariedade ao craque na sede do Atlético; nas rá-
dios e nas emissoras de TV, aconteciam calorosos debates em torno
da questão. Em Belo Horizonte, principal reduto da torcida atletica-
na, os estudantes da Universidade Católica de Minas Gerais, utilizan-
do um instrumento de expressão política bastante comum na época,
imprimiram seu protesto nos muros da própria instituição de ensino:
“Por que Reinaldo não pode ter opinião política?” (MOVIMENTO, 10
abr. 1978, p. 20a) Segundo Reinaldo, a frase ganhou os noticiários
nacionais, tornando-se um dos símbolos do seu retorno à Seleção
Brasileira:

Depois de toda essa discussão, essa polêmica, essa pressão


que partia de todos os lados, os caras tiveram que voltar atrás.
E se eles me deixassem de fora e o Brasil perdesse a Copa por
causa disso? De quem a seria a culpa? Todo mundo sabia que
o Heleno de Freitas é quem batia o martelo nas convocações.
Se ele não me levasse, a seleção teria que ganhar de qualquer
jeito. Foi por isso que ele voltou atrás. Ele não era bobo. Ele
sabia que me levar era uma questão de interesse político.
(Informação verbal)64

De fato, as palavras do jogador, se contextualizadas, fazem sen-


tido. No calor dos acontecimentos, Valmir Pereira, então presidente
do Clube Atlético Mineiro, se deslocou para a sede da CBD, no Rio de
Janeiro, onde se reuniu com o almirante Heleno Nunes que, após o
encontro, em entrevista coletiva, reviu substancialmente sua postu-
ra: “Reinaldo é um gênio, ele é imprescindível à seleção”.65 Atento às
questões políticas que envolviam os bastidores do futebol, o escritor
Roberto Drummond analisou a reviravolta no “Caso Reinaldo”:

E se eu disser a vocês que a Comissão Técnica dispensar


Reinaldo estará criando um mártir e entregando a esse mártir

64 Entrevista concedida por Reinaldo, 29 set. 2007.


65 “Por que Reinaldo não pode ter opinião política?”, MOVIMENTO, 10 abr. 1978,
p. 20b.
236
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

uma bandeira de imenso poder junto ao torcedor brasileiro? E


se eu disser a vocês que foi exatamente a entrevista ao jornal
Movimento, defendendo a anistia, eleições diretas, etc., que
salvou a cabeça de Reinaldo? E se eu disser a vocês que, se
não fosse a entrevista de Reinaldo ao Movimento e a repercus-
são da entrevista agora, Reinaldo estaria queimado, sem razão
é certo, na seleção? E se eu disser a vocês que os líderes do
partido do almirante Heleno Nunes chegaram à conclusão de
que, se Reinaldo for dispensado, a esta altura, se transformará
na grande bandeira do partido de oposição em todo Brasil?66

No decorrer do ano de 1978, o cenário político brasileiro foi


marcado pela acirrada disputa entre os dois partidos oficiais: a
Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB). O avanço da oposição, representado, principalmen-
te, pela expressiva votação conquistada pelo MDB nas eleições par-
lamentares de 1974, dava sinais do esgotamento político do regime
autoritário (FAUSTO, 2002, p. 494). Somando-se à questão partidária,
a intensa mobilização dos setores médios e da Igreja Católica pres-
sionava o presidente Geisel a investir contra os métodos violentos
utilizados pelos membros da linha dura do governo. Alguns teóricos
associam tais medidas à chamada distensão política, que culminaria,
em alguns anos, no processo de redemocratização do país:

A distensão começaria pelo abrandamento dos mecanismos


de controle político e não pela ampliação das condições de
disputa pelo poder do Estado. Assim, Geisel introduziu uma
nova fórmula na relação entre segurança nacional e o desen-
volvimento. [...] O primeiro passo do abrandamento dos meca-
nismos de controle político foi o relaxamento seletivo da cen-
sura prévia da imprensa. A sociedade civil se apropriou dos
benefícios desta medida que possibilitava uma margem mais
ampla da opinião e do dissenso. (OLIVEIRA, 1994, p. 82-83)

Diante deste quadro político-social, Reinaldo despontava como


um personagem interessante para os diversos segmentos de oposi-
ção ao governo. Reproduzindo com suas próprias palavras o discurso
libertário das esquerdas – em um contexto marcado pelo fanatismo
66 “Digo”, ESTADO DE MINAS, 01 abr. 1978, p. 11.
237

Euclides de Freitas Couto


dos brasileiros pelo futebol –, sua relação com a CBD se tornava cada
vez mais delicada. Considerada, naquele período, como um dos prin-
cipais braços políticos da Arena, a entidade, na pessoa do seu pre-
sidente, o almirante Heleno Nunes, diante do clamor público, via-se
impedida de aplicar quaisquer sanções contra o ídolo nacional.
Mantido no grupo da Seleção Brasileira convocada para a Copa
da Argentina, o centroavante não titubeou e, na primeira oportuni-
dade, repetiu a cena: braços erguidos e punho fechado após o gol
marcado contra a Suécia na estreia do Brasil na competição. No pal-
co da Copa do Mundo, o gesto do jogador tinha por objetivo atingir
dimensões mundiais. Entretanto, longe de sua melhor forma física,
Reinaldo só jogaria mais uma partida como titular da seleção. Sua
atuação discreta no empate sem gols contra a Espanha abriu espaço
para que, nos demais jogos da Copa, o técnico Cláudio Coutinho es-
calasse Roberto Dinamite no comando do ataque brasileiro.
Em maio de 1979, após passar um longo período se recupe-
rando de uma contusão no joelho, Reinaldo voltava ao futebol no
seu melhor estilo: criando mais uma polêmica. No dia primeiro de
maio, em comemoração pelo Dia do Trabalho, o governo do Estado
de Minas Gerais organizou uma partida amistosa entre Atlético e
Botafogo. Atendendo às solicitações dos líderes dos sindicatos dos
trabalhadores de Belo Horizonte, Reinaldo não jogou a partida, ale-
gando estar ainda contundido. No entanto, momentos antes do início
do jogo, o governador Francelino Pereira solicitou ao jogador, que
se encontrava no banco de reservas do Atlético, que se aproximasse
para receber os cumprimentos das autoridades presentes. Nesse mo-
mento, a torcida do Atlético, em grande número no estádio, disparou
uma enorme vaia em direção ao governador.67 O fato repercutiu na
imprensa nacional. Reinaldo já havia exteriorizado, em oportunida-
des anteriores, sua antipatia pelo governador biônico que, por sua
vez, insistia em se beneficiar politicamente de eventos futebolísticos.
Ao comentar o episódio na imprensa, o craque, em tom moderado,
aproveitou para reforçar suas convicções e, obviamente, lançar far-
pas contra Pereira:

Não acho legal vaiar ninguém. Mas é preciso ver que o campo
de futebol é um dos poucos lugares onde o povo pode expres-
sar com mais sinceridade o que sente. Desconfio das pessoas

67 “Enfim, um atacante”, Folhetim, FOLHA DE S. PAULO, 13 mai. 1979, p. 13.


238
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

que procuram ser excessivamente simpáticas, embora às ve-


zes ache válido o esforço do governador para ser mais popu-
lar. Só que, pelo que ouço dizer, o JK era mais espontâneo.68

Demonstrando consciência das implicações políticas adquiri-


das pelo futebol, Reinaldo entendia que nos estádios, onde uma mul-
tidão se reunia para um acontecimento esportivo, potencializavam-se
os conflitos presentes na sociedade. Essa percepção, extraída da fala
do jogador, demonstra sua capacidade de compreender os desdo-
bramentos simbólicos do jogo da bola, cuja abrangência ultrapassa
as fronteiras dos gramados e das arquibancadas. Suas atitudes e aná-
lises da relação entre futebol e política produziu sentimentos antagô-
nicos na sociedade brasileira. Se, de um lado, Reinaldo conquistou a
simpatia de diversas personalidades do meio artístico, de políticos e
jornalistas ligados à esquerda brasileira,69 de outro, o jogador provo-
cou o descontentamento dos setores mais conservadores. Em carta
dirigida à imprensa, Frei Betto, um dos principais representantes da
ala progressista da Igreja Católica, dizia em maio de 1979: “Reinaldo
não é um rei preto de alma branca e sim um grande rei, comprometi-
do com a causa dos pequenos”.70
Em meados de 1981, após uma série de interrupções em sua
carreira em virtude de contusões, Reinaldo aos poucos voltava aos
gramados e, novamente, se envolvia em acontecimentos polêmicos.
Dessa vez, as críticas endereçadas ao jogador relacionavam a queda
do seu rendimento em campo aos possíveis desregramentos de sua
vida pessoal. Acusando-o de se embebedar em casas noturnas da ca-
pital mineira, o jornal Estado de Minas, numa série de reportagens pu-
blicadas no mês de julho, encarregava-se de montar um verdadeiro
tribunal para que o jogador fosse publicamente julgado.71 Contendo
depoimentos de familiares, de companheiros de clube e de técnicos,
além da opinião de jornalistas de diferentes vertentes ideológicas,
tais reportagens promoveram uma verdadeira devassa na vida do jo-
gador. Todavia, mais do que as questões de ordem comportamental

68 Idem.
69 Podemos verificar essa informação nas entrevistas concedidas pelo próprio
jogador, assim como nos depoimentos concedidos pelos ex-jogadores Sócrates e
Afonsinho.
70 “Frei Beto escreve”, Folhetim, FOLHA DE S. PAULO, 13 mai. 1979, p. 13.
71 “O caso Reinaldo: inocente ou culpado”, ESTADO DE MINAS, 11 jul. 1981, p. 2.
239

Euclides de Freitas Couto


que foram levantadas, chama a atenção o teor político que revestia
a questão. Nos diversos depoimentos colhidos pelo jornal, principal-
mente naqueles em defesa de Reinaldo, é possível verificar que as
falas são niveladas a partir da representação política assumida pelo
jogador. Nesse sentido, os aspectos lúdicos, técnicos e táticos do
futebol cediam lugar aos antagonismos presentes no imaginário co-
letivo da época:

Um artista como Reinaldo, comparando ele a Zico, é apenas


um atleta ao mesmo tempo em que apura seu estilo, apura a
sua individualidade, que se manifesta através das suas jogadas
inimagináveis, que encabulam as multidões das arquibancadas
e gerais, mas também em atitudes que chateiam o bovino filisti-
nismo dos que se arvoram em condutores de rebanho. É por isso
que querem acabar com ele.72

Deste episódio Reinaldo-Seleção, o jogador talvez tenha saído


perdendo, mas o homem saiu ganhando. O jogador, um craque
dos maiores que já passaram por nossos campos de futebol,
talvez seja deixado de lado na seleção, a exemplo de outros
que foram “castigados” em tempos passados, por contrariar
os ditames e regras mestras dos bedéis que mandavam então.
Entre os que tiveram castigos assim podem ser citados Carlos
Alberto, Gerson, Afonsinho, Paulo César. Eles cometeram o
grande erro de se julgarem seres humanos e de pensarem.
Reinaldo pensa e por isso mesmo está nessa lista. [...] Deste
episódio, tudo o que me salta aos olhos é que, num país em
que calar-se virou moda e o medo virou um sentimento com-
panheiro de todos os dias, um jogador diz o que sente, põe
para fora o que pensa e, mais ainda, tem coragem de deixar
claro que, por jogar futebol, ele não tem nada que o diferencie
dos outros seres humanos. E como ser humano, capaz de er-
rar, de acertar, de ter amigos, de olhar para cima, para baixo
com a mesma cara, com o mesmo rosto com que, durante al-
gum tempo, persegue no campo a bola, amiga e companheira
de alguns momentos mas transformada por certas pessoas
instrumento de ditadura, de destruição de personalidade e
de perseguição e escravizamento do ser como um todo, em

72 “Porque querem acabar com ele”, ESTADO DE MINAS, 11 jul. 1981, p. 2, grifo nosso.
240
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

todos momentos e instantes. É contra isso que Reinaldo disse


não e nós perguntamos: por que não repete seu gesto e suas
palavras?73

A maestria e a eficiência das conclusões a gol, marcas singula-


res do craque, pareciam esquecidas diante do reconhecimento e da
exaltação de suas virtudes políticas. Nos discursos dos seus “advo-
gados de defesa”, Reinaldo assumia a representação de uma lideran-
ça política, protegida pelos seus correligionários ideológicos e com-
batida pelos adversários. Percebe-se com certa clareza que as ambi-
guidades que marcavam o cenário político do país encontravam, no
universo do futebol, um espaço privilegiado para sua reprodução: o
sujeito elencado pelos cronistas da época não é o jogador de futebol,
mas o agente político que, erguendo o braço direito para comemorar
um gol, também levantava as bandeiras dos movimentos de esquer-
da. Todavia, o mesmo espaço simbólico que permitia a defesa pública
do jogador abria as portas para os críticos. Outro depoimento emble-
mático também veiculado pelo jornal evidencia o ranço autoritário
que permeava a sociedade brasileira no final dos anos 1970:

A juventude do nosso tempo sofre o drama da insegurança.


A instabilidade começa no volume de informações negativas
que recebe, a partir da diabólica máquina chamada televisão,
o agente doméstico de distorções na formação daqueles que
chegam ao mundo de hoje. Outro mecanismo que leva o jo-
vem aos descaminhos é a liberdade excessiva que desfrutam.
Bandeira dos adultos, a liberdade é o sonho humanístico do
século. Mas é também uma explicação da violência, o mal
maior que se instalou em todas as latitudes e que constitui o
maior problema do século. É a liberdade que leva a juventude
a colocações de comportamento perigosas, como a prática do
homossexualismo, o uso de drogas e outras facilidades que
corrompem e matam. Se Reinaldo virou jogador-problema, tro-
cando o outro binômio que o lançou no futebol, o carinhoso
baby-crack, talvez a gente poderia entender bem que a glória
prematura e a liberdade jovem concorreram para seu decanta-
do desvirtuamento. Mesmo que ele queira negar, as acusações

73 FELIPE, Carlos. “Na lista negra”, Estado de Minas, 11 jul. 1981, p. 2.


241

Euclides de Freitas Couto


e as provas de que seus caminhos não afinam pelo figurino da
correção profissional e até pessoal, são evidentes. [...] Vítima
destas liberdades, começa a pagar um tributo pesado – lon-
ge daquilo que se previa quando deixou seu pacato berço de
Ponte Nova. Ingênuo, absolvido das ambições que o dinheiro
fácil lhe proporcionaria nesta década, Reinaldo chegou aqui
puro, inocente em sua candura de jogar futebol com a habilida-
de que Deus lhe deu. Ainda bem que seus escorregões são pre-
maturos e ainda dão tempo para que se passe uma borracha
em cima e os rumos de sua vida poderão ser outros.74

Neste trecho, percebemos novamente como as questões es-


portivas que envolviam o futebol eram deixadas em segundo plano.
A má fase do jogador é claramente relacionada aos supostos desvios
comportamentais exteriorizados por suas atitudes. Contrariamente
aos defensores de Reinaldo, o cronista Afonso de Sousa elege a liber-
dade, ou o excesso dela, como o aspecto fundamental para se explicar
seu “desvirtuamento”. Nota-se, portanto, que o “julgamento público”
de Reinaldo promovido pelo jornal transferia ao universo futebolís-
tico os antagonismos sociopolíticos da época. Assim, o confronto
liberdade versus autoritarismo, recorrentemente travado em diver-
sas esferas do mundo social,75 ampliava seu campo de ação. Essa
dinâmica demonstra que, incorporando sentidos externos ao jogo, o
futebol assume configurações polissêmicas ao atender às demandas
sociopolíticas específicas de cada sociedade. Por conseguinte, no-
tamos que os episódios vivenciados por Reinaldo, principalmente a
repercussão desses fatos na imprensa, indicam que, nos anos 1970,
o futebol assumiu definitivamente outra configuração, tornando-se
importante palco para os embates políticos.

3.6.1.2. A gênese do protesto

Os percursos discursivos apresentados por Reinaldo durante


sua curta trajetória76 nos gramados, além de desvelar uma disso-
74 “O perigo das liberdades”, ESTADO DE MINAS, 11 jul. 1981, p. 2.
75 O debate sobre a hegemonia cultural da esquerda proposto por Schwarz (2001, p. 7)
fornece uma visão abrangente acerca do deslocamento do embate político para o
campo da cultura, ocorrido principalmente durante as décadas de 1960-1970.
76 No ano de 1973, aos 16 anos, Reinaldo, de forma precoce, iniciou sua carreira
profissional no Clube Atlético Mineiro. Após inúmeras contusões e cirurgias nos
242
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

nância comportamental em relação aos companheiros de profissão,


também apontam para uma incomum aproximação das questões e
debates políticos ocorridos ao longo de sua trajetória de vida. No
meio futebolístico, a origem social da grande maioria dos jogado-
res, aliada à própria dinâmica da profissão,77 contribui para o baixo
nível de escolarização, o que, por seu turno, pode explicar, pelo me-
nos em parte, a despolitização da categoria. Diante desse quadro,
surgem os questionamentos: Por que Reinaldo, um simples jogador
de futebol, se interessou pela política ainda no início da carreira?
Quais fatores/influências o motivaram a aderir às causas da esquer-
da brasileira?
A investigação dessa matéria, além de fornecer uma visão am-
pliada acerca da construção das identidades sociais do jogador, tam-
bém pode apresentar vestígios das questões que permeavam o ima-
ginário político daquele período. Todavia, a análise dos documentos
produzidos pela imprensa, assim como das biografias José Reinaldo
de Lima: que rei sou eu? e Duas vidas, dois campeões, escritas res-
pectivamente pelo jornalista Márcio Vianna e por Junia Lima, esposa
do jogador, não trouxe evidências que pudessem levar a uma melhor
compreensão das ligações políticas estabelecidas pelo jogador duran-
te sua carreira. Diante desse quadro, recorremos então à oralidade,
ou seja, à memória do próprio ex-jogador, assim como às percepções
reveladas por um dos seus principais amigos de juventude, Leonardo
Libânio Christo. Nesses depoimentos, percebemos com maior clareza
os elementos que contribuíram para o afloramento da sensibilidade
política revelada pelo jogador desde a infância. Embora reconheça-
mos a existência de enormes lacunas deixadas pelo processo seletivo
das cenas do passado,78 fator intrínseco ao ato da rememoração, tais

joelhos, o jogador encerrou a carreira em 1988, aos 31 anos de idade, defendendo


o Telstar, equipe da segunda divisão do futebol holandês.
77 Por meio dos relatos orais concedidos pelos ex-jogadores Sócrates, Afonsinho e
Reinaldo, é possível perceber que as competições, presentes desde o período das
categorias de base, exigiam dos jogadores de futebol a realização de constantes
viagens, fato que, na década de 1970, impossibilitava à maior parte dos atletas
conciliar os estudos com a profissão. Atualmente, os grandes clubes do país
investem na educação dos jovens jogadores. Muitos deles possuem, em seus
próprios centros de treinamento, escolas de ensino fundamental e médio cujo
calendário letivo é adequado à agenda desportiva.
78 Uma das maiores dificuldades encontradas no ato da rememoração se dá justamente
pela seleção dos acontecimentos do passado (in)conscientemente realizada pelo
entrevistado. É comum, nos relatos orais, a negação das experiências traumáticas
vivenciadas individualmente ou coletivamente. Ao contrário do que sugere uma
243

Euclides de Freitas Couto


depoimentos se mostraram frutíferos ao indicarem a natureza dos
pertencimentos, dos vínculos identitários e das influências pessoais e
coletivas responsáveis pela formação política do jogador.
De origem social humilde, Reinaldo nasceu no ano de 1957 em
Ponte Nova, cidade situada na zona da mata mineira. Sexto filho de uma
família de oito irmãos, o futebol esteve presente em sua vida desde a
infância: Timbé, seu irmão mais velho, jogador do Botafogo, trazia nos
períodos de férias as lembranças da fase gloriosa do alvinegro carioca.
Inspirado no irmão, Reinaldo inicialmente se destacou nas peladas em
frente a sua casa e, posteriormente, nos times do Pontenovense e do
Primeiro de Maio, clubes amadores de sua cidade natal. Ainda em meio
às peladas de rua, aos jogos de futebol de botão e bola de gude, Reinaldo
teve sua primeira experiência pessoal com o regime autoritário:

Meu pai fazia aniversário no dia 30 de março, quando então co-


memoramos o aniversário dele lá em casa. No outro dia, 31 de
março, foi a “Revolução”. Naquela época eu era menino, lá em
Ponte Nova. Eu abria a janela de casa e já pulava pra rua pra
ir jogar bola, correr. Aí num dia daqueles, após a “Revolução”,
eu abri a janela e vi dois soldados do Tiro de Guerra com fu-
zil, no passeio ao lado lá de casa. Tinha um senhor lá, o seu
Moretzon, que era comunista, funcionário no Banco do Brasil.
E eles então o prenderam. Eu não entendia o porquê. Só sabia
que eles tinham prendido um homem de bem. Eu o conhecia. A
gente tinha uma relação muito próxima. Ele ensinava a garota-
da a jogar bola, levava a gente pra passear de avião. Aquilo me
deixou muito impressionado. (Informação verbal)79

Apesar de não compreender as motivações que desencadea-


ram a prisão do vizinho, o jovem guardou em sua memória a atitude
truculenta dos militares. Poucos anos depois, ele encontraria outras
oportunidades para compreender melhor a situação. Em 1971, con-
vidado pelo técnico Barbatana para jogar nas categorias de base do
Atlético, Reinaldo se mudou para Belo Horizonte. Nos dois primei-
ros anos na capital mineira, juntamente com os companheiros do

primeira impressão, os “silêncios” e as lacunas deixados nos depoimentos podem


indicar a presença de um fato extremamente significativo na história de vida dos
sujeitos (DOSSE, 1999, p. 8).
79 Entrevista concedida por Reinaldo, 29 set. 2007.
244
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

interior, residiu no alojamento do clube. A moradia era uma espé-


cie de pensão, improvisada sob as arquibancadas do antigo Estádio
Antônio Carlos: “era uma vida difícil mas, ao mesmo tempo, legal:
muitos treinos, poucos jogos e os estudos à noite” (Informação
verbal).80 Rapidamente, seu raro talento com a bola foi reconhecido
pelos dirigentes alvinegros: depois de brilhar por dois anos nas ca-
tegorias infantil e juvenil, em março de 1973, Reinaldo assinaria, aos
16 anos de idade, seu primeiro contrato profissional com o Atlético.
A partir de então, ocorreram sucessivas mudanças em sua
vida: o sucesso prematuro na equipe profissional contribuiu para
que Reinaldo despontasse como um fenômeno na mídia nacional. O
jovem craque passou a ser muito conhecido e respeitado em Belo
Horizonte, tornando-se amigo de diversas personalidades do meio
artístico: “a maioria dos artistas de BH eram atleticanos, queriam me
conhecer. Eu também os admirava, eu era fã dos meninos do Clube
da Esquina” (Informação verbal).81 O primeiro contrato profissional
também teve outros efeitos em sua vida pessoal. O bom salário pago
pelo Atlético possibilitou a mudança de seus familiares para a capital
mineira, fato que, segundo o jogador, foi fundamental para a continui-
dade de sua carreira futebolística e dos seus estudos.82 Nessa época,
após se estabelecer com a família no bairro São Pedro, localizado na
Zona Sul de Belo Horizonte, Reinaldo conheceria seus maiores inspi-
radores políticos:

A gente viveu dentro do clima da repressão, da ditadura, do


regime militar que era muito forte. E aí você vai convivendo
numa metrópole, uma cidade grande, eu menino do interior,
você vai tendo contato com grupos. Na época era tudo muito
clandestino, mas você vai tendo contato. E eu morava perto
do Frei Betto. Nesta época ele havia saído da prisão e retornou
para Belo Horizonte. Eu comecei a ter contato com o Betto e
ele me abriu os olhos; sabe? O Betto é um grande mestre. Ele
me deu alguns livros. A gente conversava sobre os problemas
do país, dos pobres, da Igreja. Também fiquei muito amigo do

80 Id.
81 Id.
82 Na mesma entrevista, Reinaldo relata que, apesar de todos os percalços impostos
pela profissão, conseguiu concluir o segundo grau e ingressar no curso de
Comunicação Social da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo
Horizonte (Fafi-BH).
245

Euclides de Freitas Couto


Léo, seu irmão, que também era um cara engajado, preocupa-
do com as questões políticas do país. (Informação verbal)83

As conversas com Frei Betto, a convivência com Leonardo


Christo e a influência dos artistas engajados politicamente parecem
ter sido decisivas para a adesão do jogador às causas da esquerda
brasileira, como revela o longo trecho do relato oral concedido por
Leonardo Christo:

Quando ele (Reinaldo) chega aos 21 é o momento que ele vai


se aproximar da gente e aí é que ele descobre que tem um ou-
tro conteúdo. Entendeu? Que ele tem mais conteúdo do que
só um mero jogador de futebol. Então havia ali esse interesse
da juventude. Naquela época nós tínhamos nossos interesses,
com todas as liberdades... as meninas e tal... e ele tinha esses
interesses junto com a gente. O fato dele vir morar aqui no
São Pedro, eu acho que foi o momento que ele traz os pais de
Ponte Nova pra cá, então ele passa a ter uma família mesmo. E
nós todos ali somos filhos de famílias, percebe assim? Mas só
que de famílias de esquerda, vamos dizer assim, e ele vem nos
frequentar. Então nesse momento eu acho que aí abriu mais o
“Reinaldo”. Porque ele já tinha essas amizades com poetas e
músicos... O Celso Adolfo era muito amigo dele, então quando
eu conheci o Reinaldo o Celso Adolfo já era amigo dele, perce-
be assim? E essa turma trazia toda uma verve política também,
até um pouco diferente da minha, porque eu venho de uma
história complicada na minha adolescência. Eu sou aquele
que tem um irmão padre, comunista, preso! Então os comu-
nistas não chegavam perto porque meu irmão era padre, as
famílias católicas não chegavam perto porque meu irmão era
comunista, percebe assim? Então nós não éramos nem comu-
nistas, entre aspas, e de certa forma nós... o Beto fazia parte da
Teologia da Libertação, que era uma teologia combatida den-
tro da Igreja tradicionalista. Então havia esse momento. E essa
turma: Celso Adolfo, Tadeu, Murilo então tinha uma ligação ali
com o “Pecezão”, percebe assim? E o Reinaldo também bebia
nas fontes dele, então ali que vem acontecer, na realidade, va-
mos dizer assim, talvez o primeiro grande líder político, entre
83 Entrevista concedida por Reinaldo, 29 set. 2007.
246
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

aspas, se é que a gente pode dizer, que ele vai frequentar, é


o Beto meu irmão, que na época o Beto já era uma pessoa de
status na política. (Informação verbal)84

Na segunda metade dos anos de 1970, período em que Reinaldo


explodiria como um dos maiores fenômenos do nosso futebol, a so-
ciedade brasileira experimentava as transformações proporcionadas
pela “lenta, gradativa e segura distensão” executada pelo presidente
Ernesto Geisel (GASPARI, 2000, p. 12). Apesar dos claros sinais de
liberalização política, marcada principalmente pelo fim do AI-5 em
janeiro de 1979, a luta pelas liberdades individuais contra os instru-
mentos de repressão da ditadura e a reivindicação de anistia política
aos exilados permaneciam como principais bandeiras dos estudan-
tes mineiros no final dos anos 1960:

Na realidade, eu também sou egresso da FAFICH85 e vivi ali os


anos de chumbo dentro da FAFICH, né? Nessa época, que eu
conheci Reinaldo em 78, quer dizer, eu já vinha com todo um
histórico. O Beto já tinha sido preso e já tinha sido libertado,
já tinha passado por quatro anos na cadeia. Aí quando eu co-
nheci o Reinaldo, o surpreendente foi que ele tinha um discur-
so próximo de um discurso que a gente tinha na época, que
era um discurso contra a ditadura, a favor das liberdades, dos
direitos civis. Quer dizer, nós começamos a conversar sobre
esse assunto e a partir daí... Na realidade, nós tínhamos uma
turma que era um pouco politizada, vamos dizer assim. Era o
Álvaro Azeredo que era irmão do Eduardo Azeredo, filhos do
deputado Renato Azeredo, considerado um cara de esquerda
na época. Então nós tínhamos ali um grupo de pessoas que
a gente conversava muito sobre política. Essa turma andava
na rua Padre Severino, com São Domingos do Prata, que era a
esquina para onde o Reinaldo se mudou. E eu era amigo des-
sa turma, então ele começou ali, de certa forma, a frequentar
a turma com a gente. Nós éramos uma turma alternativa, va-
mos dizer assim. Já mais politizada, um pessoal mais chega-
do na vanguarda e tal. Aí ele começou a frequentar a turma, a

84 Entrevista concedida por Leonardo Libânio Christo, 11 fev. 2009.


85 Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais.
247

Euclides de Freitas Couto


gente começou a conversar e logo eu apresentei ele ao Roberto
Freire e ao Frei Beto, meu irmão. Aí já abriu uma outra con-
versa, quer dizer, no momento em que ele conheceu o Beto,
ele já tinha lido algumas coisas. Nós demos alguns livros do
Beto. O Beto tem hoje mais de 50 livros. Naquela época ele não
tinha nem 10 talvez. Então ele começou a ler alguns livros, ele
lia muito. O Reinaldo sempre gostou de ler e jogar xadrez. Na
realidade, o que nos “juntou” mesmo foi o xadrez. Ele gostava
de jogar xadrez, eu gostava de jogar xadrez, a gente gostava
de jogar xadrez, entendeu assim? E aí que começou essa con-
versa. Na realidade é quando sai essa matéria, que eu tô te
mostrando aqui, do Folhetim da Folha de São Paulo de 1979.86
Essa é primeira ligação que fazem do Beto com o Reinaldo. Aí
realmente o Reinaldo levou um estigma mesmo, que já tinha
um pouco de um jogador revolucionário. Extremamente inte-
ligente, extremamente hábil com a bola num espaço peque-
no, percebe assim? Ainda tendo posturas de punho fechado,
posturas de quando o questionamento vinha, ele encarava,
ele não corria dos questionamentos. Os jogadores de futebol,
na grande maioria daquela época, ficavam um pouco meio...
não é nenhuma crítica, mas um pouco de medo. Se interessa-
vam em participar como gente do circo da ditadura militar.
E o Reinaldo não, ele se posicionava mesmo. Tendo uma cla-
ra posição a favor dos pobres, a favor dos pequenos, a favor
dos desfavorecidos, então houve essa empatia entre nós dois.
(Informação verbal)87

As singularidades presentes nos depoimentos de Reinaldo e


de Leonardo Christo desvelam as formas pelas quais a influência dos
amigos de juventude foi essencial para a vinculação política do jovem
craque ao ideário esquerdista daquele contexto. Interlocutores dire-
tos do discurso antiditadura, Frei Betto88 e, principalmente, Leonardo
Christo, o “companheiro de todas as horas”, agiram como autênticos
intermediários no complexo movimento de conscientização política
86 Trata-se da reportagem discutida anteriormente neste capítulo (“Enfim, um
atacante”, Folhetim, FOLHA DE S. PAULO, 13 mai. 1978, p. 13).
87 Entrevista concedida por Leonardo Libânio Christo, 11 fev. 2009.
88 Sobre a ligação de membros da Igreja Católica com organizações de esquerda
durante o regime militar, consultar GASPARI, 2002, especialmente o capítulo
intitulado “A soberba de Lúcifer”.
248
Capítulo 3 – A esquerda contra-ataca: a rebeldia intra e extracampo

do jogador. Presentes desde sua infância em Ponte Nova, as marcas


da truculência militar revigoraram-se com cores ainda mais fortes em
Belo Horizonte. A identificação com as narrativas da família Christo,
intimamente marcada pelos dramas do encarceramento e da tortura
sofridos por Frei Betto, parece ter despertado no jovem ídolo alvine-
gro um forte sentimento de indignação contra o regime militar. Nos
estádios brasileiros, Reinaldo encontrou o espaço adequado para
gestualmente exteriorizar sua indignação em forma de protesto:

O futebol era o único espaço democrático que existia no país.


Você manifestava. Claro, tinha o setor dos metalúrgicos, estu-
dante, médico, todo mundo. Mas nada ainda muito organizado.
E dentro do futebol, mais pra posicionar em relação a isso, é
óbvio, mas é o seguinte: o futebol é circo mesmo, o futebol é a
arte, é isso tudo, mas futebol também tem consciência. Aí que eu
comecei a fazer o gesto. O punho cerrado era um gesto revo-
lucionário, um gesto que tinha várias conotações. (Informação
verbal)89

Apesar de não se lembrar com precisão da primeira vez em


que, após balançar as redes adversárias, fez uso do “punho cerrado”,
Reinaldo demonstra consciência acerca das representações políticas
presentes no futebol. Tal capacidade de compreensão das dinâmicas
políticas do país indica que as singularidades verificadas em sua his-
tória de vida fizeram dele um sujeito politicamente consciente e alta-
mente participativo, uma exceção à maioria dos jogadores de futebol.
Em outra dimensão, seu engajamento ao ideário esquerdista também
é revelador da forte atuação desses discursos no âmbito da juven-
tude universitária brasileira. Se alguns estudiosos90 compreendem
os últimos anos da década de 1970 como um momento de “ressaca”
dos movimentos culturais – assim como da própria luta contra o au-
toritarismo –, as investidas de Reinaldo mostram que, no universo
do futebol, a rebeldia e o inconformismo ainda davam suas últimas
cartadas contra o regime militar.

89 Entrevista concedida por Reinaldo, 29 set. 2007, grifo nosso.


90 Referimo-nos, particularmente, às análises construídas por Gaspari (2000) e por
Carmo (2003); nesta última, em especial, ao capítulo intitulado “Os anos 70: da
ressaca ao inconformismo”.
249

Euclides de Freitas Couto


Ademais, a simbologia gestual adotada pelo jogador eviden-
cia sua afinação com os modelos e as formas de expressão adotadas
pelos movimentos de resistência cultural organizados pelos negros
norte-americanos, o que revela o grande trânsito cultural que interli-
gava a juventude naquele período. Embora afirme que seu gesto não
possuía relação com qualquer tipo de militância ligada ao movimen-
to negro, Reinaldo não nega que sua principal fonte inspiradora foi
o movimento Black Power. Tal influência, por sua vez, demonstra, fi-
nalmente, a presença marcante dos símbolos da contracultura norte-
-americana no imaginário coletivo brasileiro no final dos anos 1970.
Considerações finais

Aqui na terra ‘tão jogando futebol


Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
(Chico Buarque e Francis Hime, 1976)

Na obra Com brasileiro não há quem possa: futebol e identida-


de nacional em José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues, a
socióloga Fátima Antunes1 afirmou que, “no Brasil, costuma-se ava-
liar a sociedade e suas instituições pelo desempenho da seleção de
futebol”. Esta assertiva, altamente polissêmica, explica alguns dos
sentidos empregados nas análises que constituem esta obra. Para
além da transposição simbólica do governo e do povo para a seleção
de futebol, ou seja, da associação entre a Seleção Brasileira e a iden-
tidade nacional, percebemos a existência de um diacronismo entre o
sucesso do esporte e sua apropriação política.
Essa argumentação aparenta ser demasiadamente óbvia, de-
vido à multiplicidade de ações políticas desencadeadas na esfera da
história esportiva no último século. No decorrer desse período, ob-
servamos a habilidade maquiavélica de governantes de diversas es-
tirpes políticas de encampar o esporte aos seus discursos e progra-
mas de governo. Tanto em regimes de corte totalitário e autoritário
quanto nos diversos modelos de organização democrática, o esporte
assumiu lugar de destaque no cenário político, tornando-se, simulta-
neamente, um campo no qual se travavam as lutas pelo poder e um
espaço para a legitimação das ideologias oficiais. Contudo, percebe-
mos que essas visões, ainda hegemônicas em alguns círculos intelec-
tuais brasileiros, acabam por obliterar e camuflar uma diversidade
1 ANTUNES, 2004, p. 277.
252
Considerações finais

de significados que podem ser interpretados nas relações sociocul-


turais e políticas que permeiam o universo futebolístico.
Nas três últimas décadas, no entanto, esse quadro sofreu al-
terações significativas. Os arsenais teóricos e metodológicos acu-
mulados pelas ciências sociais parecem ter finalmente encontrado
no futebol um campo promissor para sua experimentação. Objetos
demasiadamente explorados pelo pensamento social brasileiro, tais
como a mestiçagem, a brasilidade e a identidade nacional, ganharam
novo fôlego, assumindo novas roupagens ao serem vinculados ao de-
bate esportivo. Nessa toada, temas emergentes da pesquisa social
brasileira também encontraram grande confluência no universo do
futebol. Atualmente, multiplicam-se os estudos que buscam no cam-
po futebolístico material empírico para a compreensão de inúmeros
fenômenos sociais: conflito, violência, autoafirmação, homofobia, ra-
cismo, sociabilidade, associativismo e diversos outros que poderiam
constar nesta lista. Essa tendência influenciou diretamente os inves-
timentos empreendidos na construção desta obra. Ao longo da fase
de investigação, constatamos que o universo do futebol brasileiro é
capaz de revelar, nas entrelinhas dos seus acontecimentos, inúmeros
significados presentes em diversas esferas da vida social.
As culturas políticas, área recém-descoberta pelos historiado-
res, constituíram-se como outra fonte de inspiração para nossas in-
vestigações. O esforço interdisciplinar empreendido pelos cientistas
sociais e historiadores nos últimos vinte anos tem apresentado efei-
tos significativos para a inteligibilidade das formas de manifestação
que se instauram na confluência entre a macro e a micropolítica. A
redução na escala de observação do objeto – uma das estratégias me-
todológicas propostas por essa vertente – foi sem dúvida um recurso
precioso para que pudéssemos penetrar no ambiente das práticas
políticas que se deflagravam em trajetórias individuais. No âmbito
das culturas políticas, verificamos que a coexistência de estruturas
ideológicas complexas – a exemplo do autoritarismo – não reduz a
importância dos fatos singulares para o entendimento do cenário po-
lítico. O abandono da tentativa de conceber generalizações ou mo-
delos a partir das trajetórias individuais dos sujeitos pesquisados
não impediu que se encontrassem em atitudes, gestos e discursos
elementos anunciadores do quadro de inconformismo que se disse-
minava em diversos setores da sociedade nos anos 1960-1970.
253

Euclides de Freitas Couto


***

A presente pesquisa teve por objetivo central analisar o desen-


volvimento de uma cultura política no interior do campo futebolís-
tico brasileiro entre os anos de 1930 e 1978. Ao longo desse espaço
temporal, observamos o acirramento das tensões políticas no espaço
simbólico criado em torno do futebol. A formulação dessa consta-
tação é decorrente da digressão empreendida pela história política
brasileira ao longo desse recorte temporal. Tal estratégia possibili-
tou avaliar, com base na emergência de novos paradigmas políticos,
culturais e tecnológicos, as transformações dos significados sociais
assumidos pelo futebol brasileiro em boa parte do século passado.
As análises apresentadas neste livro revelam que o processo
de popularização do futebol desencadeado a partir da década de 1930
se insere no conjunto das grandes rupturas nas esferas econômica e
política que marcaram a história brasileira nesse período. A profis-
sionalização dos clubes de futebol, para além de suas implicações
econômicas – o avanço do capitalismo no país –, obedeceu também
à lógica da competitividade inerente ao campo esportivo. À medida
que as disputas se acirravam e o interesse do público aumentava,
os clubes investiam na contratação de jogadores mais “caros” que,
paulatinamente, passavam a dedicar mais tempo ao futebol. Atentos
a essas transformações, os intelectuais estado-novistas perceberam
que o esporte poderia prestar um grande serviço à nação. Tanto a
Seleção Brasileira, incorporada ao repertório simbólico da propagan-
da oficial, quanto a disseminação das práticas esportivas no país,
que teve no futebol um dos seus principais pilares, evidenciam as in-
tenções ideológicas do Estado Novo no emergente campo esportivo.
Com o propósito de fundar um novo projeto de nação, o Estado
Novo, ao adotar elementos da organicidade social conjugados com
os princípios higienistas, incorporou o esporte à sua base ideoló-
gica. Nesse sentido, estratégias como a instrumentalização, o dis-
ciplinamento e a militarização do corpo visavam adaptar o homem
brasileiro aos padrões físicos requeridos pela sociedade capitalista.
Objetivando associar a imagem da nação às vitórias no campo espor-
tivo, a intervenção do Estado nesse setor conjugou a retomada do
discurso higienista, baseado na domesticação da população via ati-
vidades corporais, com a veiculação do futebol à propaganda oficial.
Nessa lógica, o clima de euforia decorrente das vitórias alcançadas
254
Considerações finais

pela Seleção Brasileira, especialmente na Copa do Mundo de 1938,


assumiu, nas páginas dos periódicos e nas ondas do rádio, represen-
tações de patriotismo e ufanismo.
Se, no âmbito simbólico, o futebol reunia aspectos de uma re-
presentação do nacionalismo, na esfera das práticas sociais no Brasil
das décadas de 1930-1940, o esporte adquiria a função de espetácu-
lo. A construção de estádios com capacidade superior a 30 mil luga-
res, a exemplo de São Januário, no Rio de Janeiro, e o Pacaembu, em
São Paulo, permitiu aos torcedores experimentarem novas formas
de interação social que se consolidavam a partir das experiências
de rivalidade, pertencimento clubístico e associativismo – dentre as
inúmeras características inerentes à socialização esportiva. Sob esse
aspecto, a teoria elisiana permite especular que o esporte atendeu à
função civilizadora, na medida em que os espetáculos futebolísticos
– tidos como ocasiões “adequadas” para a liberação das tensões –
possibilitaram que milhares de espectadores pudessem experimen-
tar o extravasamento coletivo e controlado das emoções, cumprin-
do uma das funções sociais do esporte na emergente modernidade
brasileira.
Nesse contexto, além da reprodução das ações governamen-
tais, a popularização do futebol contou com a ampla participação da
imprensa esportiva e do rádio que, sintonizados ao discurso estatal,
disseminavam por meio do futebol o sentimento de nacionalidade.
Em suma, os cronistas e radialistas reproduziam o discurso de matiz
freyriana que atribuía ao estilo do nosso futebol traços essenciais da
cultura brasileira – improvisação, ginga e malícia –, requalificando-o
socialmente como o jogo-síntese da identidade nacional.
Durante as décadas de 1950-1960, a consolidação do futebol
como um dos símbolos da identidade nacional pôde ser constatada
por meio dos sentimentos extremos de paixão exteriorizados tanto
nos momentos das “desilusões” quanto nas vitórias ocorridas na
trajetória da Seleção Brasileira. O futebol gradativamente ampliava
seu espaço no imaginário coletivo do país. No âmbito da imprensa
esportiva, além das crônicas e reportagens, ele passou a ser incorpo-
rado pelas peças publicitárias, fato revelador da sua penetrabilidade
social. Em 1950, a ampla mobilização política e social em torno da
realização da Copa do Mundo no Brasil contrastou com o sentimento
de decepção provocado pela derrota para os uruguaios na partida
final da competição.
255

Euclides de Freitas Couto


Na Copa de 1954, nem as recordações do “maracanasso”, nem
a modesta campanha da Seleção Brasileira nos gramados suíços fo-
ram suficientes para apagar os vínculos sociais que o esporte havia
adquirido nas últimas décadas. A instabilidade dos últimos meses do
governo Vargas parece ter determinado a tímida atuação do chefe
de estado à frente da Seleção Brasileira. Contudo, políticos das mais
diversas filiações continuaram a tirar proveito do clima de euforia e
patriotismo que contaminava o momento da Copa. A aproximação
com a “massa” se deu por meio de mensagens oficiais endereçadas
aos jogadores e, sobretudo, por comentários sobre os jogos, destaca-
dos nas páginas esportivas dos principais jornais do país.
A despeito da grande mobilização social em torno da Seleção
Brasileira percebida nas Copas do Mundo anteriores a 1958, foi a
partir do Mundial da Suécia que observamos a cristalização dos vín-
culos identitários entre o povo e a nação via seleção de futebol. A
conquista do Campeonato Mundial arrastou multidões, promoven-
do um “carnaval” sem precedentes na história do país. A vitória nos
gramados e o otimismo desencadeado pelas grandes realizações do
governo JK enterraram o complexo de “vira-latas”, contribuindo para
o reconhecimento do país no cenário internacional. As benesses da
democracia e, principalmente, as relações clientelísticas abriram es-
paço para que políticos de diferentes correntes associassem sua ima-
gem à Seleção Brasileira. Tal estratégia foi repetida em 1962, quando
o Brasil conquistou o bicampeonato mundial de futebol nos grama-
dos chilenos. Os mundiais de 1958 e 1962 marcaram também a cons-
trução da idolatria em torno de Garrincha e Pelé que, apesar de suas
diferenças técnicas e comportamentais, ganhavam entre os cronistas
esportivos a representação de elementos-síntese do povo brasileiro.
No período que compreende os últimos anos da década de
1950 e o início dos anos 1960, a ascensão da esquerda no cenário po-
lítico brasileiro incorporou novas questões ao debate futebolístico. O
revigorado discurso nacionalista da mestiçagem passou a concorrer
com os ideais socialistas cujas formulações elegiam o fanatismo pelo
futebol como um dos mais perversos fatores de alienação da socie-
dade. Observamos também que a hegemonia da esquerda no campo
cultural propiciou a descoberta de novas potencialidades políticas
do esporte de massa. A análise da produção cultural realizada por
artistas ligados ao Centro Popular de Cultura (CPC) evidenciou que
o futebol era utilizado como um “mote”, um veículo de comunicação,
256
Considerações finais

que facilitava o acesso à linguagem popular. Como exemplo, temos a


composição “Beto bom de bola” e a peça teatral “Chapetuba Futebol
Clube”, escritas, respectivamente, pelo músico Sérgio Ricardo e pelo
teatrólogo Vianinha, além de produções cinematográficas, obras lite-
rárias e plásticas.
É nesse contexto que se pode perceber a amplitude alcan-
çada pelo fenômeno futebolístico. A pluralidade dos atores sociais
e das formas de apropriação ideológica do futebol são indicadores
de que, na década de 1960, o esporte se constituía como um espaço
privilegiado para o reconhecimento dos embates travados no ima-
ginário político do país. O golpe militar de 1964 e o decorrente re-
crudescimento das estruturas políticas, evidenciado pela redução
das relações institucionais ao bipartidarismo, produziram algumas
adaptações na relação política/futebol. À medida que se expandia a
popularidade do futebol no território nacional, ampliava o interes-
se político dos cartolas e das autoridades locais pelas competições
e, principalmente, pelos recursos públicos destinados ao futebol. O
ideal da integração nacional, componente caro à ideologia militar,
afinava-se com os interesses dos “braços” políticos do governo que
se espalhavam por todo o país. A progressiva ampliação das compe-
tições nacionais, a construção de grandes estádios e a distribuição
dos cargos técnicos e administrativos das entidades esportivas aos
membros da Arena são indicadores da disseminação das ações pa-
ternalistas do governo no campo futebolístico.
Se no âmbito das relações institucionais presenciamos a am-
pliação dos mecanismos estatais de controle político do futebol, a
esfera das relações sociais não contrariou essa lógica. A dissemina-
ção do autoritarismo na orientação das condutas técnicas e profis-
sionais provocou mudanças substanciais no cotidiano da seleção e
dos clubes. A militarização da CBD legitimou a introdução de práti-
cas autoritárias que passaram a nortear as relações entre as comis-
sões técnicas e os jogadores. Alicerçados no paradigma cientificista
absorvido pela Educação Física, os sistemas de treinamento implan-
tados no futebol brasileiro exigiam maior esforço e dedicação dos
atletas. A emergência dessa nova mentalidade conduziu a implanta-
ção de rígidos controles disciplinares nos clubes, controles que, para
além das rotinas de trabalho, invadiam a vida privada dos jogadores.
Respaldados pela imprensa, tais ideais procuravam disseminar na
sociedade o perfil do novo jogador, que exigia habilidade técnica,
257

Euclides de Freitas Couto


mas, acima de tudo, disciplina, bom caráter e afinação com os valo-
res morais da época.
No entanto, a implantação do modelo soldado-jogador encon-
trou diversas formas de resistência por parte dos atletas. Atitudes de
desvio comportamental, como aquelas encontradas na carreira de
Paulo Cezar Caju, ou de contestação política, caráter assumido pela
batalha judicial travada por Afonsinho contra o Botafogo, revelam
focos de resistência ideológica no interior do universo futebolístico.
Apesar de considerarmos que, para a maior parte dos jogadores, a
disseminação das práticas autoritárias não causou grande estranha-
mento ou revolta, as manifestações de descontentamento observa-
das nas trajetórias dos sujeitos analisados evidenciam que no palco
do futebol se travavam diferentes embates entre as visões de mun-
do dos atletas e as novas ideologias que contagiavam o imaginário
social.
Para além da questão da resistência contra o autoritarismo, o
“caso Reinaldo”, destacado ao longo do terceiro capítulo desta obra,
é revelador das outras faces assumidas pelos embates políticos ocor-
ridos no universo do futebol. As manifestações de contestação e re-
beldia expressas pelo jogador contrastam, no plano simbólico, direta-
mente com o ideário do regime militar. Como forma de retaliação por
seu comportamento, Reinaldo era ameaçado de ser excluído da sele-
ção pelos dirigentes da CBD. À medida que aumentavam as ameaças
ao jogador brasileiro, suas atitudes ganhavam apoio dos estudantes e
da imprensa alternativa, setores ligados à esquerda do país.
Em linhas gerais, os esforços analíticos empreendidos nesta
obra objetivaram contribuir para uma história política e cultural
do futebol brasileiro. As correlações entre os fenômenos culturais
e os fatos políticos que envolvem o jogo da bola evidenciam que o
esporte é um campo altamente promissor para o entendimento da
realidade social. Em um nível mais particular, buscamos colaborar,
apresentando o exemplo extraído das manifestações políticas ocor-
ridas no cenário futebolístico, com a vertente científica que assume
uma visão dialética acerca dos fenômenos esportivos, indicando a
existência de ambiguidade nas relações sociais. Ao contrário do que
postulam algumas vertentes analíticas, o futebol per si não deve ser
considerado como causa ou produto de alienação, mas, assim como
qualquer outro fenômeno social, deve ser investigado em todas as
suas dimensões, abrangências e potencialidades. Por outro lado, seu
258
Considerações finais

estudo revelou que o embate político pode se manifestar por meio de


diversos conteúdos, estéticas, processos e ações.
A polissemia encontrada na história sociocultural e política do
futebol também lança algumas armadilhas e pode provocar alguns
esquecimentos. Estamos cientes de que as fontes analisadas limitam
a dimensão territorial de nossas análises. A formulação universo do
futebol brasileiro pode parecer extremamente generalizante, uma vez
que as trajetórias individuais analisadas se reduzem espacialmente
ao eixo Minas-Rio. No entanto, a circulação das informações – espe-
cialmente a partir da década de 1970, com a popularização da TV no
Brasil – indica, por outro lado, que tais fatos adquiriram repercussão
nacional. Também assumimos a responsabilidade pelo esquecimen-
to de outros tantos jogadores, jornalistas e demais sujeitos envolvi-
dos com o futebol que, tal como nossos “escolhidos”, poderiam fazer
parte desta história.
Por último, consideramos que, diante da pluralidade das re-
presentações observadas no universo do futebol brasileiro, mesmo
considerando apenas o período estudado nesta obra, vislumbram-se
inúmeras possibilidades para o aprofundamento de novas questões.
O estudo do futebol reivindica novas escolhas e novas abordagens,
tanto no nível empírico quanto no plano metodológico. Os aconteci-
mentos que marcaram o período da abertura política, subsequente
ao marco temporal desta pesquisa, oferecem inúmeras possibilida-
des de investigação sobre a relação futebol/política. O movimento
conhecido como Democracia Corintiana é um exemplo emblemático
da continuidade da efervescência política no mundo do futebol. Para
além das reivindicações relativas à participação na gestão do clube,
os jogadores do Corinthians se uniram a políticos de inúmeras cor-
rentes no clamor pelas eleições diretas no Brasil. Esta, no entanto, é
outra “partida”.
259

Euclides de Freitas Couto


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CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, 1970.
DIÁRIO DE MINAS. Belo Horizonte, 1958-1966.
ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 1958-1981.
FOLHA DE MINAS. Belo Horizonte, 1958.
FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 1972-1979.
JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 1938-1962.
MINAS SPORT. Belo Horizonte, 1925.
MOVIMENTO. São Paulo, 1978.
O DIÁRIO. Belo Horizonte, 1966.
O GLOBO. Rio de Janeiro, 1970.
O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 1966-1972.
O PASQUIM. Rio de Janeiro, 1970.
OPINIÃO. Rio de Janeiro, 1972-1974.
276
Considerações finais

B) REVISTAS
FOTO ESPORTE. Belo Horizonte, 1962.
ISTO É. São Paulo, 1976-1977.
MANCHETE. Rio de Janeiro, 1958-1970.
O CRUZEIRO. Rio de Janeiro, 1958-1972.
PLACAR. São Paulo, 1970-1975.
REALIDADE. São Paulo, 1966.
VEJA. São Paulo, 1969-1978.
VITA. Belo Horizonte, 1913-1914.

3. FONTES FONOGRÁFICAS

BUARQUE, Chico; HIME, Francis. Meus Caros Amigos. Phonogram,


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277

Euclides de Freitas Couto


5. FONTES ORAIS

Lista de Entrevistados:

Afonso Celso Garcia Reis, conhecido como Afonsinho, nasceu em


Marília/SP em 03/09/1947. Jogador revelado pelo XV de Jaú, em
1965 iniciou sua carreira nas divisões de base do Botafogo Futebol
e Regatas, clube que defendeu até 1970. Foi o precursor da luta pelo
“passe livre” no futebol brasileiro. Paralelamente às atividades es-
portivas, Afonsinho graduou-se em medicina pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Encerrou sua carreira em 1982, jogando
pelo Fluminense Football Club. Concedeu entrevista na cidade do Rio
de Janeiro, em 13/09/2007.

José Reinaldo Lima, o Reinaldo, ou, simplesmente, “Rei” para a tor-


cida do Atlético, nasceu em Ponte Nova/MG em 11/01/1957. Em 1973,
com apenas 16 anos, iniciou carreira profissional, no Clube Atlético
Mineiro, o qual que defendeu até 1985. Em 1978, vestiu a camisa da
Seleção Brasileira na Copa da Argentina. Após inúmeras contusões e
cirurgias nos joelhos, o jogador encerrou a carreira em 1988, aos 31
anos de idade, defendendo o Telstar, equipe da segunda divisão do
futebol holandês. Suas atitudes de protesto contra a ditadura militar
renderam-lhe os apelidos de rebelde e problemático. Após encerrar
a carreira no futebol, foi eleito deputado estadual pelo Partido dos
Trabalhadores de Minas Gerais. Em 2004, foi eleito para vereador em
Belo Horizonte, pelo Partido Verde. Após ter se graduado em jorna-
lismo pela Universidade Estácio de Sá, atualmente exerce o cargo de
comentarista na TV Alterosa em Belo Horizonte. Concedeu entrevista
em Nova Lima/MG, em 29/09/2007.

Leonardo Libânio Christo nasceu em Belo Horizonte/MG, em


21/04/1957. Psicólogo e psicoterapeuta, estudou durante a década
de 1970 na Fafich/UFMG, época em que conheceu o jogador Reinaldo.
Por influência de seu irmão, Frei Betto, se engajou na militância polí-
tica, participando do movimento estudantil em Belo Horizonte. Léo,
como é conhecido, foi um dos principais amigos e interlocutores po-
líticos que Reinaldo conheceu em sua juventude, tornando-se uma
das principais referências intelectuais do jogador. Concedeu entre-
vista em Belo Horizonte, em 11/02/2009.
278
Considerações finais

Paulo Cezar Lima, também conhecido como Caju, nasceu no Rio de


Janeiro em 16/06/1949. Em 1967, iniciou sua carreira de jogador pro-
fissional no Botafogo Futebol e Regatas. Tricampeão mundial pela
Seleção Brasileira de 1970 e com passagem pela seleção de 1974, tam-
bém defendeu as cores do Flamengo, Fluminense, Vasco, Corinthians
e Olympique de Marselha. Encerrou sua carreira em 1983, pelo Grêmio
Foot-Ball Portoalegrense. A trajetória profissional de Paulo Cezar foi
marcada pelas atribulações da sua vida pessoal, situação que lhe ren-
deu no universo do futebol brasileiro o estigma de jogador-problema.
Concedeu entrevista em Belo Horizonte, em 10/11/2008.

Sérgio Ricardo nasceu em Marília/SP, em 18/06/1932. Músico, com-


positor e cineasta, se mudou para a cidade do Rio de Janeiro na dé-
cada de 1950, onde iniciou sua trajetória artística cantando em casas
noturnas. Influenciado pela bossa nova, dividiu os palcos com Tom
Jobim, Johnny Alf, João Gilberto. Na década de 1960, se aproximou
dos intelectuais do CPC. Nessa época passou a ser influenciado pela
militância política e compôs canções com alto teor crítico como Beto
bom de bola e Zelão. Em 1979, participou de outro ato de protes-
to: viajou com a caravana de artistas brasileiros que se apresentaria
em Cuba. Ao longo da sua carreira, compôs diversas trilhas sonoras
para o cinema, onde também atuou como ator. Atualmente, vive no
Morro do Vidigal e continua realizando seus trabalhos de composi-
ção. Concedeu entrevista no Rio de Janeiro, em 12/09/2007.

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, o “Doutor”


Sócrates, ou “Magrão”, nasceu em Belém do Pará em 19/02/1954.
Revelado pelo Botafogo de Ribeirão Preto/SP, se consagrou no
Corinthians em 1978. Convocado para a Seleção Brasileira para dis-
putar as Copas de Mundo de 1982 e 1986, ficou conhecido no mundo
do futebol pela sua categoria nos gramados e por sua alta capacidade
intelectual fora deles. Assim como Afonsinho, dividiu suas obrigações
de jogador com as de estudante de medicina. No início da década,
se engajou no movimento conhecido como Democracia Corintiana,
cujas reivindicações propunham a democratização na gestão do clu-
be. Nesse mesmo período, Sócrates participou ativamente do movi-
mento pelas “Diretas Já”, tornando-se, nas últimas décadas, um dos
jogadores de futebol que mais se envolveram nas questões políticas.
Nos últimos anos da sua vida trabalhou como comentarista esportivo
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Euclides de Freitas Couto


na TV Cultura de São Paulo. Concedeu entrevista em Belo Horizonte,
em 11/11/2008. Faleceu em São Paulo no dia 04/12/2011.

6. Instituições pesquisadas

Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Minas Gerais –


Belo Horizonte/MG
Fundação Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro/RJ
Funarte – Rio de Janeiro/RJ
Hemeroteca Pública de Minas Gerais – Belo Horizonte/MG
Hemeroteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
Belo Horizonte/MG

7. ACERVO PARTICULAR

Acervo fotográfico particular de Afonso Celso Garcia Reis.


Este livro foi composto na fonte ITC Cheltenhan corpo 10
Impresso na Nova Aliança Gráfica e Editora Ltda.,
em papel pólen Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa no verão de 2014.

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