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17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais

DIREITOS SOCIAIS E DIREITOS HUMANOS NUMA


ECONOMIA GLOBALIZADA

DIREITOS SOCIAIS E DIREITOS HUMANOS NUMA ECONOMIA


GLOBALIZADA
Revista de Direito do Trabalho | vol. 104 | p. 34 | Out / 2001
Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 3 | p. 149 | Ago / 2011
Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade Social | vol. 1 | p. 43 | Set /
2012DTR\2001\693
Antônio Rodrigues de Freitas Júnior
Doutor e Livre-Docente em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito no
Instituto de Economia da Universidade de Campinas. Chefe da Assessoria Jurídica da Câmara
Municipal de Sâo Paulo.Membro do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Jr, das Comissões
de Acompanhamento Legislativo e da Advocacia Pública da OAB/SP, do Instituto Brasileiro de
Advocacia Pública e joing member do Research Committee on Sociology of Law da International
Sociological Association.

Área do Direito: Geral

Sumário:

1.O trabalho e o direito numa economia globalizada - 2.Representação de interesses e


globalização: um outro século de corporativismo? - 3.Possíveis itinerários para os direitos sociais:
um ensaio provisório - Bibliografia

1. O trabalho e o direito numa economia globalizada


Entre os temas mais inquietantes e fecundos de investigação, no campo dos direitos sociais ou
dos assim chamados direitos humanos de terceira geração, 1 sob a ótica da presente realidade sul-
americana, figuram precisamente as relações entre o fenômeno da globalização e a recente
experiência de integração regional que se vêm desenvolvendo em diversos continentes.
O crescente interesse por esse campo temático, embora suscite relevantes indagações de índole
doutrinária, deve ser creditado às rápidas e profundas modificações, já produzidas e ainda em
curso, que estão a desafiar as categorias teóricas, o quadro conceitual e as figuras jurídicas pelos
quais fomos habituados a compreender, criticar e operar os assim chamados direitos sociais.
Desse modo, o fenômeno da globalização, que foi durante muito tempo um tema de interesse
restrito aos economistas, e o problema da integração regional, na literatura jurídica sul-americana,
uma especialidade do Direito Internacional, hoje constituem o alvo prioritário das atenções dos
juristas de todas as áreas, e nesses incluídos os que se ocupam dos assim chamados direitos
sociais. Veremos ao seu tempo qual a relação que guardam entre si globalização e integração
regional.
Desejo por ora chamar a atenção para o fato de que o Tratado Constitutivo do Mercado Comum
do Cone Sul - Mercosul, conhecido como Tratado de Assunção e subscrito em 26.03.1991,
apareceu mais de trinta anos depois da subscrição do Tratado de Roma. A experiência da
integração regional, para o continente americano, é assim um fenômeno relativamente recente, e
ainda está dando seus primeiros passos.
Como explicar, então, o significado do fenômeno da integração para os direitos sociais no
contexto sul-americano?
A resposta a essa pergunta talvez implique um interessante ponto de contraste entre Europa e
Mercosul: se a experiência européia pôde resultar de um amplo e duradouro processo de
amadurecimento (considerando o intervalo compreendido entre o Tratado de Roma e a Revisão de
Amsterdã), o mesmo não se aplica ao caso sul-americano. Desse modo, num rápido intervalo de
tempo os juristas sul-americanos, inclusive aqueles ocupados com temas de direitos sociais - para
os quais o repertório do direito internacional limitava-se à esfera da Organização Internacional do
Trabalho, necessitaram adquirir familiaridade com problemas e categorias jurídicas que lhes eram
desconhecidas. Em síntese, em pouco tempo um assunto reservado a especialistas tornou-se o
centro de gravidade de todo o debate jurídico que se vem travando no decorrer dos anos
noventa; em grande parte pelo que isso significou de inovador e de surpreendente para uma
cultura jurídica ocupada quase que exclusivamente com o direito contido pelas fronteiras do
Estado-Nação.

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É bem verdade que expressiva literatura jurídica, ocupada com a experiência sul-americana, faz
referência a um itinerário de integração que teria por marco inicial a subscrição, em 1948, da
Carta de Bogotá (que instituiu a Organização dos Estados Americanos), passando depois pelo
advento de diversos tratados multilaterais (em nível de continente americano) e bilaterais
(especialmente entre Brasil e Argentina). Para esses autores, o Tratado de Assunção consistiria
no ponto culminante de um esforço de integração bem mais antigo.
Entretanto essa narrativa não me parece adequada para dar conta do que verdadeiramente se
passou a partir de 1991. Com efeito, o advento do Tratado de Assunção registra o início de uma
agenda de intenção qualitativamente diversa daquela que lhe precedeu; e introduz novo campo
de desafios e de compromissos que mudam conceitualmente o significado da integração para o
ordenamento jurídico dos países envolvidos.
O que mudou, então, a partir do Tratado de Assunção? Em primeiro lugar e o mais importante: o
Tratado expressa, pela primeira vez em todo o continente americano, o compromisso de criação
de um Mercado Comum. Para empregar a conhecida tipologia de Bela Balassa (Theory of economic
integration): um regime de integração caracterizado pela abolição de restriç ões na circulação, não
apenas de bens e serviços, mas também sobre outros fatores da produção; nomeadamente: o
capital. Embora ainda paire dúvidas acerca da verdadeira extensão jurídica do termo "fatores da
produção", empregado no preâmbulo do Tratado de Assunção, ficou entreaberta a possibilidade de
que por ele viesse mais tarde a se desenvolver um regime de integração compreensivo do mercado
de trabalho.
Importa notar que a única experiência semelhante até aqui posta em prática no continente
americano - o Nafta - restringe-se conceitualmente a mera "zona de livre-comércio"; limitado,
portanto, à simples eliminação recíproca de restrições e de onerações de comércio.
Também interessa realçar que a subscrição do Tratado de Assunção simbolizou uma importante
mudança no conteúdo das relações diplomáticas do continente. Por seu intermédio tornou-se
virtualmente superada a agenda de integração para o continente, preconizada pelos Estados
Unidos segundo os parâmetros da chamada "iniciativa para as Américas", de George Bush (o pai).
A partir do Tratado de Assunção o Mercosul passou a constituir, depois de Cuba, o principal tema
das atenções norte-americanas no continente, iniciando-se uma ainda não resolvida zona de
contínuas divergências, especialmente perceptíveis na proposta norte-americana para a criação
de uma zona de livre-comércio para as Américas, bem como nas sucessivas impugnações de
agendas de desoneração tarifária, praticadas pelos signatários do Tratado de Assunção, em sede
de Organização Mundial do Comércio.
Como se sabe, integram o Mercosul os países signatários do Tratado de Assunção, a saber: Brasil,
Argentina, Uruguai e Paraguai. Mais recentemente, foram subscritos tratados de adesão parcial -
em nível de zona de livre-comércio - com o Chile e Bolívia (ambos de 1996); bem como foram
postas em curso tratativas destinadas a fazer com que o mesmo regime de integração seja
estendido à União Européia (esse o propósito dos encontros de Copenhague [1993], São Paulo
[1994] e Paris [1995] e das recentes visitas de chefes de Estado do Mercosul a países europeus).
Um aspecto particularmente relevante diz respeito às imensas diferenças econômicas e sociais que
todos os integrantes do Mercosul guardam entre si; para além das diferenças regionais internas,
muito acentuadas no caso do Brasil e da Argentina. 2
Em termos relativos, a grandeza econômica agregada do Mercosul, embora muito expressiva para
as economias dos países que o integram e para a dos países vizinhos (o que parece explicar, em
parte, as fortes resistências opostas pela diplomacia norte-americana ao seu aprofundamento),
representa apenas algo em torno de 2,77% da soma dos PIB dos outros principais blocos
econômicos: Japão e sudeste asiático; União Européia e países signatários do Nafta. Em termos
absolutos alcança algo em torno de 460 bilhões de dólares contra aproximadamente 6.000 bilhões
totalizados pelo bloco Nafta. Esses dados, por sinal, já seriam suficientes para desmentir a
obstrução norte-americana à cláusula de habilitação do Mercosul nos parâmetros da Organização
Mundial do Comércio, sob o argumento da relevância econômica do tratamento preferencial ínsito
à natureza de bloco econômico para o Cone Sul.
Sob o ângulo institucional, o Mercosul exibe uma estrutura propositalmente singela: o Conselho do
Mercado Comum (de índole deliberativa); o Grupo do Mercado Comum (executivo, com iniciativa de
propositura) e dez Subgrupos Temáticos (revestidos de atribuições estritamente técnico-
consultivas, o décimo dos quais, criado sugestivamente após o Tratado de Assunção, destinado a
trabalho e seguridade social).
A essa altura já podemos iluminar o segundo tópico desse tema, relacionado ao fenômeno da
globalização, para que em seguida possamos ocupar-nos de suas relações com as estratégias de
integração regional, com vistas na identificação do possível impacto de ambas sobre o Direito do
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Trabalho.
Na literatura jurídica sul-americana tem sido freqüente vermos as expressões "globalização" e
"integração regional" ser empregadas com acepções assemelhadas; quando não mesmo de modo
intercambiável como se se tratasse de um só fenômeno. Minha percepção sobre ambas orienta-me
para a necessidade de um cuidadoso esforço de delimitação conceitual de modo que as relações
entre elas possam ser vistas com maior nitidez.
Um fenômeno que, embora revele grandeza jurídica, como creio não surpreender, decorre da
convergência de uma série de fatores de outra natureza, principalmente de ordem econômica.
Enumero apenas aqueles que me parecem de maior significado, de modo que se possa ter certeza
de estarmos a falar do mesmo fenômeno, ou seja, da globalização vista como um fenômeno
histórico amplo, não meramente jurídico. Tais fatores são: 1. a internacionalização dos mercados
de bens, serviços e créditos, induzida pela redução de tarifas de exportação e de outros
obstáculos aduaneiros; 2. a padronização das operações mercantis e produtivas; 3. a
fragmentação e a dispersão internacional das etapas do processo produtivo; 4. a aproximação das
distâncias geográficas pela ampliação da oferta de meios de comunicação e de transporte; 5. a
homogeneização das expectativas de consumo e de imaginários culturais, associada ao simétrico
ressurgimento de apelos fundamentalistas de origem religiosa e local. Um fato interessante a
observar é o de que, se por um lado a globalização mitigou as identidades nacionais gerais,
nucleadas em torno da idéia de pertença a uma comunidade sujeita ao mesmo poder soberano, de
outro, revigorou microidentidades locais associadas a macroidentidades étnico-religiosas de
grandeza planetária. Isso pode contribuir para explicar o crescimento da conflitividade no leste
europeu, ladeado pelo simultâneo aprofundamento do sentimento de pertença a uma comunidade
de escala planetária (perceptível, por exemplo, nas questões ambientais e na grande ênfase que
vêm merecendo problemas tais como o do multiculturalismo em matéria de direitos humanos). 3
Tais fatores, entre muitos outros que por brevidade não mencionei aqui, induziram um processo de
rápida e profunda debilitação do Estado-Nação como arena privilegiada da disputa política,
trazendo graves inquietações no que se refere aos destinos da democracia e do princípio
republicano. E isso parece compreensível na medida em que se tenha presente que ambos os
conceitos - democracia e república - foram produtos da luta política e da elaboração doutrinária
que se travou, historicamente, na arena do Estado-Nação.
Por conseqüência da globalização, bem como das mudanças dela decorrentes no plano da divisão
internacional do trabalho, da superação da indústria fordista-taylorista, bem como da
transnacionalização do capital, está hoje em questão a própria capacidade do Estado-Nação de
estabelecer políticas sociais e trabalhistas sem atentar para o que se verifica na arena da
competitividade econômica em escala planetária. Em conseqüência, discute-se sob que condições
é possível vaticinar a sobrevida dos direitos sociais em sua acepção protecionista e promocional.
Ainda levando em conta esse quadro de alterações, e com o propósito de apresentar um conceito
que seja útil para fins meramente analíticos, chamo de globalização, sob o ponto de vista jurídico,
o deslocamento da capacidade de formulação de definição e de execução de políticas públicas,
antes radicada no Estado-Nação, para arenas transnacionais ou supranacionais, decorrentes da
globalização econômica e de seus efeitos sobre a extensão do poder soberano. Trata-se de um
fenômeno, e portanto de um dado de realidade no mundo da vida; antes que de uma figura
jurídica, mas de grande alcance e importância para o Direito.
Isso me conduz para pôr em evidência outro aspecto do problema do qual muitas vezes não nos
damos conta. Ao contrário do que alguns possam supor, essas questões de fronteira quanto ao
futuro próximo do Estado-Nação e dos direitos sociais deixaram de ser preocupação exclusiva do
Direito sob a ótica dos países de capitalismo central. Mesmo nos países de economia periférica ou
semiperiférica (como no Brasil), a globalização introduziu o paradoxo de necessitarmos desenvolver
olhares simultâneos em direção à exclusão social e à superação da indústria fordista. Nos termos
de um conhecido sociólogo português: a globalização introduziu-nos a angústia da pós-
modernidade, sem que ainda tivéssemos tempo suficiente para completar a agenda social da
revolução industrial, ou seja, sem que tampouco pudéssemos reconhecer-nos completamente
modernos.
Em que medida o exame conjunto da integração regional e da globalização pode contribuir para
melhor compreender esses problemas?
Diversamente da globalização, a integração regional, antes que um dado de realidade, constitui
uma estratégia política induzida pelos agentes econômicos e implementada por intermédio do
Estado, por via de compromissos internacionais e supranacionais com vistas na criação de uniões
aduaneiras, mercados comuns ou uniões econômicas. Em síntese, se a globalização, quer em seu
aspecto geral, quer em sua dimensão mais jurídica, constitui um fenômeno, a integração regional

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constitui acima de tudo uma estratégia política.


Como explicar a crescente intensificação de estratégias de integração regional no cenário dos
anos noventa; num itinerário que somente exibiria sinais de exaustão no final da década? A maioria
dos observadores qualificados nesse terreno chama a atenção para o propósito dos Estados de
reagirem aos efeitos potencialmente devastadores da globalização sobre suas economias internas.
A idéia- chave, portanto, é a de que a integração dos anos noventa é basicamente uma
estratégia defensiva aos efeitos da globalização. Por sinal, uma defesa que nasce com vistas na
proteção econômica da empresa, e só num momento posterior incorpora problemas de índole
social.
Ocorre que quanto mais se ampliam e se intensificam as estratégias de integração regional,
paradoxalmente, menos os Estados nacionais se mostram aptos a dar respostas, no plano interno,
às demandas sociais e econômicas. Dizendo de outro modo: levando em conta que a integração
pressupõe a cessão de certa parcela de soberania aos organismos regionais, tanto mais a
integração se desenvolve, tanto menor a parcela de soberania que resta aos Estados nacionais e,
em decorrência, tanto menores passam a ser suas possibilidades de formular e de implementar
políticas públicas internas.
Em meio a esse processo de progressiva debilitação do Estado-Nação, com suas nítidas
conseqüências sobre os direitos sociais e trabalhistas, os sindicatos (nesses incluindo os
sindicatos mais fortes da América do Sul) passaram a apostar todas as fichas nos processos de
integração regional, procurando fazer frente aos efeitos da globalização. A estratégia foi,
portanto, a de procurar introduzir, na agenda da integração regional econômica, uma dimensão
também social.
Neste ponto proponho uma terceira indagação: será essa uma estratégia adequada para alcançar
os resultados pretendidos pelos sindicatos? Será esse o caminho para revitalizar os direitos
sociais. Dessa vez minha resposta será meramente aproximativa. A hipótese com que venho
trabalhando consiste em pôr em questão o cenário dos organismos de integração regional como a
arena preferencial a ser encarada. Não quer isso dizer que ela deva ser excluída da agenda de
desafios dos direitos sociais no cenário contemporâneo. O ponto é: deve ser essa a arena
privilegiada?
Suspeito que não. Embora retorne a esse argumento na parte final deste estudo, desde já
antecipo que, ao que vejo, se alguma saída resta ao Direito do Trabalho e a outros direitos
sociais, ela residirá na identificação da arena transnacional (antes que regional), como o palco
privilegiado, embora não exclusivo, da disputa política.
Nesse sentido, parecem sugestivos os debates no âmbito da Organização Mundial do Comércio em
torno da chamada "cláusula social" (ou anti-dumping social), a discussão acerca do chamado "selo
social" que vem tendo lugar na Organização Internacional do Trabalho, e outras iniciativas que
visam, não ao mero reconhecimento de direitos sociais no plano dos organismos regionais, mas
especialmente a ênfase na perspectiva de conferir, aos direitos sociais, grandeza planetária. Muito
à semelhança, por sinal, do que vêm preferindo fazer, com algum sucesso, os movimentos
ambientalistas. 4
Pondo de lado o claro viés protecionista com que os países de economia central tencionam
conferir a propostas tais como a da cláusula e a do selo sociais (o que de resto não surpreende,
nem por si só desmerece a hipótese de sua utilidade social), ao se adotarem por horizonte apenas
as respectivas realidades regionais, os direitos sociais permanecerão - ao menos tendo em conta
a realidade sul-americana - reféns da recorrente ameaça que se tornou célebre na expressão
"síndrome de Xangai": ou se reduzem os custos diretos e indiretos do trabalho ou o capital tenderá
a migrar para outro continente! Uma ameaça, aliás, que não raro se fez a cumprir.
2. Representação de interesses e globalização: um outro século de corporativismo?
O ponto de partida da reflexão que proponho para este tópico reside no reconhecimento de que
uma das vertentes fundamentais na compreensão do que se passou, nesses últimos cem anos,
com o trabalho, as relações coletivas de trabalho e com os direitos humanos (notadamente,
embora não exclusivamente, os de terceira geração), direciona suas atenções à idéia de
corporativismo.
Para bem delimitar a noção de corporativismo, entretanto, é necessário darmos um passo atrás de
modo a ter presente o conceito de representação, levando em conta clássica dicotomia entre
representação política e representação de interesses.
Num conhecido trabalho intitulado "Democracia representativa e democracia direta", reunido na
coletânea O futuro da democracia, N. Bobbio testemunha que "a literatura jurídica, sociológica e
politológica sobre o conceito, ou melhor, sobre o termo 'representação', é tão abundante que se
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quisesse dela dar conta apenas em linhas gerais seria obrigado a escrever toda uma monografia".
Desse modo, sinto-me à vontade para fixar apenas algumas linhas principais do conceito de
representação, enfatizando os aspectos distintivos entre representação política e representação
de interesses, apenas na medida em que possam ser bastantes para melhor situar o conceito de
corporativismo com vistas na experiência jurídica deste final de século.
Para maior brevidade, apresento como atalho a paradigmática proposição conceitual de Weber de
"Economia e Sociedade", quando se ocupa do problema da representação. Para Weber,
representação consiste numa situação associativa objetiva em que a ação de determinados
membros se imputa aos demais, de modo que esses a considerem legítima e vinculatória, do que
sucede uma relação de fato. Ainda seguindo de perto a proposição de Weber, o fenômeno
genérico da representação manifesta-se por intermédio de dois grandes tipos-ideais: a
representação livre (equivalente àquela que em outros autores vem denominada representação
política); e a representação de interesses. Como tipos-ideais que são, as duas espécies de
representação somente se manifestam em sua forma pura num plano conceitual, tendo
importância metodológica na medida em que possam constituir figuras paradigmáticas para fins
estritamente analíticos. Em outras palavras, nenhuma experiência real de representação é
puramente "livre" nem puramente "de interesses". No mundo concreto da experiência jurídica cada
qual incorpora, numa certa medida, elementos conceituais da outra, de modo que a
caracterização de uma experiência concreta na primeira ou na segunda categoria obedece apenas
a uma relação de predomínio. Em Weber, se na representação "livre" o representante age segundo
suas próprias convicções, no que supõe ser o "interesse geral" inespecífico dos representados, na
representação "de interesses" está presente o fenômeno da "corporação" na qual o representante
se manifesta como expressão dos interesses de uma dada profissão, estamento ou classe, sendo
essa a razão pela qual o representado é designado pelos seus pares (e não por um universo
inespecífico de representados).
Em Bobbio, a distinção entre ambos os tipos de representação pode ser resumida nos seguintes
aspectos diferenciais: 1. representação política, expressando o sistema institucional de atuação
do poder, preconizado pelo liberalismo, em que não há lugar para o mandato imperativo (revogável
ad nutum), e por intermédio do qual se constituem obrigações e deveres, com vistas na promoção
dos interesses de um universo inespecífico de pessoas; 2. representação de interesses (gênero
próximo da representação sindical), expressa o conjunto de instituições entre as quais podem
figurar e freqüentemente figuram mecanismos de revogabilidade de poderes (mandato imperativo),
tendente à promoção dos interesses relativos a um universo determinado de pessoas.
As formulações dos autores citados parecem bastantes para, a esta altura, aproximarmo-nos da
noção principal deste tópico: o corporativismo. Veremos adiante como se articulam as relações
entre corporativismo e representação de interesses.
Tendo em vista os objetivos aqui perseguidos, e tendo presente sobretudo a imensa literatura já
produzida em torno do corporativismo, ficarei satisfeito se puder concluir essa exposição
ordenando elementos aptos a contribuir para que se responda a três questões elementares: 1. O
que é corporativismo? 2. Existe apenas um corporativismo, ou talvez seja preferível falar, para
maior rigor conceitual, em "corporativismos"? 3. Que importância pode apresentar o estudo do
corporativismo, sob o ângulo dos direitos humanos de terceira geração, com vistas em
experiências jurídicas que já viraram a página do totalitarismo, inclusive no plano da regulação
jurídica do sistema sindical?
O que é corporativismo?
O termo corporativismo aparece usualmente empregado, a partir do século XX, para designar
tanto uma determinada concepção doutrinária quanto para caracterizar uma variedade de
experiências jurídicas específicas.
Como concepção doutrinária o corporativismo do século XX foi originariamente produto de uma
série de proposições que guardam em comum a circunstância de terem aparecido numa época de
acentuada crise, seja do liberalismo como modelo econômico, seja da democracia como paradigma
político. Refiro-me naturalmente ao período interguerras, quando se consumou o fracasso da
crença no mercado como apto a regular adequadamente as relações econômicas e quando o
conceito de democracia ainda permanecia aprisionado às premissas individualistas do liberalismo de
que historicamente se originou. Todavia, contrário do que se pode supor por um olhar superficial
do problema, o corporativismo, seja enquanto doutrina, seja enquanto sistema jurídico, não pode
ser visto como um fenômeno restrito a esse particular momento histórico.
Seja enquanto concepção doutrinária, seja como experiência jurídica concreta, a noção de
corporativismo pode ser empregada com vistas no sistema genérico de representação política da
sociedade, tanto quanto pode ser empregada para designar um determinado subsistema
representativo em particular (como, por exemplo, o sistema sindical).
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Desse modo, existem doutrinas políticas assim como variadas experiências políticas que se
implementaram em função do argumento corporativista. Ao lado disso, existem doutrinas de
relações coletivas do trabalho corporativistas, tanto quanto existem diversas experiências em que
estão presentes, em maior ou menor grau, ingredientes corporativos.
Tendo-me referido a "doutrinas" e a "experiências", importa agora precisar o que exibem em
comum, de modo que possamos extrair o núcleo do que pode ser apresentado como um conceito
de corporativismo.
O ponto comum a todas as doutrinas e fenômenos associados à idéia de corporativismo é o da
adoção, quer no terreno doutrinário, quer no da experiência jurídica, de sistemas de representação
em que estejam presentes, de modo predominante, os predicados da representação de
interesses em relação àqueles da representação política (ou "livre", na terminologia weberiana).
Para maior clareza, convém um certo esforço de detalhamento. No plano macropolítico, as
doutrinas e as experiências corporativistas privilegiam, nos mecanismos de decisão política,
veículos de representação de interesses, relativamente àqueles veículos de representação "livre"
típica da democracia representativa tal como fôra concebida no século XVIII.
Por outro lado, tanto doutrinas quanto experiências corporativistas relacionadas a sistemas
particulares de representação podem ser assim caracterizadas na medida em que enfatizam os
predicados da representação de interesses, em detrimento daqueles característicos da
representação livre.
Existe apenas um corporativismo ou, para rigor do conceito, melhor será falarmos em
"corporativismos"?
Por tudo o que foi dito até aqui a conclusão fica naturalmente por conta da segunda hipótese.
Entretanto, interessa-me particularmente chamar a atenção não apenas para a existência de
muitos corporativismos, mas e sobretudo para o quanto essa pluralidade de corporativismo
interessa como alvo de observação do Direito na sociedade contemporânea. Em outras palavras,
o corporativismo, seja enquanto doutrina, seja como sistema jurídico, quer no plano
macropolítico, quer no âmbito estrito de sistemas particulares de representação, muito ao
contrário do que se poderá supor, não é um problema do passado nem sequer um problema
peculiar às experiências jurídicas influenciadas pelo fascismo, como no plano sindical continua
sendo o caso do Brasil.
Para demonstrar essa afirmação terei de me socorrer de algumas paradigmáticas contribuições
sobre o corporativismo.
No início dos anos trinta um então conhecido teórico romeno - Mihaïl Manoïlesco - publica duas
obras que marcaram definitivamente as reflexões em torno do corporativismo ( O século do
corporativismo e O partido único); ambas sistematizando os fundamentos da doutrina
corporativista de organização da sociedade. Sob evidente influência da atmosfera de crise da
democracia representativa individualista de seu tempo, Manoïlesco apresenta uma tipologia do
corporativismo, como modelo de organização do sistema macropolítico. Para esse autor existiria
um corporativismo puro (caracterizado pela soberania de um Poder Legislativo constituído pelas
corporações); um corporativismo subordinado (em que o Legislativo residiria num partido único ou
num parlamento corporativo - partilhando o poder soberano com um Executivo); e um
corporativismo misto em que o poder soberano seria partilhado por um sistema bicameral
constituído por um parlamento eleito por representação livre e outro por representação de
interesse (corporativo).
No plano da experiência jurídica dos regimes totalitários e autoritários erguidos sob a influência da
doutrina de Manoïlesco, também essa pluralidade está presente. Tomando o caso brasileiro, tenho
em mente a Constituição corporativista de 1937 - outorgada pela ditadura de Getúlio Vargas após
um radical processo de intervenção no sistema sindical que até 1930 não estivera sob controle do
Estado. Embora a Constituição de 1937 fizesse alusão à constituição de um Conselho Econômico e
Social que funcionaria como uma espécie de parlamento corporativo, na prática dito Conselho
jamais veio a se constituir. A experiência de outros países, porém, revela a adoção de instituições
mais aproximadas ao tipo puro de corporativismo preconizado por Manoïlesco.
Isso já é suficiente para demonstrar quão variadas foram as experiências corporativistas do
período interguerras; mesmo que tivessem em comum uma atmosfera de crise da democracia e de
predomínio de ideologias autoritárias e totalitárias.
Ocorre que o corporativismo, em todas as suas diversas acepções (como doutrina ou como
experiência, macropolítica ou setorial), que se supunha uma página virada pela derrota do Eixo ao
final da Segunda Guerra, ressurge como alvo de atenções e de preocupação na literatura jurídica

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e política dos anos setenta.


Que razões podem explicar a exumação desse, que se supunha um problema definitivamente
superado na segunda metade dos anos quarenta.
Diversos fatores devem ser levados em consideração. Em primeiro lugar tenhamos presente que
nem todos os regimes autoritários que nasceram no período interguerras foram superados com
o término da Segunda Guerra (recordemos que Portugal de Salazar e a Espanha de Franco foram
experiências que, nada obstante alguns abrandamentos, estenderam-se até meados dos anos
setenta).
Por outro lado, em outros países, apesar da superação do autoritarismo no plano macropolítico e
mesmo a despeito da restauração das instituições da democracia política representativa, o
sistema particular da representação sindical foi preservado na sua integridade (como no caso do
Brasil), e em seus aspectos mais importantes (como no caso da Argentina). Isso demonstra que o
corporativismo sindical que nasce em meio a experiências autoritárias pode sobreviver, sem
alterações substanciais, a períodos de democracia política. É bem verdade que não é uma
sobrevida estável, tampouco isenta de conflitos, de paradoxos e mesmo de contradições. O fato é
que o sistema sindical exibe, a exemplo de outros sistemas jurídicos, ingredientes de auto-
referibilidade que lhe permitem surtos de realimentação e de funcionalidade que podem ocorrer
fora de um regime macropolítico de tipo corporativo.
Por último e não menos importante (talvez bem ao contrário), a notável elasticidade e
adaptabilidade do corporativismo (sindical ou macropolítico) permitiu que experimentasse um
processo de ressurgimento numa atmosfera política e institucional bem diversa daquela
verificada no contexto dos anos trinta. Paradoxalmente, numa atmosfera em que estivera
presente não um excesso de intervenção estatal, mas, ao contrário, uma predominante fraqueza
dos governos democráticos. Em outras palavras, o corporativismo dos anos trinta, que fora
induzido por um Estado forte de modo a enfraquecer o sindicato autônomo e abrir terreno para
governos autoritários, ressurge, nos anos setenta, como estratégia de governos democráticos
relativamente fracos em sua base de sustentação parlamentar, de modo a tirar proveito de um
poder sindical então relativamente forte, procurando fazer frente aos seus requisitos de
governabilidade.
O que há de peculiar a esse ressurgimento do corporativismo dos anos setenta? Servindo-me de
uma também paradigmática tipologia do corporativismo, preconizada pela conhecida obra de
Philippe Schmitter, esse corporativismo, a que chama de "societal", difere do corporativismo
"estatista" dos anos trinta em razão dos seguintes predicados: 1. pressupõe o amplo
reconhecimento - quando não mesmo a promoção - da autonomia coletiva dos grupos sociais
organizados; 2. pratica-se numa atmosfera institucional de reconhecimento das liberdades
públicas e num ambiente de razoável competitividade partidária; 3. comport a o reconhecimento de
alguma simetria entre o sistema de representação de interesses e o sistema de representação
política.
Em síntese, esse corporativismo "societal" - chamado por alguns de corporativismo "liberal" ou
"democrático" - corresponde a ponto culminante de concertação social do welfare state, que teve
lugar em diferentes partes do mundo no decorrer dos anos oitenta.
Passemos agora ao enfrentamento da terceira das indagações anteriormente formuladas: que
importância pode haver no estudo do corporativismo, para o Direito do trabalho, quando os dois
períodos históricos em que teve maior proeminência parecem constituir experiências já esgotadas
neste final de século? Mesmo levando em conta o corporativismo "societal" ou "liberal", que
caracterizou a experiência política e as relações coletivas do trabalho no curso dos anos oitenta,
não estaremos diante de um problema do passado? O recente processo de globalização, as
profundas mudanças nos processos produtivos, a inegável crise por que passa o movimento
sindical ao longo das duas últimas décadas do século XX, e com ela a exaustão de uma
determinada experiência de welfare state, não fizeram com que o corporativismo perdesse sua
importância como objeto de estudo?
Suspeito que não. Tendo presente a adaptabilidade e plasticidade do fenômeno corporativo, nada
parece garantir que não venha a ressurgir, com algumas diferenças, em outros planos da
experiência jurídica do século XXI. Refiro-me, por exemplo, à possibilidade de termos nova vaga de
corporativismos em ressurgimento, mediante a grande influência das empresas transnacionais no
atual cenário político. Inquieta-me particularmente a crescente importância relativa da
representação dos interesses empresariais, ante o progressivo enfraquecimento do Estado-Nação,
em cuja esfera se deu o nascimento e o aperfeiçoamento democrático da representação política e
do princípio republicano.
Preocupa-me ainda, em especial, a circunstância de inexistir, até o momento, um sistema de
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representação política suficientemente forte para fazer frente à inegável presença de interesses
particulares na arena transnacional, para cuja representação já existem numerosas agências de
lobby e associações internacionais - muitas das quais amparadas por instituições formalmente
diplomáticas e numa relação de alarmante promiscuidade entre interesse público e interesse
privado. Em síntese: nada autoriza que desde já descartemos a hipótese de mais um século de
corporativismo.
3. Possíveis itinerários para os direitos sociais: um ensaio provisório - Bibliografia
Com efeito, ainda que se possam criticar os propósitos protecionistas que animaram os países de
capitalismo central, no debate sobre a cláusula e o selo sociais, não menos certo é que somente
com o acirramento dos conflitos a seu respeito que a Organização Internacional do Trabalho
finalmente acabou por adotar a Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no
Trabalho e seu Seguimento, por ocasião da Conferência Internacional do Trabalho de 18.06.1998.
Ao que vejo, também em sede de Mercosul, a adoção de padrões uniformes mínimos de respeito a
direitos sociais necessitará do estímulo proveniente do acirramento das demandas sociais, seja no
interior dos países que o integram, seja no plano intra-regional e inter-regional. A experiência
comprova 5 que os empreendimentos de negociação coletiva e de concertação macropolítica,
mesmo que sinceros, entre os atores sociais, somente alcançam resultados concretos quando
envidados numa atmosfera de insatisfação e de forte disputa por legitimidade.
De qualquer modo, o fato é que vem crescendo o número de normas supranacionais que tendem a
incorporar, em amplos traços, princípios ou regras de textura aberta referentes a direitos sociais.
Pondo de lado seu viés um tanto romântico e passadista, suas postulações principais e sua
estética um tanto alegórica e pueril, de minha parte não vejo como negar que a crescente
mobilização de organizações não-governamentais (de que são exemplo as reiteradas
manifestações de protesto por ocasião dos encontros anuais da OMC, o recente Fórum de Porto
Alegre etc.) trouxe à luz da opinião pública a antes imperceptível insatisfação com os propósitos
estritamente comerciais da agenda supranacional. Aos poucos parece entreabrir-se a possibilidade
de emergência do cenário a que Boaventura dos Santos, outrora, num tom confessadamente
programático, designou globalização contra-hegemônica; ou, se se preferir, no eufemismo do
jargão diplomático: a dimensão social da globalização.
Importa notar, porém, que esses documentos supranacionais exibem, quase invariavelmente,
dicção genérica de difícil exigibilidade; seja no âmbito dos organismos judiciários convencionais do
Estado-Nação, seja mesmo no plano das agências decisórias dos entes supranacionais.
Dois fatores parecem explicar esse fenômeno. Um primeiro, mais evidente, que consiste na
resistência, por parte dos "ganhadores" da globalização, a compromissos diretamente revestidos
de exigibilidade jurídica plena. De outro, porém, não há dúvida que esse fenômeno guarda suas
raízes na própria exaustão do padrão regulatório típico do direito moderno. 6
Em amplos traços, é possível afirmar que esse processo de esgotamento exibiu seus primeiros
sinais de visibilidade já na segunda metade dos anos setenta, logo após a chamada primeira crise
do petróleo (1973), quando então se procuraria restabelecer o equilíbrio comercial e tarifário nas
economias do Ocidente. 7
Diversos fatores parecem concorrer para a afirmação desse processo de esgotamento. Seguindo o
roteiro de Faria (1998), sintetizo aqueles que creio indispensável ressaltar: 1. a rigidez da
regulação legal, característica da maioria dos países ocidentais e presente, ainda que de modo
concorrente, na regulação jurídica convencional da experiência norte-americana; 2. a morosidade
e a crescente imprevisibilidade da provisão jurisdicional, progressivamente susceptível a decisões
inusitadas sob o manto da observância de "princípios" gerais ou setoriais de hermenêutica jurídica,
do que resultam não raro out-puts geradores de incerteza; 3. a inadequação do perfil
convencional do operador do direito, no mais das vezes incapacitado a compor soluções que
passem ao largo do sistema adjudicatório do aparelho estatal, e prisioneiro da lógica da disputa
judicial veiculada sob a forma do jogo-de-soma-zero, em que, no todo ou em parte, a "parte"
ganha ou perde por força do mecanismo trágico da escolha forense; 4. a inadequação dos
mecanismos contratuais e decisórios convencionais, para dar conta de procedimentos negociais
crescentemente complexos e sofisticados, resultantes de pautas normativas caudatárias de
repertórios alheios ao ordenamento jurídico-positivo do Estado-Nação (Lex Mercatoria, v.g.); e 5.
a expansão de arenas de regulação extra-parlamentares, freqüentemente sediadas no Executivo,
porém caracterizadas por largo espectro de autonomia decisória (haja vista, no Brasil, a
proliferação das assim chamadas "autarquias reguladoras", além do influente papel do Banco
Central) e pela adoção de pautas normativas vazadas sob forma e em nome da adoção de
racionalidades técnicas infensas ao debate político próprio da representação parlamentar

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tradicional.
Todos esses fatores parecem convergir para a formação de uma atmosfera de modificação, ainda
que parcial e concorrente, nos mecanismos convencionais de regulação. Importa realçar,
entretanto, que se por um lado esse esgotamento põe em questão a capacidade regulatória do
Estado-Nação, debilitando os veículos ortodoxos de promoção e de tutela dos direitos humanos de
terceira geração, de outro, à proporção que ganham auditório críticas ao efeito concentrador e
cínico da globalização e da integração regional meramente econômica, permite a expansão de
novas ferramentas de regulação caracterizadas pela plasticidade e pela obediência infensa à
coerção estatal. Tenho presente, para além das normas de proteção mínima em nível
supranacional, a crescente expansão de "códigos do conduta" empresarial, que, para além da
tradicional função antes desempenhada pelos regulamentos de pessoal, tencionam conferir, à
cultura institucional das empresas, parâmetros de "dignidade", agregando-lhes valor ante
consumidores, dealers, entes não-governamentais e agentes públicos. 8
Longe de ser favorável à ampliação e ao crescimento da eficácia dos direitos sociais, o quadro
presente da globalização e da integração regional, entretanto, deixa entreaberta alguma luz pela
via de um pluralismo jurídico renovado e de certa, embora inespecífica, reabilitação da legitimidade
da proteção social por via dos direitos humanos de terceira geração, mesmo que dentro de
parâmetros mais frouxos e de duvidosa eficácia sob o prisma da coerção estatal.
Bibliografia
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TURNER, Bryan. "Outline on theory of citizenship". MOUFE, Chantal (ed.). Dimensions of radical
democracy: pluralism, citizenship, community. New York, US - London, UK : Verso, 1992.

(1) A categorização, como se sabe, está radicada na consagrada tipologia dos direitos humanos
apresentada por T. H. Marshall, tendo como referência a evolução dos parâmetros da cidadania na
Grã-Bretanha do segundo pós-guerra. Para Marshall (1950), os direitos civis, historicamente os
que inauguram a experiência jurídica moderna, seriam aqueles associados às liberdades
fundamentais, entre essas incluindo o direito de propriedade. Uma segunda categoria de direitos
humanos, que adquire ampla visibilidade no aparecimento do argumento democrático da segunda
metade do século XIX, relaciona-se ao que se convencionou chamar de direitos políticos, quais
sejam aqueles referentes ao reconhecimento e à universalização do direito de votar e à livre
escolha dos governantes. Por último, em decorrência da ampliação das políticas distributivas, de
combate à pobreza e de erradicação da miséria absoluta, própria da experiência política britânica
da primeira metade do século XX, Marshall propôs que os "direitos" derivados de tais políticas, os
assim chamados direitos sociais (notadamente direitos trabalhistas e previdenciários), fossem
caracterizados como direitos humanos de terceira geração. A despeito do declínio do itinerário
protecionista a partir dos anos oitenta, dando ensejo ao que se convencionou chamar de crise do
welfare state, é fato que mesmo no presente diversos autores ainda se ocupam de conferir
centralidade à categorização de Marshall, particularmente aqueles que se ocupam de conferir uma
dimensão moral ou ética (e não meramente econômica) ao problema da proteção social. Com
grande ênfase, veja-se, por exemplo, o recente e instigante paper de Joel Handler (1999), bem
como os debatidos trabalhos de Mishra (1999, 29-48) e Turner (1992, 35 et seq.).

(2) Já no início dos anos noventa, Pierre Salama (1996, 9-43), sustentando uma alternativa
"protecionista" de integração à via por ele designada de "integração liberal", apontava para a
necessidade de se comporem agendas de integração num cenário regional marcado por tantas
desigualdades: "El auge tan importante del comercio entre los países que hoy forman el Mercosur
como la aparición de saldos negativos em la balanza comercial de Argentina frente a Brasil habían
ya revelado la dificuldad de armonizar los intereses de unos y otros cuando el tipo de cambio
nominal estabilizado (Argentina) debía hacer frente a un tipo de cambio nominal sometido a fuertes
variaciones (Brasil)" (Salama, 10/11).

(3) Da tensão ou mesmo da trágica relação que intermedeia o apelo universalizador da noção de
direitos humanos e o reconhecimento do direito à diferença e à especificidade cultural - vale dizer,
do multiculturalismo como patrimônio jurídico da humanidade, ocupei-me em Freitas (1997, 4-7).
Àquela altura não tivera ainda tido acesso ao texto de Santos (1997, 79-96). Esse último, como
não surpreende bem mais amplo e elaborado, desenvolve, com a habitual radicalidade
programática do autor, o problema da tensão entre multiculturalismo e universalismo dos direitos
humanos a que me refiro aqui. Para Santos (79), em amplos traços, "pour devenir un vrai projet
émancipateur de portée mondiale, la politique des droits de l'homme doit commencer par
reconnaître lê faux universalisme sous-jacent à leur conception conventionnelle. Ainsi essaie-t-on
de développer une nouvelle notion dês droits de l'homme, plus cosmopolite et multiculturelle,
basée sur une herméneutique diatopique visant à saisir et à relier lês préoccupations
isomorphiques sur la dignité humaine dans lês cultures occidentale, islamique e hindouiste". Para
que se tenha um exemplo das conseqüências práticas dessa tensão, relembro a maneira com que,
há pouco, a imprensa ocidental ocupou-se da "castração" - ou seja, da circuncisão clitoridiana -
própria à tradição islâmica. A antiga tradição, nada obstante o que possa veicular de
idiossincrático pelo olhar ocidental, não vai além de constituir um equivalente islâmico para
hipotética "violência" e/ou "mutilação dessensibilizante" que subjaz à circuncisão da tradição
judaica; essa última, como não admira, vista com grande naturalidade pelo olhar do Ocidente.

(4) Relatando uma das etapas dramáticas do debate em sede de OMC sobre a cláusula social,
Tapiola (1999, 10-11), atual diretor executivo da OIT para Princípios e Direitos Fundamentais,
assinala, referindo-se à conferência de Singapura de 1996, que "a reunião ministerial da WTO teve
duros debates sobre as normas de trabalho e concluiu se tratar de normas do domínio da OIT,
embora reafirmasse seu compromisso com a observância das normas fundamentais de trabalho
universalmente aceitas".

(5) E a clássica figura da luta de classes (na perspectiva marxiana), ou a mais recente teoria dos
jogos, entre outras, poderão parcialmente ajudar a compreender. Não se peque por ingenuidade
ao perder de vista que a retórica solidarista e negocial dos documentos jurídicos supranacionais
constituem, em realidade, o veil of ignorane sob o qual repousam políticas de conteúdo
estratégico e de objetivos profiláticos. É na disputa pelo convencimento da opinião pública
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internacional - vale dizer, na disputa por legitimidade política, além de outros ganhos de ativo
simbólico - antes que nos apelos pontifícios, que esse itinerário regulatório tem suas origens.

(6) "Here are a number of reasons that may help explain why the EU has used a significant amount
of post-regulatory forms of governance: The first reason is the diversity of national social policy
systems. Without flexibility designed into social policy arrangementes. They could not be
successfully adapted to the variety of arrangements at the national level. The corollary to this
reason is that national actors would have opposed EU social policy arrangements they found to
foreign to their traditional patterns of governance. The second reason is there has been
significant opposition by national governments to EU social policy that is too constraining. (...)
The third reason is that policymakers are not entirely sure how to respond to the new issues of
social policy. Post-regulatory forms of governance allow for policymakers to experiment with
alternative responses to problems in the hopes of finding out the best response. The fourth
reason is that different circumstances may demand different solutions to similar social policy
issues. (...) The fifth reason is that even at the national level and in earlier periods, policymakers
have often delegated authority to govern certain policy issues to lower level actors and allowed
for variety in solutions. Industrial relations has traditionally been a field where the state set rules
and granted rights to employers and workers and allowed them to determine arrangements that
best conformed to their individual circumstances. (...) The sixth reason is that post-regulatory
governance may give the appearence of addressing a problem when no actual change to the
current trajectory is occurring or desired. In other words, political actors not wishing to act in
practice but to give the appearance of acting may prefer post-regulatory forms of governance"
(Trubek, Mosher: 2000, 5-6).

(7) Q. v., entre outros, Galanter (1993,103-145); Faria (1998);e Trubek, Mosher, Rothstein
(1999). Para esses últimos, "there has been a change in attitudes toward government and the
rose of government in industrial relations and the economy more generally. (...) 'Neo-liberal' views,
favoring privatization and the free play of market of market forces, have emerged to offer an
attractive alternative to the social democratic and corporatist ideas that flourished in the postwar
era"(1999, 8).

(8) Veja, assim, o trabalho seminal de Arthurs (2000). Em sentido convergente, embora não
focalizando especificamente os "códigos de conduta", ver ainda Posner (2000), Supiot (1999),
Baldwin (1995) e Standing (1999).
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