Você está na página 1de 7

MAPA – Material de Avaliação Prática de Aprendizagem

Acadêmico: R.A.:

Curso: Bacharelado em Teologia

Disciplina: ESTUDOS DAS RELIGIÕES

Valor da atividade: 3,5 Prazo: 29/04/ 23:59

O MITO DE COMBATE

Nas Escrituras Cristãs, o Apocalipse de João também preservou uma narrativa


mítica sobre o dragão como o monstro do caos. Esse relato, contido no livro do
Apocalipse 12 (BÍBLIA), apresenta grande afinidade com o modelo do mito do
combate, bastante difundido no Oriente Próximo e no mundo clássico: na forma de
um grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, Satanás aparece no
céu, pronto para reduzir o mundo ordenado ao caos.

O mito do combate descreve a batalha que se dá entre dois seres divinos e seus
aliados pelo domínio universal. Um dos combatentes, usualmente um dragão,
representa o caos e a esterilidade, enquanto o seu oponente está associado com a
ordem e a prosperidade. O resultado da batalha constituirá ou abolirá a ordem na
sociedade e a fertilidade na natureza (COLLINS, 2001). A estrutura do mito do
combate é a seguinte:

Um casal de dragões — o oponente é frequentemente um par de dragões ou


bestas:

(1) marido e esposa e/ou (2a) irmão e irmã ou (2b) mãe e filho.

2. Caos e desordem — forças que o oponente representa.

3. O ataque — o oponente quer (1a) impedir que o deus principal (ou os deuses
mais jovens) chegue ao poder e/ou (1b) destituí-lo depois de alcançar o poder.

4. O herói.
5. A morte do herói.

6. O reino do dragão — enquanto o deus está morto e confinado ao mundo


subterrâneo, o dragão governa destrutivamente: (1) saqueia e satisfaz os seus
vários desejos; em particular (2) ataca a esposa ou mãe do deus.

7. Restabelecimento do herói — (1) a esposa, o irmão e/ou a mãe do deus se


empenha em restabelecê-lo (a) pela mágica ou (b) seduzindo o dragão ou (c)
lutando ela mesma com o dragão ou (2) seu filho o ajuda (a) restabelecendo a
força perdida do deus ou (b) assumindo ele mesmo o papel de deus (ou rei).

8. Batalha renovada e vitória.

9. Restauração e confirmação da ordem."

RESPOSTA

Os mitos de combate, segundo Aune (1997 apud Dorneles, 2017) eram


narrativas muito difundidas no mundo antigo. Tais mitos, frequentemente, retratam o
antagonista como um monstro, serpente ou dragão, símbolo de caos e esterilidade,
enquanto o protagonista representa ordem e fertilidade. (AUNE, 1997 apud
DORNELES, 2017). Segundo o autor, como exemplos de mitos de combate podem
ser citados a hidra vencida por Hércules e Iolã, na mitologia grega, o monstro tipo
dragão derrotado por Ninurta na mitologia suméria, o Leviatã também da mitologia
suméria retratado por Cilindro de Tell Asmar e a Paleta de Narmer, que emprega a
figura de um monstro de sete cabeças para retratar um rei inimigo do Alto Egito.

Autores defendem que a narrativa de Apocalipse apresenta diversas


similaridades com o modelo do mito de combate, sugerindo que o texto bíblico foi
produzido dentro da realidade cultural e linguística que seus autores estavam
inseridos (DORNELES, 2017), utilizando-se da intertextualidade. Entre os que
propuseram esta tese estão Collins, estudiosa de Harvard, reconhecida pela teoria
no início do século 20 e Dupuis, que Charles menciona na sua obra Critical and
Exegetical Commentary on de Revelation of St. John como o responsável por citar a
teoria pela primeira vez em 1975 (LIMA, 2015). Por outro lado, estudiosos como
Bauckham e Beale e Carson pontuam que é possível que João tivessem
conhecimento dos mitos de combate e que os tenha utilizado de algum modo para
seus propósitos, talvez para estabelecer algum diálogo com os leitores gregos,
porém, segundo Lima, eles têm demonstrado mais consistentemente que as
imagens apocalípticas descritas por João baseiam-se, sobretudo, nas imagens do
Antigo Testamento.
Segundo Collins (2001, apud Miranda, 2005), a origem do material de
Apocalipse 12 “está essencialmente no mito do combate, adaptado para interpretar
uma situação de conflito e de perseguição do autor e das comunidades crentes.”
Assim, o modelo básico do livro, responsável por moldar as imagens deste, é o mito
de combate, que esteve espalhado e vulgarizado pelo antigo mundo oriental e
grego, o qual caracteriza-se pelo aparecimento de duas divindades, junto com seus
aliados, numa luta pelo reinado universal. Ainda segundo a autora este mito esteve
espalhado no primeiro século de várias formas e em várias versões, podendo ser
encontrado em fontes judaicas, síro-fenícias, egípcias e greco-romanas. De acordo
com ela:
Um dos combatentes, normalmente, é um monstro, muitas vezes um
dragão, que representa o caos e a esterilidade, enquanto seus
adversários representam a ordem e a fertilidade. É a batalha
cósmica onde as forças do caos tentam prevalecer sobre as forças
da ordem e da fertilidade (COLLINS, 2001 apud Miranda, 2005).

Collins cita ainda que na base do mito talvez possa estar uma antiga versão
da narrativa de Apolo e Piton, que logo se disseminou em versões regionais, como
Horus, Osiris e Seth no Egito; Tempestade e Illuyankas entre em tradições hititas;
Baal e Yam em tradições cananitas e ugaríticas; Marduk e Tiamat entre os
acádicos.
Como houvesse um número de mitos semelhantes em estrutura e tema
circulando pelo primeiro século da era cristã, Collins em seus estudos procurou
definir em qual versão do mito o autor de Apocalipse se baseou ao escrever o
capítulo 12. Para a autora, a batalha entre a mulher e o dragão é uma recriação
cristã do mito de Píton-Leto-Apolo e do mito de Set-Ísis-Hórus (LIMA, 2015).
Tecendo-se um paralelo entre o capítulo 12 de Apocalipse e a estrutura do mito de
combate, nota-se:

ESTRUTURA DO MITO DE COMBATE TEXTO DE APOCALIPSE 12


O oponente, geralmente um par de O dragão (verso 3): “Então apareceu no
dragões céu outro sinal: um enorme dragão
vermelho com sete cabeças e dez
chifres, tendo sobre as cabeças sete
coroas”.
Caos e desordem (verso 4a), ao
Caos e desordem: Forças derrubar estrelas: “Sua cauda arrastou
representadas pelo oponente consigo um terço das estrelas do céu,
lançando-as na terra”.
O ataque (4b): “O dragão colocou-se
O ataque: O oponente deseja prender a
diante da mulher que estava para dar à
divindade ou destruí-la em busca de
luz, para devorar o seu filho no
poder
momento em que nascesse”.
O campeão (5a): “Ela deu à luz um
O campeão filho, um homem, que governará todas
as nações com cetro de ferro”.
A “morte” do campeão (5b). Não
explicitamente mencionado, mas
implícito para um contexto cristão do
A morte do campeão
final do primeiro século: “Seu filho foi
arrebatado para junto de Deus e de seu
trono”.
A vitória e o reino do dragão O reinado do dragão (12b-17): “‘Mas, ai
da terra e do mar, pois o diabo desceu
até vocês! Ele está cheio de fúria, pois
sabe que lhe resta pouco tempo’
quando o dragão foi lançado à terra,
começou a perseguir a mulher que dera
à luz o menino. Foram dadas à mulher
as duas asas da grande águia, para
que ela pudesse voar para o lugar que
lhe havia sido preparado no deserto,
onde seria sustentada durante um
tempo, tempos e meio tempo, fora do
alcance da serpente. Então a serpente
fez jorrar da sua boca água como um
rio, para alcançar a mulher e arrastá-la
com a correnteza. A terra, porém,
ajudou a mulher abrindo a boca e
engolindo o rio que o dragão fizera
jorrar da sua boca. O dragão irou-se
contra a mulher e saiu para guerrear
contra o restante da sua descendência,
os que obedecem aos mandamentos de
Deus e se mantém fiéis ao testemunho
de Jesus. Então o dragão se pôs em pé
na areia do mar”.
A recuperação do campeão (7a):
O retorno do campeão
“Houve então uma guerra nos céus.
Miguel e seus anjos lutaram contra o
dragão”.
Nova luta e vitória (7b-9), pelo menos
de forma proléptica: “(...) e o dragão e
os seus anjos revidaram. Mas estes
não foram suficientemente fortes, e
Nova luta e vitória final assim perderam o seu lugar nos céus.
O grande dragão foi lançado fora. Ele é
a antiga serpente chamada diabo ou
satanás, que engana o mundo todo. Ele
e os seus anjos foram lançados à terra”.
Restauração e confirmação da ordem Restauração e confirmação da ordem
(10-12a), também prolepticamente:
“Então ouvi uma forte voz dos céus que
dizia: “’Agora veio a salvação, o poder e
o Reino do nosso Deus, e a autoridade
do seu Cristo, pois foi lançado fora o
acusador dos nossos irmãos, que os
acusa diante do nosso Deus, dia e
noite. Eles o venceram pelo sangue do
Cordeiro e pela palavra do testemunho
que deram, diante da morte, não
amaram a própria vida. Portanto,
celebrem-se, ó céus, e os que neles
habitam!”.
Fonte: Adaptado de Miranda (2005)
Quanto aos mitos de Píton-Leto-Apolo e do mito de Set-Ísis-Hórus, a
similaridade é ainda mais marcante, conforme quadro abaixo. Segundo Collins
(2001, apud Miranda, 2005), as semelhanças são muito grandes para serem
acidentais, indicando uma clara dependência. Segundo Miranda (2005),
Uma vez que o mito de Leto é o mais semelhante ao Apocalipse, e o
mais antigo deles, Collins conclui que a história da mulher e o
dragão em Apocalipse 12, pelo menos em parte, é uma adaptação
do mito do nascimento de Apolo.

MITO DE PÍTON-LETO- MITO DE SET-ÍSIS-


APOCALIPSE 12
APOLO HÓRUS
1. Motivação do ataque 1. Motivação do ataque
de Piton: Para tomar de Set: Reinado de
posse do oráculo de Delfi; Osiris;
2. Leto engravida de 2. Isis engravida de 2. Uma mulher está para
Zeus; Osiris; dar à luz (verso 2);
3. Um dragão quer
3. Pito persegue Leto 3. Set persegue Isis para
devorar a criança (verso
para matá-la; matar a criança;
4);
4. Sob a ordem de Zeus, 4. Mulher é socorrida por
o vento norte salva Leto; Deus (verso 6), pelas
4. Isis é socorrida por Ra
Poseidon (Deus do mar) asas da grande águia
e Thoth;
também vem para (verso 14), e pela terra
socorrê-la; (verso 16);
5. Nascimento de Apolo e 5. Nascimento da criança
5. Nascimento de Horus;
Artemis; (verso 5);
6. Miguel derrota o
6. Apolo derrota Piton; 6. Horus derrota Set;
dragão (versos 7-9)
7. Reinado da criança
- 7. Reinado de Horus.
(verso 5);
8. Apolo estabelece os
jogos píticos. Mito de Set- - -
Isis-Horus
Fonte: Adaptado de MIRANDA, 2005.

O mito é importante para a relação caos versus ordem por se tratar da


linguagem utilizada pelos profetas para descrever os eventos históricos do Antigo
Testamento (FILHO, GINI, SOUZA, 2017). Segundo os autores “esta estrutura
apresenta o tema da independência política e estabilidade que são constituídas pelo
ato criador, já que a interferência do poder estrangeiro é expressada como ameaça
e caos (BÍBLIA, Naum 1,4; Jeremias 51,34; Daniel 7,8)”
Segundo Terra (2017), nos mitos de combate do mundo antigo, o dragão
representante do caos é destruído por sua contraparte e a ordem, que seria a
criação, é instaurada. Essa ideia está presente, por exemplo, na volta do cativeiro,
em Isaías 51,9-10, em que o caos é a experiência de exílio, que é resolvido com o
retorno. Outro exemplo: em Isaías 27,1 os seres vencidos pelo Senhor são os seres
do caos, o que a septuaginta traduz como dragão.

BIBLIOGRAFIA

DORNELES, Vanderlei. A besta de sete cabeças e seus antecedentes em textos


da cultura antiga. HORIZONTE-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da
Religião, p. 1423-1445, 2017. Disponível em: <Vista do A besta de sete cabeças e
seus antecedentes em textos da cultura antiga (pucminas.br)>

FILHO, José Adriano; GINI, Sérgio; SOUZA, José Francisco de. Estudos das
Religiões. Maringá-PR.: 2017. Reimpresso em 2021.

LIMA, Leandro Antonio de. O poder da arte literária no Apocalipse: um estudo


do uso do Antigo Testamento em Apocalipse 12.1-6. Fides reformata, v. 20, n. 5,
p. 9-29, 2015. Disponível em:
<https://cpaj.mackenzie.br/wp-content/uploads/2020/01/1-O-poder-da-arte-liter
%C3%A1ria-no-Apocalipse-um-estudo-do-uso-do-Antigo-Testamento-em-
Apocalipse-12.1-6-Leandro-Lima.pdf>

MIRANDA, Valtair A. Para ler o Apocalipse: Resenha de COLLINS, Adela Yarbro.


The Combath myth in the Book of Revelation. Oracula, v. 1, n. 1, 2005. Disponível
em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/oracula/article/view/
5929/4799>

TERRA, Kenner. O Apocalipse de João e a interpretação cosmológica do


mundo Romano. Revista Pistis Praxis, v. 9, n. 3, 2017. Disponível em:
<https://www.redalyc.org/pdf/4497/449755240011.pdf>

Você também pode gostar