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Protágoras 91

Platão, Protágoras, trad. A.P.E. Pinheiro, Relógio d'Água,


Lisboa 1999. conduzidas para a luz do dia, os deuses encarregaram Prome­
teu e Epimeteu de as organizar e de atribuir a cada uma capa­
cidades que as distinguissem. Epimeteu pediu, então, a Pro­
meteu que o deixasse fazer essa distribuição. «Depois de eu a
ter feito», disse, «tu passas-lhes uma revista». E assim, de­
pois de o ter convencido, começou: atribuiu força aos que
e não tomara rápidos e dotou com rapidez os mais fracos; ar­
mou uns e para aqueles a quem dera uma natureza sem armas
inventou qualquer outro meio qu€.assegurasse a sua sobrevi­
vência; àqueles que contemplou com a pequenez, deu-lhes a
possibilidade de fugirem voando ou uma habitação subterrâ­
nea, e aos que fez grandes em tamanho salvou-os com essa
321 mesma atribuição. De modo igualmente equilibrado, distri­
buiu também as restantes qualidades. E fez tudo com cautela,
para que nenhuma espécie se extinguisse. Depois de lhes dar
os meios necessários para que não se destruíssem uns aos ou­
tros, arranjou maneira de os proteger contra as estações en­
viadas por Zeus, cobrindo-os com pêlos abundantes e cara­
Por- paças grossas, suficientes para se defenderem do Inverno e
e tanto, se entenderes possível, demonstra-nos de que modo se eficazes para o fazerem do sol escaldante, e que constituem,
ensina a virtude. Não nos recuses essa demonstração. para cada um, o seu aconchego natural, quando decidem dei-
- Claro que não recusarei, Sócrates. Mas, em primeiro lu­ b tar-se. Calçou uns com cascos e outros com couro grosso e
gar, querem que o faça contando-vos uma história, como sem sangue. Em seguida, providenciou diferentes alimentos
mais velho que fala aos mais novos, ou que o demonstre com para as diferentes espécies: para uns, os pastos da terra; para
argumentos37? outros, ainda, os frutos das árvores; para os restantes, raízes.
Muitos dos que estavam sentados à sua volta deram-lhe, A alguns destinou que fossem alimento de outras espécies; a
então, a escolher demonstrá-lo como quisesse. estas últimas deu pequenas ninhadas, enquanto que às que lhe
- Pois bem, parece-me - respondeu ele - que será mais servem de alimento deu a fecundidade, providenciando assim
agradável contar-vos uma história38: a salvação da sua espécie. Deste modo, Epimeteu - que não
Era uma vez39••• existiam somente os deuses e não havia era lá muito esperto - esqueceu-se que gastara todas as qua-
d ainda as raças mortais. Quando chegou, então, o momento c lidades com os animais irracionais; fora desta organização,
destinado ao seu nascimento, os deuses modelaram-nas, no restava-lhe ainda a raça dos homens e sentia-se embaraçado
interior da terra, misturando terra e fogo e os elementos que quanto ao que fazer. Estava ele nesta aflição, chega Prometeu
com estes se combinam. Quando estavam prontas para ser para inspeccionar a distribuição e vê que, enquanto as outras
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espécies estão convenientemente providas de tudo quanto ne­ e tão, inquieto, não fosse a nossa espécie desaparecer de todo,
cessitam, o homem está nu, descalço, sem abrigo e sem defe­ ordenou a Hermes que levasse aos homens respeito e justi­
sa. E já estava próximo o dia marcado, em que era preciso ça42, para que houvesse na cidade ordem e laços que susci­
que também o homem saísse do interior da terra para a luz do tassem a amizade. Hermes perguntou a Zeus de que modo
dia. Sem encontrar qualquer outra solução para assegurar a haveria de dar aos homens justiça e respeito: «Distribuo-os
sobrevivência do homem, Prometeu, roubou a sabedoria ar- do mesmo modo que, no início, foram distribuídas as outras
d tística de Hefesto e Atena, juntamente com o fogo- porque capacidades? As outras ficaram assim repartidas: um médico
sem o fogo era-lhe impossível possuí-la ou tomá-la útil- e, é suficiente para muitos leigos e o mesmo acontece com os
assim, ofereceu-a ao homem. Com ela, este tomou posse da outros especialistas. Atribuo, também, justiça e respeito aos
arte da vida, mas não da arte de gepr a cidade, pois esta esta­ d homens deste modo, ou distribuo-os por todos?» «Por todos-
va junto do próprio Zeus. Já não fora possível a Prometeu en­ respondeu Zeus - e que todos partilhem desses predicados,
trar na morada de Zeus, na acrópole40 - para mais que os porque não haverá cidades, se somente uns poucos partilha­
guardas de Zeus eram terríveis-, mas entrara, sem ser visto, rem deles, como o fazem dos outros. Estabelece, pois, em
na sala partilhada por Hefesto e Atena, na qual ambos se de- meu nome, uma lei que extermine, como se se tratasse de
e dicavam às suas artes, e roubara a arte do fogo a Hefesto e as uma peste para a cidade, todo aquele que não for capaz de
outras artes a Atena, para as dar ao homem, que delas retirou partilhar de respeito e de justiça.»
os meios necessários à vida. Mas, no fim, por culpa de Epi- Deste modo e por este motivo, Sócrates, quer os outros po­
322 meteu - é o que dizem-, a justiça perseguiu Prometeu por vos quer os Atenienses, quando o discurso é na área da arte
causa deste roubo. Deste modo, o homem participava da he­ da carpintaria ou de outra qualquer especialidade, conside­
rança41 divina e, devido ao parentesco com os deuses, foi o ram que só a alguns compete uma opinião. E se alguém, fora
único dos animais a acreditar neles. Assim, começou a cons­ e desses poucos, se pronuncia, não aceitam, tal como tu dizes-
truir altares e imagens suas. Depois, rapidamente dominou a e com muita razão, repito eu-; porém, quando procuram
arte dos sons e das palavras e descobriu casas, vestuário, cal­ 323 uma opinião a propósito da arte43 de gerir a cidade, em que é
çado, abrigos e os alimentos vindos da terra. Assim providos, preciso proceder com toda a justiça e sensatez, com razão a
b inicialmente, os homens viviam dispersos e não havia cida­ aceitam de qualquer hoinem, pois a qualquer um pertence
des. Mas viam-se destruídos pelos animais selvagens, pois partilhar efectivamente desta arte ou não haverá cidades.
eram mais fracos que eles em todos os sentidos. A arte que Neste facto reside, Sócrates, a razão do que perguntas. Mas,
dominavam era-lhes suficiente na procura dos alimentos, para que não consideres que te estás a iludir, pensando que é
mas ineficaz na luta com as feras- com efeito, faltava-lhes por ser assim que todas as pessoas crêem que qualquer ho­
a arte de gerir a cidade, da qual faz parte a arte da guerra. mem partilha quer da justiça quer das restantes qualidades
Procuraram, então, associar-se e proteger-se, fundando cida­ políticas44 , repara em mais uma prova: com efeito, no que
des. Só que, ao associar-se, tratavam-se injustamente uns aos diz respeito às outras qualidades, como tu dizes, se alguém
outros, já que não possuíam a arte de gerir a cidade. De mo­ diz ser um bom tocador de flauta ou ter dotes em qualquer
do que, novamente dispersos, se iam destruindo... Zeus, en- b outra arte, sem os ter, ou se riem dele ou se enfurecem e os
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familiares vêm e dão-no como louco. Mas tratando-se da jus­ em relação àqueles que praticam injustiças, esse facto pro­
tiça ou das restantes qualidades políticas45 , se sabem de al­ var-te-á que os homens acreditam, realmente, que a virtude
guém que é injusto e se esse mesmo alguém confessar a ver­ pode ser adquirida. Porque ninguém castiga, por praticar in­
dade a seu respeito diante de todos, essa atitude (confessar a justiças, aqueles que as praticam sem noção do que fazem, a
verdade) que, noutra ocasião, pareceria inteligência, neste ca­ b menos que se castigue irracionalmente, como qualquer ani­
so, parece loucura. E afirmam que é preciso que todos digam mal selvagem. Mas, aquele que tenciona punir racionalmente
que são justos, quer sejam quer não, e que aquele que não não castiga por causa das acções passadas - porque não va­
aparenta sê-lo enlouqueceu. Pois pretendem que é forçoso le a pena chorar pelo leite derramado47 -, mas, como salva­
e que qualquer um partilhe desta qualidade, de uma maneira ou guarda do que poderá acontecer, para que nem esse mesmo,
de outra, ou não poderá viver ent� os homens. O que digo, nem outro que tenha presenciado a punição, pratique novas
pois, é que é com razão que aceitam de qualquer homem uma injustiças. Ora, com semelhante modo de pensar, pressu­
opinião sobre esta virtude, pelo facto de acreditarem que to­ põem, então, que a virtude se pode ensinar - se se entender
dos partilham dela. De seguida, pretendo demonstrar-te que que, quando se pune, é com vista à correcção. Todos aqueles
não acreditam que seja obra da natureza ou algo inato mas, que aplicam castigos, quer na vida privada, quer na vida co­
antes, ensinada e que aquele que o desenvolver consegui-lo-á munitária, têm esta mesma opinião. Todos os homens - e os
graças ao treino. Com efeito, na medida em que os homens e Atenienses, teus concidadãos, não menos que os outros -
d crêem que os defeitos que os outros possuem são obra da na­ castigam e punem aqueles que consideram que praticaram
tureza ou do acaso, ninguém se irrita, nem repreende, nem acções injustas. Deste argumento se depreende, então, que os
ensina, nem castiga aqueles que têm esses defeitos, para que Atenienses estão entre aqueles que acreditam que a virtude
não sejam como são; antes, os lamentam. É possível que haja pode ser adquirida e ensinada.
alguém tão louco que tencione fazer uma coisa dessas com Pela minha parte, Sócrates, parece-me que foi suficiente­
os feios, os baixos ou os fracos? Com efeito, considero que mente demonstrado que é, pois, com razão que os teus conci­
sabem que é por obra da natureza ou do acaso que os homens dadãos aceitam que ferreiro e curtidor dêem a sua opinião so-
desenvolvem essas características, as boas e as más. Mas, na d bre os assuntos da cidade e que acreditam que a virtude pode
medida em que consideram que os homens desenvolvem ser ensinada e adquirida. ·Resta, contudo, ainda, uma questão:
boas qualidades pelo treino, pela prática e pela aprendiza­ aquela que levantas a propósito dos homens bons. Qual é,
gem, se alguém as não possuir e, pelo contrário, possuir os pois, a razão pela qual os homens bons ensinam aos filhos
e defeitos correspondentes, sobre esses recaem, então, as irrita­ essas outras matérias que competem aos professores, fazen­
ções, os castigos e as repreensões. Um desses defeitos é a in­ do-os sábios, mas quanto à virtude, em que eles próprios são
justiça, a impiedade e, em suma, tudo o que é contrário às bons, não os tomam melhores que qualquer outro? Mas, a es­
324 qualidades46 políticas. Como, neste caso, qualquer um se irri­ ta questão, Sócrates, vou responder-te não com outra história
ta e repreende qualquer um, é óbvio que têm essa virtude por mas através de argumentos48. Pensa, então, da seguinte ma­
adquirida graças ao treino e à aprendizagem. Com efeito, Só­ neira: antes de mais, há ou não uma qualidade da qual é for­
crates, se quiseres ponderar que punir é uma medida eficaz çoso que todos os cidadãos partilhem, se realmente se quiser

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