Você está na página 1de 18

UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES – UCAM

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA INFANTIL E JUVENIL

VIRGINIA MORAIS E SILVA VIEIRA

A INFÂNCIA COMO PROTAGONISTA DO ESPETÁCULO-HISTÓRIA-MEMÓRIA


DO TEATRO INFANTIL NAS TRAMAS DA DRAMATURGIA DE
SYLVIA ORTHOF

RIO DE JANEIRO
2021
Virginia Morais e Silva Vieira

A infância como protagonista do espetáculo-história-memória do teatro infantil nas tramas


da dramaturgia de Sylvia Orthof

Trabalho de conclusão de curso apresentado


à Universidade Cândido Mendes, como
requisito parcial para obtenção do Título de
Especialista em Literatura Infantil e Juvenil.

Orientador: Prof. Especialista José Prado

Rio de Janeiro
2021
A infância como protagonista do espetáculo-história-memória do teatro infantil nas tramas
da dramaturgia de Sylvia Orthof

Virginia Morais e Silva Vieira*


Hoje sou mais ontem
e me resvalo
em pensamento
e lembrança…
Virei criança.

S. Orthof

RESUMO

Este artigo destaca o protagonismo da infância na dramaturgia da autora


consagrada Sylvia Orthof. Para isso, o estudo apresenta como objetivo principal a análise
das seguintes obras: a primeira, autobiográfica, Livro aberto, confissões de uma
inventadeira de palco e escrita; e a segunda, dramatúrgica, Cantarim de cantará,
identificando, nelas, os elementos do universo infantil. Pretende-se trabalhar também o
imaginário e a criatividade da criança, além de estimular as emoções e os sentimentos de
forma acolhedora e significativa na educação infantil. Observam-se ainda os temas
centrais que ocorrem nessas histórias, bem como, a linguagem subversiva adotada pela
escritora. A metodologia usada esbarra-se em referenciais teóricos, como Ariés, Cohn,
Abramovich, Magaldi, que servem de suporte para as análises das obras citadas.

Palavras-chave: Sylvia Orthof; infância; teatro infantil; literatura.

*
Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail:
virna20ver@hotmail.com.
ABSTRACT

This article highlights the role of childhood in the dramaturgy of renowned author
Sylvia Orthof. For this, the study presents as main objective the analysis of the following
works: the first, autobiographical, Open book, confessions of an inventor of stage and
writing; and the second, dramaturgical, Cantarim de Cantará, identifying, in them, the
elements of the infantile universe. It is also intended to work on the child's imagination
and creativity, in addition to stimulating emotions and feelings in a welcoming and
meaningful way in early childhood education. The central themes that occur in these
stories are also observed, as well as the subversive language adopted by the writer. The
methodology used collides with theoretical references, such as Ariés, Cohn, Abramovich,
Magaldi, which support the analysis of the cited works.

Keywords: Sylvia Orthof; childhood; children's Theater; literature.

Introdução

Neste artigo, pretende-se discorrer sobre o seguinte tema: A infância como


protagonista do espetáculo-história-memória do teatro infantil nas tramas da
dramaturgia de Sylvia Orthof. Há, aqui, o convite para se assistir a um espetáculo de
cores, musicalidade e palavras em que a protagonista é a infância, na tessitura dos escritos
dessa autora, segundo ela própria, “inventadeira de fantasiosas doidices” (ORTHOF,
2005, p.3).
Assim, o objetivo deste estudo é promover ações/conflitos (ainda que internas),
que olhando o passado (a memória), construam no presente (o lugar), um futuro de
possibilidades para as infâncias do ser humano, nos palcos (re)inventados do período
pandêmico do século XXI.
Por se tratar de um assunto extenso, o recorte aqui proposto é a reflexão da relação
da “infância” com o teatro idealizado/pensado/escrito para a criança, o conhecido teatro
infantil, a partir do texto impresso, o gênero dramático, em formato de livro. Não apenas
como proposta pedagógica voltada exclusivamente para o espaço escolar, porém, tendo o
livro como oportunidade de mediação da leitura em outros espaços sociais.
Justifica-se a escolha pela autora por entender o quanto sua obra se aproxima desse
conceito revisitado de infância, através do neologismo utilizado pela escritora em suas
memórias, “criançar a infância” e porque, segundo consenso de estudiosos e amigos,
Orthof pensava criança. De acordo com Strausz (STRAUSZ, apud AIOLFI, c2012),
“Sylvia pensava criança. E uma criança impossível”. Esse pensamento é ratificado por
Fátima Valença:

Era assim que Sylvia escrevia. Como se criança fosse. Como uma
fada feiticeira, ela se transformava para chegar mais perto do
universo dos pequenos. Falava a sua língua. Pensava o seu
pensamento. Imaginava com a sua imaginação. Ia longe, lá do outro
lado do arco-íris, em busca das pérolas em forma de histórias, gentes
e poemas. (VALENÇA, c2013).

Sendo assim, é essa expressão, “criançar a infância”, tão usada pela dramaturga
que norteia nossa reflexão sobre a contemporaneidade do teatro infantil como texto e
“formador” de um espectador crítico nos dias de hoje.
Para isso, foram utilizadas, como aporte teórico, consultas e referências de autores
como Ariès, Clarice Cohn, Nelly Novaes Coelho, Renata Pallotini, e da própria Sylvia
Orthof, observando a sua obra, entre outros. Para tanto, esse recorte bibliográfico se pauta
sobre dois livros da dramaturga Sylvia Orthof, sua autobiografia, Livro aberto, confissões
de uma inventadeira de palco e escrita e o outro, um de seus textos teatrais, Cantarim de
cantará.

1. As reflexões necessárias sobre a infância em Sylvia Orthof

Estabelecer de que lugar se propõe a escrita sobre a temática da infância é como


puxar no fio da memória, o fio de um novelo enroscado em outros. O leitor apaixonado
por textos dramáticos, o ator que os projeta no palco, o educador-mediador que tem a
formação do leitor como linha de trabalho, atores que se entrecruzam nessa trama de tal
forma a não se saber qual deles está em cena.
No entanto, a trama em que é urdida a tessitura deste artigo é incontestável, o
teatro como arte, arte dramática para a infância, impondo a presença de outro sujeito-ator,
o pesquisador, que necessita fazer o recorte do tema sem perder o enredo da narrativa
histórica, refazer caminhos da memória de outros perfazendo seus próprios caminhos de
leitura.
Ao longo da história do teatro infantil brasileiro, pode-se perceber que o professor
de teatro, o escritor, o encenador de um espetáculo para a infância, e o pesquisador,
sempre estiveram diante de inúmeros desafios: alguns superados, outros que com o tempo
ganharam outras formas, outras nomenclaturas.
O grande desafio da nova geração, que se ousa enunciar aqui, a partir da análise
de nossas leituras, talvez seja um outro protagonista: um novo público.
Não se trata aqui de apresentar novos conceitos, mas de perceber o ciclo de
construção e desconstrução desses com a evolução da sociedade e propor reflexões que
possam gerar políticas públicas, não somente em uma frente de ação, mas em um fazer
coletivo nas áreas de arte, teatro e literatura e de educação.
Nunca foi tão premente, na sociedade brasileira, como no tempo presente, pensar
a infância, não essa infância categorizada que rotulamos nas “caixas” dos editais e/ou
manuais, quando buscamos definir para que público é o texto, ou o espetáculo a ser
apresentado.
Pensar “fora da caixa”. Gestar tempos e estações, que parecem acelerados no
processo de “maturação” dos nossos infantes, diante de tanta exposição as informações
in natura, sem tratamento, veiculadas pelas redes sociais, por tantas outras “caixas de
comunicação” que não a do teatro.
Ainda que assunto prioritário em diversas pautas sociopolíticas no Brasil, a
crescente disparidade no número de violência com a criança no país nos faz questionar o
papel do adulto como cuidadores, protetores, gestores dessa “infância feliz” tão
disseminada pela história cultural. O que nos convida a uma releitura do papel dessa
protagonista tão controversa na história da sociedade: a infância.
Portanto, falar sobre o texto de Sylvia é realmente uma provocação. Prado (2017,
apud VILLAÇA, p. 53) afirma sobre a escritora que sendo “transgressora no sentido de
inovadora, ela veio subverter uma antiga ordem na literatura para crianças: o didatismo e
a moral da história”, o que reafirma sua escolha não somente no tocante à qualidade de
suas obras, mas também no caminho de pensar uma literatura infantil libertadora e por
um pensamento crítico.
Por que ler um texto dramático? Que temas devem nortear um texto dramático
para a infância? Qual infância? Que linguagem utilizar? Como escapar do modelo
didático-moralizante? Como oferecer um teatro de qualidade sem cair na
espetacularização? Como fazer juízo de valor no tocante a esses textos?
A contar da análise textual do acervo dramático de Orthof que, segundo Duarte
(2007), “não era um ‘teatro-show’, mas um teatro infantil voltado para a reflexão, a partir
de situações inesperadas e questionamentos sobre situações e atitudes”, busca-se refletir
o que seria qualidade em teatro infantil desde a sua base, o texto teatral.

2. Senhoras e senhores, apresentando-lhes Sylvia Orthof!

Segundo Magaldi (1994, p.13), “um grande dramaturgo é patrimônio tanto do


teatro quanto da literatura”, o que corrobora sobre a importância de Orthof tanto na
literatura infantil quanto no teatro, pois, antes de ser reconhecida como a renomada
escritora de literatura infantojuvenil, ela era uma mulher de teatro: atriz, diretora,
encenadora, dramaturga, cenógrafa, figurinista, professora de teatro, entre outras coisas.
De acordo com o site Sylvia Orthof (IORIO, 2010) em que se apresenta sua
biografia, a autora é carioca, filha única de judeus austríacos, que vieram de Viena para
o Brasil, no período entre as duas guerras mundiais. Pertencia a uma família de artistas.
Sylvia que esbanjava talentos, aos sete anos, decidiu que seria escritora, aos quinze, que
seria atriz e, aos dezoito, foi estudar artes dramáticas em Paris, voltando ao Brasil depois
de dois anos. Atuou no Teatro Brasileiro de Comédias, o TBC, em São Paulo e no Rio,
com grandes nomes do teatro e da televisão. Sua formação incluía cursos de mímica,
desenho, pintura, arte dramática e teatro.
A ligação de Sylvia com o teatro infantil começou quando foi morar, em 1957, no
sul da Bahia, onde desenvolveu um teatro de bonecos com as crianças do lugar, feitos de
sabugos de milho e palha. A partir daí, não parou mais. Foi para Brasília onde, na TV
Brasília, trabalhou em um programa infantil de fantoches, o Teatro Candanguinho. Ainda
foi contadora de histórias na rádio MEC, júri do concurso de Miss Brasília. Lecionou
também Teatro na Universidade de Brasília, coordenou o Teatro do Sesi. Voltando ao
Rio, fundou a Casa de Ensaios Sylvia Orthof em 1975. Em 1989, criou, na cidade de
Petrópolis, no Rio de Janeiro, a Cia. Teatro Livro Aberto, em que dirigiu oito de seus
textos.
Sylvia Orthof é dona de um estilo único, ela explora como ninguém as ironias,
comparações, ambiguidades e, principalmente, o humor, utilizando-se de recursos como
neologismos, metalinguagem e intertextualidade. Sua obra caracteriza-se por uma
linguagem coloquial, narrativas curtas, o nonsense, o surreal e a crítica sociopolítica.
A escritora Fanny Abramovich (2009, p. 59), a respeito de Orthof, afirma que a
escritora é “inesgotável na sua imaginação, na sua quebra de expectativas, de estereótipos,
de formas outras de perceber o que quer que seja”.
Assim, ressalta-se que "perpassa por toda sua obra um espírito de liberdade que é
ao mesmo tempo descontraído e portador de contestação. Justamente por isso, seu texto
não se conforma com o preestabelecido e se configura como um alento no mar de
mesmice do mercado" (BENEVIDES, apud VILLAÇA, 2017, p. 33).
Desse modo, Sylvia se “acriança” ao escrever, mergulhando nesse universo
infantil. A pesquisadora Fátima Valença (2013) nos diz: “Era assim que Sylvia escrevia.
Como se criança fosse.”
Segundo Orthof (2005, p. 6, grifo nosso), “Monteiro Lobato criançou a minha
infância e foi minha primeira paixão literária”. Logo, é esta expressão “criançar a
infância” tão usada pela dramaturga que norteia nossa reflexão sobre a
contemporaneidade do teatro infantil como sujeito/ator e plateia para a infância nos dias
de hoje.
Sylvia saiu de cena em 1997, deixando uma cadeira cativa no coração de quem
conhece sua obra. Publicou mais de cem livros para crianças e jovens, entre teatro, poesia
e ficção, muitos deles premiados, sendo treze títulos contemplados com o selo Altamente
Recomendável para Crianças pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

3. Criançar a infância

“Criançar a infância? Parece besteira a tal frase, mas as palavras têm cadências,
elas podem, dependendo do ritmo, trazer ideias que se complementam.” (ORTHOF, 2005,
p.4).
Pensar a infância na obra de Orthof nos conduz a refletir sobre a construção desse
período, o que pressupõe significar/ressignificar conceitos: o que é infância? Quantas
infâncias existem? Entretanto, por ser um conceito subjetivo e variável com a evolução
do tempo e da sociedade, encontram-se diversas definições quanto à sua significação.
A própria etimologia da palavra infância já carrega em si uma enorme carga de
preconceito, pois vem do termo “infante”, do latim infantia, que significa “incapaz de
falar”, o “sem voz e sem fala”:
“FARI” (verbo) – “falar”
“FAN” (particípio presente) – “falante”
“IN” (negação) – “não”
Sendo assim, várias concepções de infância foram surgindo no decorrer de
diversos estudos ao longo da evolução da sociedade. Todavia, uma grande marca é o
pensamento de que a criança não é capaz de compreender o mundo e suas complexidades.
Segundo Ariès (1981, p. 52), “[...] a infância era um período de transição, logo
ultrapassado, e cuja lembrança era logo perdida”.
Pode-se afirmar que “toda nossa prática vai no sentido de transformar a criança
no adulto e, pior, no adulto que já somos, que idealizamos e que desejamos; ajustando-a
aos nossos planos e anseios, sob nossa ótica e aspirações, segundo nossos próprios
objetivos” (DAMAZIO, 1991, p. 24).
Logo, a ideia que predomina sobre o que é ser criança, é que é um estágio em que
ela se prepara para vir a ser adulto. As primeiras obras voltadas para a infância tinham
um cunho moralizante e doutrinador porque entendiam a criança como um adulto em
miniatura e é na figura do escritor brasileiro Monteiro Lobato que vemos ser desenhado
um novo cenário na literatura infantil. Entretanto, no tocante a dramaturgia infantil só
veremos mudanças a partir da década de 70.
Por outro lado, nesse novo cenário, muitos escritores surgem, mas Sylvia tem em
sua escrita uma liberdade de pensar criança, um respeito pela criança para qual ela escreve
que a difere em estilo. Para a autora, “o espetáculo deve ser “aprendizagem” e não
moralista.”
Em uma entrevista, questionada sobre de onde vinham as suas histórias, responde:
– Como surgem suas histórias?
– Em geral de desenhos que faço. E através de perguntas para
crianças. No Eu Chovo, perguntei a uma criança quem é que
mandava a chuva, e ela respondeu o chuveiro. (SUSSEKIND, 1980
apud VALENÇA, c2013).

A doutora em antropologia social Clarice Cohn (2010) alerta para o fato de não
existir uma única infância, mas várias, e essas estarem essencialmente ligadas ao meio
em que vivem, à cultura em que estão inseridas e à visão do adulto sobre elas, afirmando
que “a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a
criança não sabe menos, sabe outra coisa.” (COHN, 2010, p. 20). Isso é muito perceptível
na recepção da forma como Orthof aborda temas sociais com lirismo, poesia e muito
humor, respeitando o saber das crianças.

4. Se a memória não falhar

“Memória é coisa puladinha, vai e volta, dá um nó, um laço, adora reticências!”


(ORTHOF, 2005, p. 18).
A princípio, Miranda (apud GUINSBURG, 2002) em sua apresentação no
Dicionário do Teatro Brasileiro constata a relação entre teatro e memória:

Salvo o momento de sua realização, o teatro é sempre passado. Por


isso, sua intrínseca relação com a memória, conservadora de
sensações e de conhecimentos, os quais, ao serem evocados, são
atualizados e recriados no presente. É com a memória que fincamos
nosso pertencimento a um grupo social, ora lembrando, ora
esquecendo as experiências individuais e coletivas. O teatro, assim
como a história tem trazido à tona o que a oficialidade, por vezes faz
questão de apagar: narrar o inenarrável, sendo fiel aos anônimos
cujas histórias tecem a imaginação e o universo de nossas marcas
simbólicas. (MIRANDA apud GUINSBURG, 2006)

Em seguida, é possível declarar que “a memória, na qual cresce a história, que por
sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos
trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão”
(LE GOFF, 2003, p. 471).
É justamente sobre o potencial libertário da obra de Orthof que se quer tratar e
não há como fazê-lo sem falar da mulher de teatro, Sylvia. Sobre ela, compreende-se que
“no conjunto de sua obra narrativa pode-se perceber um delicioso sotaque teatral, herança
de toda uma vida dedicada à encenação” (VILLAÇA, 2017, p. 21).
A história de vida, pessoal e profissional, da escritora tem como pano de fundo
dois dos períodos mais conturbados da História: a segunda guerra mundial e a ditadura
militar no Brasil. Esses foram um dos mais fecundos cenários da história do teatro
brasileiro, incluindo o teatro infantil.
Na dramaturgia infantil de Sylvia, os textos são ágeis, divertidos, brincantes e
reflexivos, sem ser moralizantes. Possuem um tempero próprio e característico, um
tempero orthofiano. Por isso, um dos melhores ingredientes da obra Orthofiana é a
memória. Por ser algo pessoal e intransferível, acaba sendo um ingrediente “secretérrimo”
visto que ela mesma confessa: “adoro segredos!” (ORTHOF, 2005, p. 1).
A liberdade, a infância não são temas em sua obra, todavia são “protagonistas”
em vários de seus textos dramáticos: A viagem de um barquinho (1975), Eu chovo, tu
choves, ele chove... (1976), Zé Vagão da Roda Fina e Sua Mãe Leopoldina (1979), A
Gema do Ovo da Ema (1980), Cantarim de Cantará (1980), entre outros.
O Livro aberto, confissões de uma inventadeira de palco e escrita (ORTHOF,
2005) nos dá “deixas” para entender uma geração que está se perdendo no esquecimento.
Finalmente pode-se dizer que é a revisitação dessas memórias que nos abrem as cortinas
do Espetáculo-história-memória em sua dramaturgia.

5. A infância revisitada em Livro aberto, confissões de uma inventadeira de palco e


escrita

A autora narra, em sua obra autobiográfica de forma muito bem-humorada, o seu


nascimento, no dia 03 de setembro de 1932, no Hospital dos Estrangeiros, no Rio de
Janeiro, revelando suas primeiras impressões sobre si mesma e o mundo que a cercava.
Ainda afirma a cerca de si mesma: “Eu era o umbigo do mundo” (ORTHOF, 2005, p. 2).
Nas entrelinhas de suas memórias-histórias, pode-se compreender em parte o
cenário e o universo orthofiano, pois sua infância foi recheada de histórias nos momentos
mais diversos e controversos:
Sempre, durante toda a infância, meus joelhos viviam cheios de iodo... e eu
berrava. Depois do iodo, mamãe contava uma história.
Lembro de Grimm e Andersen, livros grossos, cheios de patinhos feios,
soldadinhos de chumbo, madrastas, princesas, fadas.
(...) ganhei um livro de Monteiro Lobato! Ai, que maravilha maravilhantemente
maravilhosa! (p. 5).
Sylvia Orthof (2005) nos apresenta em suas memórias o que era a infância na
década de 50, as regras e os costumes moralizantes daquele tempo:
“Naquele tempo, as crianças pareciam que estavam endomingadas, só para
jantar.” (p. 5).
“Eu tinha que aprender a usar os talheres, a não colocar os cotovelos sobre a mesa,
a mastigar de boca fechada e só falar quando um adulto me perguntasse alguma coisa.”
(p. 5).
Ela nos conduz aos quintais da sua infância, lugar onde era livre para ser a
protagonista de suas histórias:
“(...) e ali brinquei de ser Emília.”
“(...) a manga-espada era a minha mãe, cortando meu brinquedo: espada, faca.”
“(...) havia um detalhe: as mangas-personagens, essas eu não comia, eram minhas
amigas. Quando ficavam murchas, eu as enterrava e colocava florzinhas sobre seus
túmulos.” (p. 5).
Orthof nos apresenta Petrópolis, cidade que será cenário de muitas de suas
histórias pessoais e ficcionais:
“Também morei em Petrópolis, a cidade imperial...”
“Eu estava no segundo ano primário. Meu colégio, antiga residência da princesa
Isabel, o Liceu Fluminense, era o palácio de tudo aquilo que se inventava.”
“O cenário era perfeito para as nossas divagações.” (p.8)
Também nos apresenta personalidades que marcaram sua história, entre elas, a
professora Rosalinda:
Foi com Dona Rosalina, dentro da casa de uma princesa imperial,
que ouvi histórias de reis e rainhas, fadas e bruxas. Através de
histórias, começávamos a escrever, a frequentar a biblioteca. Dona
Rosalina estava adiante do seu tempo, era mestra e nem desconfiava.
(...) sabia que histórias ajudariam a iluminar a cabeça das crianças.
(ORTHOF, 2005, p. 7)

A autora ainda constata a respeito de si mesma:


“Dizem, sei lá... dizem que sou escritora. Eu acho que sou inventadeira de
fantasiosas doidices.” (p.3).
De certa forma, o teatro nos foi apresentado por meio de sua narrativa espontânea.
Seu cenário é o palco da vida vivida com intensidade. Com ela, é possível circular em
meio a nomes que escreveram a história da arte dramática no Brasil. Ela afirma:
Assim, pelo palco, um dia, acabei escrevendo livros. Porque o teatro
é uma biblioteca de emoções, cada palavra traz o seu autor, o clima,
a energia, a forma. Agora que escrevi a frase “biblioteca de
emoções”, achei que era algo parecido com título de folhetim... Mas
vou deixar, porque foi o que senti, o que saiu no de repente da
linguagem, da memória, do faz-de-conta de tudo que se reconta!
(ORTHOF, 2005, p. 12)

6. Hoje tem espetáculo, tem sim senhor!

A literatura dramática é uma área um tanto controversa por se tratar de duas artes
distintas entre si, a Literatura e o Teatro. Contudo, há uma necessidade premente no nosso
tempo em que é urgente trabalhar nas escolas a leitura/compreensão de um texto do
gênero dramático com todas as suas especificidades, todos os seus signos.
Em literatura, o gênero dramático, como o próprio nome indica, são os textos
literários feitos com o intuito de serem encenados ou dramatizados. Entretanto, a simples
leitura desse tipo de gênero não se constitui no fazer teatral, porque essa arte engloba um
conjunto de elementos que juntos darão vida ao espetáculo.
Sendo assim, “ler teatro, ou melhor, literatura dramática, não abarca todo o
fenômeno compreendido por essa arte” (MAGALDI, 1994, p.7-8). Por isso, a proposta
de trabalho, no âmbito escolar, deveria ser conjunta entre os professores de literatura e os
de arte, especificamente, as artes cênicas para que se tenha a real compreensão do teatro
como arte e o seu papel histórico como obra de arte.
Do grego, a palavra “drama” significa “ação”. Assim, os textos dramáticos, além
de serem constituídos de personagens (protagonistas, secundárias ou figurantes), são
compostos pelo espaço cênico (palco teatral e cenários) e o tempo. Geralmente, os textos
destinados ao teatro possuem uma estrutura interna básica, a saber:
• Apresentação: faz-se a exposição tanto dos personagens quanto da ação a ser
desenvolvida.

• Conflito: o momento em que surge as peripécias da ação dramática.

• Desenlace: Momento de conclusão, encerramento ou desfecho da ação dramática.

Além da estrutura interna inerente ao texto dramático, tem-se a estrutura


externa do gênero dramático, tal qual os atos e as cenas, de forma que o primeiro
corresponde à mudança dos cenários necessários para a representação, enquanto o
segundo, designa as mudanças (entrada ou saída) das personagens.
“Sem obra dramática, não há teatro. A existência de uma peça marca o início da
preparação do espetáculo” (MAGALDI, 1994, p.15).

7. Poesia e liberdade em Cantarim de cantará

O texto Cantarim de Cantará escrito por Orthof em 1977, publicado em 1980 no


livro “As crianças vão ao teatro” da editora Agir e (re)publicado no formato livro pela
Editora Rovelle, no ano de 2010, é o objeto de estudo deste artigo. A obra atual é ilustrada
por Mariana Massarani, artista gráfica brasileira com extensa carreira na literatura
infantil.
Entendendo que uma peça de teatro é basicamente o desenvolvimento de uma
situação de conflito entre as personagens, verifica-se nesse texto de Orthof, Cantarim de
Cantará (2013), que o conflito básico é o drama vivido pela protagonista Pomba-Rolinha
que tem o seu ninho destruído pela ventania, é presa numa gaiola e depois tem a porta da
sua casa queimada.
Além da Pomba-Rolinha, a personagem principal, há personagens secundários
que são o Pássaro-Sol, o Urubu, o Sabiá, o Bem-te-vi, a Borboleta, o Pássaro de Fogo, o
Milharal, a Dindinha-Lua Saravá e as Estrelas que a auxiliam na busca e/ou na
desconstrução da sua casa.
A autora inicia o texto informando que se trata de um “espetáculo infantil
inspirado em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, para seis atores,
bonecos, objetos e máscaras, música e canto ‘ao vivo”, flauta, violão, atabaque, cuíca,
cavaquinho, sinos etc.” (ORTHOF, 2013, p. 6) e aqui precisamos compreender alguns
pontos: primeiro, Orthof já havia dirigido o espetáculo Morte e Vida Severina, de João
Cabral de Melo Neto, um auto de Natal pernambucano, em 1970, em Brasília; segundo,
entender que o conceito de inspiração em uma obra não significa fidelidade à obra
original, e sim que alguns elementos do original serão utilizados, o que já apresenta a
primeira característica do texto: a intertextualidade.
Essa peça não possui a clássica divisão em atos ou cenas, características da ação
dramática, porém, a cada situação-problema vivida pela protagonista, tem-se a ideia de
mudanças na ação, o que é marcado pela conjugação da música e da iluminação do
espetáculo, o que é referido nas didascálias do texto.

De repente, muda o ritmo. Ouve-se um gemido triste de cuíca. (...)


Continua a gemedeira da cuíca.
Atores correm pela plateia e perguntam, aflitos: (...)
Aparece, toda de cinza e branco, com movimentos tristes, a pomba-
rola, frágil e chorosa. Marcha-rancho e cuíca. (Ibid, p. 15)

Orthof utiliza-se da linguagem coloquial, da cultura popular, das cantigas


folclóricas, do jogo de palavras (neologismos), para estabelecer a comunicação com a
infância.
Miguez (2000) explica a relação da cultura popular, memória e infância da
seguinte forma:
Os acalantos, as parlendas, as adivinhas, os trava-línguas, as
cantigas de rodas são expressões da poesia folclórica que
acompanham a criança desde o nascimento e que têm uma função
iniciatória no desenvolvimento emocional e poético da infância.
Todo esse acervo oral é trazido nas vozes dos pais, das avós, das
babas que, embalando o sono dos bebês ou entretendo a criança nas
horas vagas, vão estabelecendo relações afetivas da criança com o
mundo ao seu redor. É a força da literatura oral penetrando no
universo infantil na transmissão poética de um saber coletivo. E
assim, a memória popular vai sendo reconstruída pelas gerações
num movimento de releitura da fala inaugural. Ou melhor, esse vigor
primeiro da produção oral vai sendo reconduzido por matizes novos
de acordo com o contexto histórico-cultural em que se manifeste. É
a tradição sendo invocada e convocada a permanecer mesmo diante
dos obstáculos da atualidade. (MIGUEZ, 2000, p. 40).

A linguagem poética pode ser identificada facilmente por meio das rimas, do
ritmo, das metáforas e da musicalidade. Entretanto, ao se ler o texto, pode-se perceber a
poeticidade nos movimentos e nas ações das personagens já na primeira rubrica.

CENÁRIO: Fiapos de neblina e gaze.


Início da alvorada.
Surgem os atores, em procissão, vestidos de pássaros irreais.
Sobre túnicas brancas, máscaras, cocares de plumas coloridas, fitas,
insinuações de asas.
Tudo é muito irreal e festivo.
Os pássaros trazem o amanhecer. (ORTHOF, 2013, p.6)

A peça fala de liberdade e de gaiolas, de coletividade e de individualidade, de


identidade e de pertencimento, de vida e de morte, explorando as ideias de tese e antíteses
para construir e desconstruir os conflitos do texto, numa narrativa cheia de metáforas e
de neologismos cheios de humor: “É sabiá... por onde passarinhará? No bem-te-vi eu
bem-te-vejo, sou passarinho te mando um beijo!” (Ibid, p. 9).

“Posso oferecer uma nova casa para a senhora... eu vendo apartamentos de


pássaro!” (p. 18, grifo nosso).

“Eu sabia, eu sabiava que algo terrível havia acontecido...” (p.25).

Sylvia trata o tema morte de forma tão natural como se conversasse com as
crianças, desmistificando a ideia de que esse é um tema que as crianças não entendam ou
não estejam prontas a entender. Um texto de celebração a vida, ao novo, de superação.

Pomba-rolinha – eu tenho um pouco de medo...


Dindinha Lua – todos têm um pouco de medo...quem não tem?
Mas garanto que é muito mágico... é uma transformação...

Estrelas – dormiu como um passarinho! morreu como um


passarinho!
Dindinha Lua – as histórias que chegam ao fim não são tristes...
porque o que importa é a janela ou a porta... cuidado com as chaves!
Não façam da vida pássaro uma gaiola! (ORTHOF, 2010, p. 48-50).

Cabe, aqui, destacar as ilustrações de Massarani, na edição atual da editora


Rovelle, que, a começar pela capa, incentivam o jogo teatral.

Considerações finais

Sylvia Orthof é reconhecidamente uma das mais importantes escritoras da


literatura infantil brasileira, contudo, sua obra de dramaturgia infantil, que conta com mais
de dez títulos, muitos deles premiados, passa despercebida de grande parte dos leitores.
Na maioria das vezes, vindo à cena apenas como resultado de pesquisas acadêmicas.
Aparentemente, coloca-se a autora em uma “gaiola” na academia, roubando-lhe a
liberdade de ser simplesmente Sylvia.
Como um ratinho no laboratório realizam-se estudos incansáveis de semiótica, de
linguística, entre tantos. Dissecam-se os seus escritos, analisando palavra por palavra,
metáfora por metáfora, rima por rima, todavia, esquecem-se de que, em cada livro, ali
estava Sylvia inteira, a mulher de teatro.
Nas prateleiras do teatro infantil nacional, faltam livros que contem sobre a
dramaturgia de Orthof. E isso se dá pelo fato de termos poucas publicações do gênero
dramático infantil no formato livro.
Os textos de Orthof são cheios de indicações cênicas, demonstrando que a
narrativa foi pensada para o palco, entretanto, há uma característica nesses textos que os
colocariam facilmente em uma sala de aula, o jogo teatral, o lúdico.
O diálogo em suas narrativas dramáticas, feito num discurso direto, numa
linguagem própria para a infância apresentando a mesma como protagonista de sua
própria história, tem as premissas de um projeto interdisciplinar em lócus de educação
formal e informal.
Por fim, o lugar de Sylvia não é somente nas estantes das salas de leitura de nossas
escolas ou das bibliotecas, o seu lugar é na boca de quem conta histórias, nos palcos das
nossas escolas.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 5. ed. São Paulo:


Scipione, 2009.

COHN, C. Antropologia da criança. 2. ed. Rio de janeiro: Zahar, 2010.

DAMAZIO, Reinaldo Luiz. O que é criança: Brasiliense. In: SANTOS, Aretusa;


RECKER Lauro, Bianca. Infância, criança e diversidade: proposta e análise. Disponível
em: https://docplayer.com.br/6472450-Infancia-crianca-e-diversidade-proposta-e-
analise.html. Acesso em: 20 de março de 2021.

DUARTE, F. d. O teatro infantil de Sylvia Orthof. Maringá, 2007.

IORIO, M. I. Biografia. Sylvia Orthof. Rio de Janeiro: 25 nov. 2010. Disponível em:
https://sites.google.com/site/sylviaorthof/biografia-da-autora. Acesso em: 14 jan. 2021.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed.


Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 419-476. Disponível em:
https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2009/3122_1893.pdf. Acesso em: 21 mar. 2021.
MAGALDI, S. Iniciação ao teatro. 5. ed. São Paulo: Editora Ática, 1994.
MIGUEZ, Fátima. Nas arte-manhas do imaginário infantil: o lugar da literatura na sala
de aula. 2 ed. Rio de janeiro: Zeus, 2000.

MIRANDA, Danilo Santos de. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA,
Mariângela Alves de (org.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos.
São Paulo: Perspectiva: Sesc São Paulo, 2006.

ORTHOF, S. Livro aberto confissões de uma inventadeira de palco e escrita. 4 ed.


Rio de Janeiro: Atual, 2005.

ORTHOF, S. Cantarim de cantará. Ed. José Prado. Rio de Janeiro: Rovelle, 2010.

STRAUSZ, Rosa Amanda. In: AIOLFI, Fábio. Biografia de Sylvia Orthof. O Aplauso.
27 abr. 2012. Blog. Disponível em: http://oaplauso.blogspot.com/2012/04/biografia-de-
sylvia-orthof.html. Acesso em: 14 de janeiro de 2021.

SUSSEKIND, Flora. Jornal do Brasil, 13 jun.1980. In: VALENÇA, F. Sylvia Orthof, a


tecelã - 2ª parte. Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude. Rio de Janeiro,
c2013. Disponível em: https://cbtij.org.br/sylvia-orthof-2a-parte/. Acesso em: 14 jan.
2021.

VALENÇA, Fátima. Sylvia Orthof, a tecelã - 1ª parte. Centro Brasileiro de Teatro para
Infância e Juventude. Rio de Janeiro, c2013. Disponível em: https://cbtij.org.br/sylvia-
orthof/. Acesso em: 14 jan. 2021.

VILLAÇA, C.; PRADO, José (org.). Sylvia Orthof: um ramalhete de histórias. 1. ed. Rio
de Janeiro: Bambolê, 2017. p. 224.

Você também pode gostar