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Children’s Literature.
A Ride into the French Context
RESUMO: Este artigo propõe uma reflexão teórica sobre o percurso da Literatura infantil,
discutindo, sobretudo, as questões relativas ao gênero bem como o seu itinerário e
desenvolvimento no contexto da França. Para isso, discutir-se-á, primeiramente, o gênero
literatura infantil, procurando evidenciar sua origem e crenças e, em seguida, mostrar-se-á
como esse gênero vem se construindo na França, reflexos que repercutem na Literatura
infantil ocidental. Para realizar esta reflexão, utilizar-se-ão, em particular, os estudos de
Christian Poslaniec (2008), Nathalie Prince (2010), Nelly Novaes Coelho (1984), Philippe Ariès
(1981), Regina Zilberman (2003). Veremos, assim, que a literatura infantil modela códigos de
comportamento, ao mesmo tempo em que nos fornece os meios para se pensar sobre o que
acontece em cada tempo.
*
Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
*
Doutoranda em pela Universidade de Brasília.
Introdução
1
A caracterização como ser incompleto deve-se a Gélis (1991, p. 313), para quem a criança é
incompleta por ser incapaz de satisfazer suas necessidades elementares, precisando, durante
a infância, de um adulto. Marcoin e Chelebourg (2011, p.10) também fazem uso do termo, os
autores ressaltam a incompletude da criança como marca da inexperiência de vida por conta
da pouca idade.
Aspectos do gênero
Alguns estudiosos, como Philippe Ariès, salientam que nas sociedades antigas, 74
antes do século XIII, a afirmação do sentimento de infância era superficial,
podendo-se considerar que não existia 2. A criança, por muito tempo, foi
considerada um ser humano à parte, pensada somente como um adulto de
tamanho reduzido 3. Por consequência, essa criança não era objeto de atenção
e recebia pouca afeição.
2
Porém, segundo Ariès (1981, p. 52), há uma indicação de que a idealização da infância teria
existido na Grécia Antiga, embora não incentivada, uma vez que, quando se focaliza a
iconografia da época, por exemplo, percebemos uma representação da criança, ressaltando-
se, pois, suas formas, sua graça, sua redondeza (ver a figura de Eros: a saber, ―Os pequenos
Eros proliferavam com exuberância na época helenística‖ (ARIÈS, 1981, p. 52).). Assim, para
Ariès (1981, p. 156), a afirmação de que o sentimento de infância não existia não significa
dizer que as crianças eram negligenciadas ou desprezadas. O autor entende que não existia,
até meados do século XII, uma ―consciência da particularidade infantil‖, que distingue a
criança do adulto. Essa descoberta mostrou seus indícios no século XIII e está evoluindo ao
longo da história.
3
De acordo com Ariès (1981, pp.50-51), até por volta do século XII, não existiam crianças
caracterizadas por uma expressão particular. A arte medieval desconhecia a infância ou não
tentava representá-la. Os artistas, até então, retratavam as crianças a partir de homens
reproduzidos em uma escala menor. A criança, nesse contexto, só se distinguia dos adultos
pelo tamanho, a contar sem nenhuma diferença de expressão ou de traços. (Ver: Evangeliário
de Oto III, Munique, século XI).
Os textos destinados à infância podem ter surgido a partir do século XVII, mas
foi o século XVIII que presenciou a passagem completa da literatura infantil
para o centro das discussões. Nesse século, a literatura infantil propagou o
Vemos, por conseguinte, que a literatura infantil, desde sua origem histórica,
evidencia uma preocupação do adulto com a criança. Assim sendo, Zilberman
(2003, p. 140) vai sustentar que o autor de literatura infantil, geralmente
adulto, precisa encontrar, no processo de criação, uma simetria com o
universo do leitor (criança), de modo a se afastar de um texto monológico 4 e
autoritário. Dessa forma, para a autora referida, a natureza da literatura
4
A literatura infantil, ressalta Cademartori (2010, p. 25), apresentou em sua tradição, devido
à pedagogia, um discurso monológico que, usando a persuasão, não proporcionava
questionamentos, choques de realidades, tudo se homogeneizava na voz única do narrador.
Sendo assim, a ligação entre o narrador e o leitor é considerada, segundo a autora referida,
um grande desafio que vem modificando o próprio estatuto literário do texto para criança.
5
―Considerando que a compreensão de mundo do recebedor, assim como suas vivências, são
limitadas, o escritor obriga-se a uma restrição no tratamento de certos temas, idéias ou
problemas‖ (ZILBERMAN, 2003, p. 141).
6
―Sempre visando ao interesse do leitor, assim como às condições especiais de sua percepção
do real, é importante que a forma escolhida coincida com suas expectativas recepcionais‖
(ZILBERMAN, 2003, p. 141).
7
―O vocabulário e a formação sintática não podem exceder o domínio cognitivo do leitor‖
(ZILBERMAN, 2003, p. 141).
8
―A presença de ilustrações e tipos gráficos graúdos, assim como a escolha de determinado
formato e tamanho, enfim o aspecto externo do livro são condições de atração das obras‖
(ZILBERMAN, 2003, p. 143).
9
Essas nomenclaturas surgiram quando se começou a valorizar a criança na sua
individualidade. Nesse sentido, os livros destinados ―por idade‖ passaram a ser um traço
distintivo e sintoma predominante na literatura infantil.
Prince (2010, p.13) explica que tais nomeações ocorrem considerando as fases
pelas quais os leitores passam. Com efeito, a literatura para criança está se
modificando, como dissemos antes, à medida que a variedade de leitores se
realiza. O leitor é, então, simbolizado na literatura de acordo com a idade
para a qual o livro é destinado. Apesar dessas considerações, optamos por
usar, neste trabalho, ora a expressão literatura infantil ora literatura para
criança, englobando nestas o leitor criança, compreendida no seu sentido
amplo, já que acreditamos na necessidade de manter um princípio de unidade
para se estabelecer a coerência de um gênero.
A história da literatura infantil nos mostra que ela foi fundada, sobretudo,
pelo o que se convencionou chamar de sentimento de infância.
Anteriormente, a infância, como já expusemos, era um objeto entendido de
81
uma maneira diferente, tanto moral como social e, naturalmente, literário.
83
10
Nas leituras para os adultos, as crianças encontraram as Fábulas , de Jean
de La Fontaine, e os Contos da Mamãe Gansa, de Charles Perrault. Soriano
(1968, p. 333) afirma que as primeiras narrativas para crianças são narrativas
que antes de se tornarem literatura eram orais, a partir do folclore, e
espontâneas, aquelas que os jovens e as crianças escolhiam no repertório dos
adultos.
Ainda conforme Soriano (1968, p.340), o interesse das crianças por essas
narrativas se explica porque tais histórias aproximavam os públicos popular e
infantil, uma vez que ambos apresentavam caracteres comuns: a credulidade
e a ignorância. Além disso, para o autor assinalado, associar esses públicos era
chamar atenção para eles em uma época em que era necessário afirmar que
ambos precisavam ser educados.
10
Fables (primeiro livro em 1668, segundo livro em 1694).
11
"Comme l‘on conçoit l‘enfant, on conçoit le livre". Tradução nossa.
12
Les Aventures de Télémaque, fils d’Ulysse, conhecido também apenas como Télémaque.
Esta obra narra a trajetória de Telêmaco, um dos filhos de Ulisses (da Odisseia, de Homero).
13
"La désignation d‘un destinataire non adulte, ainsi que l’exercice de la fantasie plaisante,
permettent une telle qualification originaire de l‘ouvrage". Tradução nossa.
14
Hoje os estudiosos trazem o termo ―romance‖, entretanto, conforme Marcoin e Chelebourg
(2011, p. 16), esta obra de Fénelon foi escrita em uma prosa poética e apresentada como um
poema épico, pois a palavra ―romance‖ parecia inconveniente por se tratar de uma obra
educativa.
De acordo com Marcoin e Chelebourg (2011, p.16), Télémaque foi, por muito
tempo, um dos textos mais lidos e admirados da literatura francesa, devido ao
seu ―cuidado‖ com a palavra e às suas orientações pedagógicas. Essa obra
figurou nos programas escolares até 1960, por sua intenção, conforme Prince
(2010, p. 32), explicitamente didática, entretanto, seu declínio foi inevitável,
uma vez que, hoje, ―não figura mais entre as leituras espontâneas de uma
juventude menos requerente a lições elevadas‖ 15 (MARCOIN; CHELEBOURG,
2011, p. 16).
15
"Il ne figurait plus dans les lectures spontanées d‘une jeunesse moins demandeuse de si
hautes leçons". Tradução nossa.
16
Soriano (1968, p. 331) assegura que ninguém no século XVII fala de literatura para criança,
mas que isso não significa que ela não existisse. Para o autor, talvez, a literatura que existia
não havia tomado as formas consideradas literárias.
17
"S‘adresser à un enfant n‘est en rien s‘adresser aux enfants [...]. Avec ‗Télémaque‘,
l‘enfance comme concept et comme horizon de lecture, ne saurait doc être encore
constituée". Tradução nossa.
As pesquisas informam que o século XVIII (às vezes ―século das Luzes‖,
―século da Razão‖ e, ainda, em alguns países, como na França, ―século
pedagógico‖) seguiu a veia educativa inaugurada com Télémaque e a
intensificou de maneira sistemática: construíram-se textos que priorizavam a
virtude e a moral, como em Fénelon. Julgou-se, então, que a literatura seria
o veículo para ensinar os pequenos leitores um saber útil, concreto,
moralizante e pedagógico. A literatura infantil, nesse primeiro momento,
salienta Prince (2010, p. 48), não era considerada para o leitor, mas para o
que ele deveria ser.
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Locke (1632-1704), no seu Traité sur l’éducation (em português, Pensamentos sobre a
educação), publicado em 1693, apresenta, conforme Prince (2010, p. 33-34), a criança como
um ser digno de consideração e que precisa de instrução, assim, para o filósofo, a curiosidade
da criança não deve ser vista como um vício a ser punido, mas como um elo natural ligado ao
desejo de conhecer.
19
Rousseau (1712-1778), em L’Émile (1762), segundo Prince (2010), condena severamente a
leitura de livros que não são destinados às crianças, como, por exemplo, as Fábulas, de La
Fontaine, por apresentarem, segundo o autor, lições confusas e inapropriadas à infância.
Rousseau clama por uma literatura para a juventude, posto que a criança é, nesse momento,
entendida como um ―ser específico, com direitos específicos‖ (PRINCE, 2010, p. 43).
20
"Éduquer l‘enfant implique de porter attention au rythme de son développement. Il faut
laisser l‘enfant imaginer, laisser la raison jouer avec sa sensibilité, afin qu‘à chaque stade de
son enfance, celle-ci soit poussée à sa perfection". Tradução nossa.
21
Nouveaux contes de fées.
22
"[...] l‘enfant comme l‘objet d‘un processus d‘individualisation, devenu à la fois un enjeu
social, juridique et idéologique". Tradução nossa.
23
Coletânea com seis contos de Boris Moissard, ilustrados de modo humorístico por Philippe
Dumas. A obra oferece às crianças e aos jovens a oportunidade de redescobrir os contos de
fadas tradicionais.
24
"[...] sont séduits par l‘humour, l‘invention, la circulation entre l‘imaginaire et le réel".
Tradução nossa.
25
"il les aide ‗à rire, à espérer, à souffrir et à mourir‘". Tradução nossa.
Considerações finais
26
Expressão empregada por Roland Barthes, na obra O prazer do texto, na qual o autor
demonstra, entre outras discussões, que os efeitos de um texto são individuais. Para Barthes
(1996, p. 31), a fruição de um texto é ―in-dizível, inter-dita‖.
Por fim, entendemos que a história dessa literatura postula que a maneira de
se pensar a criança tem progredido, sendo a criança, aos poucos,
singularizada e reconhecida. Entretanto, vale lembrar que as bases do gênero
são postuladas por adultos e são eles os produtores e editores dos
pressupostos que determinam as ―necessidades e desejos‖ das crianças
leitoras. Por isso, trata-se de um gênero sobre o qual muito ainda precisa ser
refletido e conhecido.
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Referências
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