Rachel Soihet – O povo na rua: estrangeiras, especialmente ingleses,
manifestações culturais como mas também portugueses, italianos e
expressão de cidadania (Cap. 10 de O alemães” – pág. 353; Brasil Republicano – Vol. 2). - “O Fluminense Football Club, fundado - “Tanto a prática do futebol como a do em 21 de julho de 1902, foi o primeiro samba pelos populares nesse período dos clubes surgidos no Rio, composto [inicio do séc. XX] mesclavam-se a um basicamente de jovens brasileiros da processo de luta com vista a garantir sua alta burguesia, que buscaram associar prática. Afinal, nos primeiros anos da ao esporte ali praticado a imagem de República predominava um quadro em refinamento e de cosmopolitismo” – que tais segmentos [futebol, samba, pág. 353; carnaval, candomblé], excluídos de - “Esse foi um período em que ecoa participação política, rejeitaram a com mais ênfase, junto à população, a segregação que se lhes pretendiam maciça campanha de higienistas em impor e, a partir de suas manifestações, favor do exercício físico, exaltado como desenvolveram formas alternativas de fonte de energia e de saúde” – pág. 353; organização vinculadas ao terreno da cultura, através da qual edificaram uma - “Na perspectiva de garantir ao futebol
cidadania” – pág. 352; uma imagem de distinção, ameaçada
diante de seu crescimento, segundo a ~> Futebol no Rio de Janeiro em seus concepção dos dirigentes dos clubes primeiros tempos considerados mais refinados, estes se - “De esporte considerado próprio da decidem organizar a 8 de julho de 1905 elite, que pelo exercício aproximar-se-ia a Liga Metropolitana de Futebol. do modelo civilizado europeu, passa, na Caberia à liga não apenas definir as década de 1930, a ser valorizado pela regras como também os grupos que influência negra, que teria dado ao poderiam praticar o jogo. [...] O futebol brasileiro um estilo nacional e coroamento do processo deu-se com a uma maestria que, de longe, o fizeram decisão de se enviar aos clubes superar aquele próprio dos seus locais associados um ofício informando que as de origem. Surgido na Inglaterra, o pessoas de cor não poderiam ser futebol já seria aqui praticado, em fins registradas na liga como amadores” – do século XIX, por imigrantes europeus pág. 354-55; e empregados de companhias - “Ao contrário do que ocorrera no grandes clubes, aqueles de menor porte Botafogo e nos demais clubes, os sócios vão ingressando na Liga Metropolitana” do Bangu, que de forma crescente – pág. 356; compunham-se de trabalhadores, - “Nesse embate uma proposta é inclusive negros, decidem-se pelo apresentada e aprovada naquele mesmo desligamento da liga, diante daquela ano [1916], com vista a garantir a decisão” – pág. 355; discriminação – a Lei do Amadorismo. - “A Liga Metropolitana não teria, De acordo com essa lei não seriam porém, como evitar que os grupos amadores, entre outros, os que tirarem excluídos dos seus quadros formassem seus meios de subsistência de qualquer as próprias associações ou clubes. profissão braçal, considerando como Espalhados pela cidade, esses clubes tais todas aquelas em que o indivíduo não demoraram a criar outras ligas e depende inteiramente de seus poderes campeonatos. Longe do monopólio físicos e não dos recursos de sua pretendido pela Liga Metropolitana, o inteligência, especificando a seguir futebol espalhou-se por vários bairros” inúmeras profissões e situações – pág. 355; impeditivas, como a do analfabetismo” – pág. 357; - “Verifica-se que jogadores rejeitados das disputas da Liga Metropolitana iam - “As regras aprovadas geraram conquistando espaço nos clubes de inúmeras polêmicas, mas os clubes menor expressão, dando ao futebol uma pequenos articulados, quando da marca diversa daquela desejada pelos discussão dos estatutos, conseguiram clubes de maior prestígio. Assim, impor-se, estabelecendo a assembleia operários, negros e suburbanos passam com representantes de todos os clubes, a articular os próprios clubes, tornando- na qual formavam a maioria, como se o jogo uma importante opção de lazer instância decisiva da liga. Dessa forma, para amplas parcelas da sociedade ainda que nos estatutos aprovados em carioca” – pág. 356; 1917 ficassem estabelecidas as restrições acima citadas, a nova ~> Negros, mestiços, pobres correlação de forças na liga garantiu aos conquistando espaço no futebol clubes menores uma grande - “Apesar de todos os empecilhos e do flexibilidade na interpretação das mal-estar provocado em membros dos regras” – pág. 357; - “Cresce a cada dia o prestígio do patriotismo uma arma com a qual futebol [...] Novos sujeitos passam a cobravam sua inclusão nos times praticá-lo, multiplicando-se os clubes, nacionais e na própria imagem do país” dando lugar a novas ligas e – pág. 360; campeonatos. Os populares, portanto, - “Nesse momento [década de 1920], nessa luta cotidiana, em nenhum mais do que diversão, o futebol momento abrindo mão da prática do transforma-se em importante fonte de jogo, asseguram seu espaço e uma renda para os clubes. Com o crescente participação. Tomava vulto a crescimento significativo do público escalada em termos da transformação do serão construídos os primeiros grandes futebol em um grande fenômeno de estádios: Laranjeiras, São Januário e o massas” – pág. 357; Parque Antártica” – pág. 360; - “Indiferentes a esses protestos à sua - “O futebol transformava-se em jogo presença e participação no futebol, os majoritariamente praticado por pobres. populares mantêm-se fiéis a sua paixão, Domingos Antônio da Guia e Leônidas compartilhando com a elite do da Silva, jogadores negros que entusiasmo pelo esporte e pelos alcançaram enorme admiração, são um jogadores que nele se destacavam” – exemplo dessa mudança que se pág. 358; aprofunda na década de 1930” – pág. - “Tal situação, portanto, não era 360; sinônimo de convivência harmônica, - “Aumentam as pressões em prol do mantendo-se em meio à mesma uma profissionalismo, campanha na qual realidade plena de disputas e conflitos: teve significativo papel o jornalista conflitos regionais entre cariocas e Mário Filho, no início dos anos 1930. paulistas que se estenderam dos Ressalta-se nessa campanha o apoio da cronistas aos torcedores; rivalidades maior parte dos dirigentes esportivos, entre adeptos dos diferentes clubes; e as convencidos de que caso esse não fosse tensões étnicas e sociais que se adotado, inúmeros jogadores iriam para mantinham, decorrentes da o exterior, mote da campanha de Mário discriminação dos jogadores negros e Filho” – pág. 361; dos pobres” – pág. 358; - “Todavia, apesar de significativa - “Negros e mestiços lutavam contra sua resistência, em janeiro de 1933, o própria exclusão, fazendo do Fluminense, o Vasco, o Bangu e o futebol em legítima expressão da América constituem a primeira entidade nacionalidade” – pág. 364; esportiva profissional da cidade – a Liga - “Na verdade, a ascensão e o Carioca de Futebol, dando início a esse reconhecimento desses jogadores não se processo” – pág. 362; constituíram em algo pacífico, como - “Finalmente, já no início de 1937, o querem fazer ver intelectuais como o governo buscou acelerar a votação da próprio Freyre, mas foram resultado de emenda que oficializava os esportes, um processo de lutas. Nelas, os diante dos conflitos existentes e do populares não apenas resistiam como clamor de grande parte da sociedade atuavam, utilizando diferentes táticas, contrariada com os prejuízos por eles buscando aproveitar as ocasiões, as causados, em meio a um contexto possibilidades oferecidas para garantir o internacional favorável à intervenção exercício da cidadania cultural” – pág. nos esportes” – pág. 362; 364;
- “A valorização da participação negra - “O êxito obtido pela seleção na Copa
no futebol não era um fenômeno de 1938 e o entusiasmo provocado nos isolado. Lembremos que na década de diversos segmentos da população 1920 o modernismo acentua a propiciaram ao governo a certeza acerca importância da presença negra e da significação do futebol para a indígena em nossa formação, opondo-se consolidação de seu projeto político em à tendência dominante que pretendia a termos dos ideais nacionalistas e de valorização exclusiva do modelo harmonia social, fazendo da atuação de europeu” – pág. 363; certos jogadores a prova da inexistência de conflitos étnicos e sociais no país” – - “[Freyre] Ao reforçar a associação do pág. 365; jogo da bola com os movimentos de outras práticas culturais negras, como a ~> Mas passemos ao Carnaval... capoeira e o samba, dava forma a um - “O Carnaval constituía-se na processo que forja para o futebol manifestação máxima dos populares, praticado no Brasil uma nova tradição – quando, de forma irreverente, mostrando como o jogo ganhara uma utilizando-se da paródia, do deboche, da característica que não tinha em seus inversão, traziam à tona suas tensões e locais de origem, transformando-se o insatisfações contra a opressão e a discriminação que sofriam” – pág. 365- Praça Onze. Integraram-se à vida da 66; cidade, frequentando outros espaços, misturando-se com as demais classes - “E as manifestações populares, nas sociais” – pág. 369; quais ganha espaço crescente a marca negra, são vistas com profundo - “Verifica-se que, apesar do esforço de desagrado num contexto em que segmentação dos espaços, de restringir a predominavam as crenças quanto à avenida ao Carnaval dos segmentos superioridade racial e social, com vista mais elevados, o fato não se concretizou ao avanço civilizatório” – pág. 366; de todo. A presença no local dos segmentos populares e a indesejada - “Os populares não aceitam tal mistura de classes é uma realidade, discriminação, investindo toda sua apesar do empenho desenvolvido” – energia em manifestações culturais, pág. 370; garantindo a expressão de suas necessidades, anseios e aspirações, nisto - “Mas na década de 1920 novos ares se que a cultura configura-se como o anunciavam. Após a Primeira Guerra principal veículo de coesão e de Mundial, desmorona-se a ilusão da construção de uma identidade própria, Europa como centro de um progresso especialmente num contexto que lhes ilimitado, tomando vulto no Brasil um exclui do reconhecimento de direitos” – movimento em busca de suas raízes. pág. 366; Num país onde as desigualdades econômicas, políticas, sociais, culturais - “Predominavam nesse momento as e regionais eram a marca, constatam alusões desairosas da maior parte dos diversos intelectuais a urgência de cronistas e intelectuais, que, com modernização. [...] Esse processo, algumas poucas exceções, estavam aliado ao desenvolvimento de ideias voltados para a missão de civilizar o nacionalistas e à resistência povo à moda europeia” – pág. 368; desenvolvida pelos populares, que, - “Mas, apesar de toda a pressão, os apesar de todos os percalços, populares não esmoreceram. mantiveram suas manifestações, Continuaram a ocupar as ruas, como a resultou na valorização das suas formas do Ouvidor de início e, mais tarde, a de expressão cultural, que passaram avenida Central, espaço pretensamente gradativamente a assumir um lugar reservado às elites, não se limitando à reconhecido no espaço público” – pág. sugeriu que aquele grupo, com relação 372-73; aos demais sambistas, era composto por professores, membros de uma escola de - “Iniciava-se um ritual que tomará samba” – pág. 375; corpo na década de 1930, de apresentação do samba aos visitantes - “Impedidos, por longo tempo, do estrangeiros, transformando-o em fator exercício da cidadania, não brigavam de atração turística” – pág. 373; por seu partido, como as elites, mas por sua agremiação festiva, como o faziam ~> As Escolas de Samba ensaiam os pelo time de futebol. O que servia de primeiros passos... pretexto para que merecessem os - “Vargas, a partir de sua ascensão, epítetos de bárbaros, primitivos e para percebe o potencial do quadro vigente, as atitudes violentas da polícia” – pág. buscando valer-se da música popular e 378; das agremiações carnavalescas como - “São da maior significação as veículo para a integração dos populares observações de E. P. Thompson acerca no projeto de construção da dos cuidados quanto a generalizações nacionalidade. [...] Dessa coincidência como cultura popular. [...] Acentua, o de interesses afirma-se o predomínio termo cultura, com sua invocação popular no Carnaval, o qual se confortável de um consenso, pode consolida com as escolas de samba, que distrair nossa atenção das contradições teriam surgido em fins da década de sociais e culturais, das fraturas e 1920, quando ocorre uma concentração oposições existentes dentro do maior da população pobre nos morros e conjunto” – pág. 379; nas áreas suburbanas” – pág. 373-74; - “Claro que os conflitos não ocorreram - “Da reunião desses blocos surgiram, apenas entre os próprios populares. em fins da década de 1920 e início da Alusões são feitas igualmente às de 1930, as escolas de samba. O nome intervenções violentas da polícia contra escola teria surgido de um grupo que se aqueles segmentos, como também às reunia para beber e fazer música num formas desrespeitosas por meio das botequim no Largo do Estácio, que quais os populares, durante largo tempo, ficava em frente a uma escola normal. foram qualificados por intelectuais e Ismael Silva, outro expoente da nossa membros das elites” – pág. 379; música popular, inspirou-se nesta e ~> Populares e Estado: um pacto se manifestações populares são enaltecidas estabelece como raízes da nacionalidade. Com a reforma urbana, que resultou na - “Para os grupos que ascendem ao destruição da Praça Onze, o desfile das poder em 1930, munidos de um novo escolas de samba transfere-se para o projeto, torna-se fundamental retomar a espaço nobre da avenida Rio Branco em construção da nacionalidade. [...] Urgia 1942. De outro lado, valendo-se da articular a comunicação entre as elites e astúcia, os populares devem praticar a a massa da população, até então caça em terreno alheio, na feliz divorciadas. Era mister voltar-se para o expressão de Michel de Certeau” – pág. povo em suas mais genuínas e 383; espontâneas manifestações e aspirações, fonte das tradições mais puras deste país, base da nação que se pretendia reconstruir” – pág. 380;
- “Temos, dessa forma, um momento
em que as forças convergem. De um lado, os populares, fortalecidos por um longo processo de resistência, dispõem- se à conquista concreta do espaço público, não mais se contendo nos grupos específicos religiosos e tradicionais, nos pequenos cordões e ranchos carnavalescos. De outro, temos a proposta de valorização das manifestações populares por um Estado que se dispõe a realizar a união entre elites e massas e que, com a junção entre natureza e cultura, por intervenção da política, faria a integração tão sonhada, expressando a visão de uma sociedade harmônica” – pág. 380-81;