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‘‘COLUNAS DE SÃO PEDRO’’

A Política Papal na Idade Média Central


Leandro duarte rust

‘‘COLUNAS DE SÃO PEDRO’’


A Política Papal na Idade Média Central
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

R936 Rust, Leandro Duarte.


‘‘Colunas de São Pedro’’: a política papal na Idade Média Central. / Leandro Duarte Rust.
Apresentação de Mário Jorge da Motta Bastos. – São Paulo: Annablume, 2011.

574 p.
ISBN 978-85-391-0314-0

1. História. 2. História Antiga. 3. História Medieval. 4. História da Religião. 5. Igreja Católica.


6. História da Igreja na Idade Média. 7. Papado. 8. Concílios. 9. Reforma Protestante. I. Título.
II. A política papal na Idade Média Central. III. Bastos, Mário Jorge da Motta.

CDU 93
CDD 901

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

‘‘COLUNAS DE SÃO PEDRO’’: A POLÍTICA PAPAL NA IDADE MÉDIA CENTRAL

Projeto e Produção
Coletivo Gráfico Annablume

Capa
Carlos Clémen

Conselho Editorial
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Alessio Ferrara

1ª edição: outubro de 2011

© Leandro Duarte Rust

ANNABLUME editora . comunicação


Rua M.M.D.C., 217 . Butantã
05510-021. São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-1754
www.annablume.com.br
Para Alice, cujo amor fez meu
coração aéreo aterrissar e minha
razão finalmente alçar voos.
Agradecimentos

Este livro resulta de 7 anos ininterruptos de pesquisas, realizadas na


Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal de Mato Grosso.
Foram anos de trabalho paciente e exaustivo, conduzido numa época em que
nossas universidades não resistiram ao imperativo de uma produção intelectu-
al aqui-e-agora. Em primeiro lugar devo agradecer àqueles que tornaram essa
“exceção” possível.
À UFF e ao CNPq, pelo imprescindível suporte financeiro garantido com
a bolsa de doutoramento. Ao mestre Mário Jorge da Motta Basto: sua compre-
ensão, sua inquietude crítica e seus conhecimentos foram vitais para manter
em curso a condução das pesquisas, que carregam meu aprendizado do va-
lor vital de um compromisso intelectual genuíno. Aos professores que contri-
buíram com suas leituras, críticas e diálogo franco: Ciro Flamarion Santana
Cardoso, Maria Filomena Coelho, José Rivair Macedo, Andreia Cristina Lopes
Frazão da Silva.
Aos colegas de UFMT, cuja amizade e convívio impediram que a rotina
acadêmica sufocasse o tempo necessário a uma pesquisa que não caberia no
doutorado e me ajudaram a observá-la por novos ângulos: Cláudia Regina
Bovo, Marcus Silva da Cruz, Cândido Moreira Rodrigues, Vitale Joanoni Neto,
Leonice Aparecida de Fátima Alves.
Aos amigos que fazem parte, de modo especial, da história de minhas
ideias e, por conseguinte, da história deste livro: Carlos Leonardo Kelmer Ma-
thias, Bruno Gonçalves Álvaro, Marcelo Pereira Lima, Lia Bott de Aquino, Mar-
cos Sorrilha.
Passo agora a agradecimentos não menos importantes: àqueles que me
mantiveram preso ao chão da vida e me salvaram de um confinamento em pa-
péis: meus pais Sidônio e Marta, responsáveis por tudo que sou; Lenon, meu
irmão e parceiro, até nos jogos do Vascão; aos primos Nicole, Rafael e Demós-
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tenes; aos queridos tios Tadeu e Cida. Aos amigos que impediram minha vida
de desbotar, mesmo quando ela cismou em se tornar “acadêmica”: Paty, Flavi-
nha, Guigui, Leandro, Ester, Raimundo, Daniel, Natália, Cássia, Dona Rute. Ao
tio Robson, por todo apoio, sobretudo, na defesa pública da primeira versão
deste trabalho. Ao Henrique e ao Seu Felisberto, sem os quais este livro não
teria deixado de ser uma tese.
Por fim, por mais que tente, não encontrarei palavras suficientes para
agradecer à minha esposa, Alice. Todo o tempo que devotei às leituras e pes-
quisas foi vivido em meio a um recente casamento. Os anos que insistente-
mente converti em excentricidades e em longos mergulhos sobre fontes, livros
e tabelas, ela, como a mais espetacular alquimista, transformou em provas de
respeito, paciência, dedicação e amor. Faço deste livro o registro de uma imen-
sa esperança: que um dia eu possa retribuir tal prova de companheirismo.
Preciso forcejar incessantemente
por restituir a diferença, por não
esmagar, entre o meu objeto e eu,
o milênio que dele me separa,
essa espessura de tempo que, sou
obrigado a admiti-lo, recobre de
insondável opacidade quase tudo
o que eu gostaria de ver.
Georges Duby

Para o historiador, tudo começa e


tudo acaba pelo tempo.
Fernand Braudel
Sumário

Apresentação, por Mário Jorge da Motta Bastos ..........................................19

Introdução ...................................................................................................23

Parte 1
A Ascensão do Papado Suprarregional

Capítulo 1: Diálogos historiográficos ...........................................................33


1.1. A história institucional do papado centro-medieval ..........................33
1.2. Os medievalistas e o estudo das representações do tempo ...............53

Capítulo 2: Esquecer a Lei, Recompor a Justiça: tempo e poder ..................79


2.1. O retorno do sagrado........................................................................79
2.2. As representações ou a máscara do tempo .......................................92
2.3. O cânone ao abrigo da voz .............................................................103
2.4. Um papado com vontade de ferro? .................................................116
2.5. O direito gravado no presente ........................................................132

Capítulo 3: O Papado Além de Roma e da Reforma 1 (1046-1073) ...........143


3.1. Todos os rostos, um mesmo reflexo ................................................143
3.2. Os fundamentos: uma igreja fora de seus domínios .......................151
3.3. Tomar as rédeas da política ............................................................158
3.4. Uma igreja desencarnada ...............................................................170
3.5. Contrapesos .....................................................................................182
Capítulo 4: O Papado Além de Roma e da Reforma 2 (1073-1088) ...........189
4.1. A organização: a dilatação da esfera decisória papal ......................189
4.2. “Santo Satã” ...................................................................................197
4.3. Os legados, estes criadores de papas ..............................................208
4.4. Pensar o Papado sem a “Reforma” ..................................................224

Capítulo 5: A Lâmina do tempo (1088-1118) ............................................235


5.1. O tempo transborda os calendários ................................................235
5.2. A espada de Dâmocles ....................................................................254
5.3. Fraqueza do papa, fortaleza do Papado ..........................................268
5.4. Ubi Papa, ibi Roma .........................................................................278

Parte 2
A Institucionalidade Papal e a Secularização do Tempo

Capítulo 6: Expulsus Urbe, ab Orbe Suscipitur (1118-1143) .....................301


6.1. Recrutando o diabo ........................................................................301
6.2. O cisma de 1130 .............................................................................316
6.3. O triunvirato legatino .....................................................................326
6.4. O papado contra Roma ...................................................................342
6.5. A anatomia da autoridade papal ou de volta ao diabo....................359

Capítulo 7: Restaurar a Família da São Pedro (1143-1179) .......................371


7.1. Temei o demônio, honrai o papa ....................................................371
7.2. S. P. Q. R.: A “República Romana” contra o Papado ........................377
7.3. Um pastor de lobos .........................................................................389
7.4. Todos os caminhos levam a Roma ..................................................405
7.5. A captura do tempo ........................................................................426

Capítulo 8: Manipular o Tempo, Governar a Igreja (1179-1215) ...............441


8.1. O despojamento da temporalidade .................................................441
8.2. Revendo uma paternidade papal ....................................................464
8.3. Olhos, boca, ouvidos e sangue: o corpo sob regência do tempo .....482
8.4. O tempo, coluna de São Pedro........................................................498

Conclusão ou Considerações de Conjunto ..................................................515

Bibliografia ................................................................................................525
Lista de abreviações

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Epp. sel. Epistolae selectae
Fontes iuris Fontes iuris Germanici antiqui in usum scholarum se-
paratim editi
Ldl Libelli de lite imperatorum et pontificum
LL Leges (in Folio)
SS Scriptores (in Folio)
SS rer. Germ Scriptores rerum Germanicarum in usum scholarum
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Apresentação

A História feita pelos historiadores é perenemente reinventada! E, ainda


que seja essa uma condição primária da existência deste tão antigo ofício, esse
processo constante de reinvenção tem resultado, nessa atônita virada de mi-
lênio, em modismos vários que escamoteiam muito mal as suas efetivas con-
dições de farsa, quando não de tragédia, se me permitem a paráfrase. Numa
estranha época em que os historiadores orgulham-se de esgrimir novíssimos e
efêmeros temas e objetos de análise, de preferência circunscritos em recortes
exíguos que quase nos faz crer que seja o microscópio o instrumento de base
do seu laboratório – viveremos, já, sob o paradigma da nanoistória? –, Lean-
dro Duarte Rust brinda-nos com uma dose maciça de transgressão que deve
ser celebrada.
Guardadas as proporções devidas, assim como o grande historiador Ge-
orges Duby desafiou – não uma, mas ao menos duas vezes – a ortodoxia rei-
nante desde a vitória annaliste nos combates pela História, reabilitando o fato
e a trajetória individual de um grande homem como objetos pertinentes de
estudo, não foi menor o desafio assumido por nosso autor na obra que agora
temos em mãos, ao restabelecer, na base de um vigoroso redimensionamento,
não apenas a clássica temática da Reforma Gregoriana como a tradicional,
centenária e apologética vertente historiográfica da História das Instituições.
Ora, a iniciativa deve suscitar tanto mais louvores ao considerarmos que seu
âmbito original de realização consistiu numa tese de doutorado, contexto no
qual as pressões institucionais, o ranço corporativo e os salamaleques de uma
verdadeira Sociedade de Cortes incutem nos jovens pesquisadores o habitus
nefasto da humildade subserviente, da respeitosa passividade, da burocrática
falta de ousadia e... nenhuma paixão!
O tema primordial do livro consiste numa história institucional do papa-
do entre os séculos XI e XIII. Assim estabelecida em sua aparente simplicidade,
20 coLunas de são pedro

a obra em questão poderia parecer pretender remeter os seus leitores ao oito-


centos e à culminância de um longo processo de sinonímia plena entre a Histó-
ria, a Política e os discursos oficiais do poder. Ledo e absoluto engano! Seu au-
tor restabelece uma “temática de outrora” em bases conceituais radicalmente
outras, constituindo a História Institucional como uma análise da organização
e do exercício coletivo de um poder decisório, nesse caso aquele associado aos
pontífices no período compreendido entre os anos de 1046 e 1215.
No seu esforço de revitalização da História Institucional do Papado, Lean-
dro Rust parece ter vislumbrado, em primeiro lugar, o seu método e, a partir dele,
todo um percurso de pesquisa. Sua trilha em direção a uma visão de conjunto –
sim, a perspectiva é, aqui, a da síntese histórica! – manteve o foco ajustado sobre
as assembleias papais, fóruns de manifestação por excelência dos diversos seg-
mentos sociais que compunham a ecclesia do período. Espaço ao qual me referi,
em outro lugar, como âmbito coletivo das iniciativas de atenuação do potencial
de entropia inserto nas células essenciais daquela instituição, os episcopados, era
nos sínodos e nos concílios que o conjunto constitutivo do papado lidava com
as complexas e tensas relações que materializavam o cotidiano da existência da
Igreja em seus diversos âmbitos regionais de realização. Assim, a História Insti-
tucional que ganha corpo nas páginas deste livro em nada se assemelha à fria e
insípida narrativa apologética do poder que caracterizara o gênero, ademais em
grau elevado reificadora das instituições que descrevia.
O papado constitui, aqui, um conjunto vivo de centros decisórios diver-
sos e articulados, consubstanciados em assembleias pulsantes nas quais a po-
lítica se realiza no jogo das relações de poder, de influências, nas negociações
e afirmação de hegemonias oscilantes típicas de uma História plena de vida. O
Papado, e a Igreja, poder-se-ia dizer, muito mais do que uma esfera de poder
e de existência atomizada constituiu, essa obra nos ensina, um conjunto com-
plexo e contraditório de relações sociais que não pode e não deve ser isolado,
em sua análise e caracterização, da sociedade englobante em cujos fluxos his-
tóricos estavam imersos e situados.
Não se deve estranhar, portanto, que a exegese do “papado em ação” te-
nha revelado, ao autor, nada menos do que a própria matéria-prima da História
em operação: o tempo, ou melhor, um conjunto de atitudes diante do mesmo que
uniam, costurando-o, o conjunto documental compulsado no livro. As formas de
percepção do tempo – da existência e da finitude – mostraram-se intimamente
articuladas aos modos políticos de pensar e agir, constituindo elemento-chave
da estruturação institucional do poder pontifício desvendado, em suas múltiplas
manifestações, nos primeiros capítulos do livro. Apoiado na fenomenologia de
Maurice Merleau-Ponty e na teoria hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, o
autor confere um vigoroso conteúdo à premissa de que a vida em sociedade é
Leandro duarte rust 21

constituída por uma vinculação dialética entre as percepções comuns do tempo


e as experiências a respeito do poder e da autoridade – experiências que emer-
gem no bojo daquilo que costuma ser considerado “institucional”.
Desta perspectiva primordial inovadora, deste “exercício de base” de-
corre uma segunda, e a meu juízo ainda maior contribuição do autor, nesse
caso à História Medieval, na medida em que restabelece de forma muito mais
equilibrada e plena a abordagem de um dos temas mais caros aos especialistas
do período em questão. Superadas, na partida, as visões predominantemente
apriorísticas e anacrônicas de uma instituição que teria estado à frente de seu
tempo – do Papado medieval regido por uma espécie de racionalidade estatal
moderna avant la lettre – Leandro Rust promove uma profunda revisão crítica
do suposto “programa ou projeto reformador” levado a cabo pelo Papado du-
rante a Idade Média Central, mais conhecido do público leitor pelo pomposo
e vigoroso título de Reforma Gregoriana.
Contrariamente à interpretação historiográfica dominante, que se refere
a um projeto pontifício de supremacia social claramente formulado desde os
primórdios do século XI, perene, reta e inalteradamente perseguido e praticado
por uma sucessão de papas que pontificaram até o século XIII, a obra que temos
em mãos nos dá a conhecer um processo muito mais complexo de alçamento
político da cúpula da Igreja Romana. Muito menos retilíneo e uniforme em seu
curso e constituição, os agentes da promoção do papado agiam e reagiam em
função dos enfrentamentos e conflitos vários que opunham as elites regionais
da Cristandade, celebrando alianças, promovendo acordos, cedendo a pressões
e demandas, manifestações tais que caracterizam uma estrutura de poder de
tipo senhorial muito mais compatível com a lógica das relações sociais do perí-
odo em questão. Foram estes os aspectos constitutivos da institucionalidade do
papado medieval, argutamente abordados na segunda parte da obra.
Assim, por exemplo, quando a intervenção imperial na cúpula da Igreja
impôs, em meados do século XI, a ruptura da duradoura simbiose entre esta
e a aristocracia romana, o papado se viu forçado a ampliar os limites estreitos
da contiguidade espacial que compunha a Cúria e buscar além-Alpes os seus
integrantes e colaboradores. Ao fazê-lo, o Papado foi agente de um “descentra-
mento”, de uma projeção desde o seu próprio cerne em direção e em relação
com os poderes locais, o que se coaduna muito mal com a célebre referência
da vigorosa centralização que teria caracterizado a “Monarquia Pontifícia”.
Ora, a ascensão e o exercício da superioridade hierárquica da autoridade apos-
tólica decorreram, no contexto em questão, da sua condição de promotora
ativa de uma pluralidade de núcleos locais e regionais de poder mantidos sob
constante relação. Essencialmente medieval, pois, em sua caracterização, o
papado medieval! E poderia ser de outra forma?
22 coLunas de são pedro

Haveria outras, diversas e meritórias referências a serem celebradas nes-


ta obra que em boa hora vem à luz do dia, dentre elas a plena observância de
uma exigência primária em sua condição de fundadora da identidade coletiva
dos membros da comunidade de Clio – o rigor no trato com as fontes – matéria
em relação ao qual o seu autor não fez a mínima concessão, por vezes legíti-
ma, à sua (nossa) condição de medievalistas d’Além-Mar. Satisfeitas, também
plenamente, as exigências da erudição, opto por concluir esta apresentação
celebrando o belo traçado de sua pena, com o qual nos brindou o nosso autor
e que não constitui valor menor em sua obra. Se a História não logrou realizar
ainda – e talvez nunca o faça – o sonho blochiano da constituição de seu voca-
bulário e discurso próprios, ela parece algumas vezes plenamente capacitada a
efetivar as proposições barthesianas do saber com sabor! Como diria o mesmo
Georges Duby evocado na partida, uma boa História é, necessariamente, uma
História bem elaborada, bem comunicada e bem redigida. Poder-se-á evocar,
aqui, a mineirice estilística do autor, responsabilizando-a pelo trato íntimo
com a língua e pelos afagos vocabulares que não deixam pesar no leitor um
tema de considerável tonelagem? O que sei, e ouso afirmar, por fim, é que
Leandro Duarte Rust superou tradições e desafios vários com sua obra, dentre
eles até mesmo uma antiga profecia, o vaticínio pronunciado outrora de que
as universidades brasileiras jamais formariam um medievalista. Basta, ao lei-
tor mobilizado, virar as páginas seguintes para constatar que os historiadores
não são, definitivamente, bons profetas!

Mário Jorge da Motta Bastos


Universidade Federal Fluminense
Introdução

Se quisermos reencontrar o pensamen-


to, e se quisermos ser fiéis a ele, só nos
resta um caminho: pensar de novo.
Maurice Merleau-Ponty, 1960

Entre 1050 e 1200, o Cristianismo testemunhou o surgimento de um


personagem sem precedentes. Pouco a pouco as décadas se acumularam, reve-
lando os traços de uma inédita figura clerical. Foi então que o bispo de Roma
se desgarrou da multidão de poderes cristãos e ultrapassou a condição de in-
tegrante da Igreja: não mais meramente dentro dela, mas acima, regendo-a do
alto. Sua autoridade se fez diferenciada, sublime; destacou-se da pluralidade
de vozes eclesiásticas na qual esteve mergulhada ainda há pouco. Sua ances-
tral condição de primaz inflou; cresceu até se transformar numa nova forma
de majestade. Sua superioridade moral foi ampliada até estourar os limites
conhecidos e se converter em algo muito maior: a razão para um elevado
controle sobre os assuntos clericais, onde e quando ocorressem. Reivindicando
privilégios sacrossantos, ele assegurou a posição de “supremo governante” das
igrejas cristãs, cuja autonomia e riquezas passou a sugar com apetite centrali-
zador. Ao longo dos séculos XI e XII, o bispo de Roma se converteu em sumo
pontífice e realizou uma nova e triunfal entrada no cenário político ocidental
ao apresentar a si mesmo como senhor de uma “monarquia papal”.
As linhas acima sintetizam uma das mais conhecidas interpretações
sobre os rumos históricos ocidentais. Em essência, ela nos faz ver a Idade
Média como palco de mudanças que fizeram da “Igreja cristã” a “Igreja do
Papa”. Essa visão reina soberana ainda nos dias de hoje. Pois bem, caro leitor,
rediscuti-la é a meta deste livro. Portanto, das páginas a seguir deve-se esperar
24 coLunas de são pedro

uma releitura da política papal entre os séculos XI e XIII. Todos os seus capí-
tulos estão unidos pelo propósito de oferecer um estudo crítico das alterações
institucionais sofridas pelo poder pontifício no período da ascensão dos bispos
de Roma.
Todavia, a busca por esse fim revelou duros obstáculos. Não nos referi-
mos apenas à árdua tarefa que é questionar ideias consideradas óbvias e que,
arraigadas em nossa visão de mundo, tornam-se duras, rígidas e agraciadas
com um tipo inconveniente de imunidade crítica. Durante nossas investiga-
ções, volta e meia encalhamos numa outra dificuldade, esbarramos em uma
embaraçosa descoberta: em pouco tempo percebemos que um conceito defini-
dor de nosso tema era, na realidade, uma fonte de desentendimentos. Trata-se
do termo “instituição”.
Todo historiador já ouviu, ao menos uma vez, que os conceitos são ins-
trumentos de navegação para a pesquisa. Como a agulha da bússola, eles de-
vem apontar para a direção a ser seguida na nebulosa paisagem do passado.
No nosso caso, o conceito imediato, aquele que se apresentava como a própria
pedra de fundação do tema, revelou-se um fator de desorientação. O nome
“instituição” é lugar-comum nas Ciências Humanas, uma ideia muitas vezes
rasa, mal-definida, da qual se exige pouco. Ele usualmente não ultrapassa o
limite de acepções vagas e elusivas, mas admitidas a contento pelos estudio-
sos, que o empregam para nomear praticamente tudo: “organizações”, “me-
canismos sociais”, “conjuntos de regras coletivas”. Observe-se esta definição
exemplar: “uma instituição é um quadro de formas típicas de realização de uma
unidade social, formas que se configuram historicamente e em larga medida per-
manecem iguais” (KEHL, 1997: 350).
Perdíamos o rumo. O que não estaria contido em uma conceituação
como esta? Os aspectos mais díspares da vida em sociedade pareciam caber
neste único nome, todos reunidos dentro do mesmo rótulo: edifícios, grupos
sociais, comportamentos, linguagens, ideias, lugares, simplesmente tudo esta-
va apto a ser chamado de “institucional”. Escrever uma história das institui-
ções papais parecia tarefa impossível, pois significava enfrentar a exigência
de pensar em todas as direções, encontrar “todas” as ramificações históricas
do poder pontifício. Desorientados, sentíamo-nos um pesquisador cujos olhos
perscrutavam a esmo, espiando por todas as partes, por não ter algo palpável
em que mirar.
Tal situação fez com que um de nossos primeiros movimentos de refle-
xão não fosse o de uma opção teórica, mas o de uma recusa deste “estado da
arte” que nos reportava para um conceito vazio, cuja abrangência universal es-
condia sua forma oca e incerta. Para não sucumbir ao desafio, foi preciso lidar
com um panorama inesperado: nossa pesquisa deveria transcorrer sem que
Leandro duarte rust 25

pudéssemos localizar previamente uma definição satisfatória para o objeto


de estudos selecionado. Deveríamos recuar. Retroceder. Refazer o caminho e
pensar de novo sem a segurança de um facho de luz conceitual que iluminasse
as “instituições papais medievais”.
Compreendida a tarefa e assumidos os riscos, era necessário, no en-
tanto, traçar uma direção para nossa procura, um rumo no qual pudéssemos
dar os primeiros passos de busca. À medida que nossas leituras avançaram,
foi possível discernir um. Escavando as definições generalistas que se multi-
plicavam sob nossos olhos, descobrimos uma raiz comum; uma mesma base
parecia sustentar as diversas definições oferecidas para o “institucional”: todas
nomeiam a organização e o exercício coletivo de um poder decisório. Eis aí o
nosso rumo. Já que definir “instituições” parecia ser um problema bibliográ-
fico inesgotável, adotamos como norte aquilo que surgia em nossas leituras
como a margem mínima de consenso existente entre os estudiosos. Em outras
palavras, o alvo de nossas pesquisas passou a ser a elaboração de um estudo
crítico sobre o poder decisório associado aos papas durante o período com-
preendido entre as décadas de 1040 e 1210. Nisto consiste o que designamos
“história institucional do papado medieval”. Aí depositamos a razão de nossos
passos: seguindo essa coordenada, o que surgirá pelo caminho como “institui-
ções pontifícias”? Se as páginas a seguir puderem explorar algumas possibili-
dades para o estudo desta indagação e estender seu potencial crítico, este livro
terá cumprido seu propósito.
Trata-se, certamente, da abertura de vasto escopo investigativo. Afinal,
quantas não foram as formas de exercer o poder papal? Então, por onde co-
meçar? Como avançar pela pesquisa com coesão? Como desenvolvê-la sem
descentrá-la em uma miríade de variáveis que só poderíamos sobrevoar com
superficialidade? Para todas estas perguntas, a mesma resposta. O fio condu-
tor de nossos exames, aquele que permitirá dar a partida em nossas reflexões
e conduzi-las até um balanço de conjunto, será manter o foco sobre os sínodos
e concílios papais. Tais nomes designam as assembleias eclesiásticas atreladas
à autoridade dos papas. De tempos em tempos, clérigos, religiosos e laicos
afluíam para estas reuniões, onde as diversas relações de poder existentes na
Cristandade travavam contatos diretos (BOTTE, 1960: 1-146). Seguiremos as
trilhas documentais deixadas pelos plenários reunidos por pontífices, cardeais
e legados apostólicos desde meados do século XI até o início do XIII.
Nossa atenção convergirá para as dinâmicas das relações decisórias
transcorridas em tais assembleias. A análise de seu planejamento, desenrolar
e das medidas aí decretadas será suficiente para traçar um perfil da estrutu-
ração e do exercício da política pontifícia. Afinal, nos sínodos e concílios, os
integrantes do papado enfrentavam a complexidade e as tensões das correla-
26 coLunas de são pedro

ções de forças vigentes em diferentes âmbitos da civilização medieval. Ali eles


ficavam face a face com os variados interesses, pressões sociais e contradições
políticas existentes nos numerosos conjuntos eclesiásticos cristãos. No decor-
rer das sessões conciliares, os homens encarregados de agir em nome do trono
de Pedro deveriam oferecer respostas efetivas à realidade política medieval: o
poder em âmbito local.
Eles eram exigidos a atuar de imediato, no calor de embates, sob o peso
sufocante das cobranças e das vozes ruidosas dos poderosos regionais. Cada
novo plenário abria um teatro de operações onde eram travados contatos fron-
tais, evidenciando o movimento de triunfos e falhas, limites e condições que
selaram a constituição política do papado. Nas atas e nos cânones das assem-
bleias eclesiásticas estão depositadas reminiscências de ações vividas sob uma
incidência imediata de obstáculos e negociações, lutas e alianças, vitórias e
derrotas que engolfavam os homens do papado. A documentação conciliar nos
reporta a tramas de eventos que atingiam diretamente a política romana. Atra-
vés dela é possível observar um pouco mais dos meios disponíveis ao papado
para realizar as aspirações de seus integrantes e assim palmilhar as distâncias
que separavam os cálculos do poder e a obra política alcançada. Noutras pa-
lavras, examinar as realizações conciliares é estudar as oportunidades em que
a capacidade de decidir era desafiada a se converter em voz de comando real.
Portanto, estes acervos privilegiados da efetividade da política papal suprem
adequadamente nossa pesquisa (Ver: CUMING & BAKER, 1971; SOMERVILLE,
1990; KAY, 1997).
Tínhamos a meta: compreender como se deu a organização e o exercício
do poder decisório pontifício nos séculos XI e XII. Tínhamos um percurso tra-
çado: o estudo crítico dos sínodos e concílios papais ocorridos nesse período.
Tínhamos um chão sob os pés: o corpus documental constituído. Era chegado
o momento de nos movermos e caminhar. O primeiro passo consistiu em tra-
çar um panorama da compreensão dos historiadores acerca das “instituições
papais” na Idade Média Central. Mas, enquanto a bibliografia examinada nos
fazia navegar pelas águas agitadas de conceituações vagas, foi o exame docu-
mental que nos trouxe uma terra firme na qual aportar.
As diversas fontes relativas aos sínodos e concílios pontifícios – decre-
tos, crônicas, epístolas, opúsculos – apresentaram inusitado elo comum. Elas
pareciam estar unidas por algo inesperado, quiçá surpreendente: as mesmas
atitudes diante do tempo. Mas não apenas isso. Rapidamente, o desenrolar
da pesquisa passou a sugerir outra conexão: nossos olhos foram tomados pela
forte impressão de que esta vivência comum do tempo influenciava as formas
com que os integrantes do papado lidavam com as relações de poder. As ma-
neiras de perceber o tempo, a duração da existência ou a finitude, pareciam ter
Leandro duarte rust 27

relação direta com os modos de pensar e agir politicamente. Isto é, condutas


de grande relevância institucional despontavam como comportamentos intrin-
secamente temporais: a inclinação à obediência ou à resistência, por exemplo,
parecia estar sob a influência das maneiras de experimentar a mudança e de
tracejar a linha que separava o passado e o presente. Os atos de poder eram,
igualmente, posturas assumidas perante o porvir, a transitoriedade, a morte.
A política seguia o ritmo da vivência do tempo e vice-versa.
Portanto, nos deparamos com os fios de uma rede de causalidades
envolvendo a política e o tempo. Decidimos explorá-la. Mas tal decisão trou-
xe uma exigência. Além de rever o entendimento geral dos historiadores
acerca do conceito de “instituições papais”, nossa pesquisa passava agora a
solicitar outra revisão bibliográfica: precisávamos conhecer como são apre-
sentadas as experiências medievais de tempo. Afinal, elas pareciam manter
uma espécie de simbiose com os modos de estruturação institucional do
poder. Era preciso estar familiarizado com as interpretações existentes para
ambos. Para isso foi reservado o primeiro capítulo deste livro: Diálogos His-
toriográficos.
O capítulo seguinte, Esquecer a Lei, Recompor a Justiça, aborda um tema
dotado de notável prestígio, uma nobre estirpe do medievalismo: as carac-
terísticas da ação legal do papado. Nossas reflexões não nos reportavam à
imagem, amplamente veiculada, dos integrantes do poder pontifício agindo
sob cerrada obediência a regras textuais e coleções canônicas. Nos inquietou
ao constatar como é frágil o respaldo documental para a usual descrição da
Sé Romana como um espaço social diferenciado no medievo, burocratizado e
dominado por uma lógica de jurista. As razões por trás da persistência destas
ideias nos intrigavam. Como tais premissas continuavam a entremear até os
estudos mais críticos? Por um bom tempo as repostas nos escaparam. Até per-
cebermos que uma delas não estava longe. Esteve sempre bem ali, debaixo dos
olhos, e pode ser assim sintetizada: muitos destes postulados teóricos vestiam
outro traje conceitual. Eles estavam, por assim dizer, disfarçados, camuflados
como ideia óbvia: a intocável noção de “Reforma”.
Embora associado à época Lutero, esse termo é familiar a quem se de-
bruça sobre o medievo. A expressão “papado reformador” frequentemente
evoca na mente do historiador a Sé Romana governada por Gregório VII ou
Inocêncio III. Não seria imprudência afirmar que, para muitos especialistas,
o papado dos séculos XI e XII é inconcebível sem falar em “Reformas”, como
a “Reforma Gregoriana”. Todavia, nossas reflexões colidiam cada vez mais
intensamente com tal visão. Nos vimos insistentemente solicitados a pensar
para além dela, a superá-la. Eis o tema de nosso terceiro e quarto capítulos, O
Papado Além de Roma e da Reforma 1 e 2.
28 coLunas de são pedro

A crítica da “dimensão reformadora” do papado permeia todo restante


do livro. Ela prossegue no quarto e no quinto capítulos: A Lâmina do Tempo
e Urbe Expulsus, Ab Orbe Suscipitur, respectivamente. Dois momentos politi-
camente decisivos são destacados. Duas crises: (1) a ameaça de colapso da
legitimidade que atingiu a Cúria durante o governo de Pascoal II; e (2) o
desmembramento da mesma cúpula em dois partidos rivais por ocasião da
eleição papal de fevereiro de 1130, divisão mais conhecida como “Cisma de
Anacleto”. Os argumentos aí desenvolvidos buscam demonstrar que a conduta
política era orientada e re-criada pelas vivências de tempo registradas pelos
documentos conciliares. Esta relação abre e fecha cada capítulo.
Profundamente alterada em meados do século XI, a política papal so-
freu grandes impactos com o desfecho do Cisma Anacletiano. A ruptura da
unidade da cúpula romana custou o enfraquecimento do domínio dos papas
sobre a península italiana. Sua já limitada inserção local sofreu pesados reve-
ses. Algumas das iniciativas papais de superação desta dura realidade ocor-
reram nos concílios. O estudo destas relações se estende pelo sexto e sétimo
capítulos, intitulados Restaurar a Família de São Pedro e Manipular o Tempo,
Governar a Igreja.
Nossas reflexões seguem no encalço das assembleias papais até 1215,
quando foi realizado o assim chamado “IV Concílio de Latrão”, marco crono-
lógico no qual este livro se detém. Os decretos e registros das sessões desse
que foi o maior concílio então reunido pelo papado selaram o longo processo
de sua adequação à realidade política instaurada no centro peninsular em
meados da década de 1040, momento em que uma “vasta crise” (CAPITANI,
1966: 29) afetou a inserção social do bispado de Roma, lançando-o a desafios
e relações de poder até então inéditas.
Talvez o leitor estranhe a ausência de um capítulo reservado para deba-
tes teóricos e conceituais. Tal capítulo, de fato, não existe neste livro. Se não
o redigimos, foi porque as discussões deste tipo estão por toda obra, desen-
volvidas à medida que se fizeram presentes na condução de nossa pesquisa.
Ao invés de deixá-las para trás, em páginas introdutórias, seguimos com os
esforços de diálogo teórico por todo estudo. Tentamos explicitar as marcas
de sua presença ativa em nossas ideias, indicar os momentos-chave de sua
ação refratora sobre nosso olhar. Isto foi feito para que você, leitor, possa nos
acompanhar lado a lado, seguir de perto nossos movimentos, vasculhar nossas
escolhas e corrigir os erros do itinerário desta busca por uma história institu-
cional do papado medieval.

* * * * * *
Leandro duarte rust 29

Antes de passarmos ao texto, é preciso um esclarecimento: ao longo


deste livro, nos referimos a artigos científicos, livros e fontes documentais
apresentando os títulos de cada um sempre no idioma da edição a que tivemos
acesso. Tal escolha decorreu do intuito de transmitir a diversidade do univer-
so bibliográfico implicado em nossas pesquisas. Todavia, todas as citações e
transcrições do conteúdo destes materiais foram traduzidas para o português;
sobretudo, as fontes documentais, cujo texto latino medieval está reproduzido
nas notas de referência. Esperamos ter proporcionado ao leitor um estudo
acessível, sem abrir mão do rigor e da transparência no trato documental.
Todas as traduções são de nossa responsabilidade.
PARTE I

A ASCENSÃO DO
PAPADO SUPRARREGIONAL
Capítulo 1

Diálogos historiográficos

Que os futuros historiadores possam


ser capazes de ler os segredos de nos-
sas próprias percepções e observar
nossas interpretações do passado.
Aron Gurevitch, 1988.

1.1. A História Institucional do papado centro-medieval

Por maior que fosse o atrevimento de sua formulação prosaica, foi difícil
encontrar uma definição mais apropriada do que esta: o termo “instituição”
tornou-se um cheque conceitual em branco que cada historiador resgata na
espécie que lhe convém, segundo a teoria que melhor lhe apraz. Aberto e flui-
do, este vocábulo reaparece em um planetário de abordagens e perspectivas de
pesquisa. Preenchido com os mais diversos aspectos da vida social, ele designa
os mais díspares objetos: de edifícios a preceitos comportamentais. Mas, o que
permite desdobrar a aplicação do termo “instituição” não é uma robusta abran-
gência teórica, e sim uma indisfarçável frouxidão conceitual. Levado de roldão
pelo desgaste da história política, seu emprego estancou em acepções genera-
lizantes. E quanto mais gerais foram suas definições, mais vazias se tornaram.

“Um Espírito Coagulado”

Já em 1903, a sociologia dava o tom de uma depreciação intelectual


que adentraria o século XX: “a história política retarda a aceitação da atitude
científica, dificultando a eliminação metódica das influências contingentes, o es-
tabelecimento de regularidades e de leis” (SIMIAND, 2003: 111-112). A crítica
de François Simiand deslizava para a ideia de que as estruturas profundas e
34 coLunas de são pedro

duradouras que modelam a vida em sociedade antecedem e orientam tudo


o que é político e institucional. As instituições, portanto, não passariam de
invólucro daquelas, casulos das questões que efetivamente ditam os rumos da
vida social.
A crítica foi incorporada e seu tom austero entabulado nas décadas se-
guintes até a exaustão. Para Marc Bloch (2001: 45) a história focada no co-
nhecimento do homo politicus era uma forma de “infligir à humanidade uma
estranha mutilação”. Aos olhos de Lucien Febvre (1989: 107-113), por se ba-
searem em “critérios simplistas e anedóticos” de fontes, agentes históricos, du-
rações e recortes temáticos, os estudos do passado que punham em evidência
o institucional não mereciam outra avaliação a não ser esta: “Não, isto não é
história” (Ver ainda: HUPPERT, 1982: 510-513). Ainda em meio aos anos 30,
Benedetto Croce (2006: 122-123) assegurou que esta forma de consciência
investigativa, até então predominante entre os historiadores, foi, desde sua
gênese em plena Restauração Francesa, um desapontamento sem fim: “histo-
riadores tendenciosos (...) e proposições provisórias e tateantes que, de seu come-
ço perplexo e cauteloso, fizeram uma nova abordagem”.
Biográfica. Factual. Linear. Descritiva. Narrativa. Monumentalista. A
cada década engrossava o coro dos que denunciavam a história do político e
das instituições como um viés de estudos grosseiro, tolhido por irrecuperáveis
deficiências. Esta modalidade do saber histórico era identificada como o opos-
to das metas reivindicadas pelas ciências sociais: as totalidades históricas, as
regularidades das condutas coletivas, as multiplicidades dos ritmos sociais, a
profundidade das estruturas cotidianas. Eis porque, dos idos de 1870, década
em que Friderich Nietzsche (2005: 88) fez ressoar a advertência de que “a his-
tória monumental nos engana”, até meados da década de 1940, quando Robin
G. Collingwood (1952: 264) arrematou a crítica contra os “emaranhados de
falácia positivista”, inúmeros autores confluíram para um mesmo propósito:
selar como paradigma defasado e esgotado esta escrita da história que culmi-
nava no exame do institucional.
Era necessário manter distância da “historiografia do século XIX”, o que
implicava em combatê-la e desacreditá-la por inteiro, rejeitando até o menor
de seus conceitos. A crescente receptividade à reputação da história das insti-
tuições como um saber deficiente e obsoleto sacramentava a assertiva desferida
em 1934 por Johan Huizinga (1934: 18) como pergunta meramente retórica:
“não era que o tempo iria exigir um destronamento da antiga, tranquila e presu-
mida História política?”. A conversão do estudo do institucional no “registro do-
loroso de um fracasso” (HARTOG, 2003: 32) foi o preço cobrado pela afirmação
da “nova história” que surgia modelada por temas como “a crença em milagres
régios” (BLOCH, 1998) e “as estruturas de personalidade” (ELIAS, 1994 e 2001).
Leandro duarte rust 35

Desdenhado como a quintessência da historiografia oitocentista, o es-


tudo histórico das instituições passou a estagnar. Suas temáticas enfrentaram
a deserção da atenção dos historiadores, drenando o interesse em renová-la
e aprimorá-la. Ganhando uma coloração quase anti-histórica, sua escrita es-
tancou num empirismo mecânico que andava em círculos classificando fatos,
datas e nomes a partir das categorias de “condições materiais, hábitos intelec-
tuais, costumes materiais, costumes econômicos, instituições sociais e instituições
públicas” (CARRARD, 1992: 05). Seu léxico analítico permaneceu selado pela
dubiedade e imprecisão, ambas alimentadas pela insistência com que noções
como “costumes” e “hábitos”, incorporadas tal como recebidas das fontes, eram
aplicadas sob a roupagem de conceitos historiográficos (MARION, 1923).
A história institucional enrijecia, assumindo ares de um conhecimento
monolítico e esquemático. E do imobilismo teórico-metodológico que a povo-
ava fez-se solo fértil para reproduzir a imagem de uma distinção a-histórica
entre “Estado” e “Sociedade”. Em obras de expressiva repercussão historio-
gráfica, como aquelas elaboradas por Achille Luchaire (1883), Gaston Dodu
(1894) e Jean-Baptiste Mispoulet (1882) vigorava uma distinção universal
entre o social e o político, contraposição invariável que supostamente per-
passaria toda a História: de um lado, o Estado, protagonista maior do poder,
lugar do monopólio da força e coerção, sempre sobreposto à coletividade para
regê-la e regulamentá-la de cima, de fora; do outro, a sociedade civil, que,
tendo transferido o poder para a esfera estatal, tornou-se domínio do indivi-
dual, da força centrífuga e desestabilizadora gerada pela vazão dos interesses
particulares, pela entrega à auto-realização das classes sociais. Lá o Estado,
mantenedor da ordem e do direito público; aqui a sociedade civil, arena da
desordem e dos ganhos privados. Separados. Contrapostos. A ruptura, a divi-
são: as instituições nada mais seriam do que os nexos que ligam estas duas
instâncias apartadas, vínculos que deveriam permitir regrar e normatizar seu
difícil entrosamento ao longo dos tempos.
Desta distinção entre “Estado” e “Sociedade”, que atravessaria a história
de ponta a ponta, produziu-se o sentido forte que persistiu impregnando o ter-
mo “instituição” no pós-1900, mesmo com o tour-de-force das ciências sociais:
a definição do institucional como derivativo do ordenamento jurídico. A pala-
vra “instituições” era, portanto, imediatamente traduzida pelos historiadores
como “codificações jurídicas dos princípios constitutivos de uma sociedade”,
isto é, como veículos de normatização do modus vivendi de um povo. Elas nas-
ceriam das práticas e dos usos comuns a uma coletividade. Sua composição
seria a resultante formal de uma realidade social unitária, a expressão ordena-
da de um conjunto homogeneizado de necessidades, crenças, preceitos éticos,
condições de vida.
36 coLunas de são pedro

Por partilhar deste princípio, Fustel de Coulanges (Ver: HARTOG, 2003:


77-89) veiculou largamente a premissa de que investigar a origem das insti-
tuições francesas era mapear a gênese da própria nacionalidade francesa. Pre-
missa idêntica pode ser encontrada em Jacob Burckhardt (1961: 39-40) e em
suas frequentes afirmações de que a estabilidade de todas as formas estatais
era determinada por sua capacidade de “desenvolver grandes energias coleti-
vas”. A história institucional reificou e endureceu uma separação atemporal
entre “Estado” e “Sociedade”. Separação mediada pela lei, demarcada pelo
direito. Assim o comprovam também as obras de Leon Homo (1950), Gustave
Glotz (1906; 1968), Louis Bréhier (1949).
Mas, o maior dos efeitos ocasionados por esta depreciação historiográfi-
ca está no minguado valor histórico que passou a ser atribuído às instituições.
O institucional foi identificado como mero prolongamento dos centros decisó-
rios, algo exterior aos núcleos da vida política. Eis o “entorno” do poder: um
amontoado de regras e normas reflexivas, todas movidas por inércia, depen-
dentes de estímulos externos. Em outras palavras, as instituições não seriam
capazes de colocar em jogo o poder em si, mas apenas sua execução maquinal,
seu desempenho operacional. Engrenagens. Tentáculos. Fios condutores. As
instituições eram enclausuradas na condição de aparelhamento dúctil e me-
cânico de centros políticos, que as guiariam de fora. Em suma, o institucional
era concebido como a longa manus do poder, nunca como seu fundamento.
Prova disso – reiteravam as ciências sociais –, estava na constatação de que os
agentes sociais apanhados na malha institucional tinham sua existência cap-
turada por um modo de vida igualmente maquinal, instrumental, coisificado
no limite da própria desumanidade:

Espírito coagulado é (...) aquela máquina animada representada pela or-


ganização burocrática, com sua especialização do trabalho profissional
treinado, sua delimitação das competências, seus regulamentos e suas
relações de obediência hierarquicamente graduadas. Aliada à máquina
morta, ela está ocupada em fabricar a forma externa daquela servidão do
futuro, à qual, talvez um dia, os homens estarão obrigados a submeter-se
sem resistência... (WEBER, 1999: 541-542).

O estamento dos funcionários (...) não é em nenhuma parte uma planta


autóctone, mas tampouco é simplesmente parasita; (...) sua condição ca-
racterística é a dependência. Serve a interesses que são próprios, senão
alheios (...). Espírito de dependência, rotina, automatismo, mecaniza-
ção inanimada do serviço que aniquila a personalidade. (HINTZE, 1968:
196-197, 231).
Leandro duarte rust 37

A desumanização burocrática assinalaria o ponto extremo historica-


mente alcançado pela suposta lógica social da institucionalização, isto é, do
adestramento pelo formalismo legalista, pela auto-anulação típica das áreas
politicamente periféricas (SCOTT, 1997: 561-575).
A história institucional tornou-se repetitiva, como se fora forjada de an-
temão para caracterizar diferentes épocas de maneira sempre semelhante: a
partir da contraposição invariável entre “Estado” e “Sociedade”, sendo a dis-
tância entre eles preenchida pelo vigor das formas jurídicas. Com efeito, na
mesma medida em que a historiografia se aproximava das ciências sociais, o
status do institucional como objeto de estudos decrescia, empurrado para as
margens da visão do passado. As instituições figuravam sempre como forma
ou efeito, jamais como causalidade. Sempre como aparência ou instrumento
do poder. Jamais como razão instituinte ou minimamente autônoma.
O estudo das instituições papais reproduziu fielmente este quadro mais
amplo da história institucional. Para autores das décadas de 1920 e 1930,
como Karl Bihlmeyer & Herman Tuchle (1964), Alcide M. Jacquin (1928) ou
A. L. Smith (1933), vasculhar a institucionalização do papado implicava tão
somente em esquadrinhar a racionalidade e a intencionalidade abrigadas em
seu interior e apresentadas à sociedade através de fórmulas canônicas, regras
de produção escrita e operações jurídicas.
Além disso, permaneceu inabalado o corte que opunha a sociedade ci-
vil ao estatal, sendo o papado e suas instituições identificadas sob o espectro
deste último. Tal aspecto firmou uma imagem sobre a qual a historiografia
persiste enraizada: a de que a “Reforma gregoriana” implantou no papado
medieval uma “razão de Estado”. Em síntese, eis a ideia-força: em meados do
século XI, a ascensão de uma cúpula papal diferenciada traduziu-se na inédita
supremacia do poder apostólico, que, por sua vez, remodelou drasticamente
a organização institucional da igreja romana. Desde então um novo aparato
de instituições teve de ser elaborado para adequar o exercício do poder às
decisões de um papado que tratava a independência da autoridade espiritual
como uma soberania temporal e almejava a sujeição dos poderes eclesiásticos
regionais a um novo centro de poder: Roma. O papado teria almejado fechar
o círculo das forças políticas, restringindo-o à corte pontifícia e aos órgãos da
administração central, a Cúria. Logo, a “era gregoriana” teria sido um capítulo
decisivo na “estatização da Igreja”, assinalando sua edificação em moldes mo-
nárquicos e segundo uma lógica de centralismo que alçava o papado acima da
sociedade para controlá-la.
A eficácia historiográfica desta imagem tornou-se ainda maior na me-
dida em que contou com as contribuições de dois historiadores cujos traba-
lhos exerceram fortíssima atração sobre sucessivas gerações de medievalistas:
38 coLunas de são pedro

Augustin Fliche e Gerd Tellenbach (Ver ainda: TOUBERT, DHP: 1432-1433;


VIOLANTE, 1999: 29-37).
No caso do primeiro, medievalista francês, esta imagem aparece delinea-
da em tons fortes: o movimento gregoriano foi uma resposta às desordens que
se alastravam no bojo de uma ausência de Estado. Segundo Fliche, o colapso
do poder estatal carolíngio fez do século X uma era de crise política, social
e moral. O enfraquecimento da monarquia abriu caminho para a “anarquia
feudal”, decorrente da livre pulsão das rivalidades aristocráticas, cujos efeitos
predatórios o papado teria sentido de perto ao cair nas mãos da “fratricida no-
breza romana”. Assim, os próprios papas teriam testemunhado como a crise do
século X ameaçava esgarçar o tecido social. Era iminente o esfacelamento da
moralidade laica e da disciplina clerical, arruinadas por um tráfico generaliza-
do de bens eclesiásticos – simonia – e uma grave rotina de violações de interdi-
ções sexuais cristãs – através da corrupção do celibato e do casamento. Sob esta
interpretação, a “Reforma Gregoriana” é encarada como o movimento liderado
pelo papado para implantar um amplo programa de princípios destinados a
normalizar as condutas sociais, regularizar a vida coletiva. Mas para isso foi ne-
cessário, aos olhos de Fliche, construir uma igreja centralizada, burocratizada
e capaz de uniformizar a Cristandade sob a égide de uma doutrina teocrática
amparada por sólidos alicerces morais. Em suma, diante risco de dissolução
da ordem social, ameaça criada pelo vazio político deixado pela derrocada dos
carolíngios, a igreja romana teve de ocupar o lugar do Estado, arrolando para
si o controle do poder e da autoridade (FLICHE, 1924-1937; 1940).
Já Gerd Tellenbach se recusou a reconhecer a existência de uma “crise
do século X”. Longe de responder a um contexto de “declínio” ou “colapso”
da ação estatal, as ideias gregorianas protagonizaram a criação de uma nova
concepção acerca da “correta ordem de mundo”, rompendo com a visão her-
dada dos carolíngios e então propagada pela realeza germânica dos sálios.
Fortemente identificado com as atribuições seculares dos bispos, o papado do
século XI deu vida a um modelo político inédito, alternativo àquele encarnado
pelos reis. Para Tellenbach, caberia reconhecer que homens como o cardeal
Humberto de Silva Cândida e o papa Gregório VII empreenderam uma trans-
formação revolucionária: em poucas décadas desacreditaram o ancestral ideal
no qual o “secular” e o “espiritual” convergiam, isentos de conflitos de princí-
pios, para o poder mandatário do rei, apesar de constituírem esferas distintas
da vida humana. Desde então, o alto escalão da Igreja romana lançou-se na
defesa e propagação de um visionário ideal de liberdade eclesiástica (Libertas
Ecclesia) que não somente apregoava autonomias e isenções, como advogava a
legítima absorção dos poderes temporais no interior da autoridade superior e
onicompetente da qual o papa se via como único investido. Os frequentes con-
Leandro duarte rust 39

flitos deflagrados entre os poderes seculares e o papado – o famoso “Conflito


das Investiduras” – deveriam ser encarados como os trágicos efeitos decorri-
dos da imposição de uma nova “ordem de mundo” na qual a Sé Apostólica
figurava como fonte de todo direito e poder (TELLENBACH, 1959).
Ainda que Fliche tenha sido refém de seu patriotismo católico e Tellen-
bach tenha circunscrito suas análises aos limites de uma “História das Ideias”
de molde hegeliano, não podemos deixar de reconhecer o redimensionamento
historiográfico impulsionado por suas obras. Devemos a eles, sobretudo, a via-
bilização de uma compreensão mais adequada da abrangência e da comple-
xidade sócio-política da “era gregoriana”. Contudo, os olhares projetados por
ambos sobre a estruturação e o funcionamento das instituições pontifícias per-
maneceram emoldurados pelos critérios oitocentistas. A Cúria romana emerge
de sua escrita como instância de poder apartada da sociedade medieval, à qual
se sobrepunha como vetor de centralização, racionalização, normalização.
Reencontramos o olhar legalista que faz toda organização institucional
assentar-se sobre a regulamentação jurídica: transformado em veículo da ma-
nutenção da ordem social – de sua restauração, no caso de Fliche, de sua re-in-
venção no de Tellenbach –, o exercício do poder por parte do papado teria como
razão fundadora a promoção do direito canônico. Portanto, segundo os autores,
se algum historiador pretende explorar a lógica política das ações da Igreja Ro-
mana, ele deve voltar suas atenções para as coleções canônicas. O texto da lei
conteria os significados históricos das relações de força. Desta forma, o exame
das instituições figura como sinônimo de um estudo dos atos formais do poder.
Tendência partilhada por numerosos especialistas como Paul Fournier (1918:
1-130), Gabriel Le Bras (1959; 1976), Zachary Nugent Brooke (1939: 217-247).
Eis o essencial desta caracterização historiográfica referente às primei-
ras décadas do pós-1900: as instituições papais eram tidas como suprimento
jurídico requisitado por um poder eclesiástico em vias de franca estatização,
centralização e racionalização.

Os olhos do Rei

Em meados do século XX a lição estava dada: o estudo das instituições


consistia em um itinerário a ser percorrido na direção de questões mais pro-
fundas, mais importantes, enfim, mais sérias para o historiador. O institucio-
nal retinha apenas valor heurístico: esta era a opinião que se alastrava pelas
galerias da historiografia.
Cabia à escrita da história superar o feitio biográfico e conjuntural des-
tes meios talhados pelo político e nomeados “instituições”. Era necessário
vertebralizá-los, encontrar a espinha dorsal de fatores históricos que, embora
40 coLunas de são pedro

escondida, lhes conferia estrutura e porte social. Era preciso escavar suas ca-
madas de imediatismo e factualismo para descobrir seus alicerces verdadeiros:
as regularidades subterrâneas e inconscientes que conduziam a vida coletiva.
Fernand Braudel (1992: 49-53) ditou o tom desta avaliação segundo a qual
cabia ao institucional deixar transparecer o curso de movimentos históricos
profundos, como as “relações bastante fixas entre realidades e massas sociais”
(Ver ainda: HEXTER, 1972: 480-539).
O triunfo da “totalidade” e da “longa duração” como metas analíticas
sagrou a ideia de que, para ser reconhecido como válido, o estudo das insti-
tuições precisava ser sempre encorpado com a atenção dada a domínios “mais
densos” da vida em sociedade. Afinal, não eram elas derivadas de relações so-
ciais que as precediam? Seu funcionamento não era ditado por sua “origem so-
cial” (MOORE, 1983)? Não retiravam sua especificidade do fato de “refletirem
e condensarem as contradições sociais” (POULANTZAS, 1968: 36)? Em outras
palavras, os historiadores se habituaram à postura de que o institucional tem
pouco as lhes dizer por si mesmo: evitar superá-lo seria conformar-se a um
passado incompleto, superficial, diminuído por um olhar estreito e tacanho.
Incapaz de prover sua autolegitimação, a “história institucional” passou
a ser cada vez menos assinada por historiadores, converteu-se em território
colocado sob a jurisdição de sociólogos e juristas. Talvez isso ajude a entender
porque Jean Imbert, Gérard Sautel e Margueritte Boulet-Sautel (1957) desig-
naram “história das instituições” uma obra que se limita a inventariar textos e
documentos, a catalogar fontes, como se as reunissem apenas para colocá-las
à espera de eventuais teorias e modelos sociológicos. Tal olhar equivale a uma
proclamação de que o estudo das instituições pertence a um nível científico
primário, descritivo, pré-teórico. Algo semelhante fez Jacques Ellul (1969)
numa publicação que permite qualificar a compreensão do institucional como
etapa introdutória à formação de jurista ou de sociólogo.
Devemos admitir que a desconfiança frente ao conceito “instituições”
não foi tão aguda a ponto de levar os historiadores a desistir de sua investi-
gação. Remonta aos anos de 1950-1970 o aparecimento dos cinco tomos de
Histoire des Institutions Française au Moyen Âge – integrada por especialistas
do calibre de Guillaume Mollat, Jacques Boussard e Marcel Pacaut (LOT & FA-
WTIER, 1962) –, do célebre Les Institutions de la France sous la Monarchie Ab-
solue, de Roland Mousnier (1974-1980), além do útil As Instituições Gregas, de
Claude Mossé (1986). Todavia, o perfil essencialmente descritivo e legalista
destes estudos foi incapaz de dissuadir os círculos universitários da convicção
de ver na história institucional um saber acanhado, empoeirado. Na verdade,
justificou-a ainda mais, como demonstra esta avaliação desferida sem rodeios:
Leandro duarte rust 41

Embora a “história institucional” permaneça uma “palavra-chave” e


uma tradição pedagógica bem representada nas universidades, é im-
possível deixar de pensar que ela se tornou uma forma ultrapassada
da atividade histórica, pouco tocada pelas diversas correntes da nova
história (In: BURGUIÈRE, 1993: 445).

O estudo das instituições sofreu nítido esvaziamento epistemológico.


Outro indício deste processo encontrava-se na frequência com que os espe-
cialistas se contentavam em preencher a palavra “instituição” com definições
vagas, como esta: “empreendimento a serviço de uma ideia e organizado de tal
maneira que (...) possa dispor de um poder e de uma duração superiores aos
dos indivíduos” (BURDEAU, 2005: 11), ou “tudo o que é organizado volunta-
riamente em uma dada sociedade” (ELLUL, 1969: 5). Simplesmente tudo que
diga respeito à existência social parece caber neste conceito, como deixou
claro Marcel Pacaut (1956: 8) ao arriscar a seguinte definição de “instituições
religiosas”: “elas compreendem o conjunto de tudo quanto, de uma forma ou
de outra, diz respeito a uma religião” (Ver ainda: PIERSON, 2004: 133-166).
Numa palavra: o institucional seria redutível à condição de estado funcional
de todo e qualquer aspecto da vida em sociedade.
Em meados do século XX, em seu emprego corrente, o termo “institucio-
nalizar” significava fabricar módulos duráveis e permutáveis para “agir”; criar
fórmulas impessoais de “pôr-se em movimento”, de “levar a efeito” condutas
racionais e cálculos de finalidades para práticas sociais. Nos termos desta vi-
são conceitual, as instituições não passariam de schemae coletivos e compar-
tilháveis de ação. Os autores se limitavam a concebê-las como “padrões de
conduta”: formatos relacionais e posicionais em que se inseriria a vida social.
“Instituição” é aquilo no qual enquadramos nossas ações e decisões. Assim,
sem conteúdos precisos, o institucional atravessava pesquisas inteiras concei-
tuado somente como modus operandi pelo qual qualquer conteúdo societário
seria compartilhado, mobilizado e reproduzido. Em suma: “institucionalizar”
se reduziria à capacidade de conferir regras a um jogo social, qualquer que
fosse ele, político, cultural, econômico, moral, sexual.
Vazias de referenciais concretos, as instituições podiam se encaixar em
toda parte. Por não terem um fim em si mesmas, se transformavam – explícita
ou implicitamente –, em meio para tudo mais que constitui a vida em socie-
dade (DE VAUX, 1997). O fundamento deste holismo histórico era uma indo-
lência conceitual que levava o conceito “instituição” às alturas da abstração
desnorteante: “uma instituição concreta é um conjunto discreto de coisas (entre
as quais indivíduos) que nada distingue (na sua própria essência, assim como na
natureza do conjunto) de outras coisas” (ALBUQUERQUE, 1980: 21). Sem uma
42 coLunas de são pedro

ontologia precisa, as instituições se tornavam uma condição que poderia ser


ocupada por qualquer porção de real. Um exemplo paradigmático. Para Carl
Stephenson (1967) e Norman Zacour (1969), as “instituições medievais” com-
preendiam uma lista de fatores que praticamente esgota os quadros de uma
história da Idade Média: a agricultura, o comércio, a indústria, o feudalismo,
o governo, a lei, a igreja, a educação. Mosaico da existência, o institucional
recobriria todos os domínios do passado. Inexistindo como categoria em si,
ele pertenceria à ordem de categorias universais a ser sumariadas no tempo.1
No caso da historiografia dedicada ao papado medieval, esta tolerância
geral a um quadro de conceituações vagas e abrangentes fez avançar a identi-
ficação das instituições pontifícias como um arsenal de regras e práticas ope-
racionais que tinham na teorização política sua força motriz, e no formalismo
jurídico, seu modo de ser. Perspectiva levada às ultimas consequências por
Walter Ullmann (2003: I):

A história do papado medieval é a história de uma ideia, e esta comple-


xa ideia, como ela é em sua gênese e estrutura, era um tempo e espaço
condicionados pela concepção de Cristandade. O papado era a corporifi-
cação e a concreta manifestação desta ideia. Era um organismo ou uma
instituição que derivava sua sustentação exclusivamente de sua ideia
transpessoal (Ver ainda: ULLMANN, 1952: 111-127).

Logo, segundo Ullmann, a constituição da malha institucional do papa-


do medieval retirava sua força e sustentação da transformação de um corpus
unitário de ideias político-teológicas em leis (Ver ainda: ULLMANN, 1955). As
instituições pontifícias assumem aqui feições abstratas: a lente historiográfica
de Ullmann não nos permite enxergar seu funcionamento concreto, pois su-
blima sua atuação terra-a-terra num idealismo repleto de “concepções acerca
do governo e da lei”. Consistindo na materialização de elaborações intelec-
tuais, as instituições papais ficavam, assim, descoladas de condicionamentos
sociais, econômicos ou simplesmente materiais; imunizadas contra as tensões
que emergiam no curso da interação social do medievo. Donde se torna inútil
o esforço para encontrar no exercício do poder as marcas da multiplicidade
das experiências coletivas e as contradições involuntárias tecidas pelas rela-
ções humanas. A institucionalização da Igreja romana foi definida como um
conjunto de atitudes intelectuais em relação ao poder e à autoridade, de modo

1
“Definimos a instituição como um padrão de controle, ou seja, uma programação da conduta indi-
vidual imposta pela sociedade”. O resultado deste entendimento de Peter Berger é a aceitação de que
“instituição” abrange elementos sociais que vão do Estado à linguagem. (In: FORACCHI & MARTINS,
1977: 193-199).
Leandro duarte rust 43

que as ideias acerca da ordem política desejável teriam ditado os rumos das
ações dos agentes históricos e da estruturação de procedimentos, competên-
cias e práticas. Para resumir, basta dizer, citando Francis Oakley (1973: 3-48),
que as obras desse medievalista austríaco estavam presas a um olhar “mais
especulativo do que admitira o próprio autor”.
À luz desta perspectiva, as instituições pontifícias abrigavam relações
e normas de conduta fechadas num arranjo legalista e piramidal. Seus traços
fundamentais teriam sido estes: 1) a organização da Igreja como uma cadeia
de escalões burocratizados, unidos pela homogeneização jurídica e pela con-
vergência para um ápice, uma minúscula cúpula – a Sé Apostólica –, onde o
poder de decidir teria sido retido e monopolizado; 2) a dissociação geral entre
o ofício eclesiástico e o indivíduo que o ocupava, cujo formato exemplar seria
a distinção entre a pessoa do papa e a autoridade apostólica, por ele exercida
como potência despersonalizada e judicial; 3) a vigência de uma lógica polí-
tica centralizadora, que faria qualquer ação ou conduta de partilha do poder
assumir ares de distúrbio, deficiência ou ameaça a ser extirpada pelos homens
do papado (ULLMANN, 1949; 1961; 2003: 65-106).
Racionalizada. Burocratizada. Centralizada. A institucionalidade ponti-
fical criada a partir da “era gregoriana” prenunciaria um regime estatal triun-
fante segundo parâmetros idealizados nos tempos modernos. O vasto domínio
documental e a erudição intimidadora das obras de Ullmann recobrem uma
interpretação pouco inovadora: a que apontava para a existência de papas
medievais como os arquitetos de um Estado religioso projetado acima da so-
ciedade feudal para regê-la de um pólo teocrático e governamental (Visão
presente em: MAITLAND, 1911: 506-512). Esta interpretação sintetizou uma
longa linhagem de estudiosos que se estendeu de Marshall Baldwin (1940) a
Carl Volz (1970) e Brian Tierney (1983), e cujas formulações mais explícitas
estão estampadas em estudos como os de David Knowles (1967: 10):

A Igreja tinha se tornado então um corpo com todas as quali-


dades e pretensões de um Estado, e sua concepção unitária do
poder foi fortalecida pelo axioma do pensamento aristotélico
dominante de que todos os agentes deveriam, em última ins-
tância, estar submetidos a um simples ponto supremo, isto é,
no contexto, o papado (Ver ainda: KNOWLES & OBOLENSKY,
1974).
Os aspectos de unidade e centralidade fazem a organização eclesiástica
medieval caber no interior de uma silhueta “estatal” modernizada.
Esta interpretação converteu-se em uma forma de pensar tão vívida, tão
enérgica e recorrente, que foi alçada ao patamar de um “dever ser” do estudo
44 coLunas de são pedro

do papado medieval. Ela extrapolou a qualidade de quadro de compreensão


e assumiu as roupagens de imperativo conceitual, de uma maneira exemplar
a ser cumprida pelo passado, seja ele qual e quando for. Observe-se Geoffrey
Barraclough (1972: 134-136) e a ênfase que seu conhecido Os Papas na Idade
Média emprega para demandar ao papado dos séculos XI-XIII a eficiência de
um poder estatal típico da modernidade ocidental:

A máquina administrativa do papa não correspondia às ambições po-


líticas de Inocêncio III, (...) [que] fez, sem dúvida, um esforço consi-
derável para elevar o nível da cúria e, essencialmente, para reformar a
chancelaria. (...) Tudo isto eram improvisações em pequena escala. Não
atingiam a causa profunda das dificuldades, pois Inocêncio III não podia
extinguir as práticas do século XII nem instaurar uma burocracia assa-
lariada (...). Os progressos haviam sido imensos, a posição do papa na
Igreja fora profundamente alterada; o que temos o direito de denominar
monarquia papal existia, mas os seus fundamentos eram mais fracos do
que à primeira vista parecia. A aparência da expansão era, na realidade,
abdicação entre pressões exteriores e o aparelho administrativo posto a
funcionar para resistir a estas pressões reduzia-se a uma série de medi-
das apressadas e de expedientes improvisados. (...) Faltava o homem de
gênio, capaz de ver, de querer e de obrigar.

O texto comporta um claro juízo de valor: as instituições lideradas por


Inocêncio III estavam privadas dos aspectos que, na opinião do autor, são ne-
cessários à organização institucional em qualquer sociedade. Difícil não reco-
nhecer que Barraclough reprova o papado medieval pelas ausências de carac-
terísticas consagradas por uma visão modernista: o planejamento e a projeção
de ações em longo prazo, a racionalização da formação dos quadros hierár-
quicos, a regularidade e a rotinização da eficácia administrativa. Por trás do
apontamento destas lacunas está uma marcação anacrônica tão sólida quanto
inconsciente. Exortando o leitor a reconhecer a incapacidade do conhecido
papa medieval para fazer das instituições romanas um aparelho duradouro
de regulação e arbitragem, o autor admitiu que estas “metas governamentais”
deveriam ter vigorado nos séculos XII e XIII. Em outras palavras, Barraclough
comunica-nos a certeza de que estas características da ordem estatal ocidental
e moderna são regras perseguidas em todas as épocas históricas. Por conse-
guinte, a sociedade que não alcança este “modelo” assume ares de incompleta,
de inacabada. Se o passado não subscreve a validade desta regra, isto deve ser
encarado como claro sintoma de que quem falha é a realidade, não a regra
(Ver: CANTOR, 1968: 55-73). O historiador britânico parece ter se desviado,
Leandro duarte rust 45

no que diz respeito ao papado medieval, do curso de sua busca por “compre-
ender o funcionamento das instituições no tempo” (BARRACLOUGH, 1955: 01),
cedendo a uma naturalização do modelo conceitual do poder como norma
legal e burocratização.
Walter Ullmann e Geoffrey Barraclough se tornaram referências em-
blemáticas de como os historiadores do papado medieval recorrem ao termo
“instituição” para assinalar tão somente formatos racionalizados, estados fun-
cionais em que podem ser enquadradas as ações sociais – neste caso, gover-
namentais. Sem conteúdo histórico preciso, as instituições pontifícias se pres-
tam, mais facilmente, a evocar tempos modernos. Elas são convocadas para
testemunhar o suposto valor universal da ordem estatal oitocentista, na qual a
política era vista como conjunto de práticas dominadas pela lei escrita e pela
lógica centrípeta da cadeia de comando.
A vacuidade com que era manejado o conceito “institucionalização”
abria espaço ainda maior para a postura teleológica de cobrar ao papado
medieval um desempenho institucional esperado de uma instância de poder
centralizada, unitária, despersonalizada, fundamentada em uma funcionali-
dade instrumental, na qual a lei franquearia a tomada de decisões. Atrás desta
máscara de universalidade esconde-se uma teoria política específica e datada:
aquela que, desde o século XVII, coroou como regra da organização do político
a visão de realezas burocratizadas e de índole centralizadora. Aqui, o olhar
historiográfico se vale do institucional para ratificar uma pretensa validade
atemporal do paradigma teórico setecentista de um poder-lei-e-soberano. Es-
tas características fazem com que, nas obras de autores como Ullmann e Bar-
raclough, a Idade Média esteja obrigada a reportar os leitores a um mundo
político visto através dos olhos de um rei recém saído de páginas hobbesianas.

O Sol de Copérnico

No curso dos quarenta anos finais do século XX, a história institu-


cional aclimatou-se a uma atmosfera de novas possibilidades de estudo. A
renovação das análises do poder e do político trouxe consigo cortes me-
todológicos que viabilizaram a crítica aos postulados oitocentistas. O in-
teresse dos historiadores pelo institucional revigorou, reanimado por um
intenso revisionismo do modo como as ciências humanas apresentavam os
fundamentos das relações de poder e sua incidência na constituição social.
Em especial, duas diretrizes teóricas, até então inabaláveis no estudo das
instituições, foram profundamente revolvidas. Sua validade foi colocada
em xeque: o “postulado da legalidade” – pelo qual a ordem legal positivada
define o campo de estruturação da política – e o “da localização” – que con-
46 coLunas de são pedro

feria ao poder uma localização central a partir da qual ele emanaria para
o restante da sociedade.
Segundo Michel Foucault (1988: 86) não havia mais espaço para a
abordagem que enquadrava qualquer manifestação do poder em um único
modelo, descontextualizando o passado para provar que as diversas socieda-
des sempre aspiraram obter um poder repressor centrado no enunciado da
lei e da interdição. Segundo o filósofo, tal forma de representar o poder era a
generalização de um molde histórico singular: a monarquia jurídica ocidental.
Daí a constatação, não sem certa ironia, de que “no pensamento e na análise
política ainda não cortaram a cabeça do rei”. Para o autor de As Palavras e as
Coisas, já era tempo de reconhecer que o ordenamento jurídico podia repre-
sentar o poder, mas não exaurir sua abrangência histórica e totalizar as múlti-
plas formas de sua incidência social:

É desta imagem que precisamos nos libertar, isto é, do privilégio teóri-


co da lei e da soberania, se quisermos fazer uma análise do poder nos
meandros concretos e históricos de seus procedimentos. (...) Trata-se,
portanto, de (...) orientar para uma concepção do poder que substitua o
privilégio da lei pelo ponto de vista do objetivo, o privilégio da interdição
pelo ponto de vista da eficácia tática, o privilégio da soberania pela aná-
lise de um campo múltiplo e móvel de correlações de força (...). O mode-
lo estratégico, ao invés do modelo do direito (FOUCAULT, 1988: 87-97).

Foucault exortou os historiadores e os demais especialistas a pensar o


poder sem os pressupostos da lei e do rei. Somente após desobrigar o estudo
do poder a tais postulados, o pesquisador seria capaz de explorar sua incidên-
cia real. Apenas então ele constataria que aquilo que é historicamente coloca-
do em jogo com as instituições não é uma dominação global, mas práticas so-
ciais descentradas e díspares. Entreabre-se, assim, a compreensão da política
como campos instáveis de correlações de forças, cadeias dispersas de lutas, de
afrontamentos involuntários e imanentes ao convívio social. Logo, não se deve
procurar a existência primeira de um ponto central de onde partiriam for-
mas derivadas e descendentes de poder. Onipresente, ele “está em toda parte,
não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT,
1988: 89. Ver também: FOUCAULT, 1979; VISKER, 1995: 114-115).
A soberania do Estado e a forma da lei são, antes de tudo, modalidades
terminais do poder, cuja presença, co-extensiva à interação humana, permeia
processos sócio-históricos seminais, como “a transformação dos seres humanos,
em nossa cultura, em sujeitos” (In: RABINOW & DREYFUS, 1995: 243), e “a
aquisição da racionalidade e de formas de autenticar a verdade” (FOUCAULT,
Leandro duarte rust 47

2003: 73-78).2 Com efeito, ele não deve ser empiricamente problematizado
como potência ou estrutura, mas como estados estratégicos e provisórios das
relações coletivas, como situações complexas instauradas por relações desi-
guais e moventes. Ainda que ele perpasse os aparelhos de governo, nem por
isso está abrigado somente em seu interior. Ele escapa à ordem estatal porque
recobre a sociedade como campos comportamentais; excede os limites dos
códigos jurídicos por ser linguagem e viés de conformação corporal e prática.
Ao prescrever um modelo de análises em que o “Grande Poder” estatal
não mais protagonizava as relações de força presentes na vida social, a gene-
alogia foucaultiana acabou por endossar ideias advindas de outro ramo das
Ciências Humanas: a Antropologia Política e seu recente empenho para “disso-
ciar a teoria política da teoria do Estado” (BALANDIER, 1987: 14). Convencido
de que o estudo do poder estava preso a afirmações meramente convencio-
nais, Pierre Clastres voltou à estaca zero do problema e, como fizera Foucault,
recolocou a pergunta: “em que consiste o poder?”.
De acordo com esse antropólogo francês, somente ao “refletir sobre a na-
tureza do poder, sobre as origens e as transformações que a história lhe impõe”
(CLASTRES, 2003: 24), a etnologia seria capaz de se desembaraçar das dicoto-
mias abusivas – “sociedades sem e com Estado”, “pré e pós-políticas” – que con-
dicionavam, equivocadamente, o estudo das sociedades arcaicas. Estas classifi-
cações escondem um flagrante etnocentrismo, pois elas não nos falam do poder,
mas de um tipo específico de poder, entendido como relação de coerção e em-
prego da força, e que é utilizado como parâmetro universal pela antropologia:

Não nos é evidente que coerção e subordinação constituem a essência do


poder político sempre e em qualquer lugar. De sorte que se abre uma al-
ternativa: ou o conceito clássico de poder é adequado à realidade que ele
pensa, e nesse caso é necessário que ele dê conta do não-poder no lugar
onde se encontra; ou então é inadequado, e é necessário abandoná-lo ou
transformá-lo (CLASTRES, 2003: 28-29).

Segundo Clastres (2003: 32), o poder como coerção não é um modelo


universal, mas um caso particular, uma realização concreta de certas culturas,
como a ocidental. Em outras palavras, o poder abrange modalidades de ação
social que não se enquadram nos “termos de relações hierarquizadas e autoritá-
rias de comando-obediência”. Deste modo, as acusações de “ausência” ou “falta”
de complexidade política que costumamos despejar sobre algumas sociedades,

2
Donde o sentido da afirmação: “uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma abstração” (In:
RABINOW & DREYFUS, 1995: 246. E ainda: O´FARRELL, 2005: 96-102).
48 coLunas de são pedro

como as arcaicas, não correspondem, de fato, a lugares vazios, mas a pontos ce-
gos de nossa cultura ocidental contemporânea. São áreas nebulosas que, irreco-
nhecíveis ao nosso olhar, abrigam relações complexas o suficiente para proteger
a sociedade do Estado, impedindo a cisão traumática entre um chefe-que-orde-
na e um grupo-que-obedece. Os estudos etnológicos avaliavam como “inexis-
tentes” certas presenças que a filosofia política clássica os impedia de distinguir.
Reclama-se a revolução copernicana da compreensão do político. Havia
se tornado insustentável a pretensão comum de aplicar sempre e por toda
parte as marcas delineadas pela realidade ocidental: “é tempo de buscarmos
outro sol e de nos pormos em movimento” (CLASTRES, 2003: 41). A metáfora
heliocêntrica tem aqui uma medida apropriada, pois a alteração da noção de
poder implica em deslocar um planetário de acepções científicas. Ao fazer com
que esse conceito passasse a incluir a não-coerção, Clastres detonou um efeito
dominó, uma reação em cadeia: a chefia se converteu em locus de servidão e
subordinação; a guerra deixou de ser um estado associal de caos intempestivo
para ser redescoberta como matriz de sociabilidade; a política desprendeu-se
do papel de desdobramento inelutável do progresso material; o uso da vio-
lência revelou-se um meio de negação do “Outro” e não só de sua dominação
(CLASTRES, 2005; ABENSOUR, 2007).
As obras de M. Foucault e de P. Clastres são partes em evidência de uma
mudança científica (TOFFLER, 1993). O último terço do século XX deixou ao
alcance da história institucional perspectivas conceituais que revelaram um
mapa de novas identidades do poder. A partir de então, foi possível romper uma
longa inércia e vencer o congelamento teórico e metodológico que comprimia o
estudo das instituições. É o que comprovam os estudos de Antônio Manuel Hes-
panha. Suas obras são demonstrações vigorosas de como a quebra do fascínio
conceitual exercido pelo Estado desfez as amarras que tornavam aquele tema
um saber de feições repetitivas, especialmente, ao solapar a premissa de uma
suposta contraposição universal entre “Sociedade” e “Estado”. Desobrigadas a
validar esta divisão, as instituições deixam de denotar sempre os sentidos de
“intenções de polícia”, ou seja, de uma lógica de salvaguardar uma “ordem pú-
blica”, presa certa dos interesses particulares sempre desgovernados.
Não mais o institucional estava atado ao modelo de uma razão univer-
sal de centro-periferia: como realidade social, ele é repleto de tensões, lutas
e contradições. Finalmente revelado em sua complexidade, em suas relações
caudalosas e multiformes, ele não mais cabe nos modelos teóricos de “ferra-
mentas de intervenção”, de instrumentos juridicamente esculpidos, que reper-
cutiam na sociedade sempre de “cima” para “baixo”, a partir de uma ordem
estatal superior. Jurista, Hespanha (1982: 23) valeu-se do método historiográ-
fico para tomar parte do “combate ao jurisdicismo”, àquela maneira de pensar
Leandro duarte rust 49

que sufocava o estudo das instituições, “ou seja, à ideia de que o direito existe
separado dos fatos sociais e que, de fora, se lhes aplica”.
Mediante este re-equacionamento, as instituições assumem novo ros-
to. Aquilo que antes figurava como mero apêndice político, porção derivativa,
revelava-se agora um elo de potências decisórias capaz de impor relações de
poder. Partindo do estudo da sociedade portuguesa setecentista, em seu ins-
tigante livro As Vesperas do Leviathan, A. M. Hespanha demonstrou como as
habituais metáforas maquinistas – “aparelhos estatais”, “engrenagens de gover-
no” – são inadequadas para o exame do governo português do Antigo Regime e
sua organização polissinodal. O Estado lusitano do século XVII era uma malha
polinuclear de ativações políticas. Descentrado, esse Estado abrigava um ema-
ranhado de correlações de força que se revela incompatível como os nossos
padrões conceituais criados para fazer ver dominações unitárias (HESPANHA,
1984; 1986). Os horizontes do conhecimento devem permanecer abertos para
a possibilidade do passado das instituições embaralhar nossas categorias con-
ceituais e desafiar referências analíticas, revelando que o público nem sempre
é o reverso do privado; o centro não está fadado ir contra o local; a desordem
não é inelutavelmente uma antítese da ordem; o Estado não está desgarrado
da sociedade. O viés de pesquisas representado por Hespanha, no qual figuram
ainda nomes como Bartolomé Clavero (1981: 43-57; 1996) e Pedro M. Ribalta
(1980: 151-168), restituiu à história institucional uma habilidade há décadas
considerada perdida: a capacidade de surpreender o historiador.
M. Foucault, P. Clastres e A. Hespanha não assinalam um “paradigma”.
Tampouco uma “escola”. Afirmá-lo, seria uni-los pela domesticação de suas
teses, aproximá-los por uma assepsia das muitas discrepâncias e discordâncias
existentes entre eles. Porém, mesmo contrastantes, eles partilharam algo de
grande relevo: a busca por desenraizar conceitos, por perturbar a perspecti-
va explicativa dominante e abortar coordenadas epistemológicas enrijecidas.
Este “pensar contra a corrente” os torna convergentes, liga-os pelo intento de
mapear novas possibilidades de compreensão da política e das instituições.
Assim, digamos logo, o que procuramos reter de Foucault, Clastres ou
Hespanha não foram terminologias ou teorias. Que o leitor não espere reen-
contrar a aplicação de seu pensamento nas páginas a seguir. O que buscamos
em seus estudos foi a medida de sua atitude crítica face à herança intelectu-
al recebida pelo pesquisador em Ciências Humanas. Lê-los evidenciou ainda
mais a presença de modelos conceituais que seguem congelando a escrita da
história institucional do papado dos séculos XI e XIII. Suas obras fortaleceram
a convicção, despertada pela pesquisa, de que um estudo como o nosso requer
a mirada de seu exemplo: recusar certas rotinas disciplinares, entrecruzar en-
foques metodológicos.
50 coLunas de são pedro

A revisão dos pressupostos que norteiam a investigação do Estado, do po-


lítico e das instituições delineia um promissor horizonte de pesquisas, ao qual a
escrita da história do papado medieval permanece, em larga medida, alheia. Po-
rém, tal limitação não se deve a negligências dos especialistas, mas ao fato deles
optarem por seguir para outra direção: o estudo da “reforma na Idade Média”.
Na década de 1970, uma reorientação dos estudos medievais firmou-se
tal qual uma guinada. Desde então as atenções dos historiadores se voltaram
para o esforço de decifrar o emaranhado de laços que ligavam as “reformas” à
vivência social da religião. Seguindo este rumo, numerosos estudos têm refor-
çado as linhas de novos modelos explicativos. Muita tinta tem sido derramada
para desfazer a imagem das reformas religiosas ocorridas a partir do século X
como cartilhas de uma normatização social claramente articulada “de cima”
por bispos intelectualizados, altivos abades e papas heroicos. Ao contrário,
cada vez mais se enfatiza que os reformadores das cercanias do Ano Mil res-
pondiam a demandas generalizadas, provenientes de “bases sociais” em drás-
tica transformação, de uma ampla e intensa modificação global do modo vida
em sociedade que, para muitos, faz jus ao título de “Revolução Feudal” (POLY
& BOURNAZEL, 1980; BOIS, 1989; BARTHÉLEMY, 1992: 767-777; BISSON,
1994: 6-42; BARTHÉLEMY & WHITE, 1996: 196-223; BISSON, 1997: 208-
225; REUTER, 1997: 177-195; POLY, VAUCHEZ & FOSSIER, 2000).
A ocupação do solo, até então dispersiva e intercalar, tornou-se densa e
espessa, com as populações rurais confluindo para a formação de nichos habi-
tacionais compactos e urbanizações concêntricas, nucleadas por terras sagra-
das – como cemitérios e santuários – ou fortificações senhoriais. Este processo
de saturação dos veios demográficos ocidentais – chamado “encelulamento”
por Robert Fossier (1982), “incastellamento” por Pierre Toubert (1973) – al-
terou decisivamente a vida social: estreitou a integração comunitária, alterou
as formas de sociabilidade, perturbou as antigas rotinas de convivência, aba-
lou as relações de solidariedade, dependência e exploração. As mudanças das
estruturas sociais acarretaram pressões generalizadas pela reordenação dos
princípios e das regras que até então regiam a interação coletiva. Segundo
Robert Ian Moore (1980: 46-69), tratou-se de uma verdadeira “emergência da
multidão no palco da História”, algo que fez as normas comportamentais per-
derem sua plausibilidade, despertando fortes pressões pela reformulação das
mesmas. Impôs-se uma ampla necessidade de reescrita dos protocolos sociais,
vivida, segundo o entendimento de Janet Nelson (1972: 65-77), como uma
extensa “crise de teodiceia” (Ver ainda: ASAD, 1986: 345-360).
Nos círculos laicos, entre o baixo clero, em meio a eremitas e modes-
tos monges, estas pressões desencadearam iniciativas de implantação de no-
vos repertórios de regras comportamentais que incluíam desde as formas de
Leandro duarte rust 51

apropriação da riqueza material à moral sexual (BOUCHARD, 1981: 268-287;


BRUNDAGE, 1987; FRASSETTO, 1998: 179-208; MOORE, 2000; ROUCHE,
2000; MCLAUGHLIN, 2010), da inserção espacial do sagrado (ROSENWEIN,
1999; LAUWERS, 2005; IOGNA-PRAT, 2006) à busca pela preservação da
segurança coletiva (HEAD & LANDES, 1992; BARTHÉLEMY, 2005; WHITE,
2005; TUTEN & BILLADO, 2010). Desde os anos 1970, tem crescido entre
os historiadores a insatisfação quanto a designar esta multifacetada e des-
centrada transformação do mundo medieval através do singular maiúsculo
“Reforma”. Nome que costuma trazer incrustada a primazia de uma lógica
estritamente clerical, tal qual um “campo de ações” socialmente recortado e
diferenciado como “religião”.
“A sociedade está por trás da reforma, não a igreja”. É isto o que tem
sido afirmado pela historiografia. A mudança de rumos imposta no conhe-
cimento com tal interpretação foi brusca. Embora os sucessivos Studi Gre-
goriani, editados por Giovanni Battista Borino, demonstrassem há décadas a
descentralidade e a multiplicidade das ações reformadoras, foi nos anos 1970
que os historiadores puderam, efetivamente, romper as molduras temáticas
traçadas por autores como Fliche e Tellenbach.
Finalmente, a “Reforma Gregoriana” deixava de ser vista como conjunto
de ações estritamente eclesiásticas. Caía por terra a validade da imagem que
a transformava em um movimento unitário, em ocorrências oriundas de um
“alto escalão” da sociedade medieval, protagonizadas por “doutores da igreja”,
papas, reis e imperadores. Nas páginas já célebres da obra “Chiesa Feudale” e
Riforme in Occidente, Cinzio Violante (1999: 29-45) resumiu com grande luci-
dez esta guinada intelectual ao descrevê-la como um “longo movimento histo-
riográfico do genérico e do indistinto ao concreto e particular”, cujo curso permi-
tia ver os díspares e conflituosos ambientes religiosos artificialmente reunidos
sob o véu de uma monolítica ideia de “Reforma”. Como notou Pierre Toubert
(In: DHP, 1434), esse novo cenário intelectual tornou possível “religar a história
das instituições eclesiásticas elaborada pela reforma à história geral das formas e
estruturas de poderes no interior da cristandade dos séculos XI e XII”.
Estava assim viabilizada a renovação da história social da igreja medie-
val. Porém, estava também estabelecida uma prioridade: a atualização do con-
ceito “reformas”. Este foi um norte que a historiografia se pôs a seguir pratica-
mente em bloco, em uníssono. Cada vez mais os estudiosos eram convencidos a
produzir trabalhos sensibilizados por novas abordagens da religião, elucidando
mudanças sociais profundas, inconscientes, coletivas. Daí o crescente prestígio
de termos como “espiritualidade”. Antes atado ao universo da ascese religiosa e
das doutrinas (BOUYER, LECLERCQ & VANDENBROUCKE, 1961; LECLERCQ,
1964), este conceito foi remodelado para abranger a “unidade dinâmica do con-
52 coLunas de são pedro

teúdo de uma fé e da maneira pela qual esta é vivida por homens historicamente
determinados” (VAUCHEZ, 1995: 8). Sob inspiração das teses de autores como
o italiano Raffaello Morghen (1945; 1962), essa palavra passou a identificar
perspectivas de estudo bem-sucedidas em decifrar as tramas de práticas e expe-
riências sociais articuladas pela “fé reformadora”. As provas disso estariam, por
exemplo, no seu valor para ressaltar a inserção religiosa dos laicos (VAUCHEZ,
1987) ou enfatizar a religião como viés de incessante re-criação da realida-
de social (BOLTON, 1983). Como Kathleen Cushing (2005) e Giles Constable
(1996), são muitos os estudiosos a apostar no emprego de “espiritualidade” e de
“reformas” como a estratégia mais frutífera para fazer “os historiadores que tra-
balham sobre tópicos medievais, sobretudo a Igreja, reconhecer que nosso empre-
endimento não é ‘história religiosa’ mas ‘história social’” (CUSHING, 2005: 02).
Seguindo os mesmos horizontes, mas desbravando outro caminho, houve
quem viu no conceito de “Reforma” o reduto de impasses e falhas teóricas que
apenas micro-estudos poderiam superar. Foi o caso de John M. Howe (1997).
Segundo este medievalista norte-americano, explorar as conexões existentes
entre mudanças sociais e ações reformadoras – como propõe a historiografia
recente – requer diminuir a escala da observação histórica e seguir o rastro de
estratégias individuais, vasculhando a racionalidade de condutas trilhadas em
círculos comunitários, em âmbito local. Seriam necessárias verdadeiras perícias
sobre as redes de solidariedade e de dependências que recobrem as trajetórias
dos reformadores atuantes nos séculos X-XII. Estas incursões por uma história
prosopográfica descortinaram ainda mais a influência exercida pelas nobrezas
regionais no curso dos empreendimentos considerados religiosos. A noção de
“reforma” desliga-se, aqui, da ideia de um processo protagonizado por clérigos
e “grandes centros eclesiásticos” para reportar o pesquisador a uma vasta capila-
ridade de fenômenos locais, laicos e de maciça amplitude populacional (HOWE,
1997. Ver ainda: BOUCHARD, 1987; MILLER, 1993; RAMSEYER, 2006).
Quer sob a rubrica da “historia da espiritualidade”, quer sob a da micro-
história italiana, o mesmo resultado emergia: rompia-se o circuito de premis-
sas que confinavam as “reformas” nos limites de um “alto clero” medieval
para demonstrar como sua realização emergia de um novelo de iniciativas,
aspirações e mudanças promovidas pelo clero local, por poderes laicos e por
grupos comunitários.
Em todos estes trabalhos, uma característica recorrente: firmada como
centro da atenção dos especialistas, a noção de “reforma” magnetiza todos os
esforços de renovação historiográfica. A atração por ela exercida projeta uma
densa sombra sobre o interesse pela revitalização da história institucional do
papado. Todos estes estudos estão ancorados na premissa de que o thelos re-
formador foi a própria força motora da institucionalização da Sé Romana. Não
Leandro duarte rust 53

está aí, intacta, a postura que consiste em superar o funcionamento concreto


das instituições para reportá-lo a um plano decisório anterior e exterior?3
Eis, portanto, o quadro historiográfico atual com o qual nos depara-
mos: quando não retrocede e cede ao paralisante ponto de vista herdado do
século XIX – de que o poder pontifício realizava-se segundo sua capacidade de
impor-se, como um Estado, à sociedade medieval e de aprimorar a modela-
gem jurídica de suas ações –, a pesquisa histórica sobre as instituições papais é
tragada pelo interesse acerca das “reformas”. Será que o propósito de analisar
historicamente as instituições pontifícias implica sempre e obrigatoriamente
em recorrer a uma chave explicativa exterior a elas? Será que o empenho por
explorá-las nos conduzirá sempre a imagens sobre a “reforma”? Se tais ques-
tões ainda nos embaraçam ou mesmo nos fazem hesitar, talvez isto se deva ao
fato de que a crítica de certas “verdades” e o alargamento da compreensão dos
fenômenos de poder – o “sol copernicano” teórico do qual nos falou Clastres
– ainda não alcançaram, em profundidade, a historiografia versada sobre o
papado medieval e seus espaços institucionais.

1.2. Os medievalistas e o estudo das representações de tempo

A historiografia impõe esta prescrição sumária: de fato, o historiador


não observa as instituições, ele as ultrapassa. Para escapar ao incompleto e ao
superficial que as define, é necessário recusá-las, contorná-las e ir para “além”
delas, para “trás” delas. De todos os lados emerge a mesma interdição: “não as
leia a não ser para fazer com que prestem contas acerca das diretrizes que as
preenchem e modelam a partir de fora”. Elas nunca retêm uma finalidade em
si mesmas. São sempre um meio para chegar a algo mais.
Entretanto, entre a prática de pesquisa e esta prescrição, notamos um
descompasso, um desencaixe. Quando voltamos nossas atenções para os con-
cílios realizados pelo poder papal – uma das mais importantes “instituições pon-
tifícias”, segundo os historiadores –, o quadro delineado foi outro: a margem
de autonomia face ao “centro” e as fortes tensões encontradas assinalavam uma
complexidade histórica que transbordava os limites desta redução conceitual.
Tudo bem pesado, foi necessário tomar outra direção e interrogar tais institui-
ções de outra forma, solicitá-las mais atentamente sobre a trama de seu próprio
funcionamento. Este esforço propiciou uma constatação que cabe nesta propo-
sição breve, contudo, em nada simples: a conquista e o exercício do poder pelo
papado centro-medieval estavam atrelados a poderosos arranjos da vivência
coletiva do tempo. Os mecanismos de governo eram uma das faces do poder

3
Uma obra paradigmática neste sentido é: MORRIS, 2001.
54 coLunas de são pedro

institucional. A outra era a percepção coletiva de tempo. Contudo, isto impôs


uma dupla obrigação. Deveríamos retomar o traçado do que os historiadores
têm a dizer a respeito das instituições pontifícias tanto quanto sobre como os
medievais representavam o tempo. Desta forma, o trabalho bibliográfico deve-
ria ocorrer em duas frentes simultâneas: instituições e tempo. A primeira, assim
acreditamos, acaba de ser cumprida. Devemos, então, passar à segunda.
Não demorou muito para que a exploração deste outro front historiográ-
fico – o das temporalidades medievais – revelasse uma bibliografia de caracte-
rísticas peculiares. Uma após outra, as obras analisadas insinuavam um envol-
vimento especial dos autores, como se a tarefa de perscrutar as experiências
de tempo do medievo os mobilizasse de uma forma particular, quase íntima. A
cada página fortalecia a impressão de que o tema em questão havia se transfor-
mado em ocasião única para uma auto-reflexão dos historiadores. A cada nova
leitura, ganhou espaço a convicção de que seria necessário ir além da usual
discussão sobre o “estado da arte” para compreender a fundo o que a bibliogra-
fia especializada sobre as representações medievais de tempo tem a nos dizer.
Passar em revista o “perde e ganha” das abordagens realizadas pelos
medievalistas não permitiria apreender este envolvimento que arremata a
historiografia. Mais do que sistematizar o legado historiográfico a ser assu-
mido, devíamos burlar a moldura familiar da linguagem quase técnica dos
historiadores e questioná-la de maneira mais ampla. Mais do que apresen-
tar a historiografia, precisávamos interpelá-la, espreitá-la mais a fundo. Para
atender a este propósito, o final deste capítulo foi reservado para uma crítica
hermenêutica sobre as relações entre os medievalistas e a compreensão das
temporalidades medievais.

Anões em Ombros de Gigantes?

Dar a largada em um debate sobre a bibliografia especializada no tema


das práticas e experiências medievais de tempo é uma tarefa especialmente
difícil e controversa, quase espinhosa. Ainda que todo começo deste tipo te-
nha algo de abusivo ou de convencional, para o historiador que aponta sua
atenção para este tema, a demarcação dos referenciais historiográficos é mais
arriscada, incerta, escorregadia.
Pois a questão da vivência do tempo pelos homens da Idade Média é
co-extensiva à própria historiografia. Ela se alastra em todo o seu conjunto de
maneira difusa, dispersa. Os historiadores nem mesmo precisam interrogar
diretamente a geometria dos calendários e relógios medievais – não obstan-
te a insistência com que o fazem (JONES, 1943; WOLFF, 1962: 1141-1145;
CIPOLLA, 1992; BECKWITH, 1996; McCARTHY, 1998: 203-255; RICHARDS,
Leandro duarte rust 55

1998; ROSSUM, 1998; DECLERQ, 2000) – para o tema despontar em suas


obras. Bastou se voltarem para outros assuntos e o mote da percepção do
tempo apareceu, embaralhado no estudo das mais diferentes matérias, como
feitiçaria (MICHELET, 1966), usos da força e tortura (LEA, 1996), a forma-
ção da sociedade feudal (BLOCH, 1990: 90-105) ou cultura popular medieval
(BAKHTIN, 1999). Iniciar uma revisão historiográfica sobre este tema é uma
questão desconcertante porque equivale, na prática, a buscar por um ponto de
partida que pode ser encontrado em toda parte.
Mas em meio a essa amplitude, é possível perceber uma mudança ge-
ral de tom por parte dos medievalistas. Há um ponto de inflexão a partir do
qual uma postura comum face ao estudo das temporalidades generalizou-se
entre eles. Houve um momento em que as representações de tempo assu-
miram novas linhas de realidade aos seus olhos. Em meados do século XX,
difundiu-se pela historiografia uma recusa da abordagem que concebia os
aspectos tecnológicos, filosóficos e artísticos como suficientes para apreen-
der as vivências humanas acerca do tempo. Desde então os autores passa-
ram a acusar de reducionistas perspectivas baseadas na ideia de que para
localizar as temporalidades bastava levar em conta as práticas de cômputo
do devir ou a expressão artística da angústia que é a finitude. Em seu lugar,
os medievalistas passaram a exaltar as experiências acerca do tempo como
construções coletivas, algo que perpassa a totalidade social e nunca está “ter-
minado”, jamais é exclusivamente objetivo ou psicológico, mas permanece
aberto, em constante reformulação no curso da existência em sociedade.
Estamos falando de um deslocamento teórico que arrastou os medievalistas
para uma verdadeira reescrita da ontologia das relações dos homens com o
tempo: este não pode ser considerado como exterior ao ser ou incorporado
na vida humana simplesmente em relações do tipo sujeito-objeto. Mais do
que um “estado da matéria” ou uma “categoria do intelecto”, o tempo, como
realidade humana, deveria ser encarado como um complexo fato de experi-
ência social.
Em suma, por volta de cinquenta anos atrás o objeto de estudos “re-
presentações de tempo” deixou de ser o mesmo para a historiografia espe-
cializada sobre o medievo. A esta alteração decisiva designaremos fundação.4
Compreendê-la – e não realizar um inventário exaustivo de perspectivas e
tendências de estudo – é nosso propósito. Os primeiros passos a serem dados
nesta direção consistem em retomar o nome de Ernst Hartwig Kantorowicz.

4
“Nem continuidade nem ruptura: o desenvolvimento das ciências, ao nível dos discursos que as produ-
zem, é marcado por fundações. Uma fundação não é senão um sistema de diferenças entre dois sistemas
de relações, relações que os discursos contraem com as condições que os sustentam e explicam enquanto
produtos de uma prática significante que se desenrola na História”. VERÓN, 1980: 122.
56 coLunas de são pedro

Em Os Dois Corpos do Rei, obra publicada em 1957, Kantorowicz prescre-


veu insistentemente o tema da percepção medieval do tempo como um funda-
mento do universo político que deu forma ao mundo moderno. Segundo ele,
noções determinantes das teorias e ações políticas da Modernidade ocidental
– tais como “corpo natural” e “corpo político”, “coroa”, “corporação” –, decor-
rem de caracterizações do tempo viabilizadas no medievo (KANTOROWICZ,
1998). Para esse medievalista alemão, os significados atribuídos ao tempo são
parâmetros de organização de toda a vida em sociedade e, como tal, da própria
orquestração do poder político. Esta perspectiva destoou das abordagens em
voga naquele período e levou o próprio Kantorowicz a perceber quão solitária
era sua forma de entender a questão. A constatação em questão está estampa-
da no trecho em que o autor (1998: 171) se deteve sobre a mudança, ocorrida
no século XIII, da reputação “agostiniana” do tempo para a “tomista”:

Embora os aspectos filosóficos dessa mudança tenham sido frequente-


mente estudados e sejam bastante conhecidos, as consequências histó-
ricas dessa nova atitude em relação ao Tempo, por serem difíceis de
fundamentar, mal foram investigadas. No entanto, uma nova abordagem
do Tempo e uma nova concepção da natureza do Tempo devem ser con-
sideradas não só como fator filosófico, mas, também, como um fator
histórico de grandes proporções.

Algumas das “proporções históricas” assumidas por esta nova concepção de


tempo encontram-se, segundo Kantorowicz, nos processos de institucionalização
do poder. Mais do que fixar um novo vocabulário político-teológico, a nova per-
cepção de tempo trazida pelo tomismo possibilitou a fabricação de novos recur-
sos e mecanismos de governo: ela fundamentou regimes outros de fiscalidade, de
uso da força, de aparelhamento jurídico e de legitimação da autoridade. Através
de tais enunciações, a obra de Kantorowicz recusou a valorização das tempora-
lidades apenas em suas dimensões intelectual e técnica – como fizeram Georges
Poulet (1952) e Lewis Mumford (1934). Os Dois Corpos do Rei selou a perspectiva
analítica vigente como saber defasado, demarcando a fundação do estudo das
representações de tempo como problema de história político-institucional.
O peculiar valor historiográfico atribuído por Kantorowicz às tempora-
lidades foi obra de sua filiação historicista (BOUREAU, 1990; IGGERS, 1968;
MEINECKE, 1943). A ideia da racionalização das condutas – potencializada
por uma nova abordagem do tempo – culminando na centralização do Estado
evoca a máxima hegeliana que fixava a ordem estatal como unidade ética
síntese do processo histórico. Ao compreender a esfera política como uma
estrutura lógico-normativa viabilizada por sentidos de tempo, Kantorowicz
Leandro duarte rust 57

expôs toda sua afinidade com o notório conceito de Estado como “realidade da
ideia ética” (Ver: ROSENFIELD, 2003). Imbuída de fenomenologia hegeliana,
a Ideengeschichte formulada em Os Dois Corpos do Rei fez as temporalidades
medievais assumirem um perfil menos material e técnico para caracterizá-las
como realidade holística, vivida em nível mais profundo que o racional. Mais
do que uma questão de relógios e calendários, as representações de tempo
foram matrizes de estruturação do modo de vida de uma época, bem como
de suas correlações de poder. Sua ocorrência histórica deveria ser vista como
totalizante. Seus desdobramentos pertenciam ao domínio das identidades co-
letivas. Sua grandeza histórica define-se pelos abrangentes parâmetros da kul-
tur e não pela destreza tecnológica (Ver também: CANTOR, 1991: 79-117).
Contudo, esta mesma filiação historicista que permitiu a Os Dois Corpos
do Rei reorientar a interpretação histórica das temporalidades medievais criou
sérias limitações.
O modelo conceitual de cultura adotado implicou em generalizar como
pertencente a toda uma coletividade experiências de tempo colhidas junto à
“alta cultura”. Ou seja, Kantorowicz trata como consensuais ou partilhadas
por diversos extratos sociais, as ideias e os valores delineados pelo letramento
e pela cultura escrita das elites (Ver: BURKE, 2006: 234-243; EAGLETON,
2005: 20-35; KUPER, 2002: 45-72). Esta avaliação da vida em sociedade a
partir da “alta cultura” engolfou a caracterização das temporalidades numa
amplitude histórica excessiva, hiperbólica. Mas há mais. Esta visão sublimada
de cultura permitiu configurar as temporalidades medievais como criações
culturais dispostas acima das contradições que atravessam a vida social. Em
vão esperamos de Os Dois Corpos do Rei demonstrações sobre como as desi-
gualdades sociais, os conflitos, as possibilidades de resistência ou de negocia-
ção influenciaram as “reputações do tempo”. Estas representações não trazem
as marcas das tensões e conflitos que selavam a sociedade medieval. O alto
teor de idealismo alemão presente na escrita de Kantorowicz expôs as expe-
riências medievais acerca do tempo aos perigos de uma sublimação cultural.
Talvez a saraivada de críticas que atingiu o historicismo ao longo do sé-
culo XX nos ajude a entender porque o nome de Kantorowicz permanece uma
referência adormecida para a historiografia que se ocupa das temporalidades
medievais. Condição simetricamente oposta àquela usufruída por Jacques Le
Goff. Na realidade, poucos desfrutam da fortuna intelectual alcançada por
este medievalista francês. A começar pela insistência com que os Annales re-
clamam para a figura deste autor o mérito por adequar o estudo da vivência
do tempo ao ofício do historiador.5

5
“O mérito pela colocação nova e profunda do problema do tempo como problema sócio-cultural pertence
58 coLunas de são pedro

Os trabalhos de Le Goff aclamados como uma espécie de “marco-zero”


que faz tabula rasa das contribuições de Kantorowicz são dois artigos: Na Ida-
de Média: tempo da igreja e tempo do mercador, de 1960, e O Tempo de Trabalho
na ‘Crise’ do Século XIV: do tempo medieval ao tempo moderno, de 1963 (ambos
presentes em: LE GOFF, 1995). Tais estudos veicularam a premissa segundo a
qual ocupar-se do exame das temporalidades significava investigar poderosas
forças sócio-culturais, fatores constitutivos das formas com que eram travadas
as relações de trabalho, dominação e distinção. As representações de tempo
são aí encaradas como fator definidor das identidades sociais e das modalida-
des de controle social. Seu significado histórico seria de tal magnitude, que Le
Goff julgou-as suficientes para projetar nova luz sobre um velho lugar-comum
dos estudos medievais: o conflito entre a igreja e os mercadores. Mais do que
um entrevero motivado pela usura, o choque entre esses grupos sociais de-
corria, segundo o ilustre medievalista, de um embate de grandes proporções
antropológicas: a colisão de diferentes “aparelhos mentais”, cada um nucleado
por uma percepção de tempo.
De um lado, havia o tempo sacramental e cósmico dos teólogos cris-
tãos – o tempo da igreja –; do outro, estava o tempo racional e pragmático de
mercadores – o tempo do mercador. O primeiro, seguindo de perto o rastro das
demarcações bíblicas e patrísticas, consistia no rebaixamento ontológico do
tempo real, ele próprio denegrido como símbolo do transitório e do efêmero a
ponto de possuir valor apenas ao ser revestido de predicados transcendentais.
Para os clérigos medievais, segundo Le Goff, o tempo estava eclipsado na ima-
gem da eternidade e era vivido fundamentalmente como a duração histórica
e litúrgica dos assuntos da alma. Já os mercadores – ainda de acordo com o
autor – vivenciavam o tempo de maneira oposta, ao considerá-lo um artefato
profano. Eles o exteriorizavam para manipulá-lo, conquistavam-no, tratavam-
no como um índice de cálculos, de projeção de riscos, de realização de lucros.
Eis aí um tempo domesticado por maquinismos, talhado em medidas pela
“inteligência, habilidade, experiência e manha do mercador” (LE GOFF, 1995:
54). De um lado, havia um tempo repleto de densidade teológica e moral;
do outro, um estimado como viés de domínio sobre o mundo material e ve-
tor de secularização. Um tempo sagrado versus um tempo profano. Um tem-
po agrário versus um tempo urbano. Um tempo “medieval” versus um tempo
“moderno”. Eis o conflito entre Igreja e mercadores recolocado em toda sua
amplitude histórica.6

antes de tudo a Jacques Le Goff”. GUREVITCH, 2003: 181. Ver ainda: BURGUIÈRE, 1993: 83; REVEL &
SCHMITT, 1998.
6
“Medir o tempo tornava-se para o mercador uma necessidade, enquanto a Igreja revelava-se inábil nesse
mister.” LE GOFF, 1991: 109-110. Ver ainda: LE GOFF, 1992: 194; LE GOFF, 2005a.
Leandro duarte rust 59

Mas o próprio Le Goff logo soube que esta questão o conduzia a outra
ainda maior. Afinal, como a força hegemônica das “maneiras medievais de
sentir” – a Igreja – lidou com o tempo quantitativo e objetivável que a Moder-
nidade fez triunfar no Ocidente? Nas obras posteriores veio a resposta: a Igreja
tomou parte deste triunfo, mas não toda ela. Somente algumas alas clericais,
nascidas do grande progresso material e urbano que florescia no “mundo feu-
dal” do século XII, teriam desempenhado este papel. O medievalista refere-se
aos grupos eclesiásticos que, em sua interpretação, readequaram a hegemonia
religiosa ao turbulento universo citadino; ou seja, os “intelectuais” (LE GOFF,
1989a; 2001a; 2003a)7 e as ordens mendicantes (LE GOFF, 2001b)8, consi-
derados articuladores privilegiados da crença no Purgatório (LE GOFF, 1995:
272. Ver ainda: 1994: 118). Secularizados, imersos na vivência da mudança,
solidários à valorização de um devir manipulado como grandeza métrica e
individual, estes grupos se transformaram, aos olhos de nosso autor (LE GOFF
& SCHMITT, 2002: 537), em verdadeiras vanguardas clericais, círculos que
cooperaram para a difusão de novas atitudes perante o tempo.9 Em síntese, a
equação proposta pelo autor consiste em dispor, de um lado, a “Igreja tradi-
cional”, guardiã de uma temporalidade rural e arcaica; do outro, os centros
urbanos mercantis, portadores de um tempo secularizado e modernizador, e,
transitando entre eles na busca por uma interseção de valores temporais, os
escolásticos e mendicantes.
Para Jacques Le Goff, portanto, a luta pela imposição da percepção tem-
poral sobre as condutas coletivas do Ocidente medieval era um conflito pela
reprodução da ordem social e pelo controle dos dispositivos de dominação
simbólica. Eis, desta forma, como os trabalhos deste medievalista francês tor-
naram-se o espaço de enunciação da “fundação” discursiva que já havia alcan-
çado a obra de Kantorowicz: eles assinalam a recolocação das representações
medievais de tempo como um problema de “antropologia histórica” (LE GOFF,
1998).
A ruptura com as abordagens vigentes sobre o estudo das temporalida-
des, marcada na escrita de Kantorowicz, tornou-se ainda mais contundente nos
escritos de Le Goff. Sob sua perspectiva, os estudiosos deveriam olhar para além

7
“O mercador, acusado primeiro de vender o tempo que não pertencia senão a Deus, (...) forma uma
espécie de par com o mestre universitário”. LE GOFF, 2007a: 173-174.
8
“A Igreja tradicional acusa-os [mercadores] de praticar a usura e de vender o tempo (...). As ordens
mendicantes legitimam o essencial da atividade dos universitários e dos mercadores”. In: BERLIOZ, 1996:
236-237.
9
Ao longo da leitura das obras de Le Goff fica-nos a forte impressão de que mendicantes e intelectuais
– e a crença no Purgatório – são antes veículos de experiências do “citadino”: “... o citadino existe. (...)
Na cidade, aprende-se a conhecer o valor do trabalho e do tempo, (...). O intelectual (...) é um homem de
escola e de escola citadina”. LE GOFF, 1989b: 19-20. Ver também LE GOFF, 2004.
60 coLunas de são pedro

dos calendários e das crenças no eterno. Era preciso adotar escalas de obser-
vação de máxima amplitude social; absorver grandes doses do relativismo cul-
tural típico do campo teórico da Antropologia; além de manejar combinações
interdisciplinares menos suscetíveis ao factual e ao narrativo e mais adequadas
ao estrutural e à “longa duração” (HARTOG, 1995: 1219-1236; SCHWARCZ,
2004: 185-207). O resultado destas proposições foi a demonstração de que
numa sociedade podem coexistir representações de tempo tão numerosas e dís-
pares como os próprios grupos sociais, sendo cada uma delas portadora de um
ritmo próprio de alteração histórica. Estruturais e pluridirecionais, as vivências
medievais de tempo foram redimensionadas no saber histórico segundo os parâ-
metros epistemológicos da chamada “nouvelle histoire” (OLABARII, 1995: 1-29).
De certa forma, Jacques Le Goff conquistou o tempo para os Annales.
Porém, nada disso exime esta perspectiva de uma revisão acurada. Co-
mecemos pela controversa consistência dos critérios com que o medievalista
recortou as temporalidades. Como acabamos de ver, Jacques Le Goff nos apre-
senta uma Idade Média plural quanto às experiências temporais, distribuídas
em “tempo da igreja”, “tempo do mercador”, “tempo senhorial”, “tempo do
príncipe”.10 Porém, não fica claro o que justifica tais separações. Observemos
o “tempo da igreja”: sua delimitação não obedece a critérios sociológicos, já
que esta temporalidade plurissecular é sensivelmente indiferente à heteroge-
neidade social e à regionalização que marcavam a ecclesia medieval. Haja vista
como o autor recrutou seus porta-vozes nas mais diversas épocas e ambientes
sociais: em Para Um Novo Conceito de Idade Média, surgem, num só fôlego,
Agostinho, Gregório I, Hincmar, Oto de Freising, Hugo de Saint-Victor (LE
GOFF, 1995: 48-49). E apesar do que possam sugerir os artigos publicados em
1960 e 1963, nem sempre o traçado que distingue estes tempos acompanha
a posição ocupada pelos agentes sociais nas malhas das relações de poder e
da dominação social. Afinal, não vemos nomes da Patrística figurando lado
a lado com os goliardos como integrantes do “tempo dos clérigos da Idade
Média”, em A Civilização do Ocidente Medieval (LE GOFF, 2005a: 160-161)?
As análises de Le Goff encontram-se atravessadas pelo risco de fazer com que
extratos sociais dinâmicos e heterogêneos surjam como um grupamento social
ou ideológico comum (Ver: VAN ENGEN, 2002: 492-522).
Além disso, em uma sociedade marcada por tantas acomodações entre
os ritmos da economia senhorial e a ordenação litúrgica do calendário, distin-
guir um “tempo da Igreja” e outro “senhorial” é tarefa um tanto incerta e ar-

10
“O Tempo da Idade Média é, em primeiro lugar, um tempo de Deus e da terra, depois, dos senhores
e dos que estão sujeitos ao senhorio, depois – sem que os tempos precedentes tenham deixado de ser
presentes e exigentes – um tempo das cidades e dos mercadores, e, finalmente, um tempo do príncipe
e do indivíduo”. LE GOFF & SCHMITT, 2002: 531.
Leandro duarte rust 61

riscada. Pois, como e até que ponto se pode individualizá-los, quando ambos,
instituintes do modus vivendi das elites medievais, estruturaram as mesmas
cadeias de dominação e de hegemonia? (Ver: STAROSTINE, 2006: 465-486;
BASTOS, 2002) Cabe ainda outro questionamento: como sustentar esta se-
paração entre um tempo da igreja, sagrado e prodigioso, e outro mercantil,
racionalizado e prático? Será possível conferir à igreja pré-escolástica as pro-
priedades de uma poderosa instituição e vetar-lhe a experiência de um tempo
minimante utilitário e estratégico como aquele atribuído ao mercador?11
Tais inconsistências derivam de uma aproximação não plenamente me-
diada entre duas vertentes teóricas discrepantes: a história sociológica de Marc
Bloch e a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss. As obras de Le Goff hesi-
tam em conceber as temporalidades medievais ora como sistemas de inter-re-
lações que, subjacentes às coletividades, conferem estabilidade e inteligibilida-
de intersubjetivas aos fenômenos que compõem uma realidade sócio-histórica
(isto é, uma estrutura nos moldes de Lévi-Strauss); ora como componentes
objetivados através das experiências coletivas, isto é, como universo simbólico
construído por meio de práticas reincidentes no interior dos grupos sociais (um
componente da ação social, como aparece em A Sociedade Feudal). Daí que as
temporalidades incidam como “plataformas culturais” que, simultaneamente,
distinguem os segmentos sociais enquanto homogeneízam internamente suas
experiências coletivas. Em uma palavra: representações que instituem a gene-
ralização estrutural lá onde demarcariam a particularização social.
Por fim, resta-nos questionar a leitura impressionista que o autor de O
Nascimento do Purgatório faz do “tempo da igreja”, revestido de um teor hie-
rofânico sofrivelmente favorável à racionalização. Le Goff moveu sua atenção
para as vivências eclesiástica de tempo como quem buscou descobrir o estranho.
Sua postura de “revalorizar na história os elementos mágicos, os carismas”,12 le-
vou-o a destacar no passado aspectos mais próximos da imagem de um mundo
perdido. Fez do “tempo da igreja” não apenas algo prodigioso e embriagado de
apelos ao metafísico, mas uma temporalidade incapaz de assimilar a dinamiza-
ção da existência cotidiana e os desafios práticos da intervenção sobre o mun-
do. Sob o olhar de Le Goff a representação de tempo dos clérigos medievais
11
Observe-se este exemplo retirado de um livro recente. Num primeiro momento eis a afirmação
taxativa de que “não se pode (...) falar de um enfrentamento: Igreja contra mercadores. O Lugar-comum
segundo o qual a Igreja se oporia à economia e ao progresso é parte do velho arsenal das Luzes, retomado
no século XIX”. Contudo, bastam algumas páginas para o autor retroceder e dispor estes agentes his-
tóricos como inimigos jurados nos domínios das representações de tempos: “com esse tempo da Igreja
entra em conflito (...) um tempo leigo, tempo das cidades, a que chamei tempo dos comerciantes...”. LE
GOFF, 2005b: 101; 135. Poderiam as temporalidades estar em divórcio com os comportamentos sócio-
econômicos na civilização medieval?
12
LE GOFF, 1990: 182-186. Eis novamente a influência da busca de Levi-Strauss pela “natureza simbó-
lica (...) das ‘realia’”. LÉVI-STRAUSS, 1993: 19.
62 coLunas de são pedro

retém pouco da condição de “ser-no-mundo” e muitíssimo da de um “ser-para-


o-eterno”. Restam, ademais, as dúvidas: será que esta temporalidade teria sido
capaz de conferir sentido e potencializar todas as práticas e atividades exerci-
das no seio da ecclesia? Em toda a multifacetada e complexa malha eclesial que
recobria o Ocidente, somente “intelectuais” e mendicantes puderam adequar
suas experiências temporais às transformações dos séculos XI-XIII?
Desde meados do século XX, os medievalistas têm seguido de perto as
coordenadas conceituais e metodológicas enunciadas por Le Goff para o es-
tudo das representações de tempo. É o que evidencia Categorias da Cultura
Medieval, obra-síntese publicada por Aaron Gurevitch em 1972. Entusiasta
dos rumos trilhados pelos Annales, este professor da Academia de Ciências
de Moscou vislumbrava na Antropologia Histórica do medievalista francês o
instrumento mais adequado para a condução de um estudo sobre tempora-
lidades medievais (GUREVITCH, 1992: 14-20; 2004: 188). Ideia que levou
Gurevitch a repetir fielmente o corolário legoffiano de ver as grandes cidades
mercantis como palco maior da modernização do Ocidente. Isto, por sua vez,
levou-o a caracterizar os agentes e poderes considerados conflitantes com o
mundo urbano – caso da “Igreja medieval” – como forças sociais arcaizantes e
retrógradas. Daí a imagem da ecclesia “feudal” como baluarte de uma tempo-
ralidade de sina sagrada e transcendental, tão pouco afeita à racionalização e
tão precária em contabilizar o tempo-do-mundo, que terminou por tornar-se
incompatível com o dinamismo da vida citadina e mercantil.13
Eis, reeditada, a perspectiva de Le Goff, que atribuía aos círculos ecle-
siásticos uma temporalidade nostálgica, presa ao outono de uma sociedade
rural e tradicionalista, e aos mercadores uma representação de tempo criada
pela primavera de um Ocidente urbano e moderno. Gurevitch (2033: 185-
186) persistiu nos trilhos de uma clara generalização:

Le Goff supõe que o conflito causado pelo controle sobre o tempo ocor-
reu entre a Igreja e a classe de comerciantes. Não me inclino a pensar
que ele havia sido mais complexo e que se tenham lançados diferentes
pontos de vista no seio do próprio clero.

Hervé Martin (1996) foi outro a perpetuar a premissa de que o apego


irredutível ao sagrado e ao conservadorismo restringiu a Igreja medieval à con-
dição de coadjuvante – quando não de obstáculo – no que diz respeito à ra-

13
“O domínio do tempo pela igreja podia durar tanto quanto correspondia ao ritmo lento, medido da vida
da sociedade feudal. (...) O equilíbrio épico da vida medieval era antes de mais condicionado pela natureza
agrária da sociedade feudal.” GUREVITCH, 1990: 173. Ver ainda o texto de Gurevitch “O tempo como
problema de história cultural” em RICOEUR, 1975: 279-280.
Leandro duarte rust 63

cionalização das experiências de tempo. Nem mesmo o desgaste sofrido pelo


conceito “mentalidade” provocou revisões quanto ao formato em que Le Goff
inseriu as representações medievais de tempo. O estudo de Michel Hulin (1985)
sobre como os imaginários acerca do Além modelavam os sentidos de tempo,
bem como as investigações de Perrine Mane (1983; 2004. Ver ainda: LE GOFF,
LEFORT & MAINE, 2002) sobre a cultura material dos campos medievais atra-
vés das iluminuras de calendários, reforçam a assertiva tácita consagrada por
Le Goff de que as temporalidades eclesiásticas constituem um objeto de estudos
que se revela mais adequadamente quando interrogado em sua dimensão sim-
bólica e imagética. Toda esta acentuação heurística da precedência do simbólico
e do psicológico reaparece de um ponto a outro nas dezenas de trabalhos que in-
tegram Le Temps Chrétien de la fin de l’Antiquité au Moyen Âge (PIETRI, DAGRON
& LE GOFF, 1984). Coletânea povoada pela inclinação tipicamente legoffiana
para subsumir as temporalidades no interior de “aparelhos mentais”.
Mesmo desembarcando do conceito mentalités, Jean-Claude Schmitt
(2001: 390) foi outro autor a deixar intocada a referência de pano-de-fundo a
um totalizante “tempo da igreja, que domina a sociedade feudal”. Schmitt seguia
de perto as clássicas páginas de Montaillou, obra que reservou espaço para des-
crever a “temporalidade das gentes humildes neste jogo de espelho que opôs dois gê-
meos inimigos: ‘o tempo da Igreja’ e o ‘tempo do mercador’” (LADURIE, 1990: 343).
Algo semelhante realizou Gerard Moran (1981: 13-19) ao persistir re-
produzindo como insolúveis os antagonismos entre a representação de tem-
po acalentada pela igreja e aquela propagada pelos mercadores. Mesmo após
afirmar que “em geral, podemos dizer que todos os grupos sociais e ocupacionais
estavam abertos à moderna concepção de tempo em variados graus”, Moran re-
cuou e concluiu que a temporalidade eclesiástica do medievo foi derrotada
pelo “tempo do mercador” e por um novo aliado na secularização da percep-
ção do devir: o protestantismo. Se examinarmos o passado que contribuiu
para o aparecimento do tempo objetivado, algébrico e mecânico que deu vida
à Modernidade, não encontraremos – sugere Moran com um explícito tom
weberiano –, os grupos dominantes da Igreja medieval, que permaneciam cur-
vados a uma incorrigível mística neoplatônica. Acharemos somente os grupos
embrenhados em negócios mercantis.
Para isso apontam também os argumentos de Jaume Aurell (2001: 197-
218). De fato, são muitos os medievalistas que parecem concordar com a ideia
de ser impossível lançar-se a um estudo das representações medievais de tem-
po sem aderir à opinião de que “no coração da Idade Média se plantou o conflito
do tempo da igreja e do tempo dos mercadores como um acontecimento primor-
dial da história mental dos séculos em que se elaborou a ideologia do mundo
moderno” (ORTEGA CERVIGÓN, 1999: 09-39).
64 coLunas de são pedro

Inquebrantável e acolhida consensualmente, a perspectiva analítica de


Jacques Le Goff foi assim convertida em uma espécie de “dado” para o qual
retorna toda investigação sobre o tema das temporalidades. É o que atesta
igualmente A Civilização Feudal, obra lançada por Jérôme Baschet (2006: 314)
em 2004. Acumularam-se décadas e sucederam-se gerações de medievalis-
tas. Ainda assim ficou intacto o fundamental do viés interpretativo segundo o
qual, retirados os flancos clericais de métier urbano, restaria na Idade Média
uma Igreja selada pelo incontornável déficit em contabilizar a concretude e o
pragmatismo temporal. Imagem que se tornou paradigmática e cujo sentido
historiográfico pode ser captado neste questionamento emblemático de Arno
Borst (1993: 64): “de fato, a Igreja e o mundo vivem no mesmo tempo?”.
Os avanços haviam sido substanciais. A obra de Baschet sintetiza as con-
tribuições de uma linha historiográfica que redefiniu o lugar ocupado pelo estu-
do das representações medievais de tempo nos domínios da História. Com ela, o
tema recebeu uma nova cidadania junto aos medievalistas, na qual dizer “tem-
poralidade” significava falar “lutas pelo poder”, “relações de dominação”, “iden-
tidades coletivas”. Vista de modo menos monolítico e mais pluralista, a vivência
do tempo não podia mais ser descrita como abrigada em algum lugar específico
da vida em sociedade, como os calendários ou a arte: cabia, a partir de agora,
reconhecer seus infindáveis laços dialéticos com os processos sociais, e explicar
como ela os transformou e foi embebida por eles. Entre os especialistas em Ida-
de Média consolidou-se o postulado de que mesmo as mais diversas relações de
força de uma época estiveram permeadas de experiências temporais. Todavia,
no encalço das obras de Ernst Kantorowicz e Jacques Le Goff vingaram contro-
vérsias e imprecisões. Mantiveram-se generalizações abusivas, estilizações que
modelam a imagem de um medievo povoado por temporalidades expressadas
em blocos, em grandes arranjos unitários. Sobressaiu a ênfase da racionalização
do agir intratemporal como prerrogativa da condição de citadino, engessando a
reputação da “Igreja” como reduto de experiências arcaicas e reacionárias.
Os historiadores aderiram ao viés interpretativo viabilizado por Kanto-
rowicz e Le Goff – especialmente ao elaborado por este último – de modo tão
decisivo, tão substancial, que traz à nossa memória a célebre metáfora atribu-
ída por João de Salisbury a Bernardo de Chartres: “somos como anões sentados
sobre ombros de gigantes”. Contudo, será que estes estudiosos puderam, como
na conhecida metáfora, “ver mais além do que eles por estarem elevados acima
de seu tamanho gigantesco”?14

14
“Dicebat Bernardus Carnotensis nos esse quasi nanos gigantium humeris insidentes (...). Ut possi-
mus plura eis et remotiora videre, non utique proprii visus acumine, aut eminentia corporis, sed quia
in altum subvenimur et extollimur magnitudine gigantea.” JOÃO DE SALISBURY. Metalogicon 3: 136.
Leandro duarte rust 65

À sombra de um revés

O magnetismo exercido pelas obras de Kantorowicz e Le Goff sobre o


quadro geral da historiografia não impediu que distâncias fossem tomadas,
que percursos alternativos fossem trilhados. De fato, houve aqueles que segui-
ram coordenadas teórico-metodológicas destoantes daquelas indicadas pela
fundação historiográfica ocorrida em meados do século XX. Assim o eviden-
ciam Time in the Medieval World (HUMPHREY & ORMOND, 2001) e Time and
Eternity: the medieval discourse (JARITZ & MOREÑO-RIAÑO, 2003).
Por se tratar de publicações de autoria coletiva, que reúnem uma ampla
gama de trabalhos dedicados ao tema das representações medievais de tempo,
estas duas coletâneas de estudos propiciam ao leitor um apanhado geral de
tendências de pesquisa realizadas fora da alçada de influência da historiogra-
fia francófona. Talvez esta margem de autonomia nos ajude a entender porque
suas páginas são generosas em objeções e críticas quase sempre disparadas
contra um mesmo alvo: Jacques Le Goff e seu primado de um duelo “igreja
versus mercador”. Chris Humphrey situou assim seu estudo sobre a organiza-
ção do tempo nas jornadas diárias de trabalho na cidade de York baixo-me-
dieval: “a situação em questão era muito mais complexa do que expressões como
‘tempo da igreja’ ou ‘tempo mercador’, tal como popularizados por Le Goff, podem
sugerir” (HUMPHREY & ORMOND, 2001: 106). Nem mesmo no tema mais
estreitamente associado ao seu nome, o annaliste deixou de ser contestado.
Observe-se o que disse Robert Mills (JARITZ & MOREÑO-RIAÑO, 2003: 497)
em um texto consagrado à representação artística da doutrina do Purgatório:

Seria um erro sugerir que as transformações da consciência do tempo


na baixa Idade Média foram inteiramente um resultado da expansão de
redes comerciais no período (...). Nem seria adequado ver as mudanças
na ordem temporal nos termos de uma rígida oposição entre sagrado e
profano, segundo a distinção de Le Goff entre “tempo do mercador” e
“tempo da igreja”.

Contudo, a maior parte das discordâncias que são levantadas contra as


abordagens influenciadas pela nouvelle histoire encontra-se difundida ao longo
dessas coletâneas como posicionamentos subentendidos, assumidos de forma
implícita. Sendo o principal deles o que diz respeito à escala de observação.
Optando por trabalhar com conjuntos documentais mais circunscritos e com-
pactos, por abordar agentes históricos de dimensões sociais mais reduzidas,
Time in the Medieval World e Time and Eternity revelam nítida desconfiança
perante a abordagem macrossocial. Estas obras abrigam estudos que corrigem
66 coLunas de são pedro

a conotação interclassista e generalizante dos recortes sociais comumente atri-


buídos pela nouvelle histoire às representações medievais de tempo.
A primeira – e talvez a principal – referência abalada por este empe-
nho foi a do “tempo da Igreja”. Estes estudos fazem da particularização dos
sentidos de tempo o carro-chefe da análise histórica. Segundo Paul Brand a
pesquisa dos documentos deixados por advogados, jurisconsultos e clérigos de
corte, revela o quanto é insustentável a busca por ver os traços de um tempo
arcaico e sacramental neste “tempo que era sempre o tempo do mundo real (...)
e cujo desenvolvimento reflete a crescente sofisticação de seu sistema e a criação
de seu próprio modo distintivo de pensar e interrogar o passado” (HUMPHREY
& ORMOND, 2001: 73-104). O trabalho de Timothy Kircher obriga o leitor a
desfazer em sua mente a imagem congelada das ordens mendicantes como
“vanguardas no trato com o tempo”: partindo dos escritos do dominicano Ja-
copo Passavanti, Kircher revela como este frade professava uma “teologia ba-
seada na possibilidade de retirar-se das seduções do mundo e do tempo, como
um ato moral da vontade, afim à noção monástica de fuga mundi” (JARITZ &
MOREÑO-RIAÑO, 2003: 283-294). Nestas linhas fica desautorizada qualquer
inclinação historiográfica para fincar uma fronteira rígida entre “conservado-
res” e “vanguardistas” quanto à percepção clerical do tempo na Idade Média.
Contudo, todas estas contribuições acabam ofuscadas por um impasse,
uma espécie de nó górdio que parece atar as duas publicações. Trata-se de
uma inconsistência que faz com que estas obras caiam nas armadilhas de uma
insuficiência. Vejamos.
Segundo os organizadores, a referência geral que definiu o corpus tex-
tual reunido em cada coletânea foi o empenho para demonstrar como “a ex-
periência medieval do tempo e eternidade era rica e complexa, e sua investigação
estava aberta a várias aproximações e métodos” (JARITZ & MOREÑO-RIAÑO,
2003: 5), ou ainda, “o escopo cronológico destes textos, dos primórdios da Ida-
de Média aos do mundo moderno, sugere que é inútil tentar definir o ‘tempo
medieval’ em termos absolutos: naquela época, tal como agora, o tempo era um
medium maleável e relativo” (HUMPHREY & ORMOND, 2001: 02). Mas não é
o que vemos ocorrer. Ao concluir o balanço das “aproximações” de fato reali-
zadas, constatamos que Time and the Medieval World e Time and Eternity não
cumprem de modo satisfatório o propósito de atestar a pluralidade e a densi-
dade histórica das temporalidades medievais.
As duas obras priorizam uma pauta temática demasiadamente restriti-
va, limitada, enxuta. É notável como o estudo proposto reflui aí para alguns
poucos campos temáticos, restringindo a vivência temporal a um pequeno
repertório de facetas da vida humana: 1) o cômputo e o uso de unidades
cronológicas; 2) as especulações filosóficas e teológicas; 3) as composições
Leandro duarte rust 67

literárias; 4) a expressividade artística e 5) as ideias e práticas a respeito da


morte e escatologia. Caso que está longe de ser isolado, pois em Construction
of Time in the Late Middle Ages, publicada anos antes, nos deparamos com uma
triagem temática semelhante, sugerindo que as atitudes coletivas diante do
tempo refugiam-se nos domínios da metrificação e da cronologia, das narrati-
vas cosmogônicas, das formas de alegorizar o devir e a morte, do misticismo e
da escatologia (POSTER & UTZ, 1997: 01-206).
Mas há mais. No interior desta lista, uma modalidade específica de
categorização das experiências de tempo retém a maior parte das atenções:
a “narrativa”. Especialmente em Time and Eternity reina uma desproporção
acentuada de trabalhos que convertem a experiência das temporalidades
em uma experiência essencialmente narrativa. Os capítulos se revezam du-
rante a leitura, mas somos insistentemente reconduzidos à perspectiva de
que a percepção do tempo possui, acima de tudo, um modo de ser textual.
A reincidência do enfoque sobre os episódios filosóficos, intelectuais e esté-
ticos das percepções medievais do devir cria uma rotina de leitura, na qual
reaparece a todo o momento o princípio de que estudar temporalidades
significa garimpar processos de construção textual e figurativa. Ao reservar
um invejável espaço para os exames dedicados aos romances de Geoffrey
Chaucer ou à literatura de Boccaccio e Petrarca, estas coleções autorizam a
avaliação dos sentidos de tempo mobilizados por um agente histórico, ou
por toda uma época, como a algo a ser apreendidos recorrendo-se apenas às
suas dimensões textuais ou artísticas. Lidamos com um risco de reificação
das dimensões figurativas da vida em sociedade, postura capaz de induzir o
leitor a tomar como equivalentes “representações de tempo” e “representa-
ções textuais do tempo”.
Esta valorização exacerbada do aspecto textual e linguístico das tempo-
ralidades faz ressoar o tom das críticas chamadas pós-modernas – de grande in-
fluência nos círculos acadêmicos anglo-saxônicos (VASCONCELOS, 2005) – que
reclamam para a narrativa e o intertextual não só a condição de modus operandi
da escrita da história, mas a de campo referencial a ser adotado para a noção de
“real” (CLARK, 2004: 86-105; HUTCHEON, 1991: 183-202). Em sintonia com
alguns dizeres identificados como pós-modernos, Time and Eternity e Time in the
Medieval World contribuem para colocar a realidade entre aspas linguísticas e
fazer o estudo do mundo social refugiar-se no interior de obras literárias.
Um dos desdobramentos mais controversos desta tendência está em fa-
zer pairar sobre as experiências medievais de tempo a arriscada noção de “li-
teralidade” (CARDOSO, 1999: 99-120). A presença difusa, mas performática,
deste conceito é encontrada em outra obra: Dire et Penser le Temps au Moyen
Âge, de 2006 (BAUMGARTNER & HARF-LANCNER, 2006).
68 coLunas de são pedro

Igualmente coletiva, essa publicação tem por campo investigativo o en-


troncamento da escrita da história-memória e da composição literária entre os
séculos XI e XV. E para a tarefa de explorá-lo, foram reunidos trabalhos capazes
de abarcar três divisas temáticas: (1) Dire le Temps; (2) Temps Historique, Temps
Vécu; (3) Entre Histoire et Roman. Temos aí úteis lições sobre a complexidade e a
pluralidade das formas medievais de expressão dos sentidos de tempo. Em espe-
cial, a obra se faz metodologicamente instrutiva quanto aos meandros das com-
posições textuais realizadas na Idade Média, revelando como atributos temporais
diferentes ou até mesmo paradoxais se entrelaçam na documentação; como a
significação do devir irrompe não das alegadas intenções de autores, mas da in-
tertextualidade que envolve o próprio enunciador dos textos. Casos de polifonia
narrativa, heteroglossia e interdiscursividade encontram-se aí bem aquilatados,
proporcionando valiosas pistas sobre como as construções textuais medievais im-
plicam em não-transparência dos processos de significação, em opacidade nas
interligações de referências discursivas e em possibilidades de descentralidade
dos agentes históricos.
Entretanto, não podemos negligenciar o ‘‘reverso da medalha’’. Mesmo dian-
te das conhecidas advertências quanto aos riscos imanentes ao manuseio da noção
de ‘‘literatura medieval’’ (ZUMTHOR, 1991), a coletânea frequentemente ultrapas-
sa o princípio de uma relativa autonomia do trabalho literário e dispõe a composi-
ção textual como domínio auto-referencial no processo de representação de tempo.
É marcante em suas páginas como nada ou muito pouco além das narrativas apa-
rece como instâncias suficientes para desarticular e recompor drasticamente, per
se, os sentidos de tempo atribuídos à vivência histórica dos medievais. Em outras
palavras, a construção social da escrita se vê, assim, à beira de uma obliteração no
interior dos processos de produção textual. Abre-se caminho para o risco de uma
‘‘super literalização’’ dos textos medievais (STROHM, 2000). Neste sentido, Dire et
Penser le Temps au Moyen Âge cultiva mais afinidades com o medievalismo de viés
estruturalista do periódico Tel Quel (HOLSINGER, 2005: 154-157), do que com
conhecidas publicações precedentes, como Aspects of Time in Medieval Literature
(LOCK, 1985) e Le Temps et la Durée dans la Littérature au Moyen Age et à la
Renaissance (BELLENGER, 1986), ambos fortemente annalistes.
Por certo que a fundação historiográfica do estudo das temporalidades
medievais ocorrida em meados do século XX implicava na incidência de re-
cortes analíticos literários, como demonstram Le Temps: sa mesure et sa per-
ception au Moyen Âge (RIBEMONT, 1992) e La Mentalidad Literaria Medieval
(CARMONA FERNÁNDEZ, 2003), obras que seguiram estritamente as balizas
teóricas e metodológicas assentadas por Kantorowicz, Le Goff, Gurevitch. Po-
rém, por aquilo que conotam em seus conjuntos, Time in the Medieval World,
Time and Eternity e Dire et Penser Le Temps au Moyen Âge não só se distanciam
Leandro duarte rust 69

da perspectiva estabelecida por aquela fundação, mas alimentam o risco teórico de


fechar todo o campo de possibilidades historiográficas aberto por ela.
Ao fazer os sentidos atribuídos pelos medievais ao tempo recuarem, na es-
crita da história, para alguns poucos domínios da vida em sociedade – sobretudo,
o da fabricação narrativa –, estas coletâneas acabam por depor contra a abrangên-
cia social e a pluralidade das experiências históricas. Se por um lado, tais obras
contêm exímios ensinamentos sobre as particularidades e as irredutibilidades tex-
tuais que podem marcar as temporalidades; por outro, elas deixam o olhar históri-
co repleto de não-lugares, de silêncios, de ausências não-declaradas: e a vivência
do tempo nas relações econômicas? Nas esferas da política e de governo? Nos con-
flitos sociais? Nas estratégias de resistência? Por acaso estes domínios da realidade
não possuem dimensões significativas ou – se assim preferirmos – “culturais”?
Estas obras imprimem um corte transversal ao passado medieval que faz com
que apenas um campo particular de práticas e produções esteja investido da vivên-
cia do tempo. É vital recuperar o sentido forte da fundação historiográfica enunciada
em Kantorowicz e Le Goff: o de que a percepção e a significação do tempo se fazem
presentes em diversos comportamentos e práticas sociais, mesmo naqueles que se
insinuam mais distantes dos dimensionamentos explicitamente simbólicos ou ‘‘cul-
turais’’. No esteio deste postulado, encontra-se nossa pesquisa. O estudo das repre-
sentações de tempo é, em nossas reflexões, um viés de análise de questões diversas
e que, à primeira vista, despontam aparentemente dissociadas dos objetos habituais
da história institucional: questões que englobam desde a organização territorial da
Sé Romana até o lugar ocupado pelas práticas reformadoras no exercício do poder
pontifício. Seguindo o que julgamos ser o essencial da postura que unia Kantorowicz
e Le Goff, o tempo, tal como expressado nos concílios pontifícios, será aqui nosso
instrumento de navegação adotado para levar a diante a escrita de uma história que
contemple a dimensão institucional do papado centro-medieval.
Por nos expor à possibilidade de admitir que as representações de tempo
estariam “mais presentes” em algumas esferas da vida do que noutras, ou que
suas porções textuais seriam a “mais poderosa” forma de vivenciá-las, obras
como Time and Eternity e Time and the Medieval World se arriscam a unidimen-
sionalizar as práticas medievais acerca do tempo. Deixam-nos, assim, à sombra
de um revés historiográfico que buscaremos evitar.

A Falta e o Perdão

Não é demais insistir. Há meio século uma fundação historiográfica alte-


rou a forma com que os medievalistas põem sob sua mira o tema das represen-
tações de tempo. Desde então, a tarefa de dimensionar este objeto de estudos
tem significado privilegiar o coletivo em relação ao biográfico, o inconsciente
70 coLunas de são pedro

ao intencional, a relativização à naturalização. Mas como explicar a emergên-


cia desta nova matriz historiográfica? Porque estes princípios foram acolhidos
de forma tão ampla e duradoura?
Questionamentos como estes nada têm de simples. Eles tocam em ra-
zões de vários matizes, do sociológico ao metodológico, e as poucas páginas
restantes deste capítulo não serão suficientes para apresentá-las adequada-
mente. Entretanto, embora incompleta, uma resposta pode ser oferecida: esta
fundação historiográfica foi a realização hermenêutica da condição de ser his-
tórico dos próprios autores. Eis o que veremos a seguir.
Ao arrebatar a vida cotidiana num salto tecnológico inimaginável
(HOBSBAWN, 1995: 257-260), as décadas do pós-guerra multiplicaram a ex-
periência do tempo. Firmou-se na superfície do dia-a-dia a obrigação de viver
entre cadências discrepantes de mudança. Selou-se a necessidade sem trégua de
populações inteiras se habituarem a padrões de duração oscilantes e revogáveis,
como “o tempo que se passa no trabalho”, aquele que se “dedica à família”, o
que “deve ser reservado para si mesmo”, aquele que se “gasta com o lazer”. A
recente modernização tecnológica instaurou o imperativo diário de habituar-
se a diferentes ritmos sociais e conviver com um tempo social fragmentado e
descontínuo.
Não que esta aceleração dos ritmos da vida social tenha sido caracterís-
tica apenas do século XX. Os espectros da fluidez temporal, da fugacidade do
presente e das incertezas de futuro, por certo, não foram desconhecidos em
séculos anteriores (ARENDT, 1990; BERMAN, 1986). Mas até então o perigo
de ser soterrado por tempos sociais divididos e incontroláveis era contraba-
lançado por “comunidades de sentido” capazes de aninhar nas consciências
a sensação de estabilidade e unicidade da vida social.15 A família nuclear, as
organizações de categorias profissionais, as ideologias partidárias, as malhas
corporativas: foram muitos os espaços estabelecidos pela modernidade onde
vigoravam a experiência de que os diversos ritmos do cotidiano eram subor-
dinados a referenciais comuns, ligados a certos eixos sociais. A imagem da
família como santuário social, o “refúgio num mundo sem coração”, ou o orgu-
lho de protagonizar uma longa biografia de pertencimento institucional, “uma
vida de trabalho”, ofereciam aos homens e mulheres modernos as certezas de
contar com padrões de socialização em meio aos ritmos maquinistas e velozes
dos domínios do capital. O avanço irrefreável da competição e do individua-
lismo, bem como a aceleração das experiências de consumo eram amenizados
pela existência de lugares e vínculos sociais glorificados como referenciais de
15
“Comunidade de sentido”: uma comunidade que partilha um reservatório comum de sentidos ob-
jetivados, viabilizando e potencializando um agir que se repete com regularidade e reciprocidade em
relações sociais duráveis. BERGER & LUCKMANN, 2004: 25-51.
Leandro duarte rust 71

segurança, autoconfiança e esperanças secularizadas. A circulação social das


promessas de “uma vida inteira na empresa” ou da “família como reduto de
ternura e apoio” remediava a crescente sujeição dos indivíduos a jornadas diá-
rias cada vez mais intensas e impessoais, levadas a toque de caixa.
O êxito da modernidade capitalista em temperar o caráter flexível e pro-
visório dos laços sociais parece esmorecer nas décadas de 1950-1970. Desde
então, no rastro do desejo volátil pelo consumo se alastrou “o fantasma da
inutilidade individual”, evocado por uma infindável migração de tarefas, com-
petências, identidades (SENNET, 2006). A realização das personalidades nos
atributos da mercadoria abriu caminho ainda maior para a erosão dos antigos
padrões de sociabilidade. Aberta e inconstante, a interação social mediada
pela mercadoria é um convívio com desencaixes: o distante inserido no local,
a busca por colonizar o futuro a partir de um presente minúsculo e efêmero,
os altos riscos de desastres e tragédias convertidos em pacatas rotinas de pro-
babilidades diárias.16
Não surpreende que estas décadas sejam tidas como a era de esgota-
mento da carga humanista que acompanhava a modernidade (WALLERSTEIN,
1995: 471-488). O século XX parece ter negligenciado o mandamento moder-
no de remediar a dispersão do tempo. A elevação do consumo ao patamar de
“comunidade global de sentidos” fez da volatilização do presente vetor com-
portamental. A diluição das rotinas em sucessões de momentos cada vez me-
nores deixou de ser algo a ser contrabalançado, compensado. Viver a presença
de instantes intangíveis tornou-se a regra. Reter um “hoje” desassossegado por
tecnologias e pela febre da comunicação midiática transformou-se em norma
de sobrevivência social:

A instantaneidade tornou-se um verdadeiro imperativo moral. A urgên-


cia transforma-se em ideologia. A rapidez, ou seja, o tempo que ultra-
passa a si mesmo e confirma seu domínio sobre o espaço, é o critério
superior para os utensílios e para as pessoas (...). (CHESNEAUX,
1996: 24-30)

Ser órfão de tempo é um traço sociológico definidor da vida contempo-


rânea:

A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de


aniquilação do tempo. (...) A distância em tempo que separa o começo

16
“A modernidade é uma cultura do risco. (...) A modernidade reduz o risco geral de certas áreas e modos
de vida, mas ao mesmo tempo introduz novos parâmetros de risco, pouco conhecidos ou inteiramente des-
conhecidos em épocas anteriores.” GIDDENS, 2002: 11.
72 coLunas de são pedro

do fim está diminuindo ou mesmo desaparecendo; as duas noções que


outrora eram usadas para marcar a passagem do tempo, e, portanto,
para calcular seu “valor perdido”, perderam muito de seu significado
(...). Teria o tempo, depois de matar o espaço enquanto valor, cometido
suicídio? (BAUMAN, 2001: 136-138)

Nos séculos anteriores, o tempo era revestido de significados que as-


seguravam seu reconhecimento como potência de vivificação das ações co-
letivas. Na segunda metade do século XX, a aceleração dos ritmos da vida
coletiva aprisionou-o em uma razão sistêmica, um automatismo instrumental.
Coisificou-o. Converteu-o numa sequência numérica fria, impessoal, aparen-
temente dotada de lógica própria. Em linguagem benjaminiana, diríamos que
no pós-guerra triunfou a imagem do tempo vazio de “aura”, identificado com
o curso padronizado e quantificado que se infiltra onipresente no cotidiano.
O tempo decresceu em atributos metafísicos e morais em prol de funções de
reprodutibilidade e utilidade material (BENJAMIN, 1993: 165-196).
Há cerca de cinquenta anos a temporalização das ações sociais no Oci-
dente assumiu uma nova feição, grave e lancinante. Somemos a esta constata-
ção a assertiva de Hans-Georg Gadamer segundo o qual a condição histórica
é um modo de ser inexcedível em qualquer ato de compreensão17 e chega-
remos a uma importante formulação: a condição histórica mundializada no
pós-guerra tem acarretado uma maior exposição do ato de compreender o
tempo a novas pressões de significação. Tarefa para a qual o olhar medieva-
lista revelou-se particularmente suscetível. Pois, o estudo das representações
medievais de tempo capturou o passado numa versão conveniente: submeteu-
o às pressões interpretativas para ressignificar nossa dramática experiência
atual.18 Isto foi feito através da sublimação e da evasão.
Em primeiro lugar, os medievalistas expressam uma negação, dizendo-a
na forma de uma comunhão indestrutível: “os homens e mulheres que viviam há
mil anos são nossos ancestrais. Eles falavam mais ou menos a mesma linguagem
que nós e suas concepções de mundo não estavam tão distantes das nossas” (DUBY,
1999: 13). Ou ainda “se olharmos para o esqueleto e não apenas para a nova face
e as novas roupas do Ocidente no século XX, outra vez encontraremos muito da Ida-
de Média” (FRANCO JÚNIOR, 2004: 157). Dispostas neste continuum histórico,

17
“Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico
prévio, (...) porque suporta toda opinião e comportamento do sujeito e, com isso, prefigura e delimita toda
possibilidade de compreender uma tradição”. GADAMER, 2005: 399.
18
“O conceito de interpretação histórica possui, antes, seu correlato no conceito de expressão, conceito
que a hermenêutica histórica não entende no seu sentido clássico (...). O que a expressão expressa não é
somente o que nela deve se tornar expresso, o que ela quer dizer, mas principalmente aquilo que se expressa
neste querer dizer e dizer, sem precisar ser expresso, aquilo que ‘trai’ a expressão”. GADAMER, 2005: 440.
Leandro duarte rust 73

as percepções medievais de tempo passam a repousar, ainda que opacas e distor-


cidas, junto à modernidade e ao avassalador tempus ex machina que a trespassa.
Ou seja, há aí uma certeza acalentadora: a mecanização de nossas rotinas não
nos sentenciou a perder aquela densidade metafísica, emocional e simbólica que
tanto marcou o passado medieval, sobretudo em sua relação com o tempo.
Estes historiadores não falam somente do vivente de outrora, de algo
que ficou para trás, mas de um patrimônio humano que ainda transcorre e o
qual reivindicam, para além do discurso historiográfico, como herdeiros. Eles
nos apontam uma herança que marcaria nossa existência como uma depen-
dência, como uma presença que nos modela. Suas obras estão repletas da
busca por uma forma de “memória-retenção”. Ao expressarem-se na voz de
um ser-em-dívida para com o passado, eles se empenham em negar o sepul-
tamento do tempo humanizado: “olhando para eles [para os homens do ano
1000], podemos, talvez, reconhecer em nós mesmos certos comportamentos e
sentimentos que nos escapam devido à velocidade vertiginosa do nosso presente”
(FRANCO JÚNIOR, 1999: 13). A escrita medievalística encarregou-se de re-
alizar “uma espécie de reabilitação das culturas face à modernidade” (LE GOFF,
1991: 24) e assim negar as perdas sofridas nos dias atuais.
A interpretação histórica realiza a compreensão das temporalidades como
prática de conforto em si, de repouso ontológico. O medievalismo restaura um
sentido de segurança existencial para uma época em que “a perda de pontos fixos
de referência derivada do desenvolvimento de sistemas internamente referidos cria
uma inquietação moral que os indivíduos nunca conseguem superar inteiramente”
(GIDDENS, 2002: 172). A alteridade vívida e imaginativa atribuídas às represen-
tações medievais não poderia ser considerada passado submerso, inatual ou au-
sente. Sua relação histórica com o presente da modernidade não poderia ser tra-
duzida em um subir e baixar de duas realidades, uma que se dissolve e se perde e
outra que advém e a substitui. Trata-se, segundo a historiografia, de uma mudan-
ça que subjaz, persiste. Uma descontinuidade integrada ao horizonte dentro do
qual se vive na atualidade. Ao conferir ao passado medieval um valor testemunhal
sobre o presente, os historiadores o tornaram imanente ao seu próprio “agora”.
Desta forma, o estranhamento do passado, de um mundo distante de tem-
poralidades sacramentais e vistas como portadoras de uma densidade psicológi-
ca inigualável,19 torna-se uma espécie de alter ego que se mantém vivo nos dias
atuais. Ao presentificá-las nestes termos, os medievalistas restituem à sua própria
experiência justamente aquilo que o “breve século XX” parece roubar-lhes: seus
predicados demasiadamente humanos, como sua carga de afetividade, seus lam-

19
“O sentimento psicológico de tempo atinge, na Idade Média, uma intensidade desconhecida nas épocas
anteriores da história da humanidade”. GUREVITCH, 1990: 179.
74 coLunas de são pedro

pejos morais, sua promessa de transcendência. A escrita da história reata pas-


sado e presente, perfaz uma espécie de efeito discursivo terapêutico, que busca
restaurar “a naturalidade com que temos até aqui tomado o tempo como uma su-
cessão de passado, presente e futuro, [mas que] está inquietada pelo tempo agente,
ativo, produtivo, vetorizado para o novo, para a obrigação da novidade, tempo que
é nosso” (DOCTORS, 2003: 18. Ver igualmente: BALANDIER, 1999: 17).
Entra em cena a propagação de um referencial histórico-antropológico
para toda a interação social e intelectual. Este discurso historiográfico se faz
solidário à preocupação de restabelecer a compreensão da unidade do ser e
do devir. De desvendar o ser-em-si que realiza a travessia do tempo, singrando
a história como algo mutável e transitório, mas sem perder a unidade ontoló-
gica. Afinal, “a antropologia histórica busca apreender na história o homem por
inteiro, corpo e espírito” (LE GOFF, 2007b: 207), deixando a lição de que, his-
toricamente, nós mudamos, mas nem por isso deixamos de ser, antropologica-
mente, os mesmos. Os medievalistas não reivindicam falar apenas de história,
mas da medida de humanidade que atravessaria os séculos.
Desta forma, esta historiografia permite ao homem contemporâneo
encontrar para si, em si, um sentido de totalização da existência humana.
Compõe-se um quadro geral que aponta para uma mesma direção: um pas-
sado medieval que não se demitiu do presente, que não deve e não pode ser
arquivado incomunicável à vida contemporânea. Reforça-se a imagem de que
as representações medievais de tempo não foram abandonadas no caminho
da história para o hoje. Este não seria um passado perdido e impessoal, mas
um que segue imanente aos dias de hoje, interiorizado perpetua e irrevogavel-
mente em um “nós” que compartilhamos por obra “dessa Idade Média da nossa
infância” (LE GOFF, 2006: 30; 2008: 33). O passado medieval é habilitado
como a promessa de fazer sarar as feridas impostas por um mundo atormenta-
do pelo efêmero e pelo veloz.20 A historiografia faz com que as temporalidades
medievais falem de uma imensa angústia temporal contemporânea. Não para
que elas calem o esfacelamento do tempo que tanto marcou o Ocidente do
século XX, mas para que o digam de um modo apaziguado, ameno, menos
traumático, abrandado por este reencontro de humanidade do qual a Idade
Média foi transformada em fiador antropológico.
Reencontramos, então, na urgência em salvaguardar o sentido existen-
cial do tempo, nosso argumento central: a historiografia medievalista fez do

20
O homem atual se reconhece mais nas coisas superficiais, de origem recente, do que nas essenciais, que
vêm daquela época (...). De certa forma, a crise da civilização ocidental deve-se ao descompasso entre o
externo (contemporâneo) e o interno (medieval).(...) É uma espécie de esquizofrenia coletiva e social. Em
razão disso, os crescentes prestígio e popularidade dos estudos sobre a Idade Média têm algo (...) de busca
de reintegração dos dois planos”. FRANCO JR., 2044: 171.
Leandro duarte rust 75

estudo das representações de tempo um meio para integrar e restaurar “o todo


histórico-vital” (GADAMER, 2006: 159-173) da compreensão de seu próprio
presente. Este significado perpassou a fundação historiográfica debatida: ela
foi uma re-orientação do olhar científico, sua habilitação para responder às
pressões sociais impostas pela condição histórica de seus enunciadores, ou
seja, para amenizar a angústia temporal vivida pelos próprios medievalistas.
Eis porque seria inútil procurar um rosto criador para esta fundação: ela
decorre não de sujeitos individualizados, mas de um processo que atravessa
os historiadores como atuantes na história. Ela foi movida pela condição his-
tórica globalizada no pós-guerra. Por isso as décadas de 1950 e 1960 trou-
xeram uma safra de historiadores e cientistas sociais que se viram levados a
indagar, quase simultaneamente, as relações dos homens e o tempo para além
da cronologia: em 1959, Edward Hall lançou A Linguagem Silenciosa; no ano
seguinte despontaram o referido Na Idade Média: tempo da igreja e tempo do
mercador, de Jacques Le Goff, e Politics, Language and Time, de J. G. A. Pocock;
em 1962, foi a vez de Sebastian de Grazia e a publicação de Tiempo, Trabalho
e Ócio e de Lévi-Strauss e as incursões pelo Tempo Reencontrado, parte de seu
mergulho no Pensamento Selvagem; o conhecido The Attitude of the Algerian
Peasant Toward Time, de Pierre Bourdieu, surgiu em 1963; dois anos se pas-
saram até o lançamento de The Discovery of Time, de Toulmin & Goodfield;
em 1966, enquanto Arnaldo Momigliano lançava o conhecido Time in Ancient
Historiography, Julius T. Fraser despontava na organização do interdisciplinar
The Voices of Time e na fundação da The International Society for the Study of
Time; em 1967 entraram em cena Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo
Industrial e Relógios e Culturas, respectivamente de Edward P. Thompson e
Carlo Cipolla.
Portanto, Kantorowicz e Le Goff enunciam, no território dos estudos
medievais, a perspectiva que se firmava no panorama mais amplo das ciências
humanas: a interrogação das temporalidades como um problema sócio-histó-
rico, estimulada pela decomposição das experiências contemporâneas acerca
do tempo presente. O temor de perder o tempo, de vê-lo escorrer entre os
dedos, aguçou a atitude intelectual de valorizá-lo, sobretudo através do saber
histórico, “ciência do tempo”. Eis uma resposta capaz de explicar a maciça e
durável adesão de estudiosos a este prisma investigativo: esse estudo tornou-
se o domínio de uma forma de compreensão da condição histórica dos pró-
prios medievalistas (Argumentação a partir de GADAMER, 2005: 385-426).
Contudo, a historiografia medievalista excedeu as condições epistemoló-
gicas desta experiência hermenêutica que, acreditamos, é um traço constitutivo
76 coLunas de são pedro

e irrevogável do saber histórico.21 Sejamos claros: ela foi longe demais quando
confinou o passado em versões limitadas de nossas aspirações. Os estudos que a
compõem vão muito além de reeditar o presente do historiador como instância
em que a consciência histórica se temporaliza como campo de experiências e
horizonte de expectativas (KOSELLECK, 2006). Eles enrijecem e, simultanea-
mente, extrapolam esta modalização do tempo histórico ao capturar o passado
em um olhar consolador diante do avanço global de tempos sociais que parecem
bater em retirada a cada volta completada pelos ponteiros do relógio.
Vista em seu conjunto, a historiografia transforma o estudo das tempo-
ralidades do medievo em uma forma de refúgio no passado, o que não equivale
a reconhecer a carga de contemporaneidade que condiciona sua compreensão.
Trata-se, de estender sobre a prática intelectual a mesma atitude de renúncia
que se dedica ao presente: unidimensionalizar o passado pela expectativa de
sentido, cristalizá-lo pela idealização, tipificá-lo pela negação. Como demons-
trou Gadamer, a fundamentação hermenêutica da escrita do texto histórico
não implica em obliterar a distância existente entre a realidade histórica e a
compreensão histórica:

Um pensamento verdadeiramente histórico deve incluir sua própria his-


toricidade em seu pensar. Só então deixará de perseguir o fantasma de
um objeto histórico para aprender a conhecer no objeto o diferente do
próprio, conhecendo assim tanto um quanto o outro. O verdadeiro ob-
jeto histórico não é um objeto, mas a unidade de um e de outro, uma
relação formada tanto pela realidade da história quanto pela realida-
de do compreender histórico. Uma hermenêutica adequada à coisa em
questão deve mostrar a realidade da história na própria compreensão.
(GADAMER, 2005: 396)

A inexistência de distinções absolutas entre o passado e o presente –


posto que eles se fundem no horizonte de compreensão do historiador – não
implica em negligenciar a irredutibilidade que envolve cada um. Se o passado
é recuperado somente na aplicação compreensiva do presente, nem por isso
ele pode ser livremente recriado, subjetivamente escolhido (HANS-HERBERT
KÖGLER, 1996: 127-141).

21
Afinal, “quando nossa consciência histórica se transporta para horizontes históricos, isso não quer di-
zer que se translade a mundos estranhos que nada têm a ver com o nosso; ao contrário, todos eles juntos
formam esse grande horizonte que se move a partir de dentro e que abarca a profundidade histórica de
nossa autoconsciência para além das fronteiras do presente.” GADAMER, 2005: 402. Insistimos, note-se
as implicações teóricas da frase: “para além das fronteiras do presente”! Isso quer dizer que reconhecer
o enraizamento do saber histórico no presente dos historiadores não significa escancará-lo a toda e
qualquer forma de “presentismo”.
Leandro duarte rust 77

Eis o ponto em que vacila o olhar da historiografia medievalista: ator-


mentado pela temporalidade dispersiva difundida pelo século XX, ele cedeu ao
risco de se apropriar do outro no ato de compreensão, permitindo, com isso,
que a complexidade de sua alteridade fosse diminuída. E o fez, em especial,
ao transformar os clérigos medievais em “primitivos do tempo”.22 Convertê-
los em antepassados dos quais teríamos herdado um privilegiado patrimônio
antropológico de temporalidades repletas de presença divina, de densidade
moral e de potência metafísica, foi a principal forma de assimilar o passado
medieval às expectativas de sentido geradas por um presente volatilizado e
mecanizado.
O estado da arte historiográfica, com seu onírico “tempo da igreja” e o
estilizado “tempo na narrativa”, relata-nos uma experiência hermenêutica da
recusa e do escapismo, que se realiza através da escrita da história medieval.
Ele nos fala do agudo temor de ser devorado pelo tempo, fantasma que ator-
menta nosso dia-a-dia, e nele, os historiadores. Estamos diante de um olhar
que se agarra ao precedente de uma Idade Média imaginativa e afetiva – ainda
demasiado romântica – para negar essa ameaça de paralisia criada por um
mundo onde uma dolorosa erosão parece engolir o tempo e deixar atrás de si
apenas o instantâneo e do desterritorializado. As experiências medievais são
assim transformadas em garantias contra nosso mundo, no qual tudo apare-
ce sufocado pelo imediato e miniaturizado, sem geografia nem história. Nas
entrelinhas desta escrita desenhada pela maestria medievalista encontramos
a confissão de um tempo que nos falta. E em suas linhas o perdão por termos
participado de sua perda.

22
“Estamos diante de uma sociedade que (...) merece ainda a qualificação de primitiva, no sentido que os
etnólogos dão a este termo”. LE GOFF, 2003b: 26.
Capítulo 2

Esquecer a lei, recompor a justiça:


tempo e poder

Aquele que não consegues corrigir é


teu: é parte de ti; quer como seme-
lhante, quer como membro da comu-
nidade eclesial, ele está dentro de ti;
que hás de fazer?
Agostinho de Hipona, 392-418.

2.1. O retorno do sagrado

No dia 9 de abril de 1049, Leão IX reuniu o primeiro concílio de seu


pontificado na basílica de São João de Latrão, em Roma. Após proclamar a fé
catholica, logo pela manhã, ele passou a tratar das queixas contra o clero ali
reunido,1 exigindo de cada um a satisfação pessoal contra as acusações de que
era alvo. A inquirição papal durou dias e eclesiásticos foram depostos à medi-
da que ela transcorreu. Ao chegar sua vez, Domingos II, bispo de Sutri, tentou
se justificar prestando falso testemunho. Porém, de acordo com a Vita Leonis,
quando estava próximo de concluir o juramento, o bispo:

foi abatido por vontade divina e morreu, pouco tempo depois, nos braços
daqueles que o haviam levado para fora [da basílica]. Todos que teste-
munharam isto foram compelidos por tão grande temor que, a partir de

1
Não há registros oficiais desta assembleia. Uma lista dos eclesiásticos presentes é fornecida por Jaffé
e totaliza doze bispos, sendo dez da península italiana: JL 4158. Na década de 1960, Ovidio Capitani
chegou a um total de 21 bispos, ampla maioria de prelados italianos (CAPITANI, 1966: 137-139). Men-
ção à maioria italiana dos bispos reunidos encontra-se em: HERMANN DE REICHENAU. Chronicon.
MGH SS 5: 128.
80 coLunas de são pedro

então, ninguém pretendeu prestar, por respeito humano, um falso jura-


mento na presença do papa.2

Meses depois outro episódio teria dado provas de que “Cristo concedeu
fortalecer com sua graça a autoridade do papa”.3 Em outubro, após consagrar a
igreja da abadia de São Remígio, Leão reuniu em Reims um grande concílio,
cujos debates foram dominados pelas iniciativas de combate à “heresia da
simonia”. Este era o nome reservado para um modo de tratar os bens eclesi-
ásticos associado à figura de Simão Mago, descrito nos Atos dos Apóstolos (8:
9-24) oferecendo dinheiro a Pedro em troca de dons espirituais. Portanto, a
tradição cristã usualmente designava “simonia” a corrupção moral do clero,
não apenas por meio de dinheiro, mas também, segundo uma ancestral for-
mulação do papa Gregório Magno (540-604), quando a ordenação de um pre-
lado envolvia a concessão de presentes, o pagamento por serviços prestados
ou, simplesmente, favores ou acordos.4
Foi um suspeito de tal infração que se tornou o centro das atenções no
segundo dia dos trabalhos conciliares em Reims. Na realidade, a simonia era
somente um dos muitos delitos atribuídos a Hugo, bispo de Langres, detestado
por seu próprio clero como tirano (clericos suos tyrannidem exercuisse), ho-
mem habituado a cometer assassinatos (homicida perpetrasse), violar mulhe-
res casadas (alieni matrimonii jura violasse), praticar a sodomia (sodomitico)
e recorrer à tortura (flagitio). Encurralado pelas acusações, Hugo suplicou ao
arcebispo de Besançon, eloquente chanceler do duque da Borgonha, para que
o defendesse. No entanto, ao erguer-se para tomar a palavra, o arcebispo su-
bitamente teria perdido a voz. Segundo a Historia Dedicationis Ecclesiae Sancti
Remigii nenhum dos presentes duvidou: aquele emudecimento repentino era
obra de São Remígio. O santo calou o ilustre prelado para impedi-lo de in-
terceder por um criminoso (criminosi) perante o pontífice.5 No relato consta
ainda que a intercessão celestial impressionou outro dignitário, o arcebispo de
Lyon. Amedrontado, ele confessou os crimes de simonia e rapina em nome de
Hugo, mas negou os demais delitos. O anoitecer forçou o papa a adiar a for-
mulação da sentença para o dia seguinte. Porém, antes de encerrar as delibe-
2
... peracturus jusjurandum, repente est divinitus perculsus, et, inter manus exportatus non longo
post tempore humanis rebus est exemptus. Cunctis hoc audientibus nimius incutitur timor, ne quen
in ejus praesentia ad falsum judicium humanus impelleret pudor. VITA LEONIS IX PAPAE. PL 143:
491-492. Ocorrência não mencionada em outras fontes sobre o sínodo: BONIZO DE SUTRI. Liber Ad
Amicum. MGH Ldl 1: 588; PEDRO DAMIÃO. Liber qui dicitur Gratissimus. PL 145: 150; WATTERICH,
1: 154-155.
3
Christus auctoritatem ejus sua dignatus est gratia roborare. VITA LEONIS IX PAPAE. PL 143: 491-492.
4
GREGÓRIO I. Homiliae in Evangelio Iohannis. PL 76: 1091-1092; JOÃO DIÀCONO. Vita Sancti Gre-
gorii Magni. PL 75: 132-133.
5
ANSELMO DE SÃO REMÍGIO. Historia Dedicationis Ecclesiae Sancti Remigii. PL 142: 1434.
Leandro duarte rust 81

rações, Leão ordenou a leitura do segundo cânone do concílio de Calcedônia


(451), que determinava a deposição do clero envolvido na venda das ordens
sagradas.
Terrificado, o bispo de Langres fugiu naquela mesma noite. Pela manhã,
a notícia da fuga se espalhou e sua ausência precipitou uma condenação. Após
a leitura da sentença de excomunhão, por volta da terceira hora, o arcebispo
de Besançon se colocou novamente de pé para assumir a defesa do fugitivo
e, “como na véspera, foi condenado ao silêncio pela divina virtude através dos
méritos do bem-aventurado Remígio”.6 Após percorrer a Gália, a “boa nova do
milagre” (miraculi novitatem) teria levado o bispo de Langres ao arrependi-
mento e a confessar seus delitos diante do pontífice, em Roma. O gesto, ao que
parece, reintegrou o simoníaco confesso, tradicional aliado do rei Henrique I,
devolvendo-lhe a função episcopal (BOUCHARD, 1987: 72; MACDONALD,
1930: 60; CAPITANI, 1966: 160-161, 169-173). No entanto, Hugo faleceu no
caminho de volta para casa.7
Dias depois, o papa encontrava-se em Mainz, onde celebrou um concílio
ao lado de aproximadamente quarenta bispos germânicos e do imperador,
Henrique III.8 Após renovar as decisões de Reims, Leão ocupou-se do caso
de Síbico, bispo de Spire, suspeito de violar o celibato eclesiástico. Diante do
plenário, o papa pronunciou solenemente sua decisão: a inocência do clérigo
seria colocada à prova pelo “exame do sacrifício”. Isto é, após prestar jura-
mento, o bispo comungaria e, se seus lábios tivessem dito a verdade, ele nada
sofreria ao receber a eucaristia. Tratava-se de uma prova corporal que evocava
o sagrado como juiz, prática comum entre os homens do papado (MORRIS,
1975: 95-111). O ordálio (judicium Dei) teria sido terrível para o implicado:
ao receber em sua boca “o corpo do Senhor”, a mandíbula de Síbico teria sido
travada por uma paralisia que o atormentou até o fim de sua vida. A imperdo-
ável prova da culpa revelava-se no corpo do transgressor.9
Os rastros documentais deixados pelos sínodos celebrados por Leão IX
conduzem reiteradamente a relatos de intervenções miraculosas. Na assem-
bleia realizada em abril de 1050, de volta a Roma, “outro milagre” (aliud mira-
culum) teria ocorrido. Durante a ceia, o papa teria ordenado que fosse trazido

6
Et quomodo pridie eumdem reum excusare nitens ex divina virtute per beati Remigii merita silentio
condemnatus sit. ANSELMO DE SÃO REMÍGIO. Historia Dedicationis Ecclesiae Sancti Remigii. PL 142:
1435-1436.
7
VITA LEONIS IX PAPAE. PL 143: 492-493. Sobre a absolvição do bispo de Langres, ver: CHRONICON
SANCTI BENIGNI DIVIONENSIS. MGH SS 7: 237. Sobre a assembleia de Reims: HEFELE-LECLERCQ,
4/2: 1011-1023.
8
Sobre a assembleia de Mainz: JL 4188, ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 688.
9
ADÃO DE BREMEN. Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pontificum. MGH SS 7: 346; LAMBERTO DE HER-
SFELD. Annales. MGH SS 5: 154; VITA LEONIS IX PAPAE. PL 143: 493.
82 coLunas de são pedro

à mesa um cálice especial, oferecido a ele em Reims, em nome do próprio São


Remígio. Mas, a poucos passos do salão, o objeto escapou das mãos de um
copeiro descuidado e se estilhaçou. Os cacos foram trazidos ao papa. Com um
simples toque dos dedos, Leão teria unido novamente os pedaços e restaurado
o cálice.
Este episódio é a metáfora de uma poderosa mensagem. Afinal, não se
trata de um objeto qualquer. Pelo contrário, símbolo eucarístico da aliança en-
tre o Cristo e os homens, o cálice é uma alegoria da comunidade cristã, da pró-
pria igreja, a herdeira daquela união (LEXICON, 1998: 42). Portanto, a devo-
lução do santo objeto ao estado original sinalizava a aprovação celestial para a
restauração da Igreja pelo pontífice: danificada, como o cálice, pelo descuido
humano, ela também seria restituída por Leão à sua pureza original.10
Não faltam relatos de que Deus e os santos teriam favorecido o papa. No
mesmo ano, no sínodo de Vercelli, Leão excomungou Humfried censurando-o
por desobediência e pela invasão de propriedades reclamadas pela Sé Roma-
na. Repreendido pelo imperador, o arcebispo de Ravenna se dirigiu ao papa e
em fevereiro de 1051:

Ele prostrou-se aos pés do santo homem [isto é, Leão] e, apesar de em


seu coração ele permanecer obstinado, todos os bispos reunidos pediram
por sua absolvição. E então o bem-aventurado homem disse: “Possa o
todo-poderoso Senhor garantir absolvição de seus crimes de acordo com
o grau de sua piedade”. Quando, entretanto, o arcebispo levantou-se
com um sorriso zombeteiro, ainda intumescido com orgulho, o venerável
pai rompeu em lágrimas e disse reservadamente aos circundantes, “Oh!
Este desventurado homem está morto”. E ele foi, de fato, imediatamente
subjugado por uma fraqueza e com grande dificuldade foi trazido de
volta à sua terra natal antes de ser rapidamente despojado da vida e da
dignidade da qual ele era tão orgulhoso.11

São muitos os registros documentais que confluem para a mesma ima-


gem, na qual a entronização de Bruno de Toul como Leão IX aparece restauran-
10
AMATO DE MONTECASSINO. Ystoire de li Normant: 120-121; ANSELMO DE SÃO REMÍGIO. His-
toria Dedicationis Ecclesiae Sancti Remigii. PL 142: 1439-1440; BRUNO DE SEGNI. Libellus de Symo-
niacos. MGH Ldl 2: 549; VITA LEONIS IX PAPAE. PL 143: 493-494; VÍTOR III. Dialogi. PL 149: 1007.
11
Quia cum licet corde contumaci ante pedes sancti stratus jaceret, cunctusque coetus praesentium
pontificum ei absolutionem peterent, ait vir beatus: “Secundum ejus devotionem tribuat illi omnipotens
cunctorum scelerum absolutionem.” Ille vero surgens cum subsannatorie subrideret adhuc superbia
tumidus, venerandus pastor in lacrymas resolutus, inquit secreto circumstantibus: “Heu! mortuus est
miser iste.” Nec mora; ille languore corripitur, et vix in patriam revectus, vita et honore, quo tumebat
celeriter privatur. VITA LEONIS IX PAPAE. PL 143: 495. Sobre a assembleia de Vercelli: HERMANN DE
REICHENAU. Chronicon. MGH SS 5: 129; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1056-1061. MANSI, 19: 773-774.
Leandro duarte rust 83

do a comunhão aparentemente perdida entre o papado e a graça divina. Sua


ascensão figura como o evento que pôs fim ao longo silêncio celestial sobre o
curso seguido pelas assembleias apostólicas. Ficava para trás um período em
que a providência teria rejeitado os papas por sua ambição, mácula que pre-
valeceu enquanto eles nasceram no seio da família de Tusculum: Bento VIII
(1012-1024), João XIX (1024-1032) e Bento IX (1032-1045). Todos foram pon-
tífices condenados pelos novos registros eclesiásticos como “bispos perversos”12
e considerados pelos historiadores como “antíteses do papado reformador que os
sucedeu” (ROBINSON, 2004: 04. Ver ainda: CAPITANI, 1966: 47-48).
O governo leonino surge na memória de muitos clérigos da época como
o marco de uma mudança, o ponto de ruptura com um período em que a Sé
Apostólica, controlada por poderosas famílias locais, foi ocupada “por merce-
nários, não pastores”.13 Antes um papa de berço romano como Bento IX podia
ser glorificado como “senhor santíssimo”. Agora, após o pontificado leonino,
ele era lembrado como aquele que “mereceu, após sua morte, ter a aparência de
uma besta, uma vez que viveu de maneira bestial”.14 Segundo o Pedro Damião,
cardeal do novo papado, havia quem tivesse visto o espírito de Bento “montado
em um cavalo negro, como se ainda estivesse na carne, (...) visitado por graves
tormentos (...) [devido a seus] atos de pilhagem e injustiça”.15 O sagrado tinha
nova medida.
Pelas mãos de Leão IX os milagres e as intervenções prodigiosas teriam
retornado aos sínodos e concílios papais. A partir de sua ascensão, os relatos
dos plenários clericais reunidos pela autoridade papal passam a ser frequenta-
dos por notícias de feitos milagrosos. Sua entronização surge como a reaber-
tura dos portões do sagrado, que não mais voltariam a se fechar. Nem mesmo
com sua morte. Pouco após seu falecimento, em 1056, um de seus principais
conselheiros, Hildebrando, foi enviado à Gália para prosseguir na luta contra
a simonia e o concubinato eclesiástico. O concílio por ele reunido alcançou
uma notoriedade invejável. Não em razão das decisões aí estipuladas,16 mas
da reputação de ter sido palco de uma ocorrência miraculosa:

12
DE ORDINANDO PONTIFICE. MGH Ldl 1: 11-14.
13
JL 4333. A reprovação aos papas romanos generalizou-se sob a acusação de que eles haviam sub-
metido a Sé de Roma ao direito de hereditariedade: BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl
1: 584.
14
Sanctissimi apostolici domini mei/quia bestialiter vixi, posto vitae finem bestiae perferre speciem
merui. PEDRO DAMIÃO. Briefe 4. MGH Epp. 1: 110; PEDRO DAMIÃO. Briefe 65. MGH Epp. 2: 337-
338.
15
... vidit majorem Benedictum papam, qui jam obierat, nigro equo quasi corporaliter insidentem. (...)
Gravibus, ait, tormentis afficior (...) quia de rapinis sunt et injustitiis acquisita. PEDRO DAMIÃO. De
Abdicatione Episcopatus. PL 145: 428.
16
Sobre as quais pouquíssimo sabemos: HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1120-1124; MANSI, 19: 837-838;
843-845.
84 coLunas de são pedro

Como o papa Calisto [II] acostumou-se a relatar, no primeiro dia do con-


cílio certo falso bispo foi acusado de ascensão ao cume episcopal por
simonia, mas como a comprovação não pôde ser conduzida até o fim, [o
caso] foi adiado para o dia seguinte. Enquanto isso, o que fazia para si
o ciente de sua culpa? Para que se voltava? Ele não se atreveu a corrom-
per a mente do juiz, [Hildebrando], tão inflexível como o diamante, pois
não tinha dúvidas de que isto provocaria mais do que aplacaria o mais
ardente amante da verdade. Então distribuindo dinheiro, ele calou as bo-
cas tanto dos acusadores como das testemunhas e (...), na sessão do dia
seguinte, insultou o juiz, tomado de soberba, dizendo, “Onde estão aque-
les que me acusavam? Ninguém me condenou”. Quanto a isso, o zeloso
homem de Deus, suspirando uma profunda lamentação e com um des-
denhoso gesto que mostrava o quanto seu coração queimava por aquele
homem que estava corrompido, disse ao corruptor: “Acreditas, bispo, que
o Espírito Santo é da mesma substância e deidade que o Pai e o Filho?” O
qual respondeu: “Eu acredito”; “Dizes tu: Glória ao Pai, ao Filho e ao Es-
pírito Santo”. Quando confiantemente tinha iniciado este versículo (...),
“Glória ao Pai e ao Filho”, ele dizia, mas foi incapaz de pronunciar o nome
do Espírito Santo. Exortado a tentar uma segunda vez, foi interrompido
em “Filho”. Permitido repetir uma terceira vez, calou-se em “Pai”. Por
fim, lançando-se aos pés do enviado [papal], confessou abertamente ser
um simoníaco. E, assim que foi deposto de seu episcopado, exclamou
em clara voz: “Gloria ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”. Diz-se que
muitos falsos bispos caíram em remorso diante destes sinais do divino
conhecimento, fizeram confissão espontânea de suas más consciências e
abandonaram os ofícios que tinham injustamente adquirido.17

17
Nam, sicut Papa Kalistus narrare consuevit, prima Concilii die, proclamatus est quidam Pseudo-epis-
copus de Simoniaca Pontificalis culminis ascensione, sed quia ad finem perduci non potuit probatio, in
sequentem diem prolata est. Interim quid faceret sibi male conscius?Quo se verteret? Adamante durio-
rem judicis mentem nullo munere ausus est attentare, non dubitans se per hoc ardentissimum veritatis
amatorem magis exasperare quam placare. Data igitur pecunia, oppilavit ora tam accusatorum quam
testium (...), tumidus crastinae sessionis cognitori insultavit, dicens: Ubi sunt, qui me accusabant?
nemo me condemnavit. Ad haec zelotes Dei alto gemitu suspirans, et frixorium cordis sui super illis qui
corrupti erant dedignativo gestu significans, ait ad corruptorem: Credis, o episcope, Spiritum sanctum
unius cum Patre et Filio esse substantiae et deitatis? Quo respondente, Credo; Dic, inquit, Gloria Patri,
et Filio, et Spiritu sancto. Cumque hunc Versiculum, (...) fiducialiter adorsus fuisset; Gloria Patri et
Filio, dicebat; sed, Spiritum sanctum nominare minime valebat. Secundo tentare admonitus, defecit in
Filio. Tertio repetere permissus, obticuit in Patre. Tunc demum pedibus Apocrisiarii provolutus, Simo-
niacum se esse professus est. Qui mox ut ab Episcopatu depositus est, Gloria Patri, et Filio, et Spiritu
sancto clara voce personuit. Et his divinae cognitionis indiciis feruntur nonnulli Pseudoepiscoporum
compuncti, malas conscientias spontanea confessione prodidisse, et injuste acquisitas dignitates juste
demisisse. In: PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL 148: 44-45. A versão de Paulo de
Bernierd foi escolhida em razão de sua riqueza de detalhes, mas há outras versões cujas variações não
contradizem o quadro narrativo selecionado em nosso estudo: BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum.
Leandro duarte rust 85

Hildebrando foi, para muitos cronistas dos séculos XI e XII, o principal


perpetuador da saga de milagres associada aos concílios papais desde Leão IX.
Em abril de 1073, após ter sido o homem forte de cinco governos pontifícios,
Hildebrando foi eleito sucessor de Pedro, tomando para si o nome de “Gre-
gório” pela sétima vez na história da Sé Romana. Os relatos sobre seu ponti-
ficado ecoam o peculiar dobre leonino: nos momentos em que foi exigido de
maneira decisiva, Gregório VII teria contado com a colaboração do sagrado.
Passemos a outro caso.
Em janeiro de 1076 estourou a crise entre a cúria romana e a corte
germânica. Após sucessivos desentendimentos a respeito dos limites da com-
petência imperial para intervir em questões eclesiásticas, a frágil cooperação
existente entre a realeza teutônica e o papado se desfez com a decisão do
rei, Henrique IV, de lançar contra Gregório uma sentença de deposição. Para
comunicar sua decisão, o monarca enviou para Roma o bispo de Treviso, Ro-
lando, a quem entregou uma carta escrita de próprio punho com as instruções
de como se dirigir ao “falso-papa”. Chegando à cidade, o emissário encontrou
o episcopado romano reunido em seu tradicional sínodo, na igreja de São
João de Latrão. Após cruzar as maciças portas de bronze da basílica, Rolando
foi convidado a falar. À medida que a leitura da carta régia ecoou, cortando o
interior do santuário, Gregório descobriu que Henrique “lhe interditou o exer-
cício do ofício papal e ordenou-lhe que descesse da sé [de Roma]”.18 Cada linha
da mensagem inflamou o ânimo dos presentes e logo mergulhou a basílica
num tumulto febril. Segundo a Vita Mathildis e a Vita Gregorii, no momento
em que a agitação geral estava prestes a custar a vida do desafortunado bispo,
um estranho ovo de galinha foi trazido à presença de todos. Sua casca, seme-

MGH Ldl 1: 592; GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 443-444; PE-
DRO DAMIÃO. De abdicatione episcopatus ad nicolaum II Rom. Pont. PL 145: 433; PEDRO DAMIÃO.
Briefe 72. MGH Epp. 2: 344-345; VÍTOR III. Dialogi. PL 149: 1013-1014.
18
Pontificale ei interdixit officium eique precepit, ut de sede descenderet. BONIZO DE SUTRI. Liber
Ad Amicum. MGH Ldl 1: 606-607. O bispo de Sutri parece transmitir aqui o texto resultante do sínodo
reunido em Pávia, no dia 27 de março de 1076: ou seja, posterior aos episódios descritos acima. Na-
quele mês de março, respaldado pelo episcopado lombardo, o rei germânico produziu o célebre relato
de deposição que exortava Gregório: “Eu Henrique, rei pela graça de Deus, juntamente com todos
nossos bispos dizemos a ti: desça, desça, pelos séculos é condenado”. Texto latino: Ego Henricus Dei
Gratia rex cum omnibus episcopus nostris tibi dicimus: descende, descende, per secula dampnande!
In: HENRIQUE IV. Epistola 62. MGH Const. 1: 110-111. Ver igualmente: HUGO DE FLAVIGNY. Chro-
nicon. MGH SS 8: 431; WATTERICH, 1: 511-516; COWDREY, 1998: 139; TESSORE, 2003: 94-95;
CANTARELLA, 2005: 152-161. O documento encontra-se traduzido em: MILLER, 2005: 88-90. José
Antônio de Souza e João Morais Barbosa (1997: 48-49) atribuem esta versão da sentença de deposição
de Gregório ao sínodo imperial de Worms, reunido em 27 de janeiro de 1076, apartir da referência da
seção Leges da MGH. Além de Bonizo de Sutri, há um conjunto substancial de relatos em que o eclesi-
ástico encarregado de anunciar a sentença régia de deposição, Rolando de Treviso, provocou violenta
reação do plenário sinodal: BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5: 282-283; BRUNO DE MERSEBURG. De
Bello Saxonico. MGH SS 5: 353; DONIZO. Vita Mathildis. MGH SS 12: 377; PAULO DE BERNRIED. Vita
Gregorii VII papae. PL 148: 70-71.
86 coLunas de são pedro

lhante a um escudo horrível e sombrio (scuti similitudo horroe tenebrosa), se


quebrou e deixou sair uma serpente (serpens/colubrum) que envolveu o ovo
com três voltas inteiras e se estendeu para o alto. Contudo, no instante em que
a serpente estava prestes a se enlaçar por completo, sua cabeça fraquejou e
dobrou-se sobre o próprio ventre, como se abatida por um golpe fulminante.19
A serpente é um símbolo ambíguo nas Escrituras cristãs. É possível vê-la
cercada de conotações positivas, representando o triunfo da vontade divina,
como nos episódios da transfomação milagrosa do cajado de Moisés (Ex 7:9-
15) e das provações de Jó (Jo 26:13); mas podemos igualmente encontrá-la
repleta de significados terríveis, ligada à traição e ao pecado (Ecl 10:11; Mq
7:17). No entanto, a que é mencionada no relato acima evoca um conjunto
coerente de referências. O Livro do Gênesis, a Segunda Epístola aos Coríntios
e o Apocalipse apresentam a serpente como um Satã, um adversário (Gn 3:1-
14; 2Cor 11:3; Ap 12: 9-15). Ela encarna o ser astucioso, aquele que obstruiu
e testou o primeiro casal no caminho da retidão. Ela é um ser ameaçador,
maldita mais que toda fera, afeita aos pecados que envenenam o espírito pela
argúcia e trapaça.
Neste conjunto de referências bíblicas, a serpente é adversária da sal-
vação, é capaz de apartar as criaturas de seu Criador, é um diabolus que vive
para confundir a humanidade e entregá-la às garras da morte. Ela é a forma
daquele que se interpôs no caminho de Cristo e tentou-o por quarenta dias no
deserto inclemente. A serpente indicava a presença de um poder maléfico, do
pai da desordem, o grande herege (FORSYTH, 1989: 04-30; NABERT, 1996;
KELLY, 2008). Ao descrever sua aparição no sínodo de 1076, Donizo, monge
de Canossa e autor da Vita Mathildis, e Paulo, o cônego regular de Bernried a
quem devemos a Vita Gregorii VII, emitiram uma mensagem política: alusão a
Henrique IV, a serpente revelava as ações e o destino de um rei dominado pela
astúcia e fraco perante a tentação.
Paulo de Bernried fez daquele episódio um evento teleológico. Em sua
narrativa, a cena que se passou no concílio tem explícita semelhança com o
que ocorreu a seguir entre o papa e o rei. Para o biógrafo papal, aquela serpen-
te abatida sobre seu estranho ovo foi um presságio, um anúncio da desventura
que pouco depois se abateu sobre Henrique. Como era de conhecimento do
autor quando redigiu a Vita Gregorii – por volta de 1120 – naquele mesmo
sínodo, Gregório reagiu à deposição excomungando o monarca. A condenação
fez cambalear a legitimidade de Henrique, àquela altura já desastrosamente
abalada por uma revolta da nobreza da Saxônia. A rebelião encurralara o rei

19
DONIZO. Vita Mathildis. MGH SS 12: 377-378; PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL
148: 70. Entre parênteses estão dispostas as variações de vocábulo das duas versões.
Leandro duarte rust 87

no momento em que ele teria realizado algo que os partidários papais consi-
deravam “muito acima de suas atribuições”: depor um pontífice.
A impotência que se abateu sobre Henrique tornou-se evidente quando
ele se viu forçado a buscar o perdão, dirigindo-se a Canossa – cidadela entrou-
xada no sopé dos Alpes onde Gregório estava abrigado – para se ajoelhar e
suplicar por uma reconciliação com a Sé Romana. Podemos, agora, ver melhor
o jogo analógico que se opera no interior daquela estória miraculosa: como a
serpente do sínodo papal, o “iníquo monarca” teria sido abatido justamente
quando sua ambição se estendia para as alturas com gravíssimas implicações
para toda a Cristandade, representada pelo ovo, símbolo da totalidade da
vida. Por sua vez, vislumbrado como aquele que enfrentava um satã, Gregório
aparece como um eleito de Deus para desmascarar o adversário dos justos,
“para pisar serpentes” (Lc 10: 19).
Os serviços prestados pelos céus ao papa teriam ido além deste pressá-
gio em forma de réptil. Segundo Bonizo de Sutri e Lamberto de Hersfeld, em
Canossa, Gregório impôs condições para absolver Henrique. Após ser reco-
nhecido como legítimo sucessor de Pedro e obter uma confissão de infrator da
autoridade apostólica, o papa desafiou o rei a participar do sacramento euca-
rístico: se suas palavras fossem falsas, “como Judas, Satanás entraria nele pela
boca”.20 Gregório aparece aqui utilizando a comunhão como um ordálio, como
Leão IX havia feito. Todavia, mais do que tomar parte do incansável debate
acerca da real ocorrência desta prova corporal (Ver: MORRISON, 1962: 121-
148) é importante, em nossa opinião, notar que a menção a ela consiste num
artifício de legitimação política: a estória associa o rei ao apóstolo biblicamen-
te descrito sendo possuído por Satanás, após trair o messias (Jo 13: 1-4, 27);
o que, por sua vez, coloca o papa na posição de alguém injustamente atingido
por uma armadilha alheia, alguém forçado a acertar contas com o pecado do
outro: diante de seu potencial Judas, Gregório tornava-se um “outro Cristo”. A
diabolização do rei dos teutônicos era o avesso de um discurso de santificação
do pontífice.
Os sínodos e concílios papais ambientam muitas narrativas de ações
inspiradas por dons divinos, e nem mesmo os opositores mais ruidosos de Gre-
gório VII se furtaram a registrá-las. Observemos o caso de Sigerbert de Gem-
bloux e de Beno, cardeal dos santos Martino e Silvestro, opositores declarados
do papa. Ambos relatam que, no sínodo romano de abril de 1080, enquanto
anunciava uma nova sentença de excomunhão contra Henrique IV, o pontífice:

20
Ut Iude post buccellam intraret in illum satanas. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1:
610. E ainda: LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5: 258.
88 coLunas de são pedro

proclamou, como se revelado para ele por inspiração divina, que neste
ano um falso rei estaria morto. E seguramente proclamou a verdade,
mas ele se enganou quanto à interpretação sobre o falso rei, pois falta-
ram esclarecimentos segundo seu desejo sobre o rei Henrique.21

na presença dos bispos e dos cardeais, e com a afluência do clero, se-


nado e povo romano, ele declarou publicamente, entre muitas outras
coisas, estas palavras de adivinhação: “até a próxima festa de São Pedro,
o rei Henrique, sem dúvida, estará morto ou será deposto do reino (...)”.
Proclamou ainda aos bispos e cardeais e a todos que estavam presentes
dizendo: “de forma alguma me mantenham papa, mas me retirem do
altar, se esta profecia não se realizar até a época da festa”.22

Henrique não faleceu, tampouco foi deposto após a profecia papal,


como sabiam os autores quando compuseram suas narrativas. Quem encon-
trou a morte após o anúncio feito por Gregório, num campo de batalhas às
margens do rio Elster, foi Rodolfo, o duque da Suábia eleito rei dos germânicos
– ou antes, um “anti-rei” – pelos rebelados saxões. Daí o tom irônico, sobre-
tudo da primeira passagem: o papa havia dito a verdade, mas se enganou ao
identificar o “falso rei”. Era Rodolfo, não Henrique. A imagem de um pontífice
tapeado por seus dons divinatórios resultava, provavelmente, da tentativa dos
cronistas de tomar as armas discursivas empunhadas por Gregório e apontá-
las contra ele. Afinal, anos antes, na época do sínodo de 1076, o velho papa se
serviu de uma carta enviada ao bispo de Trento para noticiar uma grave previ-
são: certos eventos ocorreriam para demonstrar quão justa era a sentença de
excomunhão proclamada em Roma contra o rei.23 Provavelmente os aliados

21
Hildibrandus papa quasi divinitus revelatum sibi predixit, hoc anno falsum regem esse moriturum.
Et verum quidem predixit, sed fefellit eum de falso rege coniectura secundum suum velle super Hein-
rico rege interpretata [desunt]. SIGEBERTO DE GEMBLOUX. Chronica sive Chronographia. MGH SS
6: 364.
22
Et in presentia episcoporum et cardinalium, in frequentia cleri et senatus et populi Romani publice
clamavit inter multa suae divinationis verba: ‘Regem Henricum usque ad proximum sancti Petri festum
sine dubio moriturum aut a regno penitus deiciendum (...)’. Predicavit etiam episcopis et cardinalibus
et omnibus qui aderant de ambone clamans: ‘Nullo modo habete me pro papa ulterius, sed ab altari me
avellite, si usque ad predictum festum prophetia haec effectum non habuerit. BENO DE SS. MARTINO
E SILVESTRO. Gesta Romanae Ecclesiae contra Hildebrandum I. MGH Ldl 2: 371. Beno foi o porta-voz
dos cardeais cismáticos que, em 1084, renegaram Gregório e uniram-se a Henrique IV e Clemente III.
Outro que relata a profecia de 1080 é: BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 616. Este,
porém, papista.
23
“Com inabalável confiança na clemência divina prometemos: a festa de São Pedro não terá passado
antes de ser completamente do conhecimento de todos que o rei foi justamente excomungado”. Tradução
do texto latino: procul dubio clementia divina sperantes promittimus: festum beati Petri non prius
transeundum quam in cunctorum noticia certissime clareat illum justissime esseexcommunicatum.
GREGÓRIO VII. Epp. vag. 13: 30-31. Ver ainda: HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 268.
Leandro duarte rust 89

de Henrique valeram-se do tom profético adotado pelo próprio Gregório para


desacreditá-lo e ridicularizar suas ações. Contudo, embora servissem ao arse-
nal de estórias antipapais, esses relatos reforçam um traço discursivo utilizado
para enobrecer o poder pontifical. Eles endossam algo que dificilmente encon-
tramos no período anterior a Leão IX: a apresentação do papa como alguém
habituado a recorrer ao sagrado de modo pessoal, privilegiado. Se contra João
XIX (1024-1032) e Bento IX (1032-1044; 1045) não encontramos acusações
semelhantes, a razão é simples: para os círculos clericais de então, no tempo
de vida destes pontífices, a Sé Romana não era espaço para profecias. Nem
mesmo para as falaciosas.
Mesmo esbarrando na veleidade humana ao apelar para dons divina-
tórios – como nos relatos de Sigeberto e do cardeal Beno –, Gregório VII foi,
reiteradamente, descrito às voltas com sinais e veredictos divinos. A frequên-
cia das interferências do sagrado sobre o curso dos sínodos pontifícios era de
proporções tais que, de aliado, ele teria se tornado um incômodo obstáculo,
algo a ser recusado ou até mesmo combatido. Vejamos.
Em meados da década de 1060, os monges de Vallombrosa, abadia be-
neditina das cercanias de Florença, estavam empenhados em uma agressiva
campanha contra seu bispo, Pedro Mezzabarba, acusado de simonia. Incle-
mentes, os religiosos nada pouparam durante suas pregações: do bispo aos
sacramentos, todos foram declarados sem valor em razão da heresia simoniaca
episcopal. Como os monges insistiram em desobedecer a ordem papal de não
deixar a clausura para proclamar tais sermões (JL 4552), Roma enviou um
legado, Pedro Damião, encarregado de conter os religiosos e de arbitrar o con-
flito. Porém, com os vallombrosianos irredutíveis, as negociações malograram.
Confrontado com o fracasso de seu empenho conciliatório, o enviado romano
não poupou repreensões aos monges:

Acreditamos que estes monges são mais santos do que Paulo? Paulo que
foi considerado digno de ascender ao tribunal do terceiro céu, mas não
desdenhou apelar à corte de Nero? Quem são estes monges que, através
da arrogância de sua santidade, pensam poder rejeitar o julgamento da
Sé Apostólica?24

24
Credimus monachos istos sanctiores esse quam Paulum? Cum ergo Paulus qui tertii caeli tribunal
ante conscenderat, Neroniano conspectui non sit dedignatus adsistere, quis est monachus qui pro
suae sanctitatis arrogantia sedis apostolicae debeat judicium reprobare... PEDRO DAMIÃO. Briefe
146. MGH Epp. 3: 540. Sobre a reação do cardeal de Óstia às ações dos vallombrosianos ver ainda:
CUSHING, 2005: 74-757.
90 coLunas de são pedro

Acuado, Mezzabarba resvalou para a violência. Na busca por deixar sua


oposição acéfala, ele determinou a captura de João Gualberto, fundador de
Vallombrosa e líder dos inflamados monges. O ataque foi violento, provocou
incêndios e derramou sangue.25 Mas, a tentativa falhou. Na realidade, foi um
desastre: ela conferiu novo brilho espiritual a João, cujas acusações espalha-
vam-se agora como protestos de um homem que Deus colocara no caminho do
martírio. Mezzabarba, entretanto, não recuou. Ao contrário, voltou à ofensiva.
Deste vez, com um ato mais drástico: em colaboração com a poderosa família
dos Firidolfi, Pedro fundou um novo monastério em Florença: San Pier Mag-
giore. Vallombrosa ganhara um rival, tinha agora que competir com uma casa
monástica diferenciada, agraciada com os favores, bens e filhas da aristocracia
local: San Pier era um estabelecimento feminino e sua primeira abadessa foi
Ghisla dei Firidolfi (DAMERON, 1991: 51-54).
Pouco depois do ataque, um grupo de vallombrosianos dirigiu-se a
Roma, para o sínodo de 1067. Levaram consigo uma oferta para o papa: um
dos seus caminharia sobre o fogo para provar a haeresia do bispo. O pontífice,
Alexandre II, desfavorável à ideia de expor de tal forma o bispo, aliado de Go-
dofredo, duque da Lorena e marquês da Toscana, proibiu o ordálio de fogo.26
Iniciada a assembleia, Damião voltou a disparar recriminações: “Oh, nova pre-
sunção! Estamos sujeitos à opinião de monges mortos que se fazem juízes sobre
bispos, sobre aqueles aos quais estão legalmente submetidos”.27 Desprotegidos
pela relutância do papa e golpeados pela retórica do legado, os religiosos se
viram acuados “como ovelhas entre lobos”, e, segundo a Vita Sancti lohannis
Gualberti, teriam deixado o sínodo como infratores da lei católica se não fosse
a intervenção de Hildebrando.28
Diante de um papado inerte e da escalada de tensões na região, os
vallombrosianos decidiram levar adiante o ordálio não-autorizado. Em 13 de
fevereiro de 1068, um deles, chamado Pedro, jurou a veracidade das acusa-
ções contra Mezzabarba e em seguida teria caminhado ileso “por doze longos
passos através de brasa e chama”.29 Os florentinos se apressaram para enviar a
notícia do milagroso desfecho a Alexandre, valendo-se dela para reclamar a
deposição do bispo, afinal tratava-se da “vontade de Deus”. Pressionado por

25
ANDRÉ DE STRUMI. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2: 1094-1095.
26
ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2: 1107.
27
Sed, o nova presumptio! Mortuorum sententiis subiacemus et episcoporum sun iudices facti, qui
legaliter sub eorum fuerant legibus constituti. PEDRO DAMIÃO. Briefe 165. MGH Epp. 4: 224. Prova-
velmente Damião reproduz aí ideia segundo a qual tomar o hábito monástico significava seguir, sob
estrita obediência, o exemplo da Crucificação e, assim, morrer para o mundo e os desejos seculares. In:
PEDRO DAMIÃO. De perfectione monachorum. PL 143: 293-295.
28
ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2: 1107. Ver ainda: JESTICE, 1997: 233-243.
29
Per ignem et flammam 12 pedum longam pertransiit. BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5: 306.
Leandro duarte rust 91

aquele “juízo divino”, o papa atendeu e decretou o banimento de Mezzabarba


da igreja de Florença, embora o condenado contasse com amplo apoio do epis-
copado lombardo.30 Por sua vez, o monge Pedro, alçado ao posto de campeão
da fé cristã pelo ordálio que teria revelado um “homem muitíssimo religioso”,31
ingressou em serviço papal anos depois, em 1072, com o pomposo título de
cardeal bispo de Albano. Sobrepujado, Pedro Damião, por sua vez, deixou ao
papa um protesto amargurado:

Deixei o sínodo, que era presidido pela autoridade de vossa santidade,


tão desgastado e exaurido, com meu espírito tão oprimido por tais ques-
tões e tão firme como uma rocha, que ele não poderia ser atenuado pelas
chuvas da contrição nem soerguido do desânimo pela graça da íntima
contemplação. (...) Por esta razão, estabeleci para mim o princípio de
que, enquanto eu viver, ausentar-me-ei completamente dos sínodos ro-
manos, exceto se uma necessidade inevitável me compelir.32

A prova do fogo dobrou os argumentos canônicos e calou as alusões


bíblicas com que Pedro Damião tão ardorosamente justificou a observância da
justiça e da hierarquia eclesiástica, ferindo sua identificação com a igreja que
tanto serviu como cardeal bispo de Óstia. Embora continuasse a agir como le-
gado papal, Damião derramou as tintas de seu crescente pesar com o papado
nas cartas enviadas à Cúria. As páginas ditadas pelo velho prior lamentavam
que a Sé Apostólica se mostrasse mais ávida por disparar excomunhões do que
por enfrentar e recuperar os infratores da disciplina eclesiástica (Ver ainda:
BLUM, 1947: 459-476; CAPITANI, 1966: 121-131).
Ao lançar mão do ordálio e levar ao “juízo de Deus” os delitos imputa-
dos ao bispo florentino, os monges de Vallombrosa sacaram uma arma pode-
rosa contra a desgastada legitimidade de Mezzabarba, mas também contra a
própria Cúria romana e sua resistência em permitir a quebra da obediência
hierárquica devida a um bispo. Então, após ter sido privado do poder decisório
pelo recurso à prova corporal do fogo, o papado empenhou-se em impedir suas

30
A epístola enviada pelos florentinos ao papa, bem como uma detalhada narrativa de todo o conflito
pode ser encontrada em: ANDRÉ DE STRUMI. Vita sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2: 1096-
1100. Ver ainda: ANNALES ALTAHENSIS MAIORES. MGH SS rer. Germ. 2: 74. Para referência geral:
HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1266; MANN, 6: 302; COWDREY, 1998: 67-68.
31
Virum religiosissimum. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 612; Referência ainda em:
PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL 148: 58. Ver ainda: MICCOLI, 1960: 42.
32
Ita nimirum a synodo, cui vestrae sanctitatis auctoritas praefuit, contritus nuper et arefactus abs-
cessi, ut mens mea tot oppressa negociis, more silicis obdurata, nec per imbrem se cumpunctionis
emolliat, nec se quantumlibet super se gratia intimae contemplationis attollat. (...) Quapropter haec
apud me diffinita sententia est, quia de caetero, nisi me necessitas inevitanda compellat, donec advi-
xero Romanis me conciliis funditus absentabo. PEDRO DAMIÃO. Briefe 164. MGH Epp. 4: 166-167.
92 coLunas de são pedro

realizações posteriores. Em 1070, Alexandre II proibiu o envolvimento dos ho-


mens da igreja em ordálios (JANIN, 2004: 130; MCAULEY, 2006: 473-513). E
ainda que existam relatos sobre o posterior apelo de membros da Sé Romana a
tais formas de julgamento,33 os esforços em proibí-las surtiram efeito.
Décadas depois, Pascoal II apareceria na Historia Mediolanensis ofere-
cendo tenaz resistência aos ordálios, tratando-os como grave delito: no sínodo
de 1105, ele exigiu do arcebispo eleito de Milão, Grossulano, o juramento de
não ter obrigado o maior opositor de sua eleição, “o presbítero Liutprando, a ir
para o fogo e realizar um julgamento”. Segundo a Historia, a suspeita de que o
arcebispo havia recorrido a tal prova foi suficiente para ameaçá-lo de deposi-
ção, pois “se o presbítero tivesse jurado, e doze sacerdotes tivessem admitido jurar
com ele que Grossulano obrigou-o a ir para o fogo, [o pontífice] teria sustentado a
deposição de Grossulano”.34 Após sofrer com ingerências propiciadas pelo “juízo
de Deus” em seus concílios, o papado o empurrou para a ilegalidade canônica.
Milagres. Profecias. Ordálios. A tradição clerical peninsular e imperial
multiplicou relatos de que, por volta de 1050, o papado teria se reajustado ao
plano traçado por Deus para sua igreja. Difundiu-se a imagem de uma renovatio
do sagrado na Sé Apostólica e, em especial, em suas ações conciliares. Contudo,
não devemos nos deixar levar pelos artifícios narrativos criados pelos agentes
históricos. Não podemos ceder ao fascínio de seus relatos e admitir que, em cer-
ta altura de sua história, a Igreja romana passou às mãos de homens santos, que
se aliavam ao eterno. Não é aí, nas ciladas da literalidade das fontes, que reside
seu valor histórico. Mas na característica de se tratar de feixes de representações.

2.2. As representações ou a máscara do tempo

Sigamos a psicologia social nesta definição: “representar significa, a uma


vez e ao mesmo tempo, trazer presentes coisas ausentes e apresentá-las de tal
modo que satisfaçam as condições de uma coerência argumentativa, de uma ra-
cionalidade e da integridade normativa do grupo” (MOSCOVICI, 2003: 216).

33
Em 1083, após cercos e campanhas de três anos, a invasão de Roma por Henrique inflamou uma
guerra de propaganda entre henricianos e gregorianos. Data deste contexto o relato conhecido como
Iudicium de Regno et Sacerdotio, em que partidários do papa aparecem tomando parte de um ordálio
que revelaria o juízo divino sobre o conflito. Entre os listados estão Desidério, abade de Montecassi-
no (futuro Vítor III); Pedro, cardeal de São Crisogono; João II, cardeal do Porto; Bernardo, cardeal
e legado entre 1073 e 1078; Guitmundo, monge em Croix-Saint-Leufroi e legado. SACRAMENTUM
NOBILIUM ROMANORUM. MGH Const. 1: 651; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 460-461.
34
Ego Grossulanus, gratia Dei archiepiscopus, non coegit dictum Liutprando presbyterum ire ad ig-
nem, & facere judicium. / Si hic presbyter juraret, & duodecim sacerdotes cum illo jurando affirmarent,
quod Grossulanus coegit ipsum presbyterum ire ad ignem, sustineret Grossulanus depostionem. LAN-
DULFO, O JOVEM. Historia Mediolanensis. RIS 3: 14; MGH SS 20: 28-29; MANSI, 20: 1161-1162. Ver
ainda: HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 480-481; PELTIER, 2: 671.
Leandro duarte rust 93

Logo, uma representação é uma forma de apropriação da realidade; é uma


captura simbólica do mundo segundo as características com que, numa dada
sociedade e época, os grupos viabilizam a partilha, a inteligibilidade e a trans-
missão de significados. Desta maneira, o objeto representado é conformado a
fazer sentido segundo circuitos de interpretação da realidade socialmente ela-
borados, aceitos e perpetuados. Suas características escapam ao velho deba-
te subjetivismo versus empirismo: a representação é um constructo subjetivo
vivido e partilhado como presença objetiva do mundo social. Ao representar,
os agentes históricos operam uma reelaboração do real. Eles o selecionam,
manipulam, reinventam e distorcem por meio de processos de significação
socialmente existentes (MOSCOVICI, 2003: 217-228; XAVIER, 2002: 28-29).
O processo representacional caracteriza-se por mediar graus de inexis-
tência. Como meio de duplicação ou mesmo de criação da presença de algo,
ele combina ausências e aparências, joga com a ontologia. Com isso, a gama de
objetos representados é inesgotável, diversificada ao máximo: ela inclui desde
construções sociais percebidas como essenciais, vividas como verdadeiros fun-
damentos do contato humano, caso da ideia de “liberdade”, até outras que se
mostram inacessíveis como expeciência universal, como os lugares do Além.
Entretanto, se o objeto representado pode ser ilusório, indemonstrável,
o mesmo não ocorre com a trama de sentidos que o estrutura e impulsiona
sua difusão coletiva. Se representar revela o poder performático das operações
cognitivas e imaginativas, deixando claro que elas são capazes de acrescentar
propriedades ao empiricamente comprovável e assim rediomensionar nossos
referenciais de “real”, as redes de significados acionadas em tais operações em
momento algum deixam de ser construções historicamente limitadas, resul-
tantes de complexas interrelações sociais. Elas não derivam apenas de textos,
signos e imagens, mas de referenciais e práticas exteriores e anteriores à men-
te, de “coisas-em-si” distintas do ego e passíveis de serem conhecidas em sua
diferença e historicidade. Afinal, a “linguagem só é linguagem na medida em
que nela o mundo se apresenta” (OLIVEIRA, 1996: 237).
Deste modo, o objeto representado pode ser ficcional, ilógico ou irreal,
mas não as teias de significados que o modelam: estas não podem ser cria-
das arbitrariamente, ex nihilo ou por alguma forma de convencionalismo ou
gesto nominalista. Ainda que um anjo não possa ser encontrado, os atributos
e propósitos atribuídos a ele são sempre reais, tangíveis no dia-a-dia, pois
derivam da cultura e da sociabilidade de uma coletivade em um contexto sin-
gular. Neste sentido, toda representação é constituída pelo real e não há razão
para vê-la sob o signo do anti-realismo, dito pós-moderno, que nega em sua
existência aspecto que vá além dos limites da linguagem (MATTEWS, 1998:
16-32; MAZE, 2001: 393-417).
94 coLunas de são pedro

Por certo, as representações se destacam por sua configuração imagé-


tica, por faces figurativas que ligam coisas a palavras e apresentam conceitos
e ideias como temas. Elas criam “regiões finitas de sentido”, socialmente con-
vertidas em referências familiares aos agentes históricos e com as quais eles
atendem às suas necessidades de conceituação e de expressão (MOSCOVICI,
2003: 215-228). Contudo, representar implica em muito mais do que temati-
zar. Trata-se de um ato que pressupõe tecer redes de participações coletivas e
viabilizar universos significantes para uma contínua inserção das experiências
dos seres-no-mundo. Dito de outra forma, representar é triangular relações
entre o ego, o “outro” e o mundo. Imaginar é mediar relações sociais (JO-
VCHELOVITCH, 2008: 70-73). Portanto, supor que os temas de milagres e
visões proféticas aqui descritos permitem ao pesquisador apreender a lógica
das interações eclesiásticas medievais equivale a pretender analisar a extensão
destas representações levando em conta somente alguns de seus muitos aspec-
tos constitutivos. É reduzir o todo a uma de suas muitas partes, à mais visível.
O grave deslize cometido em estudos históricos consiste justamente em
limitar ao objeto representado e aos seus “temas-imagens” a atenção que de-
veria recair sobre as redes de significado entrelaçadas pela trama representa-
cional. Não basta descrever as temáticas das representações e interpretá-las: é
fundamental cortá-las, distribuí-las, reordená-las de modo crítico e trabalhá-las
metodologicamente. Pois os sentidos históricos articulados em uma represen-
tação não são transparentes, como se evidenciados nas próprias tematizações
objetivadas por ela; tampouco estão imediatamente dados em sua senda nar-
rativa. Supô-lo seria reduzi-la a uma função meramente cognitiva-tematizante:

Concebida como base única da cognição e do conhecimento, a repre-


sentação é reduzida a um fenômeno mental epistêmico (...). As proprie-
dades multidimensionais da representação, claramente visíveis em sua
gênese psicossocial e em suas funções sociais, tornam-se invisíveis. Daí a
necessidade de re-apropriar ambos os fenômenos e recuperar os recursos
conceituais que dão conta das fundações sociais e psicológicas da repre-
sentação como processo simbólico e social (JOVCHELOVITCH, 2008: 34.
Ver ainda: CARDOSO & MALERBA, 2000: 33-34).

Para a investigação histórica, em muitos casos, importa menos debater o


objeto representado do que as relações de sentido e os “modos de pensamento”
com os quais ele é apresentado (MOSCOVICI, 2003: 218). Devemos estender
nossa atenção para além do núcleo figurativo-enunciativo das representações:
não só para tentar escapar aos efeitos de naturalização discursiva, intrínsecos
a essas apropriações simbólicas do mundo – ou seja, para que não transfor-
Leandro duarte rust 95

memos um estudo histórico em uma “história da crença no milagre” – mas,


principalmente, para não perder de vista as dinâmicas sociais fundadoras dos
atos de significar (JODELET, 2002: p. 17-44; JOVCHELOVITCH, 2008: 33-70;
HALL, 2003: 61-63). As representações são, simultâneamente, atos cognitivos,
interações comunicativas e realizações de razões sócio-históricas: são veículos
de expressão individual tanto quanto formas de engajamento coletivo (Ver:
FODOR, 1983).
Aplicada aos relatos de ocorrências milagrosas apresentados nas pági-
nas anteriores, esta coordenada teórica conduz a uma advertência crucial:
devemos encarar tais narrativas como o rosto conferido por eclesiásticos do
século XI, segundo sua racionalidade, a uma extensa rede de significados so-
cialmente construídos. Rede que compunha e potencializava certas formas de
vivenciar as interações coletivas e nelas experiências como as de tempo.
No interior de todos estes relatos de ocorrências prodigiosas está confi-
gurada uma mesma experiência: a de que o tempo não se desenrola de modo
inexorável ou como algo simplesmente existente per se, mas como o resultado
de certas intenções e ações humanas (Ver: ELIAS, 1998: 8-10). Em todos eles,
sucessões, rupturas, repetições e permanências são demarcados por predica-
dos humanos – sobretudo, qualidades morais – e não um fluxo de instantes
ou momentos que inevitavelmente passa, transcorre. Nas narrativas relativas
a Leão IX ou Gregório VII, por exemplo, a experiência da mudança, o ato de
perceber que o mundo não era mais como antes, decorria da concretização
de estados morais. A súbita impossibilidade de um pecado se consumar ou
de uma grave falta ser cometida demarcava a percepção de que algo mudava,
cessava, tornava-se diferente.
Não nos deixemos prender pelo fato dos medievais atribuírem essa im-
possibilidade a uma intervenção prodigiosa, divina. A crença no sagrado re-
cobre aqui um referencial importantíssimo: as diferenças que permitem ver
o “antes” e o “depois” das coisas que estavam dentro dos homens, em seus
atos e vozes. Em outras palavras, o “quando” dos eventos narrados decor-
ria da alternância das condutas ético-morais dos agentes históricos. Ainda
que dias e noites se sucedessem, mesmo que as estações se revezassem e as
paisagens não fossem mais as mesmas, um falso bispo poderia permanecer
preso à presença de seu erro caso não se arrependesse. O erro simplesmente
não se transformava em passado, pois o acúmulo dos meses ou anos não
era, necessariamente, razão de mudanças. Aquelas estórias parecem estar
fundadas sobre o princípio segundo o qual a sucessão cronológica não era o
mesmo que tempo, pois ela não surtia efeito algum sobre um coração duro
ou um espírito irredutível. Nesses relatos, as coisas duravam e aconteciam
de acordo com as posições assumidas pelos protagonistas no universo ético
96 coLunas de são pedro

de então. Atributos pessoais de moralidade eram os principais referenciais


adotados, na documentação analisada, para recortar o fluxo do tempo, dotá-
lo de divisões, de pontos para “começo” e “fim”, qualificando “passado”,
“presente” ou “futuro”.
Portanto, nos relatos acerca dos concílios papais pós-1040, a ordem
de inserção dos acontecimentos na vida – a ordem do tempo (ver: POMIAN,
1984) – era constituída por aspectos humanos que iam além da memória e da
expectativa: toda tomada de decisão e toda deflagração de um estado moral
repercutiam sobre a percepção do tempo. As escolhas e ações do homem afe-
tavam o ritmo e a experiência da mudança, não o contrário.
Nestas representações de um sagrado pontifício, a ordenação temporal
não surge como algo absoluto, factual e objetivo tal qual um medium neutro,
um “lugar natural” onde tudo ocorre e é organizado em sequências padroni-
zadas de intervalos e durações. A lógica cultural dos relógios não domina a
relação com o tempo. Estamos diante de experiências de um devir aberto e
inacabado; uma temporalidade exposta a guinadas bruscas, súbitas e impon-
deráveis, já que poderiam ser ocasionadas pelas orientações morais do pontífi-
ce, do legado ou do faltoso. Nos relatos das profecias atribuídas a Gregório VII,
o futuro tomava forma através da participação ética do papa, de sua capaci-
dade de optar pelo “certo” e pelo “errado”, pelo “rei” ou “anti-rei”. Os eventos
por vir, antevistos por Gregório, prestavam contas de sua conduta moral. Não
eram um horizonte de probabilidades delineado por uma cadeia de fatos ou
um desdobramento empírico do tipo causa-e-efeito.
Com o curso dos acontecimentos colocado à mercê das escolhas pes-
soais – razão primeira das intervenções celestiais narradas – o tempo físico –
aquele dos ritmos naturais, mediado pelo calendário e relógio – aparece aqui
capaz de ser momentaneamente jogado para trás, suspenso ou até mesmo
abolido (PORRO, 2001: 3-32; TRESMONTANT, 1961: 457). Com a vivência
da mudança atrelada mais aos estados de consciência e moralidade do que a
ocorrências naturais ou exteriores aos homens, o ritmo temporal caracteriza-
se pela irregularidade, reversibilidade e instabilidade.
Diruptivo, exposto a cisões, o tempo não cabe em imagens como as de
linha, flecha, círculo ou espiral, uma vez que ele não compõe, nas narrativas
apresentadas, uma ordem empírica autocrática e independente da existência
dos seres. Como o compasso de decisões e atos que definem a possibilidade
de salvação de cada ser, o tempo emerge co-extensivo às ações humanas e
integrando com os homens uma mesma unidade existencial, ambos confluin-
do como partes da mesma totalidade ontológica. O processus temporalis que
perpassava tais relatos documentais não aparece como inerente ao mundo,
mas sim ritmado pelos estados da alma. Portanto, os relatos sobre milagres,
Leandro duarte rust 97

profecias e ordálios comportam uma representação do tempo como grandeza


moral, decorrente dos movimentos do próprio entendimento humano.
Outros indícios em prol deste argumento residem nos próprios cânones
conciliares. Eles demonstram que a percepção de tempo encontrada nos docu-
mentos sobre os sínodos também está presente nos documentos dos concílios.
Isto é, as decisões promulgadas nas assembleias eclesiásticas papais também
registram a vivência de ritmos e durações como experiências morais funda-
mentalmente pessoais. Isto pode ser percebido nas instruções para a penitên-
cia devida, por exemplo, por sacerdotes envolvidos com simoníacos:

Todo aquele que tiver sido consagrado por um simoníaco, [e que] não
ignore que [o consagrador] se tratava de um simoníaco no momento de
sua própria ordenação e disto tiver se favorecido para ser promovido,
que conduza penitência de quarenta dias por ter aceitado que a
ordem do ofício fosse ministrada desse modo.35 (O grifo é nosso)

O mesmo deveria valer para os cristão surpreendidos mantendo uni-


ões incestuosas:

Durante todo tempo em que se entrega frutuosamente à pe-


nitência, pelo corpo e sangue de nosso Senhor Jesus, [que o pecador]
se considere excluído pelo limiar da igreja, afastado e do mesmo
modo separado, de todas as maneiras, do puro corpo [da comunidade
cristã?] pelo gládio do espírito que é o verbo de Deus.36 (O grifo é nosso)

Ou ainda no caso de um bispo condenado por oprimir o monastério de


sua diocese:

Do mesmo modo, em seguida a ele [isto é, ao bispo], quatro


clérigos, eles também da igreja [de Mâcon], deram assenti-
mento na presença de todos e confirmaram, prestando, sobre
os próprios Evangelhos, o juramento que aquele tinha pres-
tado. (...). Imediatamente o referido bispo de Mâcon, pros-

35
Ut quicumque a simoniaco consecratus esset, in ipsto ordinationis sua tempore non ignorans simo-
niacum esse, cui se obtulerit promovendum, quadraginta nunc dierum penitentiam ageret, & sic in
acceptis ordinis officio ministrare. MANSI,19: 721. Decisão do concílio romano de 1049.
36
Donec se fructuose tradat poenitentiae, a corpore & sanguine domini nostri Jesu, & a liminibus
ecclesiae se exclusum, & alienatum, & omnimodis sicut putridum membrum a sano corpore praecisum
gladio spiritus, quod est verbum Dei, agnoscat. MANSI, 19: 928. Cânone IX do sínodo reunido em
fevereiro de 1060, em Tours, por Estevão, cardeal e legado papal. Ver: BONIZO DE SUTRI. Liber Ad
Amicum. MGH Ldl 1: 588.
98 coLunas de são pedro

trado, suplicou por perdão quanto a seus erros cometidos


e acolheu a penitência concedida de jejuar por sete
dias a pão e água.37 (O grifo é nosso)

Em todos estes trechos a condição humana demarca o tempo. O estado


moral do faltoso define a instauração do período de vigência das medidas
corretivas, ainda que estas tivessem extensões pré-determinadas. A condição
ética desata a duração, proporcionando-lhe um início, fazendo a transcorrer.
As cadências com que ações eram cumpridas estavam condicionadas a quali-
dades humanas. O modo de vida e a contrição interna possibilitavam a peni-
tência, graças à qual a passagem do tempo expiava as faltas:

Que todo cavaleiro, mercador ou pessoa – empregado em algum ofício


que não possa ser exercido sem pecado, e que está envolvido em graves
delitos, está injustamente mantendo bens de outro ou mantém ódio no
coração – venha para a penitência. Mas reconheça não poder concluir
verdadeira penitência, pela qual ele pode buscar a vida eterna, a menos
que deixe de lado suas armas e não mais as carregue – a não ser para de-
fender a justiça por conselho de bispos religiosos –, abandone seu comér-
cio ou deixe seu ofício, retire o ódio de seu coração e restaure os bens
que injustamente tomou. Porém, para que ele não se desespere, neste
ínterim, nós o exortamos a fazer qualquer bem que seja capaz de reali-
zar, para que o Deus onipotente ilumine seu coração para a penitência.38

Estes trechos documentais colocam o tempo nas dobras de experiências


pessoais. Ele emerge nas adjacências de escolhas e atos, inicia sua marcha a
partir do coração e da mente. Nunca completamente fora da constituição hu-
mana, jamais algo dotado da medida de si mesmo: o tempo aparece encarna-
do, marcado por símbolos de corporalidade. Daí que a cronologia dificilmente

37
Post eum quoque quatuor Ecclesiae eiusdem Clerici, in conspectu omnium accesserunt, & iureiuran-
do quod ille iurauerat, super eadem Evangelia firmauerunt. (...) Ilico praefatus Matiscensis Episcopus
pavimento prostratus veniam petiit, seseque peccasse concessus VII dierum poenitentiam in pane &
aqua ieiunaturus accepit. SYNODALIS DEFINITIO. BC: 510; MANSI, 19: 1028. Decisão do sínodo pre-
sidido pelo cardeal-bispo de Óstia, Pedro Damião, em Chalon-sur-Saône, no ano de 1063.
38
Ideoque quicunque miles vel negotiator vel alicui officio deditus, quod sine peccato exerceri non
possit, culpis gravioribus irretitus ad penitentiam venerit vel qui bona alterius iniuste detinet vel qui
odium in corde gerit, recognoscat se veram penitentiam non posse peragere, per quam ad eternam
vitam valeat pervenire, nisi arma deponat ulteriusque non ferat nisi consilio religiosorum episcoporum
pro defendenda iustitia vel negotium derelinquat vel officium deserat et odium ex corde dimittat,
bona, que iniuste abstulit, restituat; ne tamen desperet, interim, quicquid boni facere poterit, hortamur
ut faciat, ut omnipotens Deus cor illius illustret ad penitentiam. MANSI, 19: 510. Ver: BERTHOLDO.
Annales. MGH SS 5: 314; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 423. Resolução do sínodo pre-
sidido por Gregório VII, 1078, Roma.
Leandro duarte rust 99

bastasse per se, tendo sempre de ser cadenciada segundo passos da existência
humana, especialmente os da vida do Cristo:

As ordenações à prelatura e ao diaconato não terão lugar senão no 4º,


no 7º ou no 10º mês do ano, ou ainda no princípio da quaresma ou no
sábado à noite da mesma quaresma. Que ele [o bispo] se recorde de não
administrar o batismo fora das festas da Páscoa e do Pentecostes, exceto
para aqueles que, em risco de morte, necessitam deste divino remédio
para não perecer eternamente.39

Que absolutamente nenhum laico, a respeito do qual se afirma viver


em jejum, ouse se alimentar de carnes após o dia de cinzas e do cilício.
Que todos, tanto clérigos quanto laicos, tanto homens quanto mulheres,
recebam as cinzas sobre suas cabeças naquele dia. Que a partir do dia da
Septuagésima até a oitava de Pentecostes, ou a partir do dia do Advento
do Senhor até a oitava da Epifania, de modo algum sejam contraídos
matrimônios.40

As medidas acima decretadas difundiam no convívio cristão os signifi-


cados de um tempo-corpo-vida. Os períodos das interdições eram definidos
segundo celebrações que rememoravam a vida de Cristo: “entre a Páscoa e o
Pentecostes”, do “Advento do Senhor até a oitava da Epifania”. Datas marca-
das por forte conotação corporal, especiais por que associadas à carne, ao san-
gue, ao suor e às lágrimas do “Messias”. Os marcos cronológicos empregados
pelos cânones conciliares remetiam ao nascimento, à ultima ceia, à paixão, à
ressurreição. Eventos que, segundo os livros bíblicos, foram inscritos no corpo
do Cristo. A difusão da “Trégua de Deus”, conhecido movimento conciliar que
interditava a violência em certas épocas da semana e do ano, também favore-
cia o contato com essa temporalidade de carne e osso.
Os períodos de paz definidos pela Trégua eram atualizações de modos
de agir perante a integridade física cristã: o sangue dos fiéis não poderia ser

39
Ordinationes vero Presbyterorum, seu Diaconorum, nonnisi quarti, septimi, vel decimi mensium
jejuniis, sed et ingressu quadragesimali, atque medianae vespere sabathi noverit celebrandas. Sacro-
sancti autem baptismi sacramenta nonnisi in Paschatis festivitate, et Pentecostes meminerit esse pra-
ebenda: exceptis his qui mortis urgentur periculo, ne in aeternum pereant, talibus debet remediis
subveniri. NICOLAU II. Epistola. RHGF, 11: 494-495. Decisão do sínodo de Avignon, 1060, presidido
por Hugo, abade de Cluny e legado. Ver ainda HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1204; MANSI, 19: 929-930.
40
Nullus omnino laicus post diem cineris & cilicii, qui caput jejunii dicitur, carnibus vesci audeat. Om-
nes tam clerici, quam laici, tam viri quam mulieres die illo cinerem supra capita sua accipiant. A die
Septuagesimae usque in octavas Pentecostes, vel a die dominici Adventus usque in octavam Epiphaniae
matrimonia nullo modo contrahantu. MANSI, 20: 739; URSINUS, 1990: 8. Medida decretada por Ur-
bano II, concílio de Benenvento, 1091.
100 coLunas de são pedro

derramado entre a “Septuagésima e a Páscoa”; não se poderia infligir a morte


entre o “domingo do Advento e a Epifania”. A proteção aos corpos incluía zelar
por suas fontes de sustento, seus meios de provisão, como fez Urbano II ao de-
cretar, no sínodo romano de 1097, que todos os bois, cordeiros, negociantes e
suas mercadorias, além dos cultivadores deveriam usufruir de paz em todos os
tempos e lugares.41 As celebrações e as Tréguas de Deus desenhavam uma mar-
cha temporal vivida como história dos corpos de Cristo e de seus seguidores.
Estamos longe de lidar com um tempo-medida impessoal, agente auto-
regulado e fundador da mudança. Penitencial e cristocêntrica, a temporalida-
de das relações coletivas aparece modalizada por predicados de humanidade.
O que conferia papel central à finitude, traço inescapável do ser, destino irre-
mediável de todo corpo. Notemos como os detentores do poder papal serviam-
se da certeza inelutável da morte para legislar sobre as violações da fé:

Quanto àqueles que abandonaram suas esposas e tomaram outras, esta-


belecemos que retomem as suas, se forem vivas, e abandonem as outras.
Que sejam excomungados, exceto se estes se separaram, (...): que ne-
nhum cristão diga-lhes “Ave”, nem coma ou beba com eles; na igreja, que
não orem conjuntamente; se caírem enfermos, que não sejam visitados,
a não ser para [que realizem a devida] satisfação; se morrerem sem
penitência e comunhão, que não sejam sepultados.42 (O grifo
é nosso)

A excomunhão não deveria ser um estado jurídico abstrato, mas uma


exclusão a ser vista, sentida, sofrida: nas refeições, no convívio entre os fiéis,
na angústia da doença, no leito, no cadáver. Disparada contra a alma, a exco-
munhão atingia gravemente o corpo. Nas mãos dos homens do papa, a certeza
do fim, da transitoriedade da vida, tornou-se punição canônica:

[Em 1078, no concílio de Girona, Amato, bispo de Orolon e legado de


Gregório VII] decretou que os clérigos portadores de arma, a não ser que
tenham abandonado a arma, sejam separados do corpo e sangue do

41
PFLUGK-HARTTUNG, 2: 167; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 453-456. Nos refereimos ainda à Trégua de
Deus decretada em Clermont, 1095: GUIBERT DE NOGENT. Historia quae dicitur Gesta Dei Per Francos.
RHC Oc. 4: 140; GUILHERME DE TYR. Historia Rerum Gestarum in Partibus Transmarinis. RHC Oc. 1:
42; MANSI, 20: 816.
42
Item constituerunt, ut illi qui suas uxores dimiserunt, & alias acceperunt, suas recuperent, si vivae
fuerint, & alienas dimittant. Et nisi hoc secerint, sint ita excommunicati, tam incesti, quam isti, ut
nullus Christianus eis Ave dicat, nec cum eis manducet neque bibat; in ecclesia simul non orent: si
infirmati fuerint, non visitentur, nisi pro satisfactione: & si mortui fuerint sine poenitentia & commu-
nione, non sepeliantur. MANSI, 19: 1071. Cânone 4 do sínodo de Girone, 1068, Hugo Cândido cardeal
e legado de Alexandre II.
Leandro duarte rust 101

Senhor, do ingresso na igreja, da sepultura dos cristãos e de toda


comunhão eclesiástica (...).43(O grifo é nosso)

Decretou o santo sínodo que nenhum bispo, abade, presbítero ou qual-


quer pessoa do clero aceite da mão do rei, do conde ou de qualquer pes-
soa laica o dom do episcopado, abadia, igreja ou algum bem eclesiástico.
(...). Se ainda assim os laicos, resistentes aos decretos canônicos, ousa-
rem manter igrejas pela força, que sejam eles mesmos excomungados;
que nas igrejas daqueles não se realize nenhum ofício divino, e que aí
não se ore, não seja colocada luz, que morto, não seja sepultado.44
(O grifo é nosso)

E, se por acaso, (que Deus não permita!) tiverem falecido sob esta exco-
munhão, que sejam colocados em sepultura como estúpidos.45

A imagem do homem como ser-para-a-morte incidia sobre as decisões


sinodais. Outra prova disso pode ser encontrada na conduta do cardeal Pedro
Damião. Notabilizado ainda em vida por sua scientia, ele se arriscou a incorrer
em simonia quando levou em consideração como a brevidade da vida tornaria
impossível o cumprimento apropriado de uma longa penitência. Segundo rela-
to do próprio cardeal, em um sínodo reunido em 1059, em Milão, o arcebispo
local contou com sua aprovação quando “impôs a si uma penitência de cem
anos e fixou uma taxa para o resgate dela através de uma quantia de dinheiro
para cada ano”.46 O arcebispo pagaria por cada ano de penintencia, como se o
tivesse cumprido em profundo e sincero arrependimento. Damião cedeu à cer-

43
Decrevit etiam, ut clerici arma ferentes, nisi dimiserint arma, sint alieni a Corpore & sanguine Do-
mini, & ab ingressu (tetras?) ecclesiae & Christianorum sepultura, & omni communione ecclesiastica
(...). MANSI, 20: 519. Cânone 6.
44
Decrevit sancta synodus ut nullus episcopus, abbas, presbyter, vel quaelibet persona de clero acci-
piat de manu regis vel comitis, vel cujuslibet laicae personae donum episcopatus, vel abbatie, vel ec-
clesiae, vel aliquarum ecclesiasticarum rerum. (...) Si vero laici, decretis canonicis resistentes, ecclesias
violenter tenere praesumpserint, ipsi excommunicentur; in ecclesis vero illis nullum divinum officium
fiat, nullus ibi oret, lumen non ponatur, mortuus non sepeliatur). MANSI, 20: 498. Sínodo de Poitiers,
janeiro de 1078, presidido por Hugo, bispo de Die e legado.
45
Et si forte (quod Deus avertat!) in haec excommunicatione mortui fuerint, sepultura asini sepe-
liantur. AMATO DE OLORON. Bulla. RHGF, 14: 771. O trecho documental noticia a excomunhão dos
“invasores da sé de Béziers”, decretada no concílio de Toulouse, 1090, por Amato, arcebispo de Bor-
deaux, e Ricardo, abade de S. Vítor de Marselha, legados de Urbano II: BERNOLDO DE CONSTANCE.
Chronicon. MGH. SS 5: 450; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 351; MANSI, 20: 733-734.
46
Centum itaque annorum sibi penitentiam indidi, redemptionemque ejus taxatam per unumquemque
annum pecuniae quantitate praefix. PEDRO DAMIÃO. Briefe 63. MGH Epp. 2: 224. Ver ainda: MANSI,
19: 891-892; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1194. Sobre a reputação que acompanhou Damião podemos
encontrá-la nos próprios relatos sobre sua legação em Milão: BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum.
MGH Ldl 1: 593; LANDULFO SENIOR. Historia Mediolanensis. MGH SS 8: 85-88.
102 coLunas de são pedro

teza de que a morte alcançaria o clérigo antes do encerramento da penitência.


Com isto consentiu com a permuta desta por um total anual de pagamentos.
O cardeal autorizou a troca de um bem espiritual por dinheiro, aproximando-
-se perigosamente dos terrenos movediços da simonia, esta “hidra de muitas
cabeças, que poderia cobrir uma multidão de pecados e passar por diversas trans-
formações”, como bem definiu Uta-Renate Blumenthal (In: FRASSETTO, 1998:
239-240). Era preciso adaptar o cânone aos efeitos do tempo, entre os quais a
morte, destino certo de todas as criaturas.
Os relatos milagrosos sobre as ações papais e a documentação conciliar
coincidem neste mesmo aspecto: ambos veiculam a vivência do tempo como
modo de atualização de características humanas, sobretudo, da moralidade.
Chegando a este ponto, vemos, assim, delinear-se uma conclusão: os milagres,
as profecias e os ordálios noticiados a partir da metade do século XI a respeito
do papado foram temas representacionais empregados pelos escritos de então
para apresentar – conforme a coerência, a racionalidade e os valores da época –,
a experiência temporal socialmente partilhada no âmbito dos concílios papais.
A descrição de tais feitos prodigiosos foi tecida para representar o fato
de que o tempo não se diferenciava da maneira de ser dos homens e realizava-
se conforme condutas éticas, como dramas pessoais. É esta condição intra-
temporal que os cronistas medievais dramatizaram como intercessões mila-
grosas e prodígios divinos. Este é um fundamento social de sua representação
do sagrado. Tal complexidade parece ter escapado à pesquisa histórica. De
maneira geral, a historiografia tem conferido um valor analítico absoluto aos
temas dos milagres e das crenças medievais sobre as intervenções do Além.
Apanhados pela coerção simbólica criada pelos agentes históricos, os estu-
diosos se habituaram a tratar como um sacramental “tempo da igreja” o que
consistia num tempo socialmente vivido como grandeza pessoal.
Isto posto, quanto ao papado da segunda metade do século XI, propomos
que a primazia do transcendente – insistentemente destacada como aspecto
definidor das atitudes dos clérigos medievais perante o tempo – seja encarada
como a forma visível (dimensão figurativa objetivada pelas representações)
que recobre uma lógica social partilhada pelos integrantes do poder pontifício:
a vivência do tempo como atributo personalista (dimensão relacional constitu-
tiva dos processo de tematização representacional) (MOSCOVICI, 1986: 469-
494). Tendo os concílios pontificais por teatro histórico, o “tempo religioso da
Igreja”, que cala tão fundo na escrita medievalística, era a imagem que reco-
bria as experiências do devir como emanação dos atos e decisões humanos.
Vivido como dom humano, o tempo era representado como bem divino.
Tal alteração conceitual repercute diretamente sobre o estudo do pa-
pado medieval. Pois, como afirmou Salvador Giner, os homens praticam o
Leandro duarte rust 103

poder “segundo sua concepção e vivência da temporalidade, [o que faz com que]
(...) cada época revele uma íntima conexão entre o poder e a autoridade que a
preside e a forma, ritmo e direção do tempo que a permeia” (In: MARRAMAO,
1995: 11). Ao propormos a mudança da maneira como os historiadores têm
conceituado as experiências de tempo cabíveis ao papado medieval, todo um
conjunto de ideias acerca do poder pontifício se desloca, perdendo um de seus
principais eixos. Se os integrantes do papado medieval não experimentaram o
tempo tal como nós, historiadores, temos descrito, então é provável que aque-
les homens também não tenham praticado o poder segundo nosso habitual
entendimento da política pontifícia.
Não nos deixemos seduzir pelo agente histórico. O “retorno do sagrado”,
registrado por gerações eclesiásticas a respeito dos sínodos e concílios papais
da segunda metade do século XI, compõe um conjunto de representações que
ressignificavam a maneira como o papado tomou parte das relações de força
da época. Noutras palavras, estas narrativas que enunciavam a restauração de
uma aliança sagrada entre os papas e Deus consistiu no meio simbólico com o
qual clérigos e abades interpretaram e classificaram um processo histórico que
povoou seu mundo. Tais imagens sublimes metaforizavam algo que selou as
décadas compreendidas entre os pontificados de Leão IX e de Urbano II (1049-
1099), a saber: que a política papal – assim como a temporalidade – expandiu-
se, através dos concílios, como uma grandeza pessoal.

2.3. O cânone ao abrigo da voz

O tempo vivido é uma construção social. Ainda que inscrito com proces-
sos físicos e biológicos, como a sucessão dia-e-noite e o envelhecimento dos
seres vivos, e dependente da mente humana para ser dividido entre “ontem”
e “hoje”, prevalece em sua constituição o aspecto de que ambas as faces – a
objetiva e a subjetiva – são experiências construídas e reproduzidas coletiva-
mente. Tanto os movimentos naturais como a linguagem que nomeia o fluxo
incessante do devir só se tornam constituintes do tempo vivido como elabora-
ções oriundas da integração entre o ego, “o outro” e o mundo.
O tempo não é uma categoria do intelecto ou fato psíquico. Tampouco
é a linha ou o círculo que aprisiona os acontecimentos. Ele é uma rede de
presenças incessantemente elaboradas e reconstruídas. Dizemos que o tempo
passa, escoa. Guiados pela metáfora heraclitiana, falamos dele como um rio.
Contudo, adverte-nos Merleau-Ponty (1994: 551), a experiência da mudança
e do transcorrer não emerge, per se, do próprio mundo: “a mudança supõe um
certo posto onde eu me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem, não há acon-
tecimento sem alguém a quem eles advenham”. O tempo não é como um rio,
104 coLunas de são pedro

pois ele pressupõe um referencial, um testemunho que, mais do que registrar,


constrói o curso seguido pelas águas do devir: “não é um processo real, uma
sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha relação com
as coisas”. Porém, isto não faz dele um imperativo interior ao intelecto ou uma
continuidade intuitiva, como quiseram Kant e Bergson:

O passado e o porvir não podem ser simples conceitos que nós formaríamos
por abstração a partir de nossas percepções e de nossas recordações, não po-
dem ser simples denominações para designar a série efetiva de “fatos psíqui-
cos”. (...) Não digamos mais que o tempo é um “dado da consciência”, diga-
mos, mais precisamente, que a consciência desdobra ou constitui o tempo.
(...) É em meu campo de presença (...) que tomo contato com o tempo, que
aprendo a conhecer o curso do tempo (MERLEAU-PONTY, 1994: 555-557).

O tempo é uma síntese de sentidos elaborada pelos homens a respeito da


presença do mundo e “do outro”, vividos na mobilidade de suas existências. Não
é criação subjetiva, nem realidade material. Mas a grande área fenomenal de
interseção entre ambos. Todavia, sejamos cautelosos. Este “mundo” e “o outro”
que experimentamos não são articulações dadas no ser ou projeções percebidas
espontaneamente. Sua emergência está imbricada de poder e relações de força.
O tempo é uma experiência primordial. Não nos restam dúvidas. Talvez seja
mesmo o principal campo de posições existenciais assumidas pelo ser. Porém,
tais processos escorrem pelo tecido das experiências vividas em meio a desigual-
dades e a certas condições que, construídas social e historicamente, modelam
a vida humana. Para o historiador, a Fenomenologia não pode ficar, um minuto
sequer, desacompanhada de uma atenção às relações de poder. Especialmente,
em razão da principal repercussão acarretada pelas conceituações aqui adota-
das: se a temporalidade é a principal forma de comunicação e orientação dos
seres humanos entre si e destes com o mundo que os rodeia – e, digamos logo,
partilhamos desta visão –, então ela não pode ser considerada simples etapa ou
nível das interrelações sociais, mas um de seus modi operandi axiais.
As experiências de tempo instituem a vida social na mesma medida
em que são instituídas por ela. Lidamos com vínculos tão íntimos e funda-
mentais que não podem ser reduzidos a relações monocausais ou do tipo
“causa-e-efeito”: “trata-se de uma dialética profunda e não de relações su-
perficiais que se ligam” (OST, 2005: 13-14). Insistamos: o olhar fenomeno-
lógico deve comportar a premissa de que o tempo é uma construção social
e uma experiência de poder.
Os sentidos atribuídos ao tempo são sentidos conferidos às ações sociais.
Portanto, os significados temporais, discutidos nas páginas anteriores, nos for-
Leandro duarte rust 105

necem os horizontes sob os quais os integrantes do papado dimensionavam os


desafios de poder e as exigências éticas das relações sociais: sob a regência de suas
experiências pessoais. Entretanto, vale notar, o qualificativo “pessoal” não remete,
em nossas argumentações, a um modo de agir “individual”. Este último termo
implica na existência de um ego psicologizado, fechado em reflexividade e simbo-
licamente objetivado como categoria suficiente de identidade; caracterização que
não pode ser automaticamente atribuída aos homens e às mulheres que viveram
durante a Idade Média (CARRITHERS, 1985: 93-122; GUREVICTH, 1995).
Ao lançar mão da designação “pessoal”, pretendemos destacar que o
poder era, nos sínodos e concílios papais, exercido sob predomínio dos es-
tados de consciência, segundo os quadros normativos ditados pela unidade
racional reconhecida pelos próprios medievais como persona (MAUSS, 2003:
392-393). Por conseguinte, a persona, com seus valores habituais e inclinações
morais, era uma fonte incontornável para a tomada de decisões canônicas e
políticas. Vejamos um caso célebre, o da sentença de excomunhão proveniente
do concílio romano de fevereiro de 1076:

Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, nós te imploramos, inclina


teus misericordiosos ouvidos para nós e escuta-me, teu servo, quem tu ali-
mentaste desde a infância e até este dia livrou das mãos dos homens iníquos
que me odiaram, e ainda odeiam, por minha fidelidade a ti. (...) Eu acredito
ser por tua graça e não por minhas obras que te agradou, e ainda agrada,
que o povo Cristão especialmente confiado a ti deverias ser especialmente
obediente a mim através de teu vicariato, que me foi entregue. E por tua
graça, o poder me foi dado por Deus de atar e desatar no céu e na terra.
Então, fortalecido por esta confiança, para a honra e proteção de tua igreja,
em nome do Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, através de teu
poder e autoridade, eu nego ao rei Henrique, filho do imperador Henrique,
que se ergueu com inaudita soberba contra tua igreja, o governo de todo o
reino dos Germanos e da Itália; eu absolvo todos os cristãos do vínculo de
qualquer juramento que eles tenham prestado ou venham a prestar a ele;
eu proíbo a qualquer um de servi-lo como rei. Pois é adequado que ele, que
busca diminuir a honra de tua igreja, deva perder a honra que aparenta
possuir. E porque ele desprezou obedecer como um cristão, e não retornou
ao Deus que ele abandonou ao manter contato com excomungados e, tu és
minha testemunha, ao menosprezar as admoestações que enviei para sua
salvação, e ao desprezar a tua igreja por meio de uma tentativa para dividi-
la separando-a, em teu nome eu ato-o com o vínculo do anátema.47

47
Beate Petre apostolorum princeps, inclina, quesumus, pias aures tuas nobis et audi me servum tuum,
106 coLunas de são pedro

Com estas palavras Gregório VII negou ao rei Henrique IV o exercício


da realeza e o excomungou por desobediência. Porém, ele o fez na forma de
um apelo pessoal dirigido a São Pedro. Dispondo da sentença como um exame
confessional, o papa tornou-a alheia ao processo de sua própria elaboração:
ela não apresenta vestígio algum das deliberações e das consultas ao plenário
conciliar que respaldou sua redação.48 Semanas antes, Henrique justificou a
decisão de depor o pontífice alegando: “reuni uma assembleia geral com todos
os principais homens do reino, segundo sua súplica”.49 Disse ainda que nada
mais fizera a não ser acatar a “justa opinião” destes homens. Já Gregório se-
quer evocou a aprovação da igreja romana ao punir o rei. Como revela ainda
outro documento, a bula redigida para anunciar a publicação dessa sentença,
a legitimidade do veredicto papal não foi amparada no respaldo dos padres
reunidos em sínodo, mas na solidariedade à “tristeza e lamentação por parte
de todos fiéis”. A atitude extrema do papa era um consolo dirigido a todos os
“aflitos pelas injúrias que têm sido infligidas sobre [Pedro]”, uma vez que eram
“feitos participantes dos sofrimentos”.50 Como demonstrou Michele Maccarro-
ne (1989: 55-96) em páginas memoráveis, Gregório compreendia o primado
eclesial de sua autoridade como a consequência de sua proximidade incomum
com o apóstolo Pedro e, por extensão, com todos os fiéis, seu rebanho: sua
devoção petrina tinha sérios efeitos políticos.
A reparação das angústias para as quais foram arrastados os “verdadeiros
cristãos”, por força dos atos do rei, parecer ter sido motivo suficiente para legitimar

quem ab infantia nutristi et usque ad hunc diem de manu iniquorum liberasti, qui me pro tua fidelitate
oderunt et odiunt. (...) Et ideo ex tua gratia, non ex meis operibus credo, quod tibi placuit et placet, ut
populus christianus tibi specialiter commissus mihi oboediat specialiter pro vice tua michi commissa.
Et michi tua gratia est potestas a Deo data ligandi atque solvendi in celo et in terra. Hac itaque fiducia
fretus pro ecclesie tue honore et defensione ex parte omnipotentis Dei Patris et Filii et Spiritus sancti
per tuam potestatem et auctoritatem Henirico regi, filio Heinrici imperatoris, qui contra tuam eccle-
siam inaudita superbia insurrexit, totius regni Teutonicorum et Italie gubernacula contradico et omnes
christianos a vinculo iuramenti, quod sibi fecerunt vel facient, absolvo et, ut nullus ei sicut regi serviat,
interdico. Dignum est enim, ut, qui studet honorem ecclesie tue imminuere, ipse honorem amittat,
quem videtur habere. Et quia sicut christianus contempsit oboedire nec ad Deum rediit, quem dimisit
participando excommunicatis meaque monita, que pro sua salute misi, te teste, spernendo seque ab
ecclesia tua temptans eam scindere separando, vinculo eum anathematis vice tua alligo et sic eum ex
fiducia tua alligo, (...). GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10a. MGH Epp. sel. 1: 270-271; MANSI, 20: 467-469.
Como se pode notar, as oscilações de concordância verbal constam no texto latino.
48
BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS 5: 433-439; BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5:
278-283; BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum. MGH Ldl 1: 606-607; BRUNO DE MERSEBURG. De
Bello Saxonico. MGH SS 5: 353; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 435; LAMBERTO DE
HERSFELD. Annales. MGH SS 5: 243.
49
“Generalem conventum omnium regni primatum ipsis supplicantibus habui”. HENRIQUE IV. Epis-
tola. MGH Const. 1: 109; BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS 5: 351-352; MANSI,
20: 471-472.
50
Omnibus tamen fidelibus (...) dolendum foret et gemendum (...) cogitandum vobis est, quantum
nunc de irrogata sibi iniuria dolere debeatis. (...) socii passionum efficiamini. GREGÓRIO VII. Reg. 3:6.
MGH Epp. sel. 1: 254-255; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 442.
Leandro duarte rust 107

a decisão de excomungar e remover do trono o sucessor imperial. A excomunhão


do imperador surge como uma questão de foro pessoal, interior à consciência cris-
tã, algo que dizia respeito à participação do pontífice na contrição das almas. Uma
fórmula idêntica registraria, anos depois, a reedição deste gesto. No sínodo roma-
no de março de 1080, Gregório fulminou Henrique com nova sentença:

Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, e tu, bem-aventurado


Paulo, doutor dos povos, sejam condescendentes, eu peço, a inclinar vos-
sos ouvidos para mim e com clemência compreender-me. Porque vós sois
discípulos e amantes da verdade, ajudais que eu diga a vós a verdade
isenta da toda falsidade, para que meus irmãos encontrem consolação
no melhor em mim e saibam e compreendam que com confiança em vós,
depois de Deus e sua mãe a sempre virgem Maria, eu resista ao fraco e
injusto, e ainda que eu preste auxílio a vossos fiéis.51

Talvez tenha sido essa maneira personalista de agir que levou alguns
historiadores a atribuírem ao papa a reputação de homem místico que “não
levava em consideração nem o direito, nem a jurisprudência, nem o governo dos
homens, nem as atividades humanas” (PAUL, 1988: 247), a vê-lo como “homem
intransigente, taxativo, autoritário, obstinado mesmo e rígido” (PACAUT, 1976:
130, Ver ainda: COWDREY, 2000: 1-22). Porém, ao contrário do que por vezes
se sugere, a forma de proceder adotada por Gregório VII não era exceção ou
excentricidade na segunda metade do século XI. Isto pode ser demonstrado
com uma “inverdade”. Vejamos.
Em 1044, o papado foi atingido por uma grave crise. As ásperas rivalida-
des entre os Tusculanos e os Crescenzi – famílias aristocráticas de imprecisas
ramificações parentais que disputavam o controle de Roma – se acirraram;
desandando em levantes populares que acarretaram a fuga do pontífice rei-
nante (Bento IX), a consagração de um rival (Silvestre III) e a eleição de um
terceiro sucessor (Gregório VI) para a mitra papal. Dois anos depois, o Trono
de Pedro ainda era reclamado pelos três papas. A disputa não persistiu, pois
os três foram removidos pelo rei Henrique III pouco antes do Natal de 1046.
Contudo, precisamente neste ponto a documentação se bifurca. Uma
parcela das fontes atesta que os eclesiásticos receberam o mesmo tratamento

51
Beate Petre princeps apostolorum et tu beate Paule doctor gentium, dignamini, queso, aures vestras
ad me inclinare neque clementer exaudire. Quia veritatis estis discipluli et amatores, adiuvaret, ut
veritatem vobis dicam omni remota falsitate, quam omnino detestamini, ut fratres mei melius michi
adquiescant et sciant et intellegant, quia ex vestra fiducia post Deum et matrem eius semper virginem
Mariam pravis et iniquis resisto, vestris autem fidelibus auxilium presto. GREGÓRIO VII. Reg. 7: 14a.
MGH Epp. sel. 2: 483-487; HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS 8: 451-453; MANSI 20: 534-536.
108 coLunas de são pedro

por parte do monarca: os três foram depostos como invasores da Igreja roma-
na, os dois últimos no sínodo presidido por Henrique em Sutri, e o primeiro
num concílio em Roma. Versão endossada pela Gesta Hamburgensis Ecclesiae
Pontificum, pela Chronica do Annalista de Saxo, pelos Annales de Lamberto de
Hersfeld, pelo conhecido De Ordinando Pontifice, entre outros.52 Um segundo
conjunto documental insiste que, diferentemente de seus rivais, Gregório VI
não foi deposto, mas abdicou. Sua destituição é descrita como renúncia vo-
luntária ao poder pelo Liber ad Amicum de Bonizo de Sutri, pela Chronica de
Bernoldo de Costance, pela Chronica Casinensis e pelos Dialogi do papa Vítor
III. De acordo com esta versão, após ouvir os “homens religiosos” reunidos
pelo rei em Sutri e tormar conhecimento dos tristes fatos envolvidos em sua
eleição, o outrora presbítero teria condenado a si mesmo:

“Eu, Gregório, bispo, servo dos servos de Deus, julgo-me merecedor de


ser removido do ofício de bispo de Roma, em razão da mais perversa ve-
nalidade da heresia simoníaca que, através dos ardis do antigo inimigo,
rastejou para minha eleição”. E ele acrescentou: “Isto vos agrada?” Eles
replicaram: “O que agrada a ti, nós confirmamos”.53

Para a historiografia, Gregório foi deposto e os relatos documentais “que


falam em abdicação devem ser dispensados como falsificações tendenciosas dos
procedimentos de Sutri” (TELLENBACH, 1959: 177). Esta versão infundada
não passaria, portanto, de uma manobra feita para resgatar da ilegalidade a
memória daquele ao qual estiveram associados integrantes do papado como
Pedro Damião e Hildebrando de Soana. O primeiro aclamou a eleição de João
Graciano como Gregório VI,54 o segundo foi seu capelão e fez da memória
deste laço a razão para escolher o nome apostólico de “Gregório VII” (JE-
DIN, 1980: 254-255; COWDREY, 1998: 21-26; CANTARELLA, 2005: 81-99).
Eis a razão por trás desta falsificação: todos os propagadores da versão da
abdicação – Bonizo, bispo de Sutri e aliado da “causa hildebrandina” contra

52
ADÃO DE BREMEN. Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pontificum. MGH SS rer. Germ. 2: 148; ANNALES
AUGUSTANI. MGH SS 3: 126; ANNALES CORBEIENSES. MGH SS 3: 06; ANNALES ROMANI. MGH SS
5: 468-469; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 687; DE ORDINANDO PONTIFICE. MGH Ldl 1: 8-14;
HERMANO DE REICHENAU. Chronicon. MGH SS 5: 126; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH
SS 5: 154. Ver ainda: GREGOROVIUS: 47-57; MANN, 5: 238-269; POOLE, 1917: 1-30.
53
‘Ego Gregorius episcopus, servus servorum Dei, propter trupissimam venalitatem symoniace her-
eseos, que antiqui hostis versutia mee electioni irrepsit, a Romano episcopatu iudico me submoven-
dum’. Et adiecit: ‘Placet vobis hoc?’ Et responderunt: ‘Quod tibi placet et nos firmamus’. BONIZO DE
SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl. 1: 586. Outras fontes para a versão da abdicação: BERNOLDO DE
CONSTANCE. Chronicon. MGH SS 5: 423; CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH SS 7: 682;
VÍTOR III. Dialogi. PL 149: 1003-1005.
54
PEDRO DAMIÃO. Briefe 14. MGH Epp. 1: 142-145.
Leandro duarte rust 109

Henrique IV; Desidério, abade de Monte Cassino eleito papa como Vítor III;
Bernoldo de Constance, apologista de Gregório VII; e Leão de Marsia, monge
de Monte Cassino – eram papistas, estavam comprometidos com a defesa do
governo pontifical estabelecido após 1046. Nenhum destes escritores poderia
ser visto como confiável no tocante a este evento, pois todos teriam igual-
mente fraudado a verdade em prol da reputação do establishment papal (Ver
igualmente: BORINO, 1916: 141-252; POOLE, 1917: 7-16; CAPITANI, 1966:
1-51; VACCA, 1993: 157-166; MELVE, 2007: 122-157).
Porém, precisamente por isso tal versão é valiosa para o historiador: por
oferecer a medida da legitimidade do poder para partidários do próprio papa-
do. Quanto a isso, cabe não perder de vista o essencial dessa versão: Gregório
havia incorrido em simonia, mas ignorava que o tivesse feito. Seu envolvimen-
to no acordo em dinheiro que o levou à Sé Apostólica é apontado como sendo
direto, mas comandado pela inocência. Desconhecer-se faltoso o distinguia de
seus concorrentes. Os três pontífices eram infratores. Os três haviam macu-
lado a igreja de Roma barganhando suas eleições com dinheiro ou influência
familiar. Contudo, um deles, inconsciente de suas ações, não havia deixado a
legalidade, apesar de reconhecidamente simoníaco. Eis o fundamento lógico
da versão da abdicação: por não estar na mesma ilicitude de seus rivais, Gre-
gório não poderia ter sido deposto, como eles foram.
A fronteira da legitimidade das ações pontifícias não era demarcada, para
os autores papistas, pelos atos cometidos, mas antes pelos estados de consci-
ência que conduziam tais atos. As falhas de conduta não decorriam puramente
de ações, mas dos melindres da intencionalidade. Foi precisamente um destes
“estados” – o da ausência de uma motivação ou intenção – que definiu a le-
galidade de Gregório VI aos olhos de figuras importantes no interior da Cúria
romana. Por esta razão os relatos papistas o descrevem realizando não só um
gesto de renúncia ao poder, mas um exame confessional com o qual teria aca-
tado a solicitação do plenário conciliar de “refletir sobre teu caso em teu próprio
peito e julgar a ti mesmo por tua própria boca”.55 Para os autores curialistas esta
satisfação de feições penitenciais desempenhava plenamente o papel de uma
justificativa legal, uma prova de que Gregório estava em paz com a lei canônica.
Retornemos aos anos 1070. A sentença de deposição e excomunhão lan-
çada contra Henrique IV empregou a mesma medida de legalidade articulada
por estes escritores para assegurar a Gregório VI um bom lugar junto à memó-
ria eclesiástica. Gregório VII persistiu fiel ao princípio de que a linha divisória
entre o lícito e o ilícito não era traçada apenas por regras de conduta factuais

55
Cui illi respondentes dixerunt: ‘Tu in sinu tuo collige causam tuam, tu proprio ore te iudica’. BONI-
ZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl. 1: 585-586.
110 coLunas de são pedro

ou pelos atos em si, mas também pelos valores a que servia uma persona.
Ultrajar os princípios que o ligavam aos “verdadeiros cristãos” era razão de
primeira ordem para o papa evocar as mais severas punições contra Henrique.
Em suma, no ordenamento jurídico pontifício da segunda metade do século
XI, o sentido legal dos fatos e atos era definido à luz dos propósitos e dos
valores que orientavam o executor da autoridade apostólica. Suas inclinações
pessoais fundavam as bases do exercício jurídico.
Há outro aspecto na versão da abdicação de 1046 que precisa ser destaca-
do. Para adequar o passado e fazê-lo depor a favor do papado, aquela “falsificação
tendenciosa” evidenciou o elevado valor jurídico de uma característica pessoal: a
vocalidade, as formas de uso da voz (ZUMTHOR, 1993: 21; CARRETO, 1996). A
conduta atribuída a Gregório VI e as cartas de deposição ditadas por Gregório VII
evidenciam como o emprego do poder decisório passava, prioritariamente, pela
voz. Um indício disso são as marcas de vocalidade deixadas sobre as decisões
conciliares, muitas das quais registradas como atos de fala. Eis um exemplo:

O Senhor papa Nicolau presidindo o sínodo na basílica constantiniana


disse: Decidimos que, quanto aos simoníacos, não se deve ter nenhuma
misericórdia acerca da conservação da dignidade; segundo as sanções
dos cânones e decretos dos santos Padres, os condenamos todos e que
sejam depostos pela autoridade apostólica.56

Observemos igualmente estes decretos de Urbano II:

Nós estabelecemos que ninguém seja ordenado subdiácono antes dos


15 ou 14 anos, que ninguém seja feito diácono antes dos 20 anos, que
ninguém seja consagrado presbítero antes dos 30 anos. [Os padres con-
ciliares] responderam: ‘uma justa e canônica definição a ser observada
por todos’.57

Quanto aos capelães que, contra o número estabelecido, tenham presta-


do serviços em igrejas sem o consenso de seu bispo e que tenham obtido

56
Dominus papa Nicolaus synodo in basilica Constantiniana praesidens dixit: (1) Erga simoniacos
nullam misericordiam in dignitatem servanda habendam esse decernimus; sed iuxta canonum sanctio-
nes et decreta sanctorum Patrum eos omnino damnamus, ac deponendos esse apostolica auctoritate
sancimus. DENZINGER: 392-394. Trecho do decreto contra a heresia simoníaca promulgado no sínodo
presidido por Nicolau II em Roma, abril de 1059.
57
Constituimus ut nemo ante annos xv aut xiiii subdiaconus ordinetur, nemo (ante) annos xx diaconus
fiat, nemo ante annos xxx in presbiterum consecretur. Responderunt: iusta et canonica definitio ab
omnibus observetur. Eodem die talia sunt decreta coram sinodo promulgata. MANSI, 20: 723. Cânone
IV, concílio de Melfi, 1089, reunido por Urbano II. Ver ainda: (SOMERVILLE & KUTTNER, 1996: 253).
Leandro duarte rust 111

dízimos dos laicos sem a interrupção dos bispos, nós privamos do ofício
e do benefício pelo juízo do Espírito Santo e pela autoridade dos santos
apóstolos. Foi aclamado por todos: ‘faça-se, faça-se’.58

Em todos estes casos as decisões não emanam de uma palavra impesso-


al, distante e ordenadora. Mas de uma palavra-força que, dotada de um rosto,
ecoava de um lugar-sujeito identificável, quer fosse ditada por Deus, pela boca
papal ou pela voz coletiva do concílio. Tratava-se de uma palavra que trans-
formava a escrita em seu próprio fundo, que se valia dos princípios textuais
para se reforçar e enriquecer (Ver: ZUMTHOR, 1993: 75-95). Fundadora, esta
palavra-força condicionava a lei escrita, não o contrário.
O papado do século XI teve um forte senso de domínio da lei, mas este
não era prontamente instaurado pelos limites textuais. Ilegal não era aquilo
que se encontrava fora apenas da prescrição escrita, mas, em diversas ve-
zes, da palavra fundadora, fundamento da autoridade papal. Tal característica
impunha-se mesmo quando o que estava em jogo eram prescrições canônicas
tão severas como estas:

Que os dízimos, as primícias e as ofertas de pessoas vivas e mortas sejam


restituídos fielmente pelos laicos à igreja e que estejam à disposição do
bispo. Aqueles que os retiverem serão separados da santa igreja.59
Quanto aos dízimos, que a autoridade canônica demonstra terem sido
concedidos para uso piedoso, nós proibimos pela autoridade apostólica
que sejam possuídos por laicos. Mas se eles os receberam de bispos, de
reis ou de quaisquer pessoas que sejam, a menos que os restaurem às
igrejas, deixem-nos saber que cometem a ofensa do sacrilégio e incorrem
no perigo da eterna danação.60

58
Capellanos, qui contra statutum numerum in ecclesiis sine consensu sui episcopi militaverint, & a
laicis decimas sine intermissione episcoporum obtinuerint, nos sancti Spiritus judicio sanctorumque
apostolorum auctoritate ab officio & beneficio interdicimus. Acclamatum est ab universis: fiat, fiat.
MANSI, 20: 739; URSINUS: 7-8. Medida atribuída à assembleia presidida por Urbano II em Benevento
no ano de 1091.
59
Deinde, ut decimae & primitiae, seu oblationes vivorum & mortuorum, ecclesiis Dei fideliter re-
ddantur a laicis: & ut in dispositione episcoporum sint. Quas qui retinuerint, a sanctae ecclesiae com-
munione separentur. CONCILIUM LATERANENSE. MGH Const. 1: 547; MANSI, 19: 898. Cânone V, do
concílio romano de abril de 1059, presidido por Nicolau II.
60
Decimas, quas in usum pietatis concessas esse canonica auctoritas demonstrat, a laicis possideri
apostolica auctoritate prohibemus. Sive enim ab episcopis vel regibus vel quibuslibet personis eas
acceperint, nisi ecclesie reddiderint, sciant se sacrilegii crimen committere et eterne dampnationis
periculum incurrere. GREGÓRIO VII. Reg 5: 5b. MGH, Epp. sel., 2: 404-405; BERTHOLDO. Annales.
MGH SS 5: 314; HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS 8: 423-424. Cânone aprovado no sínodo
papal de 1078.
112 coLunas de são pedro

A última destas medidas foi aprovada, em assembleia conciliar, por


Gregório VII. Contudo, em 1081, quando dois de seus legados cumpriram-na,
ipsis literi, excomungando cavaleiros que haviam se apoderado de dízimos, a
reação papal foi esta, transmitida em carta aos próprios enviados pontifícios:

Chegou ao nosso conhecimento que vós perturbastes muitos cavaleiros


que anteriormente vos dedicaram ajuda e auxílio para corrigir presbíte-
ros simoníacos e fornicadores, excomungando-os por terem se recusado
a cumprir os dízimos, ao passo que, nós, por discrição, adiamos até ago-
ra atá-los com o vínculo do anátema por julgamento sinodal. Quanto a
isto, portanto, nós aconselhamos e exortamos que de agora em diante
vossa sabedoria tempere o rigor canônico e que, nesta tempestade de
atribulações, apliquem-se para a moderação poupando algumas coisas e
ignorando algumas outras.61

O texto não fala de impunidade. Segundo o papa, os milites sofreriam


os efeitos da infração canônica de reter dízimos. Mas a penalidade devia ser
adiada e a regra escrita não podia ser cumprida de imediato. Isto seria um
excesso por tratar-se de ativos colaboradores na tarefa de corrigir os desvios
da disciplina eclesiástica. O cumprimento estrito do cânone, como havia sido
feito pelos legados, feria o reconhecimento da retidão com que a correção
deveria ser aplicada. Com efeito, a utilitas e a equidade não estavam dadas na
regra escrita, por isso o seu valor de justiça permanecia incompleto, inacaba-
do, constantemente aberto à espera de ser preenchido com os dons da razão.
Mas esses, o cânone não revelava. Só a palavra vocalizada.
Reger as condutas cristãs implicava em reconhecer que um infrator podia
“muito melhor e mais prontamente ser conquistado para Deus e estimulado para o
amor perpétuo do bem-aventurado Pedro pela doçura da brandura e pela exibição
da razão do que pela austeridade ou pelo rigor da justiça”, segundo o próprio
Gregório VII.62 Essa orientação tão decisiva a ponto de suplantar todas as de-
mais, não estava escrita em códigos canônicos: era um princípio moral familiar
ao espírito do papa. A regra escrita não se oferecia como algo a ser cumprido

61
Preterea innotuit nobis, quod multos milites, qui prius ad presbyteros fornicarios et symoniacos co-
ercendos favorem et auxilium vobis impenderant, propterea quod decimas dimittere nolebant, excom-
municando turbaveritis, quales nos adhuc anthematis vinculis alligare synodali judicio per discretio-
nem distulimus. Super hic igitur consulimus atque hortamur, ut nunc pro tempore canonicum rigorem
vestra sapientia temperet atque hac turbationis tempestate, quedam parcendo nonnulla dissimulando
ita studeat moderari. GREGÓRIO VII. Reg. 9:5. MGH. Epp, sel. 2: 580.
62
Videtur enim nobis multo melius atque facilius lenitatis dulcedine ac rationis ostensione quam aus-
teritate vel rigore iustitie illum Deo lucrari et ad perpetuum beati Petri amorem posse provocari. GRE-
GÓRIO VII. Reg. 9: 5. MGH. Epp, sel. 2: 580.
Leandro duarte rust 113

automaticamente, mas a ser colocado sob a custódia da razão e seu principal


meio de expressão: a vocalidade eclesiástica. Este predomínio da voz clerical
implicava em cultivar no espírito uma prontidão para “ignorar certas coisas”.
Se o texto dos cânones não permitia antecipar um veredicto, era porque
os decretos conciliares não eram imperativos fáticos e objetivos de conduta
ou princípios funcionais inerentemente dotados de coercitividade. Não eram
referências vistas como autofuncionais, tal qual um index de ações projetáveis,
como tanto insistiram, por exemplo, Harold Berman e Paolo Prodi. Presenças
frequentes nas bibliografias sobre a história do direito, suas obras falam de
uma “Revolução Papal”. Radicalizada durante o pontificado gregoriano, ela
teria feito da Cúria romana uma “instituição soberana com ordenamento ju-
rídico autônomo” (PRODI, 2005: 57). Arrastada pelo curso deste movimento
“revolucionário”, a lei canônica teria adquirido definitivamente “caracteres de
auto-referencialidade”, convertendo-se em instrumento de “regulação das rela-
ções sociais”, matéria-prima para a elaboração coletiva de “formas deliberadas e
programáticas de impor a justiça e a paz” (BERMAN, 1984: 118; PRODI, 2005:
57-70). A lei escrita do século XI é saudada por estes historiadores como por-
tadora de uma estrutura inerentemente prescritiva, objetivada e ordenadora.
Esse olhar projeta um forte sentido de executoriedade e de obrigatorie-
dade sobre as coleções jurídicas medievais. Ele nos faz ver os textos canônicos
como portadores de uma espécie de “automatismo punitivo implícito”, como de-
positários de formas cristalizadas de um “dever ser” que pesaria sobre as relações
sociais da época, como a fonte maior das práticas normativas. Somos levados a
acreditar que os preceitos textuais eram verdadeiros imperativos de conduta e
qualquer desvio ou inobservância a seu respeito significaria, para os agentes his-
tóricos, violação ou grave distúrbio. Toda esta interpretação advém de um modo
de pensar o direito muito mais próximo de nós, proveniente do século XIX e dos
códigos legais inspirados no positivismo jurídico de Hans Kelsen (2002: 4) ou de
Gustav Radbruch (1999) (Ver ainda: GOYARD-FABRE, 2007: 86-90).
Os exemplos examinados até aqui revelam que as normas canônicas
nem sempre ocupavam um lugar central na definição papal dos significados
jurídicos de uma conduta. No primeiro plano deste processo estavam os atri-
butos morais manifestados pela voz. A regra depositada em texto formava
palavras de orientação que, como tal, deveriam ser pesadas e moderadas. Não
obstante partissem do que estava escrito, a autoridade e a coerção reputadas
à lei se consumavam de fato na vocalidade e nas práticas pessoais acionadas
em sua aplicação. A voz clerical não estava limitada a consultar ou reproduzir
as normas escritas e os cânones, mas encarregada de abrigá-los e instruí-los.
Concretamente isto se dava da seguinte forma: os atos disciplinares condu-
zidos sob a égide da autoridade apostólica não eram fixados por preceitos
114 coLunas de são pedro

textuais, eram antes construídos por meio de gestos fundamentalmente orais


e pessoais de justificação.
É o que ilustra igualmente o caso de Gregório, bispo de Vercelli. Em abril
de 1051, respaldado pelo sínodo reunido na basílica de Latrão, Leão IX o exco-
mungou por perjúrio e violação do celibato com uma parenta. Porém, o bispo
reaparece subscrevendo as atas do concílio romano presidido por Nicolau II em
abril de 1059, onde foi exortada a exclusão dos clérigos que mantinham concu-
binas. Sinal de que Gregório justificou-se ao papado e pôde permanecer em seu
ofício63 mesmo tendo infringido “a conhecida proibição de nosso senhor o papa
Nicolau [segundo a qual, se um clérigo] mantém-se em união carnal com mulhe-
res, e não tiver deixado o ministério, [deve ser punido e saber] que não deverá
ser assegurada para ele nenhuma permissão de restituição ao grau anterior”.64 A
restauração plena da legalidade do bispo pode ser mais uma vez atestada por
sua elevação a chanceler imperial na península itálica, posição que o colocou
à frente do episcopado da Lombardia (COWDREY, 1998: 93-96). Realizada
longe dos registros escritos, a justificação pessoal de Gregório o livrou de toda
mácula e suspeita, permitindo-o redimir-se daquilo que a lei escrita do papa
Nicolau declarava imperdoável: o bispo de Vercelli figura no Registrum de seu
homônimo, o papa Gregório VII, como “irmão obediente à Sé Apostólica”, soli-
citado pelo próprio pontífice para interceder junto à coroa germânica contra a
investidura de um protegido imperial no arcebispado de Milão.65
O hiato existente entre o gesto do bispo de Vercelli e “a proibição do
papa Nicolau” não contrariava o fato de que, para o papado, ambos preser-
vavam a mesma ordem legal. Outro bom indício desta característica reporta
a 1057. Nesta ocasião, amparado por seus sufragâneos, o arcebispo de Mi-
lão, Guido, excomungou Arialdo e Landulfo em um sínodo provincial. Eram
os líderes da Pataria, movimento de ampla projeção popular empenhado em

63 HERMANN DE REICHENAU. Chronicon. MGH SS 5: 129; CONCILIUM LATERANENSE. MGH Const.


1: 546; MANSI, 19: 912; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1068. Bonizo: “o papa reuniu um sínodo no qual é
sabido ter participado o bispo Guido de Milão (...), que trouxe consigo aqueles touros obstinados, os bispos
Lombardos: Cuniberto de Turin, Giselmo de Asti, Benzo de Alba, Gregório de Vercelli, Oto d Novara, Opizo
de Lodi e Adelmam de Brescia. (...) Todos foram ordenados a excluir do altar sacerdotes e diáconos que
viviam em concubinagem.”. Tradução do texto latino: Congregavit prefatus pontifex synodum, in qua
Guido Mediolanensis episcopus (...) cognoscitur, ducens secum cervicosos tauros, Longobardos epis-
copos, id est Cunibertum Taurinensem et Giselmum Astensem et Benzonem Albensem et Gregorium
Vercellensem et Ottonem Novariensem et Opizonem Laudensem et Aldemannum Brixinensem. Quibus
omnibus in eadem synodo preceptum est, ut sacerdotes et levitas concubinatos ab altaris arcerent
officio. BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum. MGH Ldl 1: 593-594.
64
Post cognitum interdictum domini nostri papae Nicolai, mulieris cujuslibet carnali detentus copula,
a ministerio (...) non cessavit, sive deinceps cognoscens praelibatum apostolicae sedis interdictum,
aut mulierem, aut ministerium ecclesiae cum beneficio non statim deferuerit, nullam restitutionis in
pristino gradu veniam sibi reservasse cognoscat. MANSI, 19: 927.
65
GREGÓRIO VII. Reg.3: 9. MGH, Epp. sel. 1: 261-263. Gregório VII recorreu ao bispo de Vercelli como
colaborador até o momento em que este se engajou ativamente nas campanhas imperiais para depô-lo.
Leandro duarte rust 115

impor ao aristocrático clero ambrosiano o exemplo de sacerdotes castos e de-


votados à pobreza apostólica. Porém, Arialdo foi a Roma e obteve de Vítor II
a anulação da sentença pela qual ele e Landulfo foram condenados por atacar
bens da Igreja local. A justificação pessoal de um homem acusado de hostilizar
o clero e de violar o patrimônio eclesiástico sobrepujou a sentença desferida
por um concílio que reuniu os bispos de toda província eclesiástica de Milão,
cuja igreja carregava um prestígio ancestral.
Mas, ainda assim, a decisão pontifícia da anulação poderia ter razões
simples. Seria possível que se tratasse apenas da aplicação da prerrogativa
de superioridade hierárquica reclamada pela Sé do apóstolo Pedro sobre a de
Santo Ambrósio. Ou seja, poderia ser uma demonstração de que em matéria
de excomunhão, as palavras do papa estavam acima das do clero de Milão.
Isto se o arcebispo Guido não tivesse sido encarregado pelo próprio papado
– por Estevão IX, antecessor de Vítor – de reunir aquele mesmo concílio e
aplacar as numerosas queixas do clero ambrosiano contra os patarinos.66 Nas
voltas desta tensa relação entre papado e episcopado milanês, uma constata-
ção permanece: prostrar-se aos pés do sucessor pontifício e justificar-se pelas
próprias palavras bastou para um homem excomungado por um importante
concílio provincial reverter a decisão instruída segundo as ordens de um papa
(Ver ainda: GOLINELLI, 1998: 13-15).
Não se tratava de simples voluntarismo, de bruscas flutuações de julga-
mento ou de mera arbitrariedade. O que estes casos revelam é o traçado de um
domínio legal em que a palavra entregue pela boca, em juramento, possuía valor
probatório inestimável. Somos informados sobre uma modalidade de percepção
jurídica em que o acionamento da lei ocorria em função de um elevado índice
de oralidade. Isto é, a observância, a utilidade e a eficácia dos textos canônicos
completavam-se na intervenção da voz humana, alcançando altíssima mobili-
dade e flexibilidade. E o período que talvez melhor demonstre a vigência destas
características é, paradoxalmente, apresentado pelos historiadores como a época
de “exigências radicais, austeras e arrogantes” (DUFFY, 1998: 94-95). Trata-se do
governo de Gregório VII, a respeito do qual falaremos um pouco mais.

2.4. Um papado com vontade de ferro?

Comecemos pelo ano de 1079. Há meses, o papa era atingido por no-
tícias sobre a guerra que opunha Henrique IV a Rodolfo da Suábia – isto é,
o rei legítimo ao rival eleito pela nobreza da Saxônia. Lutavam pela coroa
66
ANDRÉ DE STRUMI. Vita Sancti Arialdi. MGH SS 30/2: 1054; ARNULFO. Gesta Archiepiscoporum
Mediolanensium. MGH SS 8: 18-20; LANDULFO SENIOR. Historia Mediolanensis. MGH SS 8: 74-78.
Ver ainda: COWDREY, 1968: 25 – 48.
116 coLunas de são pedro

germânica, assolando o reino. Os rumores davam conta de massacres, igrejas


incendiadas, sacerdotes açoitados, altares destruídos, relíquias emporcalha-
das.67 Mutuamente enfraquecidos por batalhas de desfechos incertos, ambos
reivindicavam a vitória, cada qual exigindo do pontífice o reconhecimento de
seu alegado triunfo e, assim, da legitimidade de sua causa.
Todavia, com o papa protelando e a guerra promovendo desenlaces tão
sangrentos quanto inconclusos, os nobres saxônicos exasperaram seu descon-
tentamento com as ações de Gregório. Dois anos antes, na gélida cidade de
Canossa, o papa absolveu o rei Henrique da notória sentença de excomunhão
cujo texto o apeava do trono (FLICHE, 1947: 373-386; ARQUILLIÈRE, 1952:
1-25; MORRISON, 1962: 121-148; ROBINSON, 1979: 721-756; REUTER,
2006: 147-166). O perdão apostólico custou aos rodolfianos um de seus maio-
res trunfos. Era preciso reavê-lo. Cartas eram endereçadas ao papado repi-
sando a alegação de que uma justificação pessoal – como aquela prestada por
Henrique em Canossa e através da qual ele obteve a anulação da sentença de
excomunhão – não era suficiente para restituir o exercício da realeza.68 Mas
Gregório não se pronunciava claramente sobre a questão.
Sob pressão dos rodolfianos, o sínodo romano de 1079 se fez tribunal
do impasse. Uma nova carta foi lida em voz alta para o plenário. Suas linhas
arrolavam as maneiras pelas quais o rei havia violado o juramento prestado
em Canossa: ele permitiu a prisão e o maltrato dos legados enviados pelo papa
para julgar a disputa; arruinou igrejas; expulsou bispos; e, por fim, havia sido
excomungado pelo arcebispo de Mainz, Siegfreid, e outros sete dignitários,
condenação confirmada pelo bispo Adalberto de Wurzburg e aprovada por
um legado pontifício, segundo o relato de Bruno de Merserburg, em De Bello
Saxonico.69 As acusações eram reforçadas pela presença do cardeal Bernardo
– que havia confirmado a excomunhão – e de dois bispos: Altmann de Passau
e Hermano de Metz, colaboradores de Gregório expulsos de suas igrejas por
Henrique.70 A carta não era um simples pedido, mas uma cobrança. Para os

67
BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5: 313. A disputa entre Henrique e Rodolfo deve ser compreen-
dida, segundo Karl Leyser, nos termos de uma “crise da Germânia Medieval”: após sofrer com uma
progressiva alienação de direitos proprietários e prerrogativas judiciárias sob Conrado II, Henrique
III e o próprio Henrique IV, a nobreza saxônica – “uma comunidade política amadurecida” – pegou em
armas contra a dinastia sália, em 1073, colocando um fim à aliança nobiliárquica que havia sustentado
a refundação do império sob os otônidas. Assim, diz Leyser, a revolta saxônica alinhou-se à “reforma
gregoriana” ao impor drástica transformação macro-histórica à estruturação política do Império: “As
ideias otonianas de realeza foram negadas pelo papado reformador, sua prática foi destruída pela rebelião
dos nobres saxões do leste. Este é o significado da crise secular em fins do século XI e primórdios do XII que
os historiadores se arriscam a ignorar”. In: LEYSER, 1994: 48-49.
68
BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS 5: 354-360, 371-378.
69
BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS 5: 371-375.
70
BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5: 316-318, 340-345; BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon.
MGH SS 5: 435-436.
Leandro duarte rust 117

rodolfianos a condenação do rei era um ato de justiça, tanto quanto o paga-


mento de uma dívida de lealdade:

Lamentamos ao bem-aventurado Pedro, a seu vigário o Senhor Apos-


tólico Gregório e a todo o concílio da santa Igreja Romana, a respeito
das injúrias e violências que temos sofrido e incessantemente sofremos
graças ao senhor Henrique, somente por causa de sermos obedientes à
Sé Apostólica.71

A epístola trouxe um novo tom às negociações com o papado. Os saxões


não mais insistiam em questionar a validade da absolvição dada em Canossa,
mas em demonstrar a sua violação. O apelo à Cúria romana ocorria mediante
o reconhecimento da ordem legal instaurada por ela: ao invés de contestar o
pontífice, a carta deveria levá-lo a reagir contra a transgressão de suas pró-
prias decisões. Afinal, como sugeriu o texto: a causa saxônica era a causa da
própria Sé Apostólica. As acusações eram agora moldadas segundo o princípio
de rigor revelado pela própria autoridade romana. A astúcia desta manobra
jurídica torna-se ainda mais nítida quando nos damos conta de como ela se
amparava em textos papais. A epístola lida no sínodo de 1079 parece reprodu-
zir o conteúdo da provisão estabelecida por Gregório VII no ano anterior para
instruir a condução dos assuntos germânicos:

Decretamos que jamais possa qualquer pessoa de qualquer poder, seja


rei, arcebispo, bispo, duque, conde, marquês ou cavaleiro, por qualquer
presunção ou irrefletido esforço, fraude ou estratagema, ou por qualquer
obstáculo, tentar obstruir e resistir a nossos legados de forma que eles não
possam estabelecer a justiça e uma solução. Mas quem quer que por uma
irrefletida presunção – o que, esperamos, não será o caso – se fizer um
transgressor desta nossa constituição e tentar estabelecer uma fraude no
caminho de nossos mencionados legados quando eles estiverem próximos
de estabelecer esta paz, nós o ataremos com o vínculo do anátema.72

71
Conquerimur beato Petro, eiusque vicario domno apostolico Gregorio, omnique sanctae Romanae
ecclesiae concilio, super iniuriis et violentiis, quas a domno Henrico passi sumus et incessanter pati-
mur, non ob aliam causam, nisi quod sedi apostolicae obedientes sumus. BRUNO DE MERSEBURG. De
Bello Saxonico. MGH SS 5: 37-373.
72
Statuimus, ut nulla unquam persona alicuis potentie sive rex aut archiepiscopus episcopus dux co-
mes marchio sive miles aliqua presumptione temerariove ausu fraude dolove seu aliqua perturbatione
legatis nostris obsistere et contraire, ne iustitiam et finem componant, pertemptent. Quicunque autem
temerario ausu, quod non optamus, huius nostre constitutionis violator extiterit legatisque nostri ad
hanc pacem componendam euntibus prenominatis fraudem obponere temptaverit, vinculo eum ana-
thematis alligamus... GREGÓRIO VII. Reg. 5: 14a. MGH, Epp. sel. 2: 368-373.
118 coLunas de são pedro

As acusações dedilhadas pela nova epístola saxônica faziam pesar so-


bre Henrique precisamente o delito preventivamente condenado pela provisão
apostólica. Tudo indica que os partidários de Rodolfo, orientando-se pelo texto
do sínodo de fevereiro de 1078, apostaram que o papa cumpriria suas próprias
determinações e, como estava previsto, condenaria a tirania (tyrannidis) de
Henrique. O emissário deste, por sua vez, ofereceu ao sínodo nada mais do
que promessas de paz e a alegação de que seu senhor não poderia ser conde-
nado por estar ausente.73 Este último argumento contrariava o Dictatus Papae
e o precedente da excomunhão de Henrique, decretada em 1076: ambos asse-
guravam ao papa prerrogativa de condenar in absentia.74
Logo, se os partidários de Rodolfo colocavam-se ao abrigo da ativida-
de legisladora do papado, os henricianos contradiziam-na frontalmente. Tudo
nos leva a crer que o rei não teria escapatória, que os saxônicos bloquearam
todas as saídas legais. No entanto, como concordam as principais fontes, Gre-
gório recusou-se a sentenciar Henrique e mostrou-se disposto a confiar em
seu emissário, para protesto de grande parte do concílio. O papa se limitou
a exigir de cada parte um mesmo juramento, proferido de viva voz e pelos
termos do qual ambos garantiriam a segurança dos novos legados que seriam
enviados às “terras dos teutônicos” para arbitrar a disputa, e se mostrariam
“obedientes em tudo conforme a justiça e o julgamento daqueles”.75 Para desagra-
do maior dos emissários saxônicos, o principal fiador das decisões pontifícias
não era o precedente escrito, mas a palavra falada. E para desalento de Gre-
gório, os saxões cobrariam à reputação pontifícia um alto preço por mais este
desapontamento, desmerecendo-a a ponto de levar o papa a se justificar por
sua “fraqueza”, como consta nesta carta enviada aos fiéis da Germania:

Chegou até nós que alguns de vós tendes duvidado de mim por pensar
que diante da premente necessidade presente eu tenho me guiado por
uma fraqueza secular. Certamente, neste caso nenhum de vós, a não ser
aquele que foi exposto a batalhas, pode mergulhar em maiores atribula-
ções ou sofrer maiores injúrias do que eu.76

73
ORATIO NUNTII HENIRICI REGIS. MGH Const. 1: 552..
74
No item 5 do Dictatus Papae consta: “Que o papa pode depor ausentes”. Quod absentes papa possit
deponere. GREGÓRIO VII. Reg. 2: 55a. MGH Epp. sel. 1: 203; BERNOLDO. Chronicon. MGH SS 5: 435-
443; BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5: 318. Ver ainda: COWDREY, 1998: 185-188; TESSORE, 2003:
127; CANTARELLA, 2005: 208-209.
75
Oboediens erit illis in omnibus secundum iustitiam et iudicium illorum. GREGÓRIO VII. Reg. 6: 17a.
MGH, Epp. sel. 2: 425-429.
76
Pervenit ad nos, quod quidam ex vobis de me dubitant, tanquam in instanti modo necessitate usus
sim seculari levitate. Qua certe in causa nullus vestrum preter instantiam preliorum maiores me et
patitur angustiaset suffert iniurias. GREGÓRIO VII. Reg. 7:3. MGH, Epp. sel. 2: 462.
Leandro duarte rust 119

O desgaste sofrido pela credibilidade papal junto aos seus aliados teutô-
nicos, suas “atribulações e injúrias”, eram tensões oriundas dos esforços gre-
gorianos para manter em aberto as possibilidades de alianças e reconciliações.
Em outras palavras, o modo como o pontífice tomava decisões estava pautado
pela lógica da preservação de uma capacidade de acordo e paz que incluísse
rodolfianos e henricianos. As leis canônicas e constituições da Sé Apostólica
deveriam ser cumpridas somente na medida em que servissem a este propósi-
to de potencializar ao máximo os horizontes de conciliação.
O papado agia como se reconhecesse a todo o momento a superioridade
da palavra falada para revelar a verdade das coisas. Isto nos ajuda a compre-
ender porque o governo gregoriano esteve repleto de casos em que a vocali-
dade ditou o fazer valer da lei canônica. Observe-se esta decisão do sínodo
romano de 1074, dirigida a Roger, bispo de Châlons-sur-Marne, acusado de
opressão por seu próprio clero:

Felipe, rei dos Francos, ligado a ti não por pouco amor, rogou-nos, in-
sistentemente, tanto por epístolas quanto por mensagens dos enviados,
que te absolvêssemos. Tendo em vista a integridade da justiça não ve-
mos de que modo isto poderia ser feito por nós, pois conforme o rigor
da disciplina canônica nós reconhecemos que os procedimentos contra
ti deveriam ser muito mais gravemente tomados. Todavia, ainda com a
mansuetude apostólica suspendendo uma decisão de punição adequada
a ti, pela autoridade desta presente epístola te ordenamos que de modo
algum negligencie apresentar tua presença [diante de nós] (...), para
que possamos, com a ajuda de Deus, estabelecer por uma justa conclu-
são a frequentemente reiterada queixa da igreja de Châlons.77

Consideremos ainda outra decisão, estabelecida nesta mesma ocasião


a respeito de Ralph, arcebispo de Tours. O papa se dirigiu a ele nos seguintes
termos:

Nós gostaríamos de enviar a ti a benção da Sé Apostólica, se nós não


estivéssemos tão profundamente afligidos por tu estares associado ao ex-
comungado conde Fulque de Anjou. Uma vez que a questão foi relatada

77
Philippus rex Francorum non modica tibi dilectione astrictus multum nos, ut te absolveremus, tum
per litteras tum per legatorum verba rogavit. Quod quidem salva iustitia nequaquam nobis faciendum
esse pervidimus, dum iuxta rigorem canonice discipline multo gravis in te animadvertendum esse
cognosceremus. Sed adhuc apostolica mansuetudine iudicium in te ultionis debite suspendentes pre-
senti auctoritate tibi precipimus, ut presentiam tuam (...) conspectui nostro representare nullo modo
preternittas, quatenus adversum te totiens iteratam proclamationem Catalaunensis ecclesie justo fine
Deus auxiliante decidamus. GREGÓRIO VII. Reg.1: 56. MGH, Epp. sel. 1: 83-84.
120 coLunas de são pedro

e fielmente descrita em nosso sínodo romano, foi concordado por todo


o santo concílio que, uma vez que tu não tens temido estar em compa-
nhia de um homem excomungado pela Sé Apostólica e de fato tens até
mesmo ousado celebrar o santo mistério para ele, o gládio da punição
canônica deverá recair diretamente sobre ti e a sentença de deposição
poderá ser adequadamente realizada. Mas em razão dos apelos de nosso
muito querido e confiável marquês Azzo nós assim o deferimos para o
presente e induzimos-te a realizar a satisfação até o próximo dia de To-
dos os Santos. Todavia, advertimos-te a não falhar em vir a nós até esta
data, a fim de que tu não nos forces a levantar contra ti uma sentença
que não desejamos ver levantada.78

As palavras de intercessão do rei Felipe e do marquês Alberto Azzo II


haviam sido suficientes para impedir o cumprimento das determinações ca-
nônicas. Suas súplicas teriam bastado para que dois notórios violadores da
disciplina eclesiástica escapassem às punições merecidas. Mas, não são as
concessões que mais nos intrigam. O surpreendente é constatar que os dois
“intercessores” estavam, também eles, em plena ilegalidade canônica. Quando
Gregório atendeu o pedido de Felipe I para seu bispo, Roger de Châlons-sur-
Marne, o rei capetíngio encontrava-se insistentemente repreendido por no-
meações simoníacas na Gália. Naquele mesmo ano, 1074, o papa acabaria se
referindo a ele como “tirano” que agiu “por instigação do Diabo, preencheu todo
o curso de sua vida com infâmias, crimes, e tendo tomado o governo do reino, fez
com que homens desgraçados e infelizes o governassem inutilmente”.79 Já o mar-
quês Alberto era acusado de cometer incesto.80 Gregório tomou conhecimento
publicamente da acusação na mesma ocasião em que acatou a intercessão do
marquês a favor de Ralph, arcebispo de Tours, ou seja, no sínodo romano de
1074! Mesmo a voz de um pecador deplorável triunfava sobre as determina-
ções canônicas.

78
Apostolicae sedis benedictionem tibi libenter mandaremus, nisi excommunicato Fulconi Ande-
gauensi comiti te communicasse grauiter doleremus. Et quia in Romana synodo haec sunt relata et
probabiliter enarrata, ab universo sacri concilii coetu est laudatum ut, quoniam ab apostolicar sede
anathematizato adherere non timuisti, uerum etiam divina illi misteria celebrare praesumpsisti, cano-
nicae ultionis gladius in te deberet vibrari et depositionis sententia rite posset depromi. Sed interue-
nientibus carissimi fidelis nostri Astonis marchionis precibus hoc ad praesens distulimus et inducias tibi
satisfaciendi usque ad proximam Omnium Sanctorum futuram festiuitatem concessimus. Quapropter
fraternitatem tuam monemus ut ad hunc terminum venire non dimittat ne, quod absit, nos in se quod
non optamus depromere cogat. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 3: 8.
79
Qui non rex sed tyrannus dicendus est, suadente diabolo caput et causa est. Qui omnem etatem
suam flagitiis et facinaribus polluit et suscepta regni gubernacula miser et infelix inutiliter gerens...
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 5. MGH, Epp. sel. 1: 130-131. E ainda: GREGÓRIO VII. Reg. 1: 35. MGH, Epp.
sel. 1: 56-57.
80
GREGÓRIO VII. Reg. 1: 57. MGH, Epp. sel. 1: 84.
Leandro duarte rust 121

No sínodo da Quarema do ano seguinte, foram muitos os homens cujas


infrações – alegadas ou comprovadas – não seriam julgadas segundo o “rigor
canônico”, mas por seu comparecimento a Roma para justificar-se pessoal-
mente através da voz. Caso de Estevão, abade de Beaulieu acusado por seu
arcebispo de usura e outros crimes;81 do arcebispo de Bremen, Liemar, provi-
soriamente suspenso do ofício por obstruir o trabalho de legados apostólicos;82
dos bispos Oto de Constance, Werner de Strassburg, Henrique de Speyer, Her-
mano de Bamberg, Embricho de Augusburg e Adalbero de Wurzburg, denun-
ciados por legados romanos quanto à forma de ingresso no episcopado e sobre
seu modo de vida;83 do bispo Cuniberto de Turin, acusado de oprimir um mo-
nastério colocado sob a proteção da Sé Romana.84 Em todos estes episódios,
e nas diversas outras ocorrências das quais temos conhecimento, a resolução
do veredicto dependia da habilidade do réu de “refutar os fatos diante de nós
por testemunhos e juramentos”.85 Gregório referia-se a este procedimento com
o nome de “defesa legal” (legalem defensionem).
Porém, dentre todos estes casos, um é especialmente digno de nota.
Poucos meses antes da realização do sínodo de 1075, o papado acumulava
denúncias contra o bispo de Poitiers, Isembert. Em abril do ano anterior, os
cônegos de Saint-Hilaire delataram-no por usurpar certos direitos cabíveis à
sua igreja, impedir o acesso às relíquias de santos e por devastar proprieda-
des com bandos de ladrões ligados à Sé episcopal. Gregório ordenou que a
questão fosse levada a sínodo provincial.86 Porém, o bispo escondia outros
delitos. Após alguns meses, o papa finalmente tomou conhecimento de outra
infração, cometida antes do aparecimento da queixa da igreja de Saint-Hilaire.
Em janeiro, o arcebispo de Bourdeaux, Josselin, e o legado papal na região,
Amato, bispo de Óleron, reuniram um sínodo para tratar do casamento do
conde Guilherme VI de Poitou. A união deveria ser desfeita em razão do grau

81
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 21. MGH, Epp. sel. 1: 153-154.
82
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 28. MGH, Epp. sel. 1: 160-161.
83
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 29. MGH, Epp. sel. 1: 161-162; GREGÓRIO VII. Epp. vag. 6-9: 14-19. Os
casos dos bispos alemães, especialmente envolvendo Hermano de Bamberg, contam com importante
documentação em: CODEX UDALRICI. Monumenta Bambergensia, BRG, 5: 91-97.
84
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 33. MGH, Epp. sel. 1: 169-170.
85
Vos habere confiditis et testimonia et sacramenta antes nos facta improbare poteritis. GREGÓRIO
VII. Reg. 2: 35. MGH, Epp. sel. 1: 171. Outros casos da assembleia de 1075 e aos quais aludimos dizem
respeito a: 1) cinco conselheiros de Henrique IV; 2) certo Hugo, cavaleiro de Sainte-Maure; 3) bispos
e abades da Britânia; 4) Hermann, bispo de Bamberg; 5) Benno II, bispo de Osnabruck; 6) Guilherme,
bispo de Pávia; 7) Matilda, esposa do marquês Azzo de Este; 8) os bispos Jaromir de Praga e João de
Olmutz; 9) certo Eurardo, clérigo de Órleans. GREGÓRIO VII. Reg. 2: 01, 22, 25, 35, 36, 52, 52a, 53
– Reg. 3: 03. MGH, Epp. sel. 1: 124-25; 154; 156-57; 171; 172; 194-95; 196-97; 197-98; 246-247. As
referências gerais a estes casos estão em: BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH, SS, tomo 5:
430-431; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 114-1135; COWDREY, 1998: 120-129.
86
GREGÓRIO VII. Reg. 1: 73. MGH, Epp. sel. 1: 104-105.
122 coLunas de são pedro

de parentesco entre os cônjuges. Os rumores daquela decisão atormentavam


o conde: a anulação do casamento causaria grandes problemas a um nobre
divorciado duas vezes e sem herdeiros masculinos em sua tarefa de assegurar
a continuidade da linhagem. Foi então que Isembert, sucessor de uma ver-
dadeira “dinastia” episcopal tradicionalmente aliada aos condes de Poitiers
(FAVREAU, 1988: 35-39; OTT & JONES, 2007: 21-39; JONES, 2009: 90:136),
assumiu a defesa dos interesses de seu senhor.
O bispo de Poitiers não poupou nada, sequer o uso da violência. Se-
gundo o próprio Gregório VII, Isembert enviou ao sínodo cavaleiros que “in-
sultaram o arcebispo e nosso legado de forma torpe e atacaram os demais com
ameaças, insultos, golpes, e muitas afrontas”.87 Algum tempo após o incidente,
o legado papal proibiu que o bispo exercesse as funções eclesiásticas: medida
confirmada por Gregório, que emendou uma sentença de excomunhão. Até
aqui tudo parece corroborar a caracterização oitocentista do pontífice como
juiz intransigente e implacável, cuja vontade de ferro parecia pesar sobre um
bispo supostamente mais apegado aos favores de um “príncipe” do que às
norma da Igreja. Tudo parece indicar que Isembert caía em desgraça perante
a severa autoridade apostólica.
Nada disso. O papa havia decidido que todas as punições podiam ser
revogadas e o bispo absolvido se ele se dirigisse a Roma “até o próximo sínodo
que (...) celebraremos na primeira semana da Quaresma, [e realizasse] uma
satisfação, exceto por contingência do perigo da morte iminente”.88 E assim pa-
rece ter sido feito, pois Isembert reaparece no Registrum papal a serviço de
Gregório. Em uma epístola de 1079, o vemos encarregado de intervir junto
ao conde Guilherme VI no caso de uma disputa nobiliárquica por possessões
fundiárias.89 As acusações em série lançadas contra o bispo de Poitiers evapo-
raram após a justificação pessoal. E o bispo passou de excomungado a homem
de confiança do papa.
Nos idos de 1880, Achille Luchaire (1980: 80-81) afirmou que Gregório
VII “havia dado provas em muitos casos de uma moderação e de uma paciência que
surpreendem”. Essa imagem de um prelado maleável parece-nos mais apropriada

87
Consessum irruentes archiepiscopum et legatum nostrum multa turpitudine dehonestaverunt, reli-
quos vero minis convitiis ac verberibus multisque contumeliis afflixerunt. GREGÓRIO VII. Reg. 2: 2.
MGH, Epp. sel. 1: 125-126. A Chronico Sancti Maxentii refere-se à assembleia presidida por Gosselin
naquele ano, mas não faz qualquer menção a incidentes de violência: CHRONICO S. MAXENTII. RHGF
12: 401.
88
Usque ad futuram synodum, quam Deo annuente in prima ebdomada quadragesime celebraturi
sumus, nisi forte periculo mortis imminente et hoc precedente satisfactione sacramento confirmata.
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 23. MGH, Epp. sel. 1: 155.
89
GREGÓRIO VII. Reg. 6: 32. MGH, Epp. sel. 2: 445-446. Ver ainda: FP, tomo arquidiocese de Borde-
aux: 80-82. Para a exposição geral do conflito entre o papa e o bispo, ainda que limitadamente descri-
tiva, ver: RICHARD, 1903: 305-318.
Leandro duarte rust 123

ao estudo do papado do que aquela que Karl Leyser tornou célebre. Há meio
século, este erudito alemão retratou a “era gregoriana” como uma época de deci-
sões inflexíveis, no qual a Igreja romana teria sido governada por metas idealis-
tas, defendidas com “uma severidade assustadora e uma persistência heroica (...)
[que levavam o pontífice a] ignorar as consequências para ele mesmo ou para os
outros” (In: SMALLEY, 1965: 53). O papado não fazia letra-morta da lei escrita.
Ele a submetia a um universo decisório maleável, que frequentemente a lançava
para um segundo plano dos jogos efetivos do poder. A aplicação da lei estava ar-
ticulada a espaços de negociações e alianças que o atual princípio historiográfico
da ascensão triunfante e revolucionária do poder papal persiste encobrindo.
Os historiadores estão familiarizados com esta expressiva capacidade
pontifícia de tolerar a transgressão. Jean Gaudemet (1989: 213-214) e Giuse-
ppe Fornasari (1996: 381-386) já colocaram em relevo a realidade vivida por
muitos bispos e abades daquela época. Suspeitos de violações ou até mesmo
formalmente acusados de delitos, eles se deparavam com julgamentos domi-
nados pela “moderação e equilíbrio” e não por sentenças instruídas a ferro e
fogo canônicos. Porém, predomina na historiografia a atitude de considerar
tal tolerância uma dispensatio: uma exceção imposta pelos ideais de caridade
e zelo pastoral ao modo papal de agir (Ver ainda: VIOLANTE, 1999: 10-12).
Os registros documentais desta moderação, desta propensão a ser indulgente,
são muito numerosos para caber dentro da ideia de exceção. Temos indícios
suficientes para afirmar que o governo gregoriano era conduzido a partir do
constante exame concreto de situações singulares, de uma atuação disciplinar
cotidianamente pontual. Tratava-se de um aspecto verdadeiramente regular
dos assuntos pontifícios, não uma característica acidental, excepcional.
Promovendo um domínio jurídico em que a lei e a justiça partiam da
escritura para culminar em obras de viva voz, o papado sustentou um modo
de tomar decisões que impedia o exercício do poder de fechar-se em texto e,
assim sendo, de fixar-se e depositar-se fora das formas de pensar da persona.
Este teor de moderação propagado por Gregório VII, para quem “o costume
da santa igreja romana é tolerar algumas coisas e até mesmo negligenciar al-
gumas outras, seguindo a temperança do discernimento mais do que o rigor dos
cânones”,90 foi perpetuado, no último decênio do século XI, durante o governo
de Urbano II (1088-1099). Foi então que cânones e atas conciliares captura-
ram ainda mais explicitamente esta forma de exercer o poder a partir da voca-
lidade. É o que revela, de maneira especial, o concílio de Piacenza, realizado
em março de 1095.

90
Quia consuetudo sancte Romane ecclesie (...) quaedam tolerare quaedam etiam dissimulare, discretio-
nis temperantiam potius quam rigorem canonum. GREGÓRIO VII. Reg. 5: 17. MGH Epp. sel. 2: 378-380.
124 coLunas de são pedro

Longe de pôr fim à luta contra o Império, a morte de Gregório, em 1085,


acirrou-a ainda mais. Em Roma, parte do clero pontifício apoiava Clemente III,
entronizado à força de espada por Henrique IV e apoiado por grande parcela dos
grupos citadinos. Acossados e dispersos, os partidários de Gregório levaram me-
ses para eleger um sucessor. Mas Vítor III viveu pouco mais de um ano. Com isso,
ao ser eleito papa, em 1088, Urbano herdou por inteiro o desafio de medir forças
com Henrique e desacreditar o partido clementiano. Após as tropas imperiais
sofrerem uma dura sequência de derrotas, a partir de 1092, e depois da coroação
de Conrado como rei dos Lombardos – primogênito de Henrique e desertor do
próprio pai –, o apoio à causa de Clemente decaiu, abrindo caminho para a cons-
trução de uma hegemonia “gregoriana” sobre as igrejas da península itálica.91
Este foi o contexto da convocação do concílio de Piacenza, na Emília-
Romagna, até então um reduto de clérigos engajados a favor de Clemente. Por
terem renegado Gregório VII, tais dignitários eram considerados pelo concílio
“separados da igreja romana como cismáticos”. Afinal, entregaram sua lealdade
a um “haeresiarca”, agente do “Anticristo”.92
Todavia, isto não significava que todos deveriam ser tratados da mesma
maneira, submetidos ao mesmo rigor:

Os que foram consagrados por bispos seguramente ordenados de manei-


ra católica, mas separados da igreja Romana neste cisma, desde que cer-
tamente tenham regressado para a unidade da igreja, compassivamente
estabelecemos que suas ordens sejam mantidas, se, todavia, a sua vida e
conhecimento os recomendam.93

O próprio texto conciliar revela que os integrantes do plenário de Pia-


cenza estavam cientes de que esse seu “modo misericordioso” (misericorditer)
de agir desacatava a lei canônica:

Ainda que, em consideração à compaixão e à grande necessidade conhe-


cida, tenhamos determinado esta dispensa nas ordens sagradas, todavia,
não desejamos que nenhum prejuízo seja feito aos cânones sagrados,
mas que sejam mantidos na firmeza que possuem. E cessada a necessi-
dade, que cesse aquilo realizado em razão da necessidade.94

91
BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS 5: 461. Ver: ROBINSON, 2003: 275-296.
92
CONCILIUM PLACENTINIUM. MGH. Const. 1: 562; MANSI 20: 806. Cânones 8 e 9.
93
Qui vero ab episcopis quodam quidem catholice ordinatis, sed in hoc schismate a Romana ecclesia
separatis, consecrati sunt; eos nimirum cum ad aecclesiae unitatem redierint, servatis propriis ordini-
bus misericorditer suscipi, jubemus, si tamen vita eos et scientia commendat. CONCILIUM PLACENTI-
NIUM. MGH. Const. 1: 562; MANSI 20: 806. Trata-se do cânone 10 da referida assembleia.
94
Quamvis autem misericordiae intuitu magnaque necessitate cogente, hanc in sacris ordinibus dis-
Leandro duarte rust 125

A composição textual do cânone é familiar. Ele se assemelha a uma


comunicação direta. Suas linhas formam uma palavra destinada a um caso
singular, à situação eclesial dos cismáticos, merecedores de uma compaixão
específica, que ecoava de um lugar e de um tempo que poderiam não se repe-
tir, cujas particularidades não poderiam desaparecer ou se perder em um vazio
textual, sem rostos ou circunstâncias. Pressionadas a preservar esta lógica, as
linhas acima mergulharam em forte tensão. Com elas, o concílio de Piacenza
estabeleceu uma concessão que negava a si mesma a capacidade de persisitir
no interior da ordem canônica. A decisão deveria obedecer ao modo funda-
mentalmente oral de tratar a lei. Este modo de aplicar o direito foi gravado
na superfície do pergaminho, mas estava impedido de ser efetivamente incor-
porado aos domínios do escrito, de se beneficiar de seus efeitos de emancipa-
ção e imortalização da palavra perante necessidades contingentes, passadiças.
Mesmo escrita, a decisão conciliar deveria se comportar como um comando de
voz: uma vez dita, sua existência terminava, perdia-se pelo silêncio do tempo.
Impasse semelhante foi vivido por Alexandre II e sua cúpula quando
permitiram, vinte anos antes, que clérigos ordenados por simoníacos perma-
necessem sacerdotes:

Contudo, proibimos de todas as maneiras, pela autoridade dos santos


apóstolos Pedro e Paulo, que nenhum de nossos sucessores tome ou fixe
sua regra a partir desta nossa permissão, seja para sancionar ou ceder,
pois esta não foi promulgada por nenhum dos antigos pais, mas porque a
extrema necessidade do tempo nos extorquiu que permitíssemos.95

Estes cânones foram o palco da luta contra o risco de que uma necessi-
dade efêmera imposta pelo tempo, usualmente assimilada pela vocalidade do
juízo humano, se abrigasse no âmago da palavra escrita e, assim encapsulada,
se dissociasse de seu presente pontual e passageiro. Foi aí travado um conflito

pensationem constituerimus, nullum tamen praejudicium sacris canonibus fieri volumus; sed obtine-
ant proprium robur. Et cessante necessitate, illud quoque cesset quod factum est pro necessitate. Ubi
enim multorum strages jacet, subtrahendum est aliquid severitati, ut demus amplius caritati. CON-
CILIUM PLACENTINIUM. MGH Const. 1: 563; MANSI, 20: 806. Cânone 12. Os padres conciliares de
Piacenza tentaram restaurar o rigor canônico que acabavam de abrandar. O cânone 11 estabeleceu:
“Sem demora, na verdade, todo aquele que se deixou ordenar pelos adversários da santa e romana igreja
e pelos proclamados cismáticos que de modo algum seja considerado digno desta concessão”. Texto latino:
Amodo vero quicumque a praedictis schismaticis sanctaeque Romanae ecclesiae adversariis se ordinari
permiserit, nullatenus hac venia dignus habeatur. CONCILIUM PLACENTINIUM. MGH Const. 1: 563;
MANSI, 20: 806. Donde que, à primeira vista, os cânones soem contraditórios.
95
Ita tamen, ut auctoritate sanctorum apostolorum Petri & Pauli omnimodos interdicamus, ne aliquis
successorum nostrorum ex hac nostra permissione regulam sibi, vel alicui sumat, vel praefigat: quia
non hanc aliquis antiquorum patrum jubendo aut concedendo promulgavit, sed temporis nimia ne-
cessitas permittendo a nobis extorsit. MANSI 19: 1024-1025. Cânone II do concílio de Roma, 1063.
126 coLunas de são pedro

entre o transitório da oralidade e a eternização da escrita, causado pela ur-


gência de corrigir as disposições canônicas, adequá-las ao princípio segundo
o qual “onde há a ruína de muitos, é retirada um pouco de severidade logo que
admitimos uma ternura maior”.96 Os cânones de Piacenza gravaram na su-
perfície documental uma tensão já antiga, há muito presente no exercício do
poder papal, mas que se realizava às margens do texto canônico, nos silêncios
da documentação. Nos referimos à realidade da palavra falada pesar sobre os
preceitos escritos e ditar sua conveniência para a utilitatem sanctae ecclesiae.97
Em momento algum a autoridade dos cânones era abolida, ela apenas tinha
sua aplicação corrigida em prol do que os integrantes do papado julgavam ser
uma causa da unidade da societas christiana. Em Piacenza, isto não foi feito
fora do texto, pela intervenção da voz, mas no interior da própria escrita.
Quando voltamos os olhos para as atas conciliares como estas, nos de-
paramos com uma flexibilidade decisória idêntica àquela manejada pelo pa-
pado há décadas. Mas que, levada ao texto, era submetida ao risco de ser
sequestrada pela durabilidade material e pela promessa de imortalidade da
fixação escrita. Os cânones promulgados por Urbano II em 1095 nos revelam
que, ao contrário do que desejavam Alexandre II e sua cúria, a prática de im-
por concessões aos cânones era a regra nas ações do papado, não a exceção.
Por sinal, não sem certa insistência, os clérigos e religiosos reunidos
em Piacenza reeditaram, como presenças textuais, os traços daquele mesmo
ordenamento jurídico que funcionava sob regime de oralidade. Nestas atas
conciliares, a intencionalidade e a motivação dos envolvidos condicionaram o
enquadramento legal das condutas e os graus da violação canônica:

Pronunciamos serem nulas as ordenações realizadas pelo heresiarca


Guiberto [Clemente III], depois que este foi condenado pelo papa Gre-
gório, de apostólica memória, e pela igreja Romana. O mesmo fica deci-
dido a respeito das [ordenações] realizadas pelos heresiarcas [isto é, os
partidários de Clemente] restantes, nomeadamente pelo excomungado
[Guiberto], e para aqueles que tenham invadido as sedes dos bispos ca-
tólicos então ainda viventes. A não ser que tenham sido capazes
de provar que desconheciam [tratar-se] de [ordenadores]
condenados quando foram ordenados.98 (Os grifos são nossos)

96
Ibi enim multorum strages jacet, subtrahendum est aliquid severitati, ut demus amplius caritati.
CONCILIUM PLACENTINIUM. MGH Const. 1: 563; MANSI, 20: 806. Cânone XII.
97
Justificativa apresentada por Gregório VII, na assembleia de 1079, para recusar a solicitação dos envia-
dos da nobreza saxônica para condenar Henrique IV: GREGÓRIO VII. Reg. 6: 5b. MGH Epp. Sel. 2: 401.
98
Ordinationes quae a Wiberto haeresiarcha factae sunt, postquam ab apostolicae memoriae papa
Gregorio & a Romana ecclesia est damnatus, irritas esse judicamus. Similiter autem & eas quae a
caeteris haeresiarchis nominatim excommunicatis factae sunt, & ab eis, qui catholicorum et adhuc
Leandro duarte rust 127

Como podemos ver, no conjunto dos bispos cismáticos os que se desconhe-


ciam infratores da “maneira católica” de obter a ordenação sacerdotal – mesmo
que tivessem sido ordenados pelo “heresiarca Clemente” – estavam aptos a re-
ceber a “temperança da misericordia”. Como na época de Gregório VII, cometer
atos reprováveis ou violar uma prescrição canônica continuava a ser insuficiente
para selar uma ação como efetivamente condenável. Seu enquadramento jurí-
dico só poderia ser seguramente definido após tal ato ser apresentado pela vo-
calidade. Isto significa que atributos pessoais, como a categorização moral das
escolhas, persistiam cotados como valores determinantes de noções centrais,
como a autenticidade, a relevância e a credibilidade canônicas. Assim havia
demonstrado a assembleia de Piacenza ao legislar sobre a haeresia simoniaca:

Aos que foram ordenados de modo não simoníaco por simoníacos, [decla-
ramos que] mantemos essas ordenações compassivamente, se seguramen-
te puderam comprovar que desconheciam tratar-se de [ordenadores] si-
moníacos quando foram ordenados, e que naquela ocasião eram estimados
na igreja como católicos, e se, todavia, uma vida louvável os recomenda.99

Aos que, sem dúvida, consentiram judiciosamente em serem consagra-


dos por simoníacos, ou antes, em serem execrados, estabelecemos ser
nula a consagração de todos.100

Alguns historiadores creditam esta decisão de validar as ordenações


realizadas por simoníacos à necessidade de reconquistar a lealdade e subor-
dinação eclesiásticas em meio à disputa de Urbano com Clemente; pressão
particularmente visível nos primeiros anos de seu pontificado (SALTET, 1907:
173-246; JEDIN, 1980: 386; SCHWAIGER, DHP: 1874-1676; RAMOS, 1995).
Para assegurar maior apoio dentro da própria Igreja, Urbano teria desistido de
aplicar o rigor dos cânones. Esta decisão teria sido, desta forma, uma mistura
de forças da necessidade e engenhoso oportunismo político.
Mas, limitar a compreensão histórica a esta interpretação seria dar as
costas à longa lista de vezes em que esta mesma concessão aos acusados de
simonia foi decretada em um plenário conciliar: por Clemente II, em 1047;

viventium episcoporum sedes, invaserunt: nisi probare valuerint se cum ordinarentur eos nescisse
damnatos. CONCILIUM PLACENTINIUM. MGH. Const. 1: 562; MANSI, 20: 806.
99
Si qui tamen a simoniacis non simoniace ordinati sunt, si quidem probrare potuerint, se, cum or-
dinarentur, eos nescisse simoniacos, et si tunc pro catholicis habebantur in ecclesia, talium ordinatio-
nes misericorditer sustinemus, si tamen laudabilis eos vita commendat. CONCILIUM PLACENTINIUM.
MGH. Const. 1: 561; MANSI, 20: 805.
100
Qui vero scienter se a simoniacis consecrari, immo execrari passi sunt, eorum consecrationem om-
nino irritam esse decernimus. CONCILIUM PLACENTINIUM. MGH. Const. 1: 561; MANSI, 20: 805.
128 coLunas de são pedro

por Leão IX, em 1049; por Nicolau II, em 1059; por Pedro Damião, em 1059;
por Alexandre II, em 1063.101 Em 1079, o próprio Gregório VII, ao responder
à consulta de um bispo italiano, havia recomendado que tal tolerância fos-
se oferecida a todos os clérigos que, ordenados por simoníacos, ignoravam
a transgressão de seus ordenadores e não haviam realizado qualquer paga-
mento para receber o “cuidado das almas”. Conforme suas próprias palavras:
“quanto aos que, não por dinheiro, mas gratuitamente, são ordenados por si-
moníacos, em razão de o problema ser, há longo tempo, amplamente difundido,
nós absolvemos a todos sem qualquer dúvida”.102 Logo, a postura conciliatória
assumida por Urbano II durante o concílio de Piacenza não parece ter sido me-
ramente obra de pressões circunstanciais ou do gênio político deste ex-monge
cluniacense. Ao contrário, ela parecia integrar uma tradição, contando já com
um passado de ensinamentos que a sustentava e legitimava. Conciliar, anistiar,
retroceder, tolerar. Estes não eram estados de exceção abertos no exercício do
poder papal, mas práticas regularmente empreendidas por quem se sentava
no Trono de Pedro.
Em fins do século XI, os sínodos e concílios promovidos pelo papado
continuaram perfazendo o modo de exercício do poder vigente nas décadas
anteriores. Como atestou o próprio Urbano diante de dezenas de bispos e aba-
des reunidos na cidade italiana de Troia, nos idos de março de 1093, a palavra
falada seguia prevalescendo sobre os procedimentos jurídicos:

Que até o Pentecostes se reúnam três consultas junto aos bispos dos
quais [os suspeitos de unir-se em matrimônio sob restrição de consan-
guinidade] são diocesanos. Então se dois ou três homens tiverem con-
firmado a consanguinidade sob juramento, ou se porventura os
mesmos tiverem confessado, que sejam dissolvidos os casamen-
tos.103 (Os grifos são nossos)

Era preciso uma justificação pessoal realizada ao alcance dos ouvidos para
aplicar as punições cabíveis aos violadores do matrimônio. Uma satisfação oral
poderia ser a distância legal que separava o faltoso da sentença de excomunhão:
101
MANSI, 19: 627-628; 795-796; 897-899; 891-892; 1023-1025; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 991;
1068; 1166-1169; 1194; 1230. Ver: HERMANN DE REICHENAU. Chronicon. MGH. SS 5: 129; BONIZO
DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH. Ldl 1: 593.
102
Qui non per pecuniam, sed gratis sunt a simoniacis ordinati, quia quaestio a longo tempore est
diutius ventilata, omnem nodum dubietatis absolvimus. NICOLAU II. Decreto contra Simoníacos. DEN-
ZINGER: 392-394. Ver: MANSI, 19: 897-899; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1166-1169. Para a epístola
gregoriana: GREGÓRIO VII. Reg. 6: 39. MGH. Epp. sel. 2: 455-457; COWDREY, 1998: 545.
103
Episcopi quorum diocesani sunt, eos usque in Pentecosten trina advocatione conveniant. Tunc si
duo viri, vel tres, consaguinitatem jurejurando firmaverint, vel ipsi forte confessi fuerint, conjugia
dissolvantur. MANSI, 20: 789-790.
Leandro duarte rust 129

Quem tiver infringido a Trégua de Deus, que seja advertido, até três
vezes, pelo bispo para realizar uma satisfação. E saiba que, se,
[advertido] pela terceira vez, não tiver concordado a cumprir a
satisfação, que o bispo, com o conselho do metropolitano ou com um
dos bispos vizinhos, ou com os dois, pronuncie a sentença de anátema
como se fosse um rebelde e que anuncie por escrito aos bispos em toda
a redondeza.104 (Os grifos são nossos)

Os juramentos oferecidos ao papado, entregues pela boca e por gestos


de sujeição, bastavam para compensar os delitos cometidos contra a disciplina
eclesiástica. Ao final da assembleia de Clermont, reunida em fins de novembro
de 1095, dois bispos depostos dias antes foram reintegrados em suas digni-
dades. Para isso foram suficientes as promessas dos demais bispos presentes,
que empenharam sua palavra para garantir ao pontífice que não permitiram
a repetição da conduta causadora daquela deposição, isto é, permitir que um
clérigo recebesse todas as ordens sacerdotais em um único ano.105
Meses depois, no concílio de Tour, em março de 1096, Urbano absolveu
Oto, bispo de Strasbourg, após ele se justificar pelo apoio a Henrique IV e ao
“heresiarca” Clemente III. Esse engajamento havia custado ao bispo uma exco-
munhão como promotor do cisma da igreja.106 De fato, anistiar os integrantes
do “partido dos cismáticos” era uma constante naqueles tempos. No Natal do
ano anterior, quando o papa se reuniu com bispos de várias províncias em
Limoges, veio ao seu encontro Einhardo, bispo de Wurburgo, que buscava se
redimir do seu envolvimento com Clemente. A ele “foi dada a misericórdia, da
mesma forma que ele tinha obtido a mesma misericórdia do legado do papa nas
regiões dos teutônicos”, segundo o testemunho de Bernoldo de Constance.107
Esse mesmo encontro é o fio da meada que leva a outro caso relevante.
Naquela ocasião, Urbano decretou solenemente a destituição de Humbaldo,
acusado de fraudar a sua eleição para bispo de Limoges. A decisão seguia as
orientações de Hugo, homem influente que acumulava as funções de arcebis-

104 Si quis treviam Dei fregerit, usque tertio ad satisfactionem ab episcopo moneatur. Quod si nec
tertio satisfacere consenserit episcopus vel cum metropolitani consilio, aut cum duobus, aut uno vici-
norum episcoporum, in rebellem anathematis sententiam dicat, & per scripturam episcopis circumqua-
que denunciet. MANSI, 20: 790. Ver ainda: HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 371-372. Segundo os Annales
de Benevento: in Troia Urbanus celebravit concilium cum 200 episcopis et abbatibus. ANNALES BENE-
VENTANI. MGH. SS 3: 182.
105
Na documentação consultada, os bispos não são identificados: MANSI, 20: 902; HEFELE-
LECLERCQ, 5/1: 403-404.
106
BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH. SS 5: 464.
107
Virceburgensis episcopus ad apostolicum pervenit, eiusque misericordiam consecutus est; ita ta-
men, ut eadem misericordia a legatis papae in Teutonicis partibus eidem perficeretur. BERNOLDO DE
CONSTANCE. Chronicon. MGH. SS 5: 464.
130 coLunas de são pedro

po de Lyon, primaz das Gálias e legado.108 Dois anos depois, portanto 1097,
o papa endereçou a Hugo uma carta, ainda às voltas com a mesma questão:

Portanto, quer a eleição, quer a consagração daquele [Humbaldo] es-


tabelecemos nula por não ter sido realizada de modo verdadeiramente
justo; mas, até este momento adiamos a sentença, para que não fosse
desprezada a súplica do senhor pai [Hugo], abade de Cluny. Então, hu-
mildemente, imploramos para que não se proceda de modo impaciente
contra aquele irmão. Mas por outro lado, em nada diminuímos teu poder
de legado, e [asseguramos que], por obra do Senhor, as bocas que ditam
a justiça de modo algum perderão seu vigor por nossa causa.109

Este fragmento documental é claro: o cumprimento das instruções ca-


nônicas era contornável, legitimamente negociável sob pactos verbais estabe-
lecidos entre as “bocas que ditam a justiça” – caso do legado – e as que rogam
pela misericórdia – como fizera o abade de Cluny. Esta epístola, despachada
pela chancelaria papal pouco depois do sínodo romano de 1097, é uma con-
firmação emblemática deste perfil singular do universo jurídico papal de fins
do século XI, no qual a comunicação oral era o fiel da balança que garantia ou
impedia o cumprimento efetivo dos ordenamentos escritos.
Esta passagem epistolar é ainda reveladora em outro sentido: as normas es-
critas não configuravam um sistema de regras suficientes para localizar uma perso-
na como “sujeito de direito”. Ou seja, na identificação das imunidades, obrigações
e penas cabíveis a uma pessoa, outros elementos – como a vocalidade e os atribu-
tos morais – sobrepunham-se à lei canônica. Diferentemente daquilo que aprego-
am os postulados do positivismo jurídico – os quais são, volta e meia, veiculados
pelos medievalistas –, nos concílios do assim chamado “Papado Reformador”, a
caracterização normativa de uma pessoa e suas ações não estava subordinada a
um direito objetivado, positivado em norma. Muitos fundamentos dos processos
de normatização eram exteriores ao ordenamento legal estabelecido, chegando
a escapar aos códigos escritos vigentes. Para identificar uma persona como pro-
motora ou alvo da prática jurídica não era suficiente o emprego da lei escrita, era
preciso aplicar fatores que iam muito além dela e extrapolavam seus limites.

108
GODOFREDO DE VIGEOIS. Vosiensis Chronica. MGH. SS 26: 199-200; CHRONICON SANCTI MAX-
ENTII. RHGF 12: 403. A menção ao caso está em: MARCHEGAY & MABILLE, 1869: 411; MANSI, 20:
919-922; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 445.
109
Electionem igitur sive consecrationem illic non jure factam nos quidem irritam habemus; sed adhuc
sententiam, pro non spernenda domni patris Cluniacensis abbatis postulatione, distulimus. Suppliciter
enim exoravit n in fratrem illum impatienter ageremur. Nos autem in nullo legationis tuae jus, operan-
te Domino, minuemus; et quae dictante justitiae oris, nequaquam per nos suo robore cessabunt. UR-
BANO II. Epistola. RHGF 14: 728; PFLUGK-HARTTUNG, 2: 166-168; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 453.
Leandro duarte rust 131

Após décadas, o modo caracteristicamente papal de aplicar o direito – ou


seja, o acionamento da lei canônica sob uma observância de experiências pessoais
e da vocalidade – passou a pesar um pouco mais sobre os registros conciliares, dei-
xou marcas mais visíveis em sua redação. No que diz respeito à história conciliar,
nos parece insustentável a postura de assinalar o pontificado de Urbano II como
“mais flexível do que o de seu predecessor”, tornando-se o ponto de ruptura com
um suposto radicalismo e utopismo de um Gregório VII. Muito se fala dos anos
1080 como a época da passagem de uma política repleta de misticismo e heroísmo
idealista para outra realista e pragmática graças à liderança de um Urbano II visto
como estadista e diplomata (Visão de: BLUMENTHAL, 1995: 113-140; LOGAN,
2002: 112-115; ULLMANN, 2003a: 165-172; POWER, 2006: 126-128). Essa di-
cotomia é, em nossa opinião, imprecisa. Ministrada pontualmente a cada litígio,
manobrada à margem das atas e dos decretos conciliares, a flexibilidade com que
Gregório governou a Sé Romana tornou-se uma rede de ações casuísticas; mas re-
sistentes e decisivas. Aplicada extensivamente sobre muitos, o que exigia inscrevê-
la na superfície dos cânones de um magnum concilium, a maleabilidade de que
se valeu Urbano e sua Cúria foi deixada à mostra e assim, diretamente exposta à
retina dos historiadores, ganhou em nitidez. Embora distintas, o que as diferen-
ciou foi uma questão de visibilidade, e não de existência ou importância histórica.

2.5. O Direito Gravado no Presente

Nada do que foi dito nas páginas anteriores sugere a perspectiva de que
o papado negligenciasse ou não investisse nos domínios da lei escrita para
fortalecer sua autoridade. Exemplos neste sentido não faltam. Como revelou
Nicolau II, em abril de 1059, a solidez e a indestrutibilidade assumidas pelo
textual eram levadas em alta conta nos corredores da Cúpula pontifícia:

Vossas eminências, diletíssimos bispos e irmãos, conhecem, e igualmente


o sabem os membros de categoria hierárquica inferior, quanta adversidade
esta Sé Apostólica, à qual por vontade divina sirvo, desde a morte de Este-
vão, nosso predecessor de feliz memória, suportou, quantos golpes e ofen-
sas os traficantes simoníacos lhe infligiram, até o ponto em que a coluna
do Deus vivo, sacudida, parecia quase vacilar, e a sé pontifícia aparentava
estar prestes a mergulhar nas profundezas do abismo. Por isso, que seja
do agrado de meus irmãos o dever que temos de enfrentar os
132 coLunas de são pedro

eventos futuros, com a ajuda de Deus, e fazer uma constitui-


ção eclesiástica que resista aos males que acaso venham a
ocorrer, a fim de que nunca prevaleçam110. (Os grifos são nossos)

A palavra escrita oferecia recursos para a implantação da disciplina ecle-


siástica que não passavam despercebidos. Vejamos, no trecho epistolar trans-
crito abaixo, a avaliação oferecida por Gregório VII acerca da importância de
depositar as recomendações morais na superfície da escrita:

Nós não consideramos supérfluo escrever a ti que nós colocamos à dis-


posição em nossa sentença conciliar, pela autoridade dos santos padres,
que aqueles que tiverem sido promovidos pela heresia simoníaca, isto
é, com a intervenção do dinheiro, a qualquer grau ou ofício das santas
ordens não mais exerçam nenhum ministério na santa igreja.111

O registro escrito não era supérfluo, sua utilidade e seguridade não


eram ignoradas. O Dictatus Papae é contundente neste sentido: nos domínios
do textual estavam recursos de poder que deveriam ser estritamente contro-
lados. Seu curto texto diz “que somente a ele [isto é, ao pontífice] é permitido,
segundo a necessidade do tempo, impor novas leis”, e ainda “que nenhum capí-
tulo e nem nenhum livro seja considerado como canônico sem sua autorizada
permissão”.112 Portanto, na segunda metade do século XI, o conhecimento es-
pecífico da lei canônica foi uma matriz imprescindível de legitimidade para as
decisões estabelecidas em nome da Sé Romana. Razão pela qual – como soube
Henrique IV – uma acusação como a de “infligir ferida sobre ferida aos decretos
da Sé Apostólica”113 era sacada em Roma como agravante letal na incriminação
de condutas incômodas ou indesejáveis.

110
Novit beatitudo vestra, dilectissimi fratres et coepiscopi, inferiora quoque membra non latuit,
defuncto piae memoriae domino Stephano decessore nostro haec apostolica sedes, cui auctore Deo
deservio, quot adversa pertulerit, quot denique per simoniacae haeresis trapezitas malleis crebris-
que tunsionibus subiacuerit, adeo ut columna Dei viventes iamiam puene videretur nutare et sagena
summi piscatoris procellis intumescentibus cogeretur in naufragii profunda submergi. Unde, si placet
fraternitati vestrae, debemus auxiliante Deo futuris casibus prudenter occurrere et ecclesiastico statui,
ne rediviva – quod absit – mala praevaleant, in posterum praevidere. DECRETUM ELECTIONIS PON-
TIFICIAE. MGH. Const. 1: 539-541; HUGO DE FLAVIGNY. Chronica. MGH. SS 8: 408-409.
111
Unde non ab re tibi scribendum fore asbitrati sumus, nos iuxta auctoritatem sanctorum patrum
in nostra synodo sententiam dedisse, ut hi qui per symoniacam heresim, hoc est interuentu precii, ad
aliquem sacrorum ordinum gradum vel officium promoti sunt, nullum in sancta ecclesia ulterius locum
ministrandi habeant. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 6: 14.
112
Quod illi soli licet pro temporis necessitate novas leges condere; Quod nullum capitulum nullusque li-
ber canonicus habeatur absque illius auctoritate. GREGÓRIO VII. Reg. 2: 55a. MGH. Epp. sel. 1: 203, 205.
113
Ut vulnus vulneris infligeres, contra statuta apostolice sedis. GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10. MGH. Epp.
sel. 1: 264.
Leandro duarte rust 133

Não há motivos para dar as costas às demonstrações convincentes ofe-


recidas por Stephan Kuttner (1990), Katlheen Cushing (1998), Ronald Knox
(1972: 419-466), Robert Somerville (1985: 33-53) e tanto outros (BRASING-
TON & CUSHING, 2008) a respeito da proeminência legal implicada no pri-
mado petrino. A intensa atividade canonista realizada por integrantes da Cú-
ria era embalada pela certeza de que eles ocupavam o lugar maior nas tarefas
de preservação da tradição jurídica cristã. Sua memória e interpretação dos
textos deixados pelos “santos pais” deveriam ser tratadas com um respeito
reverencial, pois pertenciam à Sé Apostólica, “cabeça (caput) legal de toda
cristandade”. As obras deixadas pelos cardeais Atto (Breviarium) e Deusdedit
(Collectio Canonum), sem esquecer a ilustre coletânea elaborada pelo bispo
Anselmo de Lucca (Collectio Canonum), atestam como a rede de colaboradores
do papado assumiu a dianteira na produção e ampliação do direito canônico
e suas fontes textuais. Aliás, afirmar de que estes canonistas empenharam-se
para dotar a ecclesia cristã de uma lei comum (ius commune), como fez Kuttner
(1947: 396), é uma atitude com a qual concordamos sem maiores reservas.
(Ver igualmente: FOURNIER & LE BRAS, 1931-1932; MONTANARI, 1941;
BESSE, 1957; GOSSMANN, 1960; GARCÍA Y GARCÍA, 1967; GILCHRIST,
1967: 1-37; VACCA, 1993 ; GAUDEMET, 1994: 277-407; BLUMENTHAL,
1998; KERY, 1999; CUSHING & GYUG, 2004: 205-240; MELVE, 2007: 27-56).
Até mesmo entre os vilipêndios lançados por um adversário, como o car-
deal Beno, que renegou Gregório em 1083, podemos encontrar registros dos
laços profundos mantidos entre a cúpula papal e o respaldo textual. Bramindo
graves acusações, o cardeal refere-se com desgosto às ideias professadas por
“Hildebrando, Urbano, Anselmo bispo de Lucca e Deusdedit em suas compila-
ções fraudulentas”, e assegura que “em razão do erro renovado por escrito
por Hildebrando e seus discípulos, ele foi justamente excluído da Sé Romana por
sentença divina como restaurador de tantos erros”. As falhas daquele que se sen-
tava no trono de Pedro eram ainda mais graves e aviltantes porque ele ousou
abrigá-las sob a forma do textual, conspurcando aquela forma sagrada, que
guardava os dizeres do próprio verbo divino: “Hildebrando e seus discípulos,
corruptores dos escritos”.114 (Os grifos são nossos)
Portanto, ao afirmamos que a vocalidade constituía um instrumento pri-
vilegiado de aplicação do direito e da autoridade nas práticas conciliares do
papado medieval, não validamos qualquer sugestão de que o predomínio da

114
Hildebrandus, Turbanus, Anselmus Lucensis episcopus, Deusdedit in compilationibus suis fraudu-
lentis (...). Cuius errorem quia Hildebrandus cum discipulis suis scripto renovavit, merito a sede Roma-
na divina sententia tanti erroris renovatorem exclusit. (...) Titulus iste Hildebrandum et discipulos eius
scripturarum perversores manifeste detegit. BENO DE SS. MARTINO E SILVESTRO. Contra Epistolam
Hildebrandi III. MGH Ldl 2: 399.
134 coLunas de são pedro

voz ditava algum uso deficiente ou pouco relevante dos escritos eclesiásticos.
Na ordem jurídica das assembleias pontifícias a oralidade não estava dissocia-
da do textual, mas procedia de sua existência, completando-a com a mobili-
dade e elasticidade das decisões tomadas por meio da vocalidade, face a face.
Ao tomar suas decisões em nome da autoridade apostólica, papas, car-
deais e legados instruíam o clero do século XI a olhar simultaneamente para as
duas dimensões da lei, a oralidade e o escrito, fazendo com que, ao invés de se
opor, elas engendrassem uma estreita relação de complementaridade. As legis-
lações e as coleções canônicas constituíam “bases legais” do direito e da própria
política. Não poderiam, portanto, ser ignoradas ou afrontadas. Mas eram funda-
mentos genéricos, latos. Eram limites que a existência por vezes transpassava.
Eram molduras que a vida, imperfeita como a matéria humana, rompia. A vi-
gência da lei e dos cânones se consumava como realidade somente ao alcançar
os atos de fala e os gestos pelos quais os homens se justificavam, revelando o
que se passava em suas mentes e corações, confessando sua incompletude, re-
conhecendo sua imperfeição para se redimir de sua falibilidade.
Um mesmo itinerário legal estendia-se da letra à voz. Entretanto, este
percurso não poderia ser percorrido como uma planície lisa e pacífica, so-
bre a qual os integrantes do papado caminhariam de um modo uniforme e
monótono. Como afirmou Paul Zumthor (1993: 114), “o par voz/escritura é
atravessado por tensões, oposições conflitivas”. Isto significava que, partindo da
estabilidade e fixidez do texto canônico, a aplicação do direito expunha-se a
sobressaltos, a alterações de curso e até mesmo a recomeços impostos pela
intervenção deste elemento maleável e mutável que era a voz eclesiástica.
Por isso, mesmo as antigas e veneráveis sentenças escritas, outrora proferidas
pelos “santos padres”, podiam ser contornadas e abrandadas – sem perder
quaisquer filigranas de auctoritas.
Os “decretos, que alguns (...) designavam como fardo insuportável e peso
imenso, (...) [são a] verdade e [a] luz necessárias para reaver a salvação, e
devem ser recebidos com devoção e observados”.115 Como revelam estas linhas,
Gregório VII parece não ter tido dúvidas: as leis escritas da Igreja deviam ser
obedecidas. Entretanto, obedecer nem sempre é servir à justiça. Para isto, era
necessário reconciliar as limitações humanas e as prescrições canônicas, uni-
las, torná-las complacentes entre si, equilibrá-las. Foi o que ele mesmo disse a
Henrique IV pouco antes de ameaçá-lo com a excomunhão:

115
Adaptação de: Huius autem decreti, quod quidam dicunt humanos divinis honoribus preponentes
importabile pondus et immensam gravitudinem, nos autem magis proprio vocabulo recuperande sa-
lutis necessariam veritatem vocamus el lucem, non solum a te vel ab his, qui in regno tuo sunt, sed ab
omnibus terrarum principibus et populis, qui Christum confitentur et colunt, devote suscipiendam et
observandam adiudicavimus, (...). GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10. MGH Epp. sel. 1: 265.
Leandro duarte rust 135

Pois quando nos reunimos este ano [ 24-28 de feveriro de 1075] em um


sínodo na Sé Apostólica, o qual a suprema condução desejou que nós pre-
sidíssemos e no qual alguns de teus leais servidores também estiveram pre-
sentes, reconhecemos que o estado da religião cristã está, há muito tempo,
arruinado e que os principais e especiais meios de ganhar as almas estão
há muito aviltados e pisoteados pela persuasão do diabo. Oprimidos pelo
perigo e pela manifesta ruína do rebanho do Senhor, recorremos aos de-
cretos e aos ensinamentos dos santos padres, estabelecendo nada de novo,
nada de nossa invenção, mas considerando que, afastado o erro, devem ser
retomados e buscados a primeira e única regra da disciplina eclesiástica e o
bem calcado caminho dos santos. (...) Contudo, para que estas coisas não
te pareçam penosas ou excessivas além da medida, estabelecemos para ti,
através de teus leais servidores, a fim de que a mudança de um perverso
costume não te abale, que nos envie os sábios e religiosos que possas en-
contrar em teu reino e que, se eles puderem mostrar ou estabelecer
com alguma razão em que caminho, salvaguardada a honra do
eterno Rei e sem perigo para nossas almas, nós possamos mo-
derar a sentença dos santos pais, nós condescenderíamos com
seus conselhos. Na verdade, mesmo que tu não tivesses sido tão amiga-
velmente advertido por nós, ainda teria sido com equidade que, antes que
transgredisses os decretos apostólicos, devias razoavelmente
ter reclamado a nós sobre o quanto nós oprimíamos ou contra-
riávamos tuas honras (Os grifos são nossos).116

A aplicação da lei não estava fechada em texto. Mas aberta ao peso dos
“efeitos de nossos pecados”, às limitações e aos desacertos criados “por ignorân-
cia, em parte também por excessiva simplicidade, em parte por medo, em parte
igualmente pela necessidade, (...) pela misericórdia, e por consideração ao tempo
e às circunstâncias”.117 Nesta passagem estão os argumentos incluídos pelo pró-

116
Congregata nanque hoc in anno apud sedem apostolicam synodo, cui nos superna dispensatio presi-
dere voluit, cui etiam nonnulli tuorum interfuere fidelium, videntes ordinem christiane religionismultis
iam labefactatum temporibus et principales ac proprias lucrandarum animarum causas diu prolapsas et
suadente diabolo conculcatas concussi periculo et manifesta perditione Dominici gregis ad sanctorum pa-
trum decreta doctrinamque recurrimus nichil novi, nichil adinventione nostra statuentes, sed primam et
unicam ecclesiastice discipline regulam et tritam sanctorum viam relicto errore repetendam et sectandam
esse censuimus. (...) Attamen, ne hec supra modum tibi gravia aut iniqua viderentur, per tuos fideles tibi
mandavimus, ne prave consuetudinis mutatio et commoveret, mitteres ad nos, quos sapientes et religiosos
in regno quo invenire posses, qui si aliqua ratione demonstrare vel astruere possent, in quo salvo eterni
regis honore et sine periculo animarum nostrarum promulgatam sanctorum patrum possemus temperare
sententiam, eorum consiliis condescenderemus. Quod quidem etsi a nobis tam amicabiliter monitus non
fuisses, equum tamen fuerat, ut prius, in quo te gravaremus aut tuis honoribus obstaremus, rationabiliter
a nobis exigeres, quam apostolica decreta violares. GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10. MGH Epp. sel. 1: 265-266.
117
Et quoniam multos peccatis nostris exigentibus pro causa excommunicationis perire cottidie cerni-
136 coLunas de são pedro

prio papa na decisão sinodal de 1078 e que absolvia do contato com excomun-
gados, esposas, crianças, criados ou dependentes, camponeses e peregrinos.
Seguindo o exemplo do “verbo divino” – palavra que ressoava a união
indestrutível entre o dizer e o criar –, a palavra eclesiástica interpelava os
decretos da Igreja de forma ativa e criadora. Por meio dela era possível “tem-
perar as decisões deles [santos pais] com a moderação apostólica” (Urbano II,
em 1089);118 suspender a aplicação das leis quando “a extrema necessidade da
época nos extorquiu” (Nicolau II, em 1059);119 corrigi-las, nem tanto por ale-
gação à justiça mais do que por consideração à compaixão” (Alexandre II, em
1063);120 impedir o cumprimento dos cânones toda vez que não revelassem
o espírito da “mansuetude apostólica” (Gregório VII, em 1074),121 ou ignorá-
los por “misericória, [quando uma] vida louvável recomenda” (Urbano II, em
1095).122 A união entre o texto canônico e a vocalidade era paradoxal, sem
dúvida. Mas não inconciliável. Havia tensão e contradição, mas não dicotomia
e incompatibilidade entre, de um lado, a promoção das coletâneas canônicas
e, do outro, a vigência de um amplo predomínio da palavra falada como por-
tadora da verdade (veritas locutionis) no exercício do poder papal.
Todavia, o panorama traçado nas páginas precedentes exige, de fato,
uma correção da interpretação historiográfica. Se ele não desautoriza a premis-
sa de que o papado pós-1046 foi uma das fontes de energia da ampliação da
lei canônica, por sua vez, ele destoa da perspectiva vigente sobre o regime de
emprego dessa lei. Na mesma medida em que este capítulo avançou nos distan-
ciamos da ideia, muito difundida, de que o papado do século XI enveredou por
um processo de racionalização e sistematização jurídica no qual a aplicação e a
eficácia da lei teriam sido estabelecidas, cada vez mais, pelo próprio texto legal.

mus partim ignorantia partim etiam nimia simplicitate partim timore partim etiam necessitate, devicti
misericordia anathematis sententiam ad tempus. GREGÓRIO VII. Reg. 5: 14a. MGH, Epp. sel. 2: 368-
373; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 713; MANSI, 20: 504-506.
118 Sanctorum patrum decretis obsecundantes et eorum precepta apostolico moderamine temperan-
tes. MANSI, 20: 723A/B. Concílio de Melfi.
119
Sed temporis nimia necessitas permittendum a Nobis extorsit. DENZINGER: 392-394. O trecho se
refere à permissão para que sacerdotes, livremente ordenados por simoníacos, mantivessem as ordens
e dignidades, embora os cânones estipulassem que “nenhuma misericórdia” seria concedida. Ver ainda
o relato sobre o caso do arcebispo Aldered de York, narrado por: GUILHERME DE MALMESBURY. De
Gestis Pontificum Anglorum. HAMILTON: 251-252.
120
Non tam obtentu justitiae, quam intuitu misericordiae. MANSI, 19: 1024-1025. Trecho da confir-
mação da decisão de Nicolau II, 1059, referente à concessão dada aos simoníacos ordenados livremen-
te. Ver ainda: HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1230.
121
Sed adhuc apostolica mansuetudine iudicium in te ultionis debite suspendentes. GREGÓRIO VII.
Reg. 1: 56. MGH, Epp. sel. 1: 83-84. O trecho apresenta a razão alegada pelo papa para atender às
súplicas do bispo e suspender uma medida punitiva contra o rei Felipe I.
122
Talium ordinationes misericorditer sustinemus, si tamen laudabilis eos vita commendat. CONCI-
LIUM PLACENTINIUM. MGH Const. 1: 561; MANSI, 20: 805. Concílio de Piacenza, 1095, que reitera
a medida de Nicolau II referente a simoníacos ordenados livremente.
Leandro duarte rust 137

Desenvolvida pela maestria de um Harold Berman (1984: 115-118;


1993), esta premissa sagital reiteradamente conduz à opinião de que, no pe-
ríodo em questão, “a igreja exerceu os poderes legislativos, administrativos e
judiciais de um estado moderno, (...) dando forma aos modernos sistemas legais,
dos quais o primeiro foi o sistema da lei canônica”. Ao se deixar apanhar por
esta avaliação, o historiador passa a solicitar a este passado evidências de um
jogo espelhado entre a realidade da política e o conteúdo dos textos canôni-
cos. Com isso, perde-se de vista o exercício legal realizado pelos integrantes o
poder pontifício medieval (Caso típico de: BALDWIN, 1940). E assim, fixa-se
na retina historiográfica a imagem da Igreja Romana liderando um vertiginoso
processo de burocratização da vida social:

A ascensão rumo à explosão canônica levou aproximadamente seten-


ta anos, de 1070 a 1140; (...) agora, um sistema legal controlado pelo
papa de repente ocupou a linha de frente da experiência de todos os
indivíduos. Começou a regular vastas áreas da vida comum em um gran-
de e dispendioso grau de detalhamento jurídico (...). A revolução legal
(...) gradualmente converteu o pontificado, bem como a Igreja como
um todo, em um tipo totalmente diverso de instituição. (...) A partir da
época de Gregório VII, todos os papas de destaque eram advogados (...)
(JOHNSON, 2001: 244-245).

Um dos sustentáculos desta interpretação é uma ideia modelada pelo se-


minal La Réforme Grégorienne e transformada em penetrante dogma historio-
gráfico: o postulado da existência de um “programa reformador” nas ações do
papado (FLICHE, 1924-1937: 103-108; CHÉLINI, 1991: 273-278; GILCHRIST,
1962: 21-28; SWEENEY, 1985: 265-275). Segundo Fliche, as diferentes gera-
ções que se sucederam na condução da Igreja de Roma após Leão IX estavam
empenhadas na concretização de uma agenda comum de ações moralizantes
e disciplinares. Isto é, os eclesiásticos, monges e cônegos que acorriam ao pa-
pado ou eram designados para agir em seu nome estavam minimamente de
acordo quanto aos modos de definir “simonia”, “concubinato sacerdotal” e “in-
gerência laica”, partilhando amplo consenso sobre as punições cabíveis a cada
uma destas violações. Todos comungariam de ideias semelhantes acerca dos
significados de traficar ofícios eclesiásticos e trocar sacramentos por dinheiro
ou favores, quanto ao lugar cabível às mulheres no convívio com os sacerdo-
tes; ou ainda a respeito da sacralidade dos reis. O uso da expressão “programa
reformador” pressupõe isso: um grande e heterogêneo contingente de bis-
pos, abades e outros agentes históricos mobilizando um complexo conjunto
de princípios teológicos, éticos e disciplinares de modo uniforme e consensu-
138 coLunas de são pedro

al. Observe-se esta afirmação exemplar, de Christopher Brooke (1973: 264),


composta para concluir uma apresentação geral das “ideias reformadoras do
século XI”:
Este era o programa [reformador]: está dado um resumo dele, mas era,
de fato, como todos os programas eficazes, um muito restrito. Tinha
de sê-lo, porque era bastante difícil conseguir que os reformadores se
pusessem de acordo em algo, (...). Mas estavam de acordo quanto ao
principal, quanto ao que temos esboçado.

Característica que não se desfaz mesmo quando os historiadores ten-


tam distinguir tais agentes, distribuindo-os em diversos “subprogramas”: o
“lotaríngio” de Humberto de Silva Cândida, o “italiano” de Pedro Damião; as
escolas reformadoras “episcopais” e “monásticas” (FLICHE, 1924-1937; PA-
CAUT, 1976: 106-111, 128-129). Este conceito unitário de “Reforma” persiste
nos dias atuais. Fala-se dos movimentos reformadores como grandes blocos
doutrinários. Sustenta-se, mesmo que implicitamente, a opinião de que vastos
grupos clericais e monásticos não só partilhavam o mesmo conjunto de pro-
posições morais, como assumiam a mesma postura ao convertê-las em vetores
disciplinares para a vida cristã. Em outras palavras, firma-se, nas entrelinhas
desta perspectiva, a convicção de que por trás das ações eclesiásticas havia
alguma grade de normas jurídicas tal como foram concebidas por juristas dos
séculos XIX e XX. Caberia ao historiador, portanto, direcionar os olhos para os
princípios e regras confiados pelos medievais à permanência do escrito. Afinal,
como uma constituição moderna, eles permitiriam deduzir o vasto quadro ju-
rídico daquela época, como se os textos canônicos fossem um tipo de núcleo
sociológico do qual emanaria certa unidade normativa essencial.
Com isso, a ideia de um “programa de reformas” traz a reboque, em seu
interior, a exigência de conceber as “regras canônicas de condutas” como ine-
rentemente dotadas de: 1) sistematicidade (já que postuladas segundo uma
ordem básica inequívoca e consensual); 2) coercitividade (pois seriam reco-
nhecidas, de imediato e por todos que as aplicavam, como metas imanentes
à ação, ideais a serem automaticamente transformadas em real); e 3) previsi-
bilidade (haja vista que seriam capazes de orientar e antecipar todos os pro-
cessos de enquadramento dos comportamentos). Ora, para que tais aspectos
predominassem sobre a constituição da Igreja romana as relações de poder
de então deveriam obedecer a uma lógica social escriturária. A letra deveria
dominar o espírito para que noções axiológicas se descolassem de casos parti-
culares, se desgarrassem de situações específicas e pessoais, e emancipassem
certos valores como esquemas universais de conduta, como matrizes de com-
portamentos precedentes às práticas sociais e a elas sobrepostos como regu-
Leandro duarte rust 139

ladores externos. Sob tais condições, as fórmulas abstratas típicas de culturas


escriturárias triunfam sobre as soluções pontuais e contextualizadas impostas
por regimes de oralidade (GOODY, 1987: 26-38).
Logo, são muitas as razões pelas quais a expressão “programa reforma-
dor” se faz inaplicável ao período aqui estudado. Ela implica em margens de
consenso dificilmente plausíveis para uma sociedade marcada por fortes re-
gionalismos como a medieval; sustenta a imagem de uma relação demasiado
rígida e mecanicista entre o texto da lei canônica e as práticas decisórias en-
volvidas no acionamento desta; e, por fim, delineia a perspectiva de que certos
códigos jurídico-morais do papado teriam sido investidos de uma capacidade
de fundar o social, guiando as atitudes face ao lícito e ao ilícito, permitindo ver
de antemão como transcorreriam as deliberações e arbitragens.
Completa-se, assim, um círculo de características que fazem a ideia de
“programa reformador” alimentar um modelo teórico que rediz categorias ju-
rídicas extemporâneas, oriundas de nossa Modernidade industrialista: a previ-
sibilidade decisória, a imperatividade textual, a tipicidade jurídica. Ao admitir
a existência deste “programa”, o estudioso se vê levado a solicitar às fontes
medievais as provas da existência, em plena época senhorial, de ordenamentos
jurídicos de feições positivistas. Ou seja, dominados por índole preceptiva e ins-
trumental, direcionados para aplicações previsíveis das leis canônicas e por uma
relação meramente formalista com a tradição eclesiástica (Ver: BOBBIO, 1995).
A lei canônica não exercia valor de futuro sobre as ações disciplinares
do papado. Seu texto não era um “dever-ser” inescapável para a vida, como se
permitisse antever todas as implicações cabíveis a uma penalidade ou o desti-
no reservado ao infrator. As coleções de sacrorum canonum não eram receitas
do que viria a acontecer, nem um referencial de passado suficiente para deter-
minar o curso a ser seguido pela política. As normas escritas não estabeleciam
os limites das experiências e expectativas com as quais os integrantes do pa-
pado tomavam parte das relações de poder da época. Eram antes um marco
de orientação que a vocalidade se encarregava de ajustar, atualizar, presenti-
ficar, encarnar sua aplicação em um tempo-lugar real, concreto. A voz clerical
remodelava o textual incessantemente, segundo a vivência de necessidades
circunstanciais e o peso de desafios temporários. Entre os governos de Leão IX
e Urbano II, o direito canônico era operado pelo papado a partir do presente,
ele não procedia do passado, nem antecipava o futuro, mas reconstruía-se,
reelaborava-se, adequava-se a cada aplicação. Ele era manejado através de
disposições ativas, voluntárias mesmo, que pouco continham de alguma facul-
dade automática, fixada previamente, baseada em algum ideal de conservação
ou de obediência marcial ao escrito.
Em outras palavras, a aplicação do direito canônico se dava segundo
140 coLunas de são pedro

uma forma de temporalidade atribuída, há sete décadas, por Maurice Halbwa-


chs (1935) aos “quadros sociais da memória”. Como demonstrou este durkhei-
miniano, a memória coletiva opera por triagens seletivas, invenções retros-
pectivas: a memória é fundadora e manipuladora. Eis aí traços definidores
do modo de acionamento do direito por parte do poder pontifício: o passado
textual, repleto da autoridade dos cânones, não era apenas restaurado, ree-
ditado, mas reinventado; era manipulado e conformado ao próprio instante
em que era acionado. Assim como o passado existente na memória coletiva
é aquele continuamente reformulado no presente (SANTOS, 2003: 44-45), a
herança canônica recebida pelo papado, escrita e depositada em compilações
legais, era constantemente reconstruída no presente pelas vozes a serviço da
autoridade apostólica. As maneiras de relembrar o texto canônico eram cons-
tantemente refeitas; o modo de interpretá-lo estava sempre em movimento.
Longe de se opor ao esquecimento, a memória coletiva o pressupõe em dife-
rentes graus. Contudo, esse “esquecer” da prática memorialista não significa
apagar aquilo que passou, perdê-lo de vista ou deixá-lo tornar-se ausente. É
bem antes recriar pelo manuseio de versões, é uma transfiguração: a rescrita
do passado como um incessante ajuste de contas com o presente. O esqueci-
mento da memória é um jogo social de velamento e desvelamento.
Eis uma lógica coletiva que dominou o papado pós-1046: era preciso
familiarizar-se com as margens de esquecimento dos decretos canônico-con-
ciliares e abolir, ainda que parcial ou momentaneamente, sua evocação linear
e automática, para dar-lhe nova vida no presente. Era necessário moderá-los
segundo o avanço do tempo, para então alcançar uma aplicação voluntária,
adequada às especificidades de cada litígio confrontado. Imersa na transito-
riedade do mundo dos homens, a lei devia igualmente morrer e renascer um
pouco a cada aplicação, através da intervenção da palavra criadora e vívida
propagada pela voz. Só assim a verdade poderia ser devolvida à letra da lei, e
a misericordia à iustitia. Faltar ao passado para regenerar o presente; esquecer
a lei para recompor a justiça.
Retornamos, desta forma, ao ponto fulcral de toda argumentação en-
campada neste capítulo. Proibições, sanções, dispensas, enfim, os muitos me-
canismos da gestão pontifícia das regras jurídicas seguiam a linha-mestra das
experiências de tempo propagadas pelos clérigos a serviço da autoridade apos-
tólica. Da mesma forma que o devir, a ordem jurídica não era vivenciada como
dado exterior aos homens, localizado em algum meio material distante e neu-
tro, algo que, como a escrita ou o relógio, poderia existir fora da coporeidade
e da vocalidade humanas. O papado governado por Leão IX ou por Urbano II
aplicava o direito da mesma maneira como seus integrantes viviam o tempo:
como um modo de agir indiferenciado da vida humana, como uma experiên-
Leandro duarte rust 141

cia pessoal. Um continuum ontológico reunia, na totalidade constituída por


uma persona, boca e coração, lei escrita e vocalidade, ações e consciência,
curso do tempo e normatização da vida humana.
Com efeito, as experiências de tempo não são mera semântica do direi-
to ou simples símbolo das relações de poder: “o direito temporaliza, ao passo
que o tempo institui” (OST, 2005: 13). A cada concílio celebrado, as ações e
decisões promovidas pelo papado temporalizavam o devir como grandeza in-
terior. A experiência da mudança era ditada, sobretudo, pelo inigualável valor
jurídico atribuído aos oscilantes “estados da alma”. Precisamente esta experi-
ência definia a vivência do tempo, embora ela nos tenha chegado na forma
de relatos de milagres, profecias e ordálios. Mas, este modo de sentir o tempo
não pode ser reduzido a uma “sensibilidade”: tratava-se de uma lógica social
presente em várias experiências coletivas. Na qual encontraremos a constru-
ção da ordem jurídica papal, que incorporava, desta forma, as características
da vivência temporal: maleabilidade, movência, fluidez. No interior deste am-
biente sociológico, a lei canônica era um comando negociável, não incondi-
cional; as legislações conciliares eram matéria do livre-arbítrio, não diretrizes
preeminentes de ação; aplicação da justiça poderia sobrepor o proveito moral
ao constrangimento pela coerção. Em suma, dentro desta atmosfera histórica,
o direito era valor, não fato.
Cabe aos medievalistas reconhecerem que o uso de uma expressão como
“programa reformador” sustenta a elevação de um cerrado véu conceitual que
sobrepõe, entre eles e o passado, o reflexo de imagens extemporâneas, refle-
xos de nossa época. Imagens que nos impedem de reconhecer o direito canô-
nico quando não concordamos em ver a Sé de Roma como a cabeça de uma
modernizante “igreja das normas” (Caso de: SARANYANA, 2006: 53-98). Se o
Dictatus Papae exibe o modo como o papa Gregório VII e seus partidários con-
ceituaram o poder pontifical, nem por isso este célebre memorandum revela ao
historiador como eles o exerciam.
Entretanto, não devemos nos deter nesta conclusão. Ela é antes a pon-
ta de lança de provocações maiores. Ela faz emergir novos problemas: como
compreender historicamente esta mobilidade do exercício legal papal? Que
conjunto político emergia deste sinuoso jogo entre o texto da lei e a maleabili-
dade dos usos da voz eclesiástica? Alargar os horizontes de reflexão e vislum-
brar mais profundamente o ambiente sócio-político que abrigava a Sé Romana
são as metas do capítulo seguinte.
Capítulo 3

O papado além de Roma e da


reforma 1 (1046-1073)

Roma, devoradora de homens!


Pedro Damião, 1060.

3.1. Todos os rostos, um mesmo reflexo

Na década de 1920, quando Fliche compôs aquela que se tornou a mais


influente síntese produzida no século XX sobre o papado medieval – La Ré-
forme Grégorienne –, a expressão “programa de reformas” estava na ordem do
dia quando o assunto era a Igreja. Havia três décadas que o Vaticano lidava
com os impactos gerados pelo empenho do papa Leão XIII para demonstrar
que o catolicismo – não o liberalismo ou o socialismo – era o porta-voz da
solução para a “questão social” gerada pelo conflito capital versus trabalho.
Os governos de Pio X, Bento XV e Pio XI estiveram empenhados em realinhar
a religião católica diante do dever autoproclamado por Leão na encíclica Re-
rum Novarum, de 1891: instruir os poderes públicos e as associações prole-
tárias para a criação de um “programa de ações cristãs” capaz de amenizar a
alarmante desigualdade social. Embora crispada por um paternalismo e um
conservadorismo indisfarçáveis, a evocação dos papas como arquitetos de
um modelo social redentor recaiu sobre o novo século como potente vento
de mudança: ela energizou o pensamento teológico; encorajou a reescrita da
doutrina oficial; permitiu uma reaproximação com os regimes republicanos;
inspirou a participação católica em movimentos sindicais; amparou a reforma
do direito canônico (FURLONG & CURTIS, 1994).
Esta reorientação religiosa projetou a Sé Romana no cenário internacio-
nal e alimentou acalorados debates a respeito da lei eclesiástica como fonte de
um repertório de reformas sociais. Em pouco tempo, tais temas se converteram
144 coLunas de são pedro

em lugar-comum do cotidiano de diversos círculos intelectuais católicos da


época. Como aquele sediado na Universidade Católica de Louvain, instituição
à qual foi confiada a publicação do ilustre estudo de Fliche (PALANQUE, 1974:
238-249). Eis um aspecto no qual os medievalistas prestam pouca atenção: a
montagem de uma agenda de reformas sociais, lema da política papal herdada
da Rerum Novarum, foi o referencial histórico por trás da ideia de “programa
reformador” transposta para o estudo da Idade Média. Donde a razão do forte
conteúdo de positivismo jurídico oitocentista que a caracteriza.
Afirmar que Gregório VII dedicou suas energias à implantação de um
“programa de reformas da vida cristã” é envolvê-lo em comportamentos de
um clérigo do século XIX, obrigando-o a testemunhar um pensamento sócio-
religioso familiar à nossa época, mas alheio à sua época histórica. As impli-
cações contidas no emprego desta expressão que foi uma linha-mestra de La
Réforme Grégorienne não param por aí. A mesma ideia naturaliza na escrita da
história outra característica daquele papado de 1890-1920, que se inclinava a
preocupações sociais sem abrir mão do rigor ultramontanista: a centralização
política e administrativa.
Para Fliche, a reforma religiosa do século XI consistia na moralização
das condutas laicas e na correção dos comportamentos clericais segundo a
disciplina monástica e o rigor das normas eclesiais. Forjada pela austera rotina
de vida de claustros beneditinos como Cluny e lapidada pela tradição canônica
das escolas episcopais da Lorena, a “Reforma” teria sido o que restou de lei e
ordem após o colapso do Estado carolíngio. Caracterizada pela racionalização
ética e juridificação das relações interpessoais, ela foi concebida por Fliche
como um movimento dominado por uma forma de espírito público, uma vez
que ela demonstrava a força da religião como fator de integração e regula-
mentação da cooperação coletiva.
Aos olhos daquele historiador francês, a ação reformadora decorria de uma
lógica centralista de autoridade e de um ethos governamental. Ambos contrários à
dispersão do poder nos “tempos feudais” e à irrefreada busca aristocrática por seus
interesses pessoais, fontes da desordem e da anarquia. A incorporação da fé refor-
madora teria particularizado o papado como gestor de um senso de bem público
(utilitas publica), como instância elevada acima da sociedade para normalizá-la.
Por isso, falar em “programa reformador” implicava em conceber um repertório
de ações de liderança que convergiam para a centralização da igreja nas mãos
do papa. Mais precisamente: “reformar o convívio cristão” seria propagar uma
eclesiologia que tinha por fundamento a exaltação da autoridade da Sé Romana
e a estreita subordinação das igrejas regionais. Unida por uma força centrípeta, a
ecclesia reformada estaria voltada para se organizar como um imenso círculo de
poder fechado pela atração exercida por um centro: Roma (FLICHE, 1924-1937).
Leandro duarte rust 145

A influência exercida por esta interpretação junto aos historiadores é


imensa. Prova disso foi ela ter sobrevivido à obra que a notabilizou, como se
dela tivesse se desligado. Se atualmente La Réforme Grégorienne é vista como
antiquada e colocada à beira do desuso por seu fôlego moralista e seu culto ao
biográfico, o princípio do centralismo papal por ela consagrado, por sua vez,
continua senhor do campo historiográfico. Ele reaparece a todo o momento,
ora como pressuposto consensual, ora como conclusão intocável. Basta obser-
var o rol de estudiosos para os quais o papado do século XI hauriu da “refor-
ma” uma via de estatização do poder.
A começar por dois nomes reputados como clássicos: Zachary N. Brooke
(1989: 29) e Walter Ullmann (2003: 142-172) viam no “programa reformar”
o “principal objetivo e [na] centralização papal seu único meio”. Por centralizar-
se, disse Brian Tierney (1988), a igreja pôs um fim ao amálgama de poderes
seculares e religiosos que perdurava desde os tempos constantinianos: sepa-
rou-se do Estado, precisamente por converter-se em um, ao custo de uma crise
secular. A razão deste processo, elucidou Luís Garcia-Guijarro Ramos (1995:
35), era que a “Reforma” “substituía a dependência [das igrejas locais em re-
lação à autoridade] laica por outra centralizada romana”. “Roma estava bus-
cando (...) estabelecer a igreja como uma instituição e suprir a uniformidade de
linguagem, disciplina e credo necessários a este plano”, asseverou Karl Morrison
(1969: 274). Foi a afirmação de uma “eclesiologia monárquica centralizadora”,
garantiram Friederich Kempf (In: JEDIN, 1980: 373) e Ian S. Robinson (In:
LUSCOMBE, 2005: 322). Taxativo, Pierre Toubert (In: DHP: 1437) concluiu:
a “reforma gregoriana [gerou] a constituição de uma hierarquia eclesial estável
sob o primado apostólico e serviu para colocar em cena uma burocracia roma-
na centralizada e cada vez mais eficaz”. Por fim, em uma obra recente, Julia
Barrow (In: POWER, 2006: 126) arrematou a questão: o “movimento [refor-
mador] conduziu à burocratização da igreja”. Até mesmo Colin Morris (2001:
79-108), que recusou a ideia de uma ação pontifícia conscientemente centra-
lizadora, persistiu com a afirmação de que a Cúria agia em detrimento dos
poderes regionais e locais, espoliando-os de sua autonomia e prerrogativas.
Há décadas os historiadores discutem sem trégua sobre a reforma re-
ligiosa ocorrida nos séculos X e XI. Formou-se um debate povoado por uma
constelação de perspectivas. Se houve quem visse em Gregório VII o homem-
síntese dos movimentos reformadores – sendo para Cluny o mesmo que Na-
poleão para a Revolução Francesa (DELARC, 1890: 10-37) –, não faltou quem
enxergasse o “momento gregoriano” como o ponto de ruptura com as iniciati-
vas reformadoras até então existentes (TELLENBACH, 1959: 89-135. Ver ain-
da: COWDREY, 1970). Mas mesmo as vozes mais divergentes concordam em
um ponto: seja qual for a origem ou a intensidade de seu rigor, a “Reforma”
146 coLunas de são pedro

dotou as ações romanas de um voraz apetite de centralização. É como se não


importasse qual direção historiográfica tomar: todos os caminhos parecem
conduzir ao centralismo romano avivado pelo olhar de Fliche.
Este hiato entre a multiplicidade dos estudos sobre as reformas e a mo-
notonia do pensamento sobre a estruturação política papal é indicativo de um
descompasso. Se por um lado, Augustin Fliche deixou de ser uma referência
confiável para a compreensão histórica das reformas medievais, por outro, ele
continua a ditar o tom da interpretação a respeito da organização institucional
da igreja romana. Este é um quadro insustentável. Pois toda La Réforme Gre-
goriénne está assentada numa única cadeia de fundamentação, cujo principal
alicerce a própria historiografia tem desacreditado: o princípio de ver a “Refor-
ma” como um meio de intervenção social particularizado por um modo de agir
clerical, racionalizado e jurídico. Há décadas Pierre Toubert (1973: 693-930)
demonstrou quão controversa era a definição das ações reformadoras como
feixes padronizados de normas comportamentais intelectualmente elaboradas
em alguns pontos da Cristandade, como Cluny ou a própria Sé de Roma e de-
pois projetadas sobre a sociedade. Tratava-se, antes, de respostas coletivas às
pressões generalizadas por todo Ocidente, instauradas por um abrangente e
plurissecular processo de mudança das estruturas demográficas e sociais.
O nome “Reforma” tem conferido uma aparente unidade a um intri-
cado espectro de mobilizações sociais impulsionadas pela reformulação das
relações familiares, das formas de sociabilidade, dos mecanismos de solida-
riedade. Quando se trata das espiritualidades reformadoras temos sempre
que manter em mente que “religião e sociedade penetravam-se mutuamente de
maneira capilar” (VIOLANTE, 1999: 45). Esta realidade movente e repleta de
tensões atingiu as instâncias eclesiais destacadas por Fliche. O essencial desta
lição pode ser reencontrado na seguinte constatação, revestida com um tom
de advertência por Giles Constable (1996: 86-87):

Ao olhar para (...) o movimento de reforma é comum dispor no centro os


elevados tipos institucionalizados de suas formas, sobretudo os monges
e os cônegos, que levavam uma estrita vida comunitária (...). Poderá
ser mais próximo das realidades da vida religiosa medieval pensar nos
termos de um modelo diferente (...), tomando consciência da variedade
de necessidades e temperamentos religiosos individuais e reconhecendo
a diversidade de formas da vida religiosa.

Cluny e o papado não foram “focos” reformadores tal qual pontos de


origem, pois o processo chamado de reforma era co-extensivo a todo tecido
social. Devemos seguir John Howe (1997: 160) nesta lúcida afirmação: “antes
Leandro duarte rust 147

de existir um centro, havia a reforma, não obstante local, popular, desordenada,


frequentemente desorganizada e exposta a uma variedade de usos por diferentes
facções e grupos”.
Não houve, a rigor, uma “Reforma” no século XI. Mas dédalos de refor-
mas capazes de abrigar, como demonstrou Gerd Tellenbach (2000: 157-184,
263-264), regras díspares acerca de concubinagem, da sexualidade clerical, da
simonia ou até mesmo da investidura laica. Se tal aspecto não esteve visível
para grande parte dos historiadores foi porque eles reificaram certas discipli-
nas monásticas e tradições intelectuais particulares, elevando-as ao artificial
patamar de um “programa reformador” (Ver: GILCHRIST, 1993: 209-235).
Levada adiante, esta constatação exige-nos o reconhecimento de que, tão ilu-
sória quanto a feição unitária conferida às mobilizações reformadoras, é a
ideia de atribuir-lhes sempre os mesmos protagonistas: algum ilustre grupo
clerical. A começar pelo “partido gregoriano”. Rios de tinta já foram derra-
mados pelos historiadores a respeito do “círculo reformador gregoriano”, su-
postamente formado por homens diferenciados por uma radical intolerância
à simonia, à vida sexual clerical, ao regime das chamadas “igrejas próprias”,
controladas pela nobreza feudal (FLICHE, 1924-1937; CANTOR, 1958: 3-12;
TELLENBACH, 1959; BARRACLOUGH, 1972: 82-108; SCHIMMELPFENNING,
1992: 130-150; FANNING, 1988: 09-10; CHÉLINI, 1991: 271-293; COLLINS,
2009: 202-205). Outros afirmam que este “partido reformador” se particulari-
zou pelo excessivo rigor nos critérios moralização e enquadramento canônico
da hierarquia eclesiástica (BARSTOW, 1982; CLASTER, 1982: 170-173).
Porém, tal visão nos força a listar entre os “reformadores gregorianos”
muitos dos opositores mais combativos que os homens fiéis a Gregório VII
conheceram. Caso dos “antipapas” Honório II (Cádalo de Parma) Clemente
III (Guiberto de Ravenna) e Gregório VIII (Maurício de Braga). Suas vidas
estiveram plenamente inseridas na ordem social das ações reformadoras. Bem
feitor da igreja de Verona e generoso fundador de monastérios em Parma,
Cádalo participou do sínodo Romano de 1049 e ofereceu seu apoio a Leão IX
e à condenação papal da simonia (CAPITANI, 1966: 137-139; CAPELLI, 1970:
39-44). O nome de Guiberto figura entre os registros dos concílios reunidos
por Nicolau II entre 1059 (Sutri) e 1060 (Roma), o que significa que o arcebis-
po de Ravenna endossou o Decretum Adversus Simoniacos e a bula In Nomine
Domini, que estabeleceu a primazia dos cardeais na eleição dos papas.1 Por
fim, Maurício de Braga: educado em Cluny, Limoges e Castela, foi homem
de confiança de Pascoal II (papa que já foi chamado de “ultra-gregoriano”)

1
BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 592-594; JL 4392-4398; MANSI, 19: 885-886;
WATTERICH, 1: 229-232; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1133-1137.
148 coLunas de são pedro

e contribuiu decisivamente para a imposição da liturgia romana nos altares


da Península Ibérica, dominada pelos rituais moçárabes (ANTÓN, 2004: 306;
ERDMANN, 1940).
Juízo semelhante poderia ser estendido para os cardeais Hugo Cândido
e Beno dos Santos Martino e Silvestro. Dois anos após ter sido “publicamente
acusado de simonia pelos monges de Cluny e por alguns bispos devotos”,2 no
concílio romano de 1073, Hugo desertou do governo gregoriano e dirigiu-se
à Germânia, onde depôs contra o pontífice e clamou por sua deposição na as-
sembleia reunida por Henrique IV em Worms, em janeiro de 1076.3 Declarado
herege no sínodo de 1075, e excomungado nos plenários de 1076 e 1078,
Hugo Cândido militou em favor de Clemente III até falecer em 1099.4 Toda-
via, se engana quem conclui ser esta a trajetória de um eclesiástico alheio à
“reforma gregoriana”. Sua condenção como “apóstata e heresiarca” não é pro-
va cabal de uma divergência aguda quanto aos ideais morais e disciplinares
defendidos por Gregório VII e seus colaboradores.
Entre 1065 e 1071 Hugo foi enviado à Península Ibérica como legado e
presidiu os concílios de Auch, Girona, Leyra, Toulouse. Ele proclamou a “tré-
gua de Deus”, promoveu a romanização da liturgia e decretou medidas contra
a simonia, a violação do celibato clerical e a posse laica de terras e rendas
pertencentes a igrejas.5 Sua viagem parecia ser uma forma de reintegração à
Igreja romana, uma vez que Hugo havia tomado o partido de Cádalo de Parma
na disputa pelo trono papal com Alexandre II, apoiado por Hildebrando. O
cardeal já havia rompido relações com o grupo liderado pelo futuro Gregó-
rio VII mesmo partilhando da concepção reformadora promovida por ele. As
desavenças pareciam ser de foro político, e não do âmbito da espiritualida-
de. Hugo Cândido seria novamente enviado à Península Ibérica como legado
apostólico pouco antes de ser acusado em 1073.6
Em seu libelo Gesta Romanae Ecclesiae contra Hildebrandum, o carde-

2 Hugo Candidus a Cluniacensibus monachis et a quibusdam religiosis episcopis publice de symonia


arguitur. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 600.
3
LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5: 242, EPISCOPORUM EPISTOLA AD GREGORIUM
VII PAPAM. MGH LL 2: 44-45; EPISTOLA EPISCOPORUM GREGORIO VII. MGH Const. 1: 106-108.
4
Segundo Bonizo de Sutri, em 1075, “o papa Gregório reuniu um sínodo no tempo da Quaresma, No
qual (...) Hugo Cândido, segundo a ordem do apóstolo ao dizer ‘Evita um homem herege após advertido
uma primeira e uma segunda vez’ [Tito, 3:10], foi separado perpetuamente da igreja”. Tradução de:
Gregorius papa quadragesimali tempore synodum congregavit. In qua (...) Ugo Candidus secundum
apostoli preceptum dicentis: ‘Hereticum hominem post primam es secundam correptionem devita’, ab
ecclesia perpetuo sequestratus est. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 605. E ainda:
GREGÓRIO VII. Reg. 5: 14a. MGH Epp. sel. 1: 368-373; BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5: 306-308;
BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 598; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales MGH SS
5: 242; MANSI, 20: 504-506; HEFELE-LECERQ, 5/1: 232-236
5
ES, 3: 294-299; MANSI, 19: 1035; 1063-66; 1069-1072; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1267-1268.
6
GREGÓRIO VII. Reg. 1: 6. MGH, Epp. sel. 1: p. 8-10.
Leandro duarte rust 149

al Beno – outro “cismático” aliado a Henrique IV – formulou ácidas críticas


contra Gregório VII em razão de sua tolerância para admitir a validade dos
sacramentos ministrados por sacerdotes excomungados. Munido de alusões
a Eusébio, Agostinho e Gregório I, o cardeal afirmou que “Hildebrando e seu
sequaz Urbano [II] baniram, através de novo poder, os decretos do concílio de
Calcedônia ao consentirem, não só por palavras, mas igualmente por escritos
públicos, com a realização de batismos e da comunhão fora da igreja”.7 Há de se
notar que uma posição semelhante foi adotada no Libellus contra Invasores et
Simoniacos, redigido pelo cardeal Deusdedit. Suas páginas declaravam nulos
(irritae) os sacramentos oferecidos por qualquer padre excomungado. Já que
os historiadores costumam considerar Deusdedit um dos principais sustentá-
culos da produção jurídica “da Reforma Gregoriana” (ROBINSON, 1978: 41;
GAUDEMET, 1994: 390-391, CONGAR, 1997: 116-117), resta-nos perguntar:
teria Beno reprovado o pontífice por negligenciar seu próprio princípio? Teria
sido o “cardeal cismático” mais “gregoriano” do que o próprio Gregório VII?
Os embaraços gerados por esta perspectiva continuam. Tão monolítica
quanto a máxima da existência do “programa reformador” é a ideia segundo a
qual as preocupações em reformar a vida cristã seriam um “assunto clerical”,
limitado ao âmbito da hierarquia eclesiástica. Por décadas, esse pressuposto
sustentou a caracterização, explícita ou velada, da presença laica como fator
de resistência à “Reforma” – quando não de aversão visceral a ela. Especial-
mente os grupos aristocráticos costumavam ser retratados como obstáculos ou
adversários da espiritualidade reformadora, entendimento que caiu por terra
perante com a publicação de valiosos estudos acerca do decisivo papel exer-
cido pela aristocracia medieval na vida religiosa e na própria formação dos
quadros clericais de então (Ver: CAPITANI, 1965: 454-481; GILCHRIST, 1970:
1-10; BOUCHARD, 1979: 1-10; HOWE, 1988: 317-339; MICCOLI, 1999: 47-
73).
Não é difícil encontrar ainda hoje ecos da lenda negra de uma “igreja
medieval” corrupta e decadente porque refém de “mãos laicas”, uma das mui-
tas versões oitocentistas difundidas para estigmatizar o “feudalismo”, temido
como um vilão histórico (AMANN & DUMAS, 1948). Repare-se nesta opinião
de Donald Logan (2002: 106): “pode ser dito que a reforma do décimo primeiro
século tem dois grandes períodos. O primeiro era anterior a 1049, quando o pa-
pado era corrupto e conduzido por poderosos locais (...).” Esta visão reproduz o
ponto de vista elaborado pelos próprios agentes históricos, uma vez que aplica

7
Hildebrandus et pedissequus eius Turbannus, nova potestate solventes decreta Calcedonensis conci-
lii, non solum verbis, sed et scriptis publicis consenserunt extra aecclesiam communicare et baptizari.
BENO DE SS. MARTINO E SILVESTRO. Gesta Romanae Ecclesiae contra Hildebrandum I. MGH Ldl 2:
375.
150 coLunas de são pedro

o mesmo filtro memorialista criado pelos grupos vitoriosos na disputa pela


política papal ocorrida entre as décadas de 1040-1080. Grupos que fizeram
da desqualificação de seus antecessores, de sua execração como escândalos
ambulantes uma forma de proclamar a si mesmos como os únicos defensores
idôneos da fé, espécimes raros de pastores zelosos em uma época desespera-
dora. Mas, a historiografia tem avançado na escrita de uma história da memó-
ria reformadora (LYTLE, 1981: 1-98; BELLITTO & HAMILTON, 2005: 21-35),
tornando-se mais prudente e crítica quando se trata de avaliar a influência das
linhagens medievais sobre as igrejas cristãs.
Este é o caso do papado controlado pela família Crenscenzi e os condes
de Tusculum, vínculo antes precipitadamente reduzido a um “laço de ruína e
corrupção” (LOUD, 1985: 10-11; VIOLANTE, 1999: 122; BEOLCHINI, 2006:
62-70). O explícito engajamento de Bento VIII (Theophylacto de Tusculum)
pelos interesses de sua linhagem não o desmerecia aos olhos de prelados como
Adalboldo de Utrech, cuja Vita Heinrici II Imperatoris louvou o “santo papa”
(sanctum Benedictum) como um reformador enérgico, promotor da ascese
cluniacense e inestimável aliado do imperador na cristianização do Báltico.8
Bento seria ainda lembrado pelo notório concílio de Pávia, reunido por ele em
1022 para combater a prática clerical de manter concubinas e esposas. Muito
antes de Gregório VII, ele ordenou que os filhos de eclesiásticos fossem consi-
derados “servos das igrejas” (ecclesiarum servi), incluindo aqueles nascidos de
mães livres.9 Este é um dos muitos exemplos capazes de ilustrar como a pes-
quisa histórica vem solapando o olhar que vê por toda parte a dicotomia entre
o clero como autor das reformas e os laicos como meros alvos dela.
Portanto, longe de ter constituído uma matéria essencialmente clerical,
as reformas medievais foram realidades de traçados anônimos, móveis e mul-
tifacetados; arranjos de práticas disseminadas por toda sociedade senhorial
que se assemelhavam mais a nuvens em movimento do que a sistemas ou
programas. Cabe, então, dar mais um passo e extrair a fundo as consequências
desta perspectiva para a história institucional do papado medieval. A des-
construção das iniciativas reformadoras como modo de ação social especifica-
mente eclesiástico faz flutuar no vazio a premissa de um centralismo papal,
outrora consagrada por Fliche. Afinal, um era a imagem refletida no espelho
da outra: se o papado havia se dissociado das “forças feudais”, concentrando
a autoridade numa época de dispersão desta, foi porque suas decisões tinham
sido orientadas pela “Reforma”, cuja lógica de conduta destoava em tudo da

8
ADALBOLDO DE UTRECHT. Vita Heinrici II Imperatoris. MGH SS 4: 806-809.
9
MANSI 19: 343; HEFELE-LECLERCQ 4/2: 918-920; JL 3289. HEINRICI II ET BENEDICTI VIII SY-
NODUS ET LEGES PAPIENSES. MGH Const. 1: 70-76; HEINRICI II IMP. LEGES PAPIENSES. MGH LL
2: 561-562.
Leandro duarte rust 151

desrazão comportamental da “anarquia feudal”. Dito na forma de uma inda-


gação: sem um “programa de reformas” de feitio racionalista, legalista e radi-
calizado, como afirmar que as gerações eclesiásticas governantes do papado
entre e 1040 e 1100 puderam pensar e agir pela centralização do poder se
elas nasciam e eram formadas em meio ao ethos senhorial da partilha do po-
der por vínculos pessoais? Há mais em jogo neste questionamento do que um
balanceamento de conceitos. Se, à primeira vista, ele apenas problematiza o
alinhamento entre as noções de “reforma” e de “centralismo papal”, ao obser-
varmos suas entrelinhas, percebemos que ele está preenchido com uma impli-
cação mais profunda: a luz lançada pelos historiadores sobre a primeira destas
noções não é capaz de desfazer as áreas cinzentas que recobrem a segunda. O
estado da arte historiográfica atual indica que os problemas da estruturação e
do exercício do poder pontifício não são apropriadamente elucidados quando
se compreende as razões por trás das práticas reformadoras. Uma boa amostra
disso diz respeito ao crucial ano de 1046.

3.2. Os fundamentos: uma igreja fora de seus domínios

Naquele ano o rei germânico Henrique III marchou sobre a península


itálica e pôs fim a uma acirrada disputa pelo Trono de Pedro. Três eclesiásticos
ostentavam o título de vigário apostólico. Contínuas disputas aristocráticas
fizeram da Igreja Romana um corpo de fiéis dotado de três cabeças: reinando
desde 1033, Bento IX, filho do conde Alberico III de Tusculum, havia sido for-
çado a abandonar Roma, tomada por uma insurreição de grupos rivais, que se
aproveitaram de sua fuga para eleger João Crescentius como Silvestre III, em
1045. Bento retornou à cidade, mas a resistência oferecida pelos Crescenzi da
Sabina e pelo clero do norte da cidade obrigou-o a escapar uma segunda vez,
mas de outra maneira: ele vendeu a dignidade papal a seu padrinho de batis-
mo, João Graciano, que tomou o nome de Gregório VI. Contudo, o tusculano
teria se arrependido da venda e voltou a reivindicar a autoridade apostólica.
Todos governaram simultaneamente: um em São Pedro, o outro em Santa Ma-
ria Maior e o terceiro em São João de Latrão (BORINO, 1916: 141-252; POO-
LE, 1917: 3-21; CAPITANI, 1966: 1-51; VACCA, 1993: 157-166; McQUILLAN,
2002: 12-15; MELVE, 2007: 122-157).
Os três foram depostos em sínodos convocados por Henrique e um novo
clérigo foi designado papa, na véspera de Natal de 1046. Essa não foi a pri-
meira expedição germânica à península, tampouco a primeira vez que um
sucessor de Carlos Magno e Oto I impunha sua vontade sobre o alto clero ita-
liano. A Regesta Chronologico-Diplomatica Regum atque Imperatorum Romanorum
contém, em detalhes, os itinerários seguidos por Henrique II e Conrado II em
152 coLunas de são pedro

1013-1014, 1022, 1026-1027 e 1036-1038,10 ocasiões em que os bispos e os


abades locais sentiram as pressões germânicas para integrar a extensa rede de
aliados que a coroa almejava irradiar desde a Saxônia até a costa mediterrâ-
nica (GAY, 1926: 59-106; PARTNER, 1972: 100-106; LEYSER, 1981: 721-753;
WOLFRAM, 2006: 95-113, 118-138). Todavia, ao contrário das outras vezes
em que um rei teutônico cruzou os Alpes, em 1046, a intervenção imperial
custou à aristocracia romana sua forte identificação com a igreja local, a Sé
Apostólica.
Desfazia-se um controle duradouro, estabelecido até então por décadas
de poderio familiar. Após a morte de Silvestre II, em 1003, os Crescenzi apo-
deraram-se indiretamente do papado, sustentando as eleições de eclesiásticos
provenientes de famílias aliadas: João XVII, João XVIII e Sérgio IV. A partir de
1012, os condes de Tusculum foram mais longe e entronizaram a si mesmos
como Bento VIII, João XIX, Bento IX (POOLE, 1917: 31-37; WILLIAMS, 2004:
17-21). Não que tais pontífices fossem títeres de suas estirpes, homens que
teriam desviado o pontificado das “funções religiosas” para colocá-lo a serviço
dos interesses de pequenos grupos nobiliárquicos, como um negócio a explo-
rar ou uma fonte de recursos a aproveitar. Não era incomum que as relações
entre os “santos padres” e suas linhagens se tornassem ambíguas ou conflitu-
osas, graças, sobretudo, aos vínculos mantidos por muitos deles com a corte
imperial (McQUILLAN, 2002: 13-20).
Mas, embora tais contatos interferissem nos rumos da política romana,
um limite era observado: até as mais pomposas intervenções germânicas signi-
ficavam, na prática, tomar o partido de um dos grupos em disputa. Ao interfe-
rir nas rivalidades aristocráticas e decidir qual clã detinha entre os seus o ver-
dadeiro papa, os imperadores pouco mais faziam do que confirmar escolhas
delimitadas pelos poderes locais. O Império podia decidir quem se sentaria no
Trono de Pedro, mas os candidatos eram sucessivamente romanos, todos com
sangue aristocrático nas veias. As intrigas que Crescenzi e Tusculanos provo-
cavam uns contra os outros não colocavam em risco a profunda identificação
existente entre as muitas famílias romanas e a Sé dos Apóstolos. Ao contrá-
rio, eram armas empunhadas na competição pelo controle do “mecanismo do
papado familiar, que alcançava então o ponto maior de sua perfeição” (CARO-
ZZI, 2007: 16-17). Durante a primeira metade do século XI, o papado esteve
inextricavelmente preso a um forte enraizamento político regional (TOUBERT,
1973: 1022-1037; McQUILLAN, 2002: 20-21).

10 BÖHMER, 1102-1121, 1222-1230, 1299-1323, 1420, 1425-1436; WIPO. Gesta Chuonradi Impera-
toris. MGH SS rer. Germ. 61: 32-35; VITA LEONIS. PL, 143: 476-478.
Leandro duarte rust 153

Mas, no inverno de 1046, ao intervir sobre o triplo cisma, Henrique III


entronizou Suger, conde de Mörsleben-Hornburg e bispo de Bamberg, como
papa Clemente II. A escolha recaia sobre alguém duplamente comprometido
com o monarca. Como conde, o novo pontífice pertencia a uma estirpe tra-
dicionalmente partidária da dinastia reinante, os sálios: Herp, nome do avô
materno de Suger, figura entre as testemunhas do diploma com o qual o impe-
rador pôs fim a uma disputa entre as igrejas de Mainz e Hildesheim, no ano de
1013.11 Como bispo, sua importância era ainda maior. Suger foi pessoalmente
escolhido por Henrique para conduzir a igreja recentemente fundada pela re-
aleza, a Sé de Bamberg. Solenemente estabelecida em 1007, sob a aprovação
de trinta e cinco bispos reunidos por Henrique II em Frankfurt, aquela diocese
era uma espécie de “joia eclesiástica da coroa”, tendo recebido os mais ilustres
privilégios imperiais, que incluíam desde ricas terras até a guarda dos restos
mortais de seu majestoso fundador.12 Esses vínculos se mantiveram após 1046,
já que Clemente conservou o bispado de Bamberg durante todo o tempo que
foi papa (Ver ainda: JEEP, 2001: 39-41; ROBINSON, 2004: 5-6; WOOD, 2006:
299-300).
Com a entronização de Suger em Roma a coroa imperial consolidou o
que parecia ser uma frente de intervenções na península. À medida que seus
soldados avançaram pela paisagem rumo ao Lácio e ao imbróglio dos três pa-
pas, Henrique III unia os fios de uma dominação senhorial. Em setembro de
1046, sem enfrentar qualquer resistência, ele entrou em Verona e recebeu a
homenagem feudal de bispos e nobres. Entre os que se ajoelharam a seus pés
e juraram fidelidade estava um antigo vassalo paterno, Bonifácio, marquês da
Toscana e dono do poder hegemônico nas terras do norte.13 Em Pávia, uma
multidão de prelados compareceu à “gloriosa presença do rei” (gloriosi regis
praesentia), atendendo à convocação para celebrar um concílio geral (sinodus
generalis). A visão de tão esplêndida reunião de sacerdotes se tornou uma im-
pressionante demonstração de subordinação das elites locais: dos quase qua-
renta bispos presentes, cerca de trinta eram do norte peninsular, segundo as
atas do sínodo.14
Na mesma ocasião, Humfred, sacerdote suábio e chanceler imperial, foi
designado novo arcebispo de Ravenna, conforme vontade régia.15 A diocese

11
HENRIQUE II. Diploma 255. MGH D H 2: 296.
12
HENRIQUE II. Diplomas 143 e 144. MGH D H 2: 169-173.
13
DONIZO. Vita Mathildis. MGH SS 12: 371.
14
SYNODUS PAPIENSIS. MGH Const. 1: 94-95; HERMANN DE REICHENAU. Chronicon. MGH SS 5:
126; MANSI, 19: 617. Sobre a deposição do arcebispo de Ravenna ver: BENSON, 1968: 206-209. PE-
DRO DAMIÃO. Briefe 20. MGH Epp. 1: 199-202. Ver ainda: VÍTOR III. Dialogi. PL 149: 1005.
15
ANSELMO. Gesta Episcoporum Leodiensium. MGH SS 7: 224; BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum.
MGH Ldl 1: 585-586.
154 coLunas de são pedro

de Verona foi elevada ao status de “segunda Sé após a igreja de Aquileia”, cujo


patriarca – outro clérigo germânico, de nome Eberardo – se viu afrontado por
aquela promoção que conferia maior autonomia a uma igreja até então subor-
dinada à sua autoridade, que era agora diminuída ou, ao menos, colocada face
a face com uma nova liderança. Em janeiro, um concílio romano arrematou a
nova disposição dos poderes eclesiásticos: sob a égide de Henrique III, o papa
Clemente declarou a inferioridade hierárquica de Aquileia perante a Ravenna,
cujo arcebispo era o único a se “sentar à direita dos pontífices Romanos”.16 As
terras do norte tinham uma nova primeira Sé. Com isso, foi desfeita a decisão
proclamada em 1027 por João XIX e Conrado II que assegurava a Milão o pos-
to de primaz de toda a região.17 A partir de então, as igrejas da Toscana e da
Lombardia deviam obediência a Ravenna, cuja superioridade estava em clara
dívida com a autoridade imperial.
Aliás, o recém eleito arcebispo de Milão integrava o suntuoso séquito de
dignitários que galopavam com o rei de cidade em cidade. Elevado a pastor da
antiga igreja de Santo Ambrósio, Guido de Velate endossara as decisões toma-
das pelo imperador a respeito de Ravenna, envolvendo-se no rebaixamento de
sua própria diocese. Sua conduta subserviente deixava transparecer a incon-
tornável dependência da proteção imperial, única voz capaz de sustentar sua
posição. Guido era um arcebispo mal-visto, detestado por muitos oponentes
milaneses, cujas fileiras pareciam se multiplicar sem cessar desde 1045, ano
de sua eleição (GOLINELLI, 1998: 11-12). A presença do contestado arcebispo
evidenciava ainda mais que a incursão militar dos germânicos servia à cons-
trução “de um estrito controle sobre as três poderosas sés metropolitanas do norte
(...). O conceito de um reino imperial na Itália foi assim reforçado” (LUSCOMBE,
2005: 78).
Segundo o Chronicon Farfense, tendo chegado ao Lácio, Henrique de-
pôs o abade de Farfa, Almerico. O superior monástico havia recebido do rei a
tarefa de recolher junto à nobreza o pagamento do fodrum, taxa destinada a
prover as tropas teutônicas. O abade foi incapaz de dobrar a resistência dos
nobres, que se recusaram a pagar e ainda roubaram a maior parte das moedas
escassamente coletadas, deixando o monarca furioso. Almerico foi substituído
e muitos “magnatas dissuadidos” (magnatibus suadentibus) a pagar.18 Embora
o monarca tenha interferido nos assuntos de outras “poderosas corporações

16
Ut archiepiscopi Ravennates, nisi imperator assit, ad dextram pontificis Romani sedeant. MANSI,
19: 625. RPIVILEGIUM CLEMENTIS PAPAE CONCESSUM ARCHIEPISCOPUM RAVENNATI. RIS 1/2:
583; GUIBERTO DE RAVENNA. Epistola. PL 148: 828-829; JL 4141.
17
ARNULFO. Gesta Archiepiscoporum Mediolanensium. MGH SS 8: 12; MANSI 19: 479; JL 4083 .
18
GREGÓRIO DE CATINO. Chronicon Farfense. BALZANI, 2: 119.
Leandro duarte rust 155

monásticas” (HOWE, 1997: 3), como Monte Cassino,19 o episódio de Farfa fez
as elites senhoriais do Lácio se alarmarem. Sobretudo, porque seus temores
não cessaram com o pagamento do fodrum. Poucos meses depois, Henrique III
aprovou o novo abade, Berardo I, eleito pelos monges para substituir o desdi-
toso superior, já deposto.20
Trazida do outro lado dos Alpes por emissários monásticos, a notícia da
aprovação real logo se espalhou aos quatro ventos, indicando que o “gigan-
te monástico” reconciliava-se com a corte germânica. Nos ouvidos de muitos
poderosos, aquela mensagem soou como o preocupante anúncio da redução
da influência local sobre um ponto estratégico para a dominação senhorial.
Tradicionalmente atrelada aos condes de Galeria e aos Crescenzi,21 Farfa era
detentora de um patrimônio formidável que incluía possessões na Sabina e na
Lombardia, no ducado de Spoleto, na marca da Ancona, em dioceses como Su-
tri, Óstia, Narni, Nepi, Porto e a própria Roma. Fortuna que Berardo estenderia
para dimensões ainda mais prodigiosas: ao longo das quatro décadas de seu
abaciato (1047-1089), ele adquiriu cerca de oitenta igrejas rurais e mais de
trinta castelos e fortificações (STROLL, 1997: 26-49; BOYNTON, 2006: 11).
Todos esses domínios, até então mantidos no raio de influência das linhagens
do Lácio através dos privilégios e doações concedidos a Farfa pelos papas tus-
culanos Bento VIII, João XIX e Gregório VI,22 pareciam agora mais distantes,
cada vez mais próximos dos interesses imperiais. O inverno de 1046-1047 foi
palco de uma drástica redução da participação aristocrática no controle de
dois eixos políticos locais: a abadia Farfa e a Igreja Romana.
Se a disputa entre os três papas mergulhou a Igreja Romana em “uma
vasta crise” (CAPITANI, 1966: 29), o desfecho obtido pela intervenção imperial
foi o início de um momento ainda mais crítico para os aristocratas do centro
peninsular. A entronização de Clemente II coroou um conjunto de ações que
afetavam diretamente os fundamentos da dominação senhorial. A exemplo do
alto clero da Toscana-Lombardia e da própria Farfa, a Igreja de Roma tinha
agora sua lealdade apontada para fora do Lácio, para a política que emana-
va da Germânia. Na realidade, se incluirmos neste quadro algumas decisões
sobre postos nobiliárquicos, e não apenas eclesiais, constataremos que tal re-
orientação política se prolongou do norte ao sul, trespassou toda a península.
Pois antes de concluir a viagem, o novo imperador retirou o título de conde

19
CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 683.
20
GREGÓRIO DE CATINO. Chronicon Farfense. BALZANI, 2:120-121.
21
Os relatos deixados pelo abade Hugo ilustram como os condes de Galeria e os Crescenzi consoli-
daram seu poder na Sabina senhorializando áreas pertencientes ao monastério de Farfa: HUGO DE
FARFA. Destructio Monasterii Farfensis & Exceptio Relationum. BALZANI 1: 25-51; 59-70.
22
Italia Pontificia, 2: 62-64.
156 coLunas de são pedro

de Cápua das mãos de Gauitmar de Salerno e o confiou a um aristocrata de


passado lombardo, chamado Pandulfo (McQUILLAN, 2002: 22).
Ao reter a palavra final sobre a escolha do verdadeiro pontífice, Henri-
que aplicara no Lácio a fórmula empregada por seus antepassados para com-
prometer bispos e abades com a unidade imperial. Aos olhos dos poderosos
locais, este compromisso implicava em servir a um poder que tradicionalmen-
te depositava a ênfase de sua autoridade na retomada de terras e direitos
fiscais (REUTER, 1982: 347-374) e que, recentemente, dera provas suficientes
de possuir uma férrea inclinação para tirar proveitos do fato de um bispo ou
abade dever seu posto à boa graça do monarca (WEINFURTER, 1999: 89-93),
como se viu em Farfa. A aclamação do bispo de Bamberg como supremo suces-
sor dos apóstolos foi um duro golpe político para as grandes famílias do centro
italiano: o papado deixava de ser “um ponto de equilíbrio entre as famílias da
aristocracia romana” (CANTARELLA, 2006: 37). Ele já não era mais romano. E
aquelas linhagens, até então divididas por agressivas competições senhoriais,
passavam a ter algo em comum: a Sé Apostólica como uma esfera de lealdades
e interesses divergentes dos seus.
O inverno de 1046 marcou a subtração do papado à influência direta da
aristocracia romana. Perda evidenciada pela iniciativa imperial de incorporar
o título de patricius romanorum à coroa imediatamente recebida das mãos de
Clemente. Meramente honorífico no passado, quando foi conferido a Pepino, o
Breve, pelo papa Estevão II, em 754, o título agora implica em muito mais do
que anunciar o “Protetor da Igreja” (Defensor Ecclesiae) (NOBLE, 1984: 278-
291). Pelas mãos dos Crescenzi, que o ostentaram desde 988, ele adquiriu ine-
quívoco peso discricionário e indicava o detentor do governo sobre a cidade
de Roma. Isto significava que, ao invocá-lo, Henrique reclamou a prerrogativa
de “designar os papas”.23 O imperador deixava claro que sua vontade não se
limitaria ao caso de Clemente II: ele continuaria a ditar a sucessão papal.
Com efeito, firmava-se no Lácio uma realidade que muitos estudiosos
consideram incomum para o século XI: Roma tornou-se uma igreja privada de
ancoragem senhorial, alheia às principais reservas locais de proteção militar e
sustentação material. Expliquemos melhor.
Segundo uma recente historiografia, nesta mesma época o Ocidente foi
conquistado por paisagens regionais modeladas por uma crescente comple-
mentariedade de interesses entre os senhores laicos e o clero dirigente das
igrejas. Estas alianças decorriam de amplas transformações. Em Naissance du
Cimetière, Michel Lauwers (2005: 269-274) afirma que a partilha das origens

23
ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 469; PEDRO DAMIÃO. Disceptatio Synodalis Inter Regis Advocatum
et Romanae Ecclesiae Defensorem. PL, 145: 71
Leandro duarte rust 157

aristocráticas viabilizava a cooperação entre laicos e eclesiásticos na produção


de uma espacialização dos laços sócio-religioso, facilitando um estreitamento
das identidades coletivas, cada vez mais enraizadas nos núcleos de concen-
tração demográfica que então se formavam pela Europa. Em busca de segu-
rança e estabilidade, populações inteiras moviam-se na direção dos “espaços
sagrados”, lugares como altares, cemitérios ou santuários, onde as interdições
religiosas e a persuasão da sacralidade normatizavam as eclosões da violência
e da opressão, amenizando os riscos à vida coletiva. Formavam-se grandes
comunidades dominadas por fortes sentimentos de territorialidade, dando
origem a nichos demográficos sobre os quais eram tecidas novas formas de
dominação senhorial. A fixação espacial e a integração social propiciada pelos
“enclaves do sagrado” favoreciam uma acentuada senhorialização das rela-
ções sociais, para a qual convergiam as elites laicas e clericais. Era o processo
de inecclesiamento (Ver também: FOSSIER, 1982: 190-251; TOUBERT, 1973:
321-532; IOGNA-PRAT, 2006: 309-398).
A Igreja de Roma, por seu turno, seguiu um rumo diferente, talvez opos-
to: seu novo bispo, um aristocrata germânico, foi o pivô de grave desacordo
entre o grupo eclesiástico incumbido de conduzi-la e os círculos senhoriais que
a envolviam. O papado tornava-se um reduto de clérigos desprovidos de uma
profunda inserção no mundo da economia rural da Itália medieval.
A divergência se alastrou no Lácio e foi tanto um obstáculo para a au-
toridade papal como para a perpetuação do modo de vida aristocrático. O
útil estudo de Luigi Provero, L’Italia dei Poteri Locali, nos ajudará a ver mais
amplamente a questão. Segundo o autor (2010: 68-92), na península itálica
do século XI, o patronato aristocrático sobre as igrejas era, frequentemente, o
pressuposto de diversas formas de dominação, que incluíam desde a completa
constituição de um senhorio territorial até um poder mais fraco, estendido so-
bre uma vila ou cidade sem grande capacidade de coação. Mais especificamen-
te, uma igreja episcopal como a de Roma era um dos principais veículos de que
dispunham as linhagens senhoriais para levar à cabo uma legítima apropria-
ção dos direitos condais vinculados à autoridade imperial. Isto em razão dela
ser o vértice espiritual da comunidade de fiéis e a detentora de antigas com-
petências judiciárias e militares. Exercer o controle familiar direto sobre a Sé
episcopal (como fizeram os condes de Tusculum) ou mantê-la presa a vínculos
clientelares (caso dos Crenscenzi) era fundamental para o pleno cumprimento
da atividade fiscal, do controle fundiário, enfim, para a articulação patrimo-
nial das elites locais. No chamado “feudalismo italiano” a constituição das sig-
norias não avançava se os potentes de uma região cultivavam animosidades ou
oposições aos antigos detentores dos “poderes públicos”, o bispo ou o vassalo
imperial. A dominação senhorial não podia, simplesmente, substituir a autori-
158 coLunas de são pedro

dade vigente: ela devia antes alimentar-se dela (PROVERO, 2010: 92-113. Ver
ainda: TOUBERT, 1973: 937-1082; PASTOR, 1984: 175-199; TABACCO, 1989:
209-212; MALPICA & QUESADA, 1994: 31-50; WICKHAM, 1998: 307-344;
BONNASSIE, 2001: 67-77; FELLER, 2002: 153-174).
Em meados do século XI, o bispo de Roma passou a manter laços clien-
telares com interesses que existiam do outro lado dos Alpes. Isso aconteceu
precisamente na época em que tais relações eram cada vez mais percebidas
não somente como laços de prestígio, mas como “garantias suficientes para o
exercício de certos direitos feudais e a conservação da estabilidade patrimonial
dos poderes senhoriais” (PROVERO, 2010: 75-76). Portanto, ao ver passar para
outras mãos a capacidade de indicar o bispo romano, os senhores do Lácio
perderam muitíssimo. Seu poder e seu modo de vida estavam seriamente ame-
açados. Entre eles e a sobrevivência do modo de vida herdado de seus pais er-
guia-se agora um obstáculo inesperado: um bispo germânico em pleno Lácio,
uma diocese presa a interesses distantes, uma igreja fora de seus domínios.

3.3. Tomar as rédeas da política

Quando o imperador tomou o caminho de volta em direção à terra dos


teutônicos, ele deixou para trás o que parece ser uma ordem social fraturada,
se comparada à “lógica global” do inecclesiamento. A partir de então Roma
tornou-se o centro de disputas ainda mais acirradas e intensas do que aquelas
que desaguaram no imbroglio do tríplice cisma de 1044-1046. Pois agora, os
principais círculos senhoriais locais tinham na Sé Apostólica um poder alheio,
estranho, conduzido segundo metas divergentes das suas. E não tardou para a
aristocracia reagir pela restauração da antiga ordem.
Em novembro de 1047, Clemente faleceu sob circunstâncias suspeitas.
Sinistros rumores saltavam de cidade em cidade, atribuindo sua morte a um
líquido letal misturado em sua bebida a mando de Bento IX, papa e conde de
Tusculum.24 Se o envenenamento foi a resposta do tusculano à sua deposição,
decretada pelo protetor de Clemente, provavelmente nunca saberemos. Mas,
de fato a morte do germânico abriu-se novamente a cena política. Contudo,
desta vez o tusculano não se limitou a acionar o apoio familiar: as aspirações
de Bento ao papado vinham encorajadas pelas tropas de Bonifácio, o mar-
quês da Toscana. Roma ficou em seu poder por nove meses, até seu principal
aliado abandoná-lo após ceder à ameaça imperial de invadir a península. Sob
pressão, o marquês optou por assegurar a entronização de Poppo,25 bispo de
24
LUPO PROTOSPATARIUS. Annales. MGH SS 5: 59; Liber Pontificalis, 2: 273; HERMANN DE REICHE-
NAU. Chronicon. MGH SS 5: 127.
25
ANNALES ROMANI. MGH SS 5 : 469 ; BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 587.
Leandro duarte rust 159

Brixen e escolhido de Henrique para a sucessão papal. A presença do novo


pontífice perpetuaria a vinculação da Sé Apostólica ao Império: Poppo – que
tomou o nome de Dâmaso II – provinha da ilustre casa de condes palatinos
da Baviera e o nome de seu pai está listado entre as testemunhas de doações
fundiárias realizadas pela coroa.26 Como seu antecessor, Dâmaso estava à fren-
te de uma diocese intimamente ligada à dinastia dos sálios, afinal, seria em
Brixen que Henrique IV proclamaria a deposição de Gregório VII.27 Relações
de dependência estabelecidas em solo germânico continuavam fluindo para o
interior da Sé Romana.
Todavia, alguns aspectos desta trama de eventos merecem grande des-
taque. Para isso, tentaremos redizê-la. Entre 1047 e 1048, um ano após a
correlação de forças políticas no centro península ser decisivamente alterada
por uma intervenção imperial, surgiu uma aliança improvável para aquelas
regiões sempre coalhadas de hostilidades senhoriais. Os condes de Tusculum
uniram-se a um ramo aristocrático da Toscana, não apenas distante, mas que
não contava com um histórico relevante de atuações no Lácio ou mesmo na
Sabina, como deixa claro o monge Donizo, cronista da linhagem de Bonifá-
cio.28 Mas não só isso. O aliado em questão era ninguém menos do que um
vassalo devotado, de longa data, a uma “constante lealdade” imperial (LUS-
COMBE, 2005: 77), o “maior partidário do governo germânico na Itália” (GRE-
GOROVIUS, 4/1: 54-55), o homem que nos anos 1030 havia sufocado revoltas
em nome de Conrado II (GUALAZZINI, 1933: 67-83; WOLFRAM, 2006: 125-
131). Tendo renovado sua fidelidade em 1046, o marquês tomou parte de
uma orquestração de forças que visava interromper a política de seu suserano
recolocando no papado o clérigo que ele próprio havia ajudado a depor por
simonia, banir e substituir pelo bispo de Bamberg: Bonifácio estava entre os
acompanhantes de Henrique III quando ele apeou Bento IX do trono apostó-
lico (COWDREY, 1998: 23-25). Estava em curso uma drástica reorientação de
lealdades. Sua magnitude repercutia a extensão da cisão política provocada
pela intervenção imperial e, ao mesmo tempo, revelava as dimensões inco-
muns da mobilização aristocrática deflagrada para reverter a imposição do
papado germânico.
Os longos meses durante os quais o trono apostólico foi disputado e as
dificuldades fiscais causadas pelos Tusculanos e os Crescenzi (DUCHESNE,
1904: 381-390) avivaram a realidade de que o Lácio não ofereceria garantias
suficientes para o exercício do poder pontifício enquanto a Igreja romana es-

26
EX VITA SS MARINI ET ANNIANI. MGH SS 15/2: 1069.
27
Assim como Clemente II: ANNALES AUGUSTANI. MGH SS 3: 130; BONIZO DE SUTRI. Liber Ad
Amicum. MGH Ldl 1: 604-613; DECRETUM SYNODI. MGH LL 2: 51-52.
28
DONIZO. Vita Mathildis. MGH SS 12 : 360-372.
160 coLunas de são pedro

tivesse em mãos germânicas. Tampouco o bispo de Roma poderia contar com


os círculos senhoriais para a formação de quadros eclesiásticos confiáveis e
preencher funções-chave da estrutura de governo episcopal. Este foi o legado
recebido por Leão IX, o terceiro bispo germânico designado por Henrique III
para ocupar a cátedra de Pedro. Nascido na estirpe dos condes de Egisheim
& Dagsbourg, Leão, ou antes Bruno, seu nome de batismo, aprendera com os
antepassados a desempenhar o papel de patrono de monastérios na Alsácia.29
Segundo Hans Hummer (in: BORWN & GÖRECKI, 2001: 69-84), renovando
este patronato de geração em geração, seus ancestrais cultivaram um forte
senso dinástico e protagonizaram “a mais extraordinária continuidade de uma
família durante a Idade Média, estendendo-se do século sétimo ao décimo tercei-
ro”. O novo papa era ainda primo do imperador Conrado II (MUNIER, 2002:
30; WILLIAMS, 2004: 18-19). A Gesta Chuonradi Imperatoris narra o episódio
em que o pai de Bruno pagou um alto preço por sua consaguinidade ao tornar-
se alvo de ataques que visavam desestabilizar a coroa:

Ernesto, duque da Alammania, enteado do imperador Conrado, há pou-


co exaltado por ele com benefícios e dádivas, desertou e, sob a instigação
do Demônio, promoveu uma nova rebelião. Pelo conselho de alguns dos
seus vassalos, ele devastou a província da Alsácia e deixou desolados os
castelos de conde Hugo, que era parente do imperador.30

Quando a rebelião ocorreu, em 1027, Bruno já havia sido investido bis-


po de Toul, igreja cujo rico patrimônio vinha sendo assegurado por diplomas
imperiais emitidos desde o tempo de Oto I.31 Como seus predecessores, Bruno
se manteve bispo germânico mesmo após ter assumido o papado. Quem o
revela é a própria Vita Leonis Papae, ao afirmar que ele deixou o episcopado
de Toul apenas em 1051, quando já acumulava três anos como sucessor apos-
tólico.32 Durante este tempo, Bruno empenhou todos os meios em seu poder
para assegurar a santidade a Gerardo de Toul (962-994), um de seus predeces-
sores no bispado imperial: ordenou a escrita da Vita Sancti Gerardi Tullensis,
a canonização de Gerardo em 2 de maio de 1050 e o translado de seus restos
mortais para a basílica de Toul, onde foram depositados como relíquias em

29
VITA LEONIS. PL, 143: 478-484; GESTA EPISCOPORUM TULLENSIUM. MGH SS 8: 644.
30
Ernestus dux Alamanniae, privignus imperatoris Chuonradi, nuper ab eo beneficiis et muneribus su-
blimatus discedens, iterum instigante diabolo rebellionem moliebatur et consilio quorundam militum
suorum Alsatiam provinciam vastavit et castella Hugonis comitis, qui erat consanguineus imperatoris,
desolavit. WIPO. Gesta Chuonradi Imperatoris. MGH SS rer. Germ. 61: 39.
31
OTO I. Diploma 92. MGH DD O I: 174-175; OTO II. Diplomas 62 e 99. MGH DD O II: 71-73, 112-
113; OTO II. Diploma 2. MGH DD O III: 395-396.
32
VITA LEONIS. PL, 143: 496.
Leandro duarte rust 161

outubro do mesmo ano.33 Em síntese, o vínculo eclesiástico e o parentesco do


novo pontífice indicavam que a Sé de Roma continuaria a orbitar no mundo
da alta nobreza germânica.
No Lácio, porém, a realidade encontrada por Leão IX foi drasticamente
diferente. Lá ele seria um bispo acossado pelos poderes dominantes na terri-
torialidade imediata de sua diocese, que permanecia sitiada pela necessidade
emergencial de voltar-se para fora de seus próprios limites. Destacar este pro-
blemático enquadramento social da Igreja romana é vital para a compreensão
de um notório capítulo da história do papado: o empenho do novo papa para
cercar-se de um séquito de colaboradores oriundos do outro lado dos Alpes.
Os nomes mais conhecidos são Azelin de Compiègne, Humberto de Moyen-
moutier, Hugo de Rémiremont, Hildebrando de Soana e Frederico de Liège.
Malcom Barber (2004: 84) age como porta-voz da historiografia quando afir-
ma que estes homens foram recrutados graças à sua devoção, por serem “ze-
losos reformadores” (Ver ainda: BLUMENTHAL, 1988: 70-71; MORRIS, 2001:
86; LOGAN, 2002: 109; MUNIER, 2002: 114; CUSHING, 2005: 66; AZZARA,
2006: 51; COLLINS, 2009: 202-204).
Todavia, observemos as funções outorgadas a estes homens de confian-
ça: Azelin foi feito cardeal bispo de Sutri; Humberto e Hugo foram elevados
a cardeais, o primeiro de Silva Cândida e o segundo de São Clemente; a Hil-
debrando, que retornava do exílio na Germânia após a morte de seu mestre,
Gregório VI, foram entregues as prerrogativas de subdiácono, guardião do
altar de São Pedro e rector do monastério de São Paulo fora dos Muros; por
fim, Frederico foi alçado a cancellarius et bibliothecarius.34 Persistamos neste
foco, observando um pouco mais de perto.
Com a investidura de Azelin, Leão IX deslocou a igreja de Sutri do
controle das famílias senhoriais locais. Com isso, ele potencializou, ao
norte de Roma, um contrapeso à influência aristocrática amplamente
irradiada ao sul, a partir da fortaleza de Tusculum, e que recobria as
áreas do Valle Latino e os bispados de Albano e Segni. Nestas áreas, o
poder dos condes tusculanos estava profundamente enraizado desde o
pontificado de Bento VIII, época em que eles cobriram suas terras com
diversas igrejas e vincularam a si os grandes monastérios por meio de
constantes doações fundiárias, criando “uma rede de controle territorial
[que] minava do interior a antiga estrutura organizacional diocesana”
(BEOLCHINI, 2006: 64). Cravada como ponto de passagem da via Cas-
sia, Sutri permitia monitorar a rota que dava acesso aos portões roma-

33
VITA LEONIS. PL, 143: 493-495; WIDRICO. Vita Sancti Gerardi Episcopi Tullensisi. MGH SS 4: 490-505.
34
BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 588; VÍTOR III. Dialogi. PL, 149: 1143.
162 coLunas de são pedro

nos a partir da Toscana e da Lombardia: a habitual passagem para o


Império.35
Passemos aos demais cardeais. Humberto vinha de um monastério
(Moyenmoutier) pertencente à diocese da qual Leão continuava bispo mesmo
depois de entronizado papa. A subordinação daquela casa monástica à auto-
ridade episcopal de Toul contava com décadas de solidez, como permite ver
o diploma de Oto II em que Moyenmoutier aparece como parte integrante do
“domínio da Igreja de Toul perpetuamente mantido”.36 Ao escolher o novo car-
deal de Silva Cândida, o pontífice elegeu um monge acostumado a devotar-lhe
obediência para residir na Insula Tiberina, como cabia ao detentor daquele tí-
tulo. Como tal, Humberto habitaria um ponto estratégico para a mobilidade e
as comunicações no interior citadino (PARTNER, 1972: 126; KRAUTHEIMER,
1980: 149-150, ROBINSON, 2004: 143-144) e se instalaria nos arredores do
Trastevere, área de usual influência do conde de Galeria, aliado tusculano
(McQUILLAN, 2002: 39). Esse prestígio remontava aos governos de João XIX
e Bento IX – dois papas tusculanos –, quando foi assegurado aos antigos car-
deais de Silva Cândida privilégios que incluíam o controle sobre monastérios
romanos e o posto de bibliothecarius apostólico, segundo registros da Italia
Pontificia.37 Além disso, Humberto não tomava o lugar de um cardeal qual-
quer, mas de um clérigo que portava o sugestivo nome de “Crescêncio”. Ao de-
signar o novo cardeal, Leão IX buscou produzir uma substituição de comando,
conquistando uma prestigiada posição de poder.
Importância semelhante foi atribuída a Hugo. Igualmente originário de
um círculo de monges da diocese de Toul (Rémiremont), ele foi encarregado
de conduzir a basílica de São Clemente, localizada nos arredores do palácio
lateranense. Com isso Hugo reforçaria a teia de aliados pontifícios nas proxi-
midades do ponto nevrálgico da administração romana, o palácio episcopal de
Latrão. O papa protegia-se. A exemplo do que ocorria com o posto de prefeito
de Roma (praefectus), e com os títulos de duque (dux) e cônsul dos roma-
nos (consules romanorum), os ofícios lateranenses permaneciam ocupados por
membros da elite local e Leão passaria seus dias rodeado por adversários, por
notários (notarii) e juízes (Judices Ordinari, Judices Dativi, Judices Palatini)
de pouca confiança (BAGLIANI, DHP: 505, 1996: 71; HALPHEN, 1974: 01-52
WEBB, 2002: 87-92; BEOLCHINI, 2006 : 65-68). Manter um aliado por perto
era crucial, em tudo providencial.

35
CAPPELLETTI, 1: 107-108; LEONIS IX PAPAE. PL, 143: 491-492; Italia Pontificia, 2: 37-47.
36
Dominio Tullensis ecclesiae perpetualiter tenenda. OTO II. Diplomas 62. MGH DD O II: 72.
37
Italia Pontificia, 2: 20-27. E ainda: VITA LEONIS. PL, 143: 496; GREGOROVIUS, 4/1: 48-49; MANN,
5: 160.
Leandro duarte rust 163

Logo no início de 1049, Airardo, abade de São Paulo fora dos Muros, foi
escolhido bispo de Nantes, deixando vaga a direção do monastério. Leão IX ra-
pidamente tratou de preenchê-la, oferecendo o posto de rector a Hildebrando
de Soana.38 Forçado ao exílio pela mesma decisão que depôs Gregório VI em
1046, o escolhido do papa vinha de uma longa temporada na Germânia, onde
se fizera cônego regular em Colônia – não monge de Cluny, como ainda afir-
ma grande parte da historiografia (COWDREY, 1998: 29; STACPOOLE, 1963:
142-164, 254-272; SARANYANA, 2006: 388). O posto de rector somava-se
ao de “guardião do altar de São Pedro”. Embora possa parecer uma função
meramente litúrgica, o guardião era o detentor de inúmeras prerrogativas fun-
diárias e fiscais. Tratava-se de um expressivo posto de poder patrimonial. Que
acabava de ser engrandecido pelo título de rector monástico.
Afinal, além de partilhar do passado constantiniano das basílicas de São
Pedro, São João de Latrão e Santa Maria Maior, o monastério de São Paulo
fora dos Muros destacava-se por estar aninhado na cidadela de Giovannipoli,
na rota capital de acesso à Igreja e ao porto de Óstia. Seu patrimônio fundiário
incluía o Collinense, o Capenate, territórios na diocese de Sutri, os povoados
de Leprignano, Civitucola, Formello, Morlupa e Vacareccia, além de terras em
Grossetano, Civitavecchia, Albano, Ariccia, Longhezza e Galeria – esta última
a sede do poder dos condes de Galeria. Não deixemos escapar um aspecto
crucial: São Paulo fora dos Muros estava ligado à igreja de Sutri, recentemente
conferida a Azelin. O alinhamento destes dois centros num mesmo eixo de
lealdade não nos parece fortuito. Ao contrário, ele delineava um corredor ter-
ritorial diretamente atrelado ao poder papal no sentido oeste-norte de Roma,
precisamente na direção oposta de onde reinavam os condes de Tusculum, o
leste e o sul romanos. O papado arquitetava um contrapeso político ao domínio
senhorial local, arranjo de poder no qual a abadia de Farfa figuraria, ainda mais
do que antes, como fiel da balança. Isso talvez revele as razões por trás das ge-
nerosas concessões e confirmações oferecidas por Leão IX a Berardo logo nos
primeiros meses de pontificado, assegurando à abadia terras aráveis (fundos),
igrejas (ecclesias), prerrogativas fiscais sobre vias e estradas (thelonea), dízimos
(decimas), oblações (oblationes) e bens móveis (bona) em diversas localidades,
como Sabina, Narni e Formello – está última já em poder de Hildebrando.39
Por fim, ao nomear Frederico, arquidiácono da igreja de São Lambert
em Liège, para a chancelaria papal, Leão destinou a custódia de todos os regis-

38
VÍTOR III. Dialogi. PL 149: 1143; Liber Pontificalis, 2: 275.
39
Italia Pontificia, 2: 64-65. O poder material exercido por Hildebrando atingiu tamanha proporção,
que o cardeal Beno se valeu dele para acusar o subdiácono de Leão IX de ceder à corrupção das rique-
zas terrenas, colocando-o nos umbrais da haeresia simoniaca: BENO DE SS. MARTINO E SILVESTRO.
Gesta Romanae Ecclesiae contra Hildebrandum I. MGH Ldl 2: 378.
164 coLunas de são pedro

tros escritos da Igreja de Roma ao irmão do duque da Lotaríngia, Godofredo


o “Barburdo”, um vassalo imperial com pretensões sobre a península.40 Entre
outubro de 1050 e janeiro de 1051, o primicério de Toul, Udo, tomou parte na
condução da chancelaria: sua relação pessoal com papa pode ser facilmente
atestada pelo fato de que ele foi o indicado por Leão para substituí-lo em seu
bispado germânico. O autor da Vita Leonis enfatiza de tal forma o envolvimen-
to do papa nesta designação que simplesmente omite qualquer referência à
participação do clero e do povo da diocese – como exigia a tradição canônica
renovada pelo próprio Leão no concílio de Reims, em outubro de 1049.41 Para
o biógrafo, a elevação de Udo resultava de sua designação pelo pontífice e da
investidura realizada por Henrique III.42
A historiografia se acostumou a olhar para este séquito de colabora-
dores e ver uma “vanguarda reformadora”, um grupo reunido pela busca de
Leão IX por cercar-se das mais aguçadas consciências acerca das liberdades
eclesiásticas e dos mais zelosos espíritos disciplinadores. “O propósito deste
recrutamento era prover Leão com os meios para um ambicioso ataque contra
os abusos no interior da Igreja ocidental”, disse Collin Morris (2001: 86) resu-
mindo um ponto de vista amplamente difundido. Mesmo que tenha sido este
o caso, não podemos permitir que as razões de “espiritualidade” ofusquem o
sentido prático e estratégico da inserção destes aliados na cadeia de controle
das rendas e posses apostólicas. Mais do que atender a um abstrato projeto de
purificação da “igreja ocidental”, as ações de Leão respondiam a um desafio
local, imediato e inadiável: dotar o papado de uma nova rede clientelar inter-
na e fortalecê-la com lealdades antigas, trazidas de anos antes para restaurar
a dominação patrimonial desfeita no inverno de 1046.
De fato, os registros documentais oriundos das décadas de 1050 e 1060
convergem para um mesmo apontamento: atribuir ao grupo leonino a busca
pelo controle de Roma. Empenhados em provar a origem divina da causa de
Urbano II no cisma com Clemente III, e de convertê-lo e sucessor direto de
Leão IX, foram os escritores posteriores a 1100 que apresentaram a ascensão
do bispo de Toul como motivada, fundamentalmente, pelo desejo de purifica-
ção da ecclesia cristã (McQUILLAN, 2002: 44). Autores como Bonizo de Sutri
(Liber Ad Amicum) e Paulo de Bernried (Vita Gregorii VII) re-apresentaram o
governo leonino de modo a engrandecê-lo. Ao reclamarem aquele pontificado

40
BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 588, Liber Pontificalis, .
41
O primeiro cânone do concílio estabeleceu: “Que ninguém se arrogue o governo de uma Igreja sem
ter sido eleito pelo clero e pelo povo”. Tradução de: Ne quis sine electione cleri & populi ad regimen
ecclesiasticum proveheretur. MANSI, 19: 741. ANSELMO DE SÃO REMÍGIO. Historia Dedicationis Ec-
clesiae S. Remigii. PL 142: 1410-1440.
42
VITA LEONIS. PL, 143: 496.
Leandro duarte rust 165

como herança, eles o recriaram tornando-o espiritualmente louvável, moral-


mente sublime. Nossa opinião é de que, partilhando das reformas como lin-
guagem comum aos extratos clericais do medievo, Leão se lançou a uma tarefa
excepcional: enfrentar a dissidência senhorial no interior de sua própria igreja
e assumir as rédeas da política no centro-peninsular.
O argumento reforça-se quando observamos o alinhamento político
existente entre outras concessões papais. Nos primeiros anos de seu pontifi-
cado, Leão confirmou diversas possessões (earum possessionibus) ao clero de
São Pedro do Vaticano, São João de Latrão e São Paulo fora dos Muros, aos
quais reconheceu ainda a prerrogativa de erguer novas igrejas (facultatem in
propris fundis ecclesias construendi).43 Tratava-se das três maiores congrega-
ções clericais de Roma, cujo apoio, encorajado por aqueles privilégios, seria
vital para a instalação dos partidários do prelado germânico. Talvez encoraja-
do por este êxito, em outubro de 1051, Leão tomou uma decisão audaciosa.
Ele visitou o centro religioso do poder tusculano na Campagna: o monastério
de Subiaco. O Chronicon Sublacense afirma que a viagem provocou a fuga do
abade,44 o que teria permitido ao papa reunir um concílio e instalar um novo
rectore, Umberto, outro aliado germânico. A documentação parece respaldar a
conclusão apresentada por Stephen McQuillan (2002: 38) no memorável livro
The Political Development of Rome 1012-85: o episódio de Subiaco indica que
“Leão IX buscava aliados na Campagna sob o propósito de isolar os tusculanos”.
Podemos nos deixar levar pela linguagem dos documentos e apontar a
montagem deste círculo de aliados pontifícios como o ato inaugural de uma
busca pela supremacia do poder espiritual na Cristandade, mas não podemos
negar que a mesma iniciativa pôs em prática uma política de âmbito regional
e plenamente “feudal”: uma refundação da inserção senhorial do bispado ro-
mano. As inclinações dos agentes históricos para a “Reforma” não devem nos
impedir de constatar que a autoridade apostólica respondia, astuciosamen-
te, ao desafio lançado pela intervenção imperial de anos atrás: concretizar a
“emergência de uma liderança coletiva” pelas mãos de um clero não-romano
(TELLENBACH, 2000: 146).45

43
Italia Pontificia, 1: 25 (Latrão), 139 e 140 (São Pedro), 168 (São Paulo).
44
CHRONICON SUBLACENSE. RISS 24: 932. Ver ainda: Italia Pontificia, 2: 92.
45
Bonizo de Sutri sugere que a redistribuição das dignidades eclesiásticas romanas, operada por Leão
IX, não ficou restrita ao alto escalão, tendo alcançado considerável amplitude: “Enquanto isso, em
Roma, bispos, cardeais e abades, que tinham sido ordenados através da heresia simoníaca, eram depostos
e outros de várias províncias eram ordenados em seus lugares”. Interea Romae episcopi et cardinales,
et abbates, per symoniacam haeresim ordinati, et ibi ex diversis provinciis alii ordinabantur. BONIZO
DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 588. No século XI, o termo cardinalis era de uso flexível e
abrangente, designando todo o clero do entourage papal situado entre o diaconato e o episcopado. Ver:
KUTTNER, 1945: 129-214.
166 coLunas de são pedro

Ao seguir esta orientação política, o governo leonino aprofundou a ci-


são existente entre o papado e a aristocracia do Lácio. A formação daque-
le alto escalão clerical acirrou ainda mais as diferenças, que em nada foram
amenizadas pelo curtíssimo pontificado de Dâmaso II. Vinte e três dias após
consagrá-lo, Roma o matou: com a malária, conforme sugeriu Pedro Damião,46
ou através de outro envenenamento tramado por Bento IX, versão preferida
por muitos historiadores (GREGOROVIUS, 4/1: 73; HEFELE-LECLERCQ, 4/2:
992-993; MUNIER, 2002: 106).
Quase sete meses depois, quando um sucessor finalmente entrou em
Roma o clero papal ainda respirava aquele antagonismo acre. Era Leão. Sua
entronização iniciou um “longo período de combates pelo território, durante o
qual o pontífice organizou uma série de missões punitivas na área tuscolana vi-
sando destruir a base do poder econômico da família” (BEOLCHINI, 2006: 72).
A Vita Leonis recorda o ataque liderado pelo papa às fortalezas da família de
Tusculum, a devastação dos campos, vinhas e árvores.47 Seguindo à risca uma
tradição do episcopado germânico, o novo bispo de Roma recorreria à conces-
são de benefícios para recrutar e manter um corpo de homens armados, seus
próprios milites.48
Mas a espada era apenas uma das armas empunhadas pelo pontífice,
que atacou em outras frentes. Pouco antes, em abril de 1049, Leão recorreu
a um sínodo romano em busca de apoio para sua política local (CAPITANI,
1966: 149-182) e obteve a excomunhão de Bento IX.49 Anos depois, ele se pôs
a confirmar certas possessões da abadia de Subiaco no interior do território
tusculano: a imunidade monástica deveria ser um obstáculo para as prerroga-
tivas senhoriais. É o que indica o Regesto Sublacense.50
Mas, décadas de dominação aristocrática não seriam desfeitas tão ra-
pidamente. A nova cúpula papal estava cercada por fileiras de subordinados,
laicos e clericais, que ainda gravitavam em redor do mando das grandes fa-
mílias romanas, povoando os postos clericais auxiliares. De tempos em tem-
pos, os tusculanos eram atacados e tinham seu patrimônio assolado, mas era
o papa quem batalhava contra uma rotina de desconfianças, passando seus
dias rodeado por sacerdotes pouco confiáveis e por notários desleais. Essas
tensões não passaram despercebidas aos contemporâneos, que as registraram

46
PEDRO DAMIÃO. De Abidicatione Episcopatu. PL 145: 432. E ainda: ANNALES AUGUSTANI. MGH
SS 3: 126; ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 469.
47
VITA LEONIS. PL, 143: 488-499.
48
ANNALES BENEVENTANI. MGH SS 3: 179; ANNALES ROMANI. MGH SS 5 : 469-470.
49
BERNOLDO. Chronicon. MGH SS 5: 426; BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 588;
HERMANN DE REICHENAU. Chronicon. MGH SS 5: 128; MANSI, 19: 721-724; VITA LEONIS. PL 143:
491-492.
50
Regesto Sublacense, 55-62.
Leandro duarte rust 167

em sua forma mais letal: o risco de morte exalando pelas igrejas de Roma. Nos
anos 1050 propagou-se pela península uma estória capturada por Bernoldo
de Constance na escrita do Chronicon. Nela um papa germânico era salvo por
intervenção divina do envenenamento premeditado por um subdiácono.51 Ao
apresentar uma modesta figura clerical tramando contra a vida do sumo pon-
tífice, esta narrativa reproduziu a divisão interna do papado, à época agravada
pelo governo leonino: um alto clero não-romano versus o baixo clero romano.
Enquanto proeminentes postos de poder eclesiástico eram reservados para ho-
mens vindos de fora do Lácio, o baixo clero persistiu leal à aristocracia local.
A imagem de subdiáconos romanos destilando um ódio mortífero pa-
rece ter sido a maneira adotada por cronistas papais, como Bernoldo, para
representar os antagonismos de um círculo eclesiástico onde líderes e subordi-
nados enfrentavam sérios obstáculos na constituição de uma comunidade de
interesses. Uma fratura sócio-política alastrava-se no interior da Igreja romana
como uma oposição eclesiológica. O clero citadino (clerus urbis), formado pe-
los paroquiais e sacerdotes responsáveis pela densa malha eclesial da cidade,
opunha-se à “santa igreja romana” (sancta Romana Ecclesia), identificada com
o pontífice, os cardeais e os altos membros da Cúria lateranense, não mais cita-
dinos, não mais locais. Conforme afirmou Tommaso Falconieri (2002: 42), “a
‘Sancta Romana Ecclesia’ dos séculos alto-medievais conhecia tal divisão interna,
mas tal grupo não era uma fratura real”. No século XI, este grupo se tornou tão
real quanto a vida que colocavam em risco de emboscadas e envenenamentos.
Análise semelhante pode ser aplicada sobre outro episódio. Em 1053,
Leão reuniu um sínodo em Mantua que terminou desastrosamente ao ser ata-
cado por bispos lombardos e suas familias. Segundo a Vita Leonis, a assembleia
foi brutalmente interrompida por uma invasão de “homens odiáveis a Deus”,
resultando em membros da comitiva papal feridos por uma “tempestade de
flechas e pedras” que rasgou os ares.52 Como revelaria de maneira ainda mais
trágica a história da Pataria, Mantua situava-se em uma região – a Lombardia
– caracterizada por uma estreita dependência entre o episcopado e a aristocra-
cia local. A cidade integrava os domínios de Bonifácio, marquês da Toscana,
aliado do conde de Tusculum contra o papado germânico, aristocrata cujo
controle sobre as igrejas lhe valeu a reputação de “o grande depredador da pro-
priedade eclesiástica”, conforme as palavras de François Menant (1994: 59).

51
Baseado no relato sobre Vítor II, bispo de Eichstät eleito papa em 1055: BERNOLDO DE CONSTAN-
CE. Chronicon. MGH SS 5: 426-427.
52
Deo odibiles (...) impetus sagittarum et saxorum circum ejusdem sancti aures et ora volitaret. VITA
LEONIS IX PAPAE. PL, 143: 496; HERMANN DE REICHENAU. Chronicon. MGH SS 5: 132. Ver ainda:
MANSI, 19: 799; HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1075.
168 coLunas de são pedro

Sejamos mais precisos: Mântua não era um domínio do marquês, mas


o coração do seu patrimônio, o lugar escolhido para abrigar seu imponente
palácio. Ao que parece o bispo Marciano, anfitrião de Leão, governava uma
igreja que “da sua estrutura ao vértice, tanto quanto toda a sociedade [manto-
vana], se encontrava em clara posição de debilidade diante do poder do marquês”
(GARDONI, 2006: 227). Em 1052, numa carta enviada ao pontífice, Marciano
pediu auxílio para lidar com o clero local, afeito à prática de conferir benefí-
cios eclesiásticos aos laicos em caráter hereditário (iure hereditario).53 A morte
de Bonifácio, naquele mesmo ano, parece ter encorajado os dois prelados a se
aproximarem, criando a oportunidade para reunir um concílio. No entanto,
como vimos, Marciano e Leão subestimaram a ausência do marquês.
Tomando de empréstimo a narrativa da Vita Leonis, os historiadores cos-
tumam afirmar que o lúgubre encerramento da assembleia foi o preço pago
pela decisão papal de levar a “Reforma” a um episcopado venal, acostumado
a fazer pouco caso da lei canônica, refratário, sobretudo, ao celibato e à proi-
bição da simonia (HEFELE-LECLERCQ, 4/2: 1075; FLICHE, 1926: 151; RO-
BINSON, 1990: 122-123; CANTARELLA, 1998: 19-21; TELLENBACH, 2000:
188; MUNIER, 2002: 142). Mas, uma sutileza documental pode fazer toda
diferença. A Vita não atribui o tumulto somente aos bispos, ela acusa também
“seus familiares” (nam familiae eorum).54 Não foi um grupo de sacerdotes que
obstruiu o concílio, mas parentelas que se estendiam até o clero. Eis o indício
de uma ação clientelar, e não de uma resistência estritamente eclesiástica.
Logo, cabe indagar: o violento desfecho do concílio de Mantua teria sido uma
reação apenas contra a “Reforma” – no caso, a imposição do celibato – ou
tratava-se também de um impetuoso protesto contra o modelo de igreja que
se implantava em Roma, contrário ao vigente naquela região?
Cercado hostilidades, o governo leonino foi dominado pela necessidade
de projetar suas ações para fora do Lácio. E foi o que fez. Dos sessenta e dois
meses em que esteve à frente do papado, Leão viajou por cerca de quarenta,
dispensando a maior parte do tempo para percorrer cidades vinculadas à au-
toridade imperial. Dos doze concílios que reuniu, apenas quatro ocorreram em
Roma, e os dois maiores foram celebrados em Reims e Mainz. Suas viagens
estiveram repletas de ocasiões em que o papa engrandeceu o poder imperial e
suas igrejas. Ele partilhou com Henrique III a condução de um concilium gene-
ralis quando a coroa era desafiada por uma revolta húngara (Mainz, 1049);55

53
PFLUGK-HARTTUNG, 2: 112.
54
VITA LEONIS. PL, 143: 496.
55
ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 688; VITA LEONIS. PL, 143: 493, ADAM DE BREMEN. Gesta
Hamburgensis Ecclesiae Pontificum. MGH SS 7: 346; HERMANO DE REICHENAU. Chronicon. MGH SS
5: 128-129; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5: 154. A presença de dezenas de bispos
Leandro duarte rust 169

recomendou abadias à proteção régia (Agaune, 1050);56 canonizou bispos ger-


mânicos (Gerardo de Toul, 1050; Wolfgang de Rastibone, 1052);57 solenemen-
te exumou e expôs para a veneração o cadáver de Clemente II, enaltecendo,
desta maneira, a memória dos laços que atavam o episcopado germânico à
Igreja romana (Bamberg, 1052);58 selou pactos sobre concessões de direitos
fundiários e suporte militar contra os normandos no sul da península (Worms,
1052).59
Confirmações, consagrações e celebrações consolidavam o poder e o
prestígio das igrejas locais, legitimando ainda mais a inserção social e patrimo-
nial de bispos e abades. A autoridade apostólica proporcionou no além-Alpes
precisamente aquilo de tanto carecia no Lácio: o avanço do inecclesiamento.
Revestidos da sublimidade do toque apostólico, estes gestos eram um dom ini-
gualável oferecido pelo papado para uma “maior glória das igrejas regionais”
(CAPITANI, 1966: 156-157). Em retribuição, o bispo romano esperava receber
reconhecimento, aliados e suporte material. Ao se tornar um “papa ambu-
lante” e abarrotar seu breve governo com “uma energia até então incomum
para consagrar altares, igrejas e cemitérios” (IOGNA-PRAT, 2006: 366-367. Ver
ainda: MUNIER, 2002: 121-144), Leão se empenhou para viabilizar a teia de
alianças que o centro peninsular lhe negava.
Suas viagens não agiam no sentido de expandir a “burocracia papal”
(TOUBERT, 2006: 373-410), mas de negá-la. O pontífice ausentava-se de
Roma de maneira recorrente, distanciando-se dos “oficiais permanentes” sedia-
dos no palácio de Latrão, preteridos em favor de um seleto círculo de colabo-
radores pessoais. Novamente, é Stephen McQuillan (2002: 48) quem parece
ter captado o singular sentido desta atuação política: “o entourage de Leão era
– em muitos aspectos – uma ‘desinstitucionalização’ da Igreja romana”.
Entre 1049 e 1054, viajando sem cessar, o papa agravou a dissociação
plantada há quase uma década entre a autoridade espiritual e os círculos se-
nhoriais romanos. Alijada de parcelas imprescindíveis de seu poder, a aristo-
cracia romana, tradicionalmente desunida por rixas e competições, reagiria à
altura.

– 42, segundo Lamberto –, fez da assembleia uma demonstração de unidade do poder imperial no
contexto da rebelião dos húngaros contra Henrique III (DELARC, 1876: 224-228; HEFELE-LECLERCQ,
4/2: 1029-1036; MANSI, 19: 749-750, MANN, 6: 67-68).
56
JL 4238.
57
LEÃO IX. Bula. MANSI, 19: 770; WIDRICO. Vita Sancti Gerardi Episcopi Tullensisi. MGH SS 4: 507.
58
LEÃO IX. Epistola. PL, 143: 697-700.
59
Pelo tratado de Worms, de 26 de dezembro de 1052, o imperador cedeu à Santa Sé a região de Be-
nenvento e as possessões que o Império possuía ao sul de Roma, em troca da renúncia papal aos direi-
tos de usufruto sobre a sé de Bamberg e a abadia de Fulda. Henrique comprometia-se ainda a fornecer
a Leão tropas para combater os normandos. HERMANN CONTRACTUS. Chronicon. PL, 143: 259-260.
170 coLunas de são pedro

3.4. Uma Igreja Desencarnada

Em 1058, um dos herdeiros de Leão, o papa Estevão IX, morreu subi-


tamente em Florença. O vazio no Trono de Pedro encorajou nova revanche.
Fileiras inteiras do clero e do laicado romano se colocaram sob o comando de
Gregório, conde de Tusculum, Gerardo, conde de Galeria, e dos filhos de Cres-
cenzo de Monticelli. Juntos, eles aclamaram João, cardeal de Velletri, como
papa Bento X. Rejeitando a eleição, Hildebrando e cinco cardeais bispos se
reuniram em Siena, no mês de outubro, e entregaram a mitra do apóstolo Pe-
dro para Gerardo, bispo de Florença e, desde então, papa Nicolau II. Apoiado
por Godofredo, outrora duque da Lotaríngia, e por Ricardo, príncipe norman-
do de Cápua, Nicolau ganhou o interior de Roma em janeiro de 1059, sendo
consagrado e entronizado.60
O eixo Tusculum-Crescenzi amparava-se naquelas áreas de influência
que o papado germânico não alcançou: ela mobilizava recursos e espadas nas
áreas ao sul e ao leste da cidade, onde se situava a sé de Velletri, além de con-
tar com a lealdade do clero e de grupos citadinos. Em linguagem eclesiástica,
isto significava que a aristocracia romana garantira ao seu candidato uma
aclamação sustentada pelo “clero e povo” da Igreja de Roma, como recomen-
dava a tradição canônica que o próprio Leão IX reafirmou em Reims, em 1049.
A fraternitas romana buscava reaver o controle da Romana Ecclesia.
A nova disputa pela Sé Apostólica colocou o establishment dos papas
germânicos em sérias dificuldades, fez borrar a linha que separava o partido
legítimo e o “usurpador”. Afinal, o bispo de Velletri figurava entre os ativos
reformadores pontifícios. Era tão difícil fazer dele um “invasor da igreja de
Pedro” como era impossível tornar seu concorrente – escolhido por um mi-
núsculo grupo clerical em uma província eclesial distante da Sé para a qual
era designado – o único e verdadeiro sucessor apostólico.61 João foi reconhe-
cido pelo cardeal de Palestrina, Rainério; por Libuino, “subidiácono e servo
do nosso confessor papa Leão” (subdiaconus ac servus sancti confessoris nostri
Papae Leonis);62 por Umberto, o abade de Subiaco instalado por Leão IX; pela
congregação de São Pedro do Vaticano63 e pelo arcebispo de Canterbury, Sit-
gand64 (Ver ainda: McQUILLAN, 2002: 94-95). Por sua vez, os aliados do bispo
de Florença tampouco poderiam ser considerados um “partido clerical”, uma

60
ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 471; BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1: 592-593;
CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH SS 7: 694-705; Liber Pontificalis, 2: 279; PAULO DE
BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL, 148: 46.
61
PEDRO DAMIÃO. Briefe 58. MGH Epp. Briefe 2: 193.
62
DE OBTIU SANCTI LEONIS PAPAE II. WATTERICH 1: 176.
63
Italia Pontificia 4: 209, JL 4390.
64
GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta Pontificum Anglorum. HAMILTON 1: 36, JL4389.
Leandro duarte rust 171

vez que entre eles estavam algumas famílias do Trastevere, grupos laicos em
franca ascensão: os Pierleoni e os Tiniosi.65
Seguido pelos conjurati de Benedito Pierleoni, pelos cavaleiros da Tos-
cana e pelos soldados normandos, Nicolau expulsou João do palácio latera-
nense, forçando-o a buscar refúgio em uma fortaleza do conde de Galeria
localizada próximo a Passarano. Após ser fustigado por um cerco de meses,
João rendeu-se a seu adversário, que o aprisionou na basílica de Santa Inês,
do lado de fora dos muros romanos. Protegido de Leão IX, o outrora cardeal
de Velletri viveu humilhado até os dias de Gregório VII, que, por fim, permi-
tiu seu sepultamente com honras episcopais.66 Segundo os próprios Annales
Romani, ano após ano grande parte do clero romano acorria ao seu túmulo
para venerar o prelado que os livros de História costumam nomear com o
depreciativo rótulo de “anti-papa” (BLUMENTHAL, 1995: 77-78; TELLENBA-
CH, 2000: 159).
A entronização de Nicolau deflagrou uma aguda crise de legitimidade
no interior do papado. Ela expôs toda a gravidade e a extensão das tensões
presentes na organização da política romana desde 1046. Contrariando as
prescrições canônicas, o alto clero pontifício subtraiu o poder de investir o
eleito para o ofício episcopal das mãos do próprio conjunto da igreja de Roma.
Seus atos indicavam que o novo bispo não necessitava da aprovação de seu
próprio rebanho, o “clerus et populus”, calando um princípio defendido há
séculos por homens como Santo Ambrósio e Leão I (BENSON, 1969: 27; MO-
NAHAM, 1987: 81-96; CANTARELLA, 1998: 20-21).
Abria-se um imenso fosso entre a transmissão da autoridade apostólica
e a tradição canônica vigente, ainda vivaz, que trinta anos depois integraria a
Collectio Canonum do cardeal Deusdedit67 – aclamado pela historiografia como
notório “gregoriano” –, e um século depois chegaria ao Decretum de Graciano
apregoando: “aquele que o clero e povo de sua própria cidade não elegeram (...)
não seja escolhido bispo”.68 A cúpula papal, segundo muitos o baluarte da “Re-
forma do século XI”, afrontava os santos padres e a lei canônica. Só havia um
caminho a ser tomado: era preciso ajustar a ordem legal à realidade de uma
ecclesia dividida, em conflito consigo mesma, e encontrar uma nova fonte de
legitimidade para a eleição de Nicolau II.

65
ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 470-471.
66
ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 471-472. E ainda: CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH
SS 7: 705.
67
DEUSDEDIT. Collectio Canonum. In: MARTINUCCI, Pio (Ed.). Deusdedit Presbyteri Cardinalis Tituli
Apostolorum Eudoxia Collectio Canonum. Veneza: Typographia Aemiliana, 1869, p. 132.
68
Nec ille deinceps sacerdos erit, quem nec clerus, nec populus propriae ciuitatis elegit (...) non exqui-
siuit. GRACIANO, Decretum, D. LI, C. V.
172 coLunas de são pedro

Este foi o papel reservado para a notória bula In Nomine Domini, pro-
clamada no concílio romano de abril 1059 para regulamentar a eleição papal.
Eis o texto integral:

Em nome do nosso Senhor Deus, Jesus Cristo, Nosso Salvador, no ano


de 1059 de sua Encarnação, na duodécima indicção, perante os santos
evangelhos, sob a presidência do reverendíssimo e beatíssimo papa apos-
tólico, Nicolau, na patriarcal basílica lateranense, chamada basílica de
Constantino, com todos os reverendíssimos arcebispos, bispos, abades e
veneráveis presbíteros e diáconos, o mesmo venerável pontífice, decre-
tando com autoridade apostólica, disse:
Vossas Eminências, diletíssimos bispos e irmãos, conhecem, e igualmente
o sabem os membros de categoria hierárquica inferior, quanta adversida-
de esta Sé Apostólica, à qual sirvo por vontade divina, desde a morte de
Estevão, nosso predecessor de feliz memória, suportou; quantos golpes
e ofensas os traficantes simoníacos lhe infligiram, até ao ponto em que
a coluna do Deus vivo, sacudida, parecia quase vacilar, e a Sé pontifícia
aparentava estar prestes a mergulhar nas profundezas do abismo. Por
isso, que seja do agrado de meus irmãos, o dever de enfrentar os eventos
futuros, com a ajuda de Deus, e fazer uma constituição eclesiástica que
resista aos males que acaso venham a ocorrer, a fim de que nunca pre-
valeçam. Por conseguinte, apoiando-nos nas autoridades dos nossos pre-
decessores e na de outros sumos pontífices, decretamos e estabelecemos
o seguinte: quando o bispo desta Igreja romana universal vier a falecer,
os cardeais bispos decidam entre si, com a devida atenção, chamando
posteriormente os cardeais presbíteros, e igualmente se associem aos
outros membros do clero e ao povo, com vista a proceder a uma nova
eleição, evitando assim que a triste moléstia da venalidade não tenha
oportunidade de se perpetuar.
Portanto, que os varões mais insignes promovam a eleição do futuro
pontífice, e que todos os demais os sigam. Sendo este procedimento
eleitoral considerado justo e legítimo, visto que ele observa as regras e
os procedimentos de inúmeros santos padres e se resume naquela frase
do nosso bem-aventurado antecessor Leão, que disse: “Nenhum motivo
autoriza que se considerem como bispos aquelas pessoas que não foram
eleitas pelos clérigos, aclamadas pelo povo e consagradas pelos bispos
sufragâneos com a aprovação do metropolitano”. Já que a Sé Apostólica
está acima de toda a igreja espalhada pela orbe, e não pode ter nenhum
metropolitano sobre si própria, não há dúvida de que os cardeais bispos
desempenham a função de metropolitano, levando o sacerdote eleito
Leandro duarte rust 173

ao cume da dignidade apostólica. Se encontrarem alguém digno, que o


escolham dentre os seus próprios membros; caso contrário, tomem-no
de outra igreja qualquer. Que guardem a reverência e a honra devidas
ao nosso querido filho Henrique, que agora é rei e que, assim se espera,
será, com a ajuda de Deus, o futuro imperador; e igualmente aos seus
sucessores que impetrarem pessoalmente este privilégio à Sé Apostólica.
Se prevalecer a perversidade dos homens iníquos e maus, a tal ponto que
seja impossível realizar uma eleição livre, justa e genuína, na Urbe, os
cardeais bispos, com os sacerdotes e os leigos católicos, legitimamente
podem escolher o pontífice da Sé Apostólica onde julgarem mais opor-
tuno. Concluída a eleição, se uma guerra ou qualquer tentativa dos ho-
mens se opuser a que o escolhido tome posse da Sé Apostólica, segundo
o costume, não obstante isso, o eleito terá toda a autoridade pontifical
para dirigir a santa igreja romana, dispondo plenamente das suas prer-
rogativas, como sabemos que o bem-aventurado Gregório o fez antes da
sua consagração.
Mas se alguém, contrariando este nosso decreto, promulgado em sínodo,
for eleito, consagrado e entronizado mediante a audácia, a revolta ou
qualquer outro meio, seja excomungado perpetuamente pela autorida-
de divina e dos santos apóstolos Pedro e Paulo; e juntamente com seus
instigadores, partidários e sequazes, deve ser expulso da santa igreja
de Deus, como anticristo, inimigo e destruidor de toda a Cristandade.
E não lhe seja concedida credibilidade alguma, mas permaneça eterna-
mente privado da dignidade eclesiástica, não importando o grau a que
pertença. Por outro lado, qualquer pessoa que lhe render homenagem,
considerando-o como pontífice verdadeiro, ou tentar defendê-lo como
tal, será castigado com a mesma sentença. Quem, temerariamente, se
opuser a esta nossa decretal e tentar prejudicar a Igreja romana, violan-
do o que foi estabelecido, que seja condenado com um anátema perpé-
tuo e excomungado, e seja contado entre os ímpios que não ressuscita-
rão no Juízo Final. Sinta sobre si a ira do onipotente Pai, Filho e Espírito
Santo e, nesta e na outra vida, sofra a indignação dos Santos apóstolos
Pedro e Paulo, cuja igreja tentou perturbar. Que sua habitação se torne
deserta e que ninguém vá manter-se junto a seu tabernáculo. Que seus
filhos sejam feitos órfãos e sua esposa viúva. Que seja removido com
indignação e que seus filhos mendiguem e sejam jogados para fora de
suas habitações. Que o usurário atravesse toda sua substância e que des-
conhecidos destruam os frutos de seus trabalhos. Que a terra inteira lute
contra ele e que todos os elementos se oponham a ele; que os méritos
de todos os santos em repouso o confundam e que nesta vida a vingança
174 coLunas de são pedro

aberta seja tomada contra ele. Que os observantes deste nosso decreto
sejam protegidos pela graça de Deus onipotente e absolvidos do vínculo
de todos os seus pecados pela autoridade dos bem-aventurados bispos e
apóstolos Pedro e Paulo.69

69
In nomine Domini Dei salvatoris nostri Iesu Christi, anno ab incarnatione eius
MLIX, mense aprili, indictione XII, porpositis sacrosanetis evangeliis, praesidente
quoque reverendissimo ae beatissimo Nicolao apostolico papa, in basilica Late-
ranensis patriarchii quae cognominatur Constantiniana, considentibus etiam re-
verendissimis archiepiscopis, episcopis, abbatibus sea venerabilibus presbyteris
atque diaconibus, idem venerabilis pontifex, auctoritate apostolica decernens, de
electione summi pontificis inquit: Novit beatitudo vestra, dilectissimi fratres et
coepiscopi, inferiora quoque membra non latuit, defuncto piae memoriae domi-
no Stephano decessore nostro haec apostolica sedes, cui auctore Deo deservio,
quot adversa pertulerit, quot denique per simoniacae haeresis trapezitas malleis
crebrisque tunsionibus subiacuerit, adeo ut columna Dei viventes iamiam puene
videretur nutare et sagena summi piscatoris procellis intumescentibus cogeretur
in naufragii profunda submergi. Unde, si placet fraternitati vestrae, debemus au-
xiliante Deo futuris casibus prudenter occurrere et ecclesiastico statui, ne rediviva
– quod absit – mala praevaleant, in posterum praevidere. Quapropter instructi
praedecessorum nostrorum aliorumque sanctorum patrum auctoritate decerni-
mus atque statuimus: Ut, obeunte huius Romanae universalis ecclesiae pontifice,
inprimis cardinales episcopi diligentissima simul consideratione tractantes, mox
sibi clericos cardinales adhibeant: sicque reliquus clerus et populus ad consensum
novae electionis accedant. Ut – nimirum ne venalitatis morbus qualibet occasione
subrepat – religiosi viri praeduces sint in promovendi pontificia electione, reliqui
autem sequaces. Et certe rectus atque legitimus hic electionis ordo perpenditur, si
perspectis diversorum patrum regulis sive gestis, etiam illa beati praedecessoris
Leonis sententia recolatur: “Null’, inquit, ‘ratio sinit, ut inter episcopos habeantur,
qui nec a clericis sunt electi, nec a plebibus expetiti, nec a comprovincialibus epis-
copis cum metropolitani iudicio consecrati”. Quia vero sedes apostolica cunctis in
orbe terrarum praefertur ecclesiis atque ideo super se metropolitanum habere non
potest, cardinales episcopi procul dubio metropolitani vice funguntur, qui videli-
cet electum antistitem ad apostolici culminis apicem provehunt. Eligant autem de
ipsius ecclesiae gremio, si reperitur idoneus, vel si de ipsa non invenitur, ex alia
assumatur. Salve debito honore et reverentia dilecti filii nostri Henrici, qui inpra-
esentiarum rex habetur et futurus imperator Deo concedente speratur, sicut iam
sibi concessimus, et successorum illius, qui ab hac apostolica sede personaliter hoc
ius impetraverint. Quodsi pravorum atque iniquorum hominium ita perversitas in-
valuerit, ut pura sincera atque gratuita electio fieri in Urbe non possit, cardinales
episcopi cum religiosis clericis catholicisque laicis, licet paucis, ius potestatis ob-
tineant eligere apostolicae sedis pontificem, ubi congruentius iudicaverint. Plane
postquam electio fuerit facta, si bellica tempestas vel qualiscunque hominium co-
natus malignitatis studio restiterit, ut is qui electus est in apostolica sede iuxta con-
Leandro duarte rust 175

Brian Tierney (1988: 36) expressou a opinião de muitos autores ao


sugerir que a finalidade maior da In Nomine Domini era liberar as eleições
papais da ingerência imperial, rebaixar “os direitos do imperador acumulados
desde os dias de Carlos Magno” (Ver: GAUDEMET, 1994: 315; SOUZA & BAR-
BOSA, 1997: 24; COLOMER & McLEAN, 1998: 1-22; VIOLANTE, 1999: 132;
ULLMANN, 2003a: 135). As ideias de liberdade e soberania eclesiásticas al-
cançaram a fórmula canônica como princípios hostis à sacralidade imperial,
complementou Marcel Pacaut (1957: 65-71) num clássico estudo da “Teocra-
cia Papal”.
Todavia, analisemos com cautela. A menção ao poder imperial é am-
bígua: “Que guardem a reverência e a honra devidas ao nosso querido filho
Henrique, que agora é rei e que, assim se espera, será, com a ajuda de Deus,
o futuro imperador; e igualmente aos seus sucessores que impetrarem pesso-
almente este privilégio à Sé Apostólica”. Esta passagem minimiza – e talvez

suetudinem intronizari non valeat, electus tamen sicut papa auctoritatem obtineat
regendi sanctam Romanam ecclesiam et disponendi omnes facultates illius, quod
beatum Gregorium ante consecrationem suam fecisse cognoscimus. Quodsi quis
contra hoc nostrum decretum synodali sententia promulgatum per seditionem vel
praesumptionem aut quodlibet ingenium electus aut etiam ordinatus seu introni-
zatus fuerit, auctoritate divina et sanctorum apostolorum Petri et Pauli perpetuo
anathemati cum suis auctoribus, fautoribus, sequecibus a liminibus sanctae Dei
ecclesiae separatus subiciatur, sicut Antichristus et invasor atque destructor totius
christianitatis: nec aliqua super hoc audientia aliquando ei reservetur, sed ab omni
ecclesiastico gradu, in quocunque prius fuerat, sine retractatione deponatur. Cui
quisquis adhaeserit vel qualemcunque tanquam pontifici reverentiam exhibuerit
aut in aliquo illum defendere praesumpserit, pari sententia sit mancipatus. Quis-
quis autem huius nostrae decretalis sententiae temerator extiterit et Romanam
ecclesiam sua praesumptione confundere et perturbare contra hoc statutum temp-
taverit, perpetuo anathemate atque excommunicatione dampnetur et cum impiis,
qui non resurgent in iudicio, reputetur. Omnipotentis scilicet Dei Patris et Filii et
Spiritus sancti contra se iram sentiat et sanctorum apostolorum Petri et Pauli, quo-
rum praesumit confundere ecclesiam, in hac vita et in futura furorem reperiat. Fiat
habitatio eius deserta et in tabernaculis eius non sit qui inhabitet. Fiant filii eius
orphani et uxor eius vidua. Commotus amoveatur ipse atque filii eius et mendicent
et eiciantur de habitationibus suis. Serutetur fenerator omnem substantiam eius et
diripiant alieni labores eius. Orbis terrarum pugnet contra eum et cuneta elemen-
ta sint ei contraria, et omnium sanctorum quiescentium merita illum confundant
et in hac vita super eum apertam vindictam ostendant. Observatores autem huius
nostri decreti Dei omnipotentis gratia protegat et auctoritate beatorum apostolo-
rum Petri et Pauli ab omnium peccatorum vinculis absolvat. DECRETUM ELEC-
TIONIS PONTIFICIAE. MGH Const. 1: 539-541. Ver ainda: HUGO DE FLAVIGNY.
Chronica. MGH SS 8: 408-409; GRACIANO, Decretum, D. XXIII, C. I.
176 coLunas de são pedro

pudéssemos dizer que chega a depreciar – o poder deliberador detido pelos


imperadores com o título de patricius romanorum, já que não reconhece de
maneira explícita seu papel de instância instituínte do poder papal. Entretan-
to, ela não os ignora. E dizer, como fez Collin Morris (2001: 93), que ela con-
vertia a participação imperial em um “privilégio concedido pela Igreja Romana”
nos parece forçar os olhos para descobrir uma declaração inequívoca e taxati-
va lá onde foram depositadas fórmulas ambivalentes e muito polissêmicas. A
In Nomine Domini reconhece à dinastia dos sálios uma margem dúbia de en-
volvimento, mas deixa uma imensa brecha aberta para a vocalidade imperial
continuar ressoando sobre Roma.
Que a decretal de 1059 não era, em princípio, uma decisão anti-impe-
rial é algo que pode ser fundamentado ainda pelo fato de uma versão filo-ger-
mânica da decretal ter sido elaborada, provavelmente, na mesma época. Este
segundo registro, publicado por Jaffé no Codex Uldarici, é idêntico ao texto
papal, exceto em dois pontos: 1) ao reconhecer a proeminência eletiva cabível
aos cardeais como congregação unitária, sem distingui-los ou assegurar qual-
quer primazia aos cardeais bispos, como fez a versão papista; 2) ao enfatizar a
reverência devida ao imperador como a obtenção de sua aprovação e consenso
através de seu núncio na península.70 Ademais, a ordem dos procedimentos
eleitorais seguiu intacta.
É provável que as duas versões tenham sido redigidas por ordem de
Nicolau em ocasiões diferentes. Afinal é praticamente impossível atribuir au-
tenticidade a apenas uma. Nenhum dos relatos contemporâneos ao sínodo de
1059 menciona a In Nomine Domini: o Annalista de Saxo, Adam de Bremen
e Lamberto de Hersfeld a ignoraram sumariamente.71 O mais antigo registro
que pudemos localizar consiste numa alusão presente na Chronica Monasterii
Casinense, num trecho composto por Leão de Marsica após 1070.72 É possível
que uma passagem do Disceptatio Synodalis Inter Regis Advocatum et Romanae
Ecclesiae Defensorem, composto por Pedro Damião em 1062, refira-se ao decre-
tum de eleição, mas sua formulação é por demais vaga para ser considerada

70
Eis o trecho das divergências: Ut obeunte huius Romanae universalis ecclesiae pontífice, imprimis
cardinales diligentissima simul consideratione tractent, salvo debito honore et reverentia filii nostri
Heinrici, qui impraesentiarum rex habetur et futurus imperator Deo concedente speratur. Sicut iam
sibi, mediante eius nuntio Longobardie cancellario Wiberto concessimus et sucessor illus qui ab hac
apostolica sede personaliter hos ius impetraverit, ad consensum novae ecletiones accedat. Ut nimirum
venalitatis morbus qualibet occasione non subrepat, religiosi viri cum serenissimo filio nostro rege H
praeduces sint in promovendi summi pontífices electione, reliqui autem sequaces. CODEX UDALRICI.
Monumenta Bambergensia. BRG 5: 41-45.
71
ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 692-693; ADAM DE BREMEN. Gesta Hamburgensis Ecclesiae Pon-
tificum. MGH SS 7: 348-354; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5: 160.
72
CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH SS 7: 705.
Leandro duarte rust 177

um nexo documental seguro.73 Em todo caso, sabemos que a recomendação


para tratar a versão mais detalhada – aquela posteriormente publicada por Ja-
ffé – como falsificação provém dos Annales Ecclesiastici, redigidos pelo cardeal
César Baronio em 1588.74
O argumento ganha mais força quando notamos que as duas versões
se referem aos poderes urbanos de uma maneira que nada tem de equívoca:
“Se a perversidade dos homens iníquos prevalecer (...) na Urbe, os cardeais
bispos (...) legitimamente podem escolher o pontífice da Sé Apostólica onde
julgarem mais oportuno”. A vinculação da eleição ao poder imperial variava,
oscilava nas duas versões, chegava a tornar-se incerta, mas permanecia ates-
tada, sempre presente. Provavelmente este aspecto permitiu ao próprio clero
imperial identificar-se com o decretum e difundi-lo com a versão conhecida
como “filo-germânica”. Já a dissociação imposta pelos dois textos entre a au-
toridade apostólica e à cidade de Roma era perfeitamente coincidente: tanto
um quanto outro a oferecem como palavra de ordem, instrução clara e sem
reservas, verdadeiro mandamento canônico.
Façamos ponto: o decreto visou, de fato, excluir os laicos das etapas
deliberativas da eleição papal. Entretanto, por “laicos” não devemos suben-
tender os imperadores, mas a aristocracia romana. Tratava-se de uma fórmula
escrita sob as pressões da realidade local, orientada para cravar a separação
canônica entre os poderes – o aristocrático e o episcopal – da cidade (urbe),
e não de um texto oriundo do pensamento hierocrático, cuja página deveria
estampar uma nova disposição dos poderes do mundo (orbe). A In Nomine Do-
mini foi uma declaração de política local, pragmática, não a carta de fundação
de uma abstrata “monarquia papal”.
A cisão que desde os anos 1040 se aprofundava na ordem social romana
engendrara um importante deslocamento jurídico. Rompendo com a tradição
canônica, a decretal de Nicolau II minimizou o consenso local e a entroniza-
ção do eleito como fatores necessários para instituir a autoridade episcopal
romana. Em seu lugar, a In Nomine Domini acentuou desproporcionalmente
uma forma específica e inédita de proceder à eleição: a prioridade dos carde-
ais bispos nas deliberações, que seriam seguidas pela aclamação do “clero e
do povo”. A decisão tomada por um restrito círculo clerical tornava-se razão
suficiente para o legítimo estabelecimento de um novo pontífice (CUSHING,
1998: 29-31). Privilegiava-se precisamente aquele grupo formado por um nú-
mero crescente de eclesiásticos e religiosos não-romanos. A entronização e a
consagração não eram mais necessárias para uma posse plena dos poderes
73
PEDRO DAMIÃO. Disceptatio Synodalis Inter Regis Advocatum et Romanae Ecclesiae Defensorem.
PL 145? 71.
74
CÉSAR BARONIO. Annales Ecclesiastici. THEINER 17: 148-149.
178 coLunas de são pedro

jurisdicionais sobre a Sé Romana. Não era preciso sentar-se no Trono de Pedro


e sentir o peso da tiara apostólica sobre a cabeça para considerar-se papa.
Bastava obedecer o novo trâmite eleitoral.
Na decretal de 1059 a aristocracia e o clero romano encontraram o do-
loroso registro de que “os tempos estavam definitivamente mudados e não era
mais possível reconstituir o antigo equilíbrio” (BEOLCHINI, 2006: 74). A ances-
tral prática da eleição por aclamação, estratégia visada por Bento X, não tinha
mais qualquer valor efetivo. Esfumaçava-se em um vazio canônico criado pela
cúpula papal. A In Nomine Domini legitimou a obra leonina de projetar para
o exterior as garantias necessárias ao exercício do poder. Na realidade, ela
abriu novo campo de execução desta obra: o universo dos textos canônicos.
Oficializava-se a realidade de um ofício episcopal capaz de desenraizar-se de
seu entorno social imediato e até mesmo de seu clero, que perdia a possibili-
dade de tomar parte efetivamente na eleição de seu próprio bispo. Com razão
afirmou Tommaso Falconieri (2002: 95):

O Decretum de 1059 reuniu em um só destino o clero e o povo romano.


A medida tomada naquela ocasião foi sem dúvida antirromana. Melhor,
não só pôs em perigo a relação do papado com a cidade, mas considerou
aquele como uma entidade superior, vivente de uma vida própria e autô-
noma face àquela da cidade.

A bula recobriu com véu de canonicidade a propagação dos círculos


decisórios do papado para além da fraternitas romana e do pertencimento
espacial ao Lácio. Fez dele algo não mais encarnado em Roma.
Mas os tempos eram cada vez mais difíceis. Precisamente quando a
dependência papal de suportes exteriores de proteção e auxílio foi agra-
vada, a hegemonia imperial – tão indispensável a Leão IX – enfraquecia a
olhos vistos na península itálica, sobretudo desde 1056, quando um pres-
sionado governo regencial assumiu o lugar de Henrique, falecido (FUHR-
MANN, 1986: 52-58; ROBINSON, 2004: 28-38). A aliança com Godofredo
da Lotaríngia, assegurada pela eleição de seu irmão, Frederico, como Este-
vão IX, resultara num apoio efetivo o suficiente para conduzir ao papado
dois bispos toscanos – Nicolau II (Gerardo de Florença) e Alexandre II
(Anselmo de Lucca) (ULYSSE, 1876: 13-28). Mas, ainda assim, tratava-se
de um aliado intermitente e, muitas vezes, com seus olhos voltados mais
para disputas internas do império do que para os horizontes das colinas
latinas. O Império e Godofredo apresentavam garantias insuficientes para
fazer frente aos grandes senhores do Lácio e salvaguardar as terras e ren-
das pontifícias.
Leandro duarte rust 179

Era vital para o papado encontrar bases de poder extra-romanas ágeis


e efetivas. Isto fez a Sé Romana dirigir suas atenções para o sul da penínsu-
la: o contato com a abadia Montecassino se revelaria um mediador capaz de
aproximar a autoridade apostólica dos príncipes normandos, cada vez mais
senhores de áreas arrancadas ao controle imperial, bizantino, islâmico e até
mesmo papal (LOUD, 2000. Ver ainda: MATTHEW, 1992: 9-33). No sínodo de
Melfi, reunido em julho de 1059, Nicolau II recebeu um “juramento e fideli-
dade [normanda] à igreja romana” e, em seguida, reconheceu os domínios de
dois conquistadores: Cápua, a Ricardo de Aversa; e o conjunto formado pela
Apúlia, Calábria e Sicília – esta última ainda sob o poderio muçulmano –, a
Robert Guiscard, a quem conferiu o título de duque (dux).75
Entretanto, cuidado. O grande beneficiário dessa aliança não foi a Sé
Apostólica. O promotor desta aproximação foi outro grupo eclesiástico. Sua
identidade pode ser decifrada começando por acompanhar as idas e vindas do
próprio papa no contexto que engloba os juramentos de Melfi.
Com as ruas de Roma ainda tomadas pelos desvarios das armas, desar-
ranjadas pela inquietação dos guerreiros que tentavam desentocar o “anti-
papa” João de Velletri, Nicolau fixou suas atenções no sul da península. Mal
havia se passado um mês desde que ocupara o trono de Pedro, e ele partiu
para Spoleto, onde confirmou as possessões do Monastério de São Vicente
al Volturno, atendendo aos insistentes pedidos do abade João.76 Quatro dias
depois, 6 de março, Nicolau elevou ao cardinalato o recém eleito abade de
Montecassino, Desidério, filho mais velho do príncipe Landulfo de Benevento.
Além do título de cardeal de Santa Cecília, Desidério ouviu dos lábios papais
a confirmação de todos os bens, terras e prerrogativas senhoriais outrora atri-
buídos ao monastério beneditino pelo papa Leão IX. E como se não bastasse a
fortuna patrimonial que acabava de ser ratificada, o pontífice fez de Desidério
seu legado, proclamando-o detentor da autoridade para “corrigir monastérios
e monges de toda a Campânia, Apulia e Calábria”.77 Gravado em pergaminho,
este extenso privilégio assegurava ao novo abade um lugar de poder imponen-
te, conferindo pompa ainda maior ao início de sua atuação à frente de um dos
maiores estabelecimentos monásticos da península.

75
Cum sacramento et fidelitate Romanae ecclesiae ab eis primo recepta. CHRONICA MONASTERII
CASINENSIS. MGH SS 7: 706-707; GUILLERME DE APÚLIA. Gesta Roberti Wiscardi. MGH SS 11: 261-
262.
76
CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH SS 7: 705.
77
Te tantummodo diebus vitae tuae vicarium nobis ad correctionem omnium monasteriorum et mo-
nachorum ab ipso fluvio Piscaria, sicut instuit in mare, scilicet per totam Campaniam, Principatum
quoque et Apuliam atque Calabriam, assumere decrevimus. NICOLAUS II PAPA CONFIRMAT BONA
AC PRIVILEGIA OMNIA A LEONE PP. IX CASINENSI MONASTERIO CONCESSA. PL 143: 1305-1309.
Ainda: JL 4397, 4398.
180 coLunas de são pedro

Ao fim do mês, Nicolau retornou para Roma. Lá ele constatou que os


generosos gestos estendidos a Desidério já rendiam bons frutos. O abade re-
tribuiu comparecendo ao concílio romano reunido pelo papa entre 3 e 14 de
abril na companhia de ilustres figuras. O novo cardeal caminhava entre os 113
bispos presentes na basílicade São Salvador rodeado pelos arcebispos Hilde-
brando de Cápua, Uldarico de Benevento e Alfano de Salerno, além do bispo
Leão de Gaeta.78 Todos esses prelados partilhavam um histórico de envolvi-
mento com oposições à dominação normanda nas cidades meridionais79 (Ver
ainda: LOUD, 1985: 38-48; COWDREY 1996: 112-114; McQUILLAN, 2002:
103-109; OTT & JONES, 2007: 189-208).
Em maio, Nicolau entrou em contato com outra importante igreja do
sul. Dirigiu-se aos “nossos caríssimos irmãos” de Amalfi, informando todos os
bispos locais dos decretos recentemente aprovados no sínodo romano.80 A car-
ta listava nome a nome os eclesiásticos presentes naquela assembleia, osten-
tando a notícia de que uma grande parcela do alto clero local aventurava-se
no apoio ao papa. Ela comunicava, assim, uma mensagem política que, in-
tencionalmente ou não, atingia outra figura graúda, até então omissa: Pedro,
arcebispo de Amalfi. O efeito não tardou a consumar-se. Em agosto, já em
Benevento, o papa confirmou novo privilégio em favor do abade de São Vicen-
te al Volturno: a relação de testemunhas é encabeçada por Pedro de Amalfi e
contém os nomes do arcebispo Uldarico de Benevento e dos bispos Sérgio de
Nápoles e João de Sorrento.81
No mesmo contexto, Nicolau II confirmou certo Martinho Florentino,
um monge de Montecassino, como primeiro bispo de Aquino.82 No dia 24 de
junho, com o cerco a João de Velletri ainda em pleno curso, o papa chegou
a Montecassino para as festividades em memória de São João Batista.83 Em
agosto, pouco antes de deixar Melfi escoltado por um magnífico séquito de
seis cardeais e dezoito bispos, ele consagrou igrejas em Lavello e outorgou
privilégios em Venosa, atendendo aos desejos de Ingilberto, abade do monas-
tério da Santa Trindade, e de Morando, bispo local84 (Ver ainda: McQUILLAN,
2002: 106).

78
NICOLAI II CONCILIUM LATERANENSE PRIUS. MGH Const. 1: 545.
79
GAUFREDO MALATERRA. De Rebus Gestis Rogerii Calabriae et Siciliae Comitis et Roberti Guiscardi
Ducis Fratris eius. RISS 5/1: 22; AMATO DE MONTECASSINO. Ystoire de li Normant: 125-126.
80
NICOLAUS II OMNIBUS EPISCOPIS AMALPHITANAE ECCLESIAE SUFRAGANEI. PL 143: 1317-
1323; JL 4406, Italia Pontificia 8: 390.
81
MANSI 19: 921; Italia Pontificia 8: 251; ANNALES BENEVENTANI. MGH SS 3: 180.
82
Italia Pontificia 8: 106.
83
CHRONICA MONASTERII CASINENSIS. MGH SS 7: 705.
84
PFLUGH-HARTTUNG 2: 86; JL 4408.
Leandro duarte rust 181

Vistas em conjunto, estas viagens indicam que a política papal havia se


tornado um campo de ações preciosas para o clero meridional. Atingidos pelo
drástico realinhamento de forças senhoriais que varria o sul da península,
aqueles abades, bispos e arcebispos encontraram no poder pontifício um meio
expressar sua unidade e prestígio. Com efeito, o pacto selado por Nicolau
com os normandos, em Melfi, coroava aquela busca por proteção, servindo
convenientemente àqueles interesses regionais. Afinal, aquela aliança oferecia
a Ricardo e Guiscard o reconhecimento de seu livre controle sobre Cápua,
Apúlia e Calábria, mas exigia-lhes que deixassem intactos os patrimônios ecle-
siais de Benevento, Salerno, Nápoles, Montecassino e de todo o clero do sul
peninsular que há meses associavam seus nomes à autoridade papal, à qual os
normandos acabaram de jurar lealdade e obediência. O pacto de Melfi foi o
desfecho da política eclesial meridional, cujos mandatários souberam fazer do
bispo de Roma uma figura agregadora de seus próprios anseios, transforman-
do a palavra pontifícia em uma armadura contra a expansão do novo poderio
laico daquelas franjas do Mediterrâneo. Pela mediação do abade de Montecas-
sino, a proteção apostólica foi colocada a serviço de sua hegemonia local. O
principal aliado angariado pelo papado naquele verão de 1059 não foram os
príncipes normandos, mas os expoentes eclesiásticos do sul peninsular.
A cúpula da Igreja romana certamente beneficiou-se da aliança:

Com sua ajuda [dos normandos], ele [Nicolau II] muito rapidamente
libertou a cidade de Roma da tirania dos capitães. Pois, não só eles [o
papa e os normandos] esmagaram o orgulho de Tusculum, Palestrina e
Nomentana, como passando por toda Roma, destruíram Galeria e todas
as fortalezas do conde Gerardo até Sutri, e este feito libertou a cidade de
Roma da dominação dos capitães.85

O decretum eleitoral de abril de 1059 e o honore ducali conferido a Guis-


card foram os dois gestos de um mesmo ato: a consolidação de uma correlação
de forças pautada na identificação do bispo romano com círculos senhoriais
exteriores. Logo, a utilidade de tais decisões estava em dissociarem ainda mais
a Ecclesia e a Urbis Roma. Além da própria elite local, o Império seria frontal-
mente atingido por esta política que excluía os principais grupos citadinos dos
espaços decisórios para aliar-se a forças externas. Pois a autoridade associada
ao “populus romanus” constituía o fundamento de prerrogativas reclamadas

85
Per eos citissime Romanam urbem a capitaneorum tirannide liberavit. Nam non solum Tusculano-
rum et Prenestineorum et Numentanorum superbiam calcavere, sed et Romam transeuntes Galeriam
et omnia castra comitis Gerardi usque Sutrium vastavere; que res Romanam urbem a capitaneorum
liberavit dominatu. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH. Ldl 1: 593.
182 coLunas de são pedro

não só pela aristocracia do Lácio, mas pela corte germânica, caso do título
de “patrício dos romanos, através do qual [o imperador] recebera o poder de
sempre ordenar os papas por meio de uma eleição”.86 Aquelas medidas antir-
romanas afrontavam o Império, já que os sálios costumavam justificar suas
ordens como prerrogativas exercidas em nome do “assentimento jurado pelos
Romanos”.87 Os efeitos das disputas locais romanas sobre a hegemonia germâ-
nica se tornaram mais nítidos com a eleição de Anselmo de Lucca como papa
Alexandre II. Vejamos.

3.5. Contrapesos

Após a morte de Nicolau II, em 1061, o partido dominante no interior


do papado elegeu Alexandre. Todavia, o conde de Galeria voltou à baila com
um formidável escol de aliados. Sustentado pela aristocracia romana e por
grande parte do episcopado lombardo, o conde enviou à corte imperial uma
embaixada solicitando a designação de outro pontífice, negando-se a reco-
nhecer o homem eleito pelo entourage de Nicolau. Enquanto Alexandre era
entronizado em Roma pela força das espadas de Ricardo de Cápua, na corte
germânica os emissários do conde receberam com satisfação a notícia de que
o jovem rei, Henrique IV, evocou o patriciado romano e escolheu o bispo de
Parma, Cádalo, para assumir o lugar de Pedro.
Sem se limitar às palavras, o monarca encarregou Benzo, bispo de Alba,
de liderar o exército que deveria garantir a entronização de seu novo prote-
gido. O conflito armado era questão de tempo e prosseguiria acirrado por
muitos anos, repleto de enfrentamentos sangrentos. Que se prolongaram até
o concílio de Mântua, no ano de 1064, ocasião em que o reconhecimento im-
perial foi dado a Alexandre. Na sucessão de eventos que levou a esta guinada
estava “o golpe de Kaiserwerth”, com o qual o arcebispo Anno de Colônia to-
mou a tutela do jovem Henrique IV em 1062 e assumiu as rédeas da regência.
Chanceler do papado em 1057, Anno pôde marginalizar os principais promo-
tores das decisões imperiais favoráveis a Cádalo, como Adalberto, arcebispo
de Hamburgo.88

86
Patricius Romanorum, a quibus etiam accepit, in electione semper ordinandi pontificis principatum.
PEDRO DAMIÃO. Disceptatio Synodalis Inter Regis Advocatum et Romanae Ecclesiae Defensorem. PL, v.
145, col. 71.
87
HENRIQUE IV. Epistola. MGH Const. 1: 109; BRUNO DE MERSEBURG. De Bello Saxonico. MGH SS
5: 351-352. Trecho de uma epístola de Henrique IV referente ao direito de “patriciado”.
88
Para todo este panorama: ANNALES ALTAHENSIS MAIORES. MGH SS rer. Germ. 4: 61-62; BENZO
DE ALBA. Ad Heinricum IV imperatorem libri VII. MGH SS 11: 618-622; BERTHOLDO. Annales. MGH
SS 5: 272; CHRONICA CASINENSIS. MGH. SS 7: 711-712; LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH
SS 5: 154; Liber Pontificalis, 2: 281.
Leandro duarte rust 183

A corte imperial, entretanto, chiou. E muito. Esbravejou quanto aos pro-


cedimentos seguidos na eleição de Alexandre, realizada à revelia não só da
“honra devida ao sucessor imperial”, como ditava a In Nomine Domini, mas
vilipendiando o poder de “designar os papas”, a prerrogativa de “Patrício dos
Romanos”. Guiados pelo olhar de Augustin Fliche, muitos historiadores toma-
ram a eleição de Alexandre II como um ato de independência do papado face
ao Império, como a implantação da decretal eleitoral de 1059, enfim, como
o grande marco da emancipação política e institucional da Sé Apostólica. To-
davia, como elucidou o cardeal bispo de Óstia, Pedro Damião, a violação do
direito de patriciado, tão alardeada pela corte germânica, não decorria de uma
busca pela libertação da influência exercida pelos sucessores de Carlos Mag-
no. Ela consistiu no arriscado preço cobrado pela separação entre a Urbis e a
Ecclesia romanas:

A necessidade nos impeliu, não a rapina, para eleger nosso pontífice


pelo glorioso rei, como se nós tivéssemos perpetrado uma injúria, (...) e
digo, além disso, que arrastou-nos ainda, contra nossa vontade, o perigo
iminente de uma guerra civil, e não o desejo de ultrajar ou diminuir o
livor do império.89

O papado não agia em nome dos romanos, como fizera Henrique III.
Atuava contra eles. Os cismas de 1047-1048, 1058-1059 e 1061-1064 resul-
taram no aprofundamento de um mesmo processo: a remoção da igreja ro-
mana dos circuitos de dominação política e inserção patrimonial controlados
pela aristocracia local. Uma geração eclesiástica inteira fora moldada pelo
duradouro convívio com poderes laicos hostis, e pela luta diária contra suas
investidas para controlar a eleição episcopal e reaver a auctoritas regendi et
disponendi do bispo de Roma. Os constantes enfrentamentos com os condes de
Tusculum, Galeria, Nonantola e os Crescenzi demonstravam, dramaticamente,
que a preservação da ordem eclesial consolidada durante o governo leonino
dependia de manter as atribuições episcopais longe das mãos aristocráticas.
Os decretos de proibição da investidura laica e da regulamentação da eleição
papal – ambos formulados em abril de 1059, no bojo de um ameaçado con-
trole sobre Roma por parte de Nicolau II – tinham por alvo o poder senhorial
do Lácio, não o distante e aturdido governo regencial do Império. Sua criação
respondia aos desafios e impasses que se multiplicavam desde o inverno de

89
Glorioso regi, nobis eligendo pontificem, absit, ut nos intulissemus injuriam, cum ad hoc nos, (...)
necessitas impulerit, non rapina: ad hoc, inquam, nos invitos attraxit imminens periculum civilis belli,
non laedendi, vel minuendi livor imperii. PEDRO DAMIÃO. Disceptatio Synodalis Inter Regis Advocatum
et Romanae Ecclesiae Defensorem. PL, 145: 74.
184 coLunas de são pedro

1046, quando o governo papal passou a estar fundado na contraposição entre


o episcopado e a elite laica romana.
Outras atitudes de Alexandre II demonstram um nítido empenho para
esmorecer os pontos de sustentação das forças políticas romanas. Uma delas
ocorreu em algum momento entre 1061 e 1062, quando Roma ainda esta-
va tomada por um ambiente de hostilidades e balbúrdias. Àquela altura dos
acontecimentos, as incursões realizadas pelos partidários de Cádalo já cobra-
vam um alto custo aos Tusculanos e à nobreza citadina, exauridos em seus re-
cursos e homens dispostos a morrer por eles. Aproveitando-se desta fraqueza,
Alexandre empreendeu uma decisão repleta de implicações políticas ao insta-
lar religiosos de Lucca como cônegos regulares em São João de Latrão. Se ele
depôs e substituiu os residentes lateranenses ou apenas expandiu o corpo de
cônegos acrescentando novos integrantes não sabemos. A documentação não
é clara. Todavia, algo é certo: Alexandre instalou aliados de longa data num
antigo centro do poder aristocrático romano.90
Agostinianos, os religiosos eram oriundos da igreja de São Frediano e
é provável que tenham sido os beneficiários de concessões, cronologicamente
incertas, registradas por João Diácono, no Liber de Ecclesia Lateranensi, por
volta de 1170. Se este de fato foi o caso, aquele grupo recebeu privilégios
excepcionais, que incluíam todas as oblações dos principais altares associados
à maior basílica romana da época, além de prerrogativas sobre muitas posses-
sões e edificações de várias cidades e lugares vizinhos.91 No mesmo período,
o papa emitiu uma série de privilégios em favor da igreja de Lucca: ao menos
noves atos deste tipo podem ser atribuídos aos anos de 1061 a 1065, e mui-
tos deles registram especial cuidado em proteger os patrimônios dos “clérigos
comuns” (clericis ordinariis) daquela diocese.92 O favorecimento indica a ma-
nutenção dos fortes laços de identificação entre o papado e os eclesiásticos da
Toscana. Os vínculos unindo a basílica de Latrão e a igreja de São Frediano se-
riam lembrados durante o século XII: ao redigir o De Aedificio Dei, por volta de
1130, o cônego Gerhoch de Reichersberg enalteceria aquele episódio associa-
do à decisão de Alexandre, feito que “refloresceu a vida canônica” em Roma.93
O papa agia como seu antecessor, Leão IX. Servindo-se de um círculo
de aliados pessoais, recrutados longe do Lácio, numa área onde já exercia
um predomínio eclesiástico anterior à sua chegada ao papado, Alexandre re-
orientou a lealdade do principal pólo de poder ao sul de Roma. Ele promoveu

90
Italia Pontificia 3: 440.
91
JOÃO DIÁCONO. Liber de Ecclesia Lateranensi. PL 194: 1552. Ver ainda: Italia Pontificia 1: 25.
92
JL 4486, 4487, 4497, 4554, 4680, 4681, 4722, 4723, 4724.
93
GERHOCH DE REICHERSBERG. De Aedificio Dei seu de studio et cura disciplinae ecclesiasticae. MGH
Ldl 3: 172.
Leandro duarte rust 185

a ascensão de uma nova liderança política ao infiltrar naquela área laços de


obediência alheios à tradicional influência aristocrática ali existente. Como
notou Stephen McQuillan (2002: 125): “as mudanças de Alexandre em Latrão
foram uma intervenção efetiva nas estruturas da sociedade romana”.
É provável que outra controversa concessão tenha ocorrido na mesma
época. Sem indicar uma datação precisa, a Italia Pontifica contém o registro
de um privilégio através do qual Alexandre confirmou todo patrimônio da
abadia de São Paulo fora dos Muros, além de assegurar seu controle sobre as
oblações depositadas “nos altares de São Paulo”.94 É sabido que nas disputas
de 1059 e 1061, Ailardo, detentor das funções de bispo e abade (episcopus et
abbas) daquele estabelecimento, permaneceu leal a Nicolau II e ao próprio
Alexandre. Porém, sua resistência aos condes de Tusculum e Galeria não foi
fácil: o ataque desferido pelos aliados de Cádalo em 1063 assolou o monasté-
rio com pesadíssimas perdas materiais. Passada a turbulência, é provável que
Alexandre tenha retribuído o apoio com o privilégio descrito acima: o papa
recompensava aqueles que suportavam os desafios de resistir aos tradicionais
poderes romanos.
Com a posição em Roma assegurada, a cúpula pontifícia voltou suas
atenções para outro palco político, descortinado por seu antecessor: o sul
peninsular. Em 11 de junho de 1065, Alexandre colocou em ordem a gestão
das rendas eclesiásticas na igreja de São Clemente, em Velletri. Segundo Pe-
dro Damião, os clérigos locais solicitavam à Cúria que os ajudasse a puxar as
rédeas da avareza de seu bispo, um pecador obstinado em concentrar arbi-
trariamente todas as oblações dos fieis.95 Atendendo às súplicas, o papa as-
segurou à congregação sacerdotal um terço de todos os pagamentos devidos
por testemunhos, um terço das rendas obtidas por todas as áreas cultivadas e
solos aráveis e a quarta parte dos dízimos de toda diocese.96 Não muito longe
dali, o abade do monastério dos Santos João e Paulo, situado em Casamari,
obteve a confirmação papal da imunidade (libertas) de sua comunidade mo-
nástica face a todos os poderes externos, laicos ou episcopais. Na mesma re-
gião, outro privilégio deste tipo foi oferecido à Sé de Terracina (McQUILLAN,
2002: 129).
Velletri, Casamari e Terracina tinham algo comum. Estavam uni-
das num mesmo alinhamento, margeando a via Appia, a principal rota
de comunicação entre o Lácio e o sul peninsular. Portanto, os privilégios
concedidos por Alexandre pontilhavam de lealdade a principal passagem
para contato com os poderes eclesiásticos meridionais. As concessões
94
Italia Pontificia 1: 168.
95
PEDRO DAMIÃO. Briefe 73, 168. MGH Epp. Briefe 2: 366-369; 4: 238-247.
96
Italia Pontificia 2: 103.
186 coLunas de são pedro

eram mais do que doações pontuais, gestos circunstanciais. Eram deci-


sões embaladas por uma necessidade regular: favorecer e sustentar os
verdadeiros aliados do pacto de Melfi, em 1059. E, de fato, anos depois
o papado continuava a mover-se naquela direção. Em 1067, Alexandre
investiu Guilherme de Montreuil como senhor da “baixa Campagna”, o
que provavelmente significou atribuir-lhe o controle da região de Cepra-
no, cidade distante não mais do que poucas dezenas de kilômetros da
Via Appia.97 Guilherme era um guerreiro experiente. Calejado por guerras
travadas na Gália, em Aragão e na Catalunha, onde lutou empunhando
o estandarte de São Pedro (vexillum Sancti Petri), ele ganhou fama ao
liderar a violenta conquista da fortaleza muçulmana de Barbastro, em
106498 (Ver igualmente: FERREIRO, 1983: 129-144). A responsabilidade
por vigiar e proteger aquela estratégica região italiana foi confiada a um
homem cuja vinculação ao papado havia sido forjada em campo de bata-
lha, endurecida pelo sabor dos butins.
Num registro tardio, lavrado pela chancelaria de Pascoal II em 2 de ju-
nho de 1109, encontramos outro indicador da insistência com que o papado
vinculava seus interesses ao engrandecimento do clero meridional. Trata-se de
uma carta com a qual o papa anunciou a todos os bispos da Campagna a cano-
nização de Pedro, bispo de Anagni. Suas poucas linhas descrevem o novo san-
to como um monge que praticou a pureza e simplicidade do ofício pastoral.99
Ao investigar a origem do bispo, nos deparamos com uma informação crucial:
segundo os Acta Sanctorum, a eleição de Pedro atendia às recomendações de
Alexandre, que o mandou buscar nos claustros de São Benedito de Salerno.100
A Sé de Anagni, situada não muito longe de Ceprano e de Velletri, foi confiada
a um religioso oriundo de uma igreja cujo arcebispo estava implicado na polí-
tica papal pelo compromisso de 1059.
O extensivo favorecimento dos círculos religiosos da Toscana e da Cam-
pagna por parte da Cúria revela o sentido seminal da eclesiologia papal: a
concentração de privilégios naquelas duas áreas materializava um expressi-
vo empenho para consolidá-las como pontos de sustentação das decisões do
papa. Elas deveriam funcionar como contrapesos políticos à cidade de Roma,
dando vida a um equilíbrio de poderes que fizesse frente ao tradicional predo-
mínio aristocrático no centro peninsular.

97
AMATO DE MONTECASSINO. Ystoire de li Normant: 174-175; ANNALES ALTAHENSIS MAIORES.
MGH SS rer. Germ. 4: 72-73.
98
ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiastica Libri Tredecim. LE PREVOST 2: 105-108.
99
Vir sanctus Petrus , quondam Anagniae episcopus, de regula monachorum assumtpus, in pastorali
officio pure, simpliciter, solerti vigilantia et exemplo. PASCOAL II. Epistola. PL 163: 261, JL 6239.
100
VITA SACNTI PETRI EPISCOPI. AASS Augusti 1: 230-237.
Leandro duarte rust 187

O argumento pode ser uma vez mais demonstrado com outro episódio.
Segundo o Chronicon Sublacense, por volta de 1068, Umberto, o reformador
instalado por Leão IX à frente da abadia de Subiaco, foi sequestrado. Apa-
rentemente, sua decisão de erguer uma fortificação em Tovanello exasperou
o conde Lando de Civitella. Ameaçado, o aristocrata revidou, emboscando o
abade. Entretanto, algo incomum deve ter ocorrido no cativeiro. De alguma
forma, o abade deixou-o como aliado do conde e passou a conduzir o monas-
tério sob cerrada reprovação de seus próprios monges.101 Estes acorreram à
Farfa e suplicaram a João, filho de João Otaviano, que assumisse a abadia.
Ciente da iniciativa, o conde interveio e amedrontou o escolhido, que se reco-
lheu de volta ao silêncio de sua cela.
Os monges não recuaram. Apelaram a certo João de Azzo e ofereceram-
lhe o posto de abade. Por sua vez, Umberto recusou-se a abdicar. O monasté-
rio, então, mergulhou em perigosa desordem, com os “filhos de São Benedito”
convivendo sob o mesmo teto como inimigos. A esta altura, as graves notícias
do conflito chegaram aos ouvidos de Alexandre e seu envolvimento é politi-
camente eloquente. Tendo perdido a confiança em Umberto, o papa enviou
Desidério, abade de Montecassino, e o arquidiácono Hildebrando à frente de
um contingente de homens armados (multo apparatu Militum). Em junho os
dois chegaram ao monastério e reuniram os monges. Umberto foi obrigado a
renunciar e João Otaviano foi designado novo abade.102 Alexandre concretizou
um desejo de Leão IX. Sua agressiva intervenção em Subiaco removeu um
abade cúmplice de um nobre local e o substituiu por um aliado proveniente de
Farfa, cujos laços com o papado e seus interesses exteriores ao Lácio contavam
já com um respaldo de duas décadas (BOYNTON, 2006: 96).
Se for correto afirmar – como tem feito a historiografia na senda de Au-
gustin Fliche – que o reconhecimento de Alexandre II por parte do governo re-
gencial do Império marcou a emancipação do papado como instância decisó-
ria, devemos reconhecer que isto não se deu na forma de uma brusca guinada
final em direção a um centralismo. Outra realidade política entrou em vigor: a
de que o fortalecimento do poder pontifício repousava em sua capacidade de
desfazer laços com as forças sociais locais e voltar-se para fora de Roma, para
longe do cinturão de sua territorialidade imediata.
Condição paradoxal para nosso olhar a deste “centro” cujo fundamento
consistia em “descentrar-se”; cuja estabilidade repousava no êxito em des-
prender parcelas de poder decisório e empenhá-las, negociando-as, em pontos
exteriores à sua inserção espacial. Foi o que fez Leão IX com o império, Es-

101
CHRONICON SUBLACENSE. RISS 24: 932.
102
CHRONICON SUBLACENSE. RISS 24: 933-934.
188 coLunas de são pedro

tevão IX com o duque da Lotaríngia, Nicolau II com os normandos e o clero


peninsular meridional. E o fez igualmente Gregório VII, entretanto, através de
seus legados, protagonistas na condução dos sínodos papais e tema do próxi-
mo capítulo.
Capítulo 4

O papado além de Roma e da


reforma 2 (1073-1088)

O pontífice agia não segundo sua von-


tade, mas conforme a necessidade.
Bruno de Segni, 1109?

4.1. A organização: a dilatação da esfera decisória papal

Por meio de uma epístola datada de fins de junho de 1077, o papa infor-
mou aos “reis, aos condes e aos outros príncipes da Hispania” que havia feito de
Amato, bispo de Óleron, seu “sucessor nestas regiões” e solicitava-lhes “confiar,
sem hesitações, em seus conselhos nas questões que pertencem a Deus e que são
necessárias para a salvação de vossas almas”.1 Dias depois, outra carta deixou a
chancelaria papal. Estava endereçada a “todos os arcebispos, bispos, abades, reis,
príncipes, clérigos e igualmente aos cristãos da Gália Narbonense, Gasconha e região
da Hispania”. Seu texto era portador da ordem de receber o bispo de Óleron:

pela autoridade apostólica, como nossa presença, ou antes a do bem-


aventurado Pedro; e em razão da reverência à Sé Apostólica da qual ele
é enviado, vos ordenamos obedecer e ouvi-lo em todas as coisas como à
nossa própria face ou à resposta de nossa viva voz.2

1
Regibus, comitibus ceterisque principibus Hyspaniae (...) vicem nostram ad partes illas dedimus (...).
Quorum consiliis in his, que ad Deum pertinente et saluti animarum vestrarum necessaria sunt, indu-
bitabiter potestis credere. GREGÓRIO VII. Reg. 4: 28. MGH, Epp. sel. 1: 343-347. O trecho transcrito
refere-se aos poderes legatinos conferidos a Amato e a Frotardo, abade de Saint-Pons em Thomières.
2
Omnibus archiepiscopis, episcopis, abbatibus, regibus, principibus, clericis quoque ac laicis in Nar-
bonensi Gallia, Guasconia, Hispanique regione (...) Quem sicut nostram immo beati Petri presentiam
vos suscipere apostolica auctoritate jubemos; ac sic pro reverentia apostolicae sedis cuius nuncius est,
vos in omnibus sibi obedire atque eum audire mandamus ut propriam faciem nostram seu nostrae
vivae vocis oracula. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 21: 56-58. No Registrum de Gregório, regnum ou terram
190 coLunas de são pedro

Essas palavras fizeram de Amato um legado papal. Olhando de relance,


poderíamos acreditar que o acesso ao exercício desta função equivalia a ser
promovido a um outro “eu” do pontífice, a transformar-se na sombra de inte-
resses distantes, irradiados por Roma. No entanto, cuidado. É preciso medir
as palavras. O nome estampado em cartas daquele tipo não designava um
simples portador da autoridade apostólica, um mero intermediário encarre-
gado de transmiti-la. Mais do que um agente de comunicação daquela autori-
dade, um legado era seu meio de encarnação. Nele, ela adquiria rosto e voz,
uma presença que caminharia entre os homens, costumes (morum) que lhe
conferiam um peso moral, feitos (actuum) pelos quais ela efetivamente seria
sentida, vivida. Assumir a função legatina era unir-se a uma sublime potência
sagrada, que por sua vez tornava-se uma persona.
Com os legados a autoridade apostólica fazia-se homem. Entranhava
em um corpo, um sucessor, assim como as palavras de Pedro encarnavam nos
papas. O poder legatino era a reedição daquela ligação mística pela qual o
apóstolo continuava a existir em cada um e em todos os seus herdeiros pasto-
rais. Através desta união, segundo Gregório VII:

pela disposição divina, ele mesmo [o apóstolo Pedro] indubitavelmente


recebe o que quer que tenha sido enviado para nós, quer escrito, quer
em simples palavras; e quando nós percorremos as letras ou escutamos
as vozes dos que falam, ele próprio distingue, por escrupuloso exame, o
que tinha se apresentado ao coração encarregado de dizer.3

Aos olhos dos próprios contemporâneos, os legados continham o pon-


tífice em si do mesmo modo que ele continha o “Príncipe dos Apóstolos” em
seus olhos e ouvidos. Eram, por assim dizer, versões menores do mistério da
Encarnação: neles a autoridade dos papas assumia dimensões humanas, tor-
nava-se co-homem. No corpo dos legados, ela era trazida ao convívio dos fiéis
como o nascimento do Filho trouxera o Deus Pai a terra. Por isso, Gregório
VII insistentemente reportava sua relação com aqueles emissários especiais a
um mesmo fundamento bíblico, às palavras dirigidas por Jesus aos apóstolos:
“quem vos ouve, ouve a mim, e quem vos despreza, despreza a mim”.4

Hyspaniae se referem às regiões do norte-nordeste do atual território espanhol: Leão, Castela, Narrava,
Aragão e Astúrias.
3
Divina dispositione vicem seu potestatis gerimus, profecto, quicquid ad nos aut elementa percur-
rimus aut loquentium voces auscultamus, ipse, ex quo corde mandata prodierint, subtili inspectione
discernit. GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10. MGH. Epp. sel. 1: 265.
4 Qui vos audit, me audit, et qui vos spernit, me spernit. GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10. MGH. Epp. sel.,
1: 265. Em todo o Registrum gregoriano esta alusão a Lucas 10: 16 se aplica aos legados, mas não
apenas a eles, outros clérigos encarregados de “agir em nome do papa” por vínculos menos formais
Leandro duarte rust 191

Estes dizeres de Cristo eram o ponto de partida para uma sequência


de similitudes, um efeito dominó simbólico: a união instaurada entre Jesus e
seus apóstolos repetia-se, de modo especial, no vínculo que ligava Pedro a seus
papas, e era replicada na comunhão que atavam o papa a seus legados. Os
personagens bíblicos eram as figuras-tipo, os modelos da sagrada comunhão
existente entre o Verbo divino, a autoridade e os eleitos para guiar os rebanhos
de fiéis. Da mesma forma que o Salvador pôde ser ouvido pelos lábios de seus
apóstolos, da mesma maneira que era um dever acolher as decisões de um
pontífice “como se ele as tivesse recebido da boca do próprio apóstolo”,5 cabia
também acatar as ordens dos legados como se fossem a viva voz que saia da
garganta do papa: “ouça-os como a nós mesmos”, disse Gregório a Boleslau, du-
que da Polônia.6 Através de um homem como Amato, “o que quer que pertença
ao bem-estar da santa igreja pode, com a ajuda de Deus e em nosso nome, ser
trazido à compleição por zeloso cuidado”.7
Assim como o papa detinha a autoridade apostólica de modo pessoal,
como vimos no capítulo anterior, o poder legatino e a autoridade pontifícia
eram um mesmo modo de existir, compunham um continuum substancializado
em voz, atos e juízos. Compreender a função legatina como um ofício existen-
te em si, algo que lembraria um cargo possível de ser distinguido e separado
daquele que o ocupava não passaria de abstração inapropriada, imposta por
nosso apego à imagem do burocrata moderno. A pessoa e a função exercida
confundiam-se, uniam-se indissociavelmente, abrigadas na sombra protetora
do prestígio petrino: “as questões com as quais o governador e líder da Igreja
romana não pode lidar em sua presença, ele confia, em seu nome, aos legados”.8
Para contornar sua limitação real e humana, o pontífice recrutava seus envia-
dos: ele somava co-realizadores à sua voz, mais do que simplesmente prolon-
gá-la ou estendê-la pelas boca de outros.
Longe de inspirar um senso abstrato ou formal do dever, de velar por in-
teresses alheios, a designação para o posto de legado selecionava aqueles que
constituiriam uma totalidade intencional com a vocalidade papal. A função
implicava em assumir um poder conduzido de modo pessoal, ativo e criador, e
tentar sintonizá-lo com objetivos acalentados por muitas mentes. Era uma ten-
tativa de acoplar formas de agir heterogêneas. Isto fazia do exercício daquele

eram apresentados por meio desta referência bíblica: GREGÓRIO VII. Reg. 1: 17; 2: 40, 73. MGH Epp.
sel. 1: 27, 177, 234. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 5, 21, 40: 10-11, 56-58, 100-101.
5
Si ab ore ipsius apostoli accepisset. GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10. MGH. Epp. sel. 1: 265.
6
Eos itaque sicut nos audite memores. GREGÓRIO VII. Reg. 2: 73. MGH Epp. sel. 1: 234.
7
Et nostra vice ea, que ad utilitatem sanctae ecclesiae pertinent, cum Dei adiutorio studiosa procura-
tione peragantur. GREGÓRIO VII. Reg. 2: 40. MGH Epp. sel. 1: 177.
8
Quatinus ea quae gubernator et rector eiusdem Romanae ecclesiae per suam praesentiam expedire
non praevalet, vice sua legatis concessa. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 21: 56.
192 coLunas de são pedro

posto algo nem sempre alinhado aos princípios cultivados em Roma. Mesmo o
legado mais próximo ao papa imprimia um tom muito pessoal à suas decisões.
Observe-se esta epístola gregoriana:

Tem sempre sido costumeiro e muito necessário que, quando quer que
um legado da Sé Apostólica tenha celebrado um concílio em partes dis-
tantes, ele deveria sem demora retornar para relatar sobre tudo o que
realizou; assim, nós estamos surpresos e atormentados [quanto ao fato
de] que tu, irmão, após o sínodo ter sido concluído e no qual emergiram
tantas questões, nem retornou a nós nem, tendo em vista a necessidade
ou nossa própria expectativa, enviou-o de volta quem está contigo [o
subdiácono Raimbaldo]. (...) Teria sido prudência tua ter-nos enviado
aquele que nós associamos a ti ou alguém mais que esteve presente no
sínodo e que teria sido investido em teu nome para nos dar um relato
razoável de todas as questões.9

Além de levemente repreendido, o legado em questão – Geraldo, carde-


al bispo de Óstia –, teve revogadas as decisões tomadas por ele no sínodo reu-
nido na região fronteiriça de Novempopulania, na Península Ibérica. Geraldo
havia deposto Guilherme, arcebispo de Auch, e Pôncio, bispo de Tarbes, por
manterem contatos com excomungados. Segundo Gregório VII, o arcebispo
“não deveria ser sujeitado à deposição somente porque ele tem se comunicado
com uma pessoa excomungada”. Sobre o bispo de Tarbes, o legado recebeu ins-
truções idênticas: “se nenhuma outra ofensa pode ser encontrada contra ele por
prova legal, ele não deveria faltar à restituição a seu ofício”.10
O legado era compelido a voltar atrás e desfazer suas decisões. É pro-
vável que a revogação ditada pelo papa tenha causado grande estranheza a
Gerardo e, talvez, o tenha desorientado. Afinal, a tradição canônica dava-lhe
toda razão. Como afirmou Greta Austin (2009: 183) “um grande número de
cânones estabelecia que um clérigo que mantivesse contato com um excomungado
deveria ser excomungado”. Patrick Healy (2006: 216) vai ainda mais longe ao

9
Miramur et multum anxii sumus, quod, cum semper consuetum et valde necessarium fuerit, ut, si
quando legatus apostolice sedis concilium in remotis partibus celebraverit, sine mora ad annuntian-
dum omnia, que egisset, reverteretur, tua fraternitas post peractam synodum, in qua tot negotia emer-
serun, nec ad nos rediit nec eum, qui secum est, considerata vel necessitate vel nostra expectatione
remisit. (...) sed debuerat prudentia tua aut illum, quem tibi adiunximus, aut aliquem, qui synodo in-
terfuisset quique omnia vice tua nobis rationabiliter expedire sciret, ad nos direxisse, quatinus perspec-
tis omnibus confirmanda confirmaremus et, si qua mutanda viderentur, discreta ratione mutaremus.
GREGÓRIO VII. Reg. 1: 16. MGH, Epp. sel. 1: 25.
10
Ut (...) propter hoc solum, quia communicavit excommunicato, deiectioni subiacere non debeat (...)
in eo crimen legali approbatione inveniri non possit, officii sui restitutione non careat. GREGÓRIO VII.
Reg. 1 : 16. MGH Epp.sel. 1: 26.
Leandro duarte rust 193

assegurar que a fórmula “nenhum contato deve ser mantido com um exco-
mungado” (non esse communicandum excommunicatis) era um “tema popular
entre o partido gregoriano”. Porém, o aspecto mais relevante está por vir.
A sentença de Gerardo, considerada imprópria e em seguida anulada,
era algo que o próprio Gregório VII costumava reconhecer como “justa puni-
ção”. Em 1074, o papa se dirigiu ao arcebispo de Tours para informar-lhe as
razões pelas quais lhe retirava o ofício episcopal, e disse: “uma vez que tu não
temeste manter-se na companhia de um homem excomungado pela Sé Apostóli-
ca (...) a espada da punição canônica deveria justamente ser lançada contra ti
e uma sentença de deposição deveria prontamente ser estabelecida”.11 E mais:
como esquecer que o mesmo argumento justificou a excomunhão e deposição
do rei Henrique IV, em 1076?! As justificativas oferecidas pelo papa para a
condenação não deixariam margens para dúvidas: “e porque ele desprezou obe-
decer como um cristão, e não retornou ao Deus que abandonou por ter contato
com excomungados (...), em teu nome [apóstolo Pedro] eu o ato com o grilhão
do anátema”.12 Gerardo teve sua decisão anulada, embora agisse em estrita
conformidade com a tradição canônica da qual o próprio Gregório se servia.
O impasse entre eles se deu porque decisões como aquelas colocavam em jogo
para o papado uma lógica histórica maior do que o fazer valer da lei escrita.
Rusgas e desacordos despontavam repetidas vezes nas relações entre a
cúpula da Igreja de Roma e seus legados, “um dos mais importantes instrumen-
tos do governo papal” (ROBINSON, 1990: 146). O episódio envolvendo Geral-
do de Óstia em 1073 estava longe de ser a única vez em que um “enviado de
Roma” foi desautorizado. Numa carta de 25 de novembro de 1078, Gregório
se dirigiu a Hugo, bispo de Langres, e a Huberto, subdiácono romano. Ambos
foram acusados de se deixar influenciar pelas maquinações dos inimigos do
conde de Flandres para excomungá-lo:

Chegou aos nossos ouvidos que tu e Huberto, legado da igreja Romana,


excomungastes o conde Roberto de Flandres. Donde estou muito surpre-
endido que ousásseis realizar tal medida sem minha ordem (...), porque
não devia ter sido feito de outro modo por vós.13

11
Quoniam ab apostolica sede anathemizato adherere non timuisti, (...) canonicae ultionis gladius
in te deberet vibrari et depositionis sententia rite posset depromi. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 3: 8-9.
12
Et quia sicut christianus contempsit oboedire nec ad Deum rediit, quem dimisit participando excom-
municatis meaque monita (...) vinculo eum anathematis vice tua alligo. GREGÓRIO VII. Reg. 3: 10a.
MGH Epp. sel. a: 268-271.
13
Pervenit a aures nostras quod tu et Hubertus huius aecclesiae legatus Rodbertum Flandrensium co-
mitem excommunicastis. Unde mirari satis nequeo quod tale aliquid sine praecepto meo et vicarii mei
consensu, Diensis videlicet episcopi, quia aliter fieri a vobis non debuit, facere praesumpsistis. GREGÓ-
RIO VII. Epp. vag. 24: 62. Ver ainda: GREGÓRIO VII. Reg. 6: 7. MGH Epp. sel. 2: 407-408; CHRONICA
MONASTERII WATINENSIS. MGH SS 14: 70-175.
194 coLunas de são pedro

Se este trecho revela um papa a reclamar por obediência, ele igual-


mente expõe um legado que encarava a legitimidade de suas decisões como
algo dado, intrínseco à função ocupada, e não em uma permanente rotina de
consultas ao consentimento vindo de Roma. Embora clamasse por submissão,
o próprio Gregório admitia à subordinação devida pelos legados certa incli-
nação para agir com expressiva autonomia. Haja vista os rumos tomados pela
repreensão dirigida a Huberto. Ela não o impediu de atuar em nome da Sé
Apostólica, de ser recomendado pelo pontífice como “amado filho”,14 como um
homem de confiança, escolhido, no ano seguinte, para uma importantíssima
missão em solos anglo-normandos.
Em nova carta ao subdiácono pouco após a repreensão, Gregório o in-
formou que a “prudência dele” (prudentia tua) era necessária no reino de
Guilherme I. Lá, outro legado obstinava-se na oposição ao controle da igreja
por parte da coroa, política que tinha a anuência do arcebispo de Canterbury
e primaz local, Lanfranco. Ao agir com sinais de reprovação e repreendendo o
monarca, o enviado cometia, aos olhos papais, “excessos” que colocavam em
risco a melindrosa, porém amistosa relação mantida entre o reino e a Igreja de
Roma (COWDREY, 1972: 79-114; 1989: 351-352). Huberto foi convocado a
endireitar as ações do legado que lá estava. O papa confiou no tato político e
no bom senso do homem que ele mesmo havia censurado por fomentar intri-
gas contra o conde de Flandres!
Motivos não faltavam para repreender a coroa normanda, que se inter-
punha a todo o momento entre o episcopado local e a Igreja Romana, impe-
dindo uma comunicação livre entre eles. Porém, isto não significava que o rei
deixasse de ser um “filho dileto e fiel a São Pedro”15, tampouco que ele poderia
ser advertido. Se os legados o faziam, advertiu o papa a Huberto, era porque
agiam por conta própria:

Declaraste-nos que o legado Teuzo tinha pronunciado palavras contra


o rei inglês como se fossem em nosso nome. As quais, como vós sabeis,
não foram ordenadas por nós. Entretanto, na verdade, por muitas coisas
a santa igreja romana pode lamentar contra ele [o rei]. Pois nenhum
entre todos os reis, mesmo entre os pagãos, ousou tentar contra a Sé
Apostólica isto que ele não se envergonhou de fazer: (...) separar bispos
e arcebispos dos limiares dos apóstolos.16

14
Huberto dilecto filio nostro. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 34: 90.
15
Tratamento dispensado ao monarca em: GREGÓRIO VII. Reg. 1: 70 – 4: 17 – 5: 19 – 7: 23. MGH
Epp. sel. 1: 100-103, 322-323; 2: 382-383, 499-508. Sobre as repreensões dirigidas ao arcebispo Lan-
franc em março de 1079: GREGÓRIO VII. Reg. 6: 30. MGH Epp. sel. 2: 443-444.
16
Significasti autem nobis Teuzonem quasi ex parte nostra legatum adversus Anglicum regem verba
Leandro duarte rust 195

Registrada por estas linhas, a incômoda autonomia dos legados desafia


qualquer sugestão para considerá-los integrantes de um forte grupo coeso,
unido pelo suposto hábito de espelhar a respeitável liderança do papa. Su-
gestão recentemente renovada por Leidulf Melve na obra Inventing the Public
Sphere: the public debate during the investiture contest (1030-1122). Retoman-
do os estudos realizados por Brian Stock na década de 1980, o autor coroou o
século XI como marco da história política e intelectual medieval ao considerá-
lo a época em que a estruturação de diversos grupos sociais passou a seguir o
mesmo molde: o de uma “comunidade textual”. Em linhas gerais, isto significa
dizer que cada grupo ou círculo de poder que os historiadores habitualmente
destacam na paisagem política daquele período – como os “partidos reforma-
dores”, o “episcopado imperial” ou o “movimento dos patarinos” – deveria ser
encarado como “uma unidade social fundada sobre as bases de uma dada inter-
pretação de um texto” (MELVE, 2007: 69).
Tais comunidades teriam abarcado não apenas letrados, mas igual-
mente “grandes grupos de semi-letrados e pessoas iletradas”, aproximados pela
aceitação da interpretação socialmente veiculada pelos letrados. Portanto, os
textos teriam sido elevados à condição de eficientes referências sociológicas,
uma vez que sujeitos históricos oriundos de diversos extratos sociais teriam
realinhado suas escolhas e condutas tomando-os como base comum. Segundo
o próprio Leidulf Melve (2007: 70), “é conferido ao texto o status simbólico de
referência real, substituindo a prerrogativa epistemológica do mundo falado e
adquirindo o mesmo status ontológico anteriormente associado com o divino”.
Esta larga intercessão textual, que desde então teria agregado diferentes perfis
sociais, tornou-se matriz da noção ocidental de esfera pública, resultado da
racionalização da representação de mundo a partir de uma integração herme-
nêutica. Integração que desde então nomeamos como “opinião pública”.
Politicamente falando, uma das implicações desta sofisticada aborda-
gem consiste em atribuir uma unidade de objetivos e ideais a todos aqueles
cujas práticas de poder são reportadas a uma mesma autoridade ou razão
de legitimidade. Em claro português, trata-se de admitir a validade de uma
generalização: a existência de um referencial textual comum é considerada
razão sociológica suficiente para afirmar a vigência de propósitos comuns,
aspirações comuns, modos de agir comuns. O predomínio da textualidade
fundamentaria o pertencimento coletivo à mesma estrutura comunicativa e
operativa (MELVE, 2007: 72-75).

fecisse. Que noveris ex nobis mandata non esse. Verum multa sunt, unde sancta Romana ecclesia ad-
versus eum queri potest. Nemo enim omnium regum, etiam paganorum, contra apostolicam sedem hoc
presumpsit temptare, quod is non erubuit facere, scilicet ut episcopos, archiepiscopos ab apostolorum
liminibus ullus tam (...) prohiberet. GREGÓRIO VII. Reg. 7:1. MGH Epp. sel. 2: 459.
196 coLunas de são pedro

A historiografia frequentemente caracteriza o círculo de partidários papais


como uma “comunidade textual”. Mas isso não é fortuito, tampouco fruto de al-
gum caprichoso “acaso”. A incorporação desta imagem é ditada pela necessidade
de validar o modelo de um governo eclesiástico centralizador. Afinal, afirmar que
o comportamento e até mesmo a personalidade de tais homens eram guiados por
um referencial objetivo, emoldurado pela imobilidade da escrita, é uma forma
eficaz de convertê-los em “braços institucionais”, em engrenagens de um maqui-
nário de governo. É atender à exigência teórica de reconhecer no funcionamento
institucional uma lógica de desumanização. Foi o que fez Robert Figueira (1989:
191), ao definir os legados como o “meio pelo qual informações e recursos eram
transmitidos ao centro do poder, decisões eram executadas e a jurisdição comissio-
nada aplicada, recursos físicos eram transferidos para o exterior daquele centro”. A
obediência ao escrito torna-se garantia da subordinação das condutas sociais a
uma lógica maquinal, em tudo semelhante a um automatismo sem rosto e expur-
gado das inconstâncias e volições dos laços pessoais. O predomínio das referên-
cias textuais sobre a sociabilidade é a resposta para perguntas que inquietam os
medievalistas: como os legados mantinham-se obedientes ao papa longe de sua
presença? Como eles zelavam pelos distantes interesses da Sé Romana quando
tinham que agir por si mesmos? Em todos estes casos, dever-se-ia reconhecer que
a lei escrita atuava como medida de controle e restrição, como enquadramento
político: “não importa quão competente ou bem-sucedido um legado possa parecer,
ele nunca evitou inteiramente a supervisão papal, ao menos não enquanto operava
legalmente dentro dos limites da lei canônica” (RENNIE, 2011: 84).
Os casos apresentados neste capítulo indicam que o difícil entrosamento
mantido entre o papa Gregório VII e seus legados não alcançou tal unidade,
não apresentou esta harmonia. Eles não parecem ter constituído uma “comu-
nidade textual”. A afirmação não se baseia somente na incompatibilidade de
suas atuações com o modelo da “generalização empírica” (MELVE, 2007: 69),
já que suas decisões reportam a uma dinâmica decisória descentralizada, na
qual o conflito e a negociação eram regra. Não. Tal afirmação se apoia, sobre-
tudo, na constatação da regularidade com que eles priorizavam outros meios
de comunicação como fontes de orientação para suas ações, sobrepondo-os
aos textos. Seus modos de agir e de pensar superavam as disposições escri-
tas e, repetidamente, efetivavam-se à revelia delas. Sua postura decisória se
nutria da escrita, sem dúvida. Mas igualmente da vocalidade, das inclinações
pessoais, da força dos costumes ou de premissas pontuais, locais. Sua consti-
tuição como grupo era marcada pela intensa mobilidade de referenciais inte-
lectuais e políticos, não por um irretocável predomínio de um deles. No curso
das ações legatinas era comum que os princípios textuais emergissem como
confins da orientação normativa, não como “o cerne” que a estruturava.
Leandro duarte rust 197

A imagem weberiana de “oficiais disciplinados” (RENNIE: 2011: 2), de


elevados funcionários pontifícios encarregados do cumprimento de deveres
objetivos e impessoais, primordialmente transmitidos por textos, não parece
condizente com a realidade do século XI. Exercer as funções legatinas não
era desempenhar uma representação política definida pela neutralização de
interesses pessoais. Um legado era mais do que um “instrumento enviado para
a cena de uma disputa para estender a influência papal” (RENNIE, 2011: 4).
Não se tratava de um agente eclesial a serviço de finalidades alheias, como se
subordinasse sua vontade a outra superior, inculcada em sua mente por ins-
truções escritas que deveriam fazê-lo pensar segundo os termos oferecidos por
outra pessoa. Não eram sucursais. Mas instâncias decisórias incorporadas e
toleradas em sua capacidade de deslocar os objetivos das ações papais. Possu-
íam autonomia, faziam valer suas diferenças e particularidades. E ninguém é
capaz de conferir maior evidência a estes aspectos do que Hugo, bispo de Die.

4.2. “Santo Satã”

Em 1073, impelido pela insatisfação de Gregório com sua negligência


em enviar notícias da Gália, Gerardo de Óstia iniciou a viagem de regresso
para Roma, seguindo pela antiga rota rumo aos Alpes. Ao chegar à cidade de
Die, o legado foi recebido pelo clero local em alvoroço. A deposição do bispo
local era um clamor geral. Mas, embora seu nome tivesse já sucumbido à re-
putação de simoníaco, Lancelino recusava-se a deixar a dignidade episcopal,
entrincheirando-se na resistência armada contra os próprios fiéis. Após ouvir
os citadinos, os cônegos regulares e a própria plebe, Gerardo selou a deposi-
ção do bispo, ao sentenciar que “nenhuma misericórdia” deveria ser concedida
a um homem como aquele, que carregava a “culpa inexpiável de ter participado
da venda do ministério pastoral”. O legado prontamente regeu a escolha de um
sucessor. O eleito foi o camerário da igreja de Lyon, chamado Hugo.17 Décadas
depois, ao redigir Vita Gregorii VII, Paulo de Bernried descreveria essa eleição
como uma proeza divina, já que naquela ocasião “uma luz mais brilhante do
que o dia desceu do céu e que em suas mentes todos os presentes não tiveram dú-
vida de que o Espírito Santo havia chegado”.18 Segundo Bertoldo de Reichenau,

17
Giraldus Ostiensis episcopus, Romanae sedis legatus in Galliis, concilio Cabiloni habito Romam
rediens, et apud Diensem urbem hospitatus, cum clericis in aecclesia de utilitate aecclesiae loquebatur.
Erat enim in eadem urbe Lancelinus symoniacus dictus episcopus (...) et se in domo episcopali manu
militari defenderet, et episcopatum retineret temptaret, tractabat legatus cum civibus, canonicis scili-
cet et plebis maioribus, quid de episcopo agerent (...) inexpiabilem esse culpam venditii ministerii, et
juxta decreta sanctorum patrum (...) erga symoniacos nullam misericordiam habendam in servandam
dignitate. HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 410.
18
Hugo Diensis in cujus electione tantum lumen fertur coelitus descendisse, ut diem vinceret, et corde
198 coLunas de são pedro

Hugo e Gerardo eram amigos de longa data19 (Ver: HEALY, 2006: 203-206)
O eleito dirigiu-se para Roma, onde chegou em dezembro ansioso pela
consagração como bispo. Mas ela só ocorreu nos idos de março, forçando Hugo
a permanecer quatro meses no séquito de Gregório VII. Segundo a historio-
grafia, esta estadia teria sido uma experiência decisiva na vida do bispo recen-
temente eleito, cuja visão sobre os assuntos da igreja teria sido radicalmente
reformulada: a residência na corte pontifícia o teria levado a adotar a “men-
talidade reformadora”. Hugo teria deixado o palácio de Latrão embalado pelo
desejo de “liberar a agenda reformadora de Gregório” (RENNIE, 2011: 30). O
convívio com o ilustre papa assume aqui ares de uma “experiência de conver-
são”, que teria redefinido a identidade de nosso personagem, transformado de
alguma forma em uma nova figura, devotado à missão de servir lealmente ao
seu “mentor” (BLUMENTHAL, 1991: 161; ROBINSON, 1990: 150-153).
É assim que Hugo surge nos registros documentais: sob o espectro do-
minante de Gregório VII. Sabemos muito pouco sobre seu berço, origem social
ou formação religiosa. E ainda que soubéssemos, é provável que tais aspectos
recebessem pouca atenção. Afinal, a historiografia se comporta como se enxer-
gasse nesta etapa de sua biografia uma espécie de vida anterior, fase pregressa
a ser investigada como pano de fundo, quando muito como tema introdutó-
rio. Em termos práticos, Hugo de Die é tratado como um sujeito que parece
ter nascido para a História ao se tornar legado. Pois seu aparecimento se dá,
efetivamente, aqui, neste ponto, com esta suposta “conversão à Reforma”: ver-
dadeiro surgimento de um “representante convicto”, um prelado tomado por
um senso de dever e dependência de seu superior eclesiástico. Embora com
diversas ressalvas, foi assim que Kriston Rennie (2011: 84) o apresentou em
seu recente Law and Practie in the Age of Reform:

Hugo de Die deve ser visto não apenas como um legado carregando
a autoridade papal, mas também como um reformador de confrontos
de campo, comissionado com um mandato específico do papa. Ele era
um instrumento da reforma, um defensor voluntário da restauração, um
propagador obstinado e metódico da influência papal e a mais óbvia e
imediata resposta da Igreja Romana contra a simonia, o nicolaísmo e a
investidura laica na França (RENNIE, 2011: 84).

Terá mesmo sido assim?


Entre 1075 e 1078, valendo-se de uma série de sínodos – Clermont,

omnium qui aderant, advenisse Spiritum Sanctum non dubitarent. PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii
VII Papae. PL 148 : 64.
19
BERTOLDO DE REICHENAU. Die Chronik. MGH SS rer. Germ. N.S. 14 : 316.
Leandro duarte rust 199

Anse, Dijon, Autun e Poitiers –, este legado papal operou uma verdadeira de-
vassa nas igrejas da Gália. Impressiona a lista de clérigos aí depostos, sus-
pensos ou citados para destituição de seus ofícios e funções: Estevão de le
Puy, Guilherme de Clermont, Ivo de Senlis, Roberto de Auxerre, Lamberto
de Thérouanne, Frotgério de Châlons-sur-Saône, Ralf de Amiens, Radbod de
Noyon, Guy de Beauvais, Helinardo de Laon, Teobald de Soissons, Isembert de
Poitiers, Agino de Autun, entre outros. As sentenças derivavam de acusações
de todo tipo, sobretudo simonia, investidura régia e por consagrar invasores
de igrejas como padres.20
Segundo o Chronicon de Hugo de Falvigny, no curto espaço de cinco
meses, entre os sínodos de Autun (setembro, 1077) e Poitiers (janeiro, 1078),
nada menos do que cinco arcebispos (Manssés de Reims, Richer de Sens, Ri-
cardo de Bourges, Rodolfo de Tours, Hugo de Besançon) foram declarados
depostos ou suspensos.21 Para agravar ainda mais o cenário, em meio aos sen-
tenciados estava o novo bispo de Chartres, Godofredo. Tratava-se do sobrinho
de Josfred de Boulogne, bispo de Paris e chanceler real entre 1075 e 1077, um
dos mais ativos colaboradores do papado ao norte do Loire.22 Após as ações
de Hugo as palavras “Santa Igreja Romana” certamente soavam amargas em
uma multidão de ouvidos clericais da Gália. “De fato, esta foi uma verdadeira
decapitação da Igreja da França, que em fins de 1078, não deixa ao norte do Loi-
re quase nenhum bispo em condições de exercer suas funções”, assegurou Rudolf
Hiestand (In: GROSSE, 1993: 58. E ainda: COWDREY, 2000: III 279-281).
Uma convergência de fraquezas políticas tinha resultado no formidável
raio de ação encontrado pelo legado, que até então não passava do bispo de
uma modesta igreja vizinha a Lyon. A casa ducal da Borgonha – palco das as-
sembleias de Dijon e Autun – vivia em grande instabilidade nas mãos de Hugo
I, que abdicaria em 1079, antes de completar vinte e três anos, e se entregaria
à vida monástica em Cluny, arrancando protestos de Gregório VII.23 Embora
um engano de Jean Mabillon tenha dado origem à afirmação de que o bispo
de Die era sobrinho do duque da Borgonha (RONY, 1927: 290-292), de fato
este último favoreceu o legado com omissões, deixando vulneráveis os bispos

20
HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 413; GREGÓRIO VII. 4 :18, 19. MGH Epp. sel. 1: 324-
326; GREGÓRIO VII. Epp. vag. 30: 76-80.
21
HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 415-419; HEFELE-LECLERCQ, 5/2: 221-225. Ver ain-
da: MANSI 20: 483-490.
22
Nos meses anteriores às assembleias legatinas de Hugo, Gregório manteve estreito contato com o
bispo de Paris, tratado como um “homem de confiança” dentro do reino capeto. Assim o comprova a
epístola datada de 25 de março, na qual o papa havia encarregado Josfred de investigar queixas contra
o arcebispo de Reims, Manassés – acusado de impor arbitrariamente sentenças de excomunhão – e de
exortar o episcopado da Gália a combater a simonia e o casamento clerical. GREGÓRIO VII. Reg. 4:
20. MGH Epp. sel. 1: 326-329.
23
GREGÓRIO VII. Reg. 6: 17. MGH Epp. sel. 2: 423.
200 coLunas de são pedro

borgonheses quando “eles crescentemente vinham dos níveis médios e baixos da


nobreza” (BOUCHARD, 1987: 72) e exibiam enorme dependência da proteção
ducal. Já Guilherme VI, conde de Poitou – senhor de Poitiers, cenário de outro
sínodo legatino –, estava empenhado em dar provas de sua lealdade a Roma
e a seus enviados. As cartas gregorianas louvam sua “generosidade” (generosi-
tas) em doações fundiárias e fiscais, além de sua decisão de ceder aos apelos
para desfazer seu casamento com Hildegarda – filha do recém falecido duque
da Borgonha. O conde separou-se da única de três esposas a lhe assegurar
um filho. Aliás, a condição de legítimo herdeiro desta criança nascida de um
matrimônio irregular nunca foi colocada em suspeita pelo papado.24 Por fim,
o reino capeto: em 1074, Gregório encarregou o próprio conde de Poitou de
confrontar o rei Felipe I e censurá-lo pela “ruína da igreja da Gália”, deixando
transparecer sua indignação com a “fraqueza da coroa capetíngia”, segundo as
célebres palavras de Georges Duby (1992: 123-124).
Hugo moveu-se nas brechas criadas pela debilidade do rei e do duque e,
encorajado pela aliança com o conde, converteu a si mesmo em nova lideran-
ça eclesiástica. Suas ações afetaram a organização de províncias eclesiásticas
inteiras e lançaram em infortúnio o arcebispo de Reims, a quem cabia o título
de primaz da Gália segundo a longa tradição que remontava à Vita Remigii de
Hincmar, nos idos do século IX, e que celebrava a memória de São Remígio
como o “apóstolo dos Francos”, o responsável pelo batismo de Clóvis.25 Tra-
dição fortalecida pelo próprio papado com a conversão de Reims no palco do
magnum concilium reunido por Leão IX em 1049. Hugo depôs por simonia e
por sua perversa vita – segundo os escritos de Guiberto de Nogent26 – o prelado
detentor do sacrossanto privilégio de sagrar o rei dos francos.
Vivenciadas pelo episcopado galicano como agressões sem precedentes,
as decisões do legado não demoraram a provocar violentos contragolpes. O
bispo de Die relembraria numa carta ao papa como os preparativos para o
concílio de Poitiers foram marcados por “muitos perigos (...) contra nós, pri-
meiramente na viagem, e logo em seguida com muitos adversários na própria
cidade”.27 Esta atmosfera de ameaças foi se adensando até trovejar sobre o
legado quando, “para a infâmia e ruína da santa igreja, o arcebispo de Tours,
com o bispo de Rennes, perversos e com extrema soberba, ocuparam quase todo o

24
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 3, 18. MGH Epp. sel. 1: 126-128, 150-151; HUGO DE DIE. Epistola. RHGF,
14: 778. Ver ainda: RICHARD, 1903: 270-340; COWDREY, 1998: 334-363.
25
HINCMAR. Vita Remigii Episcopi. MGH SS rer. Merov. 3: 254-341; FLODOARDO. Historia Remensis
Ecclesia. MGH SS 13: 409-599.
26
GUIBERT DE NOGENT. De Vita Sua. PL, 156: 853-854.
27
Multa nobis pericula prius in itinere, multa nobis adversa in ipsa civitate. HUGO DE LYON. Epistola.
PL 157: 509-511; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: p. 418.
Leandro duarte rust 201

concílio”28 com homens armados, ocasionando grave tumulto. As espadas de-


sembainhadas e os gritos não o impediram de conduzir a aprovação de dez câ-
nones em Poitiers, entre os quais estava a ordem de que “ninguém entre o clero
e o povo reclame para si bens eclesiásticos como prerrogativa de parentesco”.29
Medida que favorecia, acima de tudo, a própria igreja de Die, cujo patrimônio
havia sido incorporado pelos poderes laicos locais como direitos de herança.
O legado valia-se da autoridade papal para legislar em causa própria. Sua
conduta seguia uma política pessoal, que preocupou Gregório VII, exigido a
aconselhar moderação:

nos parece que, uma vez que os filhos de tua igreja têm desejado restituir
os bens de tua igreja, tu deves receber e absolvê-los, (...) pois agrada-nos
mais que tu devas, de tempos em tempos, ser censurado por piedade do
que incorreres no ódio de tua própria igreja por excessiva severidade.30

Em pouco tempo circularam na Gália cartas nas quais Hugo figurava


como algoz de um assalto “contra a autoridade e os cânones” (contra auctori-
tatem et canones factum).31 Esbravejando contra a “crueldade dos romanos”, os
clérigos de Noyon acusavam o legado de se deixar guiar “mais por inveja do
que por justiça”.32 Subindo o tom dos protestos, o clero de Cambrai fez pesar
sobre seus ombros a reputação de homem que tentava:

agir pela diminuição da majestade real, até mesmo excomungar aos me-
tropolitanos, além de depor os bispos quaisquer que sejam eles, e ousam
glorificar tudo isto sob o pretexto da religião, de modo que o preferível
seja a ambição; repetidas vezes nos lançando a concílios inconvenientes
e julgamentos vindos de longe.33

28
Ecce enim pestis et dedecus sanctae ecclesiae archiepiscopus Turonensis, et cum eo episcopus Redo-
nensis, superbissime perversi, totum pene occupaverunt concilium (...). Nam dum etiam archiepisco-
pum Lugdunensem pene inflecterent ad tuitionem suam, ita ut pro eis orarert vel obloqueretur, floribus
ecclesiam effractis servientes eorum securibus armata manu introuentes, ita concilium magno tumultu
exturbaverunt... HUGO DE LYON. Epistola. PL, 157: 509-511; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH
SS 8: 418; MANSI, 20: 498-499; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 229-230.
29
Ut nullus de clero, sive de populo, eclesiastica bona jure consanguinitatis requirat sibi habenda.
MANSI, 20: 498. Cânone 3.
30
Videtur nobis, ut, quod filii ecclesie tue de rebus ecclesiasticis volunt tibi reddere, recipias eosque
absolvas tali tenore. (...) Melius enim nobis placet, ut pro pietate interdum reprehendaris, quam pro
nimia severitate in odium ecclesie tue venias. GREGÓRIO VII. Reg. 2: 43. MGH Epp. sel. 1: 180.
31
MANASSÉS DE REIMS. Epistola. In: HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 419-420; RHFG
14: 611-612.
32
EPISTOLA NOVIOMENSIUM CLERICORUM. MGH Ldl 3: 577-578.
33
Praesertim cum etiam de imminutione regiae majestatis agere audeant metropolitanos vero excom-
municare episcopos autem quoslibet deponere, quoslibet sublimare praesumant sub species religionis,
cum potius sit ambitionis; crebra indicentes concilia, et peregrina inferentes nobis judicia. EPISTOLA
202 coLunas de são pedro

Consumidas por queixas, estas cartas tornaram-se para os historiadores


provas de “que os bispos da Gótia eram maltratados, humilhados” (DUBY, 1990:
113). E quando muitos deles chegaram a Roma, abarrotados de ressentimento
contra o legado, Gregório se viu forçado a rever as decisões tomadas em Au-
tun/Poitiers e a anulá-las por meio de um memorandum. O papa se justificou:
“seguindo a temperança do discernimento mais do que o rigor dos cânones, nós
examinamos, não sem pesado labor, os casos dos bispos da França e Burgúndia
suspensos ou condenados por nosso legado, Hugo, bispo de Die”.34 Esta foi apenas
uma das muitas ocasiões em que o Gregório se viu pressionado a corrigir o
excessivo rigor das decisões deste legado. Eis outros casos.
Em 1081, pouco tempo depois do alvoroço atiçado em Poitiers, o papa
teve que esfriar os ânimos legatinos. Desta vez, no entanto, ele repreendeu o
bispo de Die e Amato de Óleron pela suspensão de bispos e abades ligados a
Guilherme I, o rei anglo-normando, dizendo: “é nosso desejo, irmãos, que vós
envieis estas epístolas de restabelecimento, através de seu presente portador, aos
referidos bispos e abades que suspendestes (...) e que não exaspereis o rei em tais
matérias sem nosso consentimento”.35 Entre 1082 e 1083, em meio às turbulên-
cias da tempestade política provocada pela expedição conduzida por Henrique
IV contra Roma, o papa esclareceu a Hugo as razões que o levaram a absol-
ver e reinstalar em sua função Godofredo, bispo de Chartres, após o legado
excomungá-lo e decretar sua deposição uma segunda vez.

Em relação ao [que foi decidido sobre o] bispo de Chartres, que parece


inspirar alguns murmúrios de tua fraternidade, saiba que, por respeito
a ti, por muito tempo nós o mantivemos em Roma, juntamente com
o bispo de Paris, para que tu viesses ou então designasse enviados e
testemunhas idôneas para dar provas das acusações levantadas contra
ele. Como não fizeste nem um, nem outro, fomos forçados, pela neces-
sidade da justiça, a aquiescer com a restituição dele por julgamento da
santa igreja Romana. (...) Teria sido mais apropriado e mais digno de ti,
especialmente nestes tempos difíceis e em meio à aflição que Ele está
sofrendo na emulação de Deus, em justa consciência, ministrar, a Ele e a
seus filhos, as doces consolações, do que requerer tais e tais questões e,
assim, envolvê-Lo nestas ninharias para implicar em dor e mais dor, para

CLERICORUM CAMERACENSIUM AD REMENS. RHGF, 14: 778-780.


34
Discretionis temperantiam potius quam rigorem canonum sequentes causas episcoporum Francie
atque Burgundie, qui suspensi seu damnati a legato nostro Hugone Diensi episcopo fuerant, non sine
gravi labore discussimus. GREGÓRIO VII. Reg. 5: 17. MGH Epp. sel. 2: 378-380.
35
Quare volumus, ut fraternitas vestra supramemoratis episcopis (...), quos suspendistis, per presen-
tium portitorem restitutionis litteras mittat et prefatum regem in talibus ulterius sine assensu nostro
non exasperet. GREGÓRIO VII. Reg. 9: 5. MGH Epp. sel. 2: 580.
Leandro duarte rust 203

multiplicar os fardos, ao invés de dividi-los.36

O acúmulo de poder de Hugo o tinha conduzido à elevada dignidade de


arcebispo de Lyon, mas nem por isso ele deixou de semear “ninharias”.
Os constantes desacertos e estorvos que sobressaíam das relações entre
Gregório e aquele que foi considerado por muitos historiadores o homem for-
te do papado levaram um experiente estudioso a questionar: “de onde vem a
lenda de um Gregório VII rijo como uma barra de ferro, inflexível na aplicação
das leis eclesiásticas? [Afinal,] era o legado quem se mostrava excessivamente
severo”. O abade Rony (1928a: 20) tinha razão. Onde está o Gregório centra-
lizador e inquisitorial exaltado pelo século XIX? Qual o paradeiro documental
do homem que Leopold von Ranke (1951: 24) proclamou ter sido um “espírito
ousado, tenaz e de longo alcance; sistemático como uma construção escolástica,
imperturbável”? (Ver ainda: FOURNIER, 1899; ROCQUAIN, 1881).
O difícil entrosamento mantido pelo pontífice e seu legado nos remete
a um célebre relato feito por Pedro Damião. Certa vez, sentindo o fardo dos
compromissos da vida de cardeal, Damião queixou-se do arquidiácono Hilde-
brando, cujos pedidos pareciam arrastá-lo para um envolvimento sem reser-
vas nos assuntos mundanos da política pontifícia. Para estampar a reprovação
àquele “aliado incômodo”, o prior de Fonte Avellana recorreu a uma fórmula
enigmática, nomeando a iminência parda do governo de Alexandre II de um
modo capaz de desconcertar os historiadores: Damião referiu-se a Hildebran-
do como seu “Santo Satã”.37 Ali estava um opositor amigável, desejado por
Deus. Era preciso ouvir-lhe, tolerar-lhe. Anos depois, já como Gregório VII, o
arquidiácono parece ter enfrentado seu próprio “Santo Satã”: Hugo de Die.
Mesmo diante da interminável demanda por revisões de sentenças e
anulações, o papa não cessou de confiar dezenas de litígios ao juízo do bispo
de Die. Encarregou-o de casos envolvendo não só os altos escalões da hierar-
quia eclesiástica, como quando conferiu ao legado poderes jurisdicionais sobre
assunto de Warmund, arcebispo de Vienne ligado à corte imperial por laços de
parentesco;38 mas também questões que implicavam a fina flor do mundo lai-

36
De Carnotensi autem episcopo, unde fraternitas tua submurmurare videtur, nosti quod dilectionis
tue intuitu longo eum tempore una cum Parisiensi Rome tenuimus, ut aut ipse venires aut ad com-
probanda obiecta in eum capitula legatos et testes idoneos delegares. Quod cum minime feceris, ius-
titie necessitate coacti de eius restitutione sancte Romane ecclesie iudicio adquievimus. (...) Decuerat
quidem vos et dignius videretur hac potius tempestate et has inter quas patitur angustias Dei utique
emulatione et conscientia bona tanquam filios suos consolationum sibi dulcia ministrare quam talia
mandando et talibus ema neniis inplicando dolorem super dolorem apponere multiplicare pondera
non communicare ponderibus. GREGÓRIO VII. Reg. 9: 32. MGH Epp. sel. 2: 619. E ainda: GREGÓRIO
VII. Reg. 9: 15. MGH Epp. sel. 2: 594-595.
37
PEDRO DAMIÃO. Apologeticus ob Dimissium Episcopatum. PL 145: 444.
38
GREGÓRIO VII. Reg. 4: 16. MGH Epp. sel. 1: 320-321.
204 coLunas de são pedro

co: reis (o normando e o capetíngio) e condes (Flandres, Bretanha, De Blois,


De la Marche).39 Até mesmo outros legados foram subordinados à supervisão
de Hugo.40 Ao manter na função legatina o autor de decisões repetidamente
consideradas inadequadas, o papado legitimou e perpetuou sua tolerância aos
excessos de seu enviado. A Sé Romana admitiu em seus quadros homens cujas
condutas frustram a expectativa de grande parte dos historiadores por provas
da existência de uma cadeia de “agentes papais” subalternos, obedientes aos
limites de poder impostos por um centro eclesiástico.
A constante necessidade de corrigir os excessos do bispo de Die e de
outros legados revela a inexistência de qualquer monopólio central da ha-
bilidade de traçar as finalidades da ação eclesiástica. As atuações legatinas
demonstram antes que o papado era constituído por uma mobilidade de obje-
tivos e comportava em seu interior uma expressiva margem de deslocamento
de interesses e propósitos. Os enviados romanos não eram plenipotenciários:
o próprio Hugo de Die encaminhava os casos mais graves para a decisão final
ou exclusiva do papa. Porém, longe de perfazer um papel neutro ou de dócil
dependência, um vicarius papae41 era um pólo de poderes deliberativos, uma
função que potencializava a incidência local da autoridade.
Era o reverso da medalha. A propagação da vinculação eclesiástica ao
papado se dava à medida que servia à consolidação de poderes locais como
o do bispo de Die. Longe de ser um mero eco da voz pontifícia, as palavras
de um legado eram propriamente suas: estavam repletas de seus interesses,
valores e concepções. Os eclesiásticos recrutados para esta posição privilegia-
da curvavam-se perante o papa, mas nem por isso deixavam de se servir das
prerrogativas conferidas por seu novo superior para agir em proveito de suas
próprias igrejas. Observe-se este caso, reservado para os cuidados de Hugo de
Die e do abade Ricardo de São Victor de Marselha:

Arnaldo, arquidiácono de Dax, queixa-se que o arcebispo Guilherme


[de Auch], nosso legato Amato e o bispo [Raimundo] de Bazas estão
assaltando sua igreja e ainda cercando e forçando a invasão de algu-
mas igrejas de sua diocese. O arcebispo de Auch e o bispo Amato nos
informaram em suas epístolas (...) que essas igrejas pertenceram, nos
tempos antigos, à igreja de Óleron. Nós, portanto, encarregamos vossas
fraternidades de, se possível ambos, mas se não um, ouvir sua disputa
em lugar conveniente e de, após perscrutares cuidadosamente os argu-

39
GREGÓRIO VII. REg. 4: 17, 22 – 5: 23 – 6: 7, 40 – 9: 9. MGH Epp. sel., 1: 322-323, 331-333; 2:
387-388, 407-408, 457-458; 585-587.
40
GREGÓRIO VII. Reg. 5: 22 – 6: 34. MGH Epp. Sel. 2: 386, 447-448.
41
GREGÓRIO VII. Epp. vag. 24: 62-63.
Leandro duarte rust 205

mentos canônicos de cada lado, estabelecer qual é agradável a Deus e


conforme a justiça.42

Na segunda metade do século XI, no que dizia respeito aos legados pa-
pais, não era possível traçar uma linha divisória que separasse, de um lado, a
função desempenhada e, do outro, o clérigo ou monge que a exercia. O posto
legatino não pré-existia a quem o ocupava, como uma entidade jurídica abs-
trata ou um posto dotado de atribuições fixas. Por isso:

Para onde quer que um legado viajasse, onde quer que ele reunisse um
concílio ou publicasse uma sentença ou decreto, não era lhe requisitado
que uma carta institucional ou de vinculação legal fosse lida em voz alta
na assembleia. Ele não precisava, em termos mais simples, de uma peça
de pergaminho garantindo ou provendo sua autoridade e poder (REN-
NIE, 2007: 169).

Encarnado, dotado de um rosto, inscrito em um modo de viver. O po-


der legatino era o próprio eclesiástico dele investido e não um atributo legal
definido por algum código. Um legado como Hugo de Die podia amparar suas
atribuições em textos canônicos como o Decretum de Buchard de Worms, o Liber
Tarraconensis, o Dictatus Papae e o Diversorum patrum sententie sive Collectio in
LXXIV titulos digesta (74T), e ainda assim não ter em tais coletâneas as razões e
os limites de sua função. As coletâneas canônicas podiam ser balizas de condu-
ta, e de fato elas orientavam suas ações. Mas elas não permitiam deduzir as de-
cisões, não subordinavam suas escolhas a comandos escritos, como se a lei fosse
a única fonte para qualificar e instruir um legado. Os enviados papais valiam-se
de aportes escritos apenas para incluí-los em um conjunto maior de referências
de legitimidade, o qual era dominado por atributos pessoais como a “integrida-
de dos hábitos” (honestate morum), o “zelo pela religião” (studium religionis),
a “lealdade” (fideliter) e a “boa consciência” (conscientia bona). Submetidas às
características pessoais, as coletâneas canônicas eram parte de um regime de
poder maleável, fluido, movente em suas margens de autogoverno.
Donde a impressão de algo escapar entre os dedos toda vez que busca-
mos para o século XI as categorias de legados que se tornariam comuns so-

42
Aquensis archidiaconus A. queritur quod archiepiscopus W. et A. legatus noster nec non episcopus
Vasantensis insurgunt adversus ecclesiam suam et ecclesias quasdam eiusdem episcopatus sui auferunt
et violenter invadunt. Ausciensis quoque archiepiscopus et Amatus episcopus literis suis nobis signifi-
cavere ab Aquiensibus easdem ecclesias proprietati Olorensis ecclesiae ab antiquo tempore pertinuisse.
Unde fraternitati vestrae iniungimus ut, si potestis ambo, sin autem unus in competenti loco eorum
negotium audiat atque, canonicis rationibus diligenter utrimque perscrutatis, Deo placentem et justi-
tiae congruum finem imponat. GREGÓRIO VII. Epp. vag. 44: 106-109.
206 coLunas de são pedro

mente duzentos anos depois, quiçá ainda mais tardiamente. Nos referimos ao
jogo sutil de classificações canônicas que distinguia um “legado missus” de um
“a latere”, diferenciando-os, por sua vez, do “núncio apostólico” e, por fim, de
um “juiz-delegado papal”. Classificações que implicariam em hierarquizá-los
segundo uma municiosa escala de competências discricionárias, distribuí-los
numa gradação de atribuições mandatárias, admitindo que a variação de ter-
minologias canônicas usadas para designá-los indicaria uma diferença real de
níveis de autoridade. O aparecimento documental de nomes distintos, como
apocrisiarius ou legatus, exigiria perceber diferentes tipos de “agentes jurí-
dicos”, sugerindo discrepâncias políticas, posições de poder diversas. Além
disso, esta tipologia de nomes exigiria mapear ainda as extensões territoriais
das jurisdições legatinas, encontrar os quadrantes geográficos onde estaria
autorizado o exercício das prerrogativas delegadas. Os títulos legatinos teriam
sido muitos porque variavam em função dos diversos raios de ação jurídica
atribuídos a eles. Ou seja, cada nome implicaria em um recorte geográfico pró-
prio, recobria uma amplitude territorial singular (SAYERS, 1971; SCHMUTZ,
1972: 441-463; FIGUEIRA, 1988: 817-860).
Em nossas pesquisas, tais minúcias não foram encontradas. Pois, a con-
dução de missões legatinas não correspondia às fronteiras e categorias indi-
cadas, tendo transcorrido de maneira descontínua e, por vezes, fragmentada
(Ver ainda: RENNIE, 2011: 53-85). Em fins do século XI, a extensão geográfica
colocada sob a vigilância dos enviados papais e as atribuições de cada um
deles variavam a todo o momento, flutuavam sem cessar, pois eram poderes
e jurisdições atribuídos a pessoas e, em muitos casos, conferidos tão somente
para certas viagens ou litígios específicos. É inútil tentar encontrar regularida-
des territoriais e padrões legais em relações dominadas por vínculos pessoais
e designações pontuais, isto é, por uma política polivalente, multidirecional.
Criação “sem precedente” (ROBINSON, 1990:146-150), o posto de legado en-
tregue a um Amato de Óleron ou um Hugo de Die comportava um poder de
intervenção sobre os episcopados locais que em nada nos remete à condição
de satélites decisórios, personagens colocados a seguir à distância supostas
metas fixadas por Roma. Não eram filiais que agiam somente segundo as co-
ordenadas recebidas da península itálica.
Um bispo como o de Die era um núcleo de poder decisório papal. Mais
do que um mero portador da autoridade, ele era um partícipe dela, convertia
uma boa parcela daquela palavra em sua própria voz. Ele maximizava as pos-
sibilidades de fortalecer a si mesmo. Em outras palavras, enquanto um eclesi-
ástico como Hugo era reconhecido como legado, a Sé por ele ocupada não se
tornava simples agente ou veículo do poder pontifício, mas parte efetiva do
próprio papado. Na direção inversa do inecclesiamento, a unidade da autorida-
Leandro duarte rust 207

de apostólica fortalecia-se por meio de uma exteriorização. Ela consolidava-se


pela superação de sua inscrição espacial local, por seu desdobramento em
uma pluralidade de enclaves dinâmicos e expressivamente autônomos. Os le-
gados concretizavam a lógica sócio-política que dominava o papado desde
meados de 1040: o processo de desromanização, de projeção das relações
decisórias para fora do Lácio em direção a novas frentes de integração entre o
poder eclesiástico e senhorial. À luz desta razão histórica, um legado era um
novo aliado, imprescindível. Mas um legado severo tornava-se um obstáculo a
ser corrigido, superado, como tantas vezes fez Gregório VII.
Este processo não deixou de causar estranheza aos seus contemporâne-
os. Protestos forçaram o papa a justificar esta expansão de uma ecclesia que,
divorciada de seu próprio “clero e povo”, estendia seus tentáculos muito longe
de suas raízes locais. Eis como o papa respondeu a uma destas queixas, enca-
minhada por Manassés, arcebispo de Reims:

Se, então, vós parecestes entender por ‘legados romanos’ aquele de


quaisquer lugares (gentis) sobre o qual o pontífice romano deve impor
uma legação ou, o que é maior, designar em seu nome, nós louvaríamos
as questões adequadamente levantadas e alegremente teríamos concor-
dado com elas. Mas porque assim que escrevestes ‘romano’ imediata-
mente acrescentastes ‘não de além das montanhas’, vós deixastes claro
que desejais ter como legados ‘romanos’ apenas aqueles nascidos em
Roma, educados desde a infância na igreja romana ou promovidos a al-
gum ofício em seu interior. Muito nos assombramos que vossa prudência
tenha sido levada a ponto de solicitar que, em nossa benevolência, assim
diminuíssemos nossos direitos da Sé Apostólica.43

Nesta epístola colidiram dois olhares sobre a correta ordem eclesiás-


tica. Imersa no inecclesiamento, a visão galicana solicitava à Igreja Romana
uma gestão da autoridade ancorada em forte localismo, mas esbarrava na
perspectiva papal, que há décadas vinha sendo constituída pela necessidade
de assentar os fundamentos de sua organização além dos limites imediatos
de sua inserção espacial. Em constante antagonismo com seu próprio “povo e

43
Quodsi vos Romanos legatos intelligere videremini quoslibet cuiuslibet gentis, quibus Romanus pon-
tifex aliquam legationem iniungat vel, quod maius est, vicem suam indulgeat, et laudaremus sane
petita et petitis libenter annueremus. Sed quia premittendo ‘Romanis’ continuo subiungitis ‘non ultra-
montanis’, ostenditis vos tantum eos velle Romanos habere legatos, qui vel Rome nati vel in Romana
ecclesia a parvulo edocati vel in eadem sint aliqua dignitate promoti. Miramur nimium prudentiam
vestram eo usque perductam, ut precaremini benivolentiam nostram iura sedis apostolice debere imin-
nuere. GREGÓRIO VII. Reg. 6: 2. MGH Epp. sel. 2: 392. Ver ainda: MANASSÉS DE REIMS. Epistola.
RHGF 14: 611-612; HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 419-420.
208 coLunas de são pedro

clero”, os homens do papado desenvolveram uma apurada consciência de que


a “romanidade” ia muito além de Roma. Aos seus olhos, a condição romana de
um clérigo, ou seja, seu pertencimento à “Santa Igreja Romana”, não decorria
de vínculos territoriais, mas da qualidade de estar a serviço da autoridade
apostólica, como era o caso de todos os imbuídos de uma missão legatina. Por
conseguinte, mais do que um simples subordinado, um legado era um partí-
cipe efetivo da condução da Sé Romana. Era um ativo co-realizador de sua
autoridade e dos seus direitos. Era tão romano quanto o próprio papa.

4.3. Os legados, estes criadores de papas

No século XI, ocupar-se em promover os nomes dos papas era se lançar


à conquista de novas possibilidades de poder e enriquecimento. Outro bom
indício disso estava no empenho dos próprios papas para cerzir redes aristo-
cráticas de favorecimento e proteção em redor de seus legados.
Quando Geraldo de Óstia foi enviado à Hispania levou consigo a promes-
sa de que sua presença consolidaria uma aliança negociada pela Cúria romana
com o conde Ébolo de Roucy desde os tempos de Alexandre II.44 Proveniente
da Picardia, no norte da Gália, Ébolo e outros nobres há muito ansiavam por
cruzar os Pirineus e tomar parte da guerra contra os sarracenos: Ébolo sus-
tentaria todas as decisões tomadas em nome do papado e, em retribuição, ele
recebia “a concessão da Sé Apostólica, segundo a qual ele deveria possuir todas as
terras conquistadas em nome de São Pedro, conforme os termos do pacto estabe-
lecido entre nós”.45 Ao redigir a Vita Ludovici Grossi, Suger apresentaria a força
militar empregada por Ébolo para ingressar na península como um “exército
imenso, destes que somente os reis podem convocar”.46 A aliança com o papa
legitimou as pretensões do conde sobre a “Reconquista”. Em dezembro de
1080, foi a vez de Hugo de Die receber o apoio de Ébolo, a quem o papa pediu
auxílio para realizar a deposição de Manassés de Reims, decretada segundo
o “julgamento de nosso irmão, o bispo de Die, legado da santa igreja romana”.47
Quando Hugo iniciou os preparativos para reunir um sínodo na provín-
cia de Reims, no qual deveria investigar a investidura de Gerardo, bispo de
44
GREGÓRIO VII. Reg.1: 6. MGH Epp. sel. 1: 8-10.
45
Itaque comes Evulus de Roceio (...) terram illam ad honorem sancti Petri ingredi et a paganorum
manibus eripere cupiens hanc concessionem ab apostolica sede obtinuit ut partem illam, unde paganos
suo studio et adiuncto sibi aliorum auxilio expellere posset, sub conditione inter nos facte pactionis ex
parte sancti PETRI possideret. GREGÓRIO VII. Reg. 1:7. MGH Epp. sel. 1: 11-12..
46
Qui quanto militiae agebatur exercitu, erat enim tantae magnanimitatis, ut aliquando cum exercitu
magno, quod solos reges deceret, in Hispaniam proficisceretur. SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE
LA MARCHE: 19.
47
Confratre nostro Diensi episcopo sanctae Romanae ecclesiae legato. GREGÓRIO VII. Reg. 8: 17, 18.
MGH Epp. sel. 2: 538-540.
Leandro duarte rust 209

Cambrai, o papa garantiu-lhe que outro nobre se comprometera a apoiar-lhe:


o conde Teobaldo de Blois.48 Em outro momento, ao ser informado que o papa
desejava ver um homem aprovado por ele sentar-se na cadeira do arcebispa-
do de Dol, Hugo foi aconselhado a recorrer a Hoel II, conde da Bretanha, a
quem Gregório enviou uma persuasiva carta pastoral.49 Não foram poucas as
vezes em que um eclesiástico viu seu patrono pressionado a abandoná-lo para
cumprir uma decisão legatina: assim ocorreu entre Isembert de Poitiers (sus-
penso por Geraldo de Óstia) e Guilherme VI do Poitou;50 Manassés de Reims
(deposto por Hugo de Die) e Felipe I;51 o cluniacense Roberto (denunciado por
Ricardo de São Víctor de Marselha) e Afonso VI de Leão-Castela.52
Porém, poucos episódios revelam tanto do lugar ocupado pelos legados
na política papal quanto os eventos seguintes à morte de Gregório VII. Em maio
de 1085, após ser resgatado de Roma ao custo de muita destruição e sangue
derramado pelos normandos, o velho padre faleceu em Salerno, vencido, exila-
do, amargurado.53 Transcrevendo uma carta perdida de Urbano II, Hugo de Fla-
vigny noticia que um testamento foi deixado. Doente, sentindo a iminência da
morte, o pontífice reuniu os bispos e cardeais romanos exilados e pronunciou
sua derradeira vontade: o sucessor deveria ser escolhido entre três prediletos,
Anselmo, bispo de Lucca; Odo, cardeal bispo de Óstia, e Hugo, outro bispo de
Die e atual arcebispo de Lyon. Todos legados: o primeiro ocupava a função na
Lombardia, o segundo tinha sido enviado com tal à Germânia, o terceiro exer-
cia aquela autoridade sobre as Gálias há dez anos54 (Ver também: COWDREY,
1998: 228, 321; COWDREY, 2000: 703-724; HEALY, 2006: 120-121).
Os preparativos para a eleição foram assumidos por Desidério, figura de
grande relevo político: abade de Montecassino e cardeal presbítero de Santa
Cecília, ele fora o articulador da aliança firmada entre Nicolau II, o alto clero
meridional e os normandos em 1059.55 Nos onze meses seguintes à morte

48
GREGÓRIO VII. Reg. 4: 22. MGH Epp. sel. 1: 331-333.
49
GREGÓRIO VII. Reg. 5: 23. MGH Epp. sel. 2: 387-388.
50
GREGÓRIO VII. Reg. 2: 24. MGH Epp. sel. 1: 155-156.
51
GREGÓRIO VII. Reg. 8: 20. MGH Epp. sel. 2: 542-543. Ver ainda: WILLIAMS, 1949: 804-824.
52
GREGÓRIO VII. Reg. 8: 3. MGH Epp. sel. 2: 519-520.
53
BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS 5: 441; BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum.
MGH Ldl 1: 614-615; CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 739-742; LANDULFO SÊNIOR. Historia
Mediolanensis. MGH SS 8: 100, Liber Pontificalis, 2: 290; GREGÓRIO VII. Epp. vag. 54: 128-137.
54
HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 466; TESTAMENTO DO PAPA GREGÓRIO VII. MGH
Epp. Briefsammlungen der Zeit Heinrichs IV: 75-76. Ao redigir a Crônica de Montecassino, Paulo Diá-
cono afirma que Gregório recomendou o abade Desidério como primeiro candidato à sucessão. Se sua
elevação não se concretizasse, então o novo papa deveria ser escolhido entre os três nomes indicados
por Hugo de Flavigny: CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 747. O redator da crônica outorgou o
primeiro lugar na sucessão a seu próprio abade.
55
AMATO DE MONTECASSINO. Ystoire de li Normant.: 99-106; CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7:
686-703.
210 coLunas de são pedro

do papa, vividos em meio à desorientação e a temores de perseguição que


atormentavam os partidários de Gregório, o próprio Desidério se transformou
no novo favorito à mitra papal. Não era para menos. Quando os cardeais gre-
gorianos finalmente se reuniram, em maio de 1086, Anselmo estava morto e
Hugo não tinha alcançado Roma. Odo era o único concorrente presente, mas
não podia competir com o fato de muitos cardeais e clérigos exilados estarem
abrigados em Montecassino, sob a proteção de Desidério, cujo nome era mur-
murado como garantia do apoio e da segurança oferecida pelos príncipes nor-
mandos Rogério I da Calábria, Jordan de Cápua e Gisulfo de Salerno (BLOCH,
1986: 38; COWDREY, 1996: 182-201).
Este último havia retornado recentemente da Gália, para onde seguiu
como legado encarregado da coleta do tributo anualmente recolhido nos reinos
do norte (áreas da atual Inglaterra, da Escandinávia e da Polônia): o denário de
Pedro56 (Ver: LUNT, 1965: 65-67). A companhia de Gisulfo, laico a quem o papa
confiara a arrecadação daquele símbolo de “obediência ao apóstolo Pedro” (per
veram obedientiam precipiendum), conferia um vulto “gregoriano” ainda maior
a Desidério, destacando-o como elo de continuidade com o recente passado da
Sé Romana. Talvez por isso, Paulo de Bernried omitiu a alusão a Anselmo ao
narrar as últimas palavras do pontífice moribundo e incluiu o abade na lista de
possíveis candidatos ao trono de Pedro deixada em testamento.57 Escrevendo na
década de 1120, esforçando-se para recompor a coerência de um passado visto
de longe, o autor da Vitae Gregorii VII registrou as palavras derradeiras que tes-
temunhavam o prestígio do cassinense, principal herdeiro político de Gregório.
Em abril de 1086, segundo a Chronica Casinensis, os bispos, cardeais re-
fugiados em Montecassino e outros prelados remanescentes reuniram-se em
Roma sob a proteção do príncipe Gisulfo e de Cêncio, o prefeito da Urbe. Um
mês depois, o abade juntou-se ao grupo e iniciou os procedimentos eleitorais,
movido pela esperança que eles favorecessem Odo de Óstia. A assembleia, to-
davia, já havia se decidido por outra oferta. Abrigados na igreja de Santa Lú-
cia, os cardeais, presbíteros e bispos (presbyteri et cardinales episcopi) em sua
maior parte, recusaram a eleição de Odo, declarando-a “contrária aos cânones”
(contra canones esse hanc electionem affirmans) e suplicaram ao cassinense que
aceitasse a mitra papal. A Chronica prossegue recorrendo a um notório lugar
comum da retórica latina, o topos do desapego ao poder e da resistência às suas
ambições: empalidecido, Desidério protestou, estarrecido com aquela proposta
inesperada. Em vão. Insuflados pelo “clero e povo romanos” (cum clero et popu-
lo), os cardeais o agarraram e lançaram sobre seus ombros o manto púrpuro,

56
GREGÓRIO VII. Reg. 8, 23. MGH Epp. sel. 2: 566-567.
57
PAULO DE BERNRIED. Vita Papae Gregorii VII. PL 148: 94.
Leandro duarte rust 211

proclamando-o papa Vítor III.58 A ânsia por entronizar um partidário de Gregó-


rio VII e encerrar longos meses de desalento e fraqueza políticos teria resultado
num disparate ao transformar uma faustosa assembleia de eleitores eclesiásticos
em uma turba arredia a toda recusa. Um disparate que não teria surtido o efeito
desejado: quatro dias depois, Vítor declarou sem valor (irritae) sua eleição.
À parte o topos da exemplar humildade de Desidério, as razões para
essa renúncia permanecem obscuras. Forçando ao máximo as conhecidas la-
cunas documentais, H. E. J. Cowdrey (1996: 182-201) formulou o argumento
mais consistente que encontramos. Em sua opinião, o abade recuou ao se dar
conta das fortes cisões que se alastravam em sua base de sustentação, o apoio
normando. A recusa dos cardeais em consagrar como arcebispo de Salerno o
candidato desejado por Rogério I teria provocado a insatisfação deste aliado,
que retaliou retirando-se da cidade, não sem antes libertar Wezilo, prefeito
imperial capturado em 1084 por Roberto Guiscard. Leal a Henrique IV e ao
“anti-papa” Clemente III, Wezilo arregimentou as forças hostis aos gregorianos
e forçou Desidério a fugir de Roma em 27 de maio: dia da renúncia.59
Há outras interpretações. Apelando para a consciência jurídica do eleito,
o abade Rony (1928b: 149-150) viu a renúncia como consequência de “escrúpu-
los legítimos”: o testamento de Gregório e a condição coadjuvante dos cardeais
bispos fizeram da escolha de Desidério uma eleição irregular, um ultraje à In
Nomine Domini. Sem o correto respaldo dos eleitores canonicamente estipula-
dos, o abade “recusou-se de maneira nobre a adquirir a soberania pontifícia”. Por
sua vez, em mais um de seus explícitos julgamentos morais, Fliche (1924: 390)
formulou uma interpretação pouco simpática ao cassinense. Segundo ele, a de-
sistência era prova de fraqueza e egoísmo: incapaz de sacrificar-se pela socie-
dade cristã, como o “heroico” Gregório VII, Desidério teria sido rendido por seu
próprio espírito ascético, preferindo a quietude e a solidão de seu monastério ao
pesado fardo de governar uma Igreja devastada pelo cisma.
A interpretação de Fliche não passa de especulação biográfica, prove-
niente apenas dos pressupostos acalentados por um historiador católico que
cultuava Gregório VII como santo. Ela carece do mais elementar respaldo docu-
mental. Por seu turno, embora o abade Rony tenha construído seu argumento
central ao avaliar a adequação daquela tumultuada eleição às normas então
estampadas no texto ditado em 1059 para regular a sucessão papal, sua análise
esbarra em um obstáculo: a Collectio Canonum, compilação de textos jurídicos
dedicada pelo cardeal Deusdedit a Vítor III. Ao tratar da sucessão pontifícia,
a coleção não confere qualquer primazia aos cardeais bispos. Ao contrário, os

58
CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 747-749.
59
CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 747-750; Liber Pontificalis, 2: 290-292.
212 coLunas de são pedro

eleitores são aí nomeados como “cardeais”, referindo-se aos presbíteros e diá-


conos, excluídos precisamente os que foram privilegiados pela In Nomine Do-
mini.60 Como sugerem Cowdrey (1996: 188; 1998: 324) e Ian Stuart Robinson
(1990: 61), é provável que a compreensão de Deusdedit – reconhecido em sua
época como discípulo de Gregório (discipuli Hildebrandi) – tenha sido opinião
corrente entre o clero papal. Portanto, é razoável sugerir que o próprio Desidé-
rio não teria encarado a assembleia reunida em Roma, naquele abril de 1086,
como inapta para investir um clérigo com a “soberania pontifícia”.
As reviravoltas e os desacertos existentes entre os partidários da causa
desideriana deixaram nítidas marcas documentais. Redigida a partir de 1099
pelos cassinenses Leão de Mársica e Pedro Diácono, a Chronica Casinensis é
dominada por empenhos valorosos para fazer da confusa eleição de Vítor um
triunfo anti-clementiano, uma prova de coerência dos cardeais, cimentada por
um impecável rigor canônico e moral. Suas linhas desenharam a imagem de
Desidério como um homem despido de ambições pela dignidade apostólica.
Alguém que, tendo renunciado em nome da unidade cristã, reuniu novo síno-
do em Cápua, quase um ano depois, em março de 1087, na modesta qualidade
de vigário empenhado em promover nova eleição. E então, contrariando as in-
tenções do modesto anfitrião, o plenário conciliar teria superado divergências
e, por fim, ofereceu provas de união que encorajaram o abade a finalmente
aceitar o trono de Pedro.
Em outras fontes aparece algo diferente. Embora dificilmente ofereçam
pouco mais do que brevíssimas menções àqueles acontecimentos, os Annales
Beneventani, os Annales Casinenses e os Annales Cavenses sugerem que a nova
assembleia clerical foi convocada para debater a consagração do abade de
Montecassino como pontífice, que, deste modo, não teria desistido da mitra
papal em momento algum.61 Artimanhas narrativas à parte, o que nos importa
é algo mais. O fato de que neste concílio de Cápua Hugo de Lyon, legado e
outrora bispo de Die, esteve presente. Ou melhor, ruidosamente presente.
Tendo ao seu lado outro legado, Ricardo, abade de São Victor de Mar-
selha, Hugo se negou veementemente a reconhecer Desidério como papa. Es-
grimindo acusações, ele afirmou ser impossível ver no santo trono de Pedro
um homem que havia incorrido no “ato abominável” (nefandissimus actus)
de se reunir com Henrique IV, em Albano, no ano de 1082. Àquela altura dos
acontecimentos, o monarca já carregava há mais de um ano uma sentença de
excomunhão proclamada por Gregório VII. Segundo Hugo, ao manter con-

60
DEUSDEDIT. Collectio Canonum. In: MARTINUCCI, Pio (Ed.). Deusdedit Presbyteri Cardinalis Tituli
Apostolorum Eudoxia Collectio Canonum. Veneza: Typographia Aemiliana, 1869, p. 101, 240.
61
CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 749; ANNALES BENEVENTANI. MGH SS 3: 182; ANNALES
CASINENSES. MGH SS 30/2: 1423-1424; ANNALES CAVENSES. MGH SS 3: 190.
Leandro duarte rust 213

tato com um excomungado, o abade teria partilhado da mesma condição do


condenado. Era um homem tão poluído por vícios e pecados quanto o rei.62
Fiel guardiã da memória do abade, a Chronica Casinensis rebateu a acusação.
Ela não nega o encontro em Albano, mas afirma que Desidério se comportou
de uma maneira irretocável. Embora tenha permanecido todo o tempo na
companhia de muitos bispos, nobres e outros partidários imperiais, o abade
não teria trocado o beijo da paz com nenhum deles, nem sequer orou, comeu
ou bebeu em sua presença; tampouco teria dividido o mesmo ambiente com
o imperador, a quem ele teria transmitido os votos para que se redimisse e se
reconciliasse com a Igreja romana.63
Hugo não parou por aí. Ele culpou Desidério de violar a santa memória
pontifícia ao prometer ao rei germânico, “invasor das terras do bem-aventurado
Pedro”, apoio para conservar a coroa imperial (Romani imperii corona fideliter
eum adjuvaret). Ora, a coroa havia sido colocada sobre a cabeça de Henrique
por obra de um “simoníaco, heresiarca e filho de Belial”, Clemente III, outro
excomungado por Gregório. Insistindo e incansável, Hugo ainda denunciou
o abade por reputar como “beato”, como bem-aventurado, o cardeal Atto de
Milão, para o qual teria prometido orações (beatum predicare praesumeret,
in qua ipse est gloria futurum oraret). Antes de tornar-se cardeal presbítero
de São Marcos, Atto havia protagonizado o conflito entre papado e Império
pelo arcebispado de Milão, para o qual foi eleito em janeiro de 1072. Apoia-
do pelos patarinos, Atto foi expulso da cidade sem sequer ser consagrado,
refugiando-se em Roma, sob a proteção de Gregório. Porém, em fevereiro de
1083, o cardeal mudou de lado. Seu nome aparece entre a lista de prelados
que desertaram da Cúria e juraram obediência ao papa imperial (COWDREY,
1968: 25-48). Excomungado, Atto faleceu impenitente. Aos olhos gregorianos
sua alma negrejava pelas águas da perdição. Para Hugo de Die, tratava-se de
um imperdoável traidor (COWDREY, 1996: 200-201; RENNIE, 2011: 38).
Este vendaval de acusações não impediu a consagração de Desidério.
Em Cápua, o abade aprovou a entronização de Alfano como arcebispo de Sa-
lerno e removeu o obstáculo que lhe impedia o acesso ao apoio normando. No
dia 9 de maio de 1087, escoltado pelas tropas de Jordano de Cápua e Gisulfo
de Salerno, ele encontrou as ruas romanas seguras o suficiente para atravessá-
las em procissão e ser consagrado na basílica de São Pedro pelas mãos do
cardeal bispo de Óstia.64 Mas o estardalhaço causado por Hugo revelou como

62
HUGO DE LYON. Epistola. RHGF, 14: 788-789; BENO DE SS. MARTINO E SILVESTRO. Gesta Roma-
nae Ecclesiae contra Hildebrandum I. MGH Ldl 2: 369-375; HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS
8: 466-468.
63
CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 739-741.
64
BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS 5: 446; CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7:
214 coLunas de são pedro

os legados percebiam sua inserção nas estruturas da política papal. Ainda que
eventualmente guiados pela ambição de fazer valer a letra do testamento de
Gregório VII, Hugo de Lyon e o abade Ricardo de Marselha justificaram suas
ações com outra certeza: eram responsáveis diretos pela integridade da auto-
ridade apostólica.
Ao tomar a palavra e vetar os rumos tomados por aquela eleição, estes
homens desempenharam o papel de integrantes legítimos do seleto grupo in-
vestido da prerrogativa de transmitir a suprema função apostólica. Em outras
palavras, os dois legados agiram como se detivessem as competências delibera-
tivas reservadas pelo decreto eleitoral de 1059 – a In Nomine Domini, de Nicolau
II –, prioritariamente, aos cardeais. Sua conduta era a de quem estava ombro
a ombro com os “varões mais insignes” da Igreja romana, aqueles que deveriam
“promover a eleição do futuro pontífice”.65 Em sua carta à condessa Matilde, Hugo
afirmou que ele e o abade de Marselha haviam sido convidados “pela igreja Ro-
mana para que elegêssemos de comum acordo o pontífice romano” (ex parte Roma-
nae ecclesiae invitati, ut communi consilio Romanum pontificem eligeremus).66 Em
sua visão, eles detinham em suas mãos a prerrogativa de intervir ativamente na
criação do sucessor apostólico. Ele não via a si mesmo como um mero “agente”
ou “representante” do papado, mas como uma de suas colunas: sua voz e razão
eram alicerces da “glória maior” (magis Gloriam) possuída Igreja Romana.
No entanto, talvez o melhor exemplo da apropriação do poder papal por
parte dos legados ainda esteja por vir com a análise do que seguiu as agitadas
jornadas do concílio de Cápua. Vejamos.
Em agosto de 1087, Vitor III celebrou um concílio em Benevento. Diante
de um plenário eclesiástico lotado, ele excomungou Clemente III como “emis-
sário do Anticristo e portador da obra de Satanás” e proibiu os cristãos de se
comunicarem com Hugo de Lyon e Ricardo de Marselha. Afinal, “em razão do
orgulho e da ambição pela Sé Apostólica, (...) foram feitos cismáticos na santa
igreja”.67 As vozes que se ergueram contra sua eleição estavam excomungadas.
Foi um duro castigo para os legados, até então habituados a vigiar os limites
morais da hierarquia eclesiástica cristã. Outrora arquitetos da justiça papal,
eles eram agora lançados em desgraça. Pouco depois da sentença, o arcebispo
de Lyon escreveu novamente à condessa Matilde. Diferentemente da carta

739-741, 750; HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS 8: 467-468; RUINART. Beati Urbani II Papae
Vita. PL, 151: 29.
65
DECRETUM ELECTIONIS PONTIFICIAE. MGH Const. 1: 539-541. Sobre o título de cardeal: do
abade GREGÓRIO VII. Reg. 5: 21. MGH Epp. sel. 2: 384-385.
66
HUGO DE LYON. Epistola. RHGF, 14: 788-789; HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS 8: 466-468.
67
Praecursor antichristi ac signifer Satanae effectus. (...) qui pro fastu et ambitione sedis apostolicae
(...) in sancta ecclesia scismatici facti sunt. CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 752; RUINART. Beati
Urbani II Papae Vita. PL 151: 30; MANSI, 20: 640.
Leandro duarte rust 215

anterior, carregada de acusações e altivez, esta trazia linhas repletas de pesar


(Ver ainda: RENNIE, 2011: 39-40).
O prelado que se portava como paladino da autoridade apostólica, es-
tava agora à mercê de “agressões e injúrias” (supergressiones et iniurias), dis-
seminadas, segundo ele, pelos monges de Cluny. Localizada nos domínios da
Sé de Lyon, a abadia mantinha com seu arcebispo – o próprio Hugo – um
histórico de conflitos sobre as isenções monásticas, e seus monges parecem ter
encontrado na sentença papal uma prova da ilicitude do arcebispo e de todas
as suas reivindicações. Acuado, Hugo se viu forçado à retratação. Apressou-se
em prestar satisfações à condessa de Canossa, um dos mais ilustres e combati-
vos partidários do falecido Gregório VII:

Mantivemos opinião diferente de alguns bispos e cardeais presbíteros da


santa igreja romana, mas saibas que não desejamos ter nos retirado da
unidade deles, para a qual estamos unidos ao corpo da santa igreja pela
divina dignidade para servir ao bem-aventurado Pedro.68

Enquanto o arcebispo empenhava-se pela reconciliação, seu partidário


Hugo, abade de Flavigny, usaria a escrita para cobrar à memória de Vítor o pre-
ço por tantos infortúnios. Seu Chronicon descreve o papa em um episódio funes-
to: após sua consagração em 1087, Desidério teria sido atingido por um “juízo
de Deus” (judicum Dei), provável referência do cronista à implacável desinteria
que o deixou irremediavelmente doente e terminou por matá-lo em setembro
daquele ano.69 Deus teria se encarregado de revelar a injustiça da excomunhão
lançada conta o arcebispo de Lyon, reclamando a vida do juiz apostólico.
Todavia, mais surpreendente do que as desventuras do arcebispo de
Lyon após a cáustica condenação proclamada em Benevento, foi o que se pas-
sou com o abade de São Victor de Marselha: ele simplesmente a ignorou. Ri-
cardo deu-lhe as costas por completo e continuou a desempenhar o ofício de
legatus sedis apostolicae.
Entre 1087 e 1088, Afonso VI, rei de Castela, lançou-se em furiosas cam-
panhas para debelar um levante de nobres da Galícia. Dobrada a resistência dos
rebelados, Afonso pôs a ferros e encarcerou Diego Peláez, bispo de Compostela,
cujo señorio eclesiástico foi um dos sustentáculos da revolta. O passo seguinte
foi encontrar um meio de legitimar a deposição do prelado, acusado não só de
participar da rebelião, mas de conspirar com o rei da Britannia contra a coroa

68
A quibusdam sanctae ecclesiae Romanae episcopis et cardinalibus presbyteris dissenserimus; tamen
scire vos volumus ab unitate eorum, qua in corpore sanctae ecclesiae ad serviendum B. Petro divina
dignitatione compacti sumus. HUGO DE LYON. Epistola. RHGF, 14: 790.
69
HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS 8: 468.
216 coLunas de são pedro

castelana. Para isso foi convocado um concílio em Husillos, próximo a Palência.


Durante as sessões conciliares, Diego, permanentemente acorrentado, deposi-
tou o anel e o báculo, símbolos do poder episcopal, aos pés de um “legado e
cardeal da igreja romana”: Ricardo de Marselha (REILLY, 1988: 195-200).
A Historia Compostellana confirma ainda que o legado, um velho conhe-
cido que já visitara Castela em nome do papa entre 1078 e 1080,70 sancionou
a destituição de Diego e “concedeu a permissão para entronizar [Pedro], aba-
de de Cardeña, na cátedra pontifical da igreja do bem-aventurado Tiago”.71 Ao
empunhar tais atribuições apostólicas, Ricardo já havia sido bem recompen-
sado. Em março de 1088 – um mês antes da assembleia de Husillos – Afonso
garantiu-lhe uma carta de doação com a qual concedeu o monastério de São
Servando ao papado sob a estrita ressalva do estabelecimento ser permanen-
temente administrado pelo abade de São Victor de Marselha, que pagaria um
tributo anual a Roma pelo privilégio.72
As ações de Ricardo demonstravam como o acionamento da autoridade
papal era capaz de multiplicar ganhos de poder em múltiplas direções. Afinal,
as alianças articuladas por ele beneficiariam o papado – reafirmado como ins-
tância máxima e imprescindível de legitimação da instauração e deposição dos
poderes episcopais –, o legado – reconhecido como detentor de competências
jurisdicionais típicas de um metropolitano e agraciado com o aumento da for-
tuna patrimonial colocada à sua disposição –, e o próprio rei – atendido em seu
fito de revestir de canonicidade a remoção e punição de um dissidente político.
Todavia, o acordo firmado entre Ricardo e Afonso não prosperaria. Em
setembro de 1087, Vítor foi sucedido por Odo, cardeal bispo de Óstia. Se-
gundo o autor da Vita do novo pontífice, ele havia passado os últimos meses
tentando reverter os estragos causados à legitimidade papal pelas acusações
sacadas em Cápua por Ricardo de Marselha e Hugo de Lyon.73 Agora, como
Urbano II, Odo não sustentou a aliança compactuada em Castela. Ele escreveu
para Afonso advertindo que a deposição de Diego Peláez era “completamente
contrária aos cânones e nunca deveria ter chegado a ouvidos católicos”.74 A Ri-
cardo, dirigiu uma severa repreensão por cooperar com tal decisão após suas
atribuições legatinas terem sido revogadas pela excomunhão sentenciada por

70
GREGÓRIO VII. Reg. 7: 6 – 8: 3. MGH Epp. sel. 2: 465-467, 519-520.
71
Sanctae romanae ecclesiae cardinalis atque legato (...) Cardinensem Abbatem, in Pontificalem Ec-
clesiae B. Jacobi Cathedram intronizandi licentiam concessit. HISTORIA COMPOSTELANA. ES 20: 17;
HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 350.
72
CHARTA SANCTI SERVANDI. Cartulaire S. V. M. 2 : 184-186.
73
RUINART. Beati Urbani II Papae Vita. PL 151: 29-30.
74
Ab episcopali dignitate depositum, quod canonibus noveris omnino contrarium et catholicis auribus
non ferendum. JL 5367.
Leandro duarte rust 217

Vítor III.75 Em seguida, foi a vez do “clero e do povo” da diocese de Compostela


sofrerem a retaliação:

Com toda justiça, portanto, nós interditamos na igreja [de Composte-


la] todos os serviços divinos exceto batismo, confirmações dos infantes,
penitências e exéquias aos mortos. Vós vos abstereis de todos os ritos
divinos, exceto estes, até que o bispo, livre das correntes, seja restaurado
à sua antiga dignidade e que, então, ele possa vir diante de nós para que
seja dada uma audiência e canonicamente inquirido.76

As investidas do papa não pararam por aí. Em meados de 1089 – após


suspender o abade Pedro de Cardeña e ordenar-lhe que “se apresente a nós
para que responda sobre o crime” de invadir o bispado de Compostela –,77 Ur-
bano enviou novo legado à Hispania. Em março de 1090, Rainério, cardeal
de São Clemente, chegou à região e cumpriu à risca o papel de reparador da
ordem. Reuniu um concílio em Leão, no qual Pedro “foi justa e canonicamente
deposto (...) em razão de ter sido elevado ao trono de tão alta honra sem o con-
sentimento de nossa mãe a santa igreja Romana”.78
A veemência da reação de Urbano não pode ser suficientemente expli-
cada apenas com a menção ao “ímpeto reformador contra ingerências laicas”.
Devemos situá-la em horizontes mais largos. Diferentemente do que ocorrera
na Inglaterra ou na Calábria, onde o rei e o duque firmaram sólido controle
sobre as igrejas locais após recentes conquistas territoriais, na Península Ibéri-
ca, a tomada de Toledo, em maio de 1085, deu a largada em uma corrida pela
reorganização da ecclesia local (REILLY, 1988: 215-217). Primeiro arcebispado
restaurado desde a conquista islâmica no século VIII, Toledo trazia consigo a
memória de ancestral Sé primaz da Hispania. Aquele que obtivesse a sua obe-
diência teria nas mãos um valioso meio para intervir no tabuleiro dos poderes
episcopais peninsulares e dispô-lo a seu favor.
Após a desastrosa morte de Gregório VII e a tumultuada eleição de Vitor
75
JL 5424.
76
Preterea omni iure ecclesiae divina omnia officia interdicimus preter baptismum, et consignationes
infantum, et penitentias, et obsequias mortuorum. Tandiu autem ab omnibus preter hec divinis mis-
teriis abstinebitis donec, eductus e vinculis, episcopus dignitati pristine restituatur, et sic coram nobis
vindicandus et canonice disquirendus adveniat. JL 5368.
77
Quod nostre te presentie representes de tanto coram nobis scelere responsurus. JL 5369.
78
Sine consensu Matris nostrae S. Romanae Ecclesiae ad tanti honoris arcem provectus fuit, in quo-
dam concilio legione a domino cardinali Regnerio celebrato (...) juste & canonice depositus est. HIS-
TORIA COMPOTELANA. ES 20: 17-18; MANSI, 20: 735-737; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 352. A data
do concílio pe controversa. É possível encontrar a indicação do ano de 1090 no CHRONICON COM-
POSTELLANUM. ES 20: 610; base cronológica assumida por: LOPEZ FERREIRO, 1983: 554-555; FLE-
TCHER, 1984: 47-48. Porém, há também a referência ao ano de 1091 na CRONICA NAJERENSE, 1985:
117 e em RUINART. Beati Urbani II Papae Vita. PL 151: 40-41.
218 coLunas de são pedro

III, tão logo conseguiu reaver certa estabilidade, o papado tomou a iniciativa:
em 1088, exigiu que Bernardo de Sedirac, o abade cluniacense de Sahagún
eleito arcebispo toledano, viajasse até Roma pare receber o pallium do recém-
eleito Urbano II, sendo confirmado primaz de toda a Hispania (FITA COLOMÉ,
1884: 97-103; JEDIN, 1980: 386-392, COWDREY, 1996: 242-243).79 Em 1089,
um novo movimento foi feito nesta mesma direção. Urbano decidiu que sua
autoridade ampararia também a restauração do arcebispado de Tarragona, –
reconquistado naquele mesmo ano, sob a condição de uma estrita reverência
ao primado de Toledo (Toletano autem sicut primati reverentiam exhibeant).
Rainério, o novo legado na península, foi encarregado de respaldar o novo
arcebispo.80 As peças se alinhavam no tabuleiro, desenhando a imagem de um
vasto empreendimento: a criação de uma apertada teia de influentes líderes
eclesiásticos ibéricos como aliados da autoridade pontifícia.
Todavia, de maneira inesperada, esses esforços esbarraram nas ações
de um legado excomungado. Ao favorecer Afonso VI e fortalecer o controle
régio sobre o episcopado castelhano-leonês, o abade de Marselha contribuiu
para antepor um poder entre o papado e a organização eclesiástica peninsular.
Cabe lembrar que, desde 1089, Urbano estreitava laços com Sancho Ramirez,
rei de Aragão e antagonista de Afonso (REILLY, 1988: 199-219; COWDREY,
1996: 241-244). Tal aliança abalava a harmonia cultivada entre a Sé Apos-
tólica e o reino de Castela desde os tempos do papa Alexandre II, esboçando
novas linhas para a política pontifícia na península. As ações de Ricardo, por
sua vez, iam em direção oposta, favorecendo o monarca do qual o próprio
papa havia se distanciado e para o qual Urbano olhava com receio. Naquele
momento, Afonso não era um aliado ideal para a cúpula da igreja petrina. Seu
fortalecimento como líder da igreja ibérica não constituía propriamente uma
meta compatível com os interesses romanos.
A realidade da “Reconquista” tornava os reinos ibéricos terras abertas à
construção de uma nova disposição de poderes. Para o papado isto significava
o aparecimento de um formidável campo de ações para dar prosseguimento à
lógica matricial de sua estruturação política: a projeção de sua esfera decisória
para longe do Lácio. As inesperadas ações do legado Ricardo seguiam para
outro rumo, para os mesmos horizontes em que se estavam a Britannia e a
Sicilia: uma submissão ao poderio laico local; algo que no Lácio se tornara o
arquirrival da estabilidade papal há décadas!

Urbano e seus colaboradores dariam provas de uma particular percepção

79 JL 5366, 5367, 5370, 5371; Liber Pontificalis, 2: 298; BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon.
MGH SS 5: 450.
80
JL 5417, 5450; URBANO II. Epistola. RGHF, 14: 692.
Leandro duarte rust 219

a respeito desta realidade. Eles demonstraram estar atentos às necessidades


de admitir que alguns conjuntos eclesiais simplesmente estavam em completa
dependência de um poder régio ou nobiliárquico e tudo o que lhes restava
era tentar obter a colaboração do rei ou do nobre que os capitaneava. É o que
prova a concessão do emblemático privilégio à “monarchia sicula”, em 1098:

Urbano, servo dos servos de Deus, ao caríssimo filho Rogério, conde da


Calábria e da Sicília, saudação e benção apostólica. Uma vez que, em ra-
zão de tua prudência, a dignidade da Suprema Majestade exaltou-te com
muitos triunfos e honras, e posto que tua integridade estendera grande-
mente a igreja de Deus sobre as terras Sarracenas, sempre te demonstraste
devotado à santa Sé Apostólica de muitas maneiras, nós o tomamos como
um filho especial e caríssimo da universal mãe igreja. Portanto, confian-
do profundamente na sinceridade de tua integridade, deixe-nos confirmar
pela autoridade das epístolas o que já prometemos por palavras: que por
todo o tempo de tua vida, e da de teu filho Simon, ou de outro qualquer
que legitimamente seja teu herdeiro, nós não iremos apontar legado al-
gum da Igreja romana nas terras sob teu poder sem seu conselho ou con-
sentimento. De fato, o que quer que seja que nós possamos desejar realizar
por meio de um legado, será levado ao teu empenho no lugar do legado,
de modo que nós o notificaremos em atenção ao bem-estar das igrejas que
estão sob teu poder ou em atenção à honra de São Pedro e de sua santa
Sé Apostólica, a qual tu tens sido sempre obediente, auxiliando-a fielmen-
te e vigorosamente em suas questões. Se um concílio for celebrado, eu
notificar-te-ei para que me envies bispos e abades de tuas terras, quantos
e quaisquer que sejam que desejes [enviar], retendo o restante para o ser-
viço e cuidado das igrejas. Que o Senhor Onipotente guie tuas ações para
seu beneplácito e conduza a ti, absolvido de pecado, para a vida eterna.
Concedido em Salerno pelas mãos de João, cardeal diácono da santa Igre-
ja Romana no terceiro dia antes das nonas de julho, na sétima indicção, no
décimo primeiro ano de nosso pontificado.81

81
Urbanus Episcopus, sersus servorum Dei, carissimo filio Rogerio, comiti Calabriae et Siciliae, sa-
lutem et apostolicam benedictionem. Quia propter prudentiam tuam, Supernae Maiestatis dignatio
te multis triumphis et honoribus exaltavit, et probitas tua in Saracenorum finibus Ecclesiam Dei plu-
rimum dilatavit, sanctaeque Sedi Apostolicae devotam se multis modis semper exhibuit, nos in spe-
cialem atque carissimum filium eiusdem universalis matris Ecclesiae assumpsimus, idcirco de tuae
probitatis sinceritate plurimum confidentes, sicut verbis promisimus, litterarum ita auctoritate firma-
mus: quod omni vitae tuae tempore, vel filii tui Simonis, aut alterius qui legitimus tui haeres extiterit,
nullum in terra potestatis vestrae, praeter voluntatem aut consilium vestrum, legatum Romanae Eccle-
siae statuemus; quinimmo, quae per legatum acturi sumus, per vestram industriam legati vice cohiberi
volumus, quando ad vos ex latere nostro misserimus, ad salutem videlicet Ecclesiarum, quae sub vestra
potestate existant, ad honorem beati Petri; sanctaeque eius Sedis Apostolicae, cui devote hactenus obe-
disti; quamque in opportunitatibus suis strenue ac fideliter adiuvisti. Si vero celebrabitur concilium,
220 coLunas de são pedro

Concessão semelhante foi feita a Guilherme II em 1095: qualquer mis-


são legatina em solo anglo-normando seria conduzida apenas mediante o
consentimento régio e se o eventual litígio não pudesse ser solucionado pelo
arcebispo de Canterbury.82 Tais outorgas revelavam um papado ciente de que
a subordinação de bispos e abades ao rei Guilherme e ao duque Rogério era
incontornável, fato consumado. Sua influência não seria vergada. A cúpula
pontifícia estava atenta à necessidade de associar-se a uma force majeur, um
poder laico que dificilmente seria sobrepujado, reconhecendo-o como inter-
mediário no controle de questões eclesiais. O papado sabia reconhecer um
poder superior.
A reação ao pacto firmado entre o abade Ricardo de Marselha e o rei
Afonso revela que a cúpula de Urbano II estava igualmente vigilante quan-
to ao aparecimento de uma oportunidade em sentido inverso, como aquela
criada pela tomada de Toledo. O papa e seu séquito de colaboradores esta-
vam atentos ao surgimento de uma ocasião favorável para se livrar destes
poderosos mediadores laicos e estabelecer contatos diretos com novos aliados
que fossem, preferencialmente, lideranças eclesiásticas. Os limites impostos à
participação da Igreja Romana nos assuntos eclesiais anglo-normandos e sici-
lianos chocavam-se com a lógica instauradora das relações políticas papais: a
necessidade de levar adiante o processo de dilatação dos domínios decisórios
do poder pontifício. As ações de Ricardo feriam esta lógica ao colocar em risco
a capacidade da Cúria apostólica de articula redes de aliados ideais. Ele deve-
ria ser desautorizado.
Apesar da ampla mobilização, Urbano não teve sucesso em garantir a
restituição de Diego. Com isso, um ativo partidário no processo de romani-
zação dos rituais litúrgicos hispano-moçárabes (SADIA, 2006: 9-35, OLIVER,
1992: 75-82) terminou seus dias em desterro. O fracasso fechou um inven-
tário de razões que, segundo a Beati Urbani II Papae Vita, fez da conduta de
Ricardo um alerta para a necessidade de recompor o quadro geral dos vínculos
projetados sobre os reinos cristãos ibéricos: “reconhecemos, assim, a razão pela
qual Urbano, retirada a função legatina de Ricardo, estabeleceu Bernardo, arce-
bispo de Toledo, como aquele que, em seu nome, estaria à frente na Hispania a

tibi mandavero quatenus episcopos et abbates tuae terrae mihi mittans, quot et quos volueris, alios ad
servitium ecclesiarum et tutelam retineas. Omnipotens Dominus actus tuos in beneplacitu suo dirigat,
et te, a peccatis absolutum, ad vitam aeternam perducat. Datum Salerni per manum Iohannis, sanctae
Romanae Ecclesiae Diaconi Cardinalis, tertio nonas Iulii; indictione septima, anno Pontificatus nostri
undecimo. GAUFREDO MALATERRA. De Rebus Gestis Rogerii Calabriae et Siciliae Comitis et Roberti
Guiscardi Ducis Fratris eius. RISS 5/1: 108.
82
EADMERO. Historia Novorum in Anglia. RULE: 258; RODOLFO DE COGGESHALL. Chronicon Angli-
canum. STEVENSON: 08.
Leandro duarte rust 221

partir de então [1093]”.83 Como primaz e legado, o arcebispo garantiria uma


vinculação direta da ecclesia ibérica à autoridade papal e teria sua atuação res-
paldada tanto por Urbano II como por Pascoal II, que noticiou publicamente:

Decretamos que o arcebispo de Toledo, pela autoridade de nosso privilé-


gio, é primaz em todos os reinos da Hispania, resguardada a autoridade
da Sé apostólica e os privilégios de cada metropolitano. Se, portanto,
alguma questão grave surgir entre vós, porque estais distantes da Sé
Apostólica, deveis recorrer a ele como primaz dentre todos vós, e, por
seu julgamento, ele porá um fim a vossa grave questão.84

O novo arcebispo deveria ser o ponto de equilíbrio entre a adesão ao


poder papal e preservação da autonomia e dos privilégios das igrejas locais
(FITA COLOMÉ, 1894: 299-341). Mesmo tendo atuado como legado em 1090,
quando partilhou com Amato de Óleron a condução dos sínodos de Toulouse
e Béziers, assembleias que foram consideradas como obras do “o senhor papa
Urbano através de seus legados”,85 Ricardo viu o fim da suas atribuições, desde
então eclipsadas no prestígio do arcebispo de Toledo.
Contudo, precipita-se quem supõe ver nesta decisão o ato final de uma
derrocada, o gesto que teria selado a conversão do abade de um “prudente e
justo filho da santa igreja romana”86 em um homem “destituído da autoridade
legatina por atentar contra as regras canônicas”.87 Ricardo de Marselha não
caiu em infortúnio, tampouco passou a figurar na ilegalidade, marginalizado
por um comportamento criminoso ou extralegal. Basta prestar atenção aos
termos com que Urbano II, ainda em 1089 – portanto, no mesmo ano em que
concentrou esforços para desfazer as decisões do legado – outorgou ao aba-
de, “diletíssimo irmão e aos teus sucessores que substituírem de modo regular”,
um privilégio escrito que confirmava a posse do “monastério de são Servando,
próximo a Toledo, que o rei Afonso recomendou à igreja romana de maneira

83
Hinc etiam discimus cur Urbanus, ablata Richardo legatione, vices suas in Hispania Bernardo Tole-
tano antistiti commiserit. RUINART. Beati Urbani II Papae Vita. PL 151: 041.
84
Toletanum siquidem archiepiscopum privilegii nostri auctoritate primatem in totis Hispaniarum
regnis fore decrevimus, salva apostolice sedis auctoritate et metropolitanorum privilegiis singlorum.
Si quis igitur inter vos grave contigerit, quia a sede apostólica procul estis ad eum velut ad primatem
vestrum omnium recurretis, eiusque iudicio que vobis sunt gravia terminabitis. JL 5370.
85 Dominus papa Urbanus generalem sinodum cum episcopis diversarum provinciarum per legatos
suos in Tolosaba civitate circa pentecosten collegit. BERNOLDO DE CONSTANCE. Chronicon. MGH SS
5: 450; MANSI, 20: 733-34; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 351.
86
Sobreposição de diferentes passagens de: GREGÓRIO VII. Reg. 7: 8 – 9: 30. MGH Epp. sel., 2: 469-
470, 615-617.
87
Junção de diferentes passagens de: RUINART. Beati Urbani II Papae Vita. PL 151: 40-41.
222 coLunas de são pedro

especial”.88 É preciso ser enfático: o pacto com Afonso era vergonhoso e acabou
anulado, mas a doação do rei foi mantida, era digna da Igreja de Roma!
Deferências que se repetem, anos depois, noutro diploma papal, onde
consta a confirmação de benefícios doados “ao dileto irmão e co-presbítero em
Cristo, Ricardo, cardeal da santa igreja romana e abade de Marselha”.89 Ao dis-
pensar um tratamento tão respeitoso, o pontífice revela que a conduta de
Ricardo em Castela não foi suficiente para situá-lo fora da ordem legal. E não
parece ter sido somente o papa a agir deste modo. Na bula de excomunhão
lavrada no sínodo de Toulouse, em 1090, o bispo Amato de Óleron se referiu
a Ricardo como “homem ilustre e vigário da igreja romana”.90
Dez anos depois, em dezembro do ano 1100, este “venerável cardeal de
Roma”91 podia ser encontrado à frente de outra assembleia, em Palência, como
legado de Pascoal II. O concílio foi palco de outra importante inflexão papal
sobre a organização eclesiástica do “regnum Hispaniae”: aí foi lido o privilégio
que estabelecia a elevação da igreja de Braga a arcebispado. Reconquistada
em 1071, esta Sé havia sido governada por Pedro de Rates, deposto por Ber-
nardo de Toledo em razão de ter recebido o pallium das mãos de Clemente
III: em Palência, Gerardo de Moissac foi apresentado pelo abade de Marselha
como o mais novo metropolitano da península.92 Ou seja, Ricardo estava, no-
vamente, encarregado de promover a política pontifícia em nome de Pascoal
II (FITA COLOMÉ, 1894: 215-235; REILLY, 1988: 262). Precisamente aí está
algo notável: este papa era ninguém menos do que Rainério, o cardeal de São
Clemente enviado à Castela em 1090 e 1091 para desfazer os “excessos” co-
metidos precisamente pelo abade de Marselha!
À primeira vista, somos tomados pelo impulso de ver um tom de absurdo
em tudo isso, tamanha é a consternação diante do fato de um abade persistir
como vicarius papal após ter sido privado da comunhão por Vítor III. Parece
uma aberração que Ricardo tenha mantido o título de cardeal após envolver-se
em algo que “nunca deveria ter chegado a ouvidos católicos”. Todavia, esta é a
forma com que nossa mente, educada pelo legalismo moderno, tende a enqua-
drar a flexibilidade decisória do papado do século XI. A trajetória seguida pelo
legado de Marselha deve ser vista como um arriscado “passo adiante” dado
88
Frater dilectissimi R. tuisque sucessoribus regulariter substituendis... Coenobium autem sancti Ser-
vandi, apud Toletum, quod rex Ildefonssus Romanae Ecclesiae specialiter tradidit. URBANO II. Confir-
matio Beneficiorum. Cartulaire S. V. M. 2: 205-206.
89
Dilecto in Christo fratri et copresbytero Richardo, sanctae romanae ecclesiae cardinali et Masillensi
abbaie. URBANO II. Confirmatio Beneficiorum. Cartulaire S. V. M. 2 : 208-210.
90
Vir illustris et Romanae ecclesiae vicari. AMATO DE ÓLERON. Bulla. RHGF 14: 770.
91
In Concilio enim Palentino, quod venerabilis Ricardus, Cardinalis Romae, celebravit. BERNARDO DE
BRAGA. Vita Sancti Geraldi. PMH: 54.
92
HISTORIA COMPOSTELANA. ES 20: 20-21. Mansi e Hefele datam a assembleia em 1104. MANSI,
20: 1185-1186; HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 483.
Leandro duarte rust 223

no mesmo itinerário político trilhado por todos os demais legados da Igreja


romana. Não nos deixemos levar pela aspereza das cartas de Urbano II durante
o episódio envolvendo o bispo de Compostela. Tratou-se de mais um dos mui-
tos casos de autonomia legatina, e não um grave delito incompatível com o
pertencimento à sancta Romana Ecclesia. Ricardo não agiu contra a autoridade
papal. Não foi figura excepcional, nem marginal. Ele fez um uso inconveniente
da liberdade decisória reconhecida aos legados. Isto, porém, era tolerável; lhe
permitia permanecer entre os “diletos filhos de São Pedro”, os cardeais.
As ações do abade de Marselha resultavam de práticas que exploraram
ao extremo as possibilidades de auto-realização dos legados na condição de
tomar decisões em nome dos papas, característica tolerada desde o tempo de
Gregório VII. Seu comportamento não foi uma ocorrência pontual, não pode
ser tomada como corrupção de suas atribuições ou uma exceção criada por
um trágico curso de escolhas mal-sucedidas. Sua forma de agir era fenômeno
típico da política pontifícia, era o caso-limite de práticas constantes, regulares.
O concílio de Husillos e o pacto estabelecido com o rei Afonso VI constituíram
uma tentativa de servir-se ao máximo das habilidades de “julgar conflitos”
(potestas ius dicendi) e de “emitir comandos” (potestas praeceptiva), ambas le-
gitimamente conferidas e reconhecidas aos legados pelos próprios pontífices.
A leve repreensão comunicada a Gerardo de Óstia, em 1073, e a severa
penalidade aplicada a Ricardo de Marselha e Hugo de Lyon, em 1087, foram
marcas de uma mesma escala de relações entre os pontífices e seus legados.
Consistiram nos pontos de variação alcançados pela mesma característica histó-
rica, a saber: a transmissão e o desempenho das atribuições de um legado como
grandeza pessoal, indissociável das razões interiores e do autogoverno intencio-
nal de seus portadores. Isso significava que os “agentes do papado” formavam
uma estrutura política polinuclear, composta por vários e contraditórios pontos
de elaboração dos parâmetros jurídicos e de aplicação do poder decisório. O go-
verno papal era um mosaico de governos menores e altamente regionalizados:
estavam unidos em um conjunto maior, mantido pela autoridade apostólica,
mas comportavam as diferentes cores de um universo heterogêneo de correla-
ções de forças. Esta estrutura permitia ao papado se adaptar à alta diversidade
política do Ocidente senhorial, potencializando sua inserção nos numeroros rei-
nos, condados e ducados da Cristandade. Através dos legados, ele estendia sua
rede de colaboradores e aliados suprarregionais, fortalecendo-a.
Um eclesiástico ou religioso escolhido para agir em nome do pontífice
absorvia esta função não como um alter ego papal, mas assimilando-a a si
próprio. O vocábulo “legado” aparece, em suas formas mais comuns, grafado
como legatus (“enviado”, “emissário”), vice nostra ou vicarii mei. Na tradução
da linguagem manejada pelos papas, essas fórmulas queriam dizer “nosso vi-
224 coLunas de são pedro

gário”, “sucessor”, “aquele que age em nosso lugar”.93 Elas não identificavam
apenas um “representante”, mas um novo espaço do poder pontifício. Mais do
que transmitir a “viva voz” que ecoava de Roma, os legados passavam a redizê-
la com suas próprias palavras, segundo seu próprio entendimento.

4.4. Pensar o Papado sem a “Reforma”

De tudo quanto acabamos de dizer neste capítulo resulta a imagem de


uma forma de organização política para a qual a expressão “centralismo pa-
pal” fica a dever em precisão conceitual. Ao aplicá-la, passamos a pressionar a
documentação para que nos devolva as imagens de legados limitados a velar
por desígnios definidos por algum monopólio detido por uma instância distan-
te e minúscula – a cúpula romana. Mas, parece insustentável esta dicotomia
entre, de um lado, pontífices que comandavam e, de outro, legados que se-
guiam ordens e se moviam pela inércia da obediência a vontades superiores.
Os vínculos de poder mantidos entre eles são mais adequadamente apresenta-
dos sob a forma que segue.
Os legados eram autorizados a exercer uma capacidade incomum de
aplicar a lei, fazer a justiça e tomar decisões (potestas), aplicada sob um pleno
direito de ser instruída e corrigida pela autoridade apostólica e a “divina dou-
trina” (magisterio) da qual os papas diziam-se os maiores porta-vozes. Uma
missão legatina implicava na posse de poderes decisórios cujo exercício usu-
almente não contava com condições pré-estabelecidas por um “programa de
ações”: o acionamento desta capacidade era definido pelo próprio legado. Ao
pontífice cabia sopesar seus resultados e repercussões. Um vínculo de subordi-
nação e obediência, sem dúvidas. Mas também um laço de interdependência
e ativa cooperação. Uma relação desigual, todavia, baseada na reciprocidade
da habilidade de tomar decisões, e não apenas em uma submissão hierárquica.
Os homens encarregados de “agir no lugar do papa” formavam um grupo ecle-
siástico superior que se espalhava pela Cristandade e fazia jorrar sobre a Cúria
a incontornável pluralidade política medieval. Os pontífices detinham as vozes
encarregadas de preservar tal partilha, de moderar e mediar a multiplicação
dos âmbitos deliberativos da Igreja romana.
Todavia, estes tensos jogos de aliança e obediência, negociados dia-
riamente através do versátil e flexível exercício pessoal do poder, têm ainda
pouca visibilidade no estudo da História Medieval. Eles continuam a ser en-
cobertos pelo nosso ímpeto para enfatizar a importância de funções fixas, de
atribuições congeladas, de profundos cortes hierárquicos. Ímpeto alimentado

93
NIERMEYER, p. 1089-1091.
Leandro duarte rust 225

pela onicompetência adquirida pelo conceito de “Reforma” ao final de uma


afortunada trajetória intelectual.
Quando veio à tona, carregado nos ombros de La Réforme Grégorienne,
este termo prometia novos ganhos ao estudo da Idade Média. Abarcando uma
caracterização geral da eclesiologia cristã, a ideia flicheana de “Reforma” pres-
supunha um amplo conhecimento das funções históricas da religião, um vasto
exame das junções entre a sociabilidade e as crenças no espiritual, um olhar
mais atento ao peso histórico das conexões entre o sagrado, o profano e o poder
político. Modelado por um olhar assim holístico e sintético, o conceito emergiu
nos anos 1920 como uma novidade ao alcance de quem ansiava por reescrever
a história religiosa do século XI segundo uma perspectiva globalizante. Através
dele tomava forma uma possibilidade de capturar a unidade da “sociedade feu-
dal” e transpor os limites estreitos do tema oitocentista do duelo Estado versus
Igreja na “luta das investiduras” (BROOKE, 1939: 218). Assim, quando mais
e mais historiadores convenciam-se de que o futuro de seu ofício dependeria
da habilidade para compor sínteses históricas (FEBVRE, 1989; BLOCH, 2001;
ROUSSET, 1925: 382-387; TESSIER, 1938: 195-198), fortes razões encorajaram
a incorporação desta ideia de “Reforma” à investigação histórica. Por meio dela
os historiadores anteviam toda uma capacidade de análise global do medievo.
Avancemos um pouco mais. O triunfo deste conceito não foi somente
resultado de sua sintonia com a concepção de história que então se apoderava
das mesas de trabalho dos historiadores. Além disso, o curso do século XX
trouxe um evento de grande repercussão, que pareceu ter vindo dar razão ao
pensamento de Augustin Fliche. Reunido entre 1962 e 1965, o Concílio Vatica-
no II anunciou um aggiornamento da organização eclesial católica ao assumir
o “discurso reformador” como o elemento fulcral de toda a vida social cristã.
Através de sua extensa obra legislativa, a longa tradição conciliar que recua-
va quatrocentos anos até Trento foi profundamente reavaliada à luz de uma
série de reformas que, uma vez implantadas, transformariam profundamente
as relações entre a Igreja Católica e o mundo moderno: o catolicismo seria
reorientado pelos ideais do ecumenismo, se aproximaria do protestantismo,
investiria suas energias em uma nova inserção social de suas igrejas, colocaria
por terra as barreiras que o distanciavam dos mass media, ampliaria a parti-
cipação laica, reformularia sua liturgia, as orientações pastorais, a doutrina.
Por tais razões, Christopher Bellitto (2001: 206) arriscou-se com a opinião de
que “talvez o mais importante aspecto do Vaticano II [tenha sido] precisamente
o vocabulário de Reforma”.
Dirigindo a Igreja católica a uma “via reformadora revolucionária”
(O’MALLEY, 1971: 573-601; TANNER, 1999: 96; BELLITTO, 2002: 152), o
Vaticano II calou fundo na consciência dos círculos intelectuais ocidentais,
226 coLunas de são pedro

dentre os quais estavam os historiadores; sobretudo ao fincar a ideia da “Re-


forma” como divisor de águas de uma nova época, com a proposição de uma
vasta reestruturação da organização eclesiástica cristã. Era como se a História
tivesse se encarregado de atestar a validade do olhar flicheano, que décadas
antes já vislumbrava as ações reformadoras como um repertório de medidas
que redesenhavam toda arquitetura eclesial cristã, em quaisquer tempos e lu-
gares. O concílio de João XXIII insinuava-se como uma prova do princípio de
que uma ruptura histórica tão drástica como a que foi selada pelo “momento
gregoriano” só poderia resultar de um audacioso “projeto reformador” (AVIS,
2006: 200-202; BULMAN & PARRELLA, 2006: 19-38, 61-80, 103-106).
Contudo, o Concílio Vaticano II demonstrava igualmente que o uso de
expressões apegadas à ideia da Reforma como marco histórico, caso da “Refor-
ma Gregoriana” tão familiar aos historiadores, constantemente negligencia o
importante fato de que elas estão atreladas a uma memória reformadora rea-
vivada no século XX como política eclesiástica. Nos idos dos anos 1950, Gehart
Ladner (1959) já havia soado o alerta, chamando a atenção dos especialistas
para o risco de incorporarem em suas pesquisas, de maneira acrítica, a noção
de “Reforma”. Não podemos esquecer que ela nunca é simplesmente uma pa-
lavra ou conceito, uma construção intelectual socialmente neutra ou isenta de
uma territorialidade nos movimentos da História, algo que naturalmente se
aplica sobre o passado para traduzi-lo ou torná-lo inteligível. Esta ideia está
apinhada de cargas de sentido moldadas segundo pontos de vista específicos:
há séculos, ela integra os repertórios de auto-representação dos que propaga-
ram a fé cristã. Ela é forjada e difundida através das exigências normativas dos
grupos em luta para controlar mensagens religiosas politicamente poderosas.
Em outras palavras, poderíamos dizer que a “Reforma” não é jamais um sim-
ples nome ou termo, mas um bem simbólico que traz em si opções engajadas
de como ver a relação entre religião, igrejas e sociedade.
O período compreendido entre 1891 (Rerum Novarum) e 1965 (fim do
Vaticano II) consistiu precisamente na época em que o papado buscou reaver
um controle deste bem para dar vida a uma política de readequação da Igre-
ja católica a um mundo cada vez mais laicizado e industrializado. Com ela,
almejava-se um acerto de contas com o século XIX, cujas revoluções burguesas
disseminaram o princípio da liberdade religiosa individual e entrincheiraram
a milenar dominação cultural clerical. O credo liberal e o individualismo vo-
luntarioso da economia de mercado fizeram mais do que remover recursos
educacionais e riqueza material do controle dos clérigos: eles tomaram o pos-
to de modelo de conduta religiosa (CAMP, 1969: 1-46). As ações movidas pelo
papado durante o período de 1890 e 1960 sob a bandeira das “reformas”
foram tentativas de reverter este quadro e recuperar a capacidade de fornecer
Leandro duarte rust 227

aos agentes sociais a armadura social de sua existência. Para isso, a Cúria pon-
tifícia se valeu das armas de sua época: criou “programas de ações” e investiu
no processo conhecido como “romanização da Igreja”, definido por um apego
ao legalismo que tinha o direito canônico por fonte; pela institucionalização
das experiências sagradas; pelo fortalecimento da hierarquia eclesiástica e
pela centralização político-administrativa. No mundo dos historiadores dos
séculos XIX e XX, falar em “Reforma” era acionar uma palavra saturada por
esses aspectos. O recente revival desta noção está atrelado a projetos de poder
e a consciências sociais contemporâneos, não medievais.
Certamente o emprego de termos como renovatio e reformatio estava
amplamente disseminado nos séculos XI e XII. Eles integravam a compreensão
de mundo dos homens e mulheres daquela época, norteando decisivamen-
te suas ações e escolhas, como demonstrou Giles Constable (In: BENSON &
CONSTABLE, 1991: 36-67) em um estudo instigante. Porém, como revela o
próprio Constable – no mesmo trabalho em questão –, não havia um programa
ou um projeto coeso da ação reformadora. Sua condução tampouco demanda-
va a organização de espaços restritos para um poder decisório singular. Reno-
vatio e reformatio designavam um caleidoscópio de ações que incluíam desde
a reparação de um santuário até as asceses motivadas pela crença no trânsito
espiritual da alma ou no retorno aos jardins do Éden.
Não digamos, como fez Alain Guerreau (2002: 19-27) a respeito da “re-
ligião”, que a “Reforma” é a ideia resultante de uma fratura conceitual ocorri-
da em um tempo próximo a nós. Não. Sua incidência e importância históricas
não surgiram durante os oitocentos. Dizê-lo seria mutilar uma longa trajetória
como elemento chave da percepção do mundo e das ações sociais na história
da Cristandade, especialmente após o século XVI. Seria, como notou Carlos
Astarita (2003-2004: 183-207), transformar em uma ruptura intransponível,
um jogo mais complexo de permanências e mudanças. Contudo, o conceito de
“Reforma”, assim gravado com este “r” maiúsculo e soberano resultada de sig-
nificados decisivamente moldados por ocorrências pouco medievais: aquelas
que confluíram para a formação de uma nova concepção religiosa de ordena-
mento social a partir do pontificado de Leão XIII. Quando este vocábulo apare-
ce como sinônimo de um audacioso “modelo de sociedade” ou desponta como
um repertório de práticas coletivas generalizadas, ele supõe certos atributos e
fundamentos das sociedades capitalistas. Com tais características, esta noção
é usada pelo medievalista a partir de uma sólida pré-existência normativa
contemporânea. Vejamos esta argumentação por outro ângulo.
“Reforma” é um dos nomes geralmente conferido pelos medievalistas a
processos de adaptação das igrejas cristãs dos séculos XI e XII à ascensão de
espiritualidades laicas e aos impactos acarretados pela “Revolução Comercial”.
228 coLunas de são pedro

Isso pode ser facilmente ilustrado com um conhecido livro, A Espiritualidade


na Idade Média Ocidental, de André Vauchez. A obra aponta o período que se
estende do fim do século XI ao início do século XIII como “marcado em todos
os setores por um espetacular santo à frente, o século do ‘grande progresso’.”
Isto significaria que a sociedade senhorial tornou-se cenário “que não deixa de
apresentar certa analogia com a revolução industrial do século XIX, [pois], como
esta, ela provocou mutações e rupturas, cujas repercussões não tardaram a se
fazer sentir no domínio da vida espiritual.” (VAUCHEZ, 1995: 65).
Suposto palco de “revoluções”, “progressos materiais” e “ascensão da
burguesia”, o medievo é aqui mais do que “primórdio” ou “origem” da Moder-
nidade: ele se parece com um verdadeiro alter ego de nosso mundo. Note-se:
de um único conceito são feitos roteiros históricos não semelhantes, mas idên-
ticos. Desenham-se tramas encenadas pelos mesmos protagonistas (“revolu-
ções laicas” dentro da eclesiologia cristã) em épocas drasticamente diferentes,
distanciadas pelo longo fôlego de um milênio. Tal entendimento, que sugere
uma “repetição”, propaga precisamente a imagem de passado almejada pelos
discursos da Igreja católica contemporânea: aquela que minimiza a aparência
de ruptura e afirma que as organizações eclesiásticas têm uma “comprovada”
capacidade para atender às demandas de sociedade em vias de laicização e
aceleração da acumulação material.
A referência à ascensão religiosa dos laicos confere à “Reforma Grego-
riana” ares de uma transformação que respondia a eclosão de grandes mobili-
zações coletivas, como se o “momento gregoriano” identificasse o período de
redefinição da função social da Igreja, de adaptação da Cúria pontifícia a um
Ocidente agitado pelo “aparecimento da multidão na história” (MOORE, 1980:
46). Esse traço é revelador de um aspecto importantíssimo: ele descreve um
processo de transformações histórica derivado da ideia liberal oitocentista de
Revolução, cujos postulados fundamentam esta noção de “Reforma”. Vejamos.
Em primeiro lugar, com ela os medievalistas assinalam a passagem de
uma fase histórica de feições negativas para outra de feitio positivo. Isto é, uma
época de crise moral e social teria ficado para trás, superada por um novo perí-
odo, no qual o ordenamento da vida coletiva teria sido recomposto, sob a força
e as garantias oferecidas pela lei canônica. Um contexto supostamente eivado
de arbitrariedades e desordem, atribuídas ao predomínio de uma aristocracia
que subjugava a tudo e a todos por meio da corrupção (a simonia, o nicolaísmo,
o “regime de igreja própria”), teria sido interrompido por um corte histórico,
fonte de um novo tempo, de uma era redentora, orientada para a abolição das
iniquidades que dilaceravam a vida comum. Assim se reescreve com persona-
gens medievais o tema da “tomada revolucionária do poder”, ato plenamente
difundido no século XIX como forma de instaurar um novo começo para a so-
Leandro duarte rust 229

ciedade, um tempo fecundo e fundador, crepúsculo de uma era de crises. Uma


breve nota: por muito tempo a historiografia definiu como os adversários das
“reformas papais medievais” precisamente o mesmo inimigo declarado pelos
discursos revolucionários modernos: o arcaísmo da nobreza e dos reis!
Em segundo lugar, vemos aí a premissa de que lidaríamos com a drásti-
ca alteração dos rumos da história. O breve governo de Leão IX (1049-1054) é
geralmente visto como o período de implantação da ordem reformadora. Com
isso, em meia década o papado teria se livrado de um fardo histórico. A Sé Ro-
mana teria se desembaraçado do peso de décadas de colapso social e abusos
no exercício do poder, para tomar a dianteira em um combate às atribulações
da vida em sociedade. Em questão de uns poucos anos, a cúpula papal teria
desfeito os nós que a prendiam a uma imensa fatia de passado histórico ao to-
mar a frente de um “programa de ações emancipatórias”, que surgem envoltas
em caráter libertário. A “Reforma” conta-nos a história de uma “Revolução”
típica do século XIX: ela designa uma aceleração histórica pela qual o presente
vivido se livra do passado para chamar um novo futuro coletivo à existência
(ARENDT, 1990; HOBSBAWN, 1999).
Porém, à medida que estas mudanças são atreladas à espiritualidade clu-
niacense, às tradições canônicas multisseculares e a um ancestral eremitismo
peninsular italiano, esta “Revolução” acaba por ser abrandada como fator de
ruptura, descontinuidade. Ela continua a vigorar na retina dos estudiosos como
uma mudança de grande amplitude histórica. Mas que teria ocorrido de modo
pouco traumático, sem as ondas de violência e os desencaixes vivenciados na
“era das revoluções”, o século XIX (HOBSBAWN, 1999). Assim, nosso conceito
realiza algo idealizado pela Rerum Novarum: o “partido gregoriano” surge como
o precedente histórico capaz de legitimar o papado como a liderança de trans-
formações históricas que alcançavam grande magnitude sem os inconvenientes
de agitações sociais ou guerras civis. A “Reforma Gregoriana” credenciava a
Santa Sé dos anos de 1890-1920 a exibir-se como o guia para uma via revolucio-
nária amena, branda, conservadora. A lição estava dada: “a história demonstra
que o papado detém as soluções para as crises sociais, saídas que podem ser
abertas sem desordem ou violência, se sua liderança for acatada”. Mensagem
conveniente para uma Modernidade mergulhada em agitações partidárias, gre-
ves operárias, mobilizações sindicais e frequentes enfrentamentos civis!
Hoje dificilmente poderíamos afirmar que os medievalistas operam com
a categoria conceitual notabilizada em La Réforme Grégorienne. Revolvido de
um extremo ao outro por muitos especialistas, o tema da “Reforma” foi lar-
gamente redimensionado como uma realidade social anônima, popular e des-
centrada. Mas, em um ponto, a influência flicheana – encorpada pelo Vaticano
II – permanece muito viva: a aplicação global do conceito. A historiografia
230 coLunas de são pedro

persiste com a premissa de que pensar a ecclesia do século XI, qualquer que
seja o feixe de relações históricas em questão, significa pensar a “Reforma”. Na
realidade, não importa qual adjetivo acompanha o conceito, se “monástica”,
“gregoriana” ou “papal”: em todos esses casos a ideia de “Reforma” perdura
como um imperativo histórico para o estudo de todo e qualquer tema envol-
vendo o papado. Como se esta construção conceitual fosse um fator obriga-
tório para esclarecer qualquer ação historicamente relevante após o ano Mil.
Indispensável, intocável e onipresente, a “Reforma” passou por uma
canonização conceitual, fenômeno repleto de implicações para a escrita do
passado:

No momento em que um conceito é canonizado podem estes textos al-


terar os fatos. Eles têm que, a partir da mesma linguagem, realizar um
procedimento de acomodação da realidade (...). O que significa dizer
que cada nova situação está sempre submetida à necessidade imperiosa
de subsumir-se à mesma linguagem, ao mesmo conjunto ortodoxo de
conceitos e categorias (KOSELLECK, 1992: 134-146).

O fôlego totalizante da ideia de “Reforma” traduz uma frouxidão teóri-


ca que abre espaço para a postura de adequar, conceitualmente, a realidade
medieval aos referenciais contemporâneos que formaram a linguagem manu-
seada pelos medievalistas. Reificada como conceito imprescindível, declarada
de uso obrigatório em razão de sua abrangência, esta ideia é então imuniza-
da, torna-se menos suscetível a críticas e re-avaliações, converte-se em uma
espécie de “conceito santo”. Canonizada como evidência empírica, ela se faz
habitual ao saber histórico, básica, primordial, fundadora. Isto se reflete, por
exemplo, na naturalidade com que um autor experimentado como Paolo Prodi
(2005: 57), renomado especialista da História do Direito, traz ao público a
opinião de que “milhares e milhares de páginas foram escritas sobre essa temáti-
ca e, a meu ver, nada de realmente novo pode ser dito”. Frase que é escrita como
se nada ou muito pouco de controverso houvesse neste juízo de que absoluta-
mente tudo da história papal estaria dado em uma única temática.
Protegidas por esta camada de ortodoxia intelectual, exigências termi-
nológicas precipitadas cristalizam-se, disseminando premissas retiradas acri-
ticamente da visão que o século XX construiu acerca da instituição “Igreja
católica”. E assim está aberto o caminho para se alojarem, na escrita do his-
toriador, as implicações de sentido alimentadas por uma consciência histórica
singular, formada desde os tempos de Fliche: aquela constituída a respeito das
“reformas” comandadas pelo papado na era Rerum Novarum/Concílio Vatica-
no II.
Leandro duarte rust 231

O que está em jogo não é a defesa velada de um objetivismo do mé-


todo histórico. Por certo, nenhum historiador pode escapar à realidade da
apreensão do passado ocorrer por meio de uma linguagem estranha ao on-
tem, forjada no presente em que vivemos. Mas, operar a fusão dos horizontes
hermenêuticos do passado e do presente não implica em aceitar que toda a
distância existente entre eles seja limitada por um único conceito. Como ob-
servou Hans-Georg Gadamer (2002: 53):

O condicionamento [hermenêutico do historiador ao tempo presente]


não prejudica o conhecimento histórico (...). Precisa ser levado em conta
se não quisermos agir arbitrariamente com relação a ele. Deve-se consi-
derar aqui como ‘científico’ destruir o fantasma de uma verdade desvin-
culada do ponto de vista do sujeito cognoscente. Este é o sinal de nossa
finitude, e ao permanecermos imbuídos de sua ideia ficamos protegidos
da ilusão. A crença ingênua na objetividade do método histórico foi uma
dessas ilusões. O que veio, no entanto, a ocupar o seu lugar não é um
relativismo frouxo. O que nós mesmos somos e o que conseguimos ouvir
do passado não é casual e nem arbitrário.

O conceito de “Reforma” tem se prestado precisamente a este papel. Por


não trazer as indicações da parcela do passado medieval tomada como funda-
mento de sua construção, por simplesmente dizer respeito a tudo que envolvia
a Igreja medieval, este conceito passa, com maior facilidade do que outros, a
abrigar uma série de referências extemporâneas na compreensão daquela re-
alidade. O que faz do gesto de se debruçar sobre a Idade Média a constante e
silenciosa busca pelos contornos de uma eclesiologia mais próxima e familiar
à nossa época. Daí a aparente impossibilidade dos especialistas em abrir mão
de termos como “centralização” ou “burocratizado” e “programas de ação”,
expressões que atendem a uma necessidade hermenêutica de reconhecer nos
séculos medievais embriões do atual Vaticano e suas reformas sociais.
Canonizado como razão fundadora da história do Cristianismo, o termo
“Reforma” cria entre os historiadores o hábito de palmilhar episódios sobre
os quais a linguagem de seu presente repouse com facilidade. E quando isto
não é possível, que o passado suporte as consequências de estar aquém das
marcações estipuladas como seu futuro obrigatório. Como fez John Gilchrist.
Dono de uma produção inigualável a respeito do direito canônico entre os
séculos XI e XIII, Gilchrist (1972: 377-379) rotulou as missões legatinas como
a obra “elementar e fragmentada” de um papado que dava provas de “não ter
uma política, nenhum tratamento consistente das questões levadas diante dele
e nenhuma administração suficientemente desenvolvida para habilitá-lo a pre-
232 coLunas de são pedro

servar suas energias para as ‘grandes questões’” (Ver ainda: GILCHRIST, 1993).
Como não corroboram a eficácia centralista esperada pelo autor, os legados
tornam-se precários, aquém do que deveriam ter sido. Em outras palavras, se
o passado não antecipa o presente, isto só pode apontar para um novelo de
deficiências a censurar.
Avançar na compreensão das reformas cristãs implica em repensar seus
agentes e fundamentos sociais, como tem feito a historiografia, mas igualmen-
te em deixar claros os limites de sua aplicação analítica. Delimitar as frontei-
ras deste conceito, evidenciando os aspectos do passado que constituem os
alvos específicos de sua atenção, é vital para que possamos pesar o seu uso,
aprimorá-lo e questioná-lo em seu valor heurístico. Elucidar a finitude de um
conceito é condição básica para evitar que ele se feche e siga eternizando os
reflexos de referenciais que, oriundos do presente dos historiadores, incidiram
no processo de sua construção intelectual. Tomar consciência das limitações
teórico-metodológicas da ideia de “Reforma” é assegurar nossa capacidade de
dizer algo válido sobre o passado por meio dela. Eis aí a razão que norteou
todo este capítulo: o estudo da estruturação política do papado vai muito além
dos sentidos fundadores do tradicional conceito de “Reforma”. Assim, em cer-
ta altura desta pesquisa, foi necessário deixar esta habitual referência de lado
e buscar novos pontos de luz para nos aventurar pelo caminho. Ao fazê-lo,
nossos olhos se tornaram menos suscetíveis a solicitar ao século XI uma silhue-
ta contemporânea, a pedir-lhe que nos devolva a imagem de uma eclesiologia
dominada por um centralismo romano reformador. Deste modo ganhou maior
relevo aquele que julgamos ser o processo capital protagonizado pelo poder
pontifício no período aqui estudado: a dilatação dos domínios instituintes do
papado para além da cidade de Roma e dos grupos de poder peninsulares.
A radical distinção entre as aristocracias laicas e o episcopado romano,
selada em 1046, remodelou a identidade da igreja governada pelo papa. En-
tregue a um clero formado em terras longínquas, ela se dissociou das forças de
seu próprio conjunto populacional, a fraternitas romana, e desencadeou um
longo confronto político contra o elemento laico local e o clero citadino (cle-
rus urbis), consortes durante a hegemonia Crescenzi-condes de Tusculum. A
“clericalização” dos poderes públicos romanos após 1050, descrita por Pierre
Toubert (1973: 1314-1330), não foi a concentração de funções judiciais e ad-
ministrativas nas mãos da ordem clerical, como se convertidas em atribuições
abertas a todos aqueles que exerciam a função sacerdotal. Afirmá-lo, seria
encobrir um corte profundo, disfarçar uma agressiva divisão sócio-política.
Na direção oposta à de uma integração romana, esta “clericalização” desuniu
ainda mais os grupos do Lácio por ser obra de uma influente, mas minoritária
parcela eclesiástica a serviço de um episcopado “estrangeiro”. Entre 1046 e
Leandro duarte rust 233

1130, nenhum dos pontífices teve berço romano; por sete décadas, até que
chegasse o ano de 1118, nenhum deles sequer havia nascido no Lácio. As di-
ferenças aprofundaram-se de tal forma que, tão logo era eleito e entronizado,
um papa exigia juramentos de obediência do clero romano, como se apressou
em fazer Gregório VII.94
O confronto com a cidade marcou o papado com um duradouro senso
coletivo de que a Igreja romana não estava em Roma, mas lá onde estavam
o papa e aqueles investidos do poder de agir em nome do apóstolo Pedro.
Desenraizou-a. Desvinculou-a da tendência de fixação espacial que o ineccle-
siamento impunha em outras regiões do Ocidente sob uma integração aristo-
crática local. Eis a lógica a que respondia a flexível e tolerante relação entre
os pontífices e seus legados: o poder decisório destes executores da sedis apos-
tolicae prolongava a “santa igreja romana”, realizava sua expansão como es-
paço decisório suprarregional, nunca meramente concentrado em um ponto.
As incessantes viagens pontifícias da era leonina, a legalidade assegurada pela
In Nomine Domini à eleição e ao exercício do ofício episcopal romano fora de
Roma, e a promoção das missões legatinas por Gregório VII fizeram avançar
um mesmo processo político: a ampliação e o desdobramento da rede articu-
ladora do poder decisório dos papas.
O papado expandiu-se no século XI. Multiplicando o poder, não concen-
trando-o. Ele se tornou mais poderoso ao potencializar aliados locais e regio-
nais, não ao devorar ou enfraquecer os senhores medievais. Sua organização
parece-nos mais adequadamente apresentada nos termos de um alargamento
do espaço de seu acionamento efetivo através de uma tensa pluralização de
pólos regionais de poder (potestas), inscritos na preeminência de arbítrio exer-
cida pelo papa (auctoritas et magisterio). Recusamos a imagem de uma dis-
posição centrípeta do poder que esmagaria igrejas locais com o peso de uma
estrutura hierárquica piramidal. O estudo da política papal de Leão IX e de
Urbano II exige atenção a uma gramática analítica que vá além dos formatos
sistêmicos e modernizantes impostos pelo conceito maiúsculo de “Reforma”.
Se for importante conservar este conceito para oferecer versões mais acuradas
da história social do Ocidente, não é menos necessário ir além dele para que
os olhos alcancem em profundidade a história institucional medieval.

94
BENO DE SS. MARTINO E SILVESTRO. Gesta Romanae Ecclesiae contra Hildebrandum I. MGH Ldl
2: 370.
Capítulo 5

A lâmina do tempo (1089-1118)

Se for assim como dizes, reconheces


que vós tendes agido como outro papa.
Godofredo de Vêndome
ao legado Gerardo de Angoulême,
1112.

5.1. O tempo transborda os calendários

Na passagem do século XI para o XII, os concílios reunidos por homens


investidos do poder papal foram palco de hábeis utilizações do tempo. Empre-
gavam-no, por exemplo, para integrar as províncias eclesiásticas em ritos co-
muns, universalizando certas práticas e celebrações. Em 1094, Gerardo, bispo
de Constance e legado pontifício de Urbano II:

Estabeleceu ainda, conforme os decretos dos santos pais, que o jejum de


março fosse sempre celebrado na primeira semana da quaresma e o jejum
de junho na semana do pentecostes. Do mesmo modo estabeleceu que, tan-
to na semana de pentecostes quanto na semana da páscoa, fossem celebra-
dos três dias de festividade. Pois até aquele tempo o costume dos provincia-
nos não era seguido pelo episcopado de Constance, isto é, [este] observava
[o jejum durante] toda a semana na páscoa e apenas um dia no pentecostes,
sendo que ambos eram obrigados a observar toda a semana,
e que quase todos os outros episcopados já têm conservado a
mencionada decisão desde muito antes.1 (Os grifos são nossos)

1
Statuit etiam juxta statuta sanctorum patrum, ut jejunium Martii in prima hebdomada quadragesi-
mae, & jejunium Junii in hebdomada pentecostes semper celebraretur. Item statuit, ut tam in hebdo-
236 coLunas de são pedro

No ano seguinte, foi a vez de Urbano II ordenar no concílio de Piacenza:

Estabelecemos que os jejuns sejam realizados nesta ordem dos


quatro tempos: o primeiro jejum no início da quaresma, o se-
gundo na semana de pentecostes, e que o terceiro e quarto se
façam em setembro e dezembro, provido de uma bolsa, segun-
do o costume.2

Alguns meses depois, o concílio de Clermont estabeleceu algo seme-


lhante. Porém, como o texto oficial de seus cânones não foi preservado (SOM-
MERVILLE, 1972), somos informados da decisão pela Historiae Ecclesiastica
Libri Tredecim de Orderic Vital:

Nenhum laico, após receber a cinzas sobre a cabeça, deve comer carne
até a Páscoa. Em todos os tempos, o primeiro jejum dos Quatro Tempos
deve ser celebrado na primeira semana da quaresma. As ordenações de-
vem ser celebradas, todas as vezes, nas noites de sábado ou, com o jejum
sendo mantido, no domingo. No sábado de páscoa o ofício não deve ser
terminado exceto após o pôr do sol. O segundo jejum deve ser sempre
celebrado no pentecostes.3

Em 1105, acompanhado por Rutardo, arcebispo de Mainz, Gerardo de


Constance reuniu um sínodo em Nordhausen e determinou que fosse:

Celebrado, segundo o costume romano, o jejum no mês de março,


na primeira semana da quaresma, e o jejum no mês de junho, na mesma
semana do pentecostes, [assim] é proclamado pela autoridade apostólica
através dos mencionados presidentes [do concílio].4 (Os grifos são nossos)

mada pentecostes, quam in hebdomada paschali tres tantum dies festivi celebrarentur. Nam usque ad
illud tempus Constantinensis episcopatus morem comprovincialium non est secutus, videlicet integram
septimanam in pascha, & unam tantum diem in pentecoste observando, quamvis utraeque septimanae
ejusdem observationis esse debuerint, & quamvis alii episcopatus pene omnes praedictam constitutio-
nem jam ab antiquo tenuerint. BERNOLDO. Chronicon. MGH SS 5: 458; MANSI, 20: 795-796.
2
Statuimus etiam, ut jejunia quatuor temporum hoc ordine celebrentur: primum jejunium in initio
quadragesimae, secundum in hebdomada pentecostes; tertium vero et quartum in Septembri et De-
cembri more folito fiant. CONCILIUM PLACENTINIUM. MGH Const. 1: 563; MANSI, 20: 806.
3
Nemo laicorum post acceptos cineres in capite jejunii usque ad Pascha carnem comedat. Omni
tempore primum jejunium Quatuor Temporum prima hebdomada Quadragesimae celebretur. Ordi-
nes omni tempore aut in vespera sabbati, aut perseverante jejunio Dominica celebrentur. In sabbato
Paschae officium non nisi post solis occasum finiatur. Jejunium secundum semper in hebdomade Pen-
tecosten celebretur. ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiastica Libri Tredecim. LE PREVOST 3: 464-465.
4
... jejunium mensis Marcii prima ebdomada quadragesimae, jejunium vero mensis Junii in ipsa ebod-
mada pentecostes Romano more celebrandum; a prescriptis praesulibus apostolica auctoritate indictur,
Leandro duarte rust 237

Embora comporte atributos de sacralidade, surgindo como um encadea-


mento de porções de penitências, o tempo é aqui um referencial padronizado,
um viés comum a ser adotado por diferentes comunidades. Ele é a síntese de
coordenadas comportamentais a serem seguidas por homens e mulheres de
diversas partes da Cristandade. Os ritmos acima apresentados deveriam ser
incorporados no dia-a-dia de modo a fazer coincidir a realização de certas
práticas cristãs. Neste caso, os jejuns.
Na época em que estas decisões conciliares foram tomadas, a heteroge-
neidade dos calendários era atordoante. Bastava ir de cidade em cidade para
encontrar-se em outro ano. Se no dia 1º de março, em Veneza celebrava-se
a passagem para um novo ano, em Pisa e Florença ainda se aguardava algu-
mas semanas para fazê-lo, pois lá o ano começava apenas em 25 de março.
Enquanto isso, em Roma, a Cúria papal já o tinha anunciado há meses, desde
o Natal, como ditava o seu stylus nativitatis. E mais. No mesmo momento em
que os notários de Pisa registravam os feitos de 1100, em Florença, os sacer-
dotes escreviam sobre o ano 1101, enquanto alguns parisienses ainda acredi-
tavam viver em 1099 (WILCOX, 1987: 153-186; DUNCAN, 1999: 250-251)
Dar números ao tempo era arriscar-se a desnortear, mais do que a
orientar. Risco que as legislações do papado evitavam com o emprego de re-
ferências cronológicas mais simples, prosaicas. A começar por levar em conta
substancialmente os dias e meses, cuja contabilidade era menos exaustiva à
memória do que à dos anos. Por sua vez, os meses não eram destacados ao
acaso: março, junho, setembro e dezembro – priorizados nos sínodos e concí-
lios pontifícios – eram pontos de alternância das estações e dos ritmos da vida
rural. Coloquemos alguns destes termos em equação.
Desde o século IV, o concílio de Niceia recomendava que a Páscoa fosse
assinalada pelo equinócio vernal, que redefinia as extensões do dia e da noite,
dando início a um novo ciclo de práticas agrícolas. Acatando esta determina-
ção, a partir do século VI, a Igreja de Roma tratou de alongar o período de
preparação para este tempo ritual, estendendo-o sobre os sete domingos ante-
riores ao dia pascoal (RICOEUR, 1975: 221-224). Assim nasceu a Quaresma.
Desde então, segundo o “costume romano”, ela recobria as semanas finais do
inverno, época em que os alimentos escasseavam, o sol era miserável em calor,
e os ventos faziam do céu um respiradouro. A marcação romana do “jejum da
Quaresma” dotava de propósitos espirituais aquele tempo vivido como palpá-
vel condição do real, como a época em que os celeiros se esvaziavam e a fome
podia ser sentida nos ossos com o frio. Todos os “quatro tempos” enfatizados
pelos cânones acima eram períodos de preparação e espera agrícolas: da se-

EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 227; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 739.


238 coLunas de são pedro

meadura (março), da ceifa (junho), da vindima (setembro), de uma segunda


semeadura (dezembro). Mais do que um “quando” abstrato, como um indi-
cador numérico, a temporalidade propagada pelo papado era um tempo-do-
mundo, no qual a linha entre o antes e o depois possuía um “onde”, estava na
paisagem, era espacial, climática, alimentar.
Ao marcar o compasso do devir com festividades e dias santificados,
solidamente ancorados em fenômenos agrícolas, os concílios pontifícios viabi-
lizavam uma linguagem cronológica capaz de unir diferentes regiões e apro-
ximar práticas temporais em meio a um emaranhado babélico de maneiras de
datação. As medidas conciliares acima transcritas contêm a fórmula encontra-
da pelo papado para superar fronteiras tecnológicas e culturais na busca por
uma integração dos referenciais de duração de certas condutas. Fórmula que
resumimos assim: os acontecimentos eram condição da experiência social do
tempo. Nas legislações conciliares papais da época, tudo o que durava, o fa-
zia porque algo ocorreu ou ocorria regularmente. Este princípio fundamental
pode ser reconhecido nos textos de proclamação da “Trégua de Deus”, como
aquele ditado por Pascoal II em março de 1102:

Ordenamos que sejam inviolavelmente observadas por todos as tréguas


a partir da quarta-feira após o pôr do sol até a segunda-feira até o
nascer do sol; e do advento do Senhor até as oitavas da epifania, e da
septuagésima até as oitavas da páscoa. Se alguém tiver tentado violar a
trégua, após feita a advertência, se não tiver realizado satisfação,
que seu príncipe, com os bispos, o clero e o povo se reúnam para satisfa-
zer a injúria revelada.5 (Os grifos são nossos)

A insistente confirmação da “Trégua” – proclamada nos concílios de Melfi


(1089); Troia (1091 e 1115); Clermont (1095); Roma (1097 e 1102); Nordhau-
sen (1105); Troyes (1107); Reims (1119) – resplandecia a familiaridade com que
o papado submetia o tempo à ocorrência de certos eventos. Muitos historiadores
sacaram desta característica a prova de um menosprezo pelo tempo em si, que
só recebia atenção ao ser revestido com dias santos e festas sagradas, postura de
quem buscava aboli-lo na senda do eterno: “Na Idade Média não havia a necessi-
dade de se valorizar e economizar o tempo, de medi-lo exatamente e conhecer-lhe as
mínimas parcelas”, concluiu Aaron Gurevitch (In: RICOEUR, 1975: 279).

5
Treuguas a quarta feria post occasum solis, usque ad secundam feria post ortum solis; & ab adventu
Domini, usque ad octavas Epiphaniae; & a Septuagesima, usque ad octavas Paschae ab omnibus invio-
labiliter observari praecipimus. Si quis autem treuguam violare tentaverit, post commonitionem fac-
tam, si non satisfecerit, Principes suum, & Episcopus cum clero & populo cogant cum, injuriam passis
satisfacere... MANSI, 20: 1148-1149; HEFELE-LECLERCQ, 5/2: 475.
Leandro duarte rust 239

Não é essa a nossa opinião. As marcações cronologicamente pouco


refinadas, os intervalos que parecem se esparramar entre poucos pontos de
referência eram condições para um controle efetivo do devir. A vivência da
duração não escapava aos regionalismos: calendários, datações, instrumentos
de medida, todos variavam, modificando-se na medida em que mudavam as
paisagens senhoriais (WHITROW, 1993: 87-104; RICHARDS, 1998; ROSSUM,
1998). Deliberar sobre os ritmos da vida cristã exigia ao papado minimizar o
peso destas variações, era necessário reunir diversas localidades em padrões
de sucessão minimamente consensuais, assimiláveis em diferentes pontos da
Cristandade. Investir num trato cronológico assim elementar foi o meio obtido
pelo poder papal para extrair do tempo um formidável campo de orientação
das relações sociais. Assim ele pôde, por exemplo, obter referenciais mais rigo-
rosos para os comportamentos laicos e a disciplina eclesiástica. O cânone 7 do
concílio de Troyes, reunido por Pascoal II maio de 1107, determinou:

Para os que desejam contrair matrimônios, fixamos o mandato inviolável


e peremptório de que não ousem fazê-lo antes dos doze anos e sem
testemunhas legítimas, nem uniões de parentesco a não ser que sejam
dissolvidas na presença do bispo.6

Cerca de vinte anos antes, em 1089, Urbano II presidiu um concílio em


Melfi, onde foram aprovadas as seguintes decisões:

Conformando-nos aos decretos dos santos padres e temperando suas de-


cisões com a moderação apostólica, estabelecemos que ninguém seja or-
denado subdiácono antes dos 15 ou 14 anos, que ninguém seja feito
diácono antes dos 20 anos, que ninguém seja consagrado presbítero
antes dos 30 anos.7 (Os grifos são nossos)

Um cânone pontifício de Nîmes, em julho de 1096, estipulou “que as


meninas não se casem até os doze anos de idade”.8 Possivelmente, o decreto de
Troyes consistia na confirmação desta interdição. Se assim tiver sido, tratava-
se de uma decisão que visava, em especial, as mulheres e a idade em que seus

6
Matrimonia contrahere volentibus ratum et inviolabile mandatum prefigimus ut non ante duodecim
annos nec sine legitimis testibus illud presumant, nec iuncta conjugia nisi in episcopi dissolvantur
presentia BLUMENTHAl, 1978c: 94.
7
Igitur ut hec annuente Domino valeant conservari, sanctorum patrum decretis obsecundantes et
eorum precepta apostolico moderamine temperantes, constituimus ut nemo ante annos xv aut xiiii
subdiaconus ordinetur, nemo (ante) annos xx diaconus fiat, nemo ante annos xxx in presbiterum con-
secretur. MANSI, 20: 723.
8
Puellulae usque ad duodecim annos non nubant. MANSI, 20: 936. Cânone XIII.
240 coLunas de são pedro

corpos mostravam-se capazes de responder às exigências do casamento. Este


tipo de associação vem a calhar igualmente para as demais idades requisita-
das pelo outro cânone: doze, catorze, quinze anos. Tais números indicavam
a médias etárias com que os corpos das elites senhoriais confessavam a pas-
sagem da pueritia à adulescentia, momento em que o amadurecimento sexual
redefinia o peso, a altura e a silhueta de meninos e meninas. Desde a Era ca-
rolíngia, a tradição eclesiástica tomava o fim desta fase formativa, a pueritia,
como condição para que os jovens pudessem lidar com as exigências do laço
matrimonial – o intercurso sexual e a maternidade, no caso das meninas – e
a principal obrigação para chegar à ordenação no subdiaconato – o voto de
celibato, para os meninos (LE GOFF & SCHMITT, 2002: 553-565; CLASSEN,
2005: 66-86; SCHAUS, 2006: 325-328).
Observemos o outro caso, o da idade de vinte anos: outro emblema
corporal. Pois, o aparecimento da barba (signum iuventutis) selava o ingresso
na juventude (iuventus), etapa da vida em que o homem não mais “estava
submetido a paixões e ao pecado como um ‘adolescens’” (KARRAS, 2002: 14);
tornando-se apto para receber a ordem do diaconato. Por fim, a passagem
para os trinta anos. Ela ocorria quando o corpo, após longo convívio com as
restrições e irregularidades nutricionais medievais, fazia-se mais suscetível às
dores e ao sofrimento. Os membros e as entranhas acusavam o momento em
que um diácono conhecia de modo mais íntimo o sentido de expiação da vida,
sofrendo em sua carne como Cristo, tornando-se apto para exercer a função
de presbítero, oficiante maior do sacrifício da cruz, como reconheceria o papa
Inocêncio III, um século depois.9
A ordenação temporal promovida pelo papado possuía certa visibilidade
corporal, os cristãos podiam reconhecê-la em suas peles, rostos, membros e
órgãos. Tratava-se de uma gramática cronológica simples. E por isso manejada
em larga escala com clareza. Todos os cânones estavam unidos pela mesma
premissa: o tempo tinha marcas físicas, presença corporal.
Versátil, a racionalidade deste trato cronológico era perpetuada não só
por eventos climáticos e corporais, mas igualmente por ocorrências sociais.
Basta dar uma olhada nos cânones a seguir, aprovados por Pascoal II respecti-
vamente em Troyes (1107) e Beauvais (1114):

Proibimos que arcas sejam colocadas em igrejas, a não ser em tempos


de guerra, e que um preço seja exigido para sua colocação.10

9
INOCÊNCIO III. De Aetate et Qualitate Ordine Praeficiendorum. Corpus Iuris Canonici. Pars Secunda:
Decretalium Collectiones, 1: tit. 14, cap. 9.
10 Arcas in aecclesiis poni nisi tempore guerre et pro positis precium exigi prohibemus. BLUMEN-
THAl, 1978c: 95. Ver ainda: ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 745-746; CONCILIUM TRECENSE.
Leandro duarte rust 241

Pela mesma autoridade estabelecemos que uma igreja destituída de seu


bispo eleja para si própria um bispo antes do terceiro dia [após a desti-
tuição]. Se o tiver negligenciado, proibimos que aí sejam realizados [ofí-
cios] divinos até que tenha sido cumprida a eleição canônica.11
(Todos os grifos são nossos)

Reencontramos o tempo experimentado como a ordem das coisas no


mundo. Com ele não era um movimento de números que passava, mas esta-
dos da vida como a escalada da violência ou a degradação hierárquica. Com a
guerra, uma duração singular entrava em curso, deixando em suspenso a proi-
bição de abrigar arcas em igrejas. A comunidade que negligenciasse a eleição
de um novo pastor permaneceria privada dos ofícios divinos, isto é, de missas
e sacramentos, até escolher um novo condutor para suas almas. Notemos que
não se tratava de um prazo: a proibição poderia se estender indefinidamente,
até que uma eleição ocorresse.
Preenchidas por experiências de vida, as durações eram qualidades
experimentadas diariamente como ação obediente ou tolerante. Servindo-se
de acontecimentos palpáveis, o papado afiava a lâmina com que cortava o
presente vivido. Ele impunha talhos ao fluxo temporal, dividia-o em tempos
“fortes” e “fracos”, separados por valores e interesses a serem incorporados à
rotina cristã. Foi o que percebeu o monarca Felipe I, durante o sínodo legatino
de Órleans diante de Ricardo, cardeal bispo de Albano:

Nesta assembleia compareceram o rei e sua mulher e se declararam


prontos a jurar sobre os sacrossantos evangelhos que não mantinham
o costume da cópula carnal e não se falavam, a não ser diante de tes-
temunhas, [permanecendo assim] até que o papa lhes ouvisse e
autorizasse uma dispensa.12 (Os grifos são nossos)

Para regressar à legalidade, o monarca se ligou a um “tempo forte” de


restrições estipuladas pelo poder pontifício. Felipe renunciou aos ritmos de
seu dia a dia, abandonou a frequência com que dirigia a palavra à sua compa-
nheira e adotou uma postura austera, que duraria enquando fosse condizente

MGH Const. 1: 566-567; CHRONICON SANCTI MAXENTII PICTAVENSE. RHGF 12: 405.
11
Ut ecclesia suo episcopo destituta proprium sibi episcopum infra IIIa dies eligat, eadem auctoritate
precipimus. Quodsi neglexerit, donec canonicam electionem fecerit, divina ibidem fieri interdicimus
SOMERVILLE, 1968: 493-503. .
12
Convenit etiam rex, & lateralis sua, & secundum praeceptum vestrum, tactis sacrosanctis evangeliis
parati fuerunt abjurare absolute omnem carnalis copulae consuetudinem: insuper & mutuam collocu-
tionem, nisi sub testimonio personarum minime suspectarum, usque ad vestram dispensationem. YVO
DE CHARTRES. Epístola ao papa Pascoal II. MANSI, 20: 1183-1186.
242 coLunas de são pedro

com as ordens do bispo de Roma. Sua conduta era a prova de que o papado
detinha um poder regulador por controlar durações, tornando-se capaz de
impor constituições convenientes, escolhas apropriadas.
Dividindo a continuidade temporal, a Sé Romana colocava em movi-
mento soluções práticas de previsibilidade e adequação comportamental.
Habilidade que tornava possível a condução de grandes mobilizações cole-
tivas como as cruzadas. Tão logo as convocou, no concílio de Clermont, em
novembro 1095, Urbano II declarou que as esposas, os filhos e as posses de
todos aqueles que partissem para Jerusalém fossem consideradas invioláveis
por “três anos inteiros”, sob risco de excomunhão, segundo Guilbert de No-
gent.13 Nas décadas seguintes, o papado recorreu à habilidade de cortar o
tempo para afiar as linhas do presente e ajustar o comprometimento dos “ca-
valeiros de Cristo” durante as expedições a Jerusalém e à Hispania. Em 1100,
um sínodo reunido por Hugo, o arcebispo de Lyon e legado de Gregório VII,
decretou: quem proferiu o voto de cruzado, mas ainda não tinha cumprido,
permaneceria separado da comunhão enquanto durasse seu desleixo.14
Em maio de 1107, na assembleia em Troyes, Pascoal II declarou: “A autorida-
de romana impõe a todos que realizaram votos e tomaram a cruz que cumpram
inteiramente o voto realizado até a próxima páscoa, pois com ele permanecem
comprometidos”.15
A obrigatoriedade de renovar e assumir o voto de cruzado se faria pre-
sente na vida dos cavaleiros cristãos por meses a fio. Não poderia ser abando-
nada ou deixada para trás, como passado, nem adiada indefinidamente para
uma realização incerta, como futuro. Nos cânones do concilium generalem
presidido por Calisto II na basílica de São João de Latrão, em março-abril de
1123, outra determinação desta mesma natureza, ainda mais enérgica:

Quanto àqueles que colocaram cruzes sobre suas vestes, expressando a


intenção de dirigir-se a Jerusalém ou Hispania, e depois as abandona-
ram, ordenamos, pela autoridade apostólica, que tomem as cruzes pela
segunda vez e se coloquem a caminho entre a Páscoa presente e a pró-
xima. Caso contrário, a partir de agora os afastamos da entrada
em uma igreja e proibimos os ofícios divinos em todas as suas terras,

13
GUILBERT DE NOGENT. Historia quae dicitur Gesta Dei Per Francos. RHC, Occ. 4: 140. Outros re-
gistraram esta “trégua” ditada por Urbano, embora sem mencionar o prazo de três anos, ver: GUI-
LHERME DE TYR. Historia Rerum Gestarum in Partibus Transmarinis. RHC, Occ. 1: 42; FOULCHER DE
CHARTRES. Historia Iherosolymitana Gesta Francorum Iherusalem Perigrinatium. RHC, Occ. 3: 321-24;
ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiastica Libri Tredecim. LE PREVOST 3: 464-465; MANSI 20: 816.
14
HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 487; MANSI 20: 1127.
15
Injugit etiam romana auctoritas illis omnibus qui cruces et vota fecerunt quod usque ad proximum
pascha quod voverunt et unde obligati tenentur persolvant. BLUMENTHAl, 1978c: 93.
Leandro duarte rust 243

exceto o batismo de crianças e a penitência aos moribundos.16 (Os grifos


são nossos)

Em todos os fragmentos conciliares transcritos até aqui encontramos


um tempo moldado pelo terra-a-terra da dominação social e talhado pelos
limites e desafios da vida em uma sociedade fundamentalmente agrícola. Sob
a dependência de eventos naturais, corporais e sociais, este tempo era man-
tido sóbrio, assente, útil para ritmar ações coletivas e reforçar certos sentidos
de obrigação. Numa palavra: lidamos com uma modalidade de intervenções
sobre a existência coletiva. Esta temporalidade era um instrumento de ação
permanentemente apontado para as relações sociais e as tramas de poder, e
não, antes de qualquer outra coisa, um objeto de contemplação “que começa
com Deus e é dominado por Ele” (LE GOFF, 1995a: 45). Com ela realizava-se
uma racionalidade política que extraía dos eventos recorrentes e familiares
meios suficientes para ajustar o exercício do poder a necessidades práticas.
Para isso, o papado impunha cortes ao devir, marcando novos “antes” e “de-
pois”, ditando novos “começos” e “fins” ao que se vivenciava. Em resumo:
impondo a medida do tempo presente. Segue mais um exemplo, emblemático.
12 de dezembro de 1104. Esquivando-se noite adentro, o príncipe Henri-
que, filho do imperador Henrique IV, abandonou secretamente o acampamento
militar de seu pai em Fritzlar. Cavalgando rumo à Bavária, o herdeiro levou
consigo a lealdade à causa paterna precisamente quando uma nova sedição
saxônica havia se erguido contra ela. Insurgente, o sucessor da coroa teutônica
violava o juramento prestado anos antes de jamais agir contra o imperador,
enquanto esse fosse vivo. Em poucos meses, o jovem de 18 anos estava à frente
de uma ampla coalizão de inimigos imperiais, a quem se aliou para “defender e
preservar seu direito dinástico ao reino” (WEINFURTER, 1999: 165).
Almejando o trono germânico,17o príncipe voltou-se para Pascoal II em
busca de uma dispensa do juramento que acabara de quebrar. Era preciso
limpar a mácula da traição. Foi prontamente atendido. O pontífice enviou sua
benção através de um legado, Gerardo de Constance, apresentado como seu
“fidelíssimo colaborador” (Constantiensis episcopus, domini papae cooperator fi-

16 Eos autem qui vel pro Hierosolimitano vel pro Hispanico itinere cruces sibi in vestibus posuisse
noscuntur et postea dimisisse, cruces iterate assumere et viam ab instanti Pascha usque ad proxi-
mum Pascha sequens apostolica auctoritate praecipimus. Alioquin ex tunc eos ab ecclesiae introitu
sequestramus et in omnibus terris eorum divina officia praeter infantium baptisma et morientium
poenitentias interdicimus. CONCILIUM LATERANENSE GENERALE. MGH Const. 1: 575-576; SIMÃO
DE DURHAM. Historia Regum. HODGSON-HINDE 1: 122-23; MANSI 21: 281-86; HEFELE-LECLERCQ
5/1: 631-39; FOREVILLE, 1972: 225-229. Cânone 10 segundo Simeon de Durham, Ludwig Weiland
(MGH) e Raymonde Foreville; 1, segundo Mansi; e 12-13 nos apontamentos de Hefele-Leclercq.
17
VITA HENRICI IV IMPERATORIS. MGH SS rer. Germ. 58: 30.
244 coLunas de são pedro

delissimus). Mas o fez sob uma inequívoca condição: o jovem príncipe deveria
jurar que agiria como “rei justo e protetor da igreja, que há muito tempo era
assolada pela negligência de seu pai” (de tali commisso sibi promittens absolu-
tionem in judicio futuro, si vellet juxtus rex, gubernator esse aecclesiae, quae per
negligentiam patris sui deturbata est multo tempore). A benção anunciava não
somente a dispensa desejada, mas a absolvição por manter contato com um
excomungado: o jovem Henrique praguejava aos quatro cantos que tinha sido
forçado a conviver com o pai, que havia sido marcado com o terrível anátema
antes mesmo de seu nascimento.18
Novos ventos começaram a soprar na direção de Roma, vindos da Germâ-
nia: em maio de 1105, na assemebleia de Nordhausen presidida pelo já men-
cionado Gerardo e por Rutardo de Mainz, o príncipe condenou a “obstinação
e a desobediência” (pertinaciae et inoboedientiae) de seu pai contra Gregório
VII e Urbano II, e se declarou leal a São Pedro, trazendo consigo os bispos de
Hildesheim, Paderborn e Halberstadt para a obediência ao papado. Segundo a
crônica de Ekkehardo de Aura: “o concílio reconciliou toda a Saxônia à comunhão
da igreja romana”.19 Selando a aliança, em dezembro de 1105, em Mainz, os le-
gados renovaram a excomunhão contra o velho rei. Mais do que nunca, o filho
tinha razão em rebelar-se. Sob atenta aprovação do enviado romano, aquele jo-
vem destemido foi declarado Henrique V, rei dos Teutônicos.20 O antigo rival de
Gregório VII era removido do trono germânico pelas mãos de seu próprio caçula
(Ver ainda: FUHRMANN, 1986: 83-87; ROBINSON, 2003: 323-328).
A “disputa doméstica e o ódio inexorável entre pai e filho”21 ofereceram ao
papado algo que vinte anos de ácidas desavenças levaram à beira do improvável:
a promessa de uma corte imperial receptiva aos seus decretos e uma oportunida-
de para pôr um fim àquele penoso conflito que lançava lealdades episcopais em
campos opostos. É compreensível que a Narratio Restaurationis Abbatiae Sacnti
Martini Tornacensis tenha responsabilizado o papa por incitar o herdeiro contra o
pai,22 pois antes mesmo do filho ser coroado, Pascoal se colocou a agir para obter
“proveitos para a igreja católica e a concórdia entre o reino e o sacerdócio”.23
18
ANNALES HILDESHEIMENSES. MGH SS 3: 108; ANNALES AUGUSTANI. MGH SS 3: 136; ANNA-
LISTA DE SAXO. MGH SS 6: 739; ANÔNIMO. Chronicon Sancti Huberti Andaginensis. MGH SS 8: 629.
19
Consilio atque ministerio Ruothardi Mogontini atque Gebehardi Constantiensis episcopi, responsa-
lium scilicet domni Paschalis papae, totam Saxoniam Romanae aecclesiae communioni reconciliavit.
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 227; MANSI 20: 1119.
20
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 230-231; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 742;
CASUS MONASTERII PETRISHUSENSI. MGH SS 20: 657; FALCO DE BENEVENTO. Chronicon Beneven-
tanum: 02; ROMUALDO DE SALERNO. Annales. MGH SS 19: 414.
21
Domestica discordia et inexorabile odium inter Heinricum IV imperatorem patrem filiumque eius
Heinricum V. CHRONICON LAURESHAMENSE. MGH SS 21: 430.
22
HERMAN DE TOURNAI. Narratio Restaurationis Abbatiae Sancti Martini Tornacensis. ACHERY 2:914.
23
Diversis utilitatibus catholicae ecclesiae atque concordia regni et sacerdotii. TRANSLATIO SANCTI
MODOALDI. MGH SS 12: 295.
Leandro duarte rust 245

A Chronica Casinensis preservou, em forma de paráfrase, uma epístola


enviada por Pascoal a Henrique V, em primórdios de 1105, no calor da deser-
ção. Seu texto expressava a intenção de reunir um concílio, se necessário em
solo teutônico (algo que não ocorria desde os tempos de Leão IX), para apoiar
o jovem em “sua obediência à Sé Apostólica”.24 Todavia, a urgência da nova
coroação régia fez a reunião deste plenário ser adiada, ocorrendo apenas em
outubro de 1106, não na Germânia, como se pretendia, mas em Guastalla,
na Emília-Romagna.25 À frente de um concílio apinhado de nobres e bispos
do Império, da Itália e das Gálias,26 Pascoal tomou medidas para dissipar da
memória dos presentes as marcas deixadas pelo longo confronto entre a corte
imperial e Igreja romana. Em primeiro lugar, ele retaliou:

Neste concílio foi estabelecido que toda a Emília, juntamente com suas
cidades, isto é, Piacenza, Parma, Reggio, Módena e Bolonha, não mais
estariam submetidas à metrópole de Ravenna. De fato, esta metrópole
por já quase cem anos tinha se levantado contra a Sé Apostólica, e não só
tinha usurpado as propriedades desta, mas certa vez Guiberto, à frente
daquela metrópole, invadiu a própria igreja romana [como o papa pró-
Império Clemente III].27

Em seguida, Pascoal anistiou. Dirigindo-se aos bispos que, em algum


momento, escolheram a fidelidade a Henrique IV em detrimento da obediên-
cia a Gregório VII e Urbano II, ele estabeleceu:

Já há muitos anos a unidade do reino dos Teutônicos em relação à Sé Apos-


tólica está gravemente dividida. Durante [esse anos] foi estabelecida a ame-
aça cismática e, o que dizemos dolorosamente, com dificuldade puderam
ser encontrados poucos sacerdotes ou clérigos católicos em tão considerável

24
Per apostolicae sedis obedientiam proveniret. CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 779.
25
Segundo Seher, abade de Chaumouzey, o concílio havia sido convocado para Piacenza, sendo deslo-
cado pelo papa para Guastalla. SEHER DE CHAUMOUZEY. Primordia Calmosiacensia. MGH SS 12: 336.
26
Alguns participantes: Matilde, condessa da Toscana (DONIZO. Vita Mathildi. MGH SS 12: 400);
Hermano, conde de Reinhausen, na Saxônia; Bruno, arcebispo de Trier e líder de uma delegação de
eclesiásticos e nobres enviados por Henrique V (TRANSLATIO SANCTI MODOALDI. MGH SS 12: 295);
Conrado, arcebispo de Salzbourg (EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 240); Gerard, bispo
de Constance e legado papal; Hermano, bispo de Augusbourg; Ricardo, cardeal bispo de Albano e lega-
do apostólico na Germânia (UDALSCHALK. De Egino et Herimano. MGH SS 12: 438). Ver igualmente:
BLUMENTHAL, 1978: 38-42.
27
In hoc concilio constitutum est ut Emilia tota cum suis urbibus, id est Placentia, Parma, Regio, Muti-
na, Bononia, numquam ulterius Ravennati metropoli subjacerent. Hec enim metropolis per annos jam
pene centum adversus sedem apostolicam erexerat se, nec solum eius predia usurpaverat, set ipsam
aliquando Romanam invasit ecclesiam Wuibertus ejusdem metropolis incubator. CONCILIUM GUAS-
TALLENSE. MGH Const. 1: 565. Ver ainda: MANSI 20: 1209.
246 coLunas de são pedro

extensão de terras. Assim, com tantos filhos abatidos por esta destruição, a
necessidade da paz cristã exige que seja aberto sobre estes o seio materno
da Igreja. Desta forma, pelos exemplos dos nossos Pais e pelos ensinamentos
das escrituras, que em outros tempos mantiveram Novatianos, Donatistas e
outros hereges em suas ordens, mantemos no ofício episcopal os bispos do
mencionado reino, ordenados durante o cisma, exceto se forem, comprova-
damente, invasores, simoníacos ou criminosos.28

Sob o pretexto de curar as feridas impostas pelo tempo à unidade cristã,


o papado reescreveu os significados atribuídos à conduta cismática e o ri-
gor do tratamento canônico cabível a ela. Uma manobra era estrategicamente
operada, causando uma reviravolta na política pontifícia. Pois poucos anos
antes, quem esteve presente no concílio romano de 1102, ouviu algo comple-
tamente diferente. Lá o pontífice afirmou que devotar lealdade ao imperador
era tornar-se cúmplice de uma iniquidade digna das mais severas repreensões:

Disse [o papa]: por rasgar a túnica de Cristo, isto é, devastar a igreja com pilha-
gens e incêndios, e por não ter cessado de manchá-la com luxúrias, perjúrios e
assassinatos, [o rei Henrique] foi excomungado e condenado por sua desobe-
diência, primeiramente, pelo papa Gregório, de bem-aventurada memória, em
seguida pelo meu predecessor Urbano, homem santíssimo; nós igualmente o
entregamos ao perpétuo anátema em nosso último sínodo com o julgamento
de toda igreja. Desejamos que isto seja conhecido por todos e principalmente
dos ultramontanenses, posto que se mantêm unidos à iniquidade do mesmo.29

No momento em que esta medida foi promulgada, a corte imperial asse-


diava o papa para “que fosse confirmada a unidade entre o reino e o sacerdócio”.30

28
Per multos jam annos regni Teutonici latitudo ab apostolice sedis unitate divisa est. In quo nimirum
scismate tantum periculum factum est ut, quod cum dolore dicimus, vix pauci sacerdotes aut clerici ca-
tholici in tanta terrarum latitudine reperiantur. Tot igitur filiis in hac strage jacentibus, christiane pacis
necessitas exigit, ut super hos materna ecclesie viscera aperiantur. Patrum itaque nostrorum exemplis
et scripturis instructi, qui diversis temporibus Novatianos, Donatistas et alios haereticos in suis ordini-
bus susceperunt: praefati regni episcopos in schismate ordinatos, nisi aut invasores, aut simonici, aut
criminosi comprobentur (...). Liber Pontificalis 2: 371-372; CONCILIUM GUASTALLENSE. MGH Const.
1: 565; CHRONICA CASINENSIS MGH SS 7: 779; EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 241.
E ainda: MANSI 20: 1210; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 496-497; BLUMENTHAl, 1978: 65.
29
Quia, inquit, tunicam Christi scindere, id est aecclesiam rapinis et incendiis devastare, luxuriis, per-
juriis atque homicidiis commaculare, non cessavit, primo a beatae memoriae Gregorio papa, deinde a
sanctissimo viro Urbano predecessore meo propter suam inoboedientiam excommunicatus est atque
condempnatus; nos quoque in proxima synodo nostra iudicio totius aecclesiae perpetuo eum ana-
themati tradidimus. Id notum volumus omnibus et maxime ultramontanis esse, quatinus ab ipsius se
contineant iniquitate EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 224; MANSI 20 : 1147.
30
Inter regnum et sacerdotium confirmaretur unitas. EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6:
223; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 736.
Leandro duarte rust 247

Enfraquecido pela morte de Clemente III, em 1100, e pressionado pela nobreza


germânica, Henrique IV passou a não medir esforços para reatar com o sucessor
de Gregório VII. Declarou-se pela “reforma da unidade eclesiástica, que por um
longo tempo foi cindida dolorosamente”;31 responsabilizou-se por sua “ruína em
nosso tempo, em razão de nossos pecados”.32 O rei chegou a garantir a Hugo, aba-
de de Cluny e ativo colaborador papal, que tomaria a cruz e partiria para o leste,
entregando-se à defesa de Jerusalém, se obtivesse a “reparação dos assuntos
eclesiásticos”. Nada disso demoveu Pascoal, cuja severidade parecia inabalável.
Naquele contexto, o papa digladiava-se com os grupos romanos favo-
ráveis à causa imperial. Grupos que em menos de dois anos, o haviam levado
a enfrentar dois prelados pelo controle da dignidade apostólica: o primeiro
destes “antipapas” foi Teodorico, bispo de Santa Rufina, feito prisioneiro por
Pascoal II em janeiro de 1101 e trancafiado no monastério da Trindade; o se-
gundo foi Albérico, cardeal bispo da Sabina, eleito na basílica dos Apóstolos.
Seu pontificado duraria cento e cinco dias e, estava em pleno curso quanto
Pascoal celebrou o concílio romano de 1102.33 Contestado por partidários do
Império, o pontífice recusou a conciliação e renovou a excomunhão de Henri-
que. A documentação, referente ao concílio, não deixa transparecer qualquer
filamento de sofrimento a respeito dos “longos anos em que a unidade do rei-
no dos teutônicos em relação à Sé Apostólica esteve gravemente dividida”. Ao
contrário, suas medidas sugerem que o papado preparou-se para perpetuar o
cisma, prolongar a luta. Observe-se o juramento exigido aos presentes naquele
plenário, cuja fórmula foi preservada pelo abade Ekkehardo de Aura:

Eu anatemizo toda heresia, especialmente esta que perturba a condição


da presente igreja, que ensina e afirma que se deve desdenhar as puni-
ções e desprezar os anátemas da igreja. Prometo ainda obediência ao
pontífice da Sé Apostólica, o senhor Pascoal, e aos sucessores dele, sob
testemunho de Cristo e da igreja, afirmando o que a santa e universal
igreja firma, condenando o que ela condena.34

31
Reformande unitatis ecclesiastice, que longo jam tempore miserabiliter scissa est... HENRIQUE IV.
Epístola a Udalschalk, abade de Tegernsee. MGH Dt. MA 1: 38-39. EKKEHARDO DE AURA. Chronicon.
MGH SS 6: 223; ANNALES AUGUSTANI. MGH SS 3: 135; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 736;
ANNALES HILDESHEIMENSES. MGH SS 3: 107.
32
Quod pro reparatione ecclesiasticorum, quae nostris temporibus nostris peccatis heu! corruerunt...
HENRIQUE IV. Epístola a Hugo, abade de Cluny. MGH Dt. MA 1: 39-40.
33
ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 477; GREGOROVIUS 4/2: 317-323.
34
Anathemizo omnem heresim, et precipue eam quae statum presentis aecclesiae perturbat, quae
docet et astruit, anathema contempnendum et aecclesiae ligamenta spernenda esse. Promitto autem
oboedientiam apostolicae sedis pontifici domno Paschali eiusque successoribus sub testimonio Christi
et aecclesiae, affirmans quod affirmat, et dampnans quod dampnat sancta et universalis aecclesia.
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 224; ANNALES DISIBODI. MGH SS 17: 17.
248 coLunas de são pedro

A “iniquidade” presente na escolha de devotar lealdade ao imperador


aparece como “heresia”. Com razão Uta-Renate Blumenthal (1978c: 22) atri-
buiu as seguintes funções a esta professio: “(1) demonstrar que a igreja perma-
necia unida sob Pascoal, face à continuidade do cisma da igreja germânica sob
Henrique IV; e (2) impedir a possível deserção da causa papal através da adesão
a um eventual terceiro antipapa”. O papa precavia-se para a batalha, não para a
reconciliação. No sínodo de 1102, perdoar os cismáticos era algo impraticável.
A anistia concedida aos cismáticos em Guastalla nada teve de desinte-
ressada. Foi, isto sim, resultado de uma intervenção tática e habilidosa, enun-
ciada como “necessidade do tempo” porque era, de fato, manobra temporal.
Naquele concílio, o papado empunhou a lâmina do tempo e cortou os laços
de uma reparação devida ao passado. A exigência de punir os cismáticos foi
extraída do presente, silenciada por uma declaração de clemência. Até então
defendida sem reservas pelo próprio Pascoal, a punição foi declarada algo que
não mais vigorava, como se sua presença não mais pudesse ser sentida entre
os cristãos. Ela foi convertida em algo morto, findo, passado.
Ao fazê-lo, o papado libertou seus integrantes para um porvir convenien-
te à sua política: ele transformou muitos propósitos então existentes em metas
velhas, extinguidas, abrindo caminho para a incorporação de novos objetivos.
Transformando o dever de punir em passado, seccionando-o do presente, a Sé
Romana converteu-o em “não-lugar”, em um “não mais”, uma forma de vazio
que deveria ser substituída pelo tempo novo e fundador criado pela deserção
do príncipe herdeiro. Em suma, o poder pontifício concretizou uma drástica
guinada de sua orientação política ao apresentá-la como reordenação tempo-
ral, como redefinição daquilo que constituía o “agora” e o “antes”.
O poder pontifício redistribuiu o tempo. Transformou a palavra de or-
dem de 1102 em algo superado, abandonado em prol da adesão a um novo
presente, identificado com a revolta do sucessor imperial. Este acontecimento
promissor, que ofereceu ao papado uma oportunidade para romper a saga de
confrontos e dissensões que se alongava desde os dias de vida de Gregório VII,
tornava-se a origem de um novo “agora”, em prejuízo do rigor canônico, con-
vertido em um “não-mais-ser”, em passado, em “antes”. Outro indício desta
manobra encontra-se na necessidade do papado de revesti-la com uma auten-
ticidade antiga, reportando a anistia à postura dos santos pais da Antiguidade
frente às heresias (“Novatianos, Donatistas”). Por meio desta associação, a
drástica alteração imposta pelo papado à sua própria política era re-apresen-
tada como uma “renovação” (renovatio), um regresso ao seio da tradição. Sua
aprovação nada tinha de inovador: ela supostamente se limitava a restaurar
uma prática ancestral. Uma brusca guinada jurídica foi apresentada como um
gesto de “ser fiel às origens”.
Leandro duarte rust 249

Ao traçar uma incisão sobre o devir, a sancta romana ecclesia fortaleceu


a recusa à duração do cisma, estado de coisas que a espreitava e ameaçava, e
decretou a vigência de um tempo novo, forte, fecundo e instituidor. Desligar o
passado era um intenso estímulo para fazer com que a compensação do ontem
desse lugar a uma expectativa coletiva por um porvir redentor, no qual a igreja
cristã pudesse “estreitar fileiras depois da prova, e voltar seus olhares para um
futuro” (OST, 2005: 173-174). O papado manipulou o tempo: ele fez cessar
a duração da recomendação canônica de punição, ao convertê-la em passado
excessivo e temerário; e metamorfoseou a deserção principesca em um pre-
sente ofertado aos integrantes do concílio como um “retorno à era dos santos
pais”, pelo qual a realeza e o episcopado germânicos se reconciliaram com sua
autoridade. O poder apostólico cortou o devir, criando uma nova marca onde
terminaria o passado e começaria o presente. O tempo era matéria sobre a
qual agiam a “a inteligência, a habilidade, a experiência e a manha” não apenas
dos mercadores, como quis Le Goff (1995a: 54), mas igualmente dos homens
à frente da autoridade apostólica.
De fato, ligar e desligar o passado (OST, 2005: 45-186) eram práticas
habituais no exercício do poder romano, como demonstraram os cardeais João
e Bento, legados à frente do concílio de Poitiers em 1100:

Que nenhum advogado, ou qualquer outra pessoa, ouse reclamar os


bens de um bispo, quer em vida, quer após a morte. Aquele que o
fizer, que seja anátema.35 (Os grifos são nossos)

A morte do bispo não desligava a inviolabilidade de seus bens. O pró-


prio Pascoal II fez amplo expediente desta forma de proceder, como podemos
ver nos cânones abaixo, aprovados sob sua liderança, respectivamente em
Guastalla (1106) e Roma (1110):

Confirmamos as seguintes disposições dos santos cânones: que, a partir


deste momento, todo aquele entre os clérigos que desde agora tiver
aceitado a investidura da igreja ou a dignidade eclesiástica da mão laica
e que tiver imposto a mão sobre ele, está submetendo seu grau a
perigo e seja privado da comunhão.36

35
Ut nemo advocatus, vel quaecumque persona, res epicopi, sive in vita, sive post mortem, sibi vendi-
care praesumat. Quod si fecerit, anthema sit. MANSI 20: 1124.
36
Constitutiones sanctorum canonum sequentes statutimus ut quicumque clericorum ab hac hora in
antea investituram ecclesiae vel ecclesiasticae dignitatis de manu laica acceperit, et qui ei manum im-
posuerit, gradus sui periculo subjaceat et communione privetur. BLUMENTHAL, 1978c: 71.
250 coLunas de são pedro

Portanto, se alguém dentre os príncipes ou outros laicos tiver


negociado para si a disposição ou a doação dos bens ou possessões
eclesiásticas, que seja julgado sacrílego. Os clérigos ou monges que os
tiverem recebido pelo poder daqueles, que sejam colocados sob ex-
comunhão.37 (Os grifos são nossos)

Em todos estes casos o passado estava ligado. Os faltosos deveriam ser


condenados a uma dupla privação, a da comunhão – seguida pela perda do
grau eclesiástico, quando se tratasse de um sacerdote – e a de controlar seu
próprio presente. O papado não só os excluía da vida cristã comum, como os
condenava a viver indefinidamente nas ressonâncias de um ato. Os cânones
não falam em absolvição ou restituição. Seu texto tem a aparência de coman-
do definitivo, absoluto. Estas decisões pareciam determinar que a marcha do
tempo não apagaria nunca as consequências das faltas cometidas. A excomu-
nhão atendia à certeza de que as infrações cometidas exigiam que os trans-
gressores fossem aprisionados em um tempo próprio, em uma duração que,
desencadeada pelo erro, não cessaria.
Recusando-se a cortar o devir, a livrar aqueles homens das amarras do
“antes”, a Sé Apostólica pretendia trancafiar os infratores no passado de uma
ação incriminadora. Eles não deviam integrar a vida cristã, não podia fazer
parte do presente coletivo. Ela buscava encarcerá-los em uma anterioridade
que só fazia durar, que não passava ou não ficava para trás: sem a aprovação
papal não seria possível interromper a continuidade dos estigmas da culpa,
nem sarar as feridas da ilegalidade. Os transgressores deveriam ser aprisiona-
dos numa espécie de região sempiterna do tempo, onde não poderiam ter ou-
tro propósito a não ser purificar-se pela submissão à autoridade dos sucessores
de Pedro. Aqueles faltosos deveriam sentir a presença de suas falhas como
algo incessante, infindável. Encerrando os agentes sociais num indestrutível
“tempo do pecado”, o poder pontifício os marginalizava, privava-os de força
e objetivos no presente da existência coletiva. Desta maneira, ele orientava
energias e vontades para a subordinação.
Rendidas ao peso invisível da vocalidade, as regras conciliares por ve-
zes permitiam ao próprio faltoso livrar-se do passado. Bastava realizar uma
satisfação pessoal para ser reintegrado ao presente traçado pelo papado para
a sociedade cristã. A excomunhão ligava o passado, a justificação pessoal o
desligava, apagando o pecado. Assim estava escrito no cânone 10 do concílio
de Toulouse, reunido em julho de 1119 por Calisto II:
37
Si quis ergo principum vel aliorum laicorum disposicionem seu donationem rerum sive possessionum
aecclesiasticarum sibi vendicaverit, ut sacrilegius iudicetur. Clerici vero seu monachi, qui eas per illorum
potestatem susceperint, excommunicationi subiciantur. CONCÍLIO LATERANENSE. MGH Const. 1: 568.
Leandro duarte rust 251

Se algum monge, cônego ou qualquer clérigo, notabilizado pelo título de


militia eclesiastica, faz nula sua primeira fé e, enjeitado para trás, tiver
mantido cabelos compridos e barba como um laico, que seja privado
de comunhão até que tenha corrigido a sua prevaricação pela
satisfação adequada.38 (Os grifos são nossos)

O mesmo foi feito pelo cânone 9 do sínodo que Bernardo, arcebispo de


Toledo, presidiu em Leão, outubro de 1114: “que os monges ou clérigos que
abandonaram o hábito, sejam privados de comunhão, até que tenham se
arrependido”.39 (Os grifos são nossos)
Noutros casos, as decisões conciliares eram carregadas com tal seve-
ridade, que seu texto simplesmente as eternizava. Nem mortos os infratores
estariam desacorrentados do passado de sua falha, ao qual o papado pretendia
mantê-los presos, como fez Cono, cardeal bispo de Praenestre e legado, ao
proclamar o cânone 6 do concílio de Beauvais, nos idos de dezembro de 1114:

Que seja privado de sepultura quem tiver infringido a paz e tiver


morrido antes [de realizar] a satisfação adequada, que seja proclamado
o local ou a casa em que ele tiver morrido e que ninguém ouse enterrá-
lo. Quem [o] tiver levado para fora que se submeta à excomunhão.40 (Os
grifos são nossos)

O mesmo propósito foi perseguido com afinco ainda maior pelo cânone
1 do corpus conciliar aprovado em Benevento, outubro de 1108, sob a presi-
dência da Pascoal II:

Os [laicos] que ousarem manter ou conceder [igrejas] como feudo a


outros [laicos]; expulsar os presbíteros e clérigos, ou [ainda] reivindicá-
las como propriedade hereditária, que sejam afastados dos limiares das
igrejas. Se alguém – que isso não aconteça – tiver morrido nes-
ta obstinação que esteja privado das exéquias dos clérigos

38
Si quis ecclesiasticae militiae titulo insignitus, monachus, vel canonicus, aut quilibet clericus, pri-
mam fidem irritam faciens, retrorsum abjerit, aut tanquam laicus comam barbamque nutrierit, eccle-
siae communione privetur, donec praevaricationem suam digna satisfactione correxit. MANSI 21: 228.
Ver ainda: HEFELE-LECLERCQ, 5/1: 569-573.
39
Ut monachi, vel clerici qui reliquerunt habitum, communione priventur, donec resipiscant. HISTO-
RIA COMPOSTELANA. ES 20: 192.
40
Qui infregerit pacem et mortuus fuerit ante condignam satisfactionem, sepultura careat et de loco
vel de domo in qua eum mori contigerit, nullus eum efferre praesumat. Qui vero exportaverit excom-
municationi subiaceat. SOMERVILLE, 1968: 503.
252 coLunas de são pedro

e da sepultura eclesiástica. E que nas próprias igrejas sejam


suprimidos os ofícios divinos.41 (Os grifos são nossos)

Política endossada pelos sínodos de Nordhausen e Troyes:

Foi lida [no sínodo] a antiga regra dos pais, e, em relação aos bispos
invasores e também àqueles que naqueles tempos [do conflito entre o
papa e o imperador] haviam ingressado [nas ordens eclesiásticas] de
modo simoníaco, decidiu-se por depor os vivos e desenterrar
os sepultos.42

Se alguém, instigado pelo diabo – que isto não aconteça – e pela audá-
cia de sua temeridade, tiver ousado violar estes decretos da santa Sé
Romana, que se saiba afastado de modo dúbio do corpo de Cristo, que é
a igreja, e, até que tenha realizado uma satisfação, completamente sepa-
rado e atado com o vínculo do anátema até a morte de sua alma.43

Não havia mudança ou transitoriedade nas malhas da ilicitude. Tam-


pouco finitude. Embora houvesse a morte. Os infratores faleciam, sua vida
neste mundo cessava. Mas, sem ter cumprido certas condutas definidas pelo
papado, eles continuavam os mesmos, abarrotados de culpa, apinhados de
pecado. Todos estes cânones trazem à luz uma Igreja romana que negava aos
transgressores de sua lei a capacidade de se transformarem no fluir do tempo,
de não serem os mesmos de antes. Igreja que agia como senhora da mudança,
decidindo quando a ação do tempo era efetiva e quando ela se congelava;
estipulando quando o presente redimia o passado, superando-o – como no
concílio de Guastalla –, e quando o passado se prolongava, interminável e
indestrutível, como terra de expatriados do presente coletivo.
Como sustentar a opinião de que o papado – como parte da igreja me-
dieval anterior à era de mendicantes e universitários – agia para evadir-se

41
Qui vero eas tenere aut in feudum aliis dare aut presbyteros sive clericos intrudere seu expellere
aut quase hereditaria predia vendicare presumpserint, ab aecclesiarum liminibus arceantur. Si vero,
quod absit, in hac obstinatia mortui fuerint, et clericorum obsequiis et aecclesiastica careant sepultura.
Aecclesiae vero ipse divinis destituantur officis. BLUMENTHAL, 1978c: 105; URSINUS: 10.
42
Antiquam patrum regulam ibi recitare; scilicet invasores episcopos, nec non et eos qui tunc temporis
intraverant symonice, vivos deponere, et sepultos effodere. ANNALES HILDESHEIMENSES. MGH SS
3: 108; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 739. Ver ainda: EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS
6: 227; MANSI 20: 1119-1191; 1195-1198; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 489-490.
43
Quod si quis instigante, quod absit, diabolo temeritatis suae audatia sanctae romanae sedis violare
decreta presumpserit sciat procul dubio a corpore Christi, quod est aecclesia, se penitus alienatum at-
que in mortem animae suae anathematis vinculo donec satisfaciat obligatum. BLUMENTHAL, 1978c:
96.
Leandro duarte rust 253

do tempo, quando podemos perceber que ele o subjugava constantemente?


Baseado na constatação de um “tempo dos clérigos ritmado por (...) quadrantes
solares, imprecisos e variáveis, medido por vezes por clepsidras grosseiras” (LE
GOFF, 1995a: 53)? Não devemos confundir tempo e medida de tempo. Não
nos arriscamos a discordar da ideia de que calendários e relógios ocupam um
lugar fundador na vivência humana do tempo. Afinal, como argumentou Paul
Ricoeur no instigante Tempo e Narrativa (1997: 153-195), para elaborá-los,
as diferentes sociedades precisam operar uma dupla articulação: humanizar
regularidades astronômicas, como o curso do sol e da lua e, simultaneamente,
ordenar e naturalizar instáveis relações humanas como a memória e a morali-
zação dos movimentos da vida. Este tempo enquadrado em uma medida racio-
nal é um tempo original, momento axial que não se reduz nem a um “instante
qualquer do tempo físico, nem ao presente vivido da consciência, mas configura
um evento capaz de dar um curso particularizado à história dos homens”. No en-
tanto, os calendários e os relógios são mediadores das experiências temporais,
não sua síntese. Merleau-Ponty (1994: 549-588) tem razão ao propor que o
tempo, ou antes, a temporalidade – isto é, o tempo incorporado aos horizontes
do vivido –, é, primeiramente, a sucessão e a duração de formas presenciais
do ser, ela consiste nos infindáveis elos de pertencimento ontológico que se
inscrevem na vida humana.
Assim sendo, suas características extrapolam aquelas mobilizadas por
instrumentos socialmente estabelecidos de cronologia. Uma temporalidade é
um domínio do existir e condição de real, é identidade senciente e memória,
dimensão da diferença e adequação ao não-ser. Ou, se preferirmos a elegante
definição de Merlau-Ponty (1994: 574), é a maneira pela qual os seres huma-
nos “modulam sua existência no tecido do mundo objetivo e dos acontecimentos
em si”. Ela é governada “por lógicas múltiplas que não apenas constroem objetos
no mundo, mas também propõe estados de ser, identidades, relações e práticas
que revelam o ‘quem’, ‘como’, ‘o que’, ‘por que’, ‘para que’” (JOVCHELOVITCH,
2008: 93). Lidamos, portanto, com uma faceta da vida social cuja compreen-
são implica em decifrar as interações tecidas pelos agentes históricos entre si e
com o mundo que os rodeia. Algo que extrapola o limite do domínio técnico.
Algo que transborda os calendários.
Uma temporalidade não se esgota como matéria tecnológica. Não pre-
cisamos sair à caça de um tempo laicizado e objetivado como realidade de
relógio para vê-lo ganhar certa racionalidade e pragmatismo. Tal anseio usu-
almente nos faz sucumbir ao julgamento de que “a despeito de sua importância,
o tempo talvez não seja o quadro mais coercitivo da sociedade medieval” (BAS-
CHET, 2066: 337). Com isso, correremos o risco de subestimar sua relevância
histórica ou, pior, de deixar inexplorada a complexidade da dominação social
254 coLunas de são pedro

viabilizada pelas experiências de tempo medievais. O estudo da temporalidade


não é sinônimo de uma história dos calendários e da fabricação da cronologia.
Se cedermos ao apelo de conferir um valor absoluto ao nosso modelo de
um tempo universal, serializado e estampado em dígitos, provavelmente per-
deremos de vista um dos traços definidores da política papal de primórdios do
século XII: o papel assumido por seus integrantes de plenipotenciários na ges-
tão da mudança. Como donos da sucessão, tomando para si a habilidade de
demarcar o “antes” e o “depois”, o “princípio” e o “fim”, eles tiveram em mãos
uma capacidade extraordinária para impor à interação social ritmos específicos,
durações particulares. Guardiões do presente, eles dispuseram da habilidade de
decidir o momento de invalidar obrigações trazidas de antes e as ocasiões em que
a ação coletiva deveria incorporar novos princípios. Escrivães do passado, eles
decidiram quando apagá-lo com elogios a esquecimentos convenientes e quando
gravá-lo com linhas duras, criando imperativos de submissão que nem a morte
faria cessar. Ainda que não primasse por ordenamentos minuciosos e aritméticos
da duração, o papado intervinha de modo formidável sobre a temporalização de
condutas sociais. Ele operava incisões politicamente estratégicas entre o passado
e o presente; entre cessar e permanecer; conformar-se e agir.

5.2. A espada de Dâmocles

Os referenciais adotados na mensuração do tempo não distinguiam a


temporalidade inscrita nos concílios papais. Seu traço particularizante era a
racionalidade que encadeava tais referenciais. O tempo não era “algo em ge-
ral”, mas a correlação de heterogêneos, pois assim eram as parcelas que o
compunham. Emergindo em formatos múltiplos – agrícolas, corpóreos, rituais
–, ele era composto de ocorrências cotidianas dispostas em cadências mano-
bráveis, ajustáveis. As parcelas nas quais o tempo era repartido faziam sentido
porque espelhavam vivências. Eram porções de contrição, preparação, obser-
vância, interdição. O devir era um traço-de-união de participações sentidas, vi-
vidas; um campo do ser onde se inscreviam as presenças do ego, do “outro” e
do “mundo”. Servir-se de co-existências, jogar com a alternância e duração: eis
o aspecto definidor da representação de tempo veiculada aos concílios papais.
E eis igualmente, para o historiador, uma medida da política pontifícia. Esta,
como a duração, consistia numa ordem presencial; em um amplo espaço de co-
existências e co-realizações, demarcado e legitimado pelo acionamento direto
da autoridade apostólica. Precisamente estas características se revelaram, em
nossa opinião, decisivas para os rumos da história institucional romana em
um momento crucial, no raiar do século XII. Antes de refletirmos melhor sobre
esta afirmação, sigamos, momentaneamente, uma narrativa.
Leandro duarte rust 255

Erguendo-se bruscamente, o cardeal João de Gaeta tomou a palavra dian-


te do plenário eclesiástico reunido em Roma. Era manhã do dia 9 de março,
plena Quaresma. De pé, com as mãos trêmulas e a voz firme, João rebateu com
veemência: “o escrito que foi realizado pelo senhor papa foi seguramente mau, mas
não foi uma heresia”. Lá se iam dois dias inteiros de debates acirrados. Mas na-
quela manhã, eles começaram a fugir ao controle quando Bruno, cardeal bispo
de Segni, assegurou a todos os presentes na basílica de São João de Latrão que
pelas mãos do papa tinha ganhado vida um privilégio “que continha perversidade
e heresia”. Os ânimos, então, se exaltaram perigosamente no momento em que
alguém descarregou sua voz pelo ar, interrompendo bruscamente: “se aquele
privilégio continha heresia, quem o fez foi um herético”.44 Foi quando João saiu em
defesa do pontífice. O cardeal reconheceu a perversidade contida em tal escrito,
mas negou qualquer conteúdo herético. Em seguida, o próprio papa Pascoal II,
terrificado, interveio antes que o espanto o privasse de reações:

Meus irmãos e senhores, ouvi! Esta igreja nunca foi herética, ao con-
trário, ela venceu todas as heresias. A heresia Ariana, que vigorou por
cerca de 300 anos, foi anulada. As heresias Eutiquiana e Sabeliana foram
esmagadas, Fócio e os demais heréticos foram destruídos por esta Sé. Por
esta igreja o filho de Deus orou em sua Paixão dizendo: “Eu roguei por ti,
Pedro, para que tua fé não desfaleça”.45

Eis como o Chronicon Universale de Ekkehardo, abade de Aura, narra o


desenrolar da terceira sessão do concílio romano de 1116. Diferentemente de
Sigeberto, monge beneditino de Gembloux e um dos principais nomes da pro-
paganda contra Gregório VII, a inclinação de Ekkehardo para enaltecer feitos
imperiais não o impedia de ser solidário ao prestígio da Sé Apostólica governada
pelos partidários do padre que declarou a excomunhão e a deposição do rei ger-
mânico. Logo, a imagem delineada por sua narrativa, apresentando o pontífice
acuado por acusações de heresia, não pode ser reduzida a um ardil discursi-
vo composto no calor de uma guerra panfletária (BREISACH, 2007: 121-124).
Pelo contrário, seu relato adquire verossimilhança tão logo o confrontemos com
outros conjuntos documentais que tratam do controverso “escrito papal”.

44
Todos os trechos citados, respectivamente: Scriptum quod fecit domnus papa, malum quidem fuit,
sed heresis non fuit. / (...) Quod pravitatem et heresim continebat. (...) / Si privilegium illud heresim
continebat, quid illud fecit hereticus fuit. EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 250.
45
Fratres et domini mei, audite! Aecclesia ista nunquam habuit heresim; immo hic omnes hereses con-
quassatae sunt. Hic Arriana heresis, quae per 300 fere annos viguit, annulata est. Ab hac sede heresis
Euticiana, Sabelliana contrita, Fotinus ceterique heretici destructi sunt. Pro hac aecclesiae filius Dei
in passione sua oravit cum dixt: “Ego pro te rogavi, Petre, ut non deficiat fides tua”. EKKEHARDO DE
AURA. Chronicon. MGH SS 6: 251.
256 coLunas de são pedro

No tomo 2 dos Libelli de Lite, encontramos cartas enviadas por Bruno de


Segni a Pedro, cardeal bispo do Porto, ao papa Pascoal e aos demais bispos e
cardeais romanos. Elas asseguravam que o tal “escrito” violava a “liberdade da
igreja” (libertas ecclesiaei) porque continha decisões semelhantes à do “heresiar-
ca Guiberto”, arcebispo de Ravenna entronizado como papa Clemente III por
Henrique IV.46 Neste mesmo volume documental encontra-se ainda o epistolário
de Josserando, sucessor de Hugo de Die como arcebispo de Lyon. Há aí um texto
que retrucava Ivo de Chartres, cardeal, canonista e um dos principais partidários
pontifícios na Gália. Ao que parece, Ivo tentava defender a reputação de Pas-
coal, sem êxito, pois Josserando não se intimidava: bradava a plenos pulmões
que o papa não estava isento de ser julgado por seu crime (hoc crimen) e não
deveria ser poupado da fama de herege, pois “da mesma maneira que reconhece-
mos o católico por meio de obras católicas, conhecemos o herege através de obras
heréticas”.47 Bruno e Josserando seguiam Godofredo, abade de Vendôme. Em
1111, ele se queixou contra o pontífice, que, em sua opinião, “não replicou, mas
aprovou [o que] era comprovado como heresia segundo as tradições dos santos
pais, (...) sendo, com isso, arrancadas juntamente a fé, a pureza e a liberdade”.48
A desgraça que se abatia sobre o papado emergia também das palavras de
Hildeberto de Lavardin, bispo de Le Mans, de Suger, abade de Saint-Denis, e da
Gesta Episcoporum et Comitum Engolismensium, porém enunciada de outra forma.
Todos apresentam um Pascoal moralmente alquebrado pela divulgação de uma
de suas bulas, reunindo forças para renunciar ao trono petrino e recolher-se “ao
deserto da solidão”.49 A Gesta é explícita: “uma vez que o papa havia cometido algo
ilícito, ele prometera depor a si do papado e se dispusera a ir como exilado em hábito
religioso para a ilha de Pontia”.50 Espalhando esses rumores de abdicação os três
noticiavam um pontífice minimamente senhor de sua legitimidade, mas grave-
mente atingido por um ato deplorável. Neste sentido, suas páginas eram compatí-
veis com a narrativa de Ekkehardo de Aura acerca dos debates conciliares de 1116
e também com as ofensivas de Bruno de Segni, Josserando de Lyon e Godofredo
de Vêndome. Todos eles descreviam uma autoridade apostólica que vacilava. Os-
cilando entre o ilícito, o perverso e o herético, o papado reaparece constantemente
sacudido, perigosamente exposto a denúncias e reprovações de toda espécie.

46
BRUNO DE SEGNI. Epistolas. MGH Ldl 2: 563-566.
47
Sicut ex catholicis operibus catholicum sentimus, ita ex hereticis operibus hereticum cognoscimus.
JOSSERANDO DE LYON. Epistola. MGH Ldl 2: 654-666.
48
Quae secundum traditiones sanctorum Patrum haeresis comprobatur, non contradicit, sed praecipit;
(...) fides, castitas et libertas ei simul aufertur. GODOFREDO DE VENDÔME. Epistola. PL 157: 044.
49
Aad heremum solitudinis confugit. SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 38-40.
50
Quia vero Papa rem illicitam fecerat, deponere se a Papatu promiserat, et ad Pontianas insulas ha-
bitu religioso exul ire disposuerat: GESTA EPISCOPORUM ET COMITUM ENGOLISMENSIUM. RES: 42;
HILDEBERTO DE LAVARDIN. Epistola. MGH Ldl 2: 667-673.
Leandro duarte rust 257

O “escrito” que desencaderara estes estragos era, segundo a Gesta Regum


Anglorum, de Guilherme de Malmesbury, e a Chronica, de Sigeberto de Gem-
bloux, este Paschalis II Papae Privilegium que traduzimos a seguir:

Pascoal, bispo, servo dos servos de Deus, a Henrique, caríssimo filho em Cristo
e, pela graça do Deus onipotente, augusto imperador dos romanos, sauda-
ções e benção apostólica. A Divina disposição estabeleceu que vosso reino
está especialmente unido à Igreja romana. Pela grandiosa graça da virtude e
da prudência, vossos predecessores obtiveram a coroa e o império da cidade
romana, para cuja dignidade da [mesma] coroa e do império a majestade
divina, igualmente, conduziu vossa pessoa, caríssimo filho Henrique, através
do ministério de nosso sacerdócio. Portanto, aquela prerrogativa da dignidade
que nossos predecessores concederam e confirmaram aos vossos predeces-
sores, imperadores católicos, pelas páginas dos privilégios, nós, igualmente,
concedemos, por vosso amor. Pela presente página deste privilégio confirma-
mos que confirais a investidura pelo anel e pelo báculo aos bispos e abades
de vosso reino, livremente eleitos, sem violência ou simonia, e, após a inves-
tidura, que eles recebam a consagração canônica do bispo a que pertencer [o
direito de realizá-la]. Se, todavia, alguém tiver sido eleito, pelo clero ou pelo
povo, sem vosso consentimento, a não ser que tenha sido investido por vós,
que não seja consagrado por ninguém, excluídos, sem dúvida, aqueles, en-
tre os arcebispos ou os pontífices romanos, que têm por costume estabelecer
a ordem [de consagração]. Que os arcebispos ou bispos tenham liberdade
para consagrar, canonicamente, os bispos ou abades investidos por vós. Vos-
sos predecessores, de fato, tanto engrandeceram as igrejas de seu reino com
as regalia de seus benefícios, de forma que convém ao próprio reino buscar
vivamente sua segurança, protegendo bispos e abades; e [quanto] às dissen-
sões populares, que frequentemente atingem a todos [os eclesiásticos] eleitos,
que sejam contidas pela Majestade Real. Eis porque o zelo de tua prudência
e poder deve elevar-se vigilante: para que, por teus favores e serviços, seja
conservada a grandeza da Igreja Romana e a liberdade das demais [igrejas]
com a ajuda de Deus. Se alguma pessoa, eclesiástica ou secular, consciente da
página desta nossa concessão, ousar agir contra ela com irrefletida audácia,
que seja envolvida com vínculo do anátema e que reconheça o perigo de sua
função e dignidade, a não ser que tenha se arrependido. Mas que a miseri-
córdia divina seja guardada sobre os observantes desta [concessão] e que ela
seja concedida a tua pessoa e a teu poder de governar, com felicidade, para
tua glória e honra.51

51
Paschalis episcopus, servus servorum Dei, carissimo in Christo filio et per Dei omnipotentis gratiam
258 coLunas de são pedro

Este privilégio reconhecia ao rei sálio, Henrique V, o poder para empossar


clérigos e religiosos eleitos em dignidades eclesiásticas. Segundo ele, o mo-
narca podia dispor do anel – símbolo do casamento do sacerdote com a igreja
por ele assumida – e do báculo – bastão que lembrava um cajado do pastor
para simular a autoridade adquirida sobre o rebanho de fiéis. O “cuidado das
almas” (cura animarum) foi depositado em mãos régias, pois “quem quer que
conduza uma pessoa [ao ofício pastoral] através destes dois objetos, seguramen-
te reivindica para si toda a autoridade pastoral”, esclarecera Humberto de Silva
Cândida um século antes.52 Maureen Miller (2005: 03) resumiu com esmero
o que estava em jogo: “A questão de quem investia o bispo era crítica, aquele
que investia estava na posição de poder e era visto como sua fonte. A pessoa que
entregava os objetos sagrados ao bispo não transmitia somente os símbolos, mas
o próprio poder que eles representavam”.
Pascoal II se metera em um espinheiro. Afinal, seu privilégio concedia
ao filho de Henrique IV uma prerrogativa condenada por Gregório VII e Urba-
no II como “crime de idolatria” (scelus idolatriae). Desde 1075 o papado tratava
o controle monárquico sobre os símbolos do poder episcopal como algo nefasto,
vil em todas as formas. Nada adviria desta prática a não ser um mal merecedor
da mais severa das excomunhões, como registrou o Chronicon de Hugo de Fla-
vigny:

Romanorum imperatori augusto Henrico salutes et apostolicam benedictionem. Regnum vestrum sanc-
tae Romanae ecclesiae coharere, divina dispositio constituit. Praedecessores siquidem vestri, probitatis
et prudentiae amplioris gratia, Romanae urbis coronam et imperium consecuti sunt; ad cuius videlicet
coronae et imperii dignitatem tuam quoque personam, fili carissime Henrice, per nostri sacerdotii mi-
nisterium majestas divina provexit. Illam igitur dignitatis praerogativam, quam praedecessores nostris
vestris praedecessoribus catholicis imperatoribus concesserunt et privilegiorum paginis confirmave-
runt, nos quoque tuae dilectioni concedimus et praesentis privilegii pagina confirmamus, ut regni tui
episcopis vel abbatibus, libere praeter violentiam vel symoniam electis, investituram virgae et anuli
conferas, post investionem vero canonice consecrationem accipiant ab episcopo ad quem pertinuerit.
Si quis autem a clero vel populo praeter assensum tuum electus fuerit, nisi a te investiatur, a nemine
consecretur, exceptis nimirum illis qui vel in archiepiscoporum vel in Romani pontificis solent dispo-
sitione consistere. Sane archiepiscopi vel episcopi libertatem habeant, a te investitos episcopos vel
abbates canonice consecrandi. Praedecessores enim vestri ecclesias regni sui tantis regalium suorum
beneficium ampliarunt, ut regnum ipsum maxime episcoporum vel abbatum praesidiis oporteat com-
muniri, et populares dissensiones, quae in electis omnibus saepe contingunt, regali oporteat majestate
compesci. Quamobrem prudentiae tuae et potestati cura debet sollicitus imminere, ut Romanae eccle-
siae magnitudo et ceterarum salus tuis, Domino praestante, beneficiis et servitiis conservetur. Si qua
igitur ecclesiastica vel secularis persona hanc nostrae concessionis paginam sciens, contra eam teme-
rario ausu venire temptaverit, anathematis vinculo, nisi resipuerit, innodetur, honirisque et dignitatis
suae periculum patiatur, observantes autem haec misericordia divina custodiat, et personam potesta-
temque tuam ad honore suum et gloriam feliciter imperare concedat. GUILHERME DE MALMESBURY.
Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 659-660; SIGEBERT DE GEMBLOUX. Chronica. MGH SS 6: 374;
PASCHALIS II PAPAE PRIVILEGIUM DE INVESTIRURIS. MGH LL 2: 72-73; PRIVILEGIUM PASCHALIS
II DE INVESTITURIS. MGH Const. 1: 144-145.
52
Quicumque ergo his duobus aliquem initiant, procul dubio omnem pastoralem auctoritatem hoc
praesumendo sibi vendicat. HUMBERTO DE SILVA CÂNDIDA. Libri III Adversus Simoniacos. MGH LdL
1: 205.
Leandro duarte rust 259

Era contrário aos decretos dos santos padres que na eleição canônica do bispo
prevalescesse o “donum regis”, pois deste modo frequentemente se modifica-
va ou antes fazia-se nula a própria eleição, [o papa Gregório VII] proibiu isto,
(...) sob pena de anátema (...): “Se alguém tiver recebido o episcopado ou a
abadia da mão de qualquer pessoa laica, de forma alguma deve ser manti-
do entre os bispos e os abades, audiência alguma deve ser-lhe concedida na
condição de bispo ou abade. Além disso, interdizemos a ele a graça do bem-
aventurado Pedro e a entrada em uma igreja, enquanto não tiver se separado
do local que ocupou sob o delito da ambição tanto quanto da desobediência, o
que é crime de idolatria. Ordenamos o mesmo a respeito das dignidades ecle-
siásticas inferiores. Do mesmo modo: se um imperador, duque, marquês, con-
de ou quem quer que seja do poder secular tiver ousado conceder a alguém a
investidura do episcopado ou de qualquer outra dignidade eclesiástica, que se
saiba preso ao vínculo da mesma sentença”.53

Mas aquele privilegium não era fruto de boa vontade. Ao contrário, o pró-
prio Pascoal o considerava um ultraje. Desde 1107, todas as vezes em que emis-
sários foram enviados pelo rei teutônico para obter a aprovação ao direito im-
perial à investidura, Pascoal a recusou e condenou sem titubear. Assim ocorreu
no concílio de Troyes (maio de 1107), cujo cânone 1 estabelecia sem rodeios:
“proibimos completamente os laicos de realizar investiduras de bens eclesiásticos
e receber pequenas parcelas de dízimos ou oblações”;54 e novamente na assem-
bleia de Roma (março de 1110), que também frisou logo no primeiro decreto:

Seguindo as disposições dos santos cânones, estabelecemos que, quem


quer que dentre os clérigos tenha, neste momento, recebido a investi-
dura de uma igreja ou uma dignidade eclesiástica da mão de um laico,
bem como aquele que impôs a mão sobre ele, tenha seu grau submetido
a perigo e seja privado da comunhão.55

53
Et quia vidit hoc sanctorum patrum adversari decretis, ut in canonica electione episcopi praevaleret
donum regis, immo multoties ipsam electionem inmutaret vel potius irritam faceret, (...) prohibuit sub
interminatione anathematis (...): Si quis deinceps episcopatum vel abbatiam de manu alicuius laycae
personae susceperit, nullatenus inter episcopos vel abbates habeatur, nec ulla ei ut episcopo vel abbati
audientia concedatur. Insuper ei gratiam beati Petri et introitum ecclesiae interdicimus, quoadusque
locum, quem sub crimine tam ambitionis quam inobedientiae, quod est scelus idolatriae, cepit, non
deserit. Similiter etiam de inferioribus aecclesiasticis dignitatibus constituimus. Item: Si quis imperato-
rum, ducum, marchionum, comitum, vel quilibet secularium potestatum aut personarum investituram
episcopatus vel alicuius aecclesiasticae dignitatis dare praesumpserit, eiusdem sententiae vinculo se
astrictum sciat. HUGO DE FLAVIGNY. Chronico. MGH SS 8: 412.
54
Laicos ab investituris rerum aecclesiasticarum faciendis et a minutis decimis vel oblationibus re-
cipiendis omnino prohibemus. BLUMENTHAL, 1978: 92; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS 6: 745-46;
SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 34-35.
55
Constitutiones sanctorum canonum sequentes statuimus, ut quicumque clericorum ab hac hora in-
260 coLunas de são pedro

Porém, nem assim as negociações com a corte germânica cessaram. Nos


primórdios de 1111, uma fórmula foi encontrada para selar a concórdia, ga-
rantindo a Henrique V a coroação imperial. O rei renunciaria às investiduras,
“por escrito, junto à mão do pontífice, sob o olhar do clero e povo” e confirmaria
“por juramento que deixa livres, com oblações e possessões, as igrejas que, ma-
nifestamente, não pertenciam ao reino”; o pacto implicava ainda em “absolver
o povo dos juramentos realizados contra bispos e entregar, restituir e auxiliar a
manter, segundo seu poder, os patrimônios e as concessões ao bem-aventurado
Pedro realizadas por Carlos [Magno], Luís [I, “o Piedoso”], Henrique [III, “o
Piedoso”] e outros imperadores”.56 O papa, por sua vez, se comprometia a fazer
com que todas as regalia, concedidas pelo poder imperial a bispos e abades,
fossem devolvidas à coroa sália. O que significava restituir “cidades, ducados,
marcas, condados, moedas, postos de coleta em estradas, mercados, defesas do
reino, direitos de juízes e cortes que manifestamente pertenciam ao rei juntamen-
te com suas extensões, exércitos e fortificações.57
Ao contrário do que afirmavam os historiadores de meados do século
XX, para os quais o pacto implantaria o ideal papal de impor uma pobreza
revolucionária sobre a igreja (ZERBI, 1965: 207-229; WILKS, 1971: 69-85;
PENNINGTON & SOMERVILLE, 1977: 09-20; CANTARELLA, 1982: 9), o fim
da investidura laica aí prometido não tinha como preço o “repúdio ao poder
e riqueza terrenos” (TIERNEY, 1988: 87), mas a criação de uma hierarquia
eclesiástica despojada de bens laicos, entregue a propriedades e rendas consi-
deradas pelo papa como puramente religiosas.
As versões documentais se desentendem quanto ao ocorrido no interior
da basílica de São Pedro na tarde de 12 de fevereiro, dia estipulado para a
confirmação do acordo. Ditada pessoalmente pelo rei, a versão imperial é la-
cônica. Uma vez dentro da basílica e na iminência de ser sagrado imperador,

vestituram aecclesiae vel aecclesiasticae dignitatis de manu laici acceperit et qui ei manum inposuerit,
gradus suis periculo subiaceat et communione privetur. CONCILIUM LATERANENSE. In: MGH Const.
1: 568-569; PFLUGK-HARTTUNG 2: 196-198; TRACTATUS DE INVESTITURA EPISCOPORUM. MGH,
Ldl 2: 495-504.
56
Ut rex scripto refutaret omnem investituram omnium ecclesiarum in manu pontificis, in conspectu
cleri et populi, in die coronationis suae, et postquam domnus papa fecerit de regalibus, sicut in alia car-
ta scriptum est, sacramento firmabit, et dimittet ecclesias liberas, cum oblationibus et possessionibus,
quae ad regnum manifeste non pertinebant, et absolvet populos a juramentis, quae contra episcopos
facta sunt. Patrimonia et possessionis beati Petri restituet et concedet, sicut a Carolo, Ludovico, Hein-
rico, et aliis imperatoribus factum est (...). CONVENTIO PRAEVIA IN ECCLESIA SANCTA MARIAE IN
TURRI FACTA. Promissio Regis. MGH Const. 1: 137; HEINRICI REGIS PROMISSIONIS FORMULA. MGH
LL 2: 66; ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 473; CHRONICON CASINENSE. MGH SS 7: 778.
57
Regalia, id est civitates, ducatus, marchias, comitatus, monetas, teloneum, mercatum, advocatias
regni, jura centurionum et curtes quae manifeste regni erant, cum pertinentiis suis, militiam et castra
regni. CONVENTIO PRAEVIA IN ECCLESIA SANCTA MARIAE IN TURRI FACTA. Promissio Papae per Pe-
trum Leonis Dicta. MGH Const. 1: 138-139. PASCHALIS PAPAE PROMISSIO. MGH LL 2: 67; ANNALES
ROMANI. MGH SS 5: 473; CHRONICON CASINENSE. MGH SS 7: 778-779.
Leandro duarte rust 261

Henrique solicitou a Pascoal que proclamasse a ordem para a total restituição


das regalia. O papa recuou, resistindo a fazê-lo. O monarca insistiu. O impasse
teria encorajado todos os bispos e abades, “tanto do papa, quanto os do rei, e
todos os filhos da igreja”, a protestar em uníssono: o decreto restituidor das
regalia era uma “manifesta heresia” (planam haeresin)! Os gritos teriam desper-
tado o espírito do rei para um temor que já castigava sua mente, a suspeita da
proposta papal não passar de uma cilada, um plano insidioso. Livrado da influ-
ência maléfica, Henrique descreve a si mesmo realizando um gesto enigmático,
com o qual visou retratar a “verdade estipulada e provada pelos testemunhos dos
presentes”.58 E isso é tudo o que sabemos das declarações imperiais.
A versão papal é mais minuciosa. Segundo ela, lido em voz alta, o pri-
vilégio que revogava o acesso eclesiástico às regalia não despertou o menor
protesto na multidão ali reunida.59 Àquela altura dos fatos, Pascoal já havia re-
cebido o juramento de Henrique60 e o designara imperador. Restava ministrar
os ofícios do altar, ungir o monarca e coroá-lo. Mas, ao ser solicitada a leitura
do privilégio régio de renúncia às investiduras, o imperador retirou-se com
seus bispos e príncipes para uma área próxima à sacristia, para deliberar. A
cerimônia foi interrompida e a basílica preenchida por uma espera torturante,
impaciente. Após uma demora excruciante, enviados do papa retornaram com
a notícia de que a ordem para a restituição das regalia não seria ouvida dos
lábios do rei. Esta recusa é confirmada Sigeberto de Gembloux, para quem
o jovem e imponente sálio retornou de seu coloquium desferindo o veredito:

Eu, Henrique, augusto imperador, afirmo diante de Deus e São Pedro,


que de modo algum desejo subtrair a todos os bispo, abades e todas as
igrejas, tudo o que os reis e imperadores, meus antecessores, concede-
ram ou de algum modo transmitiram por Deus.61

O ambiente pesou. E se tornou ainda mais tumultuado quando o im-


perador trouxe à tona um tema inesperado e ultrajante: a exigência de que
fosse discutido o conflito entre o papa e o nobre romano conhecido como
“Estevão, o Normando”. Juntamente com Werner, marquês de Ancona, Es-
58
Episcopis, abbatibus tam suis quam nostris, et omnibus aecclesiae filiis / Quod sic gestum fuisse rei
veritas multorum astipulata testimoniis qui interfuere protestatur. HENRICI ENCYCLICA DE CONTRO-
VERSIA SUA CUM PAPA ET ROMANIS. MGH LL 2: 70; SIGEBERTO DE GEMBLOUX. Chronica. MGH SS
6: 373; EKKEHARDO DE AURA. Chronicon Universale. MGH SS 6: 244; MANN 8: 48.
59
PASCHALIS II PRIVILEGIUM PRIMAE ECCLESIARUM. MGH Const. 1: 141-142; MGH, LL 2: 68-69.
60
HENRICI CONSTITUTIONES. MGH LL 2: 68.
61
Ego Heinricus imperator augustus, affirmo Deo et sancto Petro, et omnibus episcopis et abbatibus,
et omnibus aecclesiis, omnia quae antecessores mei reges vel imperatores concesserunt vel quoquo
modo tradiderunt Deo, ego nullo modo subtrahere volo. SIGEBERTO DE GEMBLOUX. Chronica. MGH
SS 6: 373.
262 coLunas de são pedro

tevão obteve a adesão de importantes famílias, como os Barunci e os Corsi,


para Maginulfo de Sant’Ângelo e o declarou papa Silvestre IV, no idos de
1105. Acusando o papa reinante de simonia, Werner conseguiu instalar Sil-
vestre no palácio de São João de Latrão, mas ambos foram expulsos por ho-
mens leais a Pascoal e forçados a se retirar para Tívoli, de onde continuavam
a opor séria resistência.62 Empurrado para esta incômoda demanda, o papa
recusou-se a concluir a cerimônia de coroação. Cada vez mais estarrecidos
diante do imbróglio, alguns eclesiásticos procuraram aplacar a impaciência
do partido germânico e sugeriram que o monarca fosse coroado ainda na-
quele mesmo dia e as negociações sobre as investiduras adiadas. O que não
ocorreu. Encolerizado e instigado por seu chanceler, Adalberto, arcebispo de
Mainz, e por Burchardo, bispo de Munster, o jovem rei lançou uma ordem
fatal: a basílica foi cercada por seus soldados e o papa aprisionado juntamen-
te com todos seus acompanhantes (Ver ainda: CANTARELLA, 1982: 18-28;
1987: 41-78).
No cativeiro, Pascoal estava proibido de se alimentar, embora pudesse
recorrer ao pão e ao vinho para celebrar a eucaristia. À noite, ele e os seus
foram retirados da basílica e levados para uma casa vicinal. Os cardeais João
de Tusculum e Leão de Óstia escaparam. Nos dias que se seguiram, as ruas de
Roma mergulharam em enfretamentos sangrentos.63 Uma parte da população
avançou contra os guerreiros germânicos, matando grande número deles. No
tumulto, o próprio Henrique teria sido ferido no rosto, desabando de seu ca-
valo, mas escapou graças a Oto, conde de Milão, que lhe cedeu a montaria.
O conde, no entanto, “foi capturado pelos romanos, conduzido para a cidade,
cortado em pedaços e suas carnes abandonadas para ser devoradas por cães”.
Os mortos cobriam o chão e seu sangue teria tingido as águas do Tibre de um
vermelho assombroso.64
Divergências à parte, a documentação deságua em um mesmo ponto:
malogrado o empenho do cardeal João para resgatá-lo, após dois meses de ca-
tiveiro, Pascoal cedeu. Os mal-tratos e o receio da resistência custar a vida de
outros homens dobraram sua vontade e ele prometeu atender às exigências do
rei, que imediatamente providenciou seu retorno. No caminho entre o castelo
de Trebicum, local da prisão, e Roma, Henrique tentou mascarar o rapto com
gestos de libertação. Acenando com juramentos de obediência, ele reiterou a
promessa de restituir o patrimônio de São Pedro “de boa fé, sem perfídia e má
intenção”, e se pôs a garantir publicamente que conduziria “livres, na próxima

62
Liber Pontificalis 2: 345-346; SIGEBERTO DE GEMBLOUX. Chronica. MGH SS 6: 368-369.
63
Plano geral da narrativa papaista foi composto a partir de: ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 474-475;
CHRONICON CASINENSE. MGH SS 7: 779-780; Liber Pontificalis 2: 370.
64
DONIZO, Vita Mathildis. MGH SS 12: 403. Vide: GREGOROVIUS 4/2: 328-345; MANN 8: 52-57.
Leandro duarte rust 263

quarta ou quinta feira, o senhor papa, os bispos, os cardeais e todos os cativos e


reféns que por sua causa ou com ele foram capturados”. Pascoal era apontado
como responsável pelo próprio sequestro, e o rei o único capaz de oferecer a
esperança de que aquela violência nunca mais aconteceria, conforme disse o
próprio Henrique: “não tomarei nem deixarei passar cativos aqueles que perma-
necerem em fidelidade ao senhor papa Pascoal, (...) fielmente auxiliarei o senhor
papa para que ele mantenha seu papado pacífica e seguramente”65 (Ver ainda:
ZERBI, 1965: 219-222; WILKS, 1971: 84-85; CANTARELLA, 1982: 8-11)
No dia 13 de abril, escoltado por tropas germânicas, o pontífice ratificou
por escrito a prerrogativa imperial de dispor do anel e do báculo episcopais:
nascia o odiado “escrito papal”. Uma vez dentro da basílica de São Pedro,
Henrique “recebeu o nome de Augusto e o Império de Cristo, foi ungido e sagrado
segundo o rito do crisma e então coroado em augustíssima pompa. Foi concedi-
do a ele, pela mão apostólica, o privilégio referente à investidura eclesiástica”.66
Enquanto isso, no mesmo dia, Silvestre IV foi forçado a calar qualquer pre-
tensão ao trono papal. O cerco se fechou. Pascoal estava comprometido até a
medula com decisões que contrariavam décadas de ações papais. Sobretudo,
porque pouco antes de entrar em Roma, sobre a Ponte Mammolo, Henrique
aferrolhou-lhe a consciência ao arrancar-lhe esta promessa:

O Senhor papa, Pascoal, não perturbará o senhor rei, nem seu império
ou reino quanto à investidura de episcopados e abadias, nem em razão
da injustiça conduzida contra ele e contra seus bens e pessoa [isto é, não
se queixará das ações régias envolvidas com seu sequestro e cativeiro],
nem oferecerá mal algum para si ou para pessoa alguma por esta razão;
e jamais submeterá a pessoa do rei Henrique a um anátema.67

65
Ego Heinricus rex liberos dimittam quarta vel quinta feria proxima et dominum papam et episcopos
et cardinales et omnes captivos et obsides qui pro eo vel cum eo capti sunt, et secure perduci faciam
intra portas Transtiberinae civitatis, nec ulterius capiam aut capi permittam eos qui in fidelitate domini
papae Paschalis permanent, et populo Romani et Transtiberinae civitati pacem et securitatem servabo
tam per me quam per meos in personis qui pacem mihi servaverint. Dominum papa fideliter adjuvabo,
ut papatum suum quiete et secure teneat. Patrimonia et possessiones Romanae ecclesiae qua abstuli
restituam, et cuncta quae habere debet more antecessorum suorum recuperare et tenere adjuvabo,
bona fide, sine fraude et malo ingenio, et domino papae Paschali obediam, salvo honore regni et impe-
rii, sicut catholici imperatores catholicis pontificibus Romanis. GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta
Regum Anglorum. HARDY 2: 656-658; CONVENTIO SECUNDA VI EXTORTA. MGH LL 2: 72; CHRONI-
CON CASINENSE. MGH SS 7: 782; ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 476; SIGEBERT DE GEMBLOUX.
Chronica. MGH SS 6: 374.
66
Ante confessionem sancti Petri, augusti nomen et imperium a Christo, ipse crismate rite perunctus
et sacratus et sub augustissima pompa coronatus, suscepit. Donatus est sibi in presenti per manum
apostolici sub testimonio astantis aecclesiae privilegio investiturae aecclesiasticae. EKKEHARDO DE
AURA. Chronicon. MGH SS 6: 245.
67
Dominus papa Paschalis non inquietabit dominum regem, nec eius imperium vel regnum de in-
vestitura episcopatuum et abbatiarum, neque de iniuria sibi allata et suis in personis et bonis, nec
264 coLunas de são pedro

A manobra imperial era sagaz. O pontífice não poderia excomungar seu


algoz sem violar um solene juramento. Neste caso, qualquer retaliação papal
poderia ser considerada felonia, traição, uma grave infração aos olhos das
elites senhoriais ocidentais, mergulhadas em laços de vassalagem e lealdade.
Todavia, o vergonhoso encarceramento e as violências com que aquele
“privilégio foi extorquido ao pontífice romano”68 não fizeram dele uma vítima.
Sua rendição fez dele mais culpado que o próprio rei e lançou contra Pascoal
uma onda de denúncias. Segundo os rumores que os monges de Hirschau fa-
ziam circular em solo germânico, sua capitulação era tão nociva para a pureza
da fé cristã quanto a brutalidade imperial: “ambos deveriam ser condenados e
removidos da igreja”.69 Incriminações ainda mais graves ressoavam na Gália
pela voz de Godofredo de Vendôme. Para ele, ao livrar o seu séquito do cativei-
ro e da morte, Pascoal condenou todos a tribulações maiores e imperdoáveis.
Ele os privou do martírio, dádiva raramente concedida pelos céus a poucos
afortunados. O abade foi em nada cerimonioso para pesar as consequências
desta escolha:

É verdadeiramente conhecido não ter sido desígnio de justiça nem de


misericórdia, mas incitamento de Satanás tê-los livrado da morte que há
muito tempo não pode descer sobre os mortais (...). Oh, quão venerável
e quão preciosa teria sido a morte na presença do Senhor, sobretudo, se
tivesse sido permitido do alto ou na terra suportar dar a vida daqueles
pela fé, pela santa igreja e por seu esposo, que morreu e ressuscitou por
ela e para que, vencida a depravação herética, sem fratura e nem dobras,
ela [a Igreja] possuísse a fé católica e continuamente procriasse filhos
fiéis até o fim dos séculos!70

aliquod malum reddet sibi vel alicui persone pro hac causa, et penitus in personam regis Heinrici
numquam anathema ponet. GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 656-
58; CONVENTIO SECUNDA VI EXTORTA. MGH LL 2: 71-72; CHRONICON CASINENSE. MGH SS 7:
782; ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 476; SIGEBERT DE GEMBLOUX. Chronica. MGH SS 6: 373-374;
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 245.
68
Hoc privilegium, quod a Romano pontifice minis extorsit. OTO DE FREISING. Chronica sive Histo-
ria de Duabus Civitatibus. MGH SS rer. Germ. 45: 328-329; SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA
MARCHE: 37-39.
69
Ambos damnandos et ab ecclesia removendos. Chronicon Laureshamense. MGH SS 21: 431.
70
Unde nec iustitiae nec misericordiae fuisse consilium veraciter agnoscitur, sed Satanae incitame-
mtum, eos subtraxisse morti, quae diu deesse non potest mortalibus, qui cum utilitatem totius Eccle-
siae vitae statim sociare potuissent aeternae. O quam venerabilis, et quam pretiosa esset in conspectu
Domini mors, immo vita illorum, quibus si pati pro fides datum fuisse desuper, vel in terra permissum,
sancta Ecclesia haeretica pravitate superata, suo sponso, qui pro ea mortuus est et resurrexit, usque
in fine saeculi fidelis filios procreasset, nec frangi, nec flecti deinceps fides catholica potuisset! GODO-
FREDO DE VENDÔME. Epístola ao papa Pascoal II. PL 157: 044.
Leandro duarte rust 265

O pontífice não salvou cristãos da morte, ele os privou de oferecer um


testemunho inigualável de sua fé. A voz de Godofredo não ecoava no vazio.
Aos olhos de Josserando de Lyon, Guy de Vienne, Gualo de Saint-Pol-de-Le-
on e outros eminentes personagens do episcopado galicano, aquela rendição
ofendia os ensinamentos apostólicos, era prova de desprezo pelo exemplo de
Cristo. Naquela ocasião, o caminho a ser tomado era um só: o pontífice devia
ter escolhido “morrer pela verdade e justiça, e inocentemente seguir Cristo para
a morte”. Era preferível sofrer açoites eternos a consentir com aquelas prerro-
gativas abjetas, detestáveis e em tudo contrárias às leis divinas e às regras do
santos pais, conforme registrou Orderico Vital nos Ecclesiasticae Historiae Libri
Tredecim.71
Na península itálica não era diferente. No verão, o papa se viu obrigado
a prometer aos cardeais João de Tusculum e Leão de Óstia que declararia nulo
o privilégio estendido ao imperador. Só assim ele pôde aplacar o estardalhaço
que os dois vinham causando em Roma.72 Segundo o Chronicon Casinense,
mais implacável era ainda o cardeal de Segni, Bruno.73 Suas cartas eram per-
turbadoras. O tom afável das palavras iniciais não aliviava o teor áspero das
repreensões que se seguiam. Eis uma epístola enviada por ele a Pascoal:

Meus inimigos dizem-te que a ti me oponho, e que digo o mal a respeito


de ti, mas eles mentem. Eu não me oponho a ti, mas devo amar-te como
a um pai e senhor: e nenhum outro, enquanto viveres, desejo ter como
pontífice, tal como prometi a ti com muitos outros. Todavia, ouço o que
o meu Salvador diz a mim: “Quem ama pai e mãe mais do que a mim,
não é digno de mim”. Donde o Apóstolo diz: “Se alguém não ama o
Senhor Jesus, que seja anátema. Maratana!” Devo, portanto, amar a ti,
mas amar mais àquele que fez a ti e a mim. (...) Quanto àquele pacto
que foi feito com tamanha violência e traição, contrário a toda piedade
e religião, não posso aprová-lo. E nem tu podes, como ouvi de muitos.
Quem pode aprovar aquilo através do qual a fé é violada, a liberdade da
Igreja destruída, o sacerdócio abolido, a única e notável porta da Igreja
fechada, enquanto muitas outras portas são abertas e pelas quais entra
qualquer ladrão e bandido?74

71
Asserebant enim quod pro veritate et justitiae debuisset optare mori, et usque ad mortem innocenter
Christum sequi, satisque malle vinculat et flagra perpeti, quam aliquid contra jus et statuta Patrum po-
testati annuere saeculari. ORDERIC VITAL. Ecclesiasticae Historiae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 06.
72
JL 6301.
73
CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 782.
74
Inimici mei dicunt tibi quia te non diligo, et quia de te male loquor, sed mentiuntur. Ego enim sic te
diligo, sicut Patrem et dominum dligere debeo: et nullum alium, te vivente, pontificem habere volo;
sicut ego cum multis tibi promisi. Audio tamen Salvatorem meum mihi dicente: Qui amat patrem,
266 coLunas de são pedro

Acuado, Pascoal tratou de enfraquecer esta voz incômoda. Em julho,


ordenou que Bruno fosse removido do posto de abade de Montecassino, o qual
ele ocupava juntamente com a dignidade episcopal de Segni desde 1107.75 A
tolerância a este acúmulo irregular de funções extinguiu-se quando um risco
alarmante sobressaltou a razão papal: “se não me apresso a retirar-lhe a abadia,
em breve ele retiraria meu pontificado romano com seus argumentos”,76 mur-
murava o papa enquanto mastigava seus maiores medos (Ver ainda: CANTA-
RELLA, 1987: 93-159; MELVE, 2007: 106-107). A dolorosa capitulação pendia
sobre a legitimidade de Pascoal como uma Espada de Dâmocles. Comentada
no interior das igrejas, sua rendição era lamentada como a prova irrefutável
de um desvio de fé, como a escolha escandalosa de um “papa herético” (CAN-
TARELLA, 1987: 95-107).
Meses inteiros se passaram com a autoridade apostólica contestada, de-
nunciada e ameaçada. A crise que se abateu sobre ela foi resumida em linhas
amargas enviadas por Pascoal ao seu próprio algoz, Henrique V, em 26 de
outubro de 1111:

Em razão daquele pacto que fizemos, tanto os nossos [bispos] quanto


os vossos ergueram-se contra nós com audácia, e não somente os que
se encontram longe, mas igualmente aqueles que estão próximos a nós
dilaceram nossas entranhas com batalhas intestinas e com muito mais
tingem com desonra nosso rosto.77

Seis meses depois do fim do cativeiro, grande parte da Cúria romana


permanecia encurralada. Estava presa, acima de tudo, à própria palavra. Afi-
nal, os dizeres pontifícios não podiam ser facilmente desfeitos. Indo muito
além de um mero veículo de expressão ou intelecção, a palavra emitida pela
voz apostólica era um ato criador. Mais do que nomear – acreditavam os inte-
grantes do papado – ela revelava. Revolvia a existência das criaturas de Deus
para fazer triunfar a verdade, apagar manchas de pecado, tracejar destinos

aut matrem plusquam me, non est me dignus. Unde et Apostotlus dicit: Si quis non diligit Dominum
Jesum, sit anathema marathana. Debeo igitur diligere te, sed plus debeo diligere illum, qui et te fecit
et me. (...) Foedus autem illud tam foedum, tam violentum, cum tanta proditione factum, tam omni
pietati et religioni contrarium, ego non laudo. At vero neque tu sicut a pluribus referentibus audivi.
Quis enim illud laudere potest, in quo fides violatur, Ecclesia libertatem amittit, sacerdotium tollitur,
unicum et singulare ostium Ecclesiae clauditur, aliaque multa ostia aperiuntur, per quae quicunque
intrat, fur et ladro? BRUNO DE SEGNI. Epistola. PL 163: 463.
75
JL 6302, 6303.
76
Si non acceleravero tollere ei abbatiam, futurum est, ut ipse suis argumentationibus Romanum mihi
tollat pontificatum. CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 782.
77
Ex quo vobiscum illam, quam nostis, pactionem fecimus, non solum longius positi, sed ipsi etiam,
qui circa nos sunt, cervicem adversus nos erexerunt, et intestinis bellis viscera nostra collacerant et
multo faciem nostra rubore perfundunt. JL 6305.
Leandro duarte rust 267

de almas. O real da existência entregava-se à palavra dos pontífices, podia ser


ouvido do fundo de suas bocas.
Portanto, anular a promessa feita ao rei, desautorizando-a ou revogan-
do-a como um dizer simulado, mesmo sob a alegação de que eram um fruto
de abusos, significaria que o portador da autoridade dos apóstolos havia dito
o falso, que ele remexeu nas propriedades da remissão dos pecados para ge-
rar o mal e o enganoso. Convicção que foi ainda mais dura se a Gesta Regum
Anglorum, de Guilherme de Malmesbury, for digna de crédito ao relatar que o
polêmico pacto foi selado com Pascoal segurando a hóstia e o cálice, dizendo:
“este corpo do Senhor, o qual mantém a sacrossanta igreja (...), damos a ti, carís-
simo filho, para a remissão de teus pecados e a conservação da paz firmada e da
verdadeira amizade entre mim e ti, entre o reino e o sacerdócio”.78
Por esta razão aquela promessa foi obstinadamente considerada invio-
lável pelo próprio papa. Ao regressar para a Germânia, o imperador levou
consigo a certeza de que deixava para trás grande parte da Cúria romana
imobilizada, privada de opções que não a manutenção da fidelidade. Afinal,
todos que subscreveram a promissio estavam atados à palavra de “não exco-
mungar ou perturbar o rei quanto às investiduras de episcopados e abadias”. E
os nomes eram muitos: Pedro, cardeal bispo do Porto; Cêncio, cardeal bispo da
Sabina; Roberto, cardeal de Santo Eusébio; Bonifácio, cardeal de São Marcos;
Anastácio, cardeal de São Clemente; Gregório, cardeal dos apóstolos Pedro e
Paulo; Gregório, cardeal de São Crisógono; João, cardeal de Santa Pudência-
na; Riso, cardeal de São Lourenço; Rainério, cardeal dos Santos Marcelino e
Pedro; Vitálio, cardeal de Santa Balbina; Teuzo, cardeal de São Marcos; Tebal-
do, cardeal de João e Paulo; João, decano da Escola Grega; Leão, decano de
São Vitálio; Albo, decano dos santos Sérgio e Baco. Os primeiros setes nomes
eram de personagens graúdos do papado, figuras-chave de vários privilégios e
atos da chancelaria apostólica.79 A lista reunia a maior parte dos responsáveis
diretos pela identidade do governo pontifício. Todos afundavam no charco de
impotência criado pelo juramento ao monarca. A Igreja romana enfrentava
uma gravíssima crise de legitimidade.

78
Hoc dominicum corpus, quod sacrossanta tenet ecclesia, natum ex Maria virgine, elevatum in cruce
pro redemptione humani generis, damus tibi, fili carissime, in remissionem peccatorum tuorum et
in conservationem confirmandae pacis et verae amicitiae inter me et te et regnum et sacerdotium.
GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 658; CONFIRMATIO PACIS INTER
APOSTOLICUM ET IMPERATOREM. MGH LL 2: 73.
79
GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 656-58; CONVENTIO SECUNDA
VI EXTORTA. MGH LL 2: 71-72; CHRONICON CASINENSE. MGH SS 7: 782; ANNALES ROMANI. MGH
SS 5: 476; SIGEBERT DE GEMBLOUX. Chronica. MGH SS 6: 373-374. JL: 702-703.
268 coLunas de são pedro

5.3. Fraqueza do papa, fortaleza do Papado

O papa fraquejou. E sua fraqueza colocou em risco toda a eclesiologia


arduamente construída desde os tempos de Leão IX. O texto do Privilegium
Paschalis II fez esvaecer a “correta ordem do mundo” desenhada pela In No-
mine Domini e pelo Dictatus Papae. Ao menos é esta a imagem que os his-
toriadores nos têm transmitido desde o século XIX. Seus contornos estavam
traçados em fins da década de 1850, quando a Die Geschichte der Stadt Rome
im Mittelalter, do protestante alemão Ferdinand Gregorovius, veio a público.
A obra tentou medir a crise de 1111 por meio de uma comparação tentadora,
confrontando os eventos protagonizados por Henrique V com a célebre cena
de seu pai ajoelhado-se perante Gregório VII e suplicando a absolvição por
investir eclesiásticos em suas funções: “os excessos cometidos em Canossa en-
contraram seu reverso em Roma”. De acordo com Gregorovius (4/2: 347, 349),
a amplitude do desastre vivido pela Sé de Roma ganharia em nitidez quando
questionarmos o que teria feito um grande líder, um homem excepcional: “é
interessante imaginar Gregório VII no lugar de Pascoal e nos perguntar se o papa
heroico de outrora teria permanecido imóvel no presente caso”.
Em 1905, ao compor o oitavo volume da colossal coletânea The Lives of
the Popes in the Middle Ages, o católico Horace K. Mann (8: 62) retocou com
prosa envolvente a perspectiva de Gregorovius ao descrever a “fraqueza papal”
como a causa da “tempestade de indignação entre aqueles que, desde os dias de
Gregório VII, trabalharam e sofreram pela reforma da Igreja”. Um passo a mais
era dado na mesma direção: Pascoal não apenas carecia do brio e do heroísmo
esperados de um papa gregoriano, como tinha ameaçado a continuidade de
todo o “projeto reformador romano”.
Dois anos depois, persistindo na combinação entre personalismos e fa-
tos políticos, Bernard Monod trouxe à baila seu útil Essai sur les Rapports de
Paschal II avec Philippe I (1099-1108). A obra parecia ter vindo redimir o papa.
Examinando os rumos seguidos pela questão das investiduras na Gália, ela
trouxe uma conclusão que destoava da implacável opinião partilhada pelos
estudiosos até então: “a harmonia, aparente ou real entre Pascoal II e Felipe
I (...) [não exigiu ao primeiro] sacrificar os princípios essenciais da reforma”
(MONOD, 1907: 135). Porém, a afirmação qualificava o governo pascaliano
tomando por base o período em que ele sustentou firmemente a proibição
à investidura pelos laicos, sendo acatado pelos reis da Inglaterra, França e
Hungria. Assim, que riscos de violação “dos princípios da reforma” poderiam
existir neste contexto? Que ação pontifícia poderia ter criado a necessidade
de tal verificação? Monod cedeu a uma preocupação teleológica e avaliou as
ações pascalianas à luz de algo que ainda ocorreria: buscou redimi-lo daquele
“grande crime” que seria cometido (Ver ainda: CANTARELLA, 1982: 30-33).
Leandro duarte rust 269

No momento de redigir a conclusão, o autor deixou escapar seu propó-


sito: absolver o pontificado de Pascoal, mais do que compreendê-lo em sua
historicidade. Este “espírito da obra monodiana” parece ter envolvido André
Lesort (1908: 209) quando ele a resenhou para a Bibliothèque de l’École des
Chartes: “os historiadores geralmente estão de acordo em representar Pascoal
como pontífice tímido e indeciso, incapaz de continuar a obra reformadora de
Gregório e Urbano (...) Bernard Monod nos faz ver, ao contrário, como o continu-
ador preservou a mesma obra ”. Estavam aí, dados por inteiro, os fundamentos
da visão proposta por Augustin Fliche e sua incontida inclinação apologética
no La Réforme Grégorienne et la La Reconquête Chrétienne, de 1940.
Em 1958, Norman Cantor buscou realinhar toda a questão. Segundo
ele, o papa era produto do monasticismo norte-peninsular, cujo extremo asce-
tismo apresentava colorações heréticas para a religião institucionalizada. Era,
portanto, “um alto fanático gregoriano que violentamente se opôs a qualquer
interferência de laicos na Igreja” e cujo pensamento foi dominado pela visão
mística da Igreja como sponsa Christi (CANTOR, 1958: 122-123). O “austero
velho monge que se tornou papa em 1099” passava a figurar como herdeiro
direto de Gregório, seu sucessor na compreensão mística das relações entre
“Estado e Igreja”. Se houve algum desvio ou ruptura, se algo foi perdido pelo
caminho da história, isso ocorreu no governo de Urbano II. Cantor é um dos
poucos a enxergar no privilégio de 1111 não uma mera extorsão, mas o fru-
to de inclinações reformadoras radicais: aquele polêmico “escrito” teria sido
a obra de um convicto ultra-gregoriano, a materialização do ardente desejo
de viver uma pobreza revolucionária. Todavia, esta interpretação altera o de-
senlace historiográfico vigente? Não, ela apenas o torna ainda mais trágico:
quer tenha sido por uma imperdoável fraqueza ou um excepcional ascetismo,
Pascoal tornou a “reforma gregoriana” irrealizável, sobretudo ao abrir mão da-
quel princípio que desde 1050 custava tão caro à Sé Romana: a “superioridade
eclesiástica em todos os assuntos cristãos”.
Avaliação semelhante pode ser estendida para a linha de compreensão
proposta por Glauco Cantarella em Ecclesiologia e Politica nel Papato di Pasquale
II, estudo de 1982. Pascoal, diz Cantarella, governou guiado por um “modelo
binário” de entendimento das relações entre o regnum e o sacerdotium. Não era
um líder hierocrático, não almejava a teocracia sacerdotal. Ele era guiado pela
visão do papado e do Império como poderes distintos, mas ambíguos: cada um
estava designado por vontade celestial a conduzir um dos dois domínios dos
assuntos humanos (o das potências espirituais e o das questões terrenas). Do-
mínios curvados pela imperfeição da vida a uma convivência tortuosa, confusa.
No entanto, embora não seguisse uma linha política “propriamente gregoriana”,
este modelo de ideias restringia o papel régio de mediador entre clérigos e laicos
270 coLunas de são pedro

(mediator clerici et laicos). Como Gregório VII, Pascoal fora um reformador zelo-
so e a visão de monarcas transmitindo poderes pastorais era incompatível com
sua espiritualidade. Logo, reconhecer ao imperador a prerrogativa de investir
bispos e abades, como fez o privilégio “herético” de 1111, era um agudo revés,
um fracasso crítico, mesmo para ele, já que contradizia os ideais de liberdade
eclesiástica. Novamente eis a ideia-força da historiografia: o governo do ex-
monge de Cluny expôs a eclesiologia romana ao risco de um verdadeiro colapso,
que a reverteria para características pré-1046 (CANTARELLA, 1982: 33-65).
Dentre todas as perspectivas analíticas por nós conhecidas, uma levou
ao extremo o esforço para extrair as consequências desta opinião comum dos
historiadores. Em 1966, Peter R. McKeon propôs o seguinte ângulo de estu-
dos: a crise instaurada pela concessão do privilégio das investiduras a Hen-
rique V incidiu diretamente sobre as bases ideológicas da autoridade papal.
A veemência dos protestos, a amplitude devastadora das críticas e, em espe-
cial, as reações de condenação a Pascoal demonstravam que o pontífice não
era imune a julgamentos. Vistas em conjunto, segundo McKeon (1966: 3-12),
estas ações delinearam um mesmo padrão lógico: o primado petrino nada
podia perante a acusação de “crime de heresia” e os atos do papa incrimina-
do eram matéria de arbítrio do conjunto da Igreja. Pascoal protagonizou um
precedente histórico da existência de uma legítima autoridade cristã superior
à do sumo pontífice. Esta interpretação, reforçada anos depois por Uta-Renate
Blumenthal (1978a: 82-98; 1978b: 67-92), caracteriza os episódios de 1111
como o estopim para a ideia matricial que séculos depois formaria o espírito
do conciliarismo: a tese de que o conjunto da Igreja reunido em concílio era
superior aos papas. A controversa concessão pascaliana teria ido muito além
de impedir a perpetuação da reforma papal: ela fez vacilar o multissecular
preceito do bispo romano como instância máxima e inexcedível para a tomada
de decisões sobre a vida cristã (Ver ainda: CANTARELLA, 1982: 65-91).
Será mesmo?
As mobilizações para a condenação do privilégio “herético” ocorreram
no concílio romano reunido pelo próprio papa em 18 de março de 1112. As
deliberações ocorridas aí resultaram no repúdio oficial àquele documento,
conforme registram Ekkehardo de Aura e Guilherme de Malmesbury:

Aquele privilégio, que não é um privilégio, mas verdadeiramente deve ser


chamado de “pravilegium”, extorquido do senhor papa Pascoal para a li-
bertação dos prisioneiros da igreja e através da violência do rei Henrique;
todos nós reunidos neste santo concílio excomungamos completamente,
condenamos e afirmamos ser nulo pela censura canônica e pela autorida-
de eclesiástica do julgamento do Espírito Santo e [decretamos] que não
Leandro duarte rust 271

tenha autoridade e eficácia alguma. Por esta razão está condenado, pois
o que está contido neste privilégio, isto é, que o eleito canonicamente não
seja consagrado por ninguém a não ser que primeiramente seja investido
pelo rei, é contra o Espírito Santo e o ensinamento canônico.80

A aprovação desta medida significava que os padres conciliares encon-


traram um meio de contornar um impasse aparentemente insolúvel: permitir
ao papa responsabilizar Henrique V por um dos mais graves crimes já co-
metidos contra a fé cristã, sem, entretanto, condená-lo formalmente por isso.
Afinal, a promessa feita ao imperador, de não sentenciá-lo, era considerada ato
irretocável por Pascoal II. Porém, o concílio pressionou: como não repreender
Henrique? Como separar esse faltoso de sua transgressão? Como sentenciar
tão gravemente uma infração e deixar seu promotor incólume, como inocente?
Era necessário contemplar igualmente o sumo pontífice e o concílio. A Historia
Pontificum et Comitum Engolismensium informa-nos que a solução foi alcan-
çada quando os presentes, seguindo os conselhos de Gerardo, arcebispo de
Angoulême e legado papal, chegaram à formulação da seguinte profissão de fé:

Acolho toda a Sagrada Escritura do velho e do novo testamentos, a lei


escrita por Moisés e pelos santos profetas, acolho os quatro evangelhos,
as sete epístolas canônicas do glorioso bem-aventurado mestre apóstolo
Paulo, os santos cânones dos apóstolos, os quatro concílios universais
como os quatro evangelhos, Niceia, Éfeso, Constantinopla e Calcedônia,
o concílio de Antioquia, as decisões dos santos padres, os pontífices ro-
manos, e, acima de tudo, as decisões do meu senhor, o papa
Gregório VII, e do papa Urbano, de bem-aventurada memó-
ria. O que os mesmos louvaram, eu louvo; o que mantive-
ram, eu mantenho; o que confirmaram, eu confirmo; o que
condenaram, eu condeno; o que rejeitaram, eu rejeito; o que
submeteram à interdição, eu submeto; o que proibiram, eu
proíbo; em todas as coisas por completo; e nestes termos perseverarei
sempre.81 (Os grifos são nossos)

80
Privilegium illud, quod non est privilegium, sed vere debet dici pravilegium, pro liberatione captivo-
rum aecclesiae a domno Paschale papa per violentiam regis Heinrici extortum, nos omnes in hoc sancto
concilio congregati, canonica censura et aecclesiastica auctoritate judicio sancti Spiritus dampnamus
et irritum esse judicamus, et omnino ne quid auctoritatis et efficacitatis habeat, penitus excommuni-
camus; et hoc ideo dampnatum est, quia in eo privilegio continetur, quod electus canonice a nemine
consecretur, nisi prius a rege investiatur; quod est contra Spiritum sanctum et canonicam institutionem
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 246; GESTA DAMPNATIONIS PRAVILEGII. MGH Const.
1: 572; MANSI 21: 51; GUILHERME DE MALMESBURY. Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 661-662.
81
Amplector omnem divinam scripturam veteris et novi testamenti, legem a Moyse scriptam et a sanc-
tis prophetis, amplector quatuor evangelia, septem canonicas epistolas gloriosi doctoris beati Pauli
272 coLunas de são pedro

Vinte e três cardeais, doze arcebispos e cento e catorze bispos acolheram


esta profissão de fé. Entre eles estavam Bruno de Segni, João de Tusculum,
Leão de Óstia, Pedro do Porto, Gualo de Saint-Pol-de-Leon, Guy de Vienne, e o
próprio Gerardo de Angoulême. Suas adesões ao texto aprovado pessoalmente
por Pascoal indicam que a fórmula atendeu às exigências de ambos os lados,
do papa e de seus críticos. Como notou William North (2000: 199-220) a assi-
natura de Bruno de Segni, suposto líder de um partido de oposição empenhado
pela deposição do sumo pontífice, demonstra que o realinhamento da ortodo-
xia promovido em Roma restaurava uma aliança nunca efetivamente rompida.
A simplicidade do texto só realça ainda mais a engenhosidade de suas
implicações. Gregório VII e Urbano II tinham condenado a investidura laica
e ordenado a excomunhão para os que dela tomassem parte. O texto acima
transcrito operava um salto para trás no tempo: as ações de Henrique V deve-
riam ser reportadas ao passado e avaliadas à luz dos princípios estabelecidos
por aqueles papas, cuja palavra passava a sobrepujar, anulando, quaisquer
outras proferidas recentemente. Subitamente, os últimos meses, transcorridos
desde os tumultuados eventos de fevereiro de 1111, eram cortados da atenção
de todos os presentes, como se simplesmente não fizessem parte do presente
das decisões pontificas. Estavam assim convenientemente removidos e deixa-
dos em suspenso num não-tempo, em um vazio sem devir.
O concílio redesenhou a experiência coletiva do “agora”, do instante
vivido. Ele deslocou as infrações imperiais no leito do tempo e elas arrastaram
consigo o pacto assinado pela Cúria romana: para efeitos canônicos, o cativei-
ro papal e o privilégio extorquido do sucessor de Pedro não eram contempo-
râneos de Pascoal, mas de Gregório e de Urbano, que nada haviam prometido
ao imperador. A voz destes papas não foi deixada para trás em um “antes”,
seus dizeres não eram “passado”: as normas canônicas vigentes saíam de suas
bocas, não da garganta de Pascoal. O passado era re-ligado, produzindo um
efeito despersonalizador: lançado para trás dos vultos daqueles memoráveis
pontífices, Pascoal era retirado do centro das atenções e, assim, perdia-se de
vista sua participação na aparição do “privilégio herético”. A promessa pasa-
caliana foi separada de sua razão de ser: o “escrito terrível”. As duas partes

apostoli, sanctos canones apostolorum, quatuor universalia concilia sicut quatuor evangelia, Nicenum,
Ephesium, Constantinopolitanum, Calcedonense, et Antiocenum concilium, et decreta sanctorum pa-
trum Romanorum pontificum, et precipue decreta domni mei papae Gregorii VII, et beatae memoriae
papae Urbani. Quae ipsi laudaverunt laudo, quae ipsi tenuerunt teneo, que confirmaverunt confirmo,
que dampnaverunt dampno, quae repulerunt repello, quae interdixerunt interdico, ques prohibuerunt
prohibeo, in omnibus et per omnia, et in his semper perseverabo. GESTA DAMPNATIONIS PRAVILEGII.
MGH Const. 1: 571; MANSI 21: 50-51; EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 246; GUILHER-
ME DE MALMESBURY. Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 661; HISTORIA PONTIFICUM ET COMITUM
ENGOLISMENSIUM. RES: 42.
Leandro duarte rust 273

de um mesmo ato foram cortadas pela lâmina do tempo. Dissociadas, elas se


convertiam em matérias distintas, independentes: agora, era possível anular
uma e conservar a outra.
Arquitetada por um legado, esta profissão de fé reeditou uma maneira
de agir típica dos concílios pontifícios da época: ela jogou com a duração,
trapaceou com a sucessão. A autoridade petrina foi desligada de seu devir
recente e religada a outro, mais adequado e conveniente, à luz do qual Hen-
rique já estava excomungado. Logo, foi oferecida a Pascoal uma forma de
converter o imperador em alguém que se encontrava em um estado latente de
excomunhão e que uma eventual sentença nada mais faria do que oficializar
ou trazer à tona como realidade de facto. Tudo isto, sem que o bispo romano
pronunciasse uma só palavra capaz de infringir os termos de sua promessa.
Esta habilidosa manobra canônica não passou despercebida ao autor dos An-
nales Beneventani, que não se deixou levar pela perspicácia daquela fórmula:
“o papa Pascoal realizou um concílio em Roma infringindo o pacto que tinha
estabelecido com o rei e jurado no ano precedente juntamente com os cardeais,
e confirmou o decreto dos pontífices, seus predecessores, quanto a investir os
bispos na Germânia”.82 O mesmo foi assinalado por Falco de Benevento e seu
Chronicon Beneventanum: “no mês de março o papa Pascoal realizou em Roma
um sínodo no qual rompeu o pacto que havia estabelecido com o rei Henrique”.83
Seis meses depois de deixar o plenário romano daquela Quaresma de
1112, Guy, o arcebispo de Vienne, reuniu um sínodo provincial com grande
parcela do episcopado e do abaciato da Borgonha. Em 16 de setembro, três
decisões foram promulgadas:

I. Seguindo a autoridade da santa igreja romana, julgamos ser heresia a


investidura dos episcopados, das abadias e de todos os bens eclesiásticos
pela mão laica.

II. Decidimos que deve ser nulo e privado de qualquer memória bem-
aventurada aquele escrito ou privilégio que o rei Henrique violenta e
forçadamente extorquiu do senhor papa Pascoal sobre as investiduras e
o anátema contra sua pessoa.

III. Excomungamos, anatemizamos e separamos do conjunto da santa


mãe igreja Henrique, rei dos Teutônicos, que, tendo chegado a Roma

82
Paschalis papa fecit synodum Romae mense Martio, infringens pactum quod fecerat cum rege, sicut
praecedenti anno juraverat cum cardinalibus, et confirmato decreto pontificum praedecessorum suo-
rum de investiendis pontificibus Germaniae. ANNALES BENEVENTANI. MGH SS 3 : 184.
83
Mense Martio Papa Paschalis faciens Romae synodum fregit pactum, quod fecerat cum Henrico rege.
FALCO DE BENEVENTO. Chronicon Beneventanum: 03.
274 coLunas de são pedro

com uma paz dissimulada, concedido juramento ao senhor papa Pascoal


quanto à [preservação da] vida [e dos] membros deste, [e prometido
não tomar parte de qualquer] funesta captura, [bem como realizar] a
refutação das investiduras, [e] após beijar os pés, a boca e a aproximar-
se da face [do papa], com um perjúrio e sacrilégio como outro Judas,
diante do corpo de Pedro, na Sé Apostólica, traiu, capturou e raptou para
uma fortaleza este mesmo senhor papa, juntamente com os cardeais, bis-
pos, arcebispos e muitos nobres romanos, despojou-o das insígnias apos-
tólicas, indigna e desonrosamente tratou-o com escárnio, violentamente
extorquiu-lhe o mais abominável e detestável escrito; [a excomunhão
vigorará] até que [o rei] demonstre plena satisfação à igreja por todas
estas renúncias.84

Naquele mesmo dia, Guy enviou ao pontífice uma carta solicitando sua
aprovação (rogamus confirmaveritis) para as medidas decretadas com o aval
da ecclesia borgonhesa e de parte dos nobres daquela terra (et quoniam prin-
cipum terrae pars).85 Cerca de um mês depois, chegou a resposta. Os olhos do
arcebipo percorreram uma carta enviada por Roma e cujo texto, dominado por
um tom vago e isento de palavras-chave como “investiduras” ou “juramento”,
terminava dizendo “com as graças de Deus entregamos, sustentamos e confirma-
mos como válidas as [decisões] que aí foram estabelecidas”.86 Em outubro de
1112, Henrique V e o privilégio arrancado ao pontífice estavam condenados
em nome da autoridade apostólica.
Sem o envolvimento direto de Pascoal, o papado se colocou em ação e
sentenciou Henrique e o texto de seu privilégio. Afinal, o sínodo de Vienne só
pode consumar aquela condenação na medida em que atuou como braço do
poder pontifício. Aquela assembleia tomou decisões cuja eficácia e legitimida-
de dependiam por inteiro da aprovação do bispo de Roma. Seus integrantes
deliberaram sobre matérias de competência unicamente papal. Por essa razão
84
I. Investiruram episcopatuum & abbatiarum, & omnium ecclesiasticarum rerum manu laica, sanctae
Romanae ecclesiae auctoritatem sequentes, haeresim esse judicamu. / II. Scriptum illud seu privile-
gium, quod a domno Pashcali papa violenter Henricus rex de investituris, de anathemate in persona
sua, non sponte extorsit, in virtute sancti Spiritus damnamus, atque irritum esse, & nullius beatae me-
moriae judicamus fieri. / III. Henricum Teutonicorum regem, qui simulata pace Romam veniens, post
data sacramenta domno papae Paschali, vitae, membrorum, male captionis, refutationis investituram,
eumdem domnum papam in sede apostolica ante corpus beati Petri, post osculationem pedis, oris, &
faciei proditione, perjurio, & sacrilegio velut alter Judas, cum cardinalibus, & episcopis & archiepisco-
pis, & multis Romanorum nobilibus tradidit, cepit, & raptum in castra insignibus apostolicis exuit, &
indigne atque inhoneste irrisum tractavit, & ab eo nefandissimum & detestabile scriptum violenter ex-
torsit, excommunicamus, anathemizamus, & a gremio sanctae matris aecclesiae sequestramus, donec,
his omnibus abrenuntiatis, plenam satisfactionem ecclesiae exhibeat. MANSI 21: 74-75; SUGER. Vita
Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 40; HEFELE-LECLERCQ 5/1 : 535-536.
85
GUY DE VIENNE. Epistola. PL 163: 465-466.
86
Jl 6330.
Leandro duarte rust 275

trataram de obter o aval apostólico, imprescindível e insubstituível. Que o


sínodo havia empunhado uma competência que não lhe era própria, mas pon-
tifícia por princípio, era algo evidente para Raul de Saint-Trond, cuja Gesta
abbatum Trudonensium justificou aquela pela razão de que “o senhor papa não
proibiu a igreja galicana e todos os filhos da Igreja romana de se servirem das
chaves do bem-aventurado apóstolo Pedro”.87
Isto também era evidente para Ekkehardo de Aura. Desconhecedor
da carta enviada a Guy, em outubro, ou levado a ignorá-la por exaltar os
feitos de Henrique V, o cronista imperial negou a legalidade da excomu-
nhão lavrada em Vienne considerando-a ato nulo, decisão sem valor. Por
não ter sido decretada pelo papa em pessoa, teria sido estabelecida fora do
fórum legítimo: “porque se sabia que o arcebispo de Vienne havia estabelecido
o anátema contra o imperador estando isento de toda autoridade eclesiástica
e apostólica, entrementes, [sua decisão] muito pouco pôde vigorar”.88 Nosso
cronista valia-se da falta de um envolvimento pessoal do papa para carac-
terizar as decisões do concílio como alheias à autoridade apostólica. Sem
o pronunciamento de Pascoal, a sentença não passava de uma pretensão
aberrante.
Divididos pela lealdade rendida a cada adversário, Ekkehardo e Raul
partilharam a mesma premissa: as ações movidas contra a coroa germânica
não poderiam ser portadoras de valor legal, exceto se envolvidas pela palavra
pontifícia. Em nenhum momento perdia-se de vista o fato de que, dentro ou
longe do Lácio, a sentença de excomunhão reportava a um único poder deci-
sório, o petrino-romano. Seu casulo natural era a voz do papa.
Poder que nos anos seguintes foi acionado por outro legado: Cono, car-
deal bispo de Palestrina. Sob sua liderança, a excomunhão do jovem rei foi
confirmada nos sínodos de Beauvais (dezembro de 1114), Reims (março de
1115), Colônia (abril de 1115) e Châlons-sur-Marne (julho de 1115).89 Em se-
tembro de 1115, foi a vez do cardeal Dietrich, legado na Panônia – atual Hun-
gria –, renovar a condenação, acirrando os ânimos da mais recente sublevação
saxônica contra a coroa dos sálios.90 A exemplo do ocorrido com o arcebispo
de Vienne, a documentação apresenta os legados mobilizados para assegurar

87
Dominus vero papa quod in reconciliatione imperatori promiserat non violavit, sed aecclesiam Gal-
licanam omnesque filios Romanae aecclesiae pro injuria summo pontifici facta clavibus beati Petri
apostoli uti non prohibuit. RAUL DE SAINT-TROND. Gesta abbatum Trudonensium. MGH SS 10: 298.
88
Ex hac occasione Viennensis archiepiscopus cum suis cumplicibus novum scisma nostras in partes
seminares et gladium anathematis in imperatorem molitur extendere, sed quia coeptum est apostolica
indeque omni aecclesiastica auctoritate videbatur carere, parum interim potuit vigere. EKKEHARDO
DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 246.
89
MANSI 21: 121-126; 129-132; 135; 137; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 548-550.
90
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 249.
276 coLunas de são pedro

a chancela pessoal do papa para suas condenações. Só assim elas adquiririam


validade e se tornariam reais. Ekkehardo de Aura descreve esta necessidade
de obter uma aprovação inequívoca por parte de Pascoal. O abade narra o
momento em que o papa reconheceu formalmente a legitimidade das ações
legatinas. Segundo seu Chronicon, na quinta sessão dos trabalhos conciliares
de 1116, Cono teria interpelado Pascoal em voz alta:

Senhor pai, se apraz a tua majestade, se fui verdadeiramente teu legado


e se as medidas que realizei por ti merecem ser consideradas válidas,
que [sejam] proclamadas por tua boca aos ouvidos dos presentes neste
santo concílio e corroborada minha legação por tua autoridade, para que
saibam todos, posto que tu me enviaste [como legado].91

Ao que teria obtido a seguinte resposta do papa:

Certamente foste enviado como nosso legado a latere, e o que quer que
tu e o restante de nossos irmãos cardeias bispos, legados de Deus e dos
apóstolos Pedro e Paulo, tenham feito, aprovado e confirmado por sua sé
e por nossa autoridade apostólica, eu igualmente aprovo e confirmo, e o
que quer que seja que tenham condenado, eu condeno.92

A narrativa nos reporta a uma aprovação canônica concebida como rea-


lização vocal e gestual. Somente pela palavra pontifícia, pela viva voz do papa,
o texto do “privilégio herético” poderia ser abolido, convertido em página ma-
lévola. Porém, para isso a palavra apostólica não poderia desautorizar-se, des-
dizer-se. Eram necessárias outras vozes para operar o erro, para intervir sobre
ele de modo a desvinculá-lo da pessoa do sucessor de Pedro. Se o diálogo entre
Pascoal e Cono ocorreu ou não, se há aí alguma veracidade, é uma questão que
nos importa pouco. A relevância deste registro está no fato dele apontar para
um aspecto de primeira grandeza no exercício do poder pontifício: as confir-
mações pessoais atribuídas a Pascoal ilustram que a plenitude de julgamento
sobre certas matérias – como a excomunhão imperial – residia apenas no papa.
As demais instâncias decisórias eram provisionais e reversíveis.
Pascoal faleceu em janeiro de 1118. Àquela altura dos acontecimentos,

91
Domine pater, si tuae placet maiestati, si vere tuus fui legatus et quae feci tibi placent esse rata, in
auribus sancti huius presentis concilii ore tuo edicito, et legationem meam tuam auctoritate corrobora,
ut sciant omnes, quia tu me misisti. EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 249.
92
Vere legatus ex latere nostro missus fuisti; et quicquid tu ceterique fratres nostri cardinales episcopi,
legati Dei et apostolorum Petri et Pauli, huius sedis et nostra auctoritate fecerunt, probaverunt, confir-
maverunt, ego quoque probo et confirmo, quicquid autem dampnaverunt, dampno. EKKEHARDO DE
AURA. Chronicon. MGH SS 6: 251. MANSI 21: 147-148.
Leandro duarte rust 277

Henrique V acumulava mais excomunhões decretadas pelo papado no espaço


de vida de um mesmo pontífice do que seu pai, célebre adversário de Gregório
VII. A promessa do papa de não sentenciá-lo, todavia, estava intacta. Pascoal
nunca se declarou contra ela. Isto foi possível porque as iniciativas de oposição
seguiam o propósito de preservar a primazia apostólico-romana, conservá-la
como esfera suprema de autoridade. Argumentos favoráveis à tese da subor-
dinação do papa ao julgamento da igreja podem, sem dúvida, ser encontrados
em diversas cartas do período, mas não nas realizações conciliares ocorridas
durante a crise. Os plenários que deliberaram sobre o Privilegium Paschalis não
foram conduzidos como se detivessem alguma autoridade capaz de se sobre-
por às vozes dos “vigários do príncipe dos apóstolos”. Suas decisões careciam
de uma confirmação que só o papa podia oferecer. Elas corroboravam o prin-
cípio de que certas competências decisórias eram exclusivamente romanas e
não poderiam ser encontradas em nenhum outro lugar, nem mesmo no corpo
eclesiástico reunido em concílio.
Entre 1112 e 1116 nenhum ato foi estabelecido para levar Pascoal II
a responder pela “heresia” que lhe foi amplamente atribuída. O “corpo da
igreja” então reunido poupou o ministério romano e salvaguardou a promessa
papal de não participar pessoalmente da condenação daquele privilégio, cujo
texto abrigava um nefasto “crime de idolatria”. Em nossa opinião, é inadequa-
do falar em “precedente concreto de atividade conciliarista” (McKEON, 1966a:
12), quando em tais concílios inexistiu alguma forma de soberania capaz de
prescindir do suporte papal e de reclamar o julgamento do pontífice (TIER-
NEY, 1998). O que encontramos neste episódio da história conciliar foram
ações realizadas por integrantes das elites regionais ocidentais para tutelar o
papado e proteger o papa.
Porém, a ideia medular que McKeon vestiu com roupagem conciliarista
é acertada. Durante a grave crise que se abateu sobre a autoridade apostólica,
despontaram múltiplos pontos de acionamento de um poder incomum no seio
da Cristandade senhorial. Todos, para McKeon, estavam localizados fora dos
domínios do primado petrino. Neste sentido, sua proposta foi muito coeren-
te: se estes focos de ação decisória eram exteriores ao raio de obediência “ao
chefe da Igreja”, era apropriado que os historiadores os situassem na longa
tradição de oposição sintetizada no século XV pela teoria conciliarista. Mas,
como vimos, estes múltiplos pontos de poder – os concílios onde ocorreu a
condenação do “escrito papal” – foram potencializados pela própria autorida-
de apostólica e revestidos pelo próprio primado petrino. No início do século
XII, o exercício do poder pontifício estava investido de grande capacidade para
tensionar-se e ser conduzido por diferentes núcleos de poder.
Nos últimos cinquenta anos, o papado tinha angariado diversos partíci-
278 coLunas de são pedro

pes políticos, recrutando aliados – como os legados – capazes de sustentar a


expansão de seus espaços de atuação para além do Lácio. Com isto, ele passou
a abrigar uma heterogênea coexistência de colaborações decisórias, unidas
pela vinculação direta à autoridade apostólica. O poder pontifício compor-
tava margens de descentralização. Se por um lado, elas intensificavam suas
tensões internas ao povoá-lo com vozes destoantes e autônomas, por outro,
elas o fortaleciam como uma grande obra sustentada por diferentes pólos de
lideranças eclesiais. Por esta razão, se o papa Pascoal II foi um regente fraco e
débil, como sugere grande parte da historiografia, o papado governado por ele
era uma fortaleza constituída por sólidas colunas regionais, não por uma úni-
ca viga mestra. Eis uma das razões históricas para a vitória sobre o privilégio
arrancado por Henrique V: contra a investida do monarca sobre o que parecia
ser o pilar de sustentação do poder pontifício, o papado reagiu com a ativação
das colunas regionais de poder que o amparavam.

5.4. Ubi Papa, ibi Roma

Signo da dilatação do campo instituínte do poder pontifício, a voz papal


expressava a unidade da ecclesia cristã. A ela círculos episcopais e monásticos
de diferentes regiões da Cristandade atribuíam a função de redizê-los e permi-
tir-lhes reconhecer-se. Desde meados do século XI, cresceu o número dos que
se agruparam em torno dela e a tomavam como veículo de conscientização de
uma identidade eclesial cristã. Por violar esta característica, a bula arrancada
ao papa Pascoal II em abril de 1111 alcançou enorme amplitude, com reper-
cussões tão virulentas a ponto de serem apontadas por Peter McKeon como os
primeiros raios conciliaristas nos horizontes do pensamento político ocidental.
O privilégio pascaliano interrompeu a trajetória de crescimento das margens
de participação regionais nas falas pontifícias. Para os círculos de aliados do
papado, a elaboração daquele “escrito” pôs em risco a capacidade agregadora
até então desempenhada pela vocalidade pontifical. Aquele texto ameaçou
hegemonias eclesiásticas quando reconheceu a um rei a prerrogativa de dispor
legitimamente dos postos do episcopado. O privilégio arrancado por Henrique
V tornou-se obstáculo para muitos poderosos regionais.
Se o conteúdo daquela bula papal vingasse, privilégios, poderes e in-
fluências locais acumuladas pela cooperação com a Sé de Roma poderiam
ser perdidos. Este era o caso da Igreja de Lyon. Nos anos 1070, Gregório VII
conferiu o primado sobre toda a Gália ao arcebispo Gebuin e a todos os seus
sucessores.93 A decisão transferia para Lyon o posto reclamado há séculos por

93
GREGÓRIO VII. Reg. 6: 34. MGH, Epp., sel. 2: 447-449.
Leandro duarte rust 279

Reims e Sens, que se serviam da colaboração com o poder régio para figurar
como primaz. Ao catapultar um novo líder, a medida gregoriana desqualificou
um primado ancestral e que contava com o reconhecimento de um papa, João
VIII, que assegurou o posto ao arcebispo de Sens, Ansegísio. Por ocasião da co-
roação imperial de Carlos, o Calvo, e por solicitação desse rei, João entregou a
Ansegísio as cartas de “vigário apostólico” e “primado da Galia e da Germânia”
no dia 2 de janeiro de 876. Apesar dos protestos de Hincmar, bispo de Reims
redator do De Jure Metropolitanorum, o privilégio foi confirmado pelo impera-
dor Carlos, no concílio de Ponthion.94 Tudo isto mudou no século XI, quando
o papado se tornou fiador do novo posto de Lyon. Entretanto, quando reco-
nheceu a obediência do episcopado a um monarca, a bula pascaliana de abril
de 1111 criou um precedente capaz de ameaçar a recente liderança da igreja
lyonesa (McKEON, 1969: 3-8). Por trás dos protestos disparados pelas cartas
do arcebispo Josserand, havia mais do que zelo reformador: sua indignação
perante o “texto herético” expressava o temor de perder um dos alicerces de
sua posição eclesiástica. O metropolitano de Lyon sentiu na pele a necessidade
de recompor a função coesiva e fundadora da vocalidade apostólica. Era vital
restaurá-la e fortalecê-la, mais do que condená-la ou superá-la.
Foi a esta razão que responderam as iniciativas conciliares do período
de 1112 a 1116. Suas ações estavam unidas pela lógica de participar das deci-
sões pontifícias para preservá-las. Outro argumento favorável à interpretação
dos concílios como espaços de união ao papado, está na constatação de que
as sentenças aí estabelecidas tinham as marcas da temporalidade partilhada
nas missões legatinas. Aquelas assembleias integraram o modo tipicamente
papal de exercer o poder. O estratagema criado pela profissão de fé de 1112
já havia sido mobilizado seis anos antes no concílio de Guastalla: tratava-se
de jogar com a reversibilidade do tempo. Os concílios papais constituíam um
grande acervo de experiências sobre como dispor do “antes” e do “depois”,
como re-temporalizar as ações humanas de modo a definir uma nova dosagem
de implicações, compromissos e punições canônicas.
O exercício do poder papal permitia familiarizar-se com a habilidade de
reconstruir o raio das ações jurídicas, de reescrever os significados de certas
transgressões. Os sentidos assumidos por certas faltas eram profundamente
remexidos a partir da capacidade de ligar ou desligar o passado, precisamente
como fizera a profissão romana de fé. Nas primeiras décadas do século XII o
direito canônico era matéria-prima que as experiências de tempo moldavam
ou mesmo reinventavam. Neste sentido, não nos parece uma simples inflexão
apologética que a Historia Pontificum et Comitum Engolismensium tenha indi-

94
MANSI 17: 307-310. Ver também: HINCMAR. Vita Remigii Episcopi. MGH SS rer. Merov 3: 254-341.
280 coLunas de são pedro

cado o arcebispo e legado Gerardo de Angoulême como mentor da fórmula


que salvou o governo pascalino: ela parecia resultar das experiências típicas
de um legado. Seu texto continha um modo de proceder característico dos
homens a serviço da sancta romana ecclesia. Portanto, todos que subscreveram
ou simplesmente aderiram àquela profissão de fé tomaram partido de uma
intervenção política propriamente pontifícia.
A crise de 1111-1116 pode ser compreendida, igualmente, como um
choque entre o escriturário e a vocalidade. A corte imperial armou-se com o
primeiro. Fez do texto uma armadilha que deveria capturar a voz papal para
congelá-la, fixá-la e eternizar o gesto de uma concessão controversa. Toda-
via, a vocalidade pontifícia não se esgotava nos dizeres proferidos pelo papa.
Tais dizeres eram imprescindíveis, insubstituíveis, não duvidemos disso. Sem
eles as decisões do papado simplesmente não tomavam forma, se dispersando
como fala sem substância, clamor sem valor. Porém, a fala papal era aberta,
permeável, mediadora e, especialmente, polifônica. Ela se enriquecia com ou-
tras vozes, reunindo-as para amplificar-se, revigorar-se. Ela alcançava valor
inigualável como fonte de identidade e de uma autenticidade que os textos
transmitiam ou recebiam como depositários. A escrita apontava e revelava as
razões da vida, mas era a voz que provava e dava acesso à verdade contida na
existência dos seres. As páginas do privilégio de 1111, cujas cópias Henrique
V se encarregou de disseminar pelos reinos da Cristandade ocidental, eram
vulneráveis frente às vozes e aos gestos pessoais recobertos pela autoridade
apostólica.
O domínio da vocalidade sobre o textual consiste em um dos traços mais
visíveis do regime de poder sustentado pelo papado. Regime que reproduzia
fielmente características da representação do tempo. A temporalidade presente
nos decretos conciliares da época era um campo presencial, um contínuo jogo
de interrelações sociais tecidas com as coisas do mundo. Reproduzido coletiva-
mente como experiências de duração, não como algum fluxo inanimado de nú-
meros, o tempo era vivido como arena de reconstrução de soluções práticas, de
negociações jurídicas. Por meio dele, diversas ações eram habilmente integradas
ao horizonte do vivido conforme os valores visados pelos homens que agiam em
nome do papa. As experiências temporais disseminavam uma lógica de convívio
sócio-político calcada na integração e na participação, como vimos nas primeiras
páginas deste capítulo. De modo idêntico, o exercício do poder papal pressupu-
nha participação e cooperação. Sua prática reforçava solidariedades, estreitava
dependências, potencializando relações que apontavam escolhas e energias co-
letivas para a mesma direção: rumo à autoridade apostólica.
Por fornecer os modos como os agentes históricos tecem as relações com
o “outro” e o “mundo”, uma representação de tempo torna-se, para o historiador
Leandro duarte rust 281

das instituições, uma carta náutica das relações de poder. Este princípio conceitual
projeta a perspectiva que sustentou todo este capítulo: assim como os integrantes
do papado utilizavam referências cronológicas comuns à sociedade senhorial para
reproduzir interesses e implantar propósitos singulares, o poder decisório papal
concretizava-se por meio de um amplo rol de alianças de poderes regionais.
A crise hasteada em 1111 trouxe à tona a dependência do bispo romano
em relação aos pólos regionais de poder estabelecidos e mantidos por ele pró-
prio. As sentenças de excomunhão lançadas contra o imperador não ocorreram
em Roma. Seus efetivos lugares de acionamento iam muito além da urbe ro-
mana. Foi através dos espaços de ação suprarregionais abertos pelas atuações
legatinas que o papado pôde contornar a imobilidade e a inação imposta pela
coroa imperial. Contudo – não percamos isto de vista – tais espaços não eram
autônomos, sequer eram capazes de legitimar a si mesmos. Eles integravam e
eram sustentados pelo papado à medida que atrelavam suas decisões à voz da
autoridade petrina, às palavras do bispo de Roma. Os focos de reação conciliar
ao privilegium Paschalis II surgiram e se fortaleceram no interior do próprio po-
der pontifício, não estavam fora ou contra ele, como acreditou Peter McKeon.
Descentralidade. Mobilidade. Permeabilidade. Eram estas algumas das
características basilares da cadeia de poder decisório diretamente ligado aos
pontífices nas décadas próximas ao ano 1100. Portanto, sua estruturação não
correspondia à formação de uma eclesiologia regida por um único núcleo, um
centro de forças institucionais centrípetas. Neste sentido é necessário rever a
perspectiva analítica que faz constar o desenvolvimento da Cúria romana como
processo que ditou o tom na história do papado no século XII. É preciso revisitar
a visão que fez da “institucionalização do governo papal” sinônimo do processo
de montagem do maquinário administrativo de uma suntuosa monarquia (LE
BRAS, 1959: 52-178; MORGHEN, 1962: 105-177; BARRACLOUGH, 1972: 109-
119; TOUBERT, 1973: 1038-1082; SCHIMMELPFENNIG, 1992: 130-169; MOR-
RIS, 2001: 2; AZZARA, 2006: 47-82).
Esta perspectiva sintetiza um dos mais encorpados veios historiográficos
criados pelo século XIX. Descrever o percurso pelo qual a Sé Romana rompeu os
acanhados limites de uma igreja local e tornou-se uma corte majestosa e dispen-
diosa, inchada a cada pontificado por aglomerações de notários e funções, se-
ções e tributos, é algo que tem magnetizado a atenção de especialistas há mais
de um século. Para os estudiosos, a máxima expressão desta institucionalização
consistiu na criação dos “Estados Papais”, a longa faixa de territórios que se es-
tendia da Úmbria às franjas da Campânia romana e sobre a qual os sucessores
de Pedro reinaram com apetite político inteiramente mundano.
A formação dos Estados Papais se firmou como tema privilegiado para
investigar a complexa transformação da Igreja romana na cúpula palaciana de
282 coLunas de são pedro

um governo centralista. O reinado temporal dos papas no interior da penín-


sula italiana se fixou no olhar de eruditos e historiadores como um conjun-
to de ações que retratava a concreta incidência social desta peculiar “teocra-
cia ocidental” (PACAUT, 1957: 63-136). A cada década, mais e mais autores
consideravam-nas práticas únicas, expressões incomparáveis da realidade do
poder pontifício. Debruçar-se sobre a “História dos Estados Papais” passou a
ser visto como a escolha mais adequada para quem almejava decifrar a real
importância política do Trono de Pedro, medindo sua capacidade de converter
a pomposa retórica das bulas apostólicas em palpáveis relações de obediência.
É correto dizer que o estudo dos Estados Pontifícios tornou-se um tema
que tem ditado a direção a ser seguida na compreensão do lugar do Papado
na História, sobretudo, na chamada Civilização Medieval. Porém, o estabele-
cimento desta equação historiográfica deve muito a um personagem pouco
conhecido nos dias de hoje, praticamente esquecido: o teólogo John Miley,
autor da primeira obra dedicada à história “do domínio territorial da Santa
Sé”, a primeira a atrair o olhar dos estudiosos acadêmicos.
Estudo de fôlego, The History of Papal States foi publicada em três vo-
lumes ao longo dos anos de 1849 e 1850. O primeiro deles destaca duas cen-
tenas de páginas para uma descrição pormenorizada daquilo que Miley con-
cebeu como o “território dos Estados Papais”. Trata-se da apresentação da
suposta territorialidade coberta pelas leis e tributos vinculados ao Papado. A
primeira parte da obra é, portanto, dominada pela preocupação de apreender
os substratos empíricos da vida institucional papal, isto é, de verter para o
texto toda a geografia que abrigava o governo eclesiástico romano. O teólogo
esforçou-se ao máximo para arrolar um imenso conjunto de dados climáticos,
geológicos, topográficos e hidrográficos, além de um extensivo mapeamen-
to das principais vias de comunicação e dos maiores sítios populacionais do
centro peninsular. Miley convida ao leitor a percorrer a paisagem ocupada
pelo poder pontifício, compondo um texto aparentemente inspirado em uma
literatura de grande circulação em todo o século XIX: os guias de viagens e os
relatos dos naturalistas.
A composição deste minucioso panorama físico resultava da influência
de outro livro: os Études Statistiques sur Rome et la Partie Occidentale des États
Romains, cuja leitura parece ter marcado o entendimento de Miley. O invejável
número de edições e re-impressões rapidamente alcançado pela obra refletia
o imenso prestígio atribuído ao seu autor: os Études carregavam a assinatura
do conde francês Philippe Camille de Tournon, prefeito da Roma entre 1809
e 1814.
Homem de confiança de Napoleão Bonaparte, o conde foi encarregado
não apenas da administração da Urbe, mas de escavações arqueológicas e de
Leandro duarte rust 283

obras para conservação patrimonial, ambas pessoalmente ordenadas pelo im-


perador. Policiado pela necessidade de prestar contas ao seu senhor, Tournon
voltou-se para Roma com propósitos pragmáticos, vasculhou-a com olhos de
interventor à busca de instrumentos para o governo do qual foi incumbido.
Em decorrência disto, a composição dos Études foi guiada pelo desejo de ser “o
primeiro a olhar para a cidade como uma cidade contemporânea e não como um
monumento do passado” (PATRIARCA, 1999: 741). Seu olhar estatístico esta-
va dominado por preocupações de administrador. Camille de Tournon (1855:
v-vi) se pôs a “recolher registros, reunir documentos, consultar os arquivos das
antigas administrações” movido pelo propósito declarado de conhecer melhor
“a agricultura, a indústria, o comércio dos Romanos, seu modo de administrar,
seu sistema judiciário, seus estabelecimentos públicos”.
Esta visão foi o modelo interpretativo seguido por John Miley, cuja obra,
portanto, teve como tema central o aparecimento histórico de uma territoria-
lidade anacrônica para os tempos medievais, definida sob o ponto de vista da
administração napoleônica. Acolhendo a perspectiva de quem enxergou Roma
como um fenômeno contemporâneo e adotou, sem meias palavras, a tarefa de
superar sua dimensão histórica para melhor administrá-la, nosso autor com-
pôs um estudo que transpirou a cada página a busca por mapear “o preciso
instante no qual os papas se tornaram soberanos” (MILEY, 1850: lvi). Guiada
por este norte, a obra entra efetivamente em curso de realização.
Vencida a etapa preliminar de fazer ver o transfundo geográfico do go-
verno papal, The History of Papal States inicia sua narrativa com um típico fio
condutor: uma noção linear de tempo histórico, unida como uma cascata de
biografias de “grandes líderes”. O desenrolar textual estabelece certas marca-
ções temáticas que qualquer leitor da História do Cristianismo provavelmente
reconhecerá como familiar. Ela parte do século IV, indicando as decisões to-
madas pelo imperador Constantino como “Origem da Soberania Papal”. Em
seguida Miley constrói um longo arco cronológico, esticado por dois volumes
inteiros para abarcar os séculos da difícil relação entre os sumos pontífices e a
cidade de Roma, desde o período carolíngio até o Renascimento. Por fim, ele
descreve as turbulências deflagradas pelo moderno republicanismo italiano,
período histórico para o qual toda obra parece estar orientada, como se suas
páginas formassem uma torrente de ideias que deveriam desaguar precisa-
mente ali, consumando um longo movimento teleológico.
A todo o momento The History of Papal States emprega um vocabulário
que fala em “território pontifício” e “soberania apostólica”, como se os confli-
tos e as relações de poder experimentadas ao longo da História tivessem sem-
pre girado em redor de atributos típicos dos Estados oitocentistas: a unificação
e a homogeneização do controle territorial, a centralização administrativa, a
284 coLunas de são pedro

supremacia fiscal, o monopólio da força militar. Todos se encontram, de algu-


ma forma, elevados a categorias universais desta história descrita por Miley.
Contudo, não julguemos esta forma de pensar o passado como algo ar-
bitrário ou ingênuo. Afinal, ela cumpria à risca os mesmo movimentos episte-
mológicos impostos pela noção de tempo histórico coroada pelos iluministas:
noção reivindicada pelos historiadores ainda nos dias de hoje. Por meio dela,
a escrita da história é concebida e praticada como uma forma de compreensão
do passado irrevogavelmente instituída a partir do campo de experiências do
presente. A temporalização dos ritmos históricos está atrelada a relações de
inteligibilidade que não escapam ao “agora” vivenciado pelos próprios estudio-
sos: o saber histórico está inapelavelmente atrelado a esta aporia hermenêutica
(KOSELLECK, 2006). No caso da geração de John Miley, isso significava dizer
que o papado da Idade Média foi insistentemente indagado para oferecer res-
postas aos dilemas apresentados pelo cenário político oitocentista. Vejamos.
Entre 1814 e 1815, o Congresso de Viena restituiu ao Papado pratica-
mente todas as terras perdidas para Bonaparte dez anos antes. Com isso, a
península itálica voltava a ser atravessada por uma longa faixa de territórios
submetidos novamente ao bispo de Roma. A decisão se tornou um dos marcos
da busca pela restauração do equilíbrio político rompido pela Revolução Fran-
cesa e por seu filho prodígio, Napoleão. No entanto, não era possível voltar
a caminhar no passado. A reinstalação dos “Estados Pontifícios” ocorria num
novo cenário político, deparava-se com novos componentes sócio-políticos.
Os ataques revolucionários aos princípios do absolutismo e da ordem de
poderes amparada em mandamentos divinos alavancaram a ascensão do naciona-
lismo e instigaram a inédita reivindicação de uma “Itália para os Italianos”. Após a
derrocada de Napoleão, o movimento nacionalista italiano ganhou vulto e cresceu
explorando a vulnerabilidade dos muitos mini-estados que transformavam a pe-
nínsula num caleidoscópio político. Contudo, os maiores adversários dos naciona-
listas não eram as potências-símbolo da Restauração, como o Império Austríaco e
sua ocupação das áreas setentrionais, ou a realeza Bourbon e sua insistente pre-
sença nas áreas ao sul. De forma um tanto inesperada, foi um regime comumente
considerado frágil que passou a ser visto como a última e maior barreira para a
fundação da nova nação: o secular governo dos sucessores de Pedro no coração
peninsular. Cada vez mais, os nacionalistas se convenceram de que depor o Grão-
Duque da Toscana e expulsar os austríacos da Lombardia era uma coisa. Depor o
papa e seu milenar reinado temporal era algo inteiramente diferente, pois o sumo
pontífice, “embora possuísse pouco em termos de poderio militar, tinha armas que
nenhum outro governante jamais poderia esperar empunhar” (KERTZER, 2004: 2).
Detentor nominal de uma extensa faixa de domínios que se esticavam
de Roma até Ferrara, o papa advertia que a criação de um Estado italiano con-
Leandro duarte rust 285

trariava a vontade de Deus. Pio IX se serviu de todas as armas disponíveis para


transformar a preservação dos Estados Papais numa causa doutrinária e em
tudo religiosa. Basta observar, por exemplo, os ilustres assentos reservados no
plenário do Concilio Vaticano I, assembleia que em dezembro de 1869 afirmou
o polêmico dogma da infalibilidade papal. Um lugar de honra foi assegurado
ao Grão-duque Leopoldo II, deposto de seu governo da Toscana pelos nacio-
nalistas. Próximo a ele podia ser visto Francisco II, rei de Nápoles destituído
por Garibaldi no ano de 1860. A eles juntou-se também o outrora Duque de
Modena, Francisco V, refugiado na Áustria desde 1859 após ser despojado das
próprias terras por Vítor Emmanuel II, cabeça do novo “reino da Itália”. Em
meio à faustosa multidão eclesiástica reunida pela autoridade apostólica, era
possível divisar as figuras dos generais Kanzler e Du Mont, cujos exércitos pro-
tegiam o que restava dos Estados Pontifícios (KERTZER, 2004: 27).
Dominado pelo controverso tema da infalibilidade papal, o concílio en-
viou outra mensagem a todas as nações europeias ao reunir os adversários
da unificação italiana: a conservação das possessões territoriais da Igreja de
Roma estava longe de ser uma mera questão secular, tratava-se de uma ques-
tão de fé, de comprometimento com a fé cristã e de lealdade à memória dos
apóstolos. Por isso, após setembro de 1870, quando tropas italianas finalmen-
te dobraram as resistências romanas e conquistaram a cidade, Pio excomun-
gou os fundadores do “reino usurpador” e convocou católicos de toda Europa
a se empenharem em seu socorro. Ele acreditava que os Estados Papais retor-
nariam amparados por Deus e nutridos pela fé cristã. O que não aconteceu.
O malogro no restabelecimento dos “Patrimônios de São Pedro” acarre-
tou impactos diretos sobre a balança de poder europeia, sobretudo, ao fazer
da Santa Sé o pivô do fracasso das tentativas de reaver os equilíbrios políticos
anteriores a 1789. Nos anos que antecederam a publicação da obra seminal de
John Miley os conflitos travados em torno da constituição dos Estados Papais
fervilhavam, atingindo sua fase de radicalização no calor revolucionário que
se espalhou pelo Velho Mundo em 1848.
Naquele ano, mobilizados pelo clamor nacionalista, muitos grupos e
agremiações das elites centro-italianas recorreram ao recém-eleito Pio IX em
busca de apoio para expulsar os austríacos. Seus esforços foram em vão. O
pontífice se recusava a agir contra uma das maiores monarquias católicas da
Europa. Um intoxicante clima de insatisfação com a “ditadura papal” espa-
lhou-se pelas ruas de Roma, culminando no assassinato do conde Pellegrino
Rossi, primeiro ministro do governo pontifício. Ao receber a notícia de que
o sangue jorrava da garganta de seu chefe de cabinete, Pio IX temeu pela
própria vida: disfarçou-se de um simples padre e fugiu para Gaeta. Em janei-
ro, uma recém empossada Assembleia Constituinte elegeu um novo governo,
286 coLunas de são pedro

comandado por Giuseppe Mazzini, líder nacionalista-republicano até então


exilado em Londres. O fim do governo temporal dos papas foi oficialmente
proclamado em 1849. Mas, por pouco tempo. Atendendo aos apelos do santo
fugitivo, Luís Napoleão despachou exércitos franceses até o Lácio e restaurou
o governo eclesiástico sobre a cidade de Roma.
Os eventos de 1848 e 1849 representaram uma ruptura. Entre outras
razões devido à inédita importância atribuída aos Estados Papais no cenário
do século XIX. Derek Homes (1978: 5) demonstrou apurado senso de realismo
ao constatar como a escalada de tensões fez os contemporâneos perderem de
vista a fragilidade política papal. Os bispos de Roma eram, até então, encara-
dos como detentores de um poder temporal menor, cuja soberania era mais
aparente do que efetiva. Segundo palavras do próprio Holmes, “o papa tinha
praticamente nenhum controle sobre os governantes que teoricamente reconhe-
ciam sua autoridade, seus interesses temporais eram ignorados e a ele era negada
voz em reuniões internacionais”. Embora Pio IX tenha se notabilizado por ini-
ciar uma série de reformas que envolviam planos de construção de ferrovias,
a criação de um Instituto de Agricultura para os territórios submetidos à sua
autoridade, a fundação de uma imprensa controlada por laicos e a outorga
de uma Constituição aos súditos, a realidade de seu governo temporal era
outra. Suas muitas concessões a um modelo de monarquia constitucional e ao
ideal de uma Itália distribuída em unidades federativas – aprovações que lhe
valeram a fama de “Papa Liberal” – eram sintomas do franco declínio de sua
estabilidade política e acabariam por minar a vital aliança entre a Santa Sé e
o Império Austríaco (POLLARD, 2005: 21-54).
O clamor gerado pelos dramáticos eventos de 1848 e a conversão de
Pio IX em pivô da intervenção do imperador Napoleão III levaram muitos
intelectuais e estadistas europeus a noticiar os vulneráveis Estados Papais de
um modo em transfigurado: ora como grande obstáculo ao surgimento da
nação italiana ora como verdadeiro bastião da antiga ordem setecentista. Seja
como for, sua relevância política era superestimada, inflacionada, e o proble-
ma da influência temporal do papado parecia subitamente reduzido à ques-
tão da difícil constituição daqueles territórios diretamente governados pelos
sucessores de Pedro. É o que demonstra a publicação de Kirche und Kirchen,
Papstthum und Kirchenstaat, do influente teólogo alemão Johann Joseph Ig-
naz von Döllinger. A obra veio à baila em 1861, dividida em duas partes: a
primeira discutia uma constelação de questões que envolviam a Igreja Cristã e
as Nações, desde a Rússia à França; enquanto a segunda parte impunha uma
drástica redução de foco, atendo-se apenas às desventuras dos Estados Papais
após a Revolução Francesa, com um desproporcional destaque oferecido ao
pontificado de Pio IX. O próprio John Miley (1850: 650) não se furtou a vali-
Leandro duarte rust 287

dar esta premissa:

E não importa qual possa ser o seu credo ou filiação política, todo estadista
europeu, que no alto e adequado sentido merece tal nome, que sabe como
estabelecer seu justo valor sobre as bençãos sociais e a compreensão dos
fundamentos dos quais elas dependem, deve estar ansioso em seu coração
e mente pelo retorno do Papa Pio ao seu trono e por sua estabilidade.

Embora a governança temporal da Santa Sé desmoronasse à luz do dia,


após 1850, ela desencadeou uma onda de livros e estudos que inundou livra-
rias e bibliotecas em toda a Europa. A lista de títulos pode ser alongada sem
grandes esforços: Lo Stato Romano dall’Anno 1815 al 1850, de Luigi-Carlo
Farini (1850); Rome, its Ruler and its Institutions, de John Francis Maguire
(1857); Le Vittorie della Chiesa nel Primo Decennio del Pontificato di Pio Nono,
Giacomo Margotti (1857); His Holiness Pope Pius IX and the Temporal Rights
of the Holy See: as Involving the Religious, Social, and Political Interests of the
Whole World, de M. J. Rhodes (1859); Il Governo Pontificio e lo Stato Romano:
Documenti Preceduti da una Esposizione Storica, de Achille Gennarelli (1860);
Rome under Pius IX, de S. W. Fullon (1864); Pio IX ed il suo Secolo: dalla Rivolu-
zione Francese del 1789 alla Proclamazione del regno d’Ìtalia, de Biagio Cognet-
ti (1867); Pius IX: The Story of his Life to the Restoration in 1850 with Glimpses
at the National Movement in Italy, de Alfred Owen Legge (1875).
Em meio a este ambiente intelectual, um erudito como o metodista John
Miley era diariamente bombardeado pelo argumento de que as severas dis-
putas entre a Santa Sé e as forças políticas italianas estavam longe de ser
questão “doméstica” (SCHROEDER, 1986: 1-26). Seu entendimento do mun-
do era constantemente martelado pela convicção de que compreender sua
época implicava em explicar a fundo os rumos históricos seguidos por aquele
“organismo político” conhecido como “Estados Papais”. O próprio mundo ao
seu redor parecia ensinar que o governo temporal dos sucessores de Pedro
era uma espécie de eixo da História, talvez mesmo o coração pulsante da
política ocidental. Basta observar como Miley (1850: 664-665) concluiu sua
obra fundadora, referindo aos incidentes de 1848-1849 e o subsequente res-
tabelecimento de Pio IX pelas tropas de Luís Bonaparte: “as séries subsequentes
de eventos são vistas agrupando-se em redor de certos pontos que surgem como
marcos de referência do imenso período de eras que nós percorremos”.
Tal premissa logrou grande fortuna historiográfica. Décadas depois da
publicação da obra seminal do teólogo, no bojo da irrefreável marcha política
pela unificação italiana, essa atmosfera intelectual envolveu intensamente a
valiosa produção historiográfica de Paul Fabre, especialmente seu Étude sur le
288 coLunas de são pedro

Liber Censuum de l’Église Romaine, publicado em 1892. Com ele, o autor final-
mente proveu a pesquisa histórica de uma introdução a um corpus documental
imprescindível, o Liber Censuum, um extrato de registros elaborado em 1192
pelo cardeal e camerarius papal, Cêncio Savelli. Tal compêndio reuniu, provín-
cia por província, os nomes dos censitários da Sé Romana, indicando as quotas
de pagamentos regulares (redevances) devidas por cada um. Seduzido pelo
modo de pensar historicamente professado por seu mestre, o francês Fustel de
Coulanges (DIGARD, 1902: xi-xii), Fabre contribuiu decisivamente para elevar
a busca pelas “origens do Estado Papal” à condição de palavra de ordem nos
estudos históricos, como demonstram ainda outras publicações oriundas de
sua incansável rotina de pesquisas: Le Patrimonie de l’Église Romaine dans les
Alpes Cottiennes; Un Registre Caméral du cardinal Albornoz en 1364: documents
pour servir à l’histoire du Patrimonium Beati Petri in Tuscia au quatorzième
siècle; Registrum Curiae Patrimonii Beati Petri in Tuscia; La Perception du Cens
Apostolique dans l’Italie Centrale en 1291 (FABRE, 1884: 283-420; 1887: 173-
195; 1889: 3-24; 1890: 369-383).
Os trabalhos de Paul Fabre conferiram maior nitidez ao tema delimita-
do por Miley. Dotaram-no de dimensões mais precisas ao reunir num único
recorte de investigações, como um domínio de pesquisas consistente e coeso,
aspectos de um passado medieval até então confinado na reputação de “sub-
temas”, de matérias marginais cujo registro estava pulverizado em aparições
documentais dispersas, incapazes de concorrer com a atenção dispensada à
“Querela das Investiduras” e às “Vidas dos Papas”. Entretanto, se aquele mem-
bro da Escola Francesa de Roma ultrapassou as generalizações superficiais do
estudo do governo temporal da Santa Sé, muito disso se deveu às inquietações
despertadas pelo contexto político da Itália oitocentista. Afinal, durante todo o
tempo em que frequentou os arquivos do Vaticano e chamou à existência sua
produção intelectual, Fabre conviveu com a “Questão Romana”, expressão que
usualmente identifica o radical rompimento com o Estado italiano protagoni-
zado por Pio IX. Tratava-se do ingresso do papado numa fase derradeira das
tensões vividas desde os tempos de John Miley. Vejamos.
Após a catástrofe diplomática que foi a proclamação da infalibilidade
papal e a retirada das tropas francesas para a fronteira franco-germânica, em
1870, Pio IX se viu entregue à própria sorte. Embora abandonado por seus
aliados, o papa conseguiu impedir por um ano que tropas italianas marchassem
sobre Roma, explorando a propensão do novo governo de ver projetada sobre o
papa a alarmante sombra do poderio francês e, em alguns momentos, do aus-
tríaco. Estas hesitações duraram até a chegada do mês de setembro. Foi então
que a desastrosa derrota francesa em Sedan, pela qual o próprio Napoleão III
caiu prisioneiro dos prussianos, empurrou a política europeia para além dos
Leandro duarte rust 289

limites vigentes. Com o imperador no cativeiro, os franceses proclamaram uma


nova república. O poder imperial, fiador das garantias diplomáticas às quais o
papado se apegava como tábua de salvação, não mais existia. Em consequên-
cia, em menos de um ano, os exércitos de Vítor Emmanuel conquistaram Roma
e impuseram sua incorporação à Itália unificada. Pio IX, recusou-se a entrar em
acordo com o rei. Chegava ao fim, efetivamente, o governo citadino exercido
pelos papas por mais de mil anos. Mas não sem resistência.
O pontífice declarou-se “prisioneiro do Vaticano” e proibiu os católicos
italianos de participar do novo regime, quer fosse candidatando-se às eleições
ou, simplesmente, ao empenhar o direito ao voto. Embora Pio tenha falecido
em 1878, a interdição se prolongou até a Primeira Guerra Mundial e sua du-
ração alimentou a comoção em escala continental causada pelo isolamento do
papa, consequência da transferência do novo governo italiano para Roma, em
julho de 1871 (KERTZER, 2004: 33-85). O dramático fim do domínio secular
dos papas calou fundo na consciência dos contemporâneos e alertou homens
como Miley e Fabre para a iminência de outra perda intolerável, esta, por sua
vez, intelectual: o que até bem pouco tempo era uma realidade política óbvia,
estimada como epicentro das relações de poder estabelecidas entre tantas na-
ções europeias, era agora arrastado para as brumas do total desaparecimento.
E pior: aquele fenômeno político considerado crucial era empurrado para o
sombrio vazio do esquecimento sem contar com estudos sistemáticos e exaus-
tivos, isto é, sem que sua história e sua constituição tivessem sido suficiente-
mente conhecidas. A escrita da “História dos Estados Papais” surgiu investida
desta função vital: exorcizar o fantasma de uma perda irreparável para a me-
mória coletiva cultivada pela política oitocentista.
Não devemos encarar como mera coincidência o fato de outro “funda-
dor da atual História Política e Institucional do papado”, segundo palavras de
Walter Ullmann (1975: 1287), pertencer precisamente a este mesmo contex-
to. Trata-se de Louis Duschesne, autor do valioso Les Premiers Temps de l’État
Pontifical – lançado pela primeira vez em 1904 – e editor do Liber Pontificalis.
Abade e filólogo, Duchesne ingressou na Escola Francesa de Roma em 1876,
no bojo da “Questão Romana”, e orientou o rigor de suas obras contra o mode-
lo político de um episcopado monárquico que tentava “sobreviver a uma série
de catástofres para a Igreja Romana” (BOWDEN, 1988: 50).
Deste momento em diante o escol de autores dedicados especificamente
ao estudo da formação da Cúria e dos Estados Pontifícios só aumentou. Novos
horizontes se abriam. Algumas décadas antes, aquele tema não passava de um
assunto visitado uma vez ou outra, relembrado por alguns eruditos, bispos e
certos reverendos tocados pelo declínio do poder temporal do pontificado. Ago-
ra, ele viraria o ano de 1900 como um assunto respeitável entre os acadêmicos,
290 coLunas de são pedro

dotado de cientificidade, engrandecido por safras de memoráveis contribuições.


Onde antes se encontrava motivo para lamentar por uma “lacuna singular no
mundo das letras” (MILEY, 1850: xliv) podiam ser colhidos estudos assinados
por autores como Camille Daux (1905: 5-73), Louis Halphen (1974: 01-52),
Reginald Lane Poole (1915), William Edward Lunt (1909: 251-294; 1934), Ro-
bert Hall (1943: 125-140), Demetrius Zema (1947: 137-168), Stephen Kuttner
(1945: 129-214), Walter Ullmann (1955), Peter Partner (1972), Pierre Toubert
(1973: 1039-1081), Ian S. Robinson (1990: 01-291), entre outros.
Todavia, ao percorrer este rico itinerário de estudos, a historiografia
persistiu no mesmo propósito que instigava as mentes dos contemporâneos
de John Miley: analisar a plurissecular constituição da política papal a partir
de parâmetros institucionais associados aos Estados Papais oitocentistas. Este
tema emergiu na pena dos historiadores modelado para a compreensão de
realidades do século XIX e assim ele tem se perpetuado ainda nos dias de hoje.
Os estudiosos preservaram muito da postura de seus “clássicos”, que consistia
em voltar os olhos para o passado tentando encontrar a origem de traços típi-
cos da época de Pio IX. Ao analisar a especialização de departamentos curiais,
a formação de conselhos decisórios ou a criação de malhas de fiscalidade, os
historiadores frequentemente retocam, em diferentes graus, esta característica
seminal: eles falam da Idade Média para descrever o embrião da Santa Sé da
época de Vítor Hugo. Comportam-se de modo muito semelhante à conduta
intelectual de John Miley (1850: 666), convicto de que a história convergia
para o século XIX: “o poderoso Carlos Magno (...) depositou no altar de Deus a
carta pela qual Pio IX ainda empunha o cetro”.
É precisamente isto que nós historiadores temos feito, fiéis perpetuado-
res de John Miley: naturalizamos um modelo conceitual oitocentista, elevando
referenciais políticos da época da Pio IX ao posto de parâmetros supostamente
universais de explicação, imutáveis, permanentes. Ao impor ao pensamento a
obrigação de aplicar sempre os mesmos critérios, repetir indefinidamente as
mesmas fórmulas de análise, nós negamos um dos fundamentos da consciên-
cia histórica: o pensamento deve primar por incluir sua própria historicidade
em seu pensar. Como demonstrou convincentemente Hans-Goerg Gadamer
(2005: 396), é preciso reconhecer que a escrita da História pressupõe a cons-
ciência da realidade da história tanto quanto da realidade do próprio compre-
ender histórico. Ao ser perpetuada como “núcleo duro” de nossas pesquisas,
a perspectiva oitocentista enrijece e paralisa a própria consciência histórica.
A descrição do “desenvolvimento do governo papal” tornou-se conheci-
da, de fato paradigmática. Tão logo os medievalistas são solicitados a explicar
o crescimento do poder pontifício no século XII, eles se colocam a passar em
revista a mesma lista de temas. A começar pela a ascensão do colégio de car-
Leandro duarte rust 291

deais, novos e influentes “senadores espirituais da igreja universal”, descritos


como uma espécie de cúpula político-administrativa. Em seguida, são destaca-
das as reformas da Chancelaria pontifícia, especialmente durante as décadas
de liderança do cardeal João de Gaeta (1089 a 1118), quando foram implan-
tadas fórmulas mais ágeis de registro e datação, introduzida a escrita minús-
cula e reformulado o corpo de escrivães e notários: o papado teria ganhado
um novo “centro de comunicações e arquivamento”, símbolo maior da “cultu-
ra essencialmente escriturística” que enchia seus corredores. Daqui passa-se
ao estabelecimento da Câmara Apostólica, corpo de notários especializados no
controle de posses e rendimentos diretamente reclamados pelo papa: suposto
nascimento das “finanças pontifícias”. Daí os olhares dos historiadores costu-
mam seguir para um assunto afim, a “formação de um corpo de agentes da
Santa Sé” através da sobreposição da capela papal às elites senhoriais do Lácio
como fonte de recrutamento dos quadros administrativos acima descritos e
da depreciação dos chamados “Juízes Maiores” (Judices Ordinarii vel de clero),
que teriam passado de bastiões do controle aristocrático sobre a Sé Romana
para a modesta condição de “representantes de causas externas”.
Voltar-se para Roma, dominar o registro escrito, compartimentar fun-
ções, localizar e fixar atribuições. Desde o tempo de John Miley, esta imagem
tem conduzido incontáveis leitores para a visão de um papado pesado, pon-
to nevrálgico de uma teia burocratizada. Ela sem dúvida nos permite ver os
agentes e as regras do poder pontifício, mas pouquíssimo revela dos modos de
exercê-lo. Este ângulo de estudos passa ao largo, por exemplo, de um fenôme-
no de grande relevância para os séculos XII e XIII: a itinerância da Cúria Papal.
Como relembram Tommaso Falconieri (2002: 85) e Agostino Paravicini
(2004: 29-42), a Corte pontifícia e a própria Chancelaria eram instâncias mó-
veis, que permaneciam em Roma somente por alguns meses ao longo do ano.
Durante todo período restante, elas se deslocavam por cidades da Úmbria,
da Apúlia e do Lácio. Já com Gregório VII, a Corte adotara um estilo de vida
marcadamente itinerante. Em pouco tempo, os deslocamentos da Cúria se tor-
nam regulares, constantes, exigindo que um cardeal – frequentemente aquele
à frente dos assuntos pontifícios na Campânia – fosse especialmente encarre-
gado de liderar a preparação das viagens do papa e de seu numeroso séquito.
Por volta de 1150, Eugênio III estabeleceu um palácio de verão em Segni, a
primeira das muitas residências oficiais temporárias. O exemplo de Segni foi
seguido por Ferentino, Verdi, Alatri, Anagni, Rieti. O pleno exercício do poder
pontifício nestas localidades é facilmente constatado. Basta mencionar, por
exemplo, a regularidade das reuniões do consistório e a frequência com que
aquelas localidades se tornavam o palco de decisões de grande repercussão
política, como a canonização de Tomás Becket por Alexandre III, ocorrida em
292 coLunas de são pedro

Segni, em 12 de fevereiro de 1173.95 Conclusivo, Pierre Toubert (1973: 1054)


fala uma “verdadeira transumância do pessoal administrativo”.
O século XIII conferiu visibilidade ainda maior a esta característica po-
lítica. Entre a ascensão de Inocêncio III e a morte de Bonifácio VIII (1198-
1303), a Cúria esteve ausente de Roma por cerca de sessenta anos. Com ex-
ceção de Celestino IV, cujo pontificado durou apenas dezessete dias, nenhum
dos papas daquele período passou todo seu pontificado na antiga Cidade dos
Césares (BAGLIANI, 2000: 171).
Esta incessante mobilidade coletiva retratava uma realidade política
singular: a de que a primeira e primordial esfera de decisão dos assuntos pa-
pais não estava em Roma ou, a priori, em lugar algum: mas lá onde estivessem
os sucessores de Pedro. Antes de estar situada no espaço, ela estava inscrita
no corpo do papa, era a própria pessoal do pontífice. Antes de ser um lugar, a
Igreja de Roma era alguém. E os medievais sabiam disso. Afinal, este vínculo
foi amplamente divulgado pelo conhecido mote dos canonistas da época pós-
Graciano: Ubi Papa, ibi Roma; “Onde está o papa, está Roma” (GAUDEMET,
1994: 347-353). Nas palavras de Agostino Paravicini Bagliani (2000: 61), esta
fórmula expressava “a ideia de que não mais Roma, mas a pessoa do papa era o
ponto de referência espacial da instituição pontifícia”.
A estruturação da Câmara Apostólica comporta um dado igualmente
importante e, uma vez mais, costumeiramente relegado ao silêncio. Durante
os pontificados de Urbano II e Pascoal II a condução da nova “instância ad-
ministrativa” esteve diretamente vinculada a Cluny. De fato, durante anos,
foi a abadia borgonhesa – não algum cardeal em Roma – que supervisionou a
recepção e a transferência de censos, rendas e doações destinadas à corte pon-
tifícia. Mesmo após o retorno de Urbano para o Palácio de Latrão, em 1093, e
durante todo o governo pascaliano, a Câmara cluniacense persistiu em estreita
colaboração com a captação fiscal e censitária romana. Além disso, ainda se-
gundo Agostino Paravicini (DHP: 505), nos tempos de Calisto II – entre 1119
e 1124 – a Câmara Apostólica continuava a contar com uma “filial em Cluny”.
O governo pontifício não escapou aos fortes laços de regionalismo que
marcavam o exercício do poder papal. Ao contrário, foi apanhada naquela
rede de dependências criada por legados e aliados suprarregionais. Durante o
século XII as ocasiões em que a Cúria se deslocou para a Gália multiplicaram.
Em muitos casos, ela movia-se empurrada para um exílio que a privava das
rendas oriundas dos territórios papais. Todavia, nem por isso os altos custos da
manutenção dos corpos de oficiais curiais cessavam. Os gastos seguiam-na no
desterro. Longe do Lácio e pressionados pela necessidade, os papas logo en-

95
JL 12201.
Leandro duarte rust 293

contraram uma maneira de contornar as despesas: os oficiais pontifícios eram


designados para funções eclesiásticas locais, passando a sugar o patrimônio
de igrejas espalhadas pela Cristandade. Seus pagamentos e recompensas eram
substituídos pelas rendas vinculadas às prebendas até então destinadas ao
clero local. E o mais importante: este arranjo não cessava com o retorno da
Cúria para a península italiana. Os notários e os auxiliares curiais regressavam
para a Itália mantendo em seu poder prebendas eclesiásticas da Gália e outras
regiões. Em outras palavras, os custos da chamada administração papal eram
divididos com igrejas e comunidades de diversos pontos do mundo medieval,
conforme já destacou Aryeh Graböis (1963: 5-18) em um convincente estudo
a respeito da fiscalidade pontifícia. Graças aos alicerces regionais do poder dos
papas, o ônus transmutava-se em utilidade.
Estava aberto o caminho para as notórias provisões de benefícios eclesi-
ásticos por parte do papado. A prática seria motivo para um interminável rosá-
rio de controvérsias nos séculos XIV e XV e que consistia, fundamentalmente,
na prerrogativa reclamada pela autoridade apostólica de designar os clérigos
que receberiam o usufruto do patrimônio eclesial nas províncias cristãs, com
ou sem a incumbência da cura animarum, isto é, o trabalho pastoral. As pro-
visões poderiam resultar em vínculos de dois tipos: os de natureza direta,
através da alocação de um eclesiástico em um benefício após a vacância deste,
ou os de indireta, com a promessa de uma prebenda eclesial em nome de uma
Sé ou um capítulo catedralítico. Neste caso o bem em questão ficava pro-
metido, reservado para um candidato previamente designado pelo papado:
a indicação antecipava-se à vacância de benefício – por morte ou suspensão
canônica – ou era baseada unicamente na expectativa da eventual doação de
terras ou direitos senhoriais a ser feita por um patrono particular. Organizada
por João XXII e codificada por Bento XII, a prática das provisões permitia ao
papado contemplar as demandas de seus colaboradores e privilegiar aliados
com recursos distantes, provenientes de dioceses longínquas, em âmbito local.
Nas provisões, os integrantes da Cúria ou os membros do entourage de
um aliado pontifício encontravam um acervo de riquezas que nem o papa,
nem os cardeais dispunham em mãos, ou sequer eram capazes de oferecer
efetivamente. Ao debruçar-se sobre o tema, durante a escrita de Papal Pro-
visions, Barraclough (1935) viu em tais práticas a fonte da corrupção que se
alastrou pelo clero medieval e da opressão imposta sobre as igrejas por um vo-
raz centralismo romano. Todavia, é preciso ouvir Kenneth Pennington (1984)
quanto a esta constatação basilar: para que um favorito papal fosse instalado
em um benefício era necessário o concurso dos poderes regionais. Aquele era
um jogo de vantagens no qual as elites cristãs recebiam uma “contrapartida”
em nada desprezível: maior poder de barganha nas apelações jurídicas e ca-
294 coLunas de são pedro

nônicas. Como percebeu com argúcia o próprio Pennington (1984: 120-121),


“as igrejas locais tinham boas razões para assegurar as requisições [do papado
por benefícios para provisões]. Pois, como a litigância na Igreja se tornava mais
complexa e frequente, um amigo da cúria era uma valiosa conveniência (...).
Quanto mais importante o curialista, mais valiosa a conexão”. Contar com um
“homem do papa” entre os eclesiásticos da própria província era um bem po-
lítico único, que se tornava ainda mais precioso se este partidário pontifício
estivesse preso a dívidas e favores locais.
Os casos de resistência bem sucedida a essa prática, como ocorreu na
cidade Rieti nos séculos XIII e XIV, estudada com maestria por Robert Brentano
(1994), demonstram que a consumação de uma provisão papal dependia da
existência de correlações de forças locais favoráveis. O sucesso em concretizá-
la não era fruto de ações unilaterais e ou de um julgo centralista, mas resul-
tavam do estabelecimento de um pacto, um compromisso entre os interesses
papais e as forças hegemônicas espalhadas pela Cristandade. A manutenção
deste equilíbrio de poder frequentemente envolvia anatas (anatae) ou primí-
cias (primitiae). Estes eram os nomes dados a rendas acumuladas durante o
primeiro ano de gestão de um benefício ocupado por designação papal. De
maneira geral, as anatas eram retidas pela Camara Apostolica, mas poderiam
ser empunhadas em acordos, isto é, em negociações com os poderes seculares
locais: para assegurar apoio à sua política de provisões, o bispo romano ofe-
recia a um rei a livre captação daquelas rendas eclesiásticas (BARRELL, 2002:
79-125). As provisões papais podiam ser úteis e enriquecedoras aos poderes
regionais do mundo medieval.
Continuamente em viagem estavam também os cardeais, os presbíteros
e diáconos da Sé Romana, envolvidos com a realização de missões legatinas.
Porém, em muitas destas ocasiões o poder dos cardeais era sobrepujado pela
imensa influência exercida pelos líderes regionais acolhidos pelo próprio papa
como “seu sucessor naquelas terras”. Tomemos um exemplo elucidativo, em-
blemático. Logo em 1100, um ano após eleito, Pascoal II se viu às voltas com
um personagem que por décadas despertava as mais díspares reações entre
os aliados da autoridade apostólica: tratava-se de Hugo, arcebispo de Lyon.
Respeitado por muitos como um colaborador imprescindível, detestado por
tantos outros como um estorvo embaraçoso, o outrora bispo de Die e legado
de Gregório VII se colocou no caminho de Pascoal.
Naquele ano, o bispo Norgaud de Autun, acusado de simonia por cône-
gos de sua própria diocese, foi deposto por João e Benedito, cardeais enviados
à Gália pelo sucessor de Urbano II. Desacatando a decisão, Hugo tomou a
defesa do bispo, seu sufragâneo. Bradando aos quatro ventos que “ovelhas
não deveriam atacar seu pastor”, o arcebispo assegurou aos legados que o bis-
Leandro duarte rust 295

po estava amparado pelo “costume da igreja galicana, reconhecido pelo papa


Urbano II, [segundo o qual] o acusado possuía o direito de se purgar”.96 Em
novembro, diante de um sínodo reunido em Poitiers, Hugo insistiu na vigência
do usu Galicanae ecclesiae e pressionou os cardeais para que reconhecessem
a prerrogativa de justificação devida ao seu subordinado. Novo malogro. Os
legados estavam irredutíveis. Deposto e excomungado, Norgaud não abriu
mão dos símbolos da função episcopal e reteve a estola e o anel como forma de
expressar sua recusa à sentença. E o fez contando sempre com a conveniente
tolerância de Hugo.
Até aqui tudo parece indicar que os dois cardeais podiam mais do que o
arcebispo. Parece, e é só. As lacunas documentais se sucedem até que somos
informados de que o bispo de Autun – cuja ida a Roma foi veementemente
proibida pelos cardeais – se justificou por meio de um juramento vocal (prova-
velmente na festa de São Nazário, mas sem local indicado) e foi restabelecido
em sua dignidade episcopal com confirmação papal.97 Hugo de Lyon, que che-
gou a ser escolhido por Pascoal para liderar uma cruzada até Jerusalém, triun-
fava sob as decisões cardinalícias. O calejado arcebispo conhecia os atalhos do
poder pontifício e sabia, como poucos, que muitos deles passavam somente
pela Gália, não por Roma.
Não foi esta a única vez em que as ações de um cardeal terminaram so-
terradas pela atuação de uma liderança clerical local amparada pelos favores
papais. Em 1104, Ricardo, cardeal de Albano – e, como tal, personagem do
mais alto escalão da Cúria –, foi enviado à Gália com a instrução pontifícia de
reunir um importante concílio. Ele deveria inteirar-se do conselho da maior
parte (maior pars) dos bispos a respeito da súplica de Felipe I. O rei almejava
ser absolvido da excomunhão que pesava sobre seus ombros em razão de um
matrimônio canonicamente irregular com Bertrade de Monfort. Todavia, em
pouco tempo o pontifície se impacientou com o cardeal e tomou drástica me-
dida. Em epístola datada do dia 5 de outubro de 1104, Pascoal informou aos
arcebispos e bispos das províncias de Reims, Sens e Tours que, em razão da
inatividade de seu enviado, Lamberto, o bispo de Arras, seria elevado acima
dele com poderes para absolver o monarca e sua desafortunada consorte. O
novo legado deveria obter dos implicados uma satisfação adequada pelo que
se passou entre o casal e receber de ambos um juramento, prestado em vestes

96
Pro usu Gallicanae ecclesiae, qui confirmatus erat in concilio Claromontensi pro presentia Urbani
papae, itemque in conciliis habitis a domno Lugdunensi, purgationem imponendam ipsi qui impeteba-
tur. HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 490-491.
97
JL 5831. Sobre a assembleia: GESTA IN CONCILIO PICTAVENSI. RHGF 14 : 108-109; GEOFFROY
DE COURLON. Chronique de l’abbaye de Saint-Pierre-le-Vif de Sens: 452-453; HEFELE-LECLERCQ 5/1 :
468-471.
296 coLunas de são pedro

de penitentes e com as mãos pousadas sobre os Evangelhos, de que não mais


mantinham o “costume da cópula carnal” e que não se falavam, exceto diante
de testemunhas.98 Tudo foi feito no concílio reunido por Lamberto, em Paris,
no mês de dezembro.99 Amparada pelo consenso conciliar, a palavra de um
bispo local eclipsava as decisões de um cardeal bispo.
O “desenvolvimento do governo papal” transcorreu em meio a um am-
plo horizonte de projeção exterior do poder pontifical. A lenta construção da
Cúria romana respondia à necessidade de desenraizar a administração apos-
tólica, de desatrelá-la dos ofícios e funções tradicionalmente controlados pelo
clero e aristocracia romanos. Eis porque os seculares corpos notariais cita-
dinos, como os Juízes Maiores (Primicerius notariorum, Secundicerius nota-
riarum, Primus Defensor, Arcarius, Saccellarius, Nomenclator, Protoscriniarius),
Juízes Dativos (Judices Dativi), Juízes Palacianos (Judices Palatini, Defenso-
res Civitatis) e a Escola dos Notários (Schola Notariorum & Scrinarii), foram
progressivamente alijados das funções mandatárias e fiscais. Ao agir assim, a
cúpula papal distanciou dos espaços decisórios do bispado romano as magis-
traturas que não pôde arrancar ao controle das elites senhoriais locais e as em-
purrou para uma crescente identificação com um universo urbano dissociado
e oposto ao episcopado.
A ascensão de um governo propriamente papal e fechado em torno de
lealdades e solidariedades erguidas muito longe das colinas latinas agravou
a dissociação entre a igreja e a cidade de Roma. Era necessário reequipar a
cúpula papal, encontrar meios efetivos para desembaraçar os integrantes do
poder pontifício das limitações e dos obstáculos impostos pela administração
urbana romana. Esta obra política já estava em pleno curso com Leão IX e con-
solidou-se efetivamente com a rede de legados papais mantida por Gregório
VII. A construção da Cúria romana atendeu a um longo processo histórico de
desenraizamento, de “desromanização” do papado, conforme notou Giulia Ba-
rone (1993: 250) ao escrever o primeiro volume da Storia della’Italia Religiosa.
Sua gênese arcava com pressões advindas de uma distribuição suprarregional
do acionamento do poder pontifício; não de uma busca pelo estabelecimento
de um ponto-capital que monopolizasse as decisões.
Porém, antes de atingir o espaço em branco que selará o fim deste capí-
tulo, façamos uma breve constatação. Nossas reflexões perfazem aqui uma re-
escrita, parecem duplicar algo já dito. Analisar a constituição da Cúria romana
é redizer a mesma lógica social que dezenas de páginas atrás atribuímos às
experiências de tempo partilhadas pelos homens do papado. Ou seja, ambas

98
JL 5979.
99 LAMBERTO DE ARRAS. Epistola. RHGF 15: 197-198; MANSI 20: 1193-1194.
Leandro duarte rust 297

aparecem em nosso pensamento como formas de fortalecimento de um poder


a partir de relações de integração, de ampliação de universos de participações
e colaborações coletivas.
Em outras palavras, ao invés de simplesmente destacar a Igreja de Roma
no bojo da Cristandade, de particularizá-la com modos de pensar e agir ex-
cepcionais e irrepetíveis, as temporalidades aqui estudadas e a organização
curialista conduziam o exercício do poder pontifício para uma direção inver-
sa: favoreciam sua fusão aos espaços regionais de poder, estimulavam sua
penetração em diferentes âmbitos políticos, viabilizavam a incorporação de
interesses locais no bojo de propósitos declaradamente papais. Se as novas
instâncias e os novos agentes do governo apostólico alavancaram a ascensão
de um poder inédito foi porque eles permitiam a construção de possibilidades
igualmente inéditas de participação e engajamento pela autoridade apostóli-
ca, e não uma forma de dominação que corria em um único sentido, partindo
de um suposto centro para controlar, silenciar e subjugar fiéis ao longo da
Cristandade.
Para o historiador parece ficar a lição: assim como decifrar o controle
sobre relógios e calendários não é suficiente para desvendar a complexidade
das experiências de tempo, dissercar as minúcias de um aparato de governo
como a Cúria não permite vislumbrar a dinâmica das relações de poder. Nos
dois casos, estamos diante de aspectos da vida social que incidiam sobre a
possibilidade e até mesmo a eficácia de certas práticas, mas que não instau-
ravam uma imensa parcela das razões e dos propósitos que as moviam. Se o
tempo transborda os calendários, o poder político ultrapassa as organizações
de governo.
PARTE 2

A INSTITUCIONALIDADE PAPAL E A
SECULARIzAçÃO DO TEMPO
Capítulo 6

Expulsus urbe, ab orbe suscipitur


(1118-1143)

Onde se deve acreditar que a Igreja


está: em um canto da cidade de Roma
ou no mundo inteiro?
Bernardo de Claraval, 1133

6.1. Recrutando o diabo

“O tempo não é uma linha, mas uma rede de intencionalidades”. A frase,


uma das muitas que moldam o conceito de temporalidade buscado em Merle-
au-Ponty (1994: 558), tem algo de preciso e, simultaneamente, de perigoso. A
precisão fica a cargo da habilidade com que ela sintetiza, como num só fôlego,
a ideia de que o tempo não é grandeza material ou substância fluente. Alerta-
nos para que não o tomemos por estrutura de real observável, possuidora de
uma totalidade passível de ser presa em fórmula irretocável, em coerência
permanente ou modelo palpável. O teor de perigo, por sua vez, rompe como
tempestade no horizonte na medida em que esta mesma frase se presta à insi-
nuação de que o tempo é um constructo psicológico.
Todavia, quando a restituímos às ideias maiores da Fenomenologia da
Percepção, tal risco se dissipa em nuvens passageiras. Certamente, o filósofo
não deixaria de frisar que esta definição implica em discernir certos “fatos
psíquicos” em uma temporalidade. Porém, tais fatos não pressupõem saberes
conscientemente formulados, operações de pensamento; e sim, perceptibili-
dade, ou seja, as impressões pré-reflexivas de significados do ser, sobre o ser.
Característica definidora do que Merleau-Ponty (1994: 90), seguindo de perto
Edmund Husserl, compreendia como “campo fenomenal”:
302 coLunas de são pedro

Este campo fenomenal não é um ‘mundo interior’, o ‘fenômeno’ não é um


estado de consciência’ ou um ‘fato psíquico’, a experiência dos fenôme-
nos não é uma introspecção ou uma intuição (...). O retorno aos ‘dados
imediatos da consciência’ tornava-se assim uma operação sem esperança
(...). A dificuldade não era apenas a de destruir o prejuízo do exterior,
(...) ou a de descrever o espírito em uma linguagem feita para traduzir
coisas. Ela era muito mais radical, já que a interioridade definida pela
impressão, por princípio, escapava a qualquer tentativa de expressão.

Isso equivale a admitir que o pensamento não está fechado nas signifi-
cações que ele deliberadamente constrói ou reconhece. Os contatos travados
pela existência humana com o mundo antecedem o cogito, o “eu penso”. Este,
ao ocorrer, modula os sentidos extraídos de relações e dimensionamentos que
não são os do pensamento, mas os de uma inserção dos objetos, das coisas-em-
si, em um universo incorporado como domínio da existência humana. Cada
vínculo pelo qual o ser captura aquilo que o rodeia é um “acontecimento” de
humanização do exterior, uma eclosão de percepção. Esta consiste no feixe de
relações que abrem uma coisa como parte da vida humana e reafirma a pre-
existência do mundo como universo a ser explorado e colonizado pelas pro-
priedades do ser. Os campos fenomenais são parcelas de real dotadas de uma
familiaridade primordial que o pensamento extrai, exprime e refigura em úni-
co movimento (MERLEAU-PONTY, 2002: 155-156). Logo, “nem o Espírito nem
a Natureza são fundantes: ambos são manifestações de uma ‘terceira dimensão’,
abaixo deles e que os constitui. Essa terceira dimensão é a do Ser Bruto ou Selva-
gem, anterior à objetividade e à subjetividade” (MERLEAU-PONTY, 1975: 430).
A racionalidade rediz um mundo percebido e previamente significante
segundo princípios que ela reencontra, mas que não funda ou cria: “o sentido
do percebido já é a sombra transposta das operações que nos preparamos para
executar sobre as coisas, não é senão nosso cálculo sobre elas, nossa situação em
relação a elas” (MERLEAU-PONTY, 2002: 157). Uma rede de intencionalidade
é um feixe de sentidos dotado de direções frente ao mundo, ela é a gama de
significados que as operações lógicas recuperam, interiorizam, possuem a par-
tir da percepção, que lhes escapa e ultrapassa. É um imenso horizonte aberto
de relações a construir pelo “eu”, com o “eu”, sobre o “eu”. Um inesgotável
face-a-face do ser com o mundo murmura sentidos ao pensamento.
Recolocada sob este prisma, eis nossa ideia-chave: uma temporalidade
é uma rede de sentidos de mobilidade, transcurso e mudança que a grande
prosa da existência humana inscreve no mundo e a partir dos quais o “eu”
realiza condutas, ações e escolhas. Essa rede é tecida por relações de presen-
ça, anterioridade e porvir; tramas de começo, meio e fim que não brotam do
Leandro duarte rust 303

psiquismo, mas jorram incessantemente da vida para o mundo e daí para a


consciência (Ver: HONDA, 2004: 417-427).
Todavia, para o historiador, esta perspectiva jaz incompleta. Pois, embo-
ra seja da ordem de uma ontologia primordial, toda esta gama de interações
e presenças acaba selada pelo poder e pelas assimetrias da vida social. Pensar
os significados da existência como práticas sociais e históricas, sem levar em
conta o poder, seria naufragar em abstrações. Para não sucumbir a este risco
optamos por envolver a definição fenomenológica de temporalidade na arma-
dura conceitual da teoria das representações.
Não se trata de uma aproximação teórica indevida, pois a psicologia
social apoia-se em princípios fenomenológicos – tal como entendidos por
Husserl e Merleau-Ponty – para fundamentar o próprio conceito de “repre-
sentação” (JOVCHELOVITCH, 2008: 90-92). Sua interpretação busca eviden-
ciar como as modalidades de percepção são profundamente marcadas pelo
dinamismo das relações sociais e inevitavelmente dotadas de historicidade. As
relações estabelecidas pelo “eu” com o mundo e o “outro” enveredam por ca-
minhos sociológicos diversos, incorporam certa contingência, ainda que par-
tindo de uma dimensão subjacente e matricial ao nosso ser. Por conseguinte,
observando através da lente teórica da psicologia social, podemos reescrever
a frase transcrita no início deste capítulo, que fica assim: “o tempo é uma rede
histórica e pré-reflexiva de sentidos socialmente partilhados e que delineiam
as direções possíveis para a (inter)ação coletiva”.
As relações de poder incidem, especialmente, na maneira com que tal rede
adquire facticidade. Elas repercutem na criação dos referenciais com os quais os
agentes sociais tentam dar forma ao curso da vida para ver as posições e presen-
ças de mundo movente, contingente. Nas ações empreendidas pelo papado nos
séculos XI e XII, os referenciais adotados para delinear certas experiências coleti-
vas da mudança – isto é, para registrar a passagem do tempo – partiam do mesmo
ponto: a persona. Atributos pessoais, como a vontade e os “estados de consciên-
cia”, tornavam plausíveis as presenças de um “antes” e um “depois”, desenhavam
um “começo” e um “fim” para as práticas sociais. Os demais referenciais que
permitiam vivenciar os movimentos da vida estavam em estreita relação com a
imersão da persona no mundo: a corporalidade, a espacialidade agrícola, os ritos.
O exercício do poder pontifício se serviu de todos eles. Enquadrou-se em
novas ordens de sentido de modo a fomentar atitudes e comportamentos con-
venientes à política papal. O poder instituía as experiências de tempo, sendo
então reescrito por elas. Sem nos reportar a esta relação deixaremos escapar
um bom número de razões pelas quais escolhas eram encampadas como atuais
e prioritárias, ou então transformadas em algo que ficou para trás, vistas como
ultrapassadas, não mais presentes na ordem do dia.
304 coLunas de são pedro

Quando atingimos a década de 1130, o quadro se mantém. Extrair as


consequências de um ato, distinguir a presença de certos valores socialmente
reconhecidos, continua a ser um fator fundador da temporalidade atuante nos
sínodos e concílios apostólicos. Mas, algo destoa das décadas anteriores. No
fim dos anos 1120, as legislações conciliares passam a expressar esta carac-
terística de modo exacerbado, com um vigor incomum, gravando-a em tons
ainda mais fortes e enérgicos. Os registros das decisões conciliares dedicam
maior espaço às qualificações morais atribuídas a certos atos, especialmente,
às infrações. O forte teor de sua coloração moral e a veemência de suas expres-
sões canônicas saltam aos olhos. Observemos alguns cânones (de números 4
e 13), retirados do corpus legislativo aprovado por Inocêncio II em Clermont,
no mês de novembro de 1130. Eles revelam que não bastava condenar e punir.
Era preciso depreciar:

Quanto àqueles que, [encontrando-se] no subdiaconato ou nas [ordens]


maiores, tiverem adquirido esposas ou mantiverem concubinas, decre-
tamos que sejam privados do benefício e do ofício eclesiástico. Pois,
obrigados a ser de fato e de palavras, “templos de Deus”, vasos
do Senhor, santuários do Espírito Santo, se tornam indignos
aqueles que se dedicam aos leitos nupciais e a imundícies.1

Proibimos e deploramos completamente, pela autoridade de Deus e


dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo, a malícia detestável,
devastadora e abominável dos incêndios. Esta praga devastadora,
hostil e perniciosa sobrepõe-se a todas as outras formas de
depredação. Ninguém ignora o quão danosa é para o povo de Deus
e quanto prejuízo representa para as almas e os corpos. É primordial,
portanto, opor-se a isto e empenhar-se para extinguir e extirpar, para a
saúde do povo, uma calamidade tão terrível. Portanto, se alguém,
após a promulgação desta nossa proibição, tiver provocado um incêndio
com intenção danosa, por ódio ou vingança tiver ordenado que fosse
provocado, ou tiver conscientemente prestado conselho e auxílio aos in-
cendiários, que seja excomungado. E se o incendiário morrer, que seja
privado de sepultura cristã, que não seja absolvido a não ser que tenha
cumprido penitência, reparado o dano causado segundo suas possibili-
dades e jurado jamais provocar outro incêndio. Como penitência ele

1
Decrevimus ut ii qui a subdiaconatu & supra uxores durexint, aut concubinas habuerint, officio atque
ecclesiastico beneficio careant. Cum enim ipsi templum Dei, vasa domini, sacrarium Spiritus sanctus
debeant esse & dici, indignum est eos cubilibus & immunditiis deservire. MANSI 21: 438.
Leandro duarte rust 305

será declarado estar ao serviço de Deus na Hispania ou em Jerusalém


durante um ano.2 (Os grifos são nossos)

Condenar a ativa vida sexual do clero e as ações de incendiários era prá-


tica comum nos concílios de primórdios do século XII. Contudo, em Clermont,
as mesmas sentenças foram promulgadas com um grande dispêndio de aten-
ção sobre as virtudes violentadas e lamentação sobre as consequências destes
delitos. Um dos efeitos desta maior ênfase acusatória dos textos conciliares
é a impressão de que os decretos têm mais flechas morais apontadas para o
leitor, tornam-se mais agressivos e veementes. Comparemos com prescrições
anteriores. Primeiro, com o quinto cânone aprovado em Reims, em outubro de
1119, sob a presidência de Calisto II:

Proibimos completamente aos presbíteros, diáconos e subdiáconos a


coabitação com concubinas e esposas. Aqueles que tiverem sido desco-
bertos vivendo deste modo, que sejam privados dos ofícios e benefícios
eclesiásticos.3

Em seguida, com o cânone 7 ditado pelo concílio reunido por Calisto em


São João de Latrão, Roma, entre 18 de março a 06 de abril de 1123:

Proibimos completamente aos presbíteros, diáconos e subdiáconos convi-


vência junto a concubinas e esposas e a coabitação com outras mulheres,
a não ser aquelas únicas com as quais o Sínodo de Niceia permitiu habitar
por razões de necessidades: isto é, a mãe, a irmã, a tia paterna, a tia ma-
terna e as demais sobre as quais nenhuma justa suspeita se pode levantar.4

2
Pessimam siquidem & depopulatricem, & horrendam incendiorum malitiam auctoritate Dei, & bea-
torum apostolorum Petri & Pauli omnino detestamur & interdicimus. Haec etenim pestis, haec hostilis
vastitas, omnes alias depraedationes exsuperat: quae quantum populo Dei sit damnosa, quantumque
detrimentum animabus & corporibus inferat, nullus ignorat. Assurgendum est igitur, & omnimodis
laborandum, ut tanta clades, tantaque pernicies, pro salute populi eradicetur & extirpertur. Si quis
igitur post hujus nostra e prohibitionis promulgationem, malo studio, sive pro odio, sive pro vindicta,
ignes apposuerit, vel apponi fecerit, aut appositoribus consilium vel auxilium scienter tribuerit, ex-
communicetur. Et si mortuus fuerit incendiarius, Christiana careat sepultura: nec absolvatur, nisi prius
damno, quod intulit, secundum facultatem suam resarcito, juret se ulterius ignem non appositurum.
Poenitentia ei detur, ut Hierosolymis, aut in Hispania in servitio Dei per integrum annum permaneat.
MANSI 21: 440.
3
Presbiteris, diaconibus, subdiaconibus concubinarum et uxorum contubernia prorsus interdicimus. Si
quis autem hujusmodi reperti fuerint, ecclesiasticis et officis priventur et beneficiis. HESSONIS SCHO-
LASTICI. Relatio de Concilio Remensi. MGH SS 12 : 427; ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiasticae Libri
Tredecim. LE PREVOST 4: 392-393; SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum. HODGSON-HINDE 1: 111;
MANSI 21: 236. Ver ainda: HEFELE-LECLERCQ 5/1: 576-591.
4
Presbyteris, diaconibus et subdiaconibus concubinarum et uxorum contubernia penitus interdicimus
et aliarum milierum cohabitationem, praeter quas synodus Nycena propter solas necessitudinum cau-
306 coLunas de são pedro

Por fim, com outro cânone aprovado na mesma ocasião, o décimo quin-
to:

Pela autoridade do Espírito Santo, confirmamos tudo o que foi estabele-


cido por nossos antecessores, pontífices romanos, quanto à paz e trégua
de Deus, ao incêndio e aos caminhos públicos.5

Mais minuciosos, os cânones de Clermont descortinam mais justificati-


vas para as medidas decretadas. Eles conferem maior intensidade à caracteri-
zação dos estados morais em que os infratores deveriam ser vistos. A valoração
das violações ganha em visibilidade, sobeja em nuanças. Redobrava-se a aten-
ção dada aos predicativos associados a certos atos ilícitos. A rede de expres-
sões lançadas para categorizar os implicados tinha suas linhas multiplicadas
e preenchidas com julgamentos ainda mais contundentes. Daí a preocupação
daquele plenário de 1130 em combater os comportamentos que ameaçavam
desfigurar os princípios morais estipulados pelo papado:

Decidimos ainda que tanto os bispos como os clérigos se empenhem para


agradar a Deus e aos homens pela disposição da alma e pela disposi-
ção de seu comportamento, e que não chamem atenção pela amplitude,
corte ou cor das vestimentas ante os que os observam, para os quais
devem ser modelo e exemplo; mas que apresentem a eles a santidade
conveniente.6

Tem sido mantido, assim o sabemos, um costume mau e detestável,


os monges e cônegos regulares, após tomarem o hábito e a santa pro-
fissão, desprezando as regras dos benévolos mestres Bento e Agostinho,
dedicam-se às leis temporais e à medicina para adquirir lucros tempo-
rais. Consumidos pela avareza, se fazem patronos [isto é, defenso-
res] de causas [seculares]. E como deviam se dedicar às salmodias e aos
hinos, reunidos em uma voz gloriosa, confundem, com a revoltosa
variedade de seus argumentos, o justo e o injusto, o permiti-

sas habitare permisit, videlicet matrem, sororem, amitam, materteram aut alias hujusmodi de quibus
nulla juste valeat oriri suspicio. CONCILIUM LATERANENSE GENERALE. MGH Const. 1: 575; SIMÃO
DE DURHAM. Historia Regum. HODGSON-HINDE 1: 122; FOREVILLE, 1972a: 225-228.
5
Quidquid vero de pace et trevia Dei vel de incendio seu de publicis stratis ad antecessoribus nostris
Romanis ponticibus constitutum est, nos sancti Spiritus auctoritate confirmamus. CONCILIUM LATE-
RANENSE GENERALE. MGH Const 1: 576; FOREVILLE, 1972a: 225-228.
6
Praecipimus etiam quod tam episcopi quam clerici in statu mentis, in habitu corporis, Deo & homin-
bus placere studeant, & nec in superstuitate, scissura aut colore vestium intuentium, quorum forma
& exemplum esse debent, offendant aspectum, sed quod eorum deceat sanctitatem. MANSI 21: 438.
Leandro duarte rust 307

do e o proibido. As constituições imperiais atestam ser um absurdo


e uma completa vergonha, para os clérigos, querer se apresentar
como peritos em questões diante de um tribunal. Temerosos [sobre isto,
decretamos] que sejam severamente castigados. Estes mesmos que aban-
donam o cuidado das almas, sem observar minimamente o propósito
de sua ordem, prometem a saúde em troca do detestável dinheiro
e se encarregam de curar os homens em seus corpos. Posto que o olho
impuro é mensageiro de um coração impuro, estas [coisas]
que a honestidade enrubesce ao falar, não devem ser debatidas
em nome da religião.7 (Os grifos são nossos)

A letra que ditava o enquadramento das condutas tornou-se mais se-


vera, talvez implacável. Aos eclesiásticos era exigido seguir o caminho da
“santidade conveniente”, afastar-se dos “costumes maus e detestáveis”. O mal
maior, que advinha de um “coração impuro”, consistia em “confundir o justo
e o injusto, o permitido e o proibido”. Todavia, os clérigos não eram os únicos
alvos desta atenção redobrada: o concílio de Pisa (maio-junho de 1135) proi-
biu a escravização de cristãos por tratar-se de “costume desumano e odioso a
Deus, perpetrado por ambiação de dinheiro” e que vilipendiava a memória do
sacrifício de Cristo, pois “se o senhor de todos, foi digno de ser condenado
a uma morte horrenda para nos libertar da servidão, sem dúvida indigno é o
homem livre que, criado à imagem e semelhança Dele, é transformado em um
animal selvagem”.8 (Os grifos são nossos)
O fundamental persiste. Todos estes trechos expressam percepções tem-
porais. Em todos eles a temporalidade é um caminhar humano, mais do que
um ir-e-vir de momentos, meses, anos. O que aí dura, acima de tudo, são
diferentes porções de valores e qualidades atrelados a ações exercidas, atos
cometidos. A percepção das mudanças e do transcorrer da vida tomava forma
ao espelhar um movimento de estados morais: o antes da inocência, retidão e

7
Prava autem consuetudo, prout accepimus, & detestabilis inolevit, quoniam monachi & regulares
canonici post susceptum habitum & professionem sanctam, spreta bonorum magistrorum Benedicti &
Augustini regula, leges temporales & medicinam gratia lucri temporalis addiscunt. Avaritiae namque
flammis accensi se patronos causarum faciunt. Et cum psalmodiae & hymnis vacare deberent, gloriosae
vocis freti munimine allegationum suarum varietate justum & injustum fasque nefasque confundunt.
Attestantur vero imperiales constitutiones absurdum, immo & opprobium esse clericis, si peritos se ve-
lint disceptationum esse forensium, hujusmodi temeratoribus graviter seriendis. Ipsi quoque neglecta
animarum cura, ordinis sui propositum nullatenus attendentes, pro detestandam pecunia sanitatem
pollicentes, humanorum curatores se facium corporum cumque impudicus oculum impudici cordis sit
nuntius, illa de quibus loqui etiam erubescit honestas non debet religio pertractare. MANSI 21: 438.
8
Illam sane inhumanam et Deo odibilem consuetudinem qua videlicet pro ambitione pecuniae (...).
Si enim redemptor noster, cum omnium dominus esset ut nos a servitude diaboli liberaret dignatus est
morte turpissima condempnari, indignum valde est ut liber homo, ad imagem et similitudinem eius
conditus, quase brutum animal caro aut vili precio comparetur. SOMERVILLE, 1970a: 108.
308 coLunas de são pedro

liberdade; o depois da impureza, degradação e escravização. Como no século


XI, o tempo está aí representado como grandeza humana, atributo pessoal.
Todavia, o contraste que distingue as posições morais de uma persona foi agu-
çado, gravado com uma verve incomum. Comparemos as fórmulas textuais
empregadas por Gregório VII (1078), Calisto II (1119) e Inocêncio II (1135)
para condenar a haeresia simoniaca:

Concílio de Roma Concílio de Toulouse Concílio de Pisa


(1078) (1119) (1135)
As ordenações que são reali- Prosseguindo nos passos dos Se alguém tiver sido ordenado
zadas pela intervenção de um santos pais, proibimos de todas de modo simoníaco, que seja
preço, de apelos, do serviço re- as maneiras, pela autoridade da retirado do ofício que ilicita-
alizado por alguma pessoa com Sé Apostólica, que qualquer mente usurpou. Se ele tiver
esta intenção, e que não foram pessoa seja ordenada ou ele- adquirido prebendas, honras
realizadas com o consenso do vada [de grau] por dinheiro. ou qualquer promoção eclesi-
clero e do povo de acordo com Se alguém tiver obtido a orde- ástica, através de dinheiro, in-
as sanções canônicas (...), nós nação ou a elevação desta ma- tervindo com o execrável ardor
decretamos inválidas, para que neira, que seja completamente da avareza, que seja privado
aqueles ordenados de tal ma- privado da dignidade obtida.10 da honra adquirida de modo
neira não entrem pela porta, errôneo, e que uma manifesta
isto é, por Cristo, pois, como a infâmia recaia tanto sobre o
própria Verdade é testemunha, comprador e como sobre o ven-
são ladrões e usurpadores.9 dedor.11 (Os grifos são nossos)

O cânone toulousiano é sumário. Ele é uma simples coordenada para a


aplicação da lei, e seu pequeno texto flutua na imensidão dos silêncios escritos
da vocalidade. O romano vai além. Ele qualifica um simoníaco como “ladrão e
usurpador” e chega a apresentar os nefastos procedimentos pelos quais aquele
que compra ou vende bens eclesiásticos era capaz de ingressar na Igreja cristã.
Porém, é a medida pisana que investe as maiores energias para desqualificar o
“modo simoníaco”. Ela descreve o lugar ao qual o infrator passava a pertencer
e revela o entorno “infame” de uma atitude que exalava o “execrável ardor da
avareza”.

9
Ordinationes, que interveniente pretio vel precibus vel obsequio alicui persone ea intentione impen-
so vel que non communi consensu cleri et populi secundum canonicas sanctiones fiunt (...), irritas esse
dijudicamus, quoniam, qui taliter ordinantur, non per ostium id est per Christum intrant, sed, ut ipsa
Veritas testatur, fures sunt et latrones. GREGÓRIO VII. Reg. 6: 5b. MGH, Epp. sel. 2: 403.
10
Sanctorum patrum vestigiis insistentes, ordinari quemquam per pecuniam in ecclesia, vel promove-
ri, autoritate sedis apostolicae omnimodis prohibemus. Si quis autem sic ordinationem vel promotio-
nem acquisiverit, acquisita prorsus careat dignitate. MANSI 21: 226.
11
Si quis simoniace ordinatus fuerit, ab officio omnino cadat quod illicite usurpavit. Vel si quis prae-
bendas, aut honorem, vel promotionem aliquam ecclesiasticam interveniente execrabilis ardore ava-
ritiae, per pecuniam adquisivit, honore male adquisito careat, & emptor ac venditor & nota infamiae
percellantur. MANSI 21: 489.
Leandro duarte rust 309

Esta ampliação das caracterizações textuais não significava que o re-


gistro escrito se apoderava de espaços até então dominados pela vocalidade.
A lei continuava sendo, acima de tudo, aquilo que a voz dizia ser. Os textos
seguiam incompletos, imperfeitos, abertos aos sentidos finais que somente os
gestos orais e as justificativas pessoais eram capazes de revelar. Voltemos nos-
sos olhos, por exemplo, para a legislação aprovada, em dezembro de 1138, na
assembleia presidida em Londres por Albérico, cardeal bispo de Óstia e legado
romano de Inocêncio II. Ela está repleta de “atos de fala”, das marcas que a
vocalidade imprimia sobre as ações deliberativas do papado:

Estabelecemos que, daqui por diante, nenhuma igreja ou qualquer be-


nefício eclesiástico seja reivindicado como herança paterna ou estabele-
cido para seus sucessores como benefício eclesiástico. Quem tiver ousa-
do fazê-lo, estabelecemos que [sua reivindicação] deve ser [declarada]
inválida, tal como disse o Salmodista: “Deus meu, arraste em um tufão
aqueles que dizem possuir os santuários do Senhor por direito hereditá-
rio” [Sal. 82:13-14].12

Submetemos à autoridade do papa Nicolau que assim diz: “que sejam


distintos os soldados de Cristo dos soldados seculares, não convém aos
soldados da igreja lutar junto ao século, uma vez que seria necessário
atingir a efusão de sangue”. Em suma, assim como é ignóbil a um laico
celebrar missas, conduzir os sacramentos do corpo e sangue de Cristo,
é inconveniente e absurdo a um clérigo empunhar armas e conduzir-se
para a guerra, pois como diz o apóstolo Paulo: “Ninguém que milita para
Deus se embaraça com negócios desta vida” [II Tim 2:4].13

Igualmente acrescentamos a isto o decreto do papa Inocêncio ditado a


Victrício arcebispo de Rouen: “monges que por muito tempo habitam
monastérios, se em seguida tiverem alcançado o clero, não devem se
desviar de seu propósito primevo”. Por conseguinte, os que estiverem em
monastérios não devem abandonar ao serem colocados em grau supe-

12
Sancimus praetera nequis ecclesiam, seu quaelibet beneficia ecclesiastica, paterna sibi vendicet hae-
reditate, aut successorem sibi in ecclesiastico constituat beneficio. Quod si praesumptum fuerit, irritum
fore dicernimus, cum Psalmista dicentes: Deus meus, pone illos ut rotam, qui dixerunt, hereditate
possideamus sanctuarium Dei. MANSI 21: 512. Cânone 6.
13
His subjungimus quoque auctoritate Nicolai papae dicentis: cum discreti sint milites Christi a mili-
tibus saeculi, non convenit militem ecclesiae, saeculo militare: quia per effusionem sanguinis necesse
sit pervenire. Denique sicut turpe est laicum, Missas facere, sacramenta corporis & sanguinis Christi
conficere, ita ridiculum & inconvenientes est, clericum arma sustollere, & ad bella procedere: cum Pau-
lus apostolicus dicat: Nemo militans Deo implicat se negotiis saecularibus. MANSI 21: 513. Cânone 12.
310 coLunas de são pedro

rior, ao serem conduzidos à ordem do clericalato, como há muito tempo


tem sido observado.14

O texto materializava atos de fala. O império da vocalidade perdurava.


O escrito de fato se estendia, abocanhava mais espaço na difusão das decisões
papais. Porém, não em prejuízo da voz, mas para atender a uma necessidade
de comportar maior densidade moral, abarcar descrições mais demoradas a
respeito de certos aspectos da vida coletiva. O textual parece ter sido recruta-
do para ressaltar os aspectos oriundos da infração e do pecado. Não bastava
localizar e emitir comandos canônicos. Era necessário esmiuçá-los, vasculhá-
los, tatear seu fundo moral, remexer os predicativos até então depositados
nas entrelinhas para desnudar as propriedades cobertas pela excomunhão.
Foi o que evidenciou ainda o cânone 27 do concílio lateranense presidido por
Inocêncio II em 1139:

Decretamos que seja abolido o detestável costume estendido a algu-


mas mulheres que, sem viver segundo a regra do bem-aventurado Ben-
to, nem de Basílio ou de Agostinho, desejam, todavia, ser publicamente
reconhecidas como monjas. Aquelas que vivem segundo uma regra nos
monastérios, estão obrigadas a levar a vida comum tanto na igreja como
no refeitório e no dormitório. E [estão] ainda mais [obrigadas] aquelas
que constróem retiros e casas privadas nas quais, sob o véu da hospita-
lidade, recebem em certas ocasiões hóspedes e pessoas seculares contra
os santos cânones e os bons costumes, e isto sem a mínima
vergonha. Posto que toda pessoa que age mal odeia a luz, assim
estas mulheres escondidas “nas tendas dos justos” [Prov. 14:11] pen-
sam, talvez, escapar do juiz que tudo vê, proibimos absolutamente que
se perpetue um escândalo tão detestável e tão pernicioso e o
proibimos sob pena de anátema.15 (Os grifos são nossos)

14
Item adjicimus hoc decretum Innocentii papae, dicentis Victrico Rotomagensi archiepiscopo: mo-
nachi diu morati in monasteriis, si postea ad clericatum pervenerint, non debent aliquatenus a priore
proposito deviare. Sicut in monasteriis positi fuerint, ita in clericatus ordine degere debent, & quod
diu servaverunt, id in altiori gradu positi, amittere non debent. MANSI 21: 513. Cânone 13. Sobre a
assembleia de Londres, ver ainda: HADDAN & STUBBS 2: 31-32; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 710-711.
15
Ad haec perniciosam et detestabilem consuetudinem quarundam mulierum quae licet neque secun-
dum regulam beati Benedicti neque Basilii aut Augustini vivant sanctimoniales tamen vulgo censeri
desiderant aboleri decernimus. Cum enim iuxta regulam degentes in coenobiis tam in ecclesia quam
in refectorio atque dormitorio communiter esse debeant propria sibi aedificant receptacula et privata
domicilia in quibus sub hospitalitatis velamine passim hospites et minus religiosos contra sacros cano-
nes et bonos mores suscipere nullatenus erubescunt. Quia ergo omnis qui male agit odit lucem ac per
hoc ipsae absconditae in iustorum tabernaculo opinantur se posse latere oculos iudicis cuncta cernentis
hoc tam inhonestum detestandum que flagitium ne ulterius fiat omnimodis prohibemus et sub poena
anathematis interdicimus. MANSI 21: 532-533.
Leandro duarte rust 311

As apreciações dos comportamentos saltam à vista. Com certa razão,


poderíamos dizer que elas ganharam dramaticidade, decoradas com fortes
oposições espalhadas pelo cânone: “detestável” versus “bem-aventurado”,
“agir mal” versus “os bons costumes”, “escândalo tão detestável e pernicioso”
versus “véu da hospitalidade”. O texto transcorre como um desfile de fortes
contrastes, proporcionando aos olhos a imagem de alternâncias drásticas, de
variações intensas, de maneiras de existir que transitam a todo o momento de
um estado a outro. As palavras de conotação visual – “véu”, “tendas”, “luz”,
“juiz que tudo vê” – combinam, num único movimento, significados espaciais
e conotações morais. Mais do que identificar lugares, expressões como “casa
privada” e “áreas comuns” (como os dormitórios e refeitórios) correspondem
a ambientes morais: a primeira nomeia o espaço daqueles que alimentam a
dissimulação, a velhacaria, a trapaça; enquanto a última identifica os recin-
tos habitados por todos aqueles que acalentavam a franqueza, a inocência, a
probidade.
No trecho documental acima, o espaço é moral. Ele identifica o lugar
dominado por alguma postura, o cenário de certas atitudes e escolhas. O alvo
do cânone, isto é, aquelas mulheres inadequadamente reconhecidas como
monjas, deveria ser retirado de um lugar-moral, a esfera “privada” na qual se
“escondia” do olhar humano, e reposicionado em outro ambiente comporta-
mental, este sim, franco, aberto, ao alcance imediato da “luz”. O texto conci-
liar faz o espaço traduzir estados de consciência, formas de agir. Ele povoa o
mundo com as oscilações morais existentes em cada pessoa.
Nos registros conciliares das décadas de 1130, uma maior tensão se faz
presente nas medidas decretadas pelo papado, ao atravessá-las com diferen-
ciações morais mais bruscas, condenações ainda mais tenazes do que antes. É
o que revela igualmente a comparação dos seguintes cânones:

Concílio de Latrão Concílio de Reims


(1123) (1131)
Proibimos que sejam realiza- Proibimos absolutamente
dos casamentos entre consan- que sejam realizadas uniões
guíneos, uma vez que estes entre consanguíneos. Pois,
são proibidos pelas leis divi- este modo de incesto, que já
nas e humanas. Pois as leis está presente nos costumes
divinas não apenas rechaçam por instigação do inimigo do
aqueles que [assim] contra- gênero humano, é abominada
em [matrimônio] e os que pelos decretos dos santos pais
daí nascem, como os nomeia e pela sacrossanta igreja de
de malditos; as leis humanas Deus. As leis seculares ainda
os designam de infames e os
312 coLunas de são pedro

excluem das heranças. Se- declaram infames os nascidos


guindo nossos pais, nós os de tais matrimônios e os ex-
distinguimos com a infâmia clui da herança.17 (Os grifos
e os julgamos ser infames.16 são nossos)
(Os grifos são nossos)

A mudança era gradativa, talvez pontual. Poderíamos até mesmo enca-


rá-la como perceptível apenas através de indícios, vestígios, traçados circuns-
tanciais. Mas nem por isso, ela pode ser considerada menos nítida ou marcan-
te. Vejamos. Os dois cânones acima denegriram as uniões entre consanguíneos
como “infâmia”. Eles concordam em enfatizá-las como contrárias a qualquer
lei: as humanas e divinas aqui, as seculares e “dos santos pais” acolá. Veículos
da política promovida pelo papado acerca do casamento, esses dois cânones
estão unidos por um mesmo propósito: perpetuar o controle clerical sobre os
laços matrimoniais ao afastá-los da alçada familiar e de vínculos de parentesco
(BROOKE, 1989: 126-143; BRUNDAGE, 1987: 176-186). Ambos expressavam
a mesma mensagem, isto é, reafirmavam uma hierarquização e um controle
social emanados do poder pontifical.
Mas, o cânone de 1131 o fez recorrendo a uma combinação de palavras
mais afiada, cerrada, aguda. Sua redação gravou um dualismo mais acentua-
do: uniões incestuosas eram mais do que infames ou contrárias às leis terrenas
e celestiais, eram atos “abomináveis instigados pelo inimigo do gênero huma-
no”. O antagonismo em relação ao celestial é mais forte e se consuma no uso
da expressão “sacrossanta igreja de Deus”, da qual o casamento não-canônico
figura como a manifesta antítese. Mais que maldito, o vínculo matrimonial
entre parentes era infernal. Mais que divergente dos mandamentos divinos,
ele violava a pureza da própria igreja: um casamento incestuoso desponta no
texto promulgado em Reims como lástima ainda maior do que aquela apre-
sentada pelo cânone lateranense. Ele surge como atentado ainda mais grave à
integridade da fé cristã.
A favor desta argumentação temos outro relevante aspecto. O decreto
de Reims é o único dos dois a remeter o leitor à figura do Diabo. Por sinal, não
pudemos encontrar uma menção semelhante nos concílios da década de 1120,

16
Conjunctiones consanguineorum fieri prohibemus, quoniam eas et divinae et saeculi prohibent le-
ges. Leges enim divinae hoc agentes et eos qui ex eis prodeunt, non solum ejiciunt, sed maledictos
appellani; leges vero saeculi infames tales vocant, ab hereditate repellunt. Nos itaque Patres nostros
sequentes, infamia eos notamus et infames eos esse censemus. CONCILIUM LATERANENSE GENERA-
LE. MGH Const. 1: 575; SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum. HODGSON-HINDE 1: 122.
17
Sane conjunctiones consanguineorum omnino fieri prohibemus. Hujusmodi namque incestum, qui
jam fere stimulante humani generis inimico in usum versus est, sanctorum patrum statuta, & sacros-
sancta Dei detestatur ecclesia. Leges etiam saeculi de tali contubernio natos, & infames pronuntiant, &
ab hereditate repellunt. MANSI 21: 461.
Leandro duarte rust 313

entretanto, a alusão feita em 1131 não veio desacompanhada. Outra referên-


cia pode ser encontrada no mesmo conjunto de cânones:

18
Igualmente concordamos que seja submetido ao anátema aquele que,
instigado pelo Diabo, tiver incorrido em desvio de sacrilégio ao ter
atacado violentamente um clérigo ou monge, e que ninguém dentre os
bispos ouse absolvê-lo, até que ele se apresente diante do papa e dele
receba a permissão.18 (Os grifos são nossos)

Estes dois cânones de Reims foram reproduzidos na legislação latera-


nense de 1139, que reuniu ainda decisões aprovadas nos concílios de Cler-
mont (1130) e Pisa (1135). Entre os decretos aí compilados, eis que nos depa-
ramos com uma nova referência aos domínios do Maligno:

Existe, entre outras coisas, algo que grandemente perturba a santa igre-
ja, isto é, a falsa penitência; admoestamos nossos irmãos e os presbíteros
que não permitam que as almas dos laicos sejam enganadas por falsas
penitências e [sejam] assim arrastadas para o inferno.19 ( Os gri-
fos são nossos)

Diabolo. Infernum. Sessenta e seis sínodos e concílios foram reunidos


em nome da autoridade apostólica ao longo das três primeiras décadas que
seguiram o ano de 1100. Em todo este conjunto, há uma única menção a um
destes dois termos. Ela encontra-se disposta no cânone 12 da assembleia pre-
sidida por Pascoal II em Troyes, maio 1107: “Se alguém, instigado pelo Diabo
– que isto não aconteça – pela audácia de sua temeridade tiver ousado violar estes
decretos da santa Sé Romana...”.20 Já para o período de 1130 a 1139, nos regis-
tros de apenas nove assembleias pontifícias, há nove alusões diretas ao Diabo,
“o inimigo do gênero humano”, e ao inferno: duas nos decretos de Clermont
(cânones 10 e 12), outras duas nos de Reims (as mesmas, transcritas como
cânones 13 e 16), duas nos de Pisa (decretos 6 e 7), por fim, três nos de Latrão

18
Item placuit, ut si quis suadente diabolo hujus sacrilegii reatum incurrerit, quod in clericum vel
monachum violentas manus injecerit, anathemati subjaceat: & nullus episcoporum illud praesumat
absolvere, donec apostolico conspectui praesentetur, & ejus mandatum suscipiat. MANSI 21: 461.
Cânone 13.
19
Sane quia inter cetera unum est quod sanctam maxime perturbat ecclesiam falsa videlicet poeni-
tentia confratres nostros et presbyteros admonemus ne falsis poenitentiis laicorum animas decipi et in
infernum pertrahi patiantur (...). MANSI 21: 531-532. Cânone 22.
20
Quod si quis instigante, quod absit, diabolo temeritatis suae audatia sanctae romanae sedis violare
decreta presumpserit (...). BLUMENTHAL, 1978: 96.
314 coLunas de são pedro

(decretos 15, 17 e 22). Em nossa opinião há uma lógica política por trás da
repetição destes vocábulos. Tentemos desvendá-la.
Algumas décadas ainda seriam necessárias para as assembleias papais
sofrerem os impactos do movimento cultural que levou as diversas elites da
Cristandade a atribuir uma influência diabólica a certas minorias: judeus,
bruxas, hereges. Essa associação não esteve presente nos concílios do nosso
período. No tocante às preocupações com a bruxaria ou as práticas mágicas,
não encontramos qualquer lampejo textual nos registros conciliares de 1130 a
1139. A usura, prática que, juntamente com a acusação de cometer assassina-
tos rituais, se tornaria um estigma inescapável para o judaísmo, não aparece
nas legislações do período como um pecado cujas raízes desceriam até o infer-
no (MOORE, 1989: 76-120; RICHARDS, 1993: 53-120). Na realidade, sequer
a usura é especificamente associada aos judeus. Ela aparece como uma afronta
à moralidade devida, acima de tudo, pelos próprios cristãos, como demonstra
o cânone 13 do concílio de Latrão, de 1139:

Condenamos a insaciável rapacidade dos usurários condenada e pros-


crita pelas leis divinas e humanas, repudiada pelas sagradas escrituras,
tanto no Antigo como no Novo Testamento; a excluímos de todos os con-
solos que a igreja concede, proibindo a todo arcebispo ou bispo, a todo
abade de qualquer ordem que seja e a todo clérigo em qualquer ordem,
admitir aos usurários os sacramentos, a não ser com extrema cautela.
Que estes sejam tidos como infames por toda sua vida e, se não chega-
rem a se corrigir, [que sejam] privados de sepultura cristã.21

A influência demoníaca tampouco é associada aos hereges, aos quais os


decretos conciliares não atribuem traço diabólico algum. Os padres reunidos
em São João de Latrão proclamaram sua expulsão da ecclesia cristã e incumbi-
ram os poderes seculares de torná-la efetiva. Isto foi feito sem caracterizá-los
como pessoas malignas ou infernais: “expulsamos e condenamos (...) como he-
reges, todos os que, sob aparência de religião, condenam o sacramento do corpo e
do sangue do Senhor, o batismo das crianças, o sacerdócio, as demais ordens ecle-
siásticas e os matrimônios legítimos”.22 A heresia aparece atribuída a escolhas

21
Porro detestabilem et probrosam divinis et humanis legibus per scripturam in veteri et novo testa-
mento abdicatam illam inquam insatiabilem foeneratorum rapacitatem damnamus et ab omni ecclesias-
tica consolatione sequestramus praecipientes ut nullus archiepiscopus nullus episcopus vel cuiuslibet
ordinis abbas seu quivis in ordine et clero nisi cum summa cautela usurarios recipere praesumat. Sed
in tota vita infames habeantur et nisi resipuerint christiana sepultura priventur. MANSI, 21: 529-530.
22
Eos autem qui religiositatis speciem simulantes domini corporis et sanguinis sacramentum baptisma
puerorum sacerdotium et ceteros ecclesiasticos ordines et legitimarum damnant foedera nuptiarum
tamquam haereticos ab ecclesia dei pellimus. MANSI 21: 532. Cânone 23.
Leandro duarte rust 315

distorcidas, a consciências poluídas, não a uma manipulação diabólica. Em


suma, nos concílios papais dos anos 1130 não encontramos qualquer “agente
de Satã”, segundo a conhecida expressão cunhada por Jean Delumeau (1989:
260-349). A razão parece ter sido a que segue.
A crença na ação diabólica não pressupunha, especificamente, algum
pecado em particular (MUCHEMBLED, 2003: 9-68; RUSSEL, 1986: 159-244).
Ela nomeva, antes, uma audácia no agir, um destemor em tomar a iniciativa
em questões diante das quais o cristão deveria conter sua habilidade de es-
colher. A associação com o Diabo era projetada sobre quem transgredia os
preceitos de não atacar clérigos ou monges, não arrancar os filhos do convívio
com os pais para torná-los escravos, não negligenciar a consanguinidade para
contrair núpcia, não se deixar cair nas malhas da falsa penitência. Os cânones
falam de apostasia e usura. Estes eram pecados gravíssimos. Mas o mal últi-
mo, verdadeiramente terrível e que era visto como esgueirando diretamente
das trevas, estava em violar o mandamento de que, em certas ocasiões, tudo o
que cabia aos cristãos era conformar-se em não decidir, não tomar a iniciativa,
inibir a própria vontade.
Maligno era aquele que infringia a passividade esperada. Se a inação
foi rompida e a resignação atormentada, isto indicava, aos olhos dos homens
que conduziam os concílios papais, a ação de uma força maior, uma instigação
malévola que provocava a deserção do divino. Aqueles eclesiásticos viam a si
mesmos no coração de uma batalha, da luta entre o maléfico e o celestial. En-
tretanto, as diferenças que separavam os dois lados em guerra não derivavam
apenas de uma oposição entre pecadores e virtuosos, entre os reféns das pul-
sões da carne e os defensores da retidão espiritual. Este antagonismo decorria
igualmente de outra característica: a contraposição entre agir e resignar-se.
Diabólico era algo mais do que ser prisioneiro deste ou daquele pecado, ser
títere deste ou daquele vício. Era destilar o espírito da desordem, cultivar a
perturbação da palavra fundadora. Maléfico era converter-se em embusteiro,
inimigo de limites (RUSSELL, 1991: 62). A dicotomia sustentada pelos câ-
nones dispunha, de um lado, os que se obstinavam em escolher e, do outro,
aqueles que consentiam em acatar ou simplesmente em omitir-se. O arquiini-
migo do que era atribuído ao divino era agir à revelia de limites, conduzir-se
sem peia, escolher tão só pela própria vontade.
Os textos conciliares dão razão a Neil Forsyth (1989: 4) e à afirmação
de que Satã ou o Diabo “define um ser que pode ser apenas contingente: como o
adversário, ele deve sempre ser uma função do outro, não uma entidade indepen-
dente”. Nos concílios papais da década de 1130, Satã não era definido somente
por uma personificação de pecados ou de vícios. Ele nomeava, fundamental-
mente, aquilo que derivava da postura do outro de não abdicar da escolha,
316 coLunas de são pedro

de não reconhecer sua impotência em certas matérias. “Diabólico” era o nome


encontrado para esconjurar a autonomia e a desobediência.
Ao longo da década de 1130, sob o reinado de Inocêncio II, o poder
papal recrutou a figura do Diabo como apelo textual para inflamar a caracteri-
zação moral das condutas e fazer pesar sobre os cristãos um discurso conciliar
ainda mais persuasivo, impactante. Era preciso tornar a redação dos câno-
nes mais intimidatória, projetar redes de intecionalidades que envolvessem os
agentes sociais de modo ainda mais apertado. O papado parecia temer, mais
do que antes, sofrer do mal da desobediência. Razões políticas para isso não
faltavam.

6.2. O cisma de 1130

Em 1119, com a lembrança do sequestro de Pascoal II ainda assom-


brando a Cúria, as difíceis negociações pela “concórdia entre o reino e o sa-
cerdócio” foram retomadas após a eleição do arcebispo Guy de Vienne como
papa Calisto II. O recém-eleito trazia em si uma vantagem política valiosa, um
atributo único, capaz de amenizar entre os germânicos a lembrança de seu en-
volvimento com as campanhas de 1111-1116 pela excomunhão de Henrique
V: um ilustríssimo berço.
Filho do conde palatino da Borgonha, o novo papa trajava uma consan-
guinidade generosa, cujo tronco familiar fazia dele um “nascido em estirpe
real” – embora, sem reino ou coroa para herdar – e parente do próprio impe-
rador.23 O prestígio de sua linhagem, que se derramava de uma ponta a outra
da Cristandade, da Galícia a Jerusalém, e o parentesco com Henrique abriram
caminho para uma retomada das negociações, apesar dos muitos obstáculos.
Afinal, seu antecessor, Gelásio II, falecera amedrontado pela nova expedição
militar conduzida pelo imperador contra Roma, em 1116, e pela elevação do
arcebispo de Braga, Maurício, como “antipapa” Gregório VIII.24
Em setembro, três anos após a entronização de Calisto, as tratativas che-
garam a termo na cidade de Worms. Os legados Lamberto, então cardeal bispo
de Óstia, Gregório, cardeal diácono de Sant’Ângelo, e Saxo, cardeal diácono
de Santo Estevão, receberam de Henrique a seguinte promessa:

23
SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 107; LANDULFO, O JOVEM. Historia Mediola-
nensis. RISS 3: 29; HISTORIA COMPOTELANA. ES 20: 270-271.
24
Ver: HESSONIS SCHOLASTICI. Gesta in Concilio Remens. RHGF 14: 202-203; SIMÃO DE DURHAM.
Historia Regum. HODGSON-HINDE 1: 111-112 SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE:
107-108.
Leandro duarte rust 317

Em nome da santa e indivisa Trindade. Eu, Henrique, pela graça de Deus


augusto imperador dos Romanos, pelo amor de Deus, da santa Igreja
romana e do senhor papa Calisto, e para a saúde de minha alma, aban-
dono a Deus, aos seus santos os apóstolos Pedro e Paulo e à santa igreja
católica toda investidura pelo anel e pelo báculo, e concedo que seja
realizada uma eleição e uma consagração livres em todas as igrejas. As
possessões e regalia do bem-aventurado Pedro que foram tomadas desde
o princípio desta discórdia até o dia de hoje, ou [desde] o tempo de meu
pai até o meu, as que mantenho, restituo à mesma santa Igreja romana;
as que não mantenho, auxiliarei fielmente para que sejam restituídas.
Pelo conselho dos príncipes e pela justiça, eu entregarei as possessões de
todas as demais igrejas, príncipes e outros, tanto clérigos como laicos,
que mantenho; as que não mantenho, auxiliarei fielmente para sejam
entregues. E garanto uma paz verdadeira a Calisto e à santa igreja roma-
na e todos que estiverem ou estão em partido do mesmo. E naquilo que
a santa Igreja romana tiver solicitado meu auxílio, fielmente auxiliarei,
e sobre aquelas [questões] que ela tiver levado uma queixa a mim, eu
far-lhe-ei a devida justiça.25

A retribuição pontifícia seguiu-se em dois atos. No primeiro, os carde-


ais firmaram o seguinte compromisso, proferido como se ecoasse da própria
garganta papal:

Eu, Calisto, servo dos servos de Deus, concedo a ti, querido filho Hen-
rique, augusto imperador dos romanos pela graça de Deus, que sejam
realizadas em tua presença, sem simonia e qualquer violência, as elei-
ções de bispos e abades do reino dos teutônicos. Se tiver se levantado a

25
In nomine sancte et individue Trinitatis. Ego Heinricus Dei gratia Romanorum imperator augustus
pro amore Dei et sancte Romane aecclesie et domini pape Calixti et pro remedio anime mee dimitto
Deo et sanctis Dei apostolis Petro et Paulo sancteque catholice aecclesie omnem investituram per anu-
lum et baculum, et concedo in omnibus ecclesiis, que in regno vel imperio meo sunt, canonicam fieri
electionem et liberam consecrationem. Possessiones et regalia beati Petri, que a principio huius discor-
die usque ad hodiernum diem sive tempore patris mei sive etiam meo ablata sunt, quae habeo, eidem
sancte Romane ecclesie restituo, quae autem non habeo, ut restituantur fideliter iuvabo. Possessiones
etam aliarum omnium ecclesiarum et principum et aliorum tam clericorum quam laicorum, quae in
verra ista amisse sunt, consilio principum vel iusticia, quae habeo, reddam, quae non habeo, ut reddan-
tur fideliter iuvabo. Et do veram pacem domino pape Calixto sancteque Romane ecclesie et omnibus
qui in parte ipsius sunt vel fuerunt. Et in quibus sancta Romana ecclesia auxilium postulaverit, fideliter
iuvabo et, de quibus mihi fecerit querimoniam, debitam sibi faciam iusticiam. PRECEPTUM HEINRICI.
MGH LL 2: 76; PRIVILEGIUM IMPERATORIS. MGH Const. 1: 159-160; EKKEHARD DE AURA. Chro-
nicon. MGH SS 6: 260; ANSELMO DE GEMBLOUX. MGH SS 6: 378; GUILHERME DE MALMESBURY.
Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 669; SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum. HODGSON-HINDE 1:
118-119.
318 coLunas de são pedro

discórdia entre as partes [envolvidas na eleição], que ofereças o auxílio


e a anuência à mais digna das partes, com o conselho ou julgamento
do metropolitano e dos bispos da província. Que o eleito receba de ti as
regalia através do cetro, exceto qualquer exação, e que ele cumpra as
obrigações por direito devidas a ti. Quanto àquele consagrado em outras
partes do império que, em seis meses, ele receba de ti as regalia através
do cetro e cumpra as obrigações por direito devidas por ele, excetuados
aqueles sobre quais é conhecido pertencerem à igreja romana. Quanto
àquelas [questões] que tiveres reclamado a mim e solicitado meu au-
xílio, prestarei a ti o devido auxílio segundo o meu ofício. Concedo a
ti uma paz verdadeira e a todos que estiveram ou estão em teu partido
durante esta discórdia.26

O segundo ato legatino garantiu ao imperador e a seus sucessores o di-


reito de exigir lealdade aos que integrariam a ecclesia imperial. Tão logo fosse
eleito, um abade ou bispo teutônico deveria, com a permissão da autoridade
apostólica, devotar à coroa um juramento pré-fixado pela fórmula que se se-
gue:

Desde este momento, eu serei fiel ao imperador X por uma fé reta, se-
gundo meu saber e poder. Não tomarei parte em nenhum conselho para
que ele perca a vida, os membros, o reino dos italianos e seu legítimo
poder, e no interior do império eu irei auxiliá-lo segundo meu saber e
poder para que mantenha [o império] e defenda contra todos os homens
que tiverem desejado tomá-lo para si.27

26
Ego Calixtus episcopus servus servorum Dei tibi dilecto filio Heinrico Dei gratia Romanorum impe-
ratori augusto concedo, electiones episcoporum et abbatum Teutonici regni, qui ad regnum pertinent,
in praesentia tua fieri, absque simonia et aliqua violentia; ut si qua inter partes discordia emerserit,
metropolitani et conprovincialium consilio vel iudicio, saniori parti assensum et auxilium praebeas.
Electus autem regalia per sceptrum a te recipiat et quae ex his iure tibi debet faciat. Ex aliis vero par-
tibus imperii consecratus infra sex menses regalia per sceptrum a te recipiat et quae ex his iure tibi
debet faciat; exceptis omnibus quae ad Romanam ecclesiam pertinere noscuntur. De quibus vero mihi
querimoniam feceris et auxilium postulaveris, secundum officii mei debitum auxilium tibi praestabo.
Do tibi veram pacem et omnibus qui in parte tua sunt vel fuerunt tempore huius discordiae. PRIVI-
LEGIUM CALIXTI. MGH LL 2: 75-76; PRIVILEGIUM PONTIFICIS. MGH Const. 1: 161; EKKEHARDO
DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 260; ANSELMO DE GEMBLOUX. MGH SS 6: 378; GUILHERME DE
MALMESBURY. Gesta Regum Anglorum. HARDY 2: 668-669; SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum.
JOHN HODGSON-HINDE 1: 118-119. Calisto não estava presente em Worms.
27
Ab hac hora in antea fidelis ero N. imperatori per rectam fidem, secundum meum scire et posse.
Non ero in consilio, ut vitam aut membra perdat, Italicum regnum et suam rectam potestatem; infra
regnum adjutor ero ei secundum meum scire et posse ad tenendum et defendendum contra omnes
homines, qui sibi tollere voluerint. JURAMENTUM SEU PROMISSO QUAE REGI VEL IMPERATORI
DEBET FIERI. MGH LL 2: 77.
Leandro duarte rust 319

Em 1122, após cinquenta anos de desentendimentos desastrosos, Pa-


pado e Império firmaram um compromisso quanto às competências cabíveis
a cada um no tocante à gestão de ofícios, dignidades e patrimônios eclesiais.
Os termos do acordo deixavam numerosas arestas ainda por aparar. Seu texto
simplesmente silenciava a respeito de matérias como a natureza das realezas,
se sacras ou laicas: controvérsia que era verdadeira seiva de décadas de exco-
munhões, deposições, sevícias e uma guerra propagandística entre papalistas
e imperialistas. Tal aparência de incompletude ou superficialidade decorria
do fato do acordo ser menos a concretização de uma concordata teorizada ou
solução jurídica, do que uma acomodação criada por ensinamentos práticos.
O Pactum Calixtinum – conhecido entre os historiadores como “Concordata de
Worms” – era um ajuste entre permissões e renúncias toleráveis: o pontífice
entregava a um “poder laico” parcelas substanciais da obediência episcopal e
monástica; a coroa imperial, por sua vez, abdicava ao “direito hereditário” de
dispor da transmissão do anel e báculo pastorais. Apostar nesse jogo de con-
cessões para pôr um fim nos desendimentos acerca das investiduras era uma
constante nas ações do poder pontifício há quase duas décadas.
Em agosto de 1107, diante de Anselmo, arcebispo de Canterbury, o rei
Henrique I renunciou ao “antigo direito às investiduras” após receber de Pas-
coal II a garantia de poder impor a homenagem ao monarca como exigência
para alguém ser investido em uma função eclesiástica. Eadmero, na Historia
Novorum in Anglia, afirma que o pontífice absolveu de excomunhão todos os
que haviam recebido a investidura e prestado homenagem à coroa. 28 O gesto
não era simples ou trivial. Para fazê-lo, o papado precisou desligar o passado,
desativar suas decisões anteriores. Afinal, a concessão contrariava os decre-
tos aprovados por Urbano II, em Clermont, 1095, cujos cânones decretavam
“que um bispo ou sacerdote não estabeleça fidelidade lígia pelas mãos do rei ou
de qualquer laico”29; e contradizia o próprio Pascoal, que, em Roma, 1102, se
disse “ciente e contrário a que qualquer um realize homenagem a um laico ou
receba da mão laica igrejas ou bens eclesiásticos”.30
Desde 1107, a Sé Romana contava ainda com um compromisso seme-
lhante firmado pelo capeto Felipe I: este aceitou a realização de eleições ecle-
siásticas livres, mas sob a aprovação papal de que nenhuma delas ocorresse

28
EADMERO. Historia Novorum in Anglia. RULE: 186. E ainda: GUILHERME DE MALMESBURY. De
Gestis Pontificum Anglorum. HAMILTON: 117.
29
Ne episcopus vel sacerdos regi vel alicui laico in manibus ligium fidelitatem faciat. MANSI 20: 817.
30
In synodo nuper apud Lateranense consistorium celebrata, patrum nostrorum decreta renovavimus,
sancientes, & interdicentes, ne quisquam omnino hominum faciat laico, aut de manu laici ecclesias,
aut ecclesiastica bona suscipiat. JL 5908; EADMERO. Historia Novorum in Anglia. RULE: 135-136.
320 coLunas de são pedro

sem a prévia anuência real. Além disso, o eleito tinha a obrigação de jurar
fidelidade pelas regalia recebidas da realeza dos francos. O pacto, relatado por
Ekkehardo de Aura, em seu Chronicon, e pelo abade Suger, na Vita Ludovici
Grossi Regis, quitava uma dívida.31 Três anos antes, Pascoal absolveu o mo-
narca de uma excomunhão que já se arrastava por dez anos, causando sérios
estragos à lealdade dos bispos galicanos ao rei. Enfraquecida pelas missões le-
gatinas, a fidelidade episcopal tinha sido reduzida de forma alarmante: segun-
do Jean-François Lemarignier (1965: 144-149), a partir da década de 1070 –
época de Hugo de Die e Amato de Òleron – o número de bispos integrantes do
entourage capetíngio entrou em queda livre, de aproximadamente 20%, antes
de 1077, ele mal chegava a 5% em 1108 (Ver ainda: MONOD, 1907: 63-86;
DUBY, 1988: 9-20). Logo, manter em bons termos as relações com o sucessor
de Pedro tornou-se indispensável para a coroa dos capetos, então desprovida
de meios para sustentar contra o papado uma efetiva oposição eclesiástica.32
Além disso, outras razões pesavam. O rei não podia se arriscar a deixar seu
maior antagonista, o normando Henrique I – na época aliado de seus rivais
declarados, como os senhores de Meulan e a família dos Rochefort – tomar a
dianteira do favorecimento papal.
Seguindo os passos de Henrique e Felipe, em algum momento entre
1106 e 1114, Coloman voluntariamente teria renunciado “às investiduras de
bispos e outros prelados, [abdicando ao que] os reis da Hungria tinham se acos-
tumado a fazer até aquele tempo”, segundo Martinho da Polônia e seu Chro-
nicon Pontificum et Imperatorem.33 Não obstante as lacunas documentais exis-
tentes, o gesto húngaro era condizente com o que se passava nos Bálcãs desde
1102, quando Coloman foi coroado rei da Dalmácia, Croácia e Eslovênia –
regiões subtraídas à influência de Veneza e Constantinopla – com aprovação
pontifícia (ENGEL, 2005: 34-45). Para Pascoal, esta aliança envolvia o perigo
de afastar ainda mais o vital apoio bizantino às cruzadas.
Mas o papa estava acostumado a pagar altos preços pela renúncia dos
poderes laicos às investiduras. Em 1106, tentando obtê-la do imperador, ele
contornou a recomendação canônica de punir Henrique V por investir bis-
pos com os símbolos pastorais. Pascoal não apenas se negou a excomungar o
soberano, como ditavam os decretos de Gregório VII e Urbano II, como che-

31
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 242; SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA
MARCHE: 31-36.
32
A excomunhão de Felipe foi levantada no concílio de Paris, sob recomendação papal, em 1104: JL
5979; LAMBERT DE ARRAS. Epistola. RHGF 15: 197-198.
33
Huius temporibus rex Ungarie ad ammoniciones papales per litteras suas scribens domno pape,
renunciavit investituris episcoporum et aliorum prelatorum, quas usque ad illa tempora reges Ungarie
facere consueverant. MARTINUS POLONUS. Chronicon Pontificum et Imperatorem. MGH SS 22: 435.
Leandro duarte rust 321

gou, inclusive, a confirmar nas funções eclesiásticas os que receberam a cura


animarum das mãos do rei: no concílio de Guastalla, ele consagou Conrado
como arcebispo de Salzburg após ele já ter sido investido do arcebispado por
Henrique, o qual, além disso, já havia concedido o anel episcopal e o báculo,
pessoalmente, a Gottaschalk de Minden, Udalrich de Regensburg e Gerhard de
Speyer.34 O papa desobedecia a aplicação dos decretos de seus antecessores de
“santa memória” para conquistar a adesão monárquica germânica.
O resultado das concessões papais pode ser encontrado no texto do Trac-
tatus de Investitura Epistocoporum. Texto apologético, duvidosamente escrito
em 1109 pelo monge Sigeberto de Gembloux (STOCLET, 1984: 454-459) em
defesa da prerrogativa imperial da investidura. Em suas páginas encontramos
o lamento pela notícia de que “os monarcas de Espanha, Escócia, Inglaterra
e Hungria” (Hyspanie, Scotie, Anglie, Ungarie) tinham já passado do “antigo
costume para a moderna novidade” (ex antiquo usque ad modernam novitatem)
da renúncia à investidura episcopal por mãos régias.35
Quando Calisto subiu ao Trono de Pedro, em 1119, o papado já havia
articulado alianças regionais suficientemente influentes para isolar e debilitar
a reivindicação imperial de um “direito hereditário” às investiduras. Colunas
regionais ampararam a conclusão do Pactum Calixtinum. Porém, ao cravar a
distinção entre o ofício e o patrimônio eclesiásticos – o primeiro como razão
da obediência devida ao papa (pela investidura), o segundo como motivo de
lealdade ao rei (pela posse das regalia) –, esse Pactum teria feito mais do que
fechar um círculo de compromissos regionais acerca da gestão da autoridade
eclesiástica.
Segundo a historiografia, ele reorientou a condução da política papal.
Não mais o incendiário tema das investiduras dominaria as preocupações dos
homens incumbidos de agir em nome da autoridade apostólica. Eles estavam
livres para depositar maior ênfase sobre os assuntos internos da hierarquia
eclesiástica, como a formação dos sacerdotes, o entrosamento com os poderes
laicos, a amplitude das isenções monásticas, os fundamentos teológicos das
práticas sacramentais e de certas controvérsias doutrinárias. Além disso, o
pacto teria realinhado as concepções acerca das relações entre o regnum e o
sacerdotium, não mais antagonistas, mas aliados. Os desafios nascidos com a
“Reforma Gregoriana” teriam, finalmente, ficado para trás.
Aos olhos de Hans-W. Klewitz, jovem historiador alemão que em 1939
lançou Das Ende des Reformpapsttums, o pacto de Worms separou a era refor-
madora em duas, mas ao custo de dividir o papado ao meio. Sua assinatura

34
EKKEHARDO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 240; BLUMENTHAL, 1978: 32-73.
35
TRACTATUS DE INVESTITURA EPISCOPORUM. MGH Ldl 2: 500.
322 coLunas de são pedro

reuniu, de um lado, o cardinalato antigo, cujos integrantes, promovidos ao


manto púrpura por Urbano II e Pascoal II, agarravam-se ao conservadorismo
hierocrático de Gregório VII, hostis à nova aliança celebrada com o império
em 1122. Do outro lado, ele teria cerrado um flanco de cardinales novitii que,
elevados à Cúria por Calisto II e Honório II, viam na aproximação com o Im-
pério um meio para reformas mais amplas da organização eclesial (Ver ainda:
ROBINSON, 1990: 47-50). O Pactum teria sido o estopim de um choque polí-
tico de diferentes gerações de cardeais.
Em 1942, Pier Palumbo publicou Lo Scisma del MCXXX: I precedenti, la
vicenda Romana e le ripercussioni europee della lotta tra Anacleto ed Innocenzo
II col registro degli atti di Anacleto II, após servir-se por anos do convívio com
Pietro Fedele (1904: 399-440; 1910: 493-506), perito em Roma medieval.
Palumbo (1942: 141-179) minimizou a importância conferida ao acordo, mas
não à desunião entre os integrantes da Sé Romana. Ainda que se distancias-
se da perspectiva de Klewitz, Lo Scisma acresceu novos aspectos à secessão
cardinalícia, então compreendida como uma luta de política local, novo capí-
tulo das disputas internas que integravam a história do movimento comunal
romano. A divisão da Cúria foi concebida como resultado da infiltração de
rivalidades da “nova aristocracia”: as famílias rivais Pierleoni e Frangipani,
que suplantavam Crescenzi e Tusculanos na cena política citadina. A Sé Apos-
tólica, enfraquecida pelo histórico de relações intempestivas com os poderes
seculares – relações que não teriam cessado com o Pacto de 1122 –, teria
se dobrado às intervenções de forças urbanas em franca ascensão. A cúpula
pontifícia teria sido convertida em palco da competição pelo poder que tomou
conta de Roma e do próprio Lácio. A cisão de dois grupos no interior do pa-
pado prolongava, sob este prisma, um antagonismo social maior, uma fratura
sociológica que se propagava como luta de fracções aristocráticas pelo poder
local. A amplitude atingida pela disputa evidenciava-se, disse Palumbo, na
virulenta campanha de execração da ancestralidade judaica do cardeal Pedro
Pierleoni, expoente de um dos grupos. A maciça propaganda anti-judaica mo-
vida contra ele recobriria um repúdio a elementos considerados antirromanos.
Na década de 1960, a historiografia sofreu nova guinada, passando a
enquadrar a divisão da Sé Romana em parâmetros ainda mais abrangentes.
Em 1961, Franz Josef Schmale publicou Studien zum Schisma des Jahres 1130
e selou a retomada da perspectiva inaugurada por Klewitz, amplificando-a.
A união do alto clero pontifical teria derivado de profundas diferenças a res-
peito da condução da igreja, ruindo sob o choque de visões contrárias sobre
a correta eclesiologia cristã. A cisão não poderia ser reportada somente a um
fundo de conflitos aristocráticos citadinos. Os cardeais teriam se distribuído
em grupos rivais segundo linhas de espiritualidade em manifesto conflito: os
Leandro duarte rust 323

pertencentes à orientação beneditina tradicional, mas em franco declínio (re-


presentada por Cluny e Monte Cassino), se opunham àqueles cativados pelas
novas safras de reformadores (proporcionadas por ordens religiosas como Cís-
ter ou a Cartuxa). Um grupo dissidente se formou no interior da Cúria quando
os cardeais entusiastas das novas fundações monásticas e do ideal de vida
dos cônegos regulares se aproximaram. Neste sentido, se o Pactum Calixtinum
teve algo a ver com o fato do colégio de cardeais ter rachado ao meio foi por
ter dado vazão a sentimentos generalizados de descontentamento com a in-
fluência da espiritualidade do monaquismo tradicional. Por este olhar, a Santa
Sé teria sido atingida em cheio pela “crise do monasticismo” ocidental, e a
dissensão entre os cardeais decorria da bifurcação dos rumos trilhados pela
“Reforma da Igreja”. Visão encorajada por renomados autores, como Norman
Cantor (1960: 47-67), em The crisis of Western Monasticism, e Jean Leclercq
(1971: 217-237), em La Crise du Monachisme aux XI au XII siècle.
Desta forma, tão logo os historiadores eram convocados a elucidar como
a desunião dos cardeais estourou na dupla eleição pontifícia em 1130, desen-
cadeando o mais profundo e duradouro cisma da Cristandade ocidental em
cem anos, um argumento basilar era engatilhado: tratou-se da manifestação
institucional de uma colisão de grandes correntes reformadoras.
Interpretação endossada em 1952 com a publicação de The Schism of
Anacletus II and the Glanfeuil Forgeries of Peter the Deacon, por Herbert Bloch,
e novamente em 1972, quando Stanley Chodorow concluiu Christian Politi-
cal Theory and Church Politics in the Mid-Twelfth Century. Na gélida manhã
de 13 de fevereiro de 1130, as acaloradas diferenças entre os cardeais trans-
formaram a escolha de um sucessor para Honório II em uma balbúrdia de
consequências catastróficas. Em poucas horas, os altares das igrejas de Roma
foram abafados por uma tormenta de vozeirios. Grandes grupos de clérigos e
laicos corriam de santuário em santuário, trançavam palavras de ordem pelas
ruas, proclamando dois nomes diferentes como “papa”: alguns falavam em
“Inocêncio II”, nome adotado pelo cardeal Gregório de Sant’Ângelo; outros
diziam que o lugar de Pedro havia sido dado a “Anacleto II”, alcunha escolhida
por Pedro Pierleoni, cardeal dos Santos Cosme e Damião. A disputa entre os
eleitos retratava uma extensa fratura da espiritualidade cristã, segundo Bloch
e Chodorow. Embora com discordâncias e correções pontuais, ambos viram
aquela rivalidade como o resultado de um inédito efeito multiplicador.
Quando as diferenças entre os cardeais vieram à tona, cada partido re-
forçou suas afinidades reformadoras e ativou suas conexões com as grandes
instituições religiosas do mundo medieval, tais como abadias, arcebispados,
primazes. A contenda entre os cardeais teria se alastrado por inúmeras vias,
sempre no rastro da grande divisão que desde o século XI empurrava as elites
324 coLunas de são pedro

senhoriais para campos opostos de espiritualidade: regulares versus seculares;


Monte Cassino versus Farfa, Cluny versus Citeaux, cardeais anacletianos ver-
sus cardeais inocencianos. Interpretação sustentada por outros autores, como
Adriaan Bredero (1971: 135-176), para quem a maciça maioria de não-italia-
nos entre os cardeais nomeados por Calisto II e Honório II teria permitido às
correntes reformadoras “inovadoras” escoar para dentro da Igreja de Roma,
diminuindo os espaços de quem até então conduziu o poder decisório papal,
isto é, os herdeiros do monaquismo “tradicional”.
Com isso, as disputas aristocráticas tão enfatizadas por Pier Palumbo te-
riam sido acirradas por fatores externos à vida política romana, inflamadas por
conflitos de fé. Na realidade a ascensão de novos ramos aristocráticos era, em
si, um fenômeno marcadamente religioso. Segundo, Demetrius Zema (1944:
155-175) e Hélen Tillmann (1970, p. 441-464; 1972: 313-353), por trás do
poder e riqueza amealhados por famílias como os Frangipani e os Pierleoni
estavam alianças e favorecimentos propiciados pela autoridade apostólica. Di-
ferentemente da “velha aristocracia” romana do século XI, as novas casas no-
biliárquicas estavam na órbita de influência papal. Suas disputas repercutiam
as lutas reformadoras. A esta altura das discussões historiográficas, o Pactum
Calixtinum foi jogado para segundo plano, convertido em um mero gatilho
factual que fez estourar um grande enfrentamento de projetos reformadores.
Está aí a linha-mestra das explicações existentes para a vitória de Ino-
cêncio II após duros anos de conflito: protegido por Haimerico, o influente
chanceler papal nomeado por Calisto II, e favorecido pela identificação com
as vanguardas religiosas da época, ele teria contado com o apoio dos líderes
da “Reforma do século XII”. A causa da sua eleição, que era a dos cardinales
novitii, contou com o apoio dos abades Pedro, o Venerável, de Cluny, Suger,
de Saint-Denis, Bernardo, de Claraval; de Guido, prior da Grande Cartuxa; e
ainda de Norberto de Xanten, fundador da ordem de Prémontré e arcebispo
de Magdeburgo (BLOCH, 1952: 159-264; CHODOROW, 1972: 17-47). Com as
elites senhoriais da época cativadas de modo especial pela onda de patronato
das novas fundações religiosas, estes “homens fortes” da fé reformadora te-
riam oferecido influência e prestígio inigualáveis para a eleição de Inocêncio,
cravando sua legitimidade. Tal suporte teria assegurado uma larga adesão
nobiliárquica e o respaldo de realezas de grande peso político: as coroas cape-
tíngia, anglo-normanda e germânica.
As questões de espiritualidade teriam afetado as relações de força que
permeavam a sociedade ocidental nas décadas de 1100 a 1150. Quem con-
trolou a ordem da “Reforma”, se apoderou da política – é o que dizem os
historiadores. Eis a chave para compreensão da vitória dos inocencianos. A
veracidade deste argumento, asseguraram ainda Hubert Claude (1953: 80-
Leandro duarte rust 325

93) e Jacqueline Bernard (1975: 113-136), é demonstrada pelo papel decisivo


desempenhado pelo maior líder reformador do período, Bernardo de Claraval.
Graças ao ilustre abade cisterciense, Inocêncio pôde contar com um amparo
canônico não encontrado na página da In Nomine Domini – a decretal de abril
de 1059 que regulamentava a eleição papal –, e do qual os anacletianos foram
incapazes de dispor, não obstante contassem com maioria no colégio cardina-
lício. Bernardo teria feito a balança da legalidade pesar a favor de somente
um dos dois papas.
Deflagrado como contenda eleitoral, o cisma de 1130 teria sido ampli-
ficado pelas diferenças entre as experiências religiosas vigentes, que derra-
mavam rivalidades por toda a Cristandade. O trono papal teria sido a arena
de uma disputa pela hegemonia de certas tendências reformadoras sobre a
Cristandade ocidental.
Em 1987 este panorama historiográfico foi severamente abalado com
a publicação de The Jewish Pope: ideology and politics in the papal schism of
1130, de Mary Stroll. A autora reabriu o debate ao demonstrar convincente-
mente que a espiritualidade não foi fator preponderante na composição das
alianças que levaram os inocencianos à vitória. Passando em revista cada li-
tígio enredado pelos personagens do cisma, Stroll desnudou as numerosas
inconsistências da tese de que os alinhamentos políticos mantidos pelos dois
grupos curiais obedeciam a grandes linhas de programas reformadores supos-
tamente partilhados. Dito de outra forma, reis, arcebispos e abades de grande
prestígio não estenderam seu apoio aos partidos litigantes em razão de alega-
das concepções religiosas em comum. Pois os grupos que apoiavam Inocêncio
II e Anacleto II não eram blocos unitários de atitudes homogêneas face à re-
forma. Ambos eram atravessados por diferentes espiritualidades. Ambos eram
receptivos às novas correntes do monaquismo e, simultaneamente, adeptos da
perpetuação de práticas e regras religiosas tradicionais. O desfecho do cisma
de 1130 não se explica como matéria de espiritualidade, pois simplesmente
não havia “partidos reformadores” discerníveis. As afirmativas em contrário
institucionalizam a reforma como plataformas de ação, quando, de fato, ela
formava um planetário de práticas descentradas, quando não contraditórias e
ambivalentes.
Após remover o chão que até então sustentava a compreensão histórica
da disputa ocorrida na cúria papal em 1130, The Jewish Pope se confrontou
com o desafio de não deixá-la flutuar em um vazio intelectual:

Se o cisma não foi produzido por partidos curiais distinguidos, funda-


mentalmente, por diferentes ideologias religiosas e fortemente opostos
um ao outro, qual, então, era a causa? Sugiro que não houve uma causa
326 coLunas de são pedro

perceptível a não ser a busca pelo poder, mas se tal foi a rubrica, a busca
assumiu muitas formas (STROLL, 1987: 156).

Acolhemos a crítica de Mary Stroll e o desafio lançado de revisitar um


tema há muito tido como solucionado de uma vez por todas. E o fazemos
convencidos de que um exame atento dos concílios papais pode revelar, com
riqueza de detalhes, as “múltiplas formas” da busca pelo poder que conduzi-
ram o cisma de fevereiro de 1130 a um fim. Para isso, precisaremos seguir os
passos de algumas eminentes figuras da cúpula papal.

6.3. O triunvirato legatino

Comecemos no encalço de João de Crema, cardeal presbítero de S. Cri-


sogonus, em sua viagem através da Inglaterra em 1125. Durante a Quaresma,
João ganhou os solos da Britannia e rumou para o norte. Segundo a Historia
Regum, de Simão de Durham, após reunir-se com David I, o rei escocês, João
presidiu um sínodo em Roxburg, inteirando-se da resistência dos bispos locais
em reconhecer o arcebispo de York como metropolitano.36
No dia 8 de setembro, de volta ao sul, João reuniu vinte bispos, qua-
renta abades e uma multidão de clérigos e laicos num pomposo concílio em
Londres, onde foi aprovado um conjunto de dezessete austeros decretos
voltados para a disciplina clerical. Eram eles: a proibição de cobranças por
consagrações, bençãos, crismas e penitências (cânones 1-3); a suspensão da
capacidade dos laicos de dispor de certos bens eclesiásticos, como dízimos,
igrejas, benefícios, (cânones 4 e 5); a ordem para que somente os clérigos ca-
nonicamente ordenados conservassem a posse de benefícios e igrejas (cânone
6); a regulamentação da ordenação clerical (cânones 7 a 9) e da jurisdição
episcopal (cânones 10 e 11); a proibição do acúmulo de funções eclesiásticas
(cânone 12); a condenação das relações sacerdotais com esposas, concubinas
e “demais mulheres que não mães, irmãs ou isentas de suspeitas” (cânone 13);
a interdição da usura ao clero (cânone 14); a excomunhão de quem recorria
a adivinhos e magos (cânone 15); a proibição de casamento entre parentes de
até sétimo grau e a defesa da inviolabilidade do laço matrimonial (cânones 16
e17)37. As medidas eram inspiradas nas decisões promulgadas nos concílios de
Londres de 1102 e 1108, presididos pelo arcebispo de Anselmo de Canterbury,

36
SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum. JOHN HODGSON-HINDE 1: 127. E ainda: HADDAN &
STUBBS 2: 211; MANSI 21: 327-328; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 658. A Patrologia Latina preservou a
epístola papal de recomendação do legado: HONÓRIO II. Epistola. PL 166: 1232.
37
SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum. JOHN HODGSON-HINDE 1: 128-129; MANSI 21: 329-333.
Ver ainda: HEFELE-LECLERCQ 5/1: 658-659.
Leandro duarte rust 327

além de recuperar decisões tomadas em Reims, 1119, e em Latrão, 1123, sob


a presidência de Calisto II.
Naquela mesma ocasião, João de Crema logrou ainda que os arcebispos
Guilherme, de Canterbury, e Thurstan, de York – à época, engalfinhados na
disputa pelo posto de primaz da Britannia –, concordassem em encaminhar
ao papa a arbitragem de seu litígio.38 Após o concílio, ambos acompanharam
João até Roma, para apresentar suas pretensões a Honório II. A aproximação
entre o legado e os arcebispos semeou no episcopado escocês a suspeita de
que sua resistência à autoridade York estava com os dias contados. Afinal, o
cardeal parecia tratar o arcebispo com grande reverência, permanecendo a
todo momento rodeado por sua companhia. Porém, seus temores logo foram
aplacados pela notícia de que o legado pontifício caiu em desgraça e sua legi-
timidade desmorou antes mesmo de deixar a Britannia.
A Historia Anglorum, de Henrique de Huntington, e os Annales Monas-
terii de Wintonia relatam que a memória eclesiástica local passou a associar
o concílio de Londres a um scandalum. De boca em boca, uma “estória vergo-
nhosa” passou a circular entre os cantos da grande ilha, dando conta de que
após proclamar veementemente o celibato e agir com severidade contra as
mulheres de sacerdotes, o legado romano teria sido flagrado com uma prosti-
tuta.39 Martin Brett (1975: 44-45) viu em tais acusações indicador da magni-
tude do sucesso obtido pelo cardeal na missão. O rígido fazer-valer da auto-
ridade apostólica imposto por João teria forçado a reação do clero local, que
vivenciou as ações do cardeal como violação de suas liberdades. O contragolpe
veio em forma de campanha difamatória. A estória teria sido então criada
para ridicularizar o enviado do papa e desmoralizar suas ordens disciplinares,
apresentando-o como o maior incapaz de cumpri-las. Mary Stroll (2004: 169-
170), por sua vez, sugere que as acusações são dignas de certo crédito, pois
se sabe que, após a missão legatina, Honório II decretou a suspensão de João
da titularidade cardinalícia. Teria sido esta a reação papal ao scandalum. Em
todo caso, a notícia deste flagrante delito assinalava o término da mais bem
sucedida atuação de um legado no reino inglês em décadas.
Dos anos 1070 em diante, o rei Guilherme I e o arcebispo Lanfranco de
Canterbury ergueram e sustentaram um estreito controle régio sobre toda a
igreja anglo-normanda, minimizando o impacto das incursões legatinas pro-
movidas pelo governo gregoriano. Em 1095, a tolerância papal foi formaliza-
da quando Urbano II reconheceu ao detentor da coroa do “Conquistador” o

38
SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum. JOHN HODGSON-HINDE 1: 128-129.
39
ANNALES MONASTERII DE WINTONIA. LUARD 2: 47-48; HENRIQUE DE HUNTINGDON. Historia
Anglorum. THOMAS: 246.
328 coLunas de são pedro

poder de proibir a entrada de legados e até mesmo de cartas romanas em seus


domínios.40 Em novembro de 1121, em Gisors, Henrique I recebeu a renova-
ção deste privilégio das mãos do próprio Calisto II. Segundo a Historia Novo-
rum in Anglia, “o rei conseguiu do papa que ninguém pudesse exercer o ofício de
legado na Inglaterra, a não ser quando ele próprio reclamasse quanto a alguma
grande querela que não pudesse ser concluída pelo arcebispo de Canterbury e os
demais bispos do reino”.41 Concessão confirmada pelo Chronicon Anglicanum,
de Rodolfo de Coggeshall.
Como frisou Norman Cantor (1958: 100), o acordo “privou completa-
mente a igreja inglesa de comunicações livres e independentes com o papado”. As-
sim, naquele lado do canal da Mancha, as atribuições legatinas de um enviado
romano deveriam ser requisitadas ao próprio monarca. Foi o que perceberam
Guy, arcebispo de Vienne, em 1100, e o cardeal Pedro Pierleoni, em 1121:
quem vinha em nome do papa era recebido com grande pompa, mas sem
qualquer poder efetivo para tomar decisões e instituir normas (STROLL, 2004:
146-151). Destoando deste quadro, o concílio reunido por João de Crema em
Westminster foi um ato legatino único. Tendo ou não transcorrido em meio ao
mencionado escândalo, aquele era um feito sem precedentes em aproximada-
mente trinta anos. E fruto de uma barganha.
Três meses antes de sua viagem, em junho de 1125, João recomendou
a Calisto II que anulasse o casamento de Guilherme Clito e Sibila de Anjou.
Desde 1122, Guilherme pegava em armas para reaver o ducado da Norman-
dia, sua herança paterna incorporada por Henrique I, seu tio. O jovem filho
de Robert Curthose – duque derrotado e encarcerado pelo rei – contava com
o apoio de boa parte da nobreza normanda, mobilizada por Amaury de Mon-
fort, conde de Evreux; Waleran de Beaumont, conde de Meulan; e por Luís VI,
rei capetíngio. A união com Sibila colocaria à disposição de Clito os recursos
do condado do Maine, invejável dote da noiva, além de firmar uma aliança
com Fulque, conde de Anjou. A importância da região pode ser avaliada pelo
comportamento do próprio tio de Clito, afinal o rei Henrique manteve aquelas
terras sob seu jugo mesmo após devolver a Fulque a filha mais velha da casa
de Anjou, Matilde, à época a detentora nominal do condado (como dote),
após ela enviuvar de seu primogênito.
Munido do Maine e auxiliado por Anjou, o jovem Clito se tornaria um

40
HUGO DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8: 475; EADMERO. Historia Novorum in Anglia. RULE: 68.
41 Inter quae rex a papa impetravit ut omnes consuetudines quas pater suus in Anglia habuerat et in
Normannia sibi concederet et maxime ut neminem aliquando legati officio in Anglia fungi permitteret,
si non ipse, aliqua praecipua querela exigente et quae ab archiepiscopo Cantuariorum caeterisque epis-
copi regni terminari non posset, hoc fieri postularet a papa. EADMERO. Historia Novorum in Anglia.
RULE: 258. Ver ainda: RODOLFO DE COGGESHALL. Chronicon Anglicanum. STEVENSON: 08.
Leandro duarte rust 329

adversário formidável do rei anglo-normando. Suas chances de vitória po-


deriam ser sentidas pelo ar. O casamento de Guilherme e Sibila foi matéria
de deliberação legatina no sínodo reunido em Chartres pelos cardeais Pedro
Pierleoni e Gregório S. Ângelo, em março de 1124: discutindo a questão, lado
a lado, os futuros Anacleto II e Inocêncio II nada decidiram. No mesmo ano, a
união chegou a ser condenada por Gerardo de Angoulême, mas o legado e a
sentença foram desautorizados por Calisto II.42
Mas, em julho, o papa ouviu João de Crema. Em carta enviada aos bispos
de Paris, Chartres e Órleans, ele reportou a nova decisão de anular o matrimôni-
co perante a opinião apresentada pelo “nosso filho predileto, João, cardeal pres-
bítero”. As núpcias de Sibila estavam agora condenadas e os bispos instruídos
a lançar em interdito todas as áreas onde Guilherme Clito estivesse presente.43
Ser tratado como infame foi um duro golpe para o homem que levantava tropas
e recursos para reclamar pela legitimidade do que era seu, reivindicando sua
herança. Quando Calisto se pôs a agir conforme o conselho de João, o rei Henri-
que obteve uma vitória crucial para a conservação da Normandia. Triunfo ainda
mais realçado quando Fulque foi acusado de encarcerar emissários pontifícios,
tornando-se alvo de uma excomunhão e seus domínios de uma proibição dos
ofícios litúrgicos, acusado de encarcerar emissários pontifícios. Severamente pu-
nido, o conde recuou, e a aliança entre Clito e a casa de Anjou foi dissolvida. Isto
levou Henrique I a permitir que João cruzasse o canal da Mancha munido do
pleno exercício das atribuições legatinas, antes que tal função fosse conferida ao
cardeal por Honório II, o sucessor de Calisto II, morto em dezembro de 1124.44
O poder conferido a João, vicarius apostólico, retribuía o favorecimento
obtido pelo herdeiro do Conquistador. Entre os nove legados enviados pelo
papado ao reino anglo-normando, entre 1100 e 1135, o cardeal de São Cri-
sogonus foi exceção. Ele foi o único munido de prerrogativas efetivamente
aplicadas. Sua viagem abriu um interlúdio na rígida organização da igreja
anglo-normanda mantida desde os tempos de Guilherme I (POOLE, 1955:
184; BRETT, 1975: 34-47; HICKS, 1976: 301-310; STROLL, 2004: 164-167).
João de Crema era figura das mais influentes na Santa Sé. O Concilium
Generalem de Reims, reunido em outubro de 1119 e assembleia de maior vulto
em todo o pontificado de Calisto II – maior até mesmo do que aquela reunida
em Latrão quatro anos depois –,45 já havia sido teatro de demonstrações do
seu prestígio. Nesta ocasião, o papa fez do cardeal o porta-voz das principais

42
MANSI 21: 305-318; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 647-651;
43
JL 7165; BULLAIRE 2: 334.
44
HONÓRIO II. Epistola. PL 166: 1231.
45
ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiasticae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 372; EKKEHARD DE
AURA. Chronicon. MGH SS 6: 255; FALCO DE BENEVENTO. Chronicon Beneventanum. 1998: 31;
SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 114.
330 coLunas de são pedro

matérias envolvendo a Sé Apostólica. Coube a João, por exemplo, a tarefa de


exortar os presentes à obediência reclamada pelo pontífice no tocante a uma
matéria espinhosa: os limites entre a liberdade monástica e os direitos episco-
pais. O debate em questão envolvia a abadia de Cluny, cujas isenções e privilé-
gios eram contestados por Humbaldo, arcebispo de Lyon, e seu sufragâneo, o
bispo de Mâcon. Eles acusavam a abadia de descumprir o pagamento de taxas
e reter dízimos arquidiocesanos. Para pôr um fim ao entrevero, João desferiu
ríspido discurso assegurando as prerrogativas cluniacenses como cláusula de
uma proteção inviolável: salvaguardou as posses monásticas, exaltando sua
isenção como sinal de lealdade à Sé Apostólica.
Em certos momentos o cardeal podia ser visto conduzindo as delibera-
ções sozinho, com o papa ausente. E quando as sessões foram momentanea-
mente suspensas, para Calisto ir ao encontro de Henrique V, em Mouzon, ne-
gociar a renúncia imperial às investiduras, foi João o encarregado de conduzir
as tratativas e costurar o acordo entre as partes. Isto, o próprio cardeal levou
ao conhecimento do plenário conciliar, quando ele voltou a se reunir, como
atestam a Relatio de Concilio Remensi, a Historiae Ecclesiasticae Libri Tredecim
de Orderico Vital e a Vita Ludovici Grossi Regis, do abade Suger.46
À frente da assembleia de Reims, João certamente foi um dos interpe-
lados pelo rei Luís VI e suas queixas contra o monarca da Inglaterra. Orderico
Vital relata que o capeto protestou com ardor contra “a destruição e pilhagem
levadas à Normandia, que faz parte do meu reino”, e condenou a maneira indig-
na e o cativeiro impostos a Roberto, duque da Normandia, “meu vassalo, mas
irmão de seu senhor”. Luís acusou Henrique de encarcerar seu emissário, Ro-
berto de Bellême, e instigar o conde Tebaldo de Blois, “vassalo meu, a se erguer
de forma infame contra mim”.47 Regendo as cerimônias conciliares, o cardeal
de Crema foi diretamente implicado em conflitos cruciais, que impulsionariam
uma difícil, mas duradoura, “ascensão da monarquia capetíngia, entre 1119 e
1124, anos decisivos”, segundo palavras de Georges Duy (1992:135).
Outro a reclamar por apoio foi Audino, bispo de Évreux, que compare-

46
HESSONIS SCHOLASTICI. Relatio de Concilio Remensi. RHGF 14 : 202-203; ORDERIC VITAL. His-
toriae Ecclesiasticae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 383-384; SIMÃO DE DURHAM. Historia Regum.
JOHN HODGSON-HINDE 1: 110; SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 107-108.
47
Rex Anglorum (...) meisque subjectis plurimas infestationes et injurias ingessit, Normanniam, quae
de regno meo est (...), violenter invasit, et Rodbertum, ducem Normannorum, contra omne jus et faz,
detestabiliter tractavit. Hominem quippe meum, sed fratrem, dominumque suum (...). Rodbertum de
Belismo, legatum meum, per quem mandaveram regi quae volebam, in curia sua cepit (...), Tedbaldus
comes homo meus est, sed instinctu avunculi sui contra me nequiter erectus est. ORDERIC VITAL.
Historiae Ecclesiasticae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 376-378.
Leandro duarte rust 331

ceu perante o concílio para acusar o conde Amauri de Montfort de expulsá-lo


de sua diocese e saqueá-la. Em resposta, o papa proclamou o fim da violência
ao invocar a “Trégua de Deus, como ela foi estabelecida para ser observada pelo
papa Urbano II, de santa memória, no concílio de Clermont”. Por fim, todos os
privilégios concedidos e as decisões decretadas em Reims levavam o nome
do cardeal de Crisogono: Sanctae Ecclesiae Romanae diaconi cardinalis ac bi-
bliothecari. A lista dos agraciados incluía Urbano, bispo de Llandaff; Sebero,
abade de São Leão de Toul; Henrique bispo de Verdun; Gilberto, arcebispo de
Tours (que morreria em breve e seria substituído por Hildeberto de Lavardin);
Thierry, bispo de Naumburg; Thurstan, arcebispo de York; Burchardo, bispo
de Cambrai; Bertholdo, bispo de Hildesheim; Godebaldo, bispo de Utrecht.48
Dois anos depois, em Sutri, nosso personagem reaparece liderando as
tropas que encurralaram e renderam o “antipapa” Gregório VIII para condu-
zi-lo, metido a ferros, até Roma.49 Calisto encarregara João de capturar seu
maior rival. Em julho de 1128, restituído ao posto de cardeal e legado após o
suposto flagrante delicto de Londres, João dirigiu-se a Pávia, convocado a velar
por outra valiosa aliança papal.
Em 1125, o imperador Henrique V faleceu sem herdeiros. A sucessão
deveria recair sobre seu sobrinho, Conrado de Hohenstaufen. Contudo, na-
quela ocasião, o princípio da hereditariedade, condutor da ascensão régia por
dois séculos, perdeu vigor, permitindo aos príncipes teutônicos condicionar a
escolha do sucessor a uma eleição. Os procedimentos foram controlados por
Adalberto, arcebispo de Mainz e opositor dos sálios durante a crise de 1111-
1116. A eleição abriu caminho para um adversário da linhagem reinante, Lotá-
rio, conde de Supplinburg, ser aclamado e coroado. O papado, sob Honório II,
logo se arvorou em apoiar a escolha. Afinal, ela alterava a balança do poder no
reino dos germânicos, distanciando do trono os Hohenstaufen, continuadores
da dinastia que pegou em armas contra Gregório VII e sequestrou Pascoal II.
Mas, Conrado – cujo irmão, o duque da Suábia, tinha assento no conse-
lho eleitoral – reclamou a coroa e, enraizando sua resistência, rumou para o
norte da Itália, convertida em principal reduto de sua causa. Lá, foi coroado
rex Lombardiae por Anselmo, arcebispo de Milão. Era vital para a cúpula papal
zelar pela elevação de Lotário, “um antirrei legal” (FUHRMANN, 1986: 117-
122). Esta era a missão de João de Crema. Logo que alcançou a Lombardia, o
legado convocou um concílio em Pávia, excomungou o arcebispo e fulminou o

48
BULLAIRE, n. 78, 79, 82, 84-86, 88, 89.
49
EKKEHARD DE AURA. Chronicon. MGH SS 6 : 256; ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 479; FALCO
DE BENEVENTO. Chronicon Beneventanum, 1998: 27; OTO DE FREISING. Chronica sive Historia de
Duabus Civitatibus. MGH SS rer. Germ. 45: 330.
332 coLunas de são pedro

reconhecimento oferecido por ele a Conrado.50 Com isso, Lotário encontrou no


legado e cardeal de S. Crisogonus um fiador imprescindível de sua legitimida-
de. Pávia, Londres, Reims, Roma. João de Crema atuava nas principais linhas
de frente da política pontifícia. Onde quer que houvesse um assunto papal, lá
parecia estar a sombra do cardeal.
No mesmo período, outro legado atuava incansavelmente noutro front
das relações políticas papais. Entre os anos de 1128 e 1129, Mateus, cardeal
bispo de Albano, reuniu cinco concílios no norte da Gália. No primeiro deles,
em Reims, foi confirmada a decisão – então já decretada em um sínodo re-
centemente reunido pelo arcebispo local, Rainaud II, na cidade de Arras –, de
transferir a gestão de possessões eclesiásticas de Notre-Dame de Paris e Saint-
Jean em Laon de mãos canônicas para a tutela monástica. Ratificada por Luís
VI, a decisão levava o testemunho do arcebispo de Sens; dos bispos de Laon,
Paris, Soissons, Troyes, Meaux, e muitos abades.51 Meses depois, em outubro
de 1128, Mateus presidiu a solene assembleia de Rouen, onde estivera pre-
sente o rei Henrique I; os bispos, Godofredo de Chartres, Joscelin de Soissons,
Ricardo de Bayeux, Audino de Evreux, Turgivo de Avranches, João de Luxueil,
Ricardo de Coutances; muitos abades, entre os quais Rogério de Fécamp, Gui-
lherme de Jumiéges, Ragenfredo de Saint-Ouen, Guarino de Saint-Evroult,
Felipe de Evreux, Alan de Wandrille.52 Mansi atribui à assembleia a promulga-
ção de três resoluções: a proibição ao clero de manter esposas, de acumular
benefícios eclesiásticos e a condenação do uso laico de dízimos e oblações. As
duas últimas medidas são confirmadas por Orderico Vital, nos Historiae Eccle-
siasticae Libri Tredecim 53
Em janeiro do ano seguinte, novo plenário conciliar foi reunido sob o
comando do cardeal de Albano, em Troyes. Os homens aí reunidos estavam
encarregados de deliberar sobre o lugar cabível na igreja cristã à comunidade
de cavaleiros associada ao Templo de Salomão, em Jerusalém. Há nove anos,
seus integrantes, laicos, incorporavam outros votos ao de cruzado – votos de
pobreza, castidade e obediência –, ganhando assim ares de ordem religiosa;
sem, contudo, renunciar às armas e à habilidade de verter sangue. Sob os pe-
didos de Honório II e do patriarca de Jerusalém, os eclesiásticos reunidos em
Troyes deveriam apreciar o relato de fundação da comunidade e a descrição
de seus costumes. Em seguida, se o consenso assim o impusesse, deveriam
confirmar o modo de vida dos cavaleiros e dotá-los de um hábito e uma regra.

51
MANSI 21: 371-373; INOCÊNCIO II. Epistola. PL 169: 067.
52
ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiasticae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 497. A lista dos abades foi
identificada com o auxílio de: GAZEAU, 2007: 84.
53
MANSI, 21: 375-376; ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiasticae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 496-
497. E ainda: HEFELE-LECLERCQ 5/1: 672.
Leandro duarte rust 333

E assim foi feito.


Os padres conciliares redigiram um texto normativo de inspiração bene-
ditina e o confiaram a Hugo de Payns, fundador e líder daquela congregação
de cavaleiros religiosos. Mateus, portanto, desempenhou um papel central no
reconhecimento dos Templários, uma “nova experiência no centro da espiritu-
alidade medieval” – de acordo com os termos que Alain Demurger (2007: 38-
57) foi buscar na escrita de Simonetta Cerrini. O nome do cardeal de Albano
encabeçava uma lista de insignes personagens, detentores de grande influên-
cia no interior da Gália: além de Bernardo de Claraval, seguiram-no na apro-
vação da nova regra os arcebispos Renaud II de Reims e Henrique de Sens,
acompanhados por seus bispos sufragâneos, Godofredo de Chartres, Joscelin
de Soissons, Atto de Troyes, João II de Orléans, Hugo de Auxerre, Buchard de
Meaux, Bartolomeu de Laon, Pedro de Beauvais, Estevão de Senlis e Herbert
de Châlons-sur-Marne; três abades cistercienses, Estevão Harding de Císter,
Roger de Trois-Fontaines, Hugo de Pontigny; os abades beneditinos Raynaud
de Vézelay e Guy de Molesmes; além de Teobaldo II, conde da Champagne,
Blois e Chartres – presente com seu senescal, André de Beaudement – e, por
fim, Guilherme II, conde de Auxerre, Tonnerre e Nevers.54
É preciso destacar a demonstração de obediência oferecida pelo abade
de Claraval ao legado. Temendo que seu delicado estado de saúde não lhe
permitisse comparecer ao concílio, Bernardo enviou a Mateus uma carta onde
se justificava:

Meu coração está pronto a obedecer, mas não meu corpo. Consumido
por minha cabeça e exausto pelas transpirações de uma crescente febre,
minha fraca carne não é capaz de atender ao chamado de meu espírito
que clama. (...). Todavia, vós sabeis, digo, pai, que não ajo de forma de-
sobediente, mas sempre pronto a obedecer a tuas ordens.55

Menos de um mês se passou e o cardeal estava em Châlons-sur-Marne,


recebendo a abdicação de Henrique, bispo de Verdun, em outro pleito conci-
liar. Sobrinho de Matilda, filha do rei Henrique I, o bispo em questão havia
sido acusado junto ao papa de simonia e dilapidação dos bens eclesiais. Sem
conseguir provar a inocência do denunciado, Honório II encarregou o cardeal

54
GUILHERME DE TYR. Historia Rerum Gestarum in Partibus Transmarinis. RHC Occ. 1: 520-521;
MANSI 21: 357-358; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 670-671; DEMURGER, 2007: 70-74.
55
Fuit quidem parere paratum cor meum; sed non aeque et corpus meum. Saevientis siquidem acutae
febris exusta ardoribus et exhausta sudoribus, non valuit sufficere spiritui prompto caro infirma.. (...)
Vos tamen vobis (dico, pater) noveritis quia paratus sum, et non sum perturbatus, ut custodiam man-
data vestra. BERNARDO DE CLARAVAL. Epistola. PL 182: 123-124.
334 coLunas de são pedro

de chegar a um veredito.56 Aconselhado por Bernardo de Claraval, o bispo


evitou um julgamento indigno e renunciou a seu posto diante do plenário
reunido por Mateus (WILLIAMS, 1953: 202).
Por fim, ainda em 1129, o legado esteve à frente de um concílio em Pa-
ris, durante o qual foram restituídas à abadia de Saint-Denis as possessões e o
convento de Argenteuil. Em sua carta ao papa, Mateus relata que a decisão foi
tomada depois “de, subitamente, a audiência ter sido tomada pelos rumores da
infâmia com que as freiras se comportavam, para ignomínia de sua ordem”.57 A
decisão conciliar contemplava uma das mais enérgicas reivindicações de outro
poderoso da Gália, o abade Suger, que reclamava para sua abadia o controle
sobre Argenteuil. Participaram da decisão: Luís VI, monarca capeto, o arcebis-
po de Reims, os bispos de Chartres, Soissons, Paris e Laon.
Entretanto, um ato realizado pelo legado longe do fausto dos concílios
não pode passar despercebido. No dia 02 de agosto de 1128, Mateus obteve
do rei Luís e sua rainha, Adele, a isenção de todos os costumes e exações “à la
terre” para o priorado de Saint-Martin-des-Champs, preservado o direito régio
a “cavalgadas e de expedições sobre todos os habitantes da referida terra”.58 A
concessão foi recebida pelo cardeal em Janville e testemunhada por Renaud,
arcebispo de Reims; os bispos Joscelin de Soissons, Simão de Noyon, Barto-
lomeu de Laon, Godofredo de Chartres, João de Orléans, Estevão de Paris,
Buchardo de Melun; os abades Godofredo de Saint-Médard de Soissons, Suger
de Saint-Denis; e Raul, conde de Vermandois.
Tão logo chegamos ao registro deste privilégio, nos damos conta de que
ele não é o único do seu tipo. Pelo contrário, os três volumes do Recueil de
Chartes et Documents de Saint-Martin-des-Champs, editados por Joseph Depoin
em 1912, contém muitos registros de doações envolvendo o nome do cardeal
de Albano. Por uma razão simples: Mateus foi prior desta comunidade clunia-
cense. Nascido nas cercanias de Reims, nosso personagem aí se tornou cône-
go e depois ingressou em Saint-Martin-des-Champs. Entre os anos de 1105 e
1125, esse priorado conviveu com uma abastada rotina de doações oferecidas
pelos bispos de Beauvais, Noyon, Soissons, Terouanne, Senlis e, em especial,
de Paris, em cuja diocese estava situado.59 Enquanto foi prior – ao que parece,

56
HONÓRIO II. Epistola. PL 166: 1292-1293; MANSI 21: 377-378; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 673.
57
Subito in communi audientia conclamatum est super enormitate & infamia cujusdam monasterii
sanctissimonialium, quod dictur Argentolium. MATEUS DE ALBANO. Epistola. MANSI 21: 379. E ain-
da: SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 114-115. SUGER. De Rebus in Administratio-
ne sua Gestis. DE LA MARCHE : 160-161; JL 7372; HEFELE-LECLERCQ 5/1 : 673.
58
Ita tamen quod equitatus nostros et expeditiones nostras tantum modo in hominibus in predicta
terra morantibus retinemus. Recueil Saint-Martin-des-Champs 1: 302-303. A isenção se aplicava às
possessões do monastério em Pontoise.
Leandro duarte rust 335

a partir do ano de 1117 –, o próprio Mateus se habituou aos dons e interces-


sões ofertados por Luís VI; Adele, condessa de Vermandois; pelos bispos de
Meaux, Amiens, Paris, dentre outros.60
Do que foi visto até aqui despontam duas imagens semelhantes, embora
paradoxais. De um lado, estava João de Crema, que irrompia inesperadamen-
te na Britannia, levando furor ao clero local, esgrimindo uma autoridade há
muito desconhecida, quase estranha. De outro, havia o cardeal de Albano em
solo capeto, reativando antigas conexões, revivendo contatos familiares e ha-
bituais. João vinha envolto em ares de interventor, Mateus de velho conhecido.
Perfis discrepantes, mas que partiam do mesmo vértice: ambos eram figuras
com as quais as elites eclesiásticas daqueles reinos mantinham contato direto,
relações de estreita cooperação e, em muitos casos, de nítida dependência.
Mas, talvez alguém pergunte, e o concílio de Rouen? Como pôde o bispo
de Albano atuar junto ao rei inglês nutrindo relações tão próximas com o ad-
versário dele, o monarca capetíngio? Bem, continuemos com nossa olhadela
sobre a biografia do legado.
Mateus era sobrinho de Hugo de Boves, descendente da casa condal de
Amiens, dono de influência e prestígio ímpares. Educado em Laon pelo ilustre
mestre Anselmo, Hugo foi o primeiro abade de Reading, monastério recém-
construído por Henrique I em 1121. A nova abadia pertencia a um seleto
grupo de casas monásticas, às poucas a que era permitido adotar os costumes
de Cluny e, ainda assim, permanecer fora dessa ordem de monges negros,
com a autonomia de seus abades resguardada. Situação semelhante a esta
poderia ser encontrada em poucos pontos da Cristandade, como nas casas de
Hirschau, na Germânia, de Sahagun, na Hispania e de La Cava, na Lombardia.
Alan Coates (1999: 8-9) cita a passagem de uma epístola dirigida por Hugo
de Boves ao abade de Cluny, Pedro, “o Venerável”, cujo texto deixa claro que
os costumes de Reading “são estabelecidos segundo a vontade e o preceito do se-
nhor rei Henrique (voluntate et precepto domini regis Henrici) e o consentimento
comum tanto do mesmo quanto nosso”.
Caso este não seja um indicador suficiente da proximidade entre o aba-
de e o rei, podemos auferi-la por outras vias. Antes de seu recrutamento para
Reading, Hugo foi prior do monastério de São Pacras, em Lewes, “quartel ge-
neral dos cluniacenses na Inglaterra” (HURRY, 1906: 5). Fundado entre 1078 e
1082, esse priorado inglês era o estabelecimento cluniacense mais antigo da

59
Recueil Saint-Martin-des-Champs 1: 160-291. Conjunto documental 99-180.
60
Recueil Saint-Martin-des-Champs 1: para os atos do rei Luís: p. 237, 238, 250, 251, 257 (documen-
tos 152, 153, 158, 159, 162); da condessa Adéle: p. 255 (documento 161); do bispo de Meaux: p. 262
(documento 164); do bispo de Amiens: p. 271 (documento 168); do bispo de Paris: p. 238, 252, 263-
269 (documentos 153, 160, 165-167).
336 coLunas de são pedro

Britannia. Algo que, certamente, lhe assegurava certa projeção junto à corte
real. Além disso, em 1130, Hugo foi entronizado no arcebispado de Rouen,
tendo sido pessoalmente recomendado por Henrique I. Aquela igreja era pon-
to vital para o controle régio sobre os escalões eclesiásticos da Normandia. Em
Hugo, Mateus possuía um contato que o recomendaria diretamente à coroa
inglesa.
Esta afortunada ligação parental era amplificada ainda por outro laço.
Em 1122, quando Pedro, “o Venerável”, foi eleito abade de Cluny, Mateus
era prior daquela casa monástica. Ele dirigia a abadia-mãe da maior teia de
estabelecimentos monásticos de toda Cristandade.61 Sua importância era ta-
manha que Marcel Pacaut (1986: 203) o fez aparecer como iminência parda,
afirmando, sem meio-termos ou argumentos tímidos, que o novo abade estava
em sua clara dependência: “Pedro, manobrado por Mateus, sucedeu [Pôncio de
Melgueil em Cluny]. Embora mais comedido, Adriaan Bredero (2004: 230)
concordou: Mateus “exerceu forte influência sobre Pedro, o Venerável, que come-
çou seu abaciato (...) sob sua supervisão”.
Defensor indômito dos consuetudines cluniacenses, obstáculo para uma
adoção de rotinas cistercienses, Mateus ganhou acentuada notoriedade e con-
tinuou a interferir na condução dos assuntos internos da ecclesia cluniacense
mesmo após Honório II o nomear para o cardinalato. Notemos com clareza: ao
longo dos últimos cem anos, no período de vida de Odilon e de Hugo I (994-
1109), o posto de abade de Cluny ganhou uma espécie de majestade própria.
Desembaraçada da tutela episcopal e ampliada sob um crivo centralista, a
vasta comunidade monástica reunida sob a interpretação borgonhesa da regra
beneditina identificava no comando cluniacense um autocrata, uma autori-
dade sem rival que encimava todos os priores da ordem. O abade de Cluny
era a cabeça do que Dominique Iogna-Prat (2002: 29) chamou de “igreja mo-
nástica dentro da igreja, um tipo de estado eclesiástico autônomo, estruturado
hierarquicamente, em forma piramidal, da abadia-mãe no ápice até os abades e
priores que estavam submetidos abaixo”. A organização dos estabelecimentos
cluniacenses chega a ser descrita como “absolutista” até a reunião do capítulo
geral de 1132, quando teria assumido um formato de colegilidade (RICHE,
2000: 23-36).
Acima deste poder, influenciando ou até mesmo manobrando-o, estava,
portanto, Mateus. Isto, sem dúvida, era suficiente para garantir a projeção
de seu nome do outro lado do Canal Angliae. Razões não faltavam para ele
ecoar estrondosamente por lá. Afinal, os laços entre a grande ilha e a abadia

61
PEDRO, O VENERÁVEL. De Miraculis. PL 189: 922-927; MATTHAEUS ALBANENSIS EPISCOPUS
VITA OPERAQUE. PL 173: 1261; STROLL, 1987: 21-43.
Leandro duarte rust 337

borgonhesa eram numerosos. De lá, o abade Pôncio de Melgueil (1109-1122)


recebeu da realeza vultosas somas para a construção da terceira igreja de
Cluny (IOGNA-PRAT, 2002: 28). Além disso, durante o reinado de Henrique I,
a Britannia foi palco de fundações cluniacenses: Stansgate, entre 1112 e 1121;
Prittlewell, em 1121, Monkton Farleigh, entre 1120 e 1122, – todas as três sob
primado de Lewes –, Bromhom e Montacute Kerswell, antes de 1119 – esta
última contando com o patrocínio régio.
Diferentemente do que ocorria com a abadia de Reading, estas casas
cluniacenses, de menor porte, enviavam priores e abades aos capítulos gerais
da ordem (COATES, 1999: 9-10; CHIBNALL, 1994: 37-49), ocasião em que
seus superiores ficavam face-a-face com a influência exercida por Mateus. E
não deviam ser poucos os incluídos neste grupo, pois o reino contava com um
numero suficientemente grande de casas-filhas para encorajar o abade Pedro
a percorrê-las em 1130 (KNOWLES, 2004: 151-158; PACAUT, 1986: 189-190).
Chegando a este ponto, podemos avistar as muitas vias e numerosas razões
pelas quais o nome do prior de Saint-Martin-des-Champs despertaria atenção
e interesse da corte anglo-normanda. Havia motivos suficientes para a facili-
dade com que Mateus circulou entre os territórios normandos e capetíngios,
como se estivesse acima das hostilidades que os cravejavam. Seu prestígio e
influência derramavam-se dos dois lados daquela fronteira política.
Os concílios e legados ainda por incluir neste exame não contradizem a
constatação de que, em torno de uns poucos nomes, fechava-se um imenso cir-
cuito de transferência de bens e atributos eclesiásticos. Em 1124, Pedro Pier-
leoni, cardeal presbítero de S, Maria in Trastevere, e Gregório, cardeal diácono
de Sant’Ângelo – futuros Anacleto II e Inocêncio II –, partilharam a presidência
de um concílio em Chartres. Lá, eles aprovaram a vida comunitária levada em
Grandmont. Nesse lugar, muitos se estabeleciam há décadas para seguir, na
solidão e pobreza, os ensinamentos de um diácono, Estevão de Muret. Mas o
faziam sem contar com a proteção de uma regra religiosa,62 fonte de proble-
mas remediada pela aprovação legatina.
Semanas depois, os dois cardeais tomaram outra importante decisão.
Confirmaram a concessão da igreja de Neuville, entregue pelo bispo de Or-
léans para o prior de Saint-Martin-des-Champs: nosso já conhecido Mateus.63
Em junho, nova realização. Em Noyon, ambos garantiram a Norberto de Xan-
ten que o modo de vida da comunidade estabelecida por ele em Prémontré
– diocese de Laon – contava com sua aprovação.64 Mas, as relações dos dois

62
GERARDO DE GRANDMONT. Vita Sancti Stephani. PL 204: 1021-1025; MANSI 21: 305-318; HE-
FELE-LECLERCQ 5/1: 647-651.
63
Recueil Saint-Martin-des-Champs 1: 274-275.
338 coLunas de são pedro

cardeais com o homem que se tornou arcebispo da sé imperial de Magdeburgo


não seguiram o mesmo rumo após ambos serem simultaneamente aclamados
papas.
Entre 1130 e 1131, enquanto Pierleoni, já como Anacleto II, repreen-
dia o arcebispo por entrar em discórdia com seu arquidiácono, intimando-o
a justificar-se pessoalmente em Roma,65 Gregório, então papa Inocêncio II,
atendia às “justas intervenções e solicitações de nosso venerável irmão Norberto”
e se punha a confirmar privilégios da comunidade de Prémontré e proprieda-
des do arcebispado teutônico.66 Fazendo-se herdeiro das ações de Honório II,
que manteve relações cordiais como o arcebispo, foi Gregório quem figurou
aos olhos de Norberto como continuador do recente passado de garantias e
suporte papal oferecido à igreja de Magdeburgo. Eram suas decisões que re-
tomavam o teor das cartas expedidas pela chancelaria apostólica em 1126 –
confirmando a disciplina, possessões e imunidades de Prémontré – e em 1129
– cujo texto afirmava a autoridade do arcebispo sobre os clérigos da igreja de
sancta Maria in Magdeburgo.67 Retornando ao ano de 1124, sabemos ainda
que os cardeais aprovaram a iniciativa do abade Suger referente à criação de
ofícios litúrgicos à Virgem e dízimos do Vexin, de Saint Lucien e outros.68
A lista dos principais legados em atividade durante o período de 1125-
30 encerra-se com mais um personagem. Em abril de 1126, Honório II noticiou
“aos arcebispos, bispos, barões e fiéis estabelecidos na França, Aquitânia e Bor-
gonha” a chegada do “estimado filho Pedro, cardeal diácono”.69 O “representan-
te papal” (vice nostra) aportaria naquela terra para dar cabo da “arrogância”
(arrogantia) de um “invasor do monastério de Cluny” (invasorem monasterio
Cluniacensi). Meses antes, Pôncio, que renunciou ao abaciato em 1122, serviu-
se da ausência do novo abade para reaver o contato com os monges. Acolhido
pelos burgenses locais e por partidários no interior da abadia, Pôncio serviu-
se do tesouro monástico para contratar guerreiros com os quais assegurou o
posto de abade. Segundo Giles Constable: “os citadinos de Cluny aparecem pela

64
CHARTA CONFIRMATIONIS ORDINIS PRAEMONSTRATENSIS. Praemonstratensis Annales 1: VIII-
IX ; EX HERIMANI DE MIRACULIS S. MARIAE LAUDUNENSIS. MGH SS 12: 660.
65
ANACETO II. Epistola. PL 179: 709-710.
66
Jjustis interventionibus et postulationibus venerabilis fratris nostri Norberti Magdeburgensis archie-
piscopi inclinati. INOCÊNCIO II. Epistola. PL 179: 87-88. A respeito da confirmação das possessões:
INOCÊNCIO II. Epistola. PL 179: 167-168.
67
HONÓRIO II. Epistola. PL 166: 1249-1251; 1303. EX HERIMANI DE MIRACULIS S. MARIAE LAU-
DUNENSIS. MGH SS 12: 660.
68
SUGER. Epistola. DE LA MARCHE: 326-331.
69
Honorius (...)i, venerabilibus Patribus, archiepiscopis, episcopis, baronibus et aliis fidelibus per
Franciam, Aquitaniam, et Burgundiam constitutis, (...). Quamobrem dilectum filium nostro Petrum
diaconum cardinalem (...). HONÓRIO II. Epistola. PL 166: 1258-1259.
Leandro duarte rust 339

primeira vez na ampla cena da História como partidários do abade Pôncio em


sua tentativa de restabelecer-se em Cluny” (In: ABULAFIA, 2002: 159). Essas
ações despertaram veementes protestos por parte de uma influente figura:
Mateus, prior cluniacense, futuro cardeal bispo de Albano e protetor do recém
eleito Pedro, o Venerável.
O papa reagiu com rigor. Dos “cimos apostólicos” enviou o cardeal Pedro,
munido de ordens para excomungar os monges que sustentavam a “invasão”.70
Honório ainda fez saber a Humbaldo, arcebispo de Lyon, que a autoridade
pontifícia assegurava-lhe poderes extraordinários para “colocar em cárcere
aquele que dividiu o monastério”.71 A escolha do eclesiástico encarregado de
aplicar a sentença era astuciosa. Desde o concílio de Reims, reunido em 1119,
o arcebispo e o bispo de Mâcon, seu subordinado, digladiavam-se com a vi-
são ponciana de liberdade monástica. Decisões que, aos olhos do abade eram
antigos privilégios e isenções, soavam aos ouvidos episcopais como corrupção
do patrimônio diocesano. Orderico Vital registrou o conflito: “Após o concílio
de Reims, a respeito do qual muitas cartas foram já gravadas, o primaz de Lyon,
o bispo de Mâcon e muitos outros bispos impuseram graves inquietações aos clu-
niacenses”.72
Anfitrião do papa, homem de confiança do imperador, influente entre
os citadinos e os monges de Cluny, Pôncio, até então, havia levado a melhor
sobre as reivindicações da autoridade metropolitana. Seu prestígio galgava
alturas cada vez maiores. Em julho de 1118, com o “antipapa” Gregório VIII
apoiado por Henrique V e as ruas de Roma tomadas por enfrentamentos san-
grentos entre os Pierleoni e os Frangipani, o recém eleito sucessor de Pascoal,
Gelásio II partiu rumo à Gália. Lá foi recebido em Cluny com grande cerimônia
por Pôncio e por Suger, enviado pessoal de Luís VI. Entre 1119 e 1122, Pôncio
foi um dos designados por Henrique V para falar em seu lugar nas negociações
com o papa Calisto II quanto à obtenção de um acordo a respeito das investi-
duras.73
Pertencente à família dos Melgueil, senhores de alta condição no Lan-

70
Romanus igitur pontifex Petrum cum apicibus apostolicis et dignitatibus Cluniacum destinavit. OR-
DERIC VITAL. Historiae Ecclesiasticae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 425.
71
Quam per exteras potestates illum de monasterio trahere, et in carcerem ponere ominibus modis
elabores. HONÓRIO II. Epistola. PL 166: 1259-1260. E ainda: HONÓRIO II. Epistola. PL 166: 1259.
72
Post concilium Remense, de quo plura litteris caraxata sunt, Lugdunensis Primas, et Masconensis,
alique plures episcopi Cluniacensibus molestissimi facti sunt. In: ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiasti-
cae Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 423.
73
Ver: ANNALES ROMANI. MGH SS 5: 478-479; CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7: 792; EKKEHAR-
DO DE AURA. Chronicon. MGH SS 6: 254; LANDULFO, O JOVEM. Historia Mediolanensis. RISS 3: 28-
29.
340 coLunas de são pedro

guedoc, nas cercanias de Montpellier, Pôncio tinha ainda conhecido pesso-


almente o papa Pascoal II, quando este foi enviado por Urbano II para o sul
da Gália. Pouco depois, ele ingressou na abadia de Saint-Pons-de-Thomières,
fez a profissão monástica em Cluny e tornou-se prior de Saint-Martial-de-
Limoges. Em 1109, Pascoal lhe concedeu, pessoalmente, o direito de portar
certos ornamentos episcopais conhecidos como pontificalia (PACAUT, 1986:
188-190). Frequentemente tratado como “vilão invasor de Cluny”, Pôncio era
um representante exemplar do monasticismo reformador, como notou Hayden
White (1958: 195-219).
Desta vez, contudo, o cerco ao apadrinhado por Pascoal II fechava-se.
A ordem de prisão dada pelo papa reinante trovejou sobre o partido ponciano
e permitiu que seus rivais varressem suas alegações de legitimidade. O con-
tragolpe político o atingiu de um modo fulminante. Ladeado pelo arcebispo
Humbaldo – que portava suas próprias competências legatinas –, o cardeal
Pedro reuniu um concílio em Lyon, em maio do ano 1126. Quando as sessões
conciliares foram encerradas, a excomunhão de Pôncio e seus partidários –
àquela altura dos fatos já proclamada por Humbaldo antes da chegada do
legado romano – estava confirmada; um interdito havia sido lançado sobre
as igrejas do claustro; e os monges impedidos de se reunir em capítulo. Exco-
mungado e entregue aos legados, Pôncio foi levado para justificar-se diante de
Honório. Diante de um juiz imperturbável, o ex-abade ouviu a sentença papal
pronunciada pela boca do cardeal bispo de Óstia: estava impedido de ter aces-
so a qualquer ofício e benefício eclesial e os monges cluniacenses deveriam ser
restituídos à obediência devida a seu novo superior, Pedro, “o Venerável”.74 Em
dezembro daquele ano, Pôncio, sétimo abade de Cluny, faleceu numa prisão
eclesiástica na península italiana, condenado como “usurpador, pessoa sacríle-
ga, cismático, excomungado”.75
Se durante a viagem à Gália o cardeal Pedro agiu, conforme acusaria
Anacleto II, como “saqueador insaciável do tesouro cluniacense” (cardinali sanc-
tae Anastasiae, quod thesauri cluniacensis assuetis tergiversationibus insatiabilis
exstiti predo) e um dos “filhos de Belial” (filii Belial), tal conduta não abalou
seu prestígio como legado. Pois em 1127, ele foi enviado a terras imperiais,
onde presidiu as assembleias de Toul e Worms, palco da renúncia de Godofre-
do, arcebispo de Trier entronizado sob a vontade do conde de Toul e acusado

74
PEDRO, O VENERÁVEL. De Miraculis. PL 189: 924-926; ORDERIC VITAL. Historiae Ecclesiasticae
Libri Tredecim. LE PREVOST 4: 425; MANSI 21: 335-342. Sobre o cisma ponciano: HEFELE-LECLERCQ
5/1: 660; STROLL, 1987: 109-110.
75
Pontium, inquit, invasorem, sacrilegum, schismaticum, excommunicatum, ab omni ecclesiastico ho-
nore vel officio, sancta Romana et apostólica Ecclesia in perpetuum deponit. PEDRO, O VENERÁVEL.
De Miraculis. PL 189: 925.
Leandro duarte rust 341

de simonia sob os olhos do papa.76 Em 1128, eis o cardeal de volta à ativa.


Pedro foi encarregado de dar prosseguimento às ações punitivas iniciadas por
João de Crema no norte da península italiana contra aqueles que militavam
pela causa de Conrado da Suábia. O cardeal de S. Anastásia foi requisitado
a zelar pela legitimidade da coroa do rei Lotário III. E o fez à risca. Com a
colaboração do arcebispo de Ravenna e dos bispos de Metz, Toul e Troyes,
ele decretou a deposição dos patriarcas de Grado e Aquileia, por apoiarem os
Hohenstaufen.77
Pedro, Mateus de Albano e João de Crema eram como pontos onde se
enlaçavam os fios de uma extensa rede de dependências e colaborações. Alvo
tríplice da convergência de ligações parentais, alianças e privilégios – insígnias
do poder senhorial –, este triunvirato cardinalício estava no centro de imensos
circuitos regionais de partilha e controle sobre o patrimônio eclesial. Era para
eles que se voltavam os altos escalões de igrejas cristãs – incluindo os próprios
reis – nas ocasiões em que eram convocados a reconhecer um legado e entrar
em contato com o poder papal.
Esses cardeais eram, para as elites anglo-normanda, capetíngia e impe-
rial, espaços de fato e direito dos poderes exercidos em nome da autoridade
apostólica. E os três tiveram algo mais em comum: todos professaram a causa
de Inocêncio II após a conturbada eleição pontifícia. O Liber Pontificalis lista
seus nomes entre os aliados de primeira hora de Gregório de Sant’Ângelo.78
Este é um aspecto capital na história do cisma anacletiano. A causa de Ino-
cêncio era a causa dos legados da Igreja Romana. Reconhecer Gregório como
pontífice significava, para aquelas elites regionais, preservar um estado de
compromissos criados por homens legitimamente investidos da voz apostólica.
Significava, portanto, perpetuar uma ordem familiar de interdependên-
cia política, um estado de relações consideradas corretas, disseminadas por
este eminente triunvirato ao longo de meia década. Por implicar em alinhar
forças aos legados de Honório II, a adesão a Inocêncio II equivaleu a tomar
partido da conservação de arranjos de poder atestadamente favoráveis aos
escalões dirigentes de cada um daqueles conjuntos eclesiásticos. Afinal, as
decisões lavradas por aqueles vici apostolici muito favoreceram reis, arcebis-
pos, bispos e abades do norte da Gália, das áreas anglo-normandas, das terras
imperiais. O peso político dessas relações incidiu diretamente nos rumos do
cisma papal de 1130.
6.4. O papado contra Roma

76
GESTA GODEFRIDI ARCHIEPISCOPI. MGH SS 8: 203; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 667.
77
MANSI 21: 375; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 672.
78
Liber Pontificalis 2: 380.
342 coLunas de são pedro

Nos meses seguintes à turbulenta eleição, Anacleto II reteve em seu po-


der a cidade de Roma e recebeu o suporte da maior parcela do clero citadino e
do episcopado italiano. O cardeal Pierleoni obrigou seu rival a deixar a penín-
sula ao conquistar o apoio do duque Rogério da Sicília e reavivar a insatisfação
dos bispos encurralados por apoiarem a causa dos Hohenstaufen na sucessão
imperial. Com exceção da resistência oferecida pelo abade de Farfa, as regiões
constitutivas do chamado “Patrimônio de São Pedro” submeteram-se quase
integralmente a Anacleto, que logo se viu em condições de exilar o incômodo
abade. Todas as áreas compreendidas entre Sutri e o extremo sul dos domínios
pontificais, em Veroli e Ceccano, reconheceram-no e juraram-lhe obediência.
Apenas nas áreas ao norte, na Úmbria e Emília-Romagna, Ubaldo, bispo de
Gualdo, e Gualter, arcebispo de Ravenna, obtiveram sucesso em reter alguma
lealdade para Inocêncio II. Donde conclui Peter Partner (1972: 169): “que o
reconhecimento de Anacleto fosse tão completo em um sólido bloco do território
romano era de alguma importância para o poder temporal, uma vez que isto
evitava os efeitos desastrosos de uma guerra civil”. De fato, são substanciais os
indícios de que os anacletianos buscaram converter a adesão ao seu papa em
um abrangente pacto de unidade peninsular.
A começar por Roma, onde os antagonistas de Inocêncio II lograram re-
verter um divórcio há muito estabelecido. O clero romano, opositor declarado
da clerezia papal nas últimas décadas, encontrou grande representatividade
política junto a Anacleto II. Este foi capaz de cimentar uma inédita adesão do
clerus urbis ao papado. Internamente, este novo arranjo de poder parece ter
sido costurado com o valioso concurso de dois personagens. O primeiro era
Pedro, o cardeal bispo do Porto, investido do vicariato de Roma durante os
reinados de Gelásio II e Calisto II. O segundo era Gregório, o cardeal presbíte-
ro à frente da igreja dos Santos Apóstolos, um dos mais distintos símbolos da
identidade da Fraternitas Romana (FALCONIERI, 2002: 71). Em uma epístola
endereçada a Diego, arcebispo de Compostela, Anacleto reconheceu a enorme
dívida política contraída junto ao clerus urbis, que lhe oferecia cooperação
unânime e incomum.79 À luz do que ocorria desde o século XI, aquela era uma
aliança inesperada, quiçá improvável, pois destoava da incessante divergência
entre o clero romano e o alto escalão eclesiástico vinculado ao Trono de Pedro.
O forte enraizamento local da autoridade dos anacletianos não cessou

79 Patenter agnoscimus tanto nos Urbis ecclesiis et filiis nostris clericis romanis debitores existere,
quanto per unanime votum et dilectionis eorum integritatem, divina cooperante gratia, summi sacer-
dotii celsitudine obtinemus. ANACLETO II. Epistola. PL 179: 713-714.
Leandro duarte rust 343

por aí. Um importante gesto de convergência de interesses foi realizado em


27 de setembro de 1130, quando o nascimento de um reino inteiro veio cer-
tificar o pacto de união peninsular. Na ocasião, Anacleto investiu Roger I, du-
que da Sicília, com o título de rei e reconheceu o conjunto de terras em seu
poder como constitutivas de um “reino” (Siciliam caput regni constituimus).
Mas havia mais. Persistindo na leitura dessa bula fundadora, nos deparamos
com uma lista assaz incomum de signatários para um documento deste tipo.
Apenas dois cardeais a subescreveram. O restante das testemunhas está rela-
cionado como segue: Pierleoni, Consulis Romanorum; Rogério, irmão deste;
Pedro, filho de Uguccio; Cêncio; Guido; Pierleoni “de Fundis”; Abuccio; João
Abdirici; Milo.80
Insistamos num ponto. Anacleto possuía em seu séquito cerca de vin-
te cardeais, entre os quais havia nomes que cintilavam grande reputação de
erudição e retidão moral, caso de Egídio de Tusculum e de Pedro de Pisa. Exí-
mio canonista (PALUMBO, 1942: 205; STROLL, 1987: 93), Pedro era muito
estimado por Bernardo de Claraval, que não mediu esforços para ganhar sua
adesão à Inocêncio II. Segundo Ernaldo, autor da Vita Bernardi, em 1137,
perante o tribunal reunido por Rogério da Sicília para decidir qual partido
devia declarado legítimo, o cisterciense teria se dirigido em alto e bom som
ao cardeal ainda fiel a Anacleto: “reconheço, Pedro, que tu és homem sábio e
letrado, que os assuntos da parte mais distinta e honesta te ocupem!”81 Egídio,
natural de Auxerre era monge cluniacense desde 1119 e personagem dos mais
ativos na Cúria: além de subscrever numerosas bulas papais,82 ele foi legado
de Calisto II na Hungria e Polônia, e, em julho de 1129, foi enviado à Palestina
como encarregado de defender os interesses pontifícios. Nas palavras de Mary
Stroll (1987: 32, 38, 142-143) tratava-se de “um monge e cardeal exemplar”.
Porém, ao invés de convocá-los, o papa Pierleoni optou por compor o
quadro de testemunhas da bula que chamou à existência o Reino da Sicília,
majoritariamente, com os integrantes de sua própria família e seus partidários
romanos. Isto significa que Anacleto agiu, simultaneamente, como líder da
Santa Sé e membro da aristocracia local. A bula era portadora de uma dupla
função: reconhecer a existência do reino normando e proclamar a participação
pontifícia como elo de união entre a autoridade petrina e as grandes famílias

80
ANACLETO II. Bulla. PL 179: 715-718. E ainda: FALCO DE BENEVENTO. Chronicon Beneventanum,
1998: 46-47; WATTERICH 2: 193-195.
81
Scio, inquit, Petre, te virum sapientem et litteratum esse; et utinam sanior pars, et honestiora te
occupassent negotia. ERNALDO. Vita S. Bernardi. PL 185: 294. Após o concílio de Latrão, em 1139,
quando Inocêncio ordenou que Pedro Pisano fosse removido do cardinalato, o abade intercedeu dire-
tamente junto ao pontífice por uma reconciliação: BERNARDO DE CLARAVAL. Epistola. PL 182: 378
82
JL p. 780-839.
344 coLunas de são pedro

aristocráticas. Desde o cisma de 1046, laicato e clero romano dificilmente


fundiam-se em um gesto pontifício desta magnitude. A causa anacletiana era
modelada por uma efetiva identificação com os poderes locais.
Por sua vez, Inocêncio II não deixou a península sem levar um trunfo.
Ele tinha ao seu lado os legados papais. No instante em que se pôs em marcha
para a Gália, rodeado pelo triunvirato legatino, o cardeal Gregório já tinha
ao seu alcance as principais redes de influência pontifícia no além-Alpes. O
cenário descrito nas páginas anteriores indica que o cisma de 1130 não foi um
choque de espiritualidades, como argumentou Mary Stroll, mas um embate
entre um partido pontifício de forte enraizamento local (Anacleto) e outro de
grande capilaridade política suprarregional (Inocêncio).
Na busca por conferir maior nitidez a este aspecto, elaboramos uma re-
presentação gráfica das redes de influência atreladas aos três cardeais legados
e ao próprio Gregório de S. Ângelo (Figura 1). Cada uma das linhas que unem
os nomes aí presentes representa um vínculo de dependência, como o compa-
recimento a um concílio legatino (avaliado como gesto de reconhecimento de
autoridade); os laços de parentesco (como entre Mateus de Albano e Hugo de
Rouen); a outorga, o recebimento e o testemunho de privilégios (caso das liga-
ções entre Mateus, Luís VI e os sufragâneos de Reims e Sens); o favorecimento
político (caso das ações de João de Crema em prol de Henrique I e Lotário III)
ou eclesial (incluindo, por exemplo, a defesa da autoridade abacial de Pedro,
o Venerável, por meio da condenação de Pôncio de Cluny, decretada por Pedro
de s. Anastasia); e, por fim, condutas que implicavam em distinguir um destes
cardeais como o portador legítimo da autoridade apostólica (como fizeram os
arcebispos de Canterbury e York ao depositarem nas mãos de João de Crema
a habilidade de deliberar sobre seu litígio).
A figura que se segue é, sem dúvida, incompleta. Em muitos casos, a
documentação não individualiza grande parte dos participantes dos concílios
papais. Ela frequentemente deixar vir à tona uns poucos nomes, das figuras
de maior influência, dos personagens mais graúdos, que logo são seguidos
por referências vagas como “estavam acompanhados por uma multidão de
clérigos e monges”. Tais limitações não comprometem o valor heurístico de
nossa representação. Na medida em que nosso propósito é conferir visibilida-
de à teia de conexões mantidas pelo triunvirato legatino de Honório II, cada
uma dessas ausências pode ser avaliada como um argumento silencioso em
favor da ideia de que, na realidade, esta rede de influências foi maior do que
pudemos representar. As ausências que porventura pesam na figura não são,
a rigor, lacunas; mas espaços pelos quais nossa ideia-chave se propaga fora do
alcance de nossos olhos.
Todavia, antes de passarmos à apresentação da figura 1, devemos jus-
Leandro duarte rust 345

tificar uma omissão. Não consta aí o nome de Humberto, cardeal presbítero


sancti Clementii. Trata-se de outro legado de Honório II que, no dia 4 de fe-
vereiro de 1130 (dez dias antes da dupla eleição papal), reuniu um concílio
em Leão. A Historia Compostellana informa-nos que, acompanhado de Diogo,
arcebispo de Compostela, o legado aí depôs os bispos de Leão, Salamanca e
Oviedo, e implantou certas “medidas de interesse comum”.83
As ações de Humberto não constam entre os alvos analíticos deste ca-
pítulo porque nossas preocupações estão voltadas para as interrelações entre
Inocêncio e os responsáveis por seu triunfo. Quais sejam: as realezas e igrejas
capetíngia, anglo-normanda e imperial. O reino de Leão não é apontado pelos
historiadores como peça-chave no rol de apoios decisivos para o desfecho do
cisma de 1130. Não obstante, há de se notar um argumento relevante. Hum-
berto constou igualmente entre os inocencianos do sacro colégio tão logo o
cisma foi deflagrado. O caso deste enviado ao reino de Leão demonstra, mais
uma vez, que nenhum dos principais legados honorianos deixou de optar por
um mesmo lado na disputa. Dito isto, segue-se na próxima página nossa repre-
sentação gráfica da rede de dependências e aliados assegurada a Inocêncio II
pelo triunvirato legatino dos anos de 1125 a 1130.
346 coLunas de são pedro
Leandro duarte rust 347

A igreja capetíngia contava, segundo a figura, com maior número de


ramificações, seguida pela anglo-normanda e, por fim, pela teutônica. É signi-
ficativo constatar que esta disposição corresponde precisamente à ordem cro-
nológica do engajamento de cada realeza e sua ecclesia a favor de Inocêncio.
Vejamos.
Em setembro de 1130, aconselhado pelo arcebispo de Reims, Renaud,
e “alguns homens de nosso palácio, fiéis à igreja Romana”,84 Luís VI ordenou a
convocação de um concílio para Étampes. A assembleia tornou-se palco da
fervorosa defesa da superioridade de Inocêncio realizada por Bernardo de Cla-
raval. Eis os principais argumentos do abade: 1) Gregório era moralmente
superior a Pierleoni, incomparavelmente mais digno em sua vida e reputação;
2) sua eleição ocorreu primeiro e reuniu a maior e mais venerável parcela do
cardinalato, a precedência da escolha era já o dedo do tempo apontado para
o candidato de maior mérito; 3) sua elevação ao trono papal contou com a
presença do cardeal bispo de Óstia, deão do sacro colégio tradicionalmente
encarregado de zelar pela retidão da eleição e realizar a consagração do novo
pontífice.85 Com as palavras do cisterciense ainda vivas nos ouvidos de todos,
o cardeal Gregório de Sant’Ângelo foi aclamado legítimo sucessor de Pedro
em Étampes.86
Pouco antes, em março, um dos primeiros atos de Inocêncio foi ratificar
a eleição de Hugo Boves – tio de Mateus de Albano – como novo arcebis-
po de Rouen. No outono, quando Henrique I se dirigiu à Normandia, palco
das negociações entre os inocencianos e a coroa anglo-normanda, o arcebispo
atuou como defensor do contestado papa. Quando o rei deixou o continente,
as tratativas permaneciam inconclusas, mas Hugo foi designado para falar em
seu lugar.87 Em novembro, ainda sem o apoio formal da realeza inglesa, Ino-
cêncio reuniu uma imponente multidão clerical em Clermont. Sentado diante
do plenário com seu inconfudível gestual de um “herdeiro de Constantino”

84
Quorundam de palatio nostro Romanae ecclesiae fidelibus (...). LUÍS VI. Epistola. WATTENBACH,
1851: 682.
85
Os argumentos, em ordem: [1] Quorum primo quidem, si personas compares, ut neutri sane vel de-
rogare videar, vel adulari, dicam quod dici passim reperies, et neminem arbitror diffiteri: quia videlicet
Innocentii nostri vita vel fama nec aemulum timet, cum alterius nec ab amico tuta sit.; [2] Dehinc si
electiones discutias, nostri itidem mox occurrit et promotione purior, et ratione probabilior, et prior
tempore. Porro de tempore constat: reliqua duo merita probant, et dignitas eligentium. Hanc enim, ni
fallor, partem saniorem invenies, tam episcopos, quam cardinales diaconos sive presbyteros, et quo-
rum maxime interest de electione summi pontificis; [3] Quid est in consecratione? Nonne Ostiensem,
ad quem specialiter utique spectat, habemus? Cum igitur et electus dignior, et electio sanior, et actio
ordinabilior teneatur. BERNARDO DE CLARAVAL. Epistola. PL 182: 270-281.
86
CHRONICO S. ANDREAE. MGH. SS 7: 549; CHRONICA MAURINIACENSI. RHGF 12: 79; ERNAL-
DO. Vita S. Bernardi. PL 185: 270; SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 135. E ainda:
HEFELE-LECLERCQ 5/1: 676-687.
87
GUILHERME DE MALMESBURY. Historia Novella. In: HARDY 2: 697-698.
348 coLunas de são pedro

(HERKLOTZ, 2000: 19-23, 48-52, 120), Inocêncio ouviu a excomunhão ali


proclamada contra Anacleto receber o juramento das províncias eclesiásticas
de Bourges, Lyon, Vienne, Narbonne, Arles, Tarragone, Auch e Tarentise. Sua
vantagem na luta pelo papado ganhava em visibilidade.
Em janeiro de 1131, talvez instigado pela demonstração de poder em
Clermont e pela aproximação entre o candidato papal na Gália e o rei cape-
to, do Henrique I desfez sua hesitação. Partiu ao encontro de Inocêncio, que
fora conduzido para Chartres por Luís VI. A Chronica Mauriniacensi registrou
a forte impressão deixada pela cena do capetíngio e sua rainha, Adéle, rece-
bendo Inocêncio no monastério de Fleuri e prostrando-se diante dele em sinal
de obediência.88 Com os dois reis lançados em uma corrida pelos favores do
recém eleito, Henrique declarou publicamente sua lealdade a Inocêncio em
Chartres, endossando-a com generosas doações ao séquito apostólico.89
Lotário foi o último a decidir ao lado de quem permaneceria. É verdade
que ele já havia se pronunciado a favor de Inocêncio em outubro de 1130,
no concílio de Wurzbourg, quando atendeu aos apelos de Norberto de Mag-
deburgo e Gualter de Ravenna, este último enviado inocenciano. Além disso,
ele recepcionou o recém eleito com grande solenidade em Liège, à frente dos
arcebispos de Mainz, Colônia, Magdebourg, Salzbourg e todos seus sufragâne-
os, num total de 50 bispos. A imagem do rei teutônico tomando em suas mãos
as rédeas do cavalo montado por Inocêncio para conduzi-lo pelas vielas da
cidade causou sensação em meio aos círculos episcopais imperiais da época,
se pudermos dar crédito ao relato de Oto de Freising na Chronica sive Historia
de Duabus Civitatibus.90
Entretanto, Lotário hesitava. Volta e meia ele criava verdadeiros acertos
de conta com a proclamção já oferecida. Embora Inocêncio reforçasse, sempre
que possível, o valor de sua causa com a promessa de coroá-lo imperador,91 o
rei dos teutônicos vacilava. Até mesmo à frente de suas tropas, pecorrendo a
península itálica e abrindo caminho para os inocencianos, o monarca, outrora
favorito de Honório II, buscou beneficiar-se ao máximo da disputa pelo trono
papal. Lotário abriu negociações com os anacletianos e, entrementes, passou

88
JL 7449; CHRONICA MAURINIACENSI. RHGF 12: 79. Em seguida Luís conduziu o papa a Órleans,
que daí partiria para Chartres.
89
CHRONICA MAURINIACENSI. RHGF 12: 81-83; SUGER DE SAINT DENIS. Vita Ludovici Grossi
Regis. DE LA MARCHE: 136; ERNALDO. Vita S. Bernardi. PL 185: 271.
90
Sobre Wurzburg: OTO DE FREISING. Chronica sive Historia de Duabus Civitatibus. MGH SS rer.
Germ. 45: 334-335; GUALTER DE RAVENA. Epistola. PL 189: 038-040; ANNALISTA DE SAXO. MGH SS
6: 767; ANSELMO DE GEMBLOUX. Chronica. MGH SS 6: 383; CHRONICA CASINENSIS. MGH SS 7:
811; SUGER. Vita Ludovici Grossi Regis. DE LA MARCHE: 136; TRANSLATIO GODEHARDI EPISCOPI
HILDESHEIMENSIS. MGH. SS 12: 641. HEFELE-LECLERCQ 5/1: 687-692.
91
ERNALDO. Vita S. Bernardi. PL 185: 271; GESTA ABBATUM LOBBIENSIUM. MGH SS 21: 325.
Leandro duarte rust 349

a pressionar Inocêncio pela restituição do “direito” à investidura possuído por


seus antecessores. Contamos apenas com os relatos sobre as negociações es-
critos por partidários de Lotário, a começar pelo próprio rei. Em linhas gerais,
eles afirmam que antes de seu ingresso em Roma, o monarca foi alcançado
por emissários de Anacleto, que requisitava a convocação de um concílio geral
para deliberar qual eleito era o verdadeiro papa. Porém, os bispos que acom-
panhavam o imperador e os cardeais inocencianos rebateram, alegando que
a “Igreja Universal de Deus” (ecclesia Dei universal) já havia se pronunciado
e não havia razão para novo julgamento. Provavelmente, a recusa estava cal-
cada na premissa de que a Cristandade se reuniu em um concílio universal
não uma, mas quatro vezes: Étamps (1130), Clermont (1130), Reims (1131)
e Piacenza (1132), todos presididos por Inocêncio. Os anacletianos voltaram
à carga, com uma segunda proposta: prisioneiros e fortificações deveriam ser
entregues ao rei, pelos dois partidos, como garantia de boa fé, e um tribunal
germânico seria convocado para selar a disputa. Lotário acolheu a proposta
e, segundo suas palavras, os inocencianos também. Diante deste cenário ines-
perado, os anacletianos teriam recuado. Desconfiando que o Pierleoni tergi-
versava com promessas fraudulentas, Lotário, por fim, o condenou e tomou,
definitivamente, a defesa da causa de Inocêncio II.92
Apenas em junho de 1133, mais de três anos depois da contestada elei-
ção papal, Gregório de Sant’Ângelo selou o comprometimento de Lotário ao
pôr sobre sua testa a coroa de Oto I e entregar-lhe, mediante um censo anual
de “cem libras de prata”, as terras deixadas pela condessa Matilde.93 O “direito
imperial à investidura” foi, todavia, negado.
Logo, poderíamos estabelecer como marcos dos compromissos régios as
seguintes datas: 1130, para a coroa capetíngia; 1131, para a anglo-normanda;
1133, para a teutônica. Compromissos firmados com a participação de figuras
diretamente envolvidas na rede de influência dos legados papais: Renaud de
Reims, Bernardo de Claraval, Hugo Boves de Rouen, Norberto de Magdebur-
go, Gualter de Ravenna.
Esta sequência cronológica de adesão política a Inocêncio II correspon-
de à mesma ordem – embora descrescente – dos conjuntos de vínculos de de-
pendência apontados na figura 1. Isto é, o grupo galicano, para o qual encon-
tramos um maior número de poderosos implicados nas decisões dos legados
foi precisamente o que primeiro a aderir a Gregório de Sant’Ângelo; seguido

92 LOTÁRIO II. In Anacletum Papam Sententiam. MGH LL 2: 81. O mesmo é relatado em: VITA NOR-
BERTI ARCHIEPISCOPI MAGDEBURGENSIS. MGH SS 12: 701.
93 INOCÊNCIO II. Privilegium de Terra Mathildis. MGH Const. 1: 169-170. Sobre a coroação: ANNA-
LES HERBIPOLENSES. MGH SS 16: 2; ANNALES SELIGENSTADENSES. MGH SS 17: 32.
350 coLunas de são pedro

pelo grupo anglo-normando, detentor do segundo maior universo de contatos


com as ações legatinas; e, por fim, o grupo teutônico, que aparece com o me-
nor número de dignitários envolvidos nos concílios reunidos pelos emissários
romanos:

Ordem decrescente dos conjuntos de Ordem cronológica do reconhecimento


vínculos de dependência mantidos com os régio à eleição do cardeal Gregório como
legados pontifícios entre 1125-1130 papa Inocêncio II

Reino/Igreja Capetíngia Coroa Capetíngia


(27 dignitários) (1130)

Reino/Igreja Anglo-normanda Coroa Anglo-normanda


(16 dignitários) (1131)

Reino/Igreja Imperial Coroa teutônica


(12 dignitários) (1133)

Além disso, os inocencianos parecem ter realizado um uso estratégico


desta rede de dependência.
Entre 1132 e 1133, os inocencianos avançaram pela península escolta-
dos por tropas imperiais e por esquadras capitaneadas por Pisa e Gênova. A
rivalidade cinquentenária das potências marítimas havia sido aplacada com a
assinatura do Tratado de Corneto. Selado por Inocêncio II, o acordo estipulava
uma partilha do poder sobre as igrejas das ilhas de Córsega e Sardenha, dispu-
tadas pelas cidades mercantis.94 Gênova foi elevada à condição de arcebispado
e recebeu como sufragâneas as sés de Bobbio e Brugnato, este último um
monastério transformado em sede episcopal, antes pertencentes à igreja de
Milão, além de três outras localizadas no norte da Córsega: Mariana, Nebbio e
Acci (ou Accia). Pisa, por sua vez, obteve o primado sobre a Sardenha e o sul
da Córsega, áreas que compreendiam três bispados: Aleria, Ajaccio e Sagona.
O tratado de Corneto assegurou às duas cidades o reconhecimento de sua ex-
pansão mercantil e aos metropolitanos uma dilatação do campo de exercício
de seus poderes senhoriais. Para o cardeal Gregório ele trouxe novos fios à sua
já extensa rede de aliados. Inocêncio reeditou na península itálica o modelo
de relações de dependência mantidas no Além-Alpes.
Munido de um poderio bélico suficiente para rechaçar eventuais in-
tervenções de Rogério I, monarca da Sicília e aliado de Anacleto, Inocêncio
avançou pela via Aurelia, apoderou-se de Civitavecchia e ingressou em Roma.

94
CAFARI ANNALES. MGH SS 17: 18; Liber Pontificalis 2: 381-382. Ver ainda o classico: HEYWOOD,
1921: 79-81.
Leandro duarte rust 351

Todavia, as tropas de que dispunha não eram o bastante para remover os rivais
da cidade. A disputa com os Hohenstaufen forçara Lotário a deixar um gran-
de contingente de guerreiros na Germânia. Com os dois partidos receosos de
um enfretamento direto, a cidade tornou-se um mapa da divisão da política
papal. Os partidários do papa Pierleoni controlavam a basílica de São Pedro
e o bairro Trastevere, enquanto os aliados de Gregório mantinham em seu
poder a basílica de Latrão e os distritos localizados a sudeste. Para contornar
a fraqueza material de sua causa, os inocencianos agiram em dois atos. Pri-
meiro, investiram na força dos símbolos, coroando Lotário o “imperador dos
romanos”, em uma cerimônia ostensiva, cujos gestos e fórmulas declamavam
a legitimidade de seu partido. Em seguida, transferiram as terras da condessa
Matilde para o recém coroado, que, deste modo, tomaria para si a tarefa de
proteger e garantir o efetivo usufruto destas valiosas fontes de recursos.
Em 1135, com o partido anacletiano ainda sustentando sua posição em
Roma e no centro sul peninsular, os Hohenstaufen se submeteram ao impera-
dor, que, a partir de então, concentraria forças em uma nova expedição puni-
tiva cujo destino seria a Sabina. Naquele mesmo ano, após excomungar o rei
siciliano no concílio de Pisa, Inocêncio II concedeu aos que lutavam “em terra
e mar” contra Rogério e Anacleto,“pela liberdade da igreja”, uma absolvição de
pecados semelhante à decretada por Urbano II em Clermont, por ocasião da
convocação da primeira cruzada.95 Contando com um grande número de pre-
lados vindos da Gália com a permissão de Luís VI, a assembleia pisana tornou-
se palco da renúncia de Milão aos Hohenstaufen: os emissários da cidade ju-
raram lealdade ao papa Inocêncio e ao imperador Lotário, enquanto Anselmo,
seu arcebispo, viu sua deposição ratificada pelo concílio.96 Na mesma ocasião,
muitos bispos do norte peninsular foram depostos: Bojano de Arezzo, por dila-
pidação de bens eclesiais (dolenda et horrenda destruccione bonorum ecclesias-
ticorum seu episcopalium); o bispo de Acera por tornar-se cismático e cometer
perjúrio (scismaticus et manifeste periurus); Huberto de Turin, por abandonar
sua igreja para se lançar à guerra (ecclesia per quinquennium jam vacasset, ipse
ecclesiastico spreto officio milicie soli vacabat); o bispo de Módena, cuja eleição
para a Sé de Parma fora cassada, acabou deposto por simonia e má conduta
pública (pro mala conversationem ac publica symonia).

95
INNOCENTII II CONCILIUM PISANUM. MGH Const. 1: 579. Ver ainda: ERNALDO. Vita S. Bernardi.
PL 185: 273.
96
LANDULFO, O JOVEM. Historia Mediolanensis. RIS 3: 36.
INNOCENTII II CONCILIUM PISANUM. MGH Const. 1: 578. E ainda: Liber Pontificalis 2: 382. Ber-
nardo de Claraval interpelou diretamente o rei Luís pela permissão régia para que membros da igreja
da Gália participação da assembleia de Pisa: BERNARDO DE CLARAVAL. Epistola. PL 182: 462-463.
352 coLunas de são pedro

Com as províncias eclesiásticas do norte reconduzidas à obediência, o


concílio de Pisa estabeleceu livre passagem rumo a Roma, embora as áreas ao
sul, que bordejavam a Sabina, permanecessem sob domínio siciliano. Carrega-
dos pelos guerreiros de Lotário e fortalecidos pelos bispos de Luís VI, os ino-
cencianos finalmente assumiam a dianteira no controle do Patrimônio de São
Pedro. O cisma chegava ao fim, embora Anacleto estivesse vivo e ostentando
um título de papa.
Com a vida arrebatada pela dupla eleição papal que, “em fevereiro de
1130, dividiu a Cristandade ocidental mais profundamente do que qualquer ou-
tro cisma anterior” (STROLL, 1987: xiii), o cardeal Gregório de Sant’Ângelo
assegurou o controle do papado bem longe dos muros de Roma. Ele o fez
quando se apoderou dos principais circuitos regionais de poder mobilizados
nos anos 1120 pelos legados romanos. Tendo ao seu lado os cardeais João de
Crema, Mateus de Albano e Pedro de S. Anastasia, ele pôde se tornar o centro
para o qual passou a fluir o imenso acervo de atributos e competências em-
punhados em nome do papado fora da península italiana. A associação com
o triunvirato cardinalício permitiu transferir vastas parcelas de identidade do
poder pontifício para Gregório.
Mas como, efetivamente, isso ocorreu? Como Inocêncio associou a si
atos legatinos já ocorridos? Simplesmente rodeando-se da presença dos “tri-
únviros”, exibindo-os em seu séquito? A resposta está numa incansável po-
lítica inocenciana de concessão de privilégios. Por meio dela, o recém eleito
se apropriou do prestígio e da influência devidos aos homens de Honório II.
Tais concessões lhe permitiram associar os nomes dos legados à sua voz, e as-
sim ele passava a figurar como um continuador de medidas legitimimamente
aprovadas em nome da autoridade apostólica: Inocêncio assumiu uma espécie
de “segunda autoria” sobre ações que ninguém ousava contestar como genui-
namente papais.
Foram muitos os privilégios concedidos. Afinal, muitos eram os elos pal-
páveis a serem estabelecidos entre, de um lado, as redes clientelares dos “tri-
únviros” e, do outro, as ações do homem recentemente eleito para o trono de
São Pedro. Cada nova outorga era um canal capaz de transferir para Inocêncio
II as qualidades papais associadas aos concílios legatinos de 1125-1130. Era
como se muitas das decisões tomadas nesses recentes espaços ecoassem uma
segunda vez pela boca de Inocêncio.
A seguir distribuímos em forma de tabela (1) os privilégios outorgados
pelo novo papa entre a data de sua conturbada eleição, 14 de fevereiro de
1130, e a do encerramento da grande demonstração de poder que foi o concí-
lio de Pisa, 6 de junho de 1135. Foram relacionados somente os documentos
que contêm o registro de signatários. Com isso, buscamos um meio de análise
Leandro duarte rust 353

que nos permita avaliar o lugar ocupado pelos três legados honorianos nas
primeiras ações do pontificado inocenciano. Para isso, fizemos constar na ta-
bela uma coluna com o título de “signatários”. Aí foram destacadas apenas as
ocasiões em que aparecem entre as testemunhas os nomes de João de Crema,
Mateus de Albano e Pedro de S. Anastasia. Este dado, por sua vez, foi inserido
noutra tabela (2), onde disponibilizamos uma relação completa dos cardeais
que testemunharam os privilégios promulgados por Inocêncio II no período
mencionado, frisando o total do número de vezes em que cada nome consta
nos registros.
Antes de passarmos às tabelas é necessário um esclarecimento meto-
dológico. Nos documentos das primeiras décadas do século XII, as formas de
grafia nominal empregadas pelos notários e scriptores da Chancelaria papal
oscilavam com uma frequência que se faz inquietante para o historiador. O
acréscimo e a substituição de letras eram práticas comuns, fazendo com que
um mesmo nome contasse com substanciais variações em seu registro. Além
disso, era usual que nada mais fosse empregado além de abreviações que con-
vertiam os nomes em simples letras: assim, “Romano” torna-se “R”, “Alberto”
era reduzido a um simples “A”.
Tais características fazem da decifração dos nomes escondidos por trás
das letras uma tarefa nebulosa, propensa a especulações e a arbitrariedades.
Para tentar superar estes riscos e evitar deduções abusivas, efetuamos um cru-
zamento de quatro listas conhecidas dos cardeais inocencianos: 1) a dos elei-
tores; oferecida pelo Liber Pontificalis; 2 e 3) a dos que ingressaram na Gália
com Gregório de Sant’Ângelo, apresentada por Guilherme de Malmesbury e
pela Chronica Mauriniacensi; por fim, 4) a relação de nomes que emergiu da
análise do corpus formado pelos quarenta e seis privilégios inocencianos en-
contrados. Passemos, agora, às tabelas.
354 coLunas de são pedro

Tabela 1: Privilégios inocencianos com relação de signatários


(14 de fevereiro de 1130 – 6 de junho de 1135)
Leandro duarte rust 355

Tabela 1 (Continuação)
356 coLunas de são pedro

Tabela 1 (Continuação)

*
Buchard, bispo de Meaux, faleceu no começo de 1134. Faro foi eleito em abril.
Leandro duarte rust 357

Tabela 1 (Continuação)
358
Tabela 2: Realação de cardeais signatários dos privilégios papais entre 1130-1135

coLunas de são pedro


Leandro duarte rust 359

A partir da tabela 2 constatamos que alguns cardeais do entourage de


Inocêncio suplantavam vertiginosamente a participação daqueles outros que
estiveram à frente dos concílios pontifícios entre 1125-1130. Enquanto Ma-
teus de Albano aparece subscrevendo 18 privilégios, João de Crema (s. Cri-
sogonus) 14, e Pedro de S. Anastasia apenas 5, no mesmo período, Gregório,
diácono dos santos Sérgio e Baco, aparece como testemunha de 35 atos pon-
tificais; Guilherme, bispo de Palestrina, de 34; e Lucas, presbítero dos Santos
João e Paulo, de 32.
Todavia, tão logo voltemos nossas atenções para a tabela 1, percebere-
mos que os nomes de nosso influente triunvirato aparecem em praticamente
todos os documentos que envolviam integrantes das redes de dependência
apresentadas nas páginas anteriores. Caso dos atos que implicavam Suger de
Saint-Denis (JL 7472), Norberto de Magdeburgo (JL 7629, 7652), Bernardo
de Claraval (JL 7544) e Pedro, o Venerável, de Cluny (JL 7429, 7550). Somen-
te em duas circunstâncias (JL 7572, 7603), uma decisão papal envolvendo al-
guém implicado nas missões legatinas anteriores não conta com nenhum dos
três nomes. Trata-se dos documentos aprovados, respectivamente, em Piacen-
za (JL 7527), referente a Litifredo, bispo de Novara, em Roncaglia (JL 7603),
na qual foi mencionado o nome do abade de Cluny, Pedro.
É provável que a ausência dos nomes de João e Mateus nessas ocasi-
ões decorra do fato de nenhum deles ter alcançado a península italiana no
momento de realização das concessões. Eles teriam permanecido em algum
ponto do itinerário papal na Gália, para onde se deslocaram nos primórdios da
disputa, como atestam Guilherme de Malmesbury e a Chronica Mauriniacensi.
Todavia, nem mesmo um argumento como este – ex silentio – pode ser sacado
para explicar a ausência de Pedro. Seu nome simplesmente desaparece dos
registros da Chancelaria apostólica após a confirmação papal dos benefícios
da igreja de São João de Jerusalém (Jl 7451), datada de 20 de fevereiro de
1131. Em um privilégio não incluído nas relações acima, concluído cinco anos
depois, em 22 de abril de 1136, outro nome aparece preenchendo o título de
cardeal presbítero sanctae Anastasiae: Azzo.98 Tudo o que nos resta é indagar,
tateando sombras documentais: Pedro faleceu entre 1131 e 1136?
O cardeal Gregório efetivamente se apropriou dos circuitos de exercício
do poder papal operados por meio das assembleias legatinas reunidas entre
1125 e 1130. Foi a este sentido que respondeu a participação do triunvirato
cardinalício na rotina inocenciana de promulgação de privilégios. Sua presen-
ça e chancela não eram necessárias sempre. Mas eram indispensáveis quando

98
JL 7768.
360 coLunas de são pedro

o novo papa movia-se para reativar, fortalecendo, as conexões regionais de


influência e dependência criadas pelas missões legatinas de Honório. Por meio
delas ele direcionou para si um amplo conjunto de ações, decisões e memórias
através das quais as coroas e as elites eclesiais capetíngia, anglo-normanda e
germânica, identificavam o poder de decisão de um papa. Aqueles numerosos
vínculos tornaram-se vias pelas quais correram processos de condicionamento
à obediência e ao reconhecimento do “verdadeiro sucessor de Pedro”.

6.5. A anatomia da autoridade papal ou de volta ao diabo

Sobre o desenrolar da eleição papal do ano de 1130 há, fundamental-


mente, dois documentos. Apenas duas epístolas oferecem um relato detalhado
sobre o curso de eventos ocorridos entre os dias 12 e 14 de fevereiro daquele
ano. Cada carta expressa o ponto de vista de um partido. Dois documentos,
duas cartas, duas versões.
Elaborada por Huberto, bispo de Lucca, a epístola inocenciana expunha
a seguinte trama. Há dias a morte rondava o papa Honório II, que desfalecia
desde o raiar do mês. A iminência do falecimento atiçou um temor, comum
entre os cardeais, de que os Frangipani e os Pierleoni, as poderosas famílias
da aristocracia romana, se intrometessem novamente na escolha do regente
maior de toda a Cristandade. Anos antes, em 1124, uma violenta intervenção
dos Frangipani promovera a pontífice o cardeal Lamberto de Óstia, que então
agonizava sob o nome de Honório.
Receoso, o colégio cardinalício tomou uma medida incomum ao deci-
dir criar um tipo de comissão extraordinária de eleitores, composta por dois
cardeais bispos (Guilherme de Palestrina e Conrado da Sabina), três cardeais
presbíteros (Pedro Pisano de Santa Susanna, Pedro Rufino dos Santos Silvestre
e Martino e Pedro Pierleoni de Santa Maria in Trastevere), três cardeais diáco-
nos (Gregório de Sant’Ângelo, Jonatas dos Santos Cosme e Damião, Haimerico
de Santa Maria Nuova). O consenso unânime ou ao menos o que fosse obtido
pela “maior e mais venerável parte do conselho” (ab eis communis eligeretur vel
a parte sanioris consilii) apontaria aquele “a ser acolhido como senhor e papa”
(ab omnibus pro domino et Romano Papa susciperetur). Quem se recusasse a
fazê-lo sentiria o peso do “gládio da excomunhão”. Para cimentar a ordem, a
comissão obteve dos líderes Frangipani e Pierleoni o juramento de que o esco-
lhido contaria com sua lealdade.
Segundo Huberto, os procedimentos seguiam o curso esperado até Pe-
dro Pierleoni surpreender a todos. Tomando o pontífice por morto, ele deixou
a igreja do apóstolo André – onde o conselho se reunira – e levou consigo o
cardeal Jonatas. Desertando da comissão eleitoral, “como um corvo com a goela
Leandro duarte rust 361

repleta de carne”, Pedro apelou aos outros cardeais “com maledicências criadas
para eleger” a si mesmo. (ut corvus ille vel submersus vel carnium ingluvie deten-
tus, ad fratres postea redire contempsit, et conventicula seorsum colligens, altare
maledictionis eligere satagebat). Um golpe entrava em curso.
Mas, o assalto do Pierleoni ao poder foi sabotado pela súbita aparição
de Honório na janela da igreja. O papa estava vivo. Mas por poucas horas, já
que faleceu pouco depois, naquela mesma noite, 13 de fevereiro. Alertados
pela precipitada sedição dos Pierleoni, os cardeais eleitores celebraram, às
pressas, as exéquias (celebratis exequiis pro necessitate loci et temporis), e ele-
geram o diácono Gregório que, relutantemente, aceitou o ofício como papa
Inocêncio II. A carta buscou aqui se sustentar com um velho topos narrativo: a
imagem de um eleito para a mitra de Pedro considerando-se “indigno”, recu-
sando tamanha “honra”, era um modelo literário de legitimação das elevações
papais na Idade Média, acionado, especialmente, quando elas entravam em
conflito com a tradição canônica. Tese convincentemente demonstrada por
Philip Daileader (1993: 11-31),
Segundo o bispo de Lucca, o escolhido foi aclamado por todos, exce-
to por Pedro Pisano. Contrariado, o cardeal de Santa Susanna se juntou aos
desertores e liderou uma segunda eleição, oferecendo ao cardeal Pierleoni
a oportunidade para realizar sua antiga ambição de tomar para si a Igreja
Romana (Petrus Leonis a longis retro temporibus ad id pervenire, ut avarus et
ambitiosus). O “papa invasor” teria recompensado os votos com generosas
gratificações (tribus generibus munerum nunc hos, nunc illos sibi alliciens). Em
seguida, embates sangrentos, pilhagens e profanações foram cometidos por
Leo Pierleoni, irmão do cardeal desertor, e Leo Frangipani: os dois capitães
que dias antes juraram acatar a eleição.
Seguindo a sentença sugerida por “homens religiosos da Toscana, da
Lombardia e de Ultramontes”, os inocencianos declararam Pierleoni “cismáti-
co e herético” (sententiam et consilium religiosorum virorum Catholicorum et
orthodoxorum, de Tuscia, de Longobardia, et de Ultramontanis partibus ample-
xantes, approbantes et imitantes, Petrum Leonis in hoc facinore ut schismaticum,
et quoniam suum schisma defendit haereticum omnimodis abdicamus).99 Pouco
depois da eleição, o próprio Inocêncio II garantiu ao imperador que seu rival
só se apoderou da basílica de São Pedro às custas de muito sangue derramado
pela força de homens armados, que atacavam e punham a ferro os peregrinos
que se dirigiam para os santuários dos apóstolos.100

99
HUBERTO DE LUCCA. Epistola. WATTERICH 2: 179-182. E ainda: WALTER DE RAVENA. Epístola.
Praemonstratensis Annales 1: VI.
100
INOCÊNCIO II. Epistola. PL 179: 055-056.
362 coLunas de são pedro

Escrita de próprio punho por Pedro Pisano, a versão anacletiana atinge


um clímax narrativo capaz de deixar boquiaberto o leitor. Seu texto começa
devolvendo-nos ao leito do papa agonizante. Honório foi levado do palácio la-
teranense para o monastério de São Gregório, localizado nas proximidades da
Igreja de Santo André. Os cardeais presentes concordaram que, face à agitação
e aos rumores que desassossegavam a cidade, o papa deveria ser consultado
sobre seu sucessor. Prática incomum, que despertou impasses. Para saná-los,
chegou-se a um consenso: enquanto Honório estivesse vivo e não houvesse
sido sepultado em conformidade com os ritos funerários romanos, nenhuma
discussão seria realizada sobre o tema da sucessão (juxta sententiam canonum
vivente Romano Pontifice et eo de more non sepulto, non debere de succedentis
electione tractari).
Enquanto isso, o murmúrio de um novo golpe dos Frangipani, como o
ocorrido em 1124, derramava-se pelas alamedas romanas. Amedrontados, os
cardeais reunidos em São Gregório concordaram em destacar oito dentre eles
para compor um conselho inédito, que seria responsável pela deliberação e
escolha do sucessor pontifício (Visum demum fratribus omnibus est, ut perso-
nae octo eligerentur, quae de electione tractavent et sequentis deberent Pontificis
personam eligere). Se, porém, não chegassem a um consenso, os outros car-
deais deveriam ser chamados para a busca de uma escolha unânime. O passo
seguinte consistiria em abrigar o conselho num local a salvo dos boatos que
deixavam a cidade em ponto de ebulição. Decidiu-se pelo fortificado convento
de Santo Adriano. Dois cardeais foram despachados para assegurar o lugar,
mas, no caminho, foram ameaçados por certos bispos (quibusdam episcopis) e
suas guarnições. A notícia logo correu e atingiu os cardeais como aviso de em-
boscada. Temerosa, a “maior e mais venerável parcela” (pars maior et sanior)
da Sé Romana não se dirigiu ao monastério. Separada por uma atmosfera de
medo, a maioria cardinalícia perdeu contato com o conselho eleitor.
A epístola prossegue. Com o papa ainda moribundo, as portas de São
Gregório foram fechadas. Nenhum outro clérigo tinha permissão para entrar.
No seu interior, teve início a reunião de uns poucos cardeais e quatro bispos
“sem nenhum ou pouco poder para eleger” (quibus nulla vel minima est in elec-
tione potestas). Enquanto a maioria do sacro colégio fiava-se pela promessa de
que os ritos mortuários papais seriam cumpridos antes de qualquer decisão ser
tomada, algo funesto se passou no interior do monastério. Ainda balbuciando,
o pontífice foi raptado por laicos e morto em seguida (Papam adhuc vivere
praedicarent, subito per laicorum manus mortuus miserabiliter defertur). Era
preciso ter controle sobre aquele corpo, transformado pelas circunstâncias em
estopim da eleição. Sem observar qualquer rito, o cadáver papal foi removido
e transportado sorrateiramente, como a carcaça de um clandestino: pior, “de
Leandro duarte rust 363

um vil animal” (non deponitur feretrum nec ulla ei obsequia fiunt, sed recto gra-
du, sicut vilissima bestia in claustrum trahitur).
Desprezando seu juramento, o cardeal Haimerico reuniu-se a seus
partidários. Sem convocar os demais, ele e os seus elegeram Gregório de
Sant’Ângelo. Pedro Pisano – o autor desta versão – se opôs imediatamente.
Gregório, já sob o nome de Inocêncio II, foi levado apressadamente ao palácio
de Latrão carregando o cadáver de Honório, cuja morte era mantida ocul-
ta a qualquer custo. O corpo do sucessor de Pedro acabou lançado em uma
cova ordinária (in basilicam Salvatoris mortuus et vivus simul intrarent; ibique
corpore Pontificis non sepulto, immo in vilis tumuli angustia sine cooperimen-
to e obsequio male deposito). Tão abjeta foi esta conduta que ela empurrou
Leo Frangipani e seus filhos Oto e Cêncio para uma inusitada aliança com os
Pierleoni, seus rivais. Com exceção dos cinco clérigos leais a Haimerico e Ino-
cêncio, os principais nomes da Cúria, os demais cardeais e o povo e clero ro-
manos (priores cardinales cum reliquis cardinalibus, ad quos cum clero Romani
Pontificis spectat electio), aguardavam a notícia da morte de Honório na igreja
de São Marcos. Esperavam para sepultá-lo. Ao saber que o papa já estava sob
a terra, deram início a breves deliberações e, em acordo “com o povo e os
de maior prestígio”, elegeram Pedro Pierleoni (deliberato consilio, expetente
populo cum honoratorum consensu pari et communi voto). Em 23 de fevereiro,
Pedro Senex, cardeal bispo do Porto, consagrou o eleito como Anacleto II, na
basílica de São Pedro.101
Simonia. Profanação do corpo pontifício. Massacres. Trapaças e dissi-
mulações. As versões documentais coincidiam em dois pontos. O primeiro é
o fato das duas narrativas levarem a uma eleição impregnada de violações. O
segundo consiste em um dos poucos argumentos em comum aí encontrados:
ambas confirmam que o poder de eleição de um sucessor apostólico havia
sido entregue a uma excepcional comissão de oito cardeais. Neste sentido, em
meio às muitas arestas de divergências e de incertezas que emergem das car-
tas, uma mesma conclusão desponta: as duas sustentam a constatação de que
a própria Cúpula papal transformou a bula In Nomine Domini em letra mor-
ta. Os procedimentos estipulados pelo decreto de abril de 1059 foram todos
atropelados pela formação daquele conselho de eleitores. Ninguém respeitou
a determinação de reservar as deliberações sobre a sucessão pontifícia aos
cardeais bispos e assegurar a aprovação dos demais membros do sacro colégio,
além da aclamação por parte do clero e povo romano.

101
PEDRO DE PISA. Epistola. WATTERICH 2: 187-190. Ver também: PEDRO DO PORTO. Epistola. In:
GUILHERME DE MALMESBURY. Historia Novella. HARDY 2: 695-696.
364 coLunas de são pedro

Entre os eleitores efetivos de fevereiro de 1130, os cardeais bispos eram


minoria. Os rumores de um golpe aristocrático forçaram uma manobra à mar-
gem da regra canônica, negando o que foi escrito para assegurar a legitimida-
de dos bispos de Roma. A violação era drástica. Lembremos que, no texto da In
Nomine Domini, toda a relevância canônica dos ritos de consagração, coroação
e entronização como meios de instauração dos poderes jurisdicionais e pasto-
rais sobre a Sé Romana estava condicionada à realização dos procedimentos
eleitorais prescritos.102 Em 1130, tais procedimentos foram todos colocados
em suspenso, solenemente ignorados.
A regra escrita que norteava o processo de elevação dos papas foi inu-
tilizada como princípio de canonicidade. Nenhum dos dois partidos podia se
abrigar por inteiro sob a provisão jurídica. Cada um deles era capaz de invocar
argumentos legalistas ao seu favor sem tomar a dianteira canônica perante o
rival. Os anacletianos eram a maioria do colégio cardinalício, a maior pars;
mas entre os inocencianos havia cinco dos sete cardeais bispos, a chamada
sanior pars da Sé Apostólica. Inocêncio foi sagrado pelo bispo de Óstia, como
rezava o costume romano; mas foi Anacleto o entronizado com grande pom-
pa na basílica de São Pedro, como apregoava a tradição dos “santos pais”. O
cardeal Gregório foi eleito primeiro, o que conferiu à eleição seguinte ares de
contragolpe; entretanto, foi Pierleoni o aclamado pelo clero et populo romano,
cumprindo à risca uma exemplaridade ancestral herdada de “bem-aventurados
papas predecessores”.
Como notou com argúcia Mary Stroll (1987: 82-90), a própria Cúria neu-
tralizou o direito canônico como fator de legitimação e distinção dos eleitos.
O manto da legalidade havia sido rasgado com a dupla eleição de 1130 e os
pedaços tomados por cada partido eram insuficientes para cobri-los plenamente
com um amparo dos “santos cânones” ou dos “ensinamentos dos santos pais”.
Em meio a uma eleição farta em escândalos e desprovida de efetivo am-
paro legal, a associação de Inocêncio II ao triunvirato legatino dotou-o de uma
vantagem insuperável. A vinculação aos principais operadores das redes regio-
nais de ativação da autoridade papal colocou ao alcance do ex-cardeal Gregó-
rio o único espaço da sancta romana ecclesia onde havia um acervo irrefutável
de legitimidade e prestígio pontifícios: o recente passado de ações conciliares
que carregavam o nome de Honório II. Nenhum daqueles três cardeais – João
de São Crisogonus, Mateus de Albano e Pedro de Sancta Anastasia – figurava
entre os protagonistas das irregularidades eleitorais. Distantes das acusações

102
DECRETUM ELECTIONIS PONTIFICIAE. MGH Const. 1: 539-541; HUGO DE FLAVIGNY. Chronica.
MGH SS 8: 408-409.
Leandro duarte rust 365

de corrupção, seus nomes estavam repletos de referências distintivas, consa-


gradoras. Isto é, ecoavam com a energia de longas jornadas como portadores
legítimos da autoridade apostólica, ressoando o prestígio de missões legatinas
bem-sucedidas. No ano de 1130, o presente vivenciado pelos homens da Sé
Romana depunha igualmente contra os dois eleitos. O passado recente, no
entanto, inclinava-se a testemunhar a favor de apenas um: Inocêncio II.
Diferentemente de seus predecessores, Inocêncio não recebeu a autori-
dade papal. Teve de construi-la lentamente. Demorou anos para possui-la de
modo seguro. O cisma de 1130 foi um caso de gravidade única nos últimos
noventa anos. Nas ocasiões anteriores em que duas vozes reclamaram o trono
apostólico, uma delas pertencia ao grupo hegemônico no interior do bispado
romano. Até então, era possível divisar um candidato, por assim dizer, “in-
terno” ao alto clero papal e outro “externo” que, amparado pela aristocracia
do Lácio ou elevado pela iniciativa imperial, era a fonte em potencial de uma
ruptura nos rumos das ações pontifícias.
Desta vez, entretanto, não era possível divisar um “grupo claramente
hegemônico”. As maiores contestações da legitimidade do sucessor apostólico
brotavam do interior da própria Cúria. Os ataques mais inclementes desfecha-
dos contra o escolhido para conduzir a fé cristã partiam do próprio corpo de
eleitores. Tão logo foram aclamados, Inocêncio e Anacleto foram confronta-
dos com o mesmo desafio: construir o reconhecimento devido ao pontífice,
pois sua autoridade simplesmente não acompanhou as insígnias portadas por
cada um deles. Violados, os procedimentos eleitorais esvaziaram de valor a
entronização no santuário apostólico e a coroação com a mitra e os demais
símbolos papais. Ambas não eram capazes de materializar a investidura da
“Santa Sé de Pedro” (sedis sancti Petri).
Mesmo consagrados, os eleitos precisavam medir forças para conquis-
tar o respeito devido a um papa. Por cinco anos, a batalha foi travada como
uma disputa pelo tempo; especificamente pela capacidade de falar em nome
do passado, uma vez que o presente faltava a ambos. Os inocencianos saíram
vitoriosos. Entre as mais poderosas armas de seu arsenal estava, certamente,
uma “habilidosa campanha de propaganda [anti-judaica] que perpetuou a per-
niciosa imagem de Anacleto (...) como a besta do apocalipse” (STROLL, 1987:
178), que fazia alarde do sangue judaico dos Pierleoni para enlamear a repu-
tação de todos os anacletianos. Mas havia igualmente a rede de dependências
retida pelos legados de Honório II. Cada laço de familiaridade e influência ata-
do a João de Crema, Mateus de Albano e Pedro S. Anastasia foi transformado
em uma antecipação favorável a Gregório de Sant’Ângelo.
Observemos a defesa dos inocencianos empreendida por Bernardo de
Claraval no concílio de Étampes. Segundo o abade, entre as razões que exi-
366 coLunas de são pedro

giam o reconhecimento de Inocêncio estava a constatação de que ele tinha ao


seu lado a “venerável parcela” (sanior pars) da Sé Romana. O argumento era
muitíssimo adequado e logo galvanizou adesões de toda a Gália. Não porque
os partidários de Inocêncio fossem moralmente superiores, como alegou o
ilustre abade.103 E sim porque junto a eles os mais poderosos bispos e abades
da Gália reencontravam os nomes dos homens que, em diversas ocasiões e
diante de seus olhos, encarnaram o poder de decidir em nome do apóstolo
Pedro. A superioridade moral destacada por Bernardo consistia num tema re-
presentacional (MOSCOVICI, 2003: 215-228), com o qual as lideranças da
ecclesia galicana recobriam de familiaridade o sentido social da autoridade.
Isto é, a imagem da superioridade moral foi a forma com que aquelas elites
re-apresentaram o fato dos cardeais inocencianos serem vistos como detento-
res de fato e de direito da palavra fundadora dos pontífices. Em sua Historia
Novella, o monge Guilherme de Malmesbury atestou quão difícil era distinguir
moralmente os dois cardeais eleitos para o trono petrino: “ambos [eram] notá-
veis pelo zelo e cultura, não era fácil ser decidido pelo povo e pelo clero qual deles
deveria ser eleito de forma justa”.104 Optar por Anacleto era “errado” porque
implicava em negar experiências de um legítimo exercício do poder papal,
bem como todas as decisões daí resultantes acerca da partilha e concessão de
bens, prerrogativas e funções eclesiásticas.
O estrondoso cisma de 1130 representa para o historiador do papado
medieval uma ocasião única. Não tanto pela trama impactante dos fatos que
o trouxeram à tona, mas sim porque ele instaurou processos de fabricação da
autoridade papal até então pouco visíveis. As décadas de 1120 e 1130 permi-
tem ao medievalista vislumbrar a lenta (re)construção dos princípios constitu-
tivos da auctoritas pontifícia, vasculhar sua anatomia. No caso de Inocêncio II
tal processo transcorreu, fundamentalmente, através da apropriação das redes
regionais de poder formadas pelas missões legatinas promovidas anos antes
das diferenças entre os cardeais estourarem.
Como se produziu aquele alinhamento de lealdades? Dificilmente sa-
beremos. Mary Stroll (1987: 156-178) já demonstrou que há lacunas docu-
mentais em demasia para que possamos decifrar as razões que levaram os
principais legados de Honório II a se perfilar em uníssono junto a Inocêncio.
Talvez reagissem contra a origem judaica de Pierleoni, como quis a autora; ou
tão somente acatassem a escolha liderada pelo cardeal e chanceler Haimerico,
conforme sustentam Herbert Bloch (1942) e Stanley Chodorow (1972).

103
BERNARDO DE CLARAVAL. Epistola. PL 182: 270-281.
104
Ambo litteris et industria insignes, nec erat facile discernere populo quisnam eorum justius eligere-
tur a clero. GUILHERME DE MALMESBURY. Historia Novella. HARDY 2: 695.
Leandro duarte rust 367

Porém, quanto ao peso deste alinhamento sobre os rumos do cisma há


o suficiente para sustentar esta opinião: cada privilégio, cada confirmação,
cada deliberação conciliar realizada pelo triunvirato legatino tornou-se tanto
uma mola propulsora que empurrava os envolvidos para a adesão ao partido
inocenciano, quanto um obstáculo a mais contra a causa anacletiana. Eles
criavam uma espécie de “margem de rejeição”. Está aí uma vantagem do car-
deal Gregório frente a seu adversário Pierleoni: ter sido envolvido por teias de
relações sociais que freavam a escolha a seu rival, impedindo o aparecimento
da possibilidade de se decidir pelo outro. Eis um fundamento da autoridade
apostólica dos anos 1130.
Portanto, no século XII, a autoridade dos papas implicava em relações
que geravam consenso e coerção, mas a partir de algo mais: a auto-intimida-
ção dos agentes históricos. A “Auctoritas” apostólica consistia num fenômeno
social, mediado por recíprocas relações de dependência, que resultavam em
uma forma de desativação espontânea da capacidade de escolha (Ver: CHAR-
BY, 2003: 53-55).
Não se resumia, como apregoaria uma perspectiva filo-weberiana, a uma
categoria simbólica ou um atributo singular possuído por um agente social in-
dividualizado. Talvez este seja um acréscimo a ser feito aos estudos seminais
de Michele Maccarrone. Em obras que se tornaram vitais para a História do
Papado Medieval, como Vicarius Christi: Storia Del Titolo Papale (1952) e Teo-
logia Del Primato Romano Del Secolo XI (1971), Michele firmou o que podería-
mos chamar de “significado forte” para a ideia de autoridade papal, quando a
definiu como uma construção fundamentalmente teológica e dogmática capaz
de inspirar duradouras atitudes coletivas de “exaltação da Igreja Romana” e
“subordinação dos demais bispos ao papa” (MACCARRONE, 1971: 39-42). A
autoridade consiste aqui em relações de sujeição dominadas por motivos dou-
trinais, por razões características de uma compreensão eclesiástica de mundo.
Sob esta perspectiva, a formulação dos dogmas e a transformação das tradi-
ções escritas passam a ocupar um lugar central na explicação do passado:

A renovação da Igreja que se opera no século XI e que leva o nome de seu


maior pontífice, São Gregório VII, teve impulso e recebeu sua orientação
do paralelo de revitalização da doutrina teológica e canonística sobre o
papa e sobre a Igreja e isto, por sua vez, foi eficazmente promovido pela
reforma gregoriana (MACCARRONE, 1952: 85).

A historiografia incorporou fielmente esse axioma fundador. Ele está


presente nas afirmações de Alfons Becker (BECKER, 1995: 411-445), por
exemplo. Para quem, a razão dos papas atraírem colaboradores e vassalos
368 coLunas de são pedro

durante a Idade Média não encontrava nas tramas de relações políticas senho-
riais, mas “em sua autoridade moral e espiritual de chefe da Cristandade”. Para
Becker, um típico atributo reformador, a “superioridade moral”, era o pilar da
autoridade apostólica romana. Eis a versão medieval do líder carismático de
Max Weber.
Este mesmo princípio continua muito vivo em nosso olhar sobre o pas-
sado, embora sob novas versões, que colocam símbolos, gestos e rituais no
primeiro plano das relações de poder. É o que fez Agostino Paravicini-Bagliani
no valioso estudo The Pope’s Body. É preciso lembrar sempre que o livro não foi
concebido como um estudo da política papal, mas sim com uma investigação
sobre os diversos significados políticos emanados da exposição pública do cor-
po do papa. Todavia, um dos resultados a que chega a obra é precisamente o
de reafirmar a vinculação da autoridade pontífícia à primazia moral dos bispos
de Roma, construída e estampada nos símbolos, títulos e posturas do persona-
gem papal (BAGLIANI, 2000: 58-60). As mesmas relações causais reaparecem
na útil síntese Il Trono di Pietro: l’universalità del papato da Alessandro III a
Bonifacio VIII. Para explicar a “evolução eclesiológica da figura institucional do
papa”, Bagliani (1996: 27) assume como ponto de partida – e, portanto, como
uma razão primordial – a ideia de que “títulos e metáfora, cuja criação ocorreu
na maior parte apenas no interior da instituição do papado, contribuíram de
modo decisivo para a afirmação de uma nova figura de papa”.
O que se lê nas páginas seguintes são os desdobramentos dessa afir-
mação, sempre retocando os notáveis tons impostos por Maccarrone. Os pa-
pas teriam se distinguido no bojo da Cristandade como a “imagem vivente de
Cristo na Terra”, o “princípio motor de todo o programa de reforma da Igreja”
(BAGLIANI, 1996: 28-34). A autoridade dos papas teria sido coletivamente
experimentada como uma construção moral, como algo que dizia respeito,
fundamentalmente, às preocupações com a salvação das almas e a correta
ordem dos valores e símbolos cristãos.
Não ousamos discordar dessas afirmações. Nada do que elas sugerem
parece-nos “errado” ou “fora de lugar”. O que nos causa certo incômodo é
a atitude comum de agir como se tudo o que importasse na vivência da au-
toridade estivesse contido em tais aspectos. Se assim o for, cabe reconhecer
que este entendimento diminui de modo drástico – e abusivo – um conjunto
de características igualmente decisivas: a construção social das relações de
comando e obediência. Isto é, ele reduz a importância sociológica dos muitos
feixes de relações que primeiramente desmobilizavam e inibiam os agentes
históricos; das numerosas formas de envolvimento coletivo que, incutindo a
não-decisão, se desdobravam na criação de formas de consenso e no emprego
da coerção.
Leandro duarte rust 369

Os partidários de Inocêncio II vivenciaram estas relações como poucos.


Passaram anos inteiros reativando conexões capazes de produzir acomodações
decisórias e levar os envolvidos a se resignar com uma adesão imediata, a agi-
rem como se não houvesse outra escolha a ser feita. A Cúria romana que reinou
entre os anos de 1130 e 1143 passou por uma prova de fogo política. Seus
integrantes foram profundamente marcados pelos graves riscos que surgiam
quando se deixava livre a capacidade cristã de optar, de decidir. Esta se tornou,
em sua experiência, a fonte de inúmeros achaques e discórdias. Algo propria-
mente ruim, a ser evitado, combatido. O mal primordial, a origem de incontá-
veis erros, jazia em escolhas sem rédeas, que simplesmente não eram contidas
diante dos limites impostos. Conduta que eles não cansaram de atribuir aos
anacletianos, que não se contiveram diante da eleição realizada; não se intimi-
daram com a antecipação feita pelos inocencianos: o preço de sua insistência
em escolher teria sido a grave divisão que se espalhou por toda a Cristandade.
Agir quando não se deveria mais fazê-lo: eis o rosto do mal supremo
para o partido dominante no interior do papado após a década de 1130. Foi
precisamente esta experiência que jorrou para o interior dos concílios daquele
período, cujos cânones não cessaram de taxar como diabólicas as escolhas que
negligenciavam limites. As imagens textuais do Diabo e do inferno – analisadas
no início deste capítulo – eram marcas de um profundo temor: do medo de ver
os dominantes perderam sua voz intimidatória, o receio de suas palavras não
mais inibirem as consciências. Caracterizar certas infrações e delitos como obra
diabólica foi uma forma de expressar e combater a falha que parece ter desen-
cadeado o agudo cisma anacletiano: o enfraquecimento da relação de autori-
dade, a diminuição da capacidade de levar o outro a calar a própria vontade.
Calejados por um longo cisma, os inocencianos precisavam conquistar
de fato as redes de intencionalidades operadas em suas assembleias, inflar o
poder persuasivo de cada novo cânone. Deste empenho resultaram os sentidos
mais contundentes da temporalidade mobilizada nos concílios pontifícios. Para
revigorar a desgastada e dividida autoridade apostólica, o novo papado serviu-
se do rosto do Maléfico, cuja imagem representava as bruscas contingências da
vida e as funções do “outro”. A figura do Diabo expressava uma aguda neces-
sidade de impor certos comportamentos e condicionar sua duração. Reputar
um ato ou escolha como “diabólico” significava recorrer a uma fórmula capaz
de transferir para o exterior do papado um fator incômodo, ameaçador: a re-
alidade de que até mesmo aqueles que falam em nome dos apóstolos estavam
expostos ao desvanecimento da palavra fundadora, à transitoriedade da habi-
lidade de ditar ordens. O Diabo representa aqui a vivência do risco de perder o
poder de galvanizar as escolhas e sucumbir ao perigo de que a Igreja de Roma
não mais pudesse inibir a capacidade cristã de optar, como fez no passado.
370 coLunas de são pedro

Representando a resistência à inação como a essência maligna, os con-


cílios papais viabilizaram uma forma para expressar e combater as tensões
existentes no interior de seu múltiplo universo decisório. “Diabolizar” foi um
modo de pensar encontrado para negar o que tanto combateram por anos a
fio: a mudança nas relações que modelavam a auctoritas, a ameaça de sua
unidade se perder no devir, deixar de existir com o tempo. Em outras palavras,
o partido curial que triunfou sobre os anacletianos vivenciou de muito perto
a necessidade de execrar qualquer suspeita de que a voz dos papas pudesse
morrer. Urgia-lhes obter a resignação perante o fato da palavra pontifícia ser
transmitida intacta para o sucessor apostólico, mesmo se ele fosse contestado
no seio da própria Cúria. Eis o maior tormento vivido por Inocêncio e os seus
na condução da Sé Romana: pelejar com uma “autoridade” que parecia seguir
Honório II para o túmulo; arcar com a fraqueza decorrente de uma voz que se
deteriorava quando deveria se conservar eterna; reavivar o que parecia imune
à morte. O diabólico era o tempo, com seu toque de efemeridade e sua ação
dissipadora, algoz do poder coibente da vocalidade papal.
A ascensão da figura do Diabo nos decretos conciliares da década de
1130 é um vestígio das batalhas travadas pela re-construção da autoridade
apostólica durante a época do cisma anacletiano, ou seja, de recomposição da
potência intimidatória da palavra papal.
Anacleto venceu a batalha por Roma, mantendo-a em seu poder, forçan-
do a fuga de seu opositor. Inocêncio venceu a batalha pelas colunas regionais
que sustentavam o poder pontifício, e com isto demonstrou que a autoridade
papal podia ser plenamente constituída fora da cidade apostólica, longe de
seus símbolos, ritos e espaços sagrados. Dilatado no transcorrer das últimas
décadas, o papado não consistia em um vértice centralizador que devorava po-
deres locais. Ao contrário, entre 1046 e 1143, ele foi um imenso e flexível arco
suprarregional de alianças e dependências. Roma não era imprescindível para
o exercício do poder pontifício. Era possível sustentá-lo e legitimá-lo mesmo
estando longe do túmulo dos apóstolos. Estaríamos já na rota histórica de for-
mação do papado de Avignon? A pergunta certamente vale pesquisas futuras.
Diante de tudo isso, uma frase sacada por Bernardo de Claraval para
enaltecer Inocêncio II comporta, para o medievalista, significados que vão
muito além do valor apologético almejado pelo abade: expulsus urbe, ab orbe
suscipitur, “expulso pela cidade, acolhido pelo mundo”.105 O papado triunfava
como uma extensa, móvel e dinâmica esfera de poder decisório, instância polí-
tica capaz de se deslocar e recriar suas bases de sustentação graças a apertadas
redes de interdependência suprarregionais.

105
BERNARDO DE CLAIRVAUX. Epístola a Hildeberto, arcebispo de Tours. PL 182: 268-269.
Leandro duarte rust 371
372 coLunas de são pedro
Capítulo 7

Restaurar a Família da São Pedro


(1143-1179)

Vossa Roma experimentou as vicissitu-


des do tempo. Ela não poderia ser a
única a escapar.
Frederico I, 1155

7.1. Temei o demônio, honrai o papa

A luta iniciada em 1130 pelo controle da Igreja de Roma rasgou protoco-


los sociais. Exacerbou contradições. Com seu desenrolar, certas características
da autoridade papal vieram à tona acentuadas, exasperadas, cruciantes. Escal-
dado pela superação da disputa, o partido governante na Cúria fez pesar sobre
os cânones conciliares novas pressões, vividas como desafios de re-construção
da autoridade apostólica. Este quadro se torna ainda mais nítido quando o
enxergamos dentro das linhas históricas gerais que o molduram. Vejamos.
Encurraladas pela asfixiante atmosfera política de antagonismos e inse-
gurança que se apoderou de Roma em meados do século XI, as alas dirigentes
da Sé Romana se viram forçadas a voltar-se para as elites exteriores ao Lácio,
na busca por aliados e fontes outras de apoio. Esta busca, porém, ocasionou
impactos em múltiplas direções. Para o papado, ela resultou na obtenção de
novos partidários para a influência reclamada por seu líder, além de outras
possibilidades de apoio senhorial e captação de recursos. Para as elites re-
gionais, ela alterou as condições de exercício das hegemonias locais, às quais
acrescentou novos protagonistas políticos.
Cada viagem empreendida por Leão IX, cada legado designado por
Gregório VII, cada privilégio cedido por Urbano II deslocava para dentro das
províncias eclesiásticas da Cristandade recursos políticos e meios de controle
374 coLunas de são pedro

patrimonial suficientes para alterar as correlações de forças aí existentes. Por-


tando a autoridade apostólica, figuras como o bispo de Die, o abade de São
Victor de Marselha ou o arcebispo de Toledo tornavam-se capazes de redimen-
sionar o prestígio, as possessões e a jurisdição associados à sua igreja ou ao
seu monastério. Contudo, a ampliação da participação regional no exercício
do poder papal também lesou certas influências, desautorizou tradições, dimi-
nuiu lideranças. Assim aconteceu com o episcopado lombardo e os arcebispa-
dos de Reims e Ravenna, sem falar nas prerrogativas de certas coroas, como a
imperial. A descoberta de aliados espalhou opositores.
A resistência à multiplicação dos espaços sociais de ativação da autori-
dade papal se intensificou à medida em que cresceu a necessidade dos pró-
prios partidários pontifícios de legitimar sua inserção nesta rede de pólos de
poder. Os relatos de milagres, profecias e ordálios protagonizados por inte-
grantes da sancta ecclesia romana na segunda metade do século XI – analisa-
dos em nosso capítulo 2 – fortaleciam esta nova realidade política na medida
em que a apresentavam como uma trama familiar: como atos pelos quais de
uma vontade divina. A renovatio do sagrado associada ao papado pós-1046 foi
um conjunto de representações atravessadas pela função vital de conferir um
sentido conhecido ao vasto compromisso coletivo com uma nova disposição de
poderes, almejada pelos portadores do poder apostólico.
Ao pôr em movimento as imagens dos emissários romanos como eleitos
de Deus, como os escolhidos para anunciar as punições impostas pela mão
divina, aqueles relatos comunicaram uma poderosa certeza. A de que era não
somente correto, mas crucial para o bom cristão tomar partido nas negocia-
ções iniciadas por um legado e medir suas escolhas segundo os princípios di-
tados por um papa. Até mesmo os mais contrariados deveriam ver na extensão
do papado para além da própria Roma um plano traçado pelos céus. Os ativos
mandatários que surgiam nas províncias cristãs agindo em nome dos santos
apóstolos cumpriam desígnios divinos. Qualquer resistência ou oposição a tais
mudanças se tornava altamente censurável, temerária, maléfica.
Porém, a rápida dilatação dos espaços de acionamento da política papal
ultrapassou os limites criados por estas representações. Por volta de 1100, a
vocalidade pontifícia tinha se tornado fator de coesão e afirmação de muitos
círculos regionais de poder. Polivalente, ecoando de numerosos focos, ela se fez
aberta a dizeres diversos e amiúde dissonantes, ruidosos. Foi o que evidenciou a
crise hasteada em 1111 pelo Privilegium Paschalis II – tema de nosso capítulo 5.
Àquela altura da História, as bocas que falavam em nome do apósto-
lo Pedro tinham se multiplicado de modo impressionante, maximizando as
possibilidades de responder aos desafios políticos encontrados pelo caminho
da expansão da Sé Romana. Desafios como os agudos impasses criados pelo
Leandro duarte rust 375

sequestro de Pascoal II a mando Henrique V. Aquele rapto privou o papado de


um antigo ponto de equilíbrio e despertou, de uma só vez, as muitas vozes
políticas abrigadas em seu interior, revelando a tensão e a heterogeneidade
decisória do longo arco de alianças suprarregionais que o sustentava. Os riscos
para a unidade do poder pontifício chegaram ao limite em fevereiro de 1130,
quando o próprio colégio de cardeais a rasgou ao meio. O cisma anacletiano
prolongou-se como uma luta travada por dois partidos curiais pelo controle
da autoridade papal, isto é, das relações que difundiam entre as elites cristãs
a inibição voluntária da escolha política.
Foi quando a figura do Diabo entrou em cena. Na primeira metade do
século XII, o apelo dos registros conciliares à imagem de forças espirituais
ingressou em nova fase ao enfatizar novos temas: as imagens do mal como
meio de apresentar e combater os riscos enfrentados pelo governo pontifício.
As referências ao Diabo marcaram nos cânones a magnitude da luta travada
no interior da Sé de Roma: combate calamitoso, eivado de perigos extremos,
já que desgastava os fundamentos sociais de algo que se pretendia ser inaba-
lável, a autoridade dos bispos romanos. Marcados pelo drástico enfraqueci-
mento dela, os integrantes do papado propagaram investidas simbólicas mais
agressivas e orientadas pela expectativa silenciosa de levar seus aliados a re-
nunciar à sua habilidade de escolher. Classificar uma ação como diabólica era
uma maneira de solicitar maiores poderes para combatê-la. Era galvanizar a
adesão coletiva pelo temor. Difundir a imagem da Igreja cercada por ameaças
infernais era um meio de reacender o compromisso esperado das elites regio-
nais, compromisso este abalado pelo cisma de 1130.
Estas pressões para reafirmar o dever cristão de aderir espontaneamen-
te às decisões tomadas pelo papado avançou pelas décadas seguintes, através
da insistência em apresentar todo ato de desobediência ou indiferença como
sinal de manipulação demoníaca. Em 1148, o concílio de Reims, reunido por
Eugênio II, declarou em seu cânone 12:

Absolutamente nada acrescentando aos presentes escritos, confirmamos


os decretos de nosso predecessor de feliz memória o papa Inocêncio e
estabelecemos que aquele que, instigado pelo Diabo, tiver incorri-
do no desvio do sacrilégio por ter atacado violentamente um clérigo ou
monge, seja submetido ao anátema: que ninguém dentre os bispos ouse
absolvê-lo, a não ser sob perigo iminente de morte, até que ele se apre-
sente diante do papa e dele receba a permissão.1 (Os grifos são nossos)

1 Nihilo minus praesentis scripti ferie, statuta praedecessoris nostris felicis memoriae papae Innocentii
confirmantes, decernimus, suadente diabolo hujus sacrilegii reatum incurrerit, quod in clericum vel
monachum violentas manus injecerit, anathemati subjaceat: & nullus episcoporum illud praesumat
376 coLunas de são pedro

Como na década anterior, o “Inimigo” conferia um rosto àqueles que


desacatavam as determinações pontifícias. Uma associação com as trevas per-
mitia identificar aqueles que negligenciavam os limites de comportamento
desejados pelos papas. E eis que 1163, a imagem do Diabo agigantou-se. Ele
finalmente se tornou protagonista de um cânone conciliar inteiro. Mais do que
um vulto por trás dos infratores, “o Maligno” foi colocado no centro das aten-
ções, revelado mais claramente. Seus atos foram descritos, sua forma de pen-
sar exposta a todos os cristãos. Esta aparição imaginária se deu nos decretos
aprovados pela assembleia de Tours, sob a presidência do papa Alexandre III:

Sem árduos esforços de nossa parte, o antigo Inimigo traz abaixo com
sua inveja os membros fracos da igreja. Mas ele também coloca suas
mãos sobre seus membros preferidos e tenta acometer todos os escolhi-
dos, pois, como a Escritura diz: “Eles são sua carne escolhida”. Ele consi-
dera que trouxe a ruína de muitos quando um dos mais preciosos mem-
bros da igreja tiver sido puxado para baixo por seus artifícios. Por esta
razão não é surpreendente que, transformando a si mesmo em um anjo
de luz, como é de seu costume, sob o pretexto de demonstrar preocupa-
ção pelos corpos daqueles membros que estão abatidos sobre seus fardos
e de negociar de uma forma mais confiável os assuntos da igreja, ele
seduz aqueles que estão sob a regra monástica para interpretarem a lei e
pesarem as prescrições. Portanto, para que estes homens espirituais não
sejam envolvidos uma vez mais nas questões do mundo, sob o pretexto
de aprendizado, e que, nas questões interiores, falhem na preocupação
maior que eles julgam manter por outros em necessidades externas, com
o consentimento do concílio reunido neste lugar, nós decretamos que a
ninguém, após a profissão dos votos da religião, seja permitido partir
para estudar medicina ou leis mundanas. 2

absolvere, nisi mortis urgente periculo, donec apostolico conspectui praesentetur, & ejus mandatum
suscipiat. MANSI 21: 717.
2 Non magno opere antiqui hostis invidia infra membra ecclesie preciptare laborat, set manum mittit
ad desiderabilia eius et electos quosque nititur supplantare, dicente Scriptura: “Esce eius electe”. Mul-
torum siquidem casum operari se reputat ubi pretiosius aliquod menbrum ecclesie sua fuerit calliditate
detractum. Inde nimirum est quod se in angelum lucis more solito transfigurans, sub obtentu languen-
tium fratrum consulendi corporibus et ecclesiastica negotia fidelius pertractandi, regulares quosdam
ad legendas leges et confectiones physicas ponderandas de claustris suis educit. Unde, ne sub occasio-
ne scientie spiritales viri mundanis rursus actionibus involvantur et interioribus ex eo ipso deficiant ex
quo se aliis putant in exterioribus providere, de presentis concilli assensu statuimus ut nullus omnino
posto votum religionis, post factum in aliquo religioso loco professionem, ad physicam legesve mun-
danas legendas permittatur exire. CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 409-410.
Leandro duarte rust 377

A figura diabólica cumpre uma função semelhante àquela antes desem-


penhada por relatos de milagres papais ambientados na segunda metade do
século XI, porém de modo mais contundente e persuasivo: justificar e fortale-
cer a obediência espontânea à vocalidade papal em contextos de vulnerabili-
dade da Sé Romana. “Diabolizar” era uma maneira de reagir contra a fraqueza
decisória. Especialmente se esta se projetava sobre as alianças suprarregionais.
Durante o século XI, os principais protagonistas do “retorno do sagrado
a Roma” foram Leão IX e Gregório VII, como vimos no capítulo 2. Trata-se
precisamente dos líderes atuantes nos períodos de maior impacto da dilatação
da esfera decisória apostólica. O primeiro através de um pontificado repleto
de inéditas viagens pela Gália e pelo Império. Já o segundo, por sua partici-
pação capital em processos de consolidação da projeção exterior da Igreja de
Roma, como a reformulação dos fundamentos canônicos da autoridade papal,
no tempo de Nicolau II e da decretal In Nomine Domini, e ainda a ampla dis-
seminação dos legados sedis apostolicae. Seu constante reaparecimento como
figuras centrais de estórias miraculorsas era uma forma encontrada pelas eli-
tes eclesiásticas da época para dar sentido ao seu papel de personagens refe-
renciais na expansão e ascensão do poder pontifício para muito além do Lácio.
Porém, estas mesmas estórias não eram mais suficientes para repre-
sentar a política romana nas primeiras décadas do século XII. Os embaraços
e as tensões vividos pelos integrantes do papado tornavam-se gravíssimos,
inquietantes. Rememorá-los como conflitos já profetizados ou redimidos por
milagres parecia não mais aplacar as mentes daqueles homens. Era necessário
encontrar novos temas, novas maneiras de re-apresentar aqueles dilemas se-
gundo a amplitude dos desafios políticos enfrentados. Foi assim que o tema da
“diabolização” surgiu: para atender a uma demanda representacional que os
relatos sobre milagres papais não mais podiam apaziguar.
A descrição conciliar de maior fôlego sobre o Diabo – transcrita na pá-
gina anterior – foi retirada da legislação aprovada no concílio de Tours. Esse
plenário foi presidido por Alexandre III em meio a um exílio na Gália imposto
pela concorrência com um candidato imperial pelo Trono de Pedro: Vítor IV.
Como na época de Inocêncio II, a intensificação do apelo textual a referências
demoníacas calhava com um prolongado cisma no seio da Igreja romana –
desta vez, dividida desde 1159. Da mesma maneira que os cânones do período
de 1130-1139, a nova ênfase da alusão ao “Inimigo do Gênero Humano” era
obra de um partido curialista expulso do Lácio e inteiramente dependente do
apoio colhido em áreas distantes da península. Uma conclusão se impõe: a
imagem do Diabo proporcionava novas possibilidades para modelar o rigor da
obediência esperada, comunicar as razões de conduta a serem adotadas, inti-
midar eventuais oposições às palavras emitidas pela boca do sucessor de Pedro
378 coLunas de são pedro

ou de seus legados. Ela proporcionava uma espécie de “manutenção simbóli-


ca” das bases suprarregionais de sustentação do poder papal. Em outras pala-
vras, como veículo de uma legitimação política, o “Diabo” dava continuidade
à obra simbólica dos milagres e das profecias.
Vista pelos olhos da psicologia social, esta argumentação pode ser dis-
posta como segue. A figura do Mal como uma pessoa (persona) – Satã ou
Diabo – cresceu nos concílios papais do século XII para resignificar um antigo
tematha, isto é, o lugar representacional até então ocupado primordialmente
por relatos de feitos milagrosos. Havia uma orientação política na prática de
alardear a crença em constantes presenças diabólicas no convívio cristão, pois
este era um modo de lidar com os riscos crescentes de ver escorrer por entre
os dedos a eficácia do poder de tomar decisões.
Eis outro argumento neste sentido. Após a assembleia de Tours, a figura
do Diabo some dos cânones promulgados pelo papado. O que significa, fun-
damentalmente, que ela não aparece nas decisões do concílio seguinte, reu-
nido em Latrão, em 1179 (MOLLAT & TOMBEUR 1974: 194-197). Teria sido
simples obra do acaso que este desaparecimento tenha coincidido com o fim
do cisma protagonizado por Alexandre III? Não nos parece ter sido o caso. Ao
reunir aquele plenário em Latrão, o partido alexandrino havia triunfado sobre
as forças imperiais e os papas proclamados. Naquela ocasião a dependência
do poder papal em relação a suas alianças regionais já tinha cumprido sua
função. Estava, por assim dizer, momentaneamente concluída, concretizada.
O poder intimidatório daquele grupo curial dominante havia sido comprova-
do, cabalmente demonstrado. A exposição de suas decisões a contestações
ou recusas tinha arrefecido, recuado diante da desmobilização de seu grupo
rival. Com as tensões implicadas na afirmação de sua autoridade efetivamente
superadas a figura do Diabo tornou-se menos necessária.
Afinal, através desta imagem arrebatadora, o papado ressignificava a
elevação dos riscos que o rondavam. Ela conferia a tais ameaças uma face
familiar aos eclesiásticos de então, permitindo integrar os conflitos políticos
às categorias simbólicas de pensamento já existentes (Ver: LAHLOU, 2001:
131-146). Aquela imagem transformava tensões sociais em “males espiritu-
ais”, algo habitualmente reconhecido pelas elites senhoriais do período como
moléstia a ser combatida com pulso firme. Não se tratava de mera válvula de
escape ou simples meio de mascaramento da política. Esse tema, que classi-
ficava seus oponentes como “diabólicos”, inseria os agentes sociais em corre-
lações mais intensas de coerção e maximizava a habilidade dos homens do
papado para agir sobre as condutas de seus contemporâneos.
Uma representação como esta, capaz até mesmo de fazer sentir a pre-
sença do Mal, era em si mesma uma trama de poder que incidia sobre a
Leandro duarte rust 379

constituição do real e das relações sociais, e não mera metáfora simbólica ou


projeção imaginária (ALMEIDA, 2005: 39-76). Para os medievais, o Diabo per-
sonificava o mal e tudo o que punha em risco a existência. Para o medievalista,
ele encarnava, como representação, a trama de sustentação suprarregional
da autoridade apostólica. A intensificação da representação do “Inimigo do
Gênero Humano” nas decisões conciliares de 1130 a 1163 apontava para o
agravamento da vinculação do poder pontifício aos poderes do além-Lácio. Po-
rém, o que para a Sé Romana envolvia riscos cada vez maiores, de magnitudes
infernais, foi para os poderes citadinos romanos uma promessa de liberdade e
restauração. Um campo aberto para novas investidas políticas.

7.2. S.P.Q.R.: A “República Romana” contra o Papado

Em 1143, as ruínas do Capitólio foram tomadas por uma multidão de


romanos. Tendo à sua frente alguns poderosos locais (optimates) (FRUGONI,
1954: 44-45), o “povo fortalecido” (invalescente populo) proclamou a plenos
pulmões a restauração do Senado.3 Chamando à existência o governo de um
patricius, os grupos urbanos desfraldaram sua hostilidade aos consules e pre-
fecti, até então detentores dos poderes locais. Ocupados por homens nascidos
em berços de famílias como os Frangipani e os Scotti, e exercidos sob um com-
promisso com o poder temporal do papa, estes postos foram afrontados com
o anúncio de que perderiam suas atribuições. Estavam desde já eliminados,
como relatou João de Salisbury na Historia Pontificalis:

Pois o maior e o mais antigo dos ofícios, a praefecture, detentor da auto-


ridade, por obra da igreja, para exercer a justiça em cem pedras [medida
de distância] e detentora do poder do gládio, foi reduzido a um nome
vazio. Então, os senadores, criados pelo povo por sua própria autorida-
de, usurparam todos os poderes de jurisdição e de administração sobre
a cidade.4

Seguindo os muitos exemplos projetados pelas plagas setentrionais da


Toscana e da Lombardia, em Roma, a realização das liberdades citadinas sig-
nificou uma insurreição contra o poder episcopal (JONES, 1997: 333-342).

3
OTO DE FREISING. Gesta Frederici I. MGH, SS rer. Germ. 46: 134. GREGOROVIUS 4/2: 458-488;
MANN 9: 67-130.
4
Nem ille praefecture maximus et antiquissimus honor, ab ecclesia habens auctoritatem iuris dicendi
usque ad centesimum lapidem et utens gladii potestate ad inane nomen redactus erat. Senatores enim,
quos populus própria creabat auctoritate, omnem in tota civitate reddendi iuris et exequendi occupa-
verant potestatem. JOÃO DE SALISBURY. Historia Pontificalis. CHIBNALL: 58. Ver ainda: HALPHEN,
1974: 52-88.
380 coLunas de são pedro

No ano seguinte, o movimento comunal ganhou fôlego. Concretizando


alguns de seus “propósitos insanos” (metas insanie),5 ele adotou traços “de-
mocráticos” (BENSON & CONSTABLE, 1991: 341. Ver: FEDELE, 1912: 583)
ao fiar-se em ampla participação da população urbana no governo local e no
processo de composição do conselho senatorial. Entre 1144 e 1155, tomando a
Roma de Júlio César como modelo, os novos magistrados proclamaram a ins-
tauração de um regime do “senado e povo romano” (senatus populusque Roma-
nus) e estipularam a antiga sigla S. P. Q. R como o emblema de uma nova era.
Os documentos lavrados nos interior da cidade adotaram nova datação,
pois os anos deixaram de ser contados a partir do nascimento de Cristo. O
calendário tinha agora um novo começo, concebido como um duplo marco
fundador: a “renovação do sacro Senado” (renovatio sacri senatus), ato de
“restauração do Império Romano” (restauratio imperii Romani) (BENSON &
CONSTABLE, 1991: 342). Evocando fórmulas política ancestrais, a comuna al-
mejava recriar uma visionária “idade de ouro”, cujo ideal mesclava elementos
republicanos e imperiais para legitimar a busca por liberdades citadinas. Uma
ressurreição da Roma dos Césares, operada através da “reconstrução do Capitó-
lio, da renovação da dignidade imperial e reforma da ordem equestre”, segundo
a Gesta Frederici de Oto de Freising,6 deveria devolver ao “povo romano” po-
deres considerados usurpados pelo bispo local, o papa.
As mobilizações populares entocaram o clero pontifical na cidadela le-
onina, cujos muros, tal como se fossem uma espécie de casulo, protegiam e
isolavam, fazendo a área ao redor da basílica de Pedro se desgarrar ainda mais
do conjunto do espaço urbano romano (KRAUTHEIMER, 1980: 90-132). Logo
no raiar de 1145, Lúcio II confidenciou a Pedro, abade de Cluny, quão difícil
era sua situação, agora que a República se erguera contra ele: como papa,
vivia confinado, incapaz até mesmo de se deslocar a lugares habituais como
a colina do Aventino e cumprir seu dever de ordenar o abade de São Saba.7
Diversos opositores do envolvimento do clero em questões seculares
encontraram guarida neste governo impetuosamente antipapal. Caso do irre-
quieto cônego agostiniano chamado Arnaldo. Remanescente da luta encampa-
da pelos citadinos de Brescia contra seu bispo, Manfredo; exilado do reino dos
capetíngios por Bernardo de Claraval e Luís VII; excomungado por Inocêncio
II no concílio de Latrão,8 este aluno de Abelardo encontrou na recém-fundada

5
ROMUALDO DE SALERNO. Annales. MGH SS, tomo XIX, p. 424. A expressão deriva de um ponto de
vista papalista, posto que o arcebispo Romualdo de Salerno era colaborador dos mais ativos da Santa
Sé.
6
Quare reedificandum Capitolium, renovandam senatoriam dignitatem, reformandum equestrem or-
dinem (...). OTTO DE FREISING. Gesta Frederici I. MGH, SS rer. Germ., tomo XLVI, p. 134.
7
JL 8708. Epístola datada de 20 de janeiro.
8
JOÃO DE SALISBURY. Historia Pontificalis. CHIBNALL: 62.
Leandro duarte rust 381

república romana solo fértil para inflamados ataques às decisões da Cúria. Ar-
naldo de Brescia – como ficou conhecido – condenava-a por tolerar sacerdotes
em cujas vidas não havia espaço para o zelo pastoral, pois suas mentes tinham
sido arrebatadas pelo afã de riquezas e suas preocupações desvirtuadas por
funções seculares e ações militares (GREENAWAY, 1931: 1-98).
A exaltação da comuna de Roma como ressurreição de um passado re-
publicano e o ascetismo evangélico de Arnaldo de Brescia combinaram-se num
amálgama de ideias em tudo hostis à Sé Apostólica. Basta observar as prega-
ções do cônego registradas por João de Salisbury:

Ele já havia denunciado abertamente os cardeais, dizendo que seu co-


légio, por seu orgulho, avareza, hipocrisia e tropesas de várias espécies,
não era a igreja de Deus, mas uma casa de negócios e covil de ladrões
(...). O próprio papa não era o que ele professava ser – um homem apos-
tólico e pastor de almas –, mas um homem de sangue que mantinha
sua autoridade por fogo e assassinatos, um atormentador de igrejas e
opressor de inocentes, que nada mais fazia no mundo a não ser satisfazer
sua carne e esvaziar os cofres de outros homens para preencher o seu
próprio.9

A oposição fincada pela Urbe contra as ordens papais não cessou de se


agravar. Os Annales Casinenses e os Annales do arcebispo Romualdo de Salerno
afirmam que, após a morte de Lúcio II, o sucessor eleito foi incapaz de asse-
gurar uma consagração na basílica de São Pedro e “fugiu de Roma com todos
seus cardeais e bispos”.10 “Afastado da cidade por um tumulto dos senadores e do
povo, [Eugênio III foi] solenemente consagrado no monastério de Farfa”.11 Após
este incidente, o novo pontífice selou com a comuna uma paz quebradiça e
suspeitosa. Que não vingou, naufragando em divergências inadiáveis.
A igreja e a cidade de Roma seguiam antagônicas. Para constatá-lo basta
um exame dos termos constitutivos do pacto de Constance. Firmado em mar-
ço de 1153 entre o novo pontífice, Eugênio, e o sucessor imperial Frederico
I – mais conhecido como “Frederico Barba Ruiva” –, o texto do acordo realça
9
Iam palam cardinalibus detrahebat, dicens conuentum eorum ex causa superbie et avaricie, ypocrisis
et multimode turpitudins, non esse ecclesiam Dei sed domum negociationis et speluncam latronum
(...). Ipsum papam non esse quod profitetur, apostolicum virum et animarum pastorem, sed virum san-
guinum qui incendiis et homicidiis prestat auctoritatem, tortorem ecclesiarum, innocentie concusso-
rem, qui nichil aliud facit in mundo quam carnem pascere et suos replere lóculos et exhaurire alienos.
JOÃO DE SALISBURY. Historia Pontificalis. CHIBNALL: 63-64.
10
Obiit Lucius papa, et Eugenius ordinatur, qui tertio die suae electiones nocte cum omnibus cardina-
libus et episcopis Roma egressus fugit (...). ANNALES CASINENSES. MGH SS 19: 310.
11
Hic propter tumultum senatorum et populi de Urbe egrediens apud Farfense monasterium sollemp-
niter est consecratus. ROMUALDO DE SALERNO. Annales. MGH SS 19: 424; Liber Pontificalis 2: 386.
382 coLunas de são pedro

os traços deste antagonismo que entrava em uma fase de radicalização após


prolongar-se por décadas. Segue uma tradução integral, na qual podemos en-
contrar indícios da avaliação vigente no interior do papado sobre a comuna:

Em nome do senhor, amém. Esta é a concórdia e aliança estabelecida


entre o senhor papa Eugênio e o senhor rei dos romanos Frederico, me-
diante os cardeais Gregório santa Maria Trans Tyberim, Ubaldo Santa
Praxede, Bernardo São Clemente, Otaviano Santa Cecília, Rolando São
Marcos, Gregório Sant’Ângelo, Guido Santa Maria in Porticu, abade Bru-
no de Claraval da parte do senhor papa; os bispos Anselmo de Havelberg
e Hermano de Constance, os condes Ulric de Lenzbourg, Guido de Wera
e Guido de Biandrate da parte do senhor rei. O senhor rei destacará um
de seus ministeriales para jurar em nome da alma do rei, e dele próprio,
e, tendo empunhado sua fé com sua mão naquela do legado do senhor
papa, prometerá que ele não estabelecerá trégua ou paz nem com os ro-
manos nem com Roger da Sicília sem o livre consentimento e aprovação
da igreja romana e do senhor papa Eugênio e de seus sucessores que
mantiverem os termos do acordo com o rei Frederico, escrito abaixo. Ele
irá se esforçar, com todo poder de seu reino, para subme-
ter os romanos ao senhor papa e à igreja romana, tal como
se encontravam cem anos antes. Ele irá, como um devotado e
especial advogado da santa igreja romana e com o melhor de suas ha-
bilidades, preservar e defender a honra do papado e as regalia do bem-
aventurado Pedro, que ele agora possui, contra todos os homens. Quanto
àquelas que ele não possui, irá, com todo o poder de seu reino, auxiliá-lo
a recuperá-las e proteger o que foi recuperado. Ele não irá assegurar ne-
nhuma terra deste lado do mar ao rei dos gregos. Se [este último] vier a
invadir [a península], pelo poder do reino, ele se empenhará ao máximo
para expulsá-lo tão logo seja possível, tudo isto o fará sem fraude ou sub-
terfúgio. O senhor papa prometeu, pela autoridade apostólica, em uma
palavra com os mencionados cardeais, na presença dos mencionados en-
viados do senhor rei, que honrará e conservará o rei como um caríssimo
filho do bem-aventurado Pedro e, quando ele vier para obter a plenitude
de sua coroa que o coroará imperador sem dificuldade ou negação, e
auxiliará o rei a manter, aumentar e expandir a honra de seu reino, con-
forme as obrigações de seu ofício. O senhor papa, tendo sido informado
[disto], e por consideração pelo amor à dignidade real, convocará para
a satisfação canônica os que presumirem desprezar ou pôr em desordem
a justiça e a honra do reino. Se eles desprezarem exibir justiça para a
advertência apostólica em respeito à honra e ao direito do rei, que sejam
Leandro duarte rust 383

abatidos com a sentença de excomunhão. Além disso, [o papa] não irá


assegurar terra neste lado do mar ao rei dos gregos. Se [este último]
ousar invadir [a península], o senhor papa se empenhará ao máximo
para expulsá-lo com as forças do bem-aventurado Pedro. Tudo isto será
mantido por ambas as partes sem fraude ou subterfúgio, exceto se for
alterado pelo livre e mútuo consentimento de ambas.12 [o grifo é nosso].

A aliança firmada em Constance era fruto das pressões criadas pela co-
roa germânica para que o papado tomasse partido de um alinhamento pró-im-
perial de forças peninsulares (BOLTON & DUGGAN, 2003: 103-156; LEYSER,
1994: 115-142). Nos primeiros meses após a coroação, Frederico I se lançou
à busca pela restauração da hegemonia imperial sobre o Regnum Italia e a
lealdade do papado figura como condição imprescindível para a realização de
seus planos (CARDINI, 1987: 119-127; MUNZ, 1969: 62-69).
Com a República romana e Rogério da Sicília interferindo no controle
papal sobre o patrimônio de São Pedro – além da crescente influência do gre-
go Manuel Comeno sobre a região –, a Cúria considerou o acordo favorável.
Seus integrantes parecem ter encontrado aí a oportunidade para repartir com
uma poderosa figura tarefas vitais para sua estabilidade temporal, relaciona-

12
In Nomini Domine amen. Haec est forma concordiae et conventionis inter dominum papam Eu-
genium et dominum regem romanorum Fridericum constituta, mediantibus cardinalibus Gregorio
sanctae Maria trans Tyberim, Ulbado sanctae Praxedis, Bernhardo sancti Olementis, Otaviano sanctae
Ceciliae, Rollando sancti Marci, Gregorio sancti Angeli, Widone sanctae Mariae in Porticu, abbate
Brunnone Caraville, ex parti domini papae: Anselmo Havelbergensi, Herimanno Constantiensi episco-
pis, Outhelrico de Lenceburch, Widone Werra, Widone Blandratense comitibus, ex parte domini regis.
Dominus siquidem rex iurare faciet unum de ministerialibus in anima regis, et ipse idem manu propria
data fide in manu legati domini papae promittet, quod ipse nec treuam nec pacem faciet cum roma-
nis, nec cum Rogerio Siciliae, sine libero consensu et voluntate Romanae ecclesiae et domini papae
Eugenii, vel successorum eius qui tenorem subscriptae concordiae tenere cum rege Friderico voluerint,
et pro viribus regni laborabit Romanos subjugare domino papae et Romanae ecclesiae, sicut umquam
fuerunt a centum annis et retro. Honorem papatus et regalia beati Petri sicut devotus et specialis advo-
catus sanctae Romanae ecclesiae contra homines pro posse suo eidem conservabit defendet, quae nunc
habet. Quae vero nunc non habet, recuperare pro posse iuvabit, et recuperata defendet. Graecorum
quoque regni nullam terram ex ista parte maris concedet. Quod si forte ille invaserit, pro viribus regni,
quantocius poterit ipsum ejicere curabvit, haec omnia faciet et observabit sine fraude et malo ingenio.
Dominus vero papa apostolicae auctoritatis verbo uma cum praedictis cardinalibus in praesentia pra-
escriptorum legatorum domini regis promisit, et observabit, quod eum sicut carissimum filium beati
Petri honorabit, et venientem pro plenitudine coronae suae sine difficultate et contradictione, quantum
in ipso est, imperatorem coronabit, et ad manutenendum, atque augendum, ac dilatandum honorem
regni pro debito officii sui iuvabit; et quicumque iustitiam et honorem regni conculcare aut subvertere
ausu temerario praesumserint, dominus papa a regiae dignitatis dilectione praemonitus, canonice ad
satisfactionem eos commonebit. Quod si regi ad apostolicam admonitionem de iure et honore regio
iustitiam exhibere contemserint, excommunicationis sententia innodentur. Regi autem Graecorum ex
ista parte maris terram non concedet; quod si ille invadere praesumserit, dominus papa viribus beati
Petri eum eiicere curabit. Haec omnia ex utraque parte sine fraude et sine malo ingenio servabuntur,
nisi forte libero et communi consensu utriusque immutentur. PACTUM CUM EUGENIO III PAPA. MGH
LL 2: 92-93; PACTUM CONSTANTIENSE. MGH Const. 2: 201-202; WATTERICH 2: 318-319.
384 coLunas de são pedro

das pelo texto: 1) recuperar e proteger as “regalia de São Pedro”; e 2) recon-


duzir os romanos à submissão, suprimindo as liberdades comunais em Roma.
O pacto de 1153 demonstra que debelar o novo regime citadino era matéria
prioritária entre os integrantes do governo papal, tão importante quanto a
salvaguarda das terras pertencentes ao apóstolo Pedro.
Mas, o texto que selou esta aliança fez mais do que pôr em evidência
as diretrizes centrais da política pontifícia. Sua escrita gravou importantes
indícios do entendimento vigente no interior da Cúria acerca da “sublevação”
dos romanos.
Entre as condições impostas por Eugênio III para a aliança estava a
exigência do completo empenho imperial para “submeter os romanos ao se-
nhor papa e à igreja romana”. Notemos que se trata de um propósito genéri-
co, ao qual o texto não acrescenta qualquer especificidade, quer cronológicas
ou simplesmente circunstanciais. Em outras palavras, esta demanda desperta
atenções ainda maiores pela característica de ter sido formulada sem qualquer
menção aos recentes e violentos episódios envolvendo a fundação de uma
nova República em Roma. Nos deparamos com um vazio inesperado, com a
completa ausência de alusões às últimas ocorrências da cena política urbana:
a “desobediência dos romanos” não é formalmente atrelada à restauração do
Senado ou à instauração do novo patriciado.
Porém, se o texto de Constance parece silenciar sobre seu próprio pre-
sente é porque ele se reporta a um horizonte de tempo maior, ao situar a hos-
tilidade dos citadinos em um curso ainda mais abrangente de desventuras, em
embates provenientes de muito antes: os romanos deviam ser repreendidos,
não só em razão das ocorrências recentes, mas porque há cem anos eles teima-
vam em não acatar a autoridade apostólica. O pacto de 1153 diluiu as últimas
ondas de antagonismos envolvendo o papado e Roma num conjunto mais am-
plo de ocorrências, projetando-as em durações muito maiores. A difícil relação
entre a Urbe e a Ecclesia não era ocorrência pontual, tampouco excepcional
para merecer menções particulares: tratava-se de um estado de divergências,
de uma situação de desobediência que persistia há um século. No interior do
papado da década de 1150, esperava-se do pacto firmado com a coroa impe-
rial muito mais do que debelar a recém-fundada República: ele deveria pôr um
fim a uma incômoda característica que os romanos prolongavam há cem anos,
seu pendor para insubordinações.
Esta medida de tempo não parece um mero toque retórico. Afinal, ela
nos remete precisamente à época em que uma cisão da ordem social inviabi-
lizou a sustentação local do poder papal, condicionando-o a incessantes pro-
jeções para além do Lácio. A ruptura sócio-política da década de 1040 per-
manecia em vigor a ponto de ecoar pela página do pacto de Constance. Este
Leandro duarte rust 385

documento revela ao historiador que o confronto com a Roma governada pelo


novo Senado aguçou uma consciência peculiar no interior da Cúpula pontifí-
cia: a de que o antagonismo com a Urbe era longo, envolvia gerações inteiras
de eclesiásticos, fazendo-se presente em suas vidas desde “cem anos antes”.
A deflagração da comuna foi um agravamento da dissociação já secu-
lar entre os poderes locais peninsulares e o papado suprarregional. A vitó-
ria de Inocêncio II e sua descentrada rede de aliados sobre o localismo dos
anacletianos foi um duro golpe sobre a frágil inserção local do papado. Esta
separação se aprofundou entre 1143 e 1154, quando a condução da Igreja
romana permaneceu em mãos atadas a grupos e interesses do além Alpes.
Celestino II (Guido, cardeal presbítero de São Marco), Lúcio II (Gerardo,
cardeal presbítero da Santa Cruz de Jerusalém) e Anastásio IV (Conrado di
Suburra, cardeal bispo da Sabina) tinham sido eleitores de Inocêncio. Todos
estiveram, portanto, envolvidos com a re-construção social da autoridade
petrina na Gália.
O quadro dos papas que conviveram com a instalação da comuna com-
pleta-se com a figura de Eugênio III, papa entre 1145 e 1153. Este pisano,
nascido entre os Paganelli de Montemagno, chegou ao cardinalato após tomar
o hábito branco cisterciense em Claraval. Porém, antes de ingressar na abadia
comandada por Bernardo, Eugênio foi vicedominus em Pisa entre os anos de
1133 e 1138. A data é significativa: durante estes anos a cidade foi palco das
ações dos partidários de Inocêncio II, que aí reuniram um concilium generalem
em 1135 (SCHNITH, DHP: 639-641).
A influência do abade de Claraval e outros personagens eclesiásticos da
Gália sobre as decisões de Eugênio foi de tal magnitude, que atiçou os protes-
tos no interior do próprio colégio cardinalício. No concílio de Reims, realizado
em 1148, a reprovação que tomava conta do consistório teria vindo à tona.
Na Gesta Frederici, Oto de Freising apresenta os cardeais enfurecidos, amar-
gamente contrariados. Tomado por uma “grande indignação em seus corações”
aquele “santo senado” se derramou em protestos contra a ascendência do aba-
de sobre o papa e a interferência sobre questões de competência unicamente
pontifícia. Em uma única voz, eles teriam dito a Eugênio:

Tu deves zelar pelo bem-estar de todos e cuidar e observar a dignidade


da Cúria romana, como obrigação de teu ofício. Mas o que tem feito
este teu abade e a igreja da Gália com ele? Com que insolência, com que
audácia, ele ergue sua cabeça contra a primazia e a supremacia da Sé
Romana? (...) Observa: estes homens da Gália, nos desprezando diante
de nosso próprio rosto, ousaram escrever sua profissão de fé relativa
às questões que nós temos discutido durante estes últimos dias como
386 coLunas de são pedro

se colocassem um último toque para uma sentença definitiva sem nos


consultar.13

João de Salisbury escreveu linhas semelhantes, testemunhando a ani-


mosidade entre o papa e os cardeais (BERMAN, 2005: 183-207). Eis o que diz
a Historia Pontificalis:

Segundo o que recordo, nem mesmo um único cardeal, exceto Alberico


bispo de Óstia de santa memória, não se opôs profundamente ao abade
de corpo e alma; dizendo, falsamente como eu acredito, que o abade de
Saint-Denis, que então agia em lugar do rei da Francia, e os mais pode-
rosos homens da igreja [da Gália] tinham sido reunidos para expressar o
propósito de forçar o papado a aceitar as visões do abade sob a ameaça
de cisma.14

Tenha ocorrido ou não desta forma, este entrevero atribuído a Eugênio


III e seus cardeais indica algo historicamente demonstrável: a estreita vincula-
ção do poder pontifício a redes de aliados regionais ultramontanos. Estreita a
ponto de levar os próprios cardeais a se sentirem ameaçados.
Por outro lado, em 1144, teve início a radicalização das ações antipapais
da comuna romana, sob a liderança do patricius Giordano Pierleoni, irmão
do então falecido Anacleto II. Sua elevação ao poder tornou-se o marco de
datação da era do “Senado restaurado”. Sua liderança da luta pela autonomia
da cidade ganhou a forma de uma glorificação pessoal. Na documentação, é
comum encontrar a atuação do “senado e do povo romano” refluindo para trás
da exaltação de seus feitos. Os Annales Casinenses reservaram-lhe o primeiro
plano da política romana de então: “Giordano, filho de Pierleoni rebelou-se con-
tra o papa com os senadores e toda parte do povo menor”.15
Em 1149, em uma epístola enviada a Conrado III, o próprio Senado
o apresentou como personagem principal de sua causa, informando ao im-
13
Sed omnium utilitati consulere Romanaeque curiae culmen ex oficii tui necessitudine curare et
observare debere. Sed quid fecit abbas tuus et cum eo Gallicana ecclesia? Qua fronte, quo ausu cervi-
cem contra Romanae sedis primatum et apicem erecit? (...) Sed ecce Galli isti, etiam faciem nostram
contempnentes, super capitulis, quae his diebus nobis assidentibus agitata sunt, tanquam finitivae
sententiam ultimam manum apponendo, nobis inconsultis, fidem suam scribere presumpserunt. OTO
DE FREISING. Gesta Frederici I. MGH, SS rer. Germ. 46: 85-86.
14
Non fuit unus cardinalium, quod meminerim, preter Albericum sancte recordationis episcopum Hos-
tiensem qui non animo et opera et diligentia adversaretur abbati; et, quod falso dictum puto, abbatem
sancti Dionisii qui vices habebat Regis in Francia, et viros in ecclesia potentíssimos dicebant ad hoc
fuisse convocatos, ut apostólica sedes metu scismatis cogeretur abbatem sequi. JOÃO DE SALISBURY.
Historia Pontificalis. CHIBNALL: 20.
15
Iordanus filius Petri Leonis cum senatoribus et parte totius populi minoris contra papam rebellat.
ANNALES CASINENSES. MGH SS 19: 310.
Leandro duarte rust 387

perador que “o papa, os Frangipani e os filhos de Pierleoni, homens e amigos


da Sicília, Tolomeu e muitos outros nos combateram de todas as formas, exceto
Giordano, nosso aliado e guardião em vossa fidelidade”.16 O vulto deste defen-
sor do movimento comunal cresceu a ponto de atrair a reputação de ter sido
o autor de um ato nefasto, uma morte hedionda. A acusação foi feita pelos
continuadores da Chronographia de Sigeberto de Gembloux: “o papa Lúcio foi
ao encontro dos senadores romanos erguidos no Capitólio contra a igreja, no en-
tanto, uma vez lá, foi atacado por Giordano Pierleoni e, perturbardo, o pontífice
faleceu em menos de um ano”.17
Esta versão da morte papal é muito controversa. Por um lado, ela pare-
ce resultar de cobranças feitas ao seu autor, o monge normando Roberto de
Torigny, por uma memória filo-imperial. Afinal, suas linhas parecem sacrificar
o protagonismo de Giordano em nome do sentimento de afronta que se apo-
derou da corte imperial com a notícia da proclamação da república romana
(CARDINI, 1987: 129-143; MUNZ, 1969: 69-74). Por outro lado, se outras
fontes isentam o Pierleoni de qualquer participação na investida do papa Lú-
cio contra o Capitólio, isso se dá através de um olhar igualmente comprome-
tido, mas, neste caso, por sua elaboração tardia, no século XIII: é o caso do
Chronicon Universalis, do bispo Sicardo de Cremona, e da Gesta Episcoporum
Leodiensium, do cisterciense Gilles de Orval18 (Ver ainda: GREGOROVIUS 4/2:
488-499)
Embora Giordano fosse o único de sua família a aproximar-se da nova
República,19 sua presença no antagonismo entre a Comuna e a Cúria era su-
ficiente para inflamar a luta pelo governo de Roma como uma disputa entre
forças de identidade local e um círculo de poder associado a uma vida longín-
qua ao Lácio. Com o Pierleoni e os papas inocencianos lançados em campos
opostos, a sobrevivência da República saltava aos olhos como o novo capítulo
de uma antiga rivalidade, a mesma que em 1130 foi hasteda sobre o cadáver
de Honório II. Quando o Pacto de Constance foi selado, a “insubordinação dos
romanos” estava plenamente inserida no cenário maior de um já centenário
divórcio entre a Urbe e a Ecclesia romanas.

16
Papa, Fraiapanes et Filii Petri Leonis, homines et amici Siculi, excepto Iordano nostro in vestra
fidelidade vexillifero et adiutore, Tolomeus quoque at alii plures undique nos inpugnant. OTO DE
FREISING. Gesta Frederici I. MGH, SS rer. Germ. 46: 45.
17
Lucius papa senatores Romanorum contra Ecclesiam erectos in Capitolio obsidet; sed inde per Iorda-
nem Petri Leonis perturbatus infirmitatem correptus, infra annum pontificii sui moritur. SIGERBERTO
DE GEMBLOUX. Chronica cum continuationibus. MGH SS 6: 453.
18
SICARDO DE CREMONA. Chronicon Universalis. MGH SS 31: 164; GILES DE ORVAL. Gesta Episco-
porum Leodiensium. MGH SS 25: 100.
19
ROMUALDO DE SALERNO. Annales. MGH SS 19: 424; OTO DE FREISING. Gesta Frederici I. MGH,
SS rer. Germ. 46: 139-142.
388 coLunas de são pedro

Em 1146, Conrado III obteve dos senadores, à ponta de espadas, um


juramento de obediência à autoridade apostólica. Mas, “a segurança e a paz
devidas ao papa, a seus bens, a todas as igrejas e todos os integrantes da cúria”20
naufragaram após a prolongada estada do pontífice na Gália, onde reuniria o
concílio de Reims, dois anos depois da trégua obtida pelo imperador. E ainda
que Eugênio e seu séquito tenham ingressado na cidade em novembro de
114921 e, novamente, em dezembro de 1152, o governo dos papas não contou
com a mínima segurança até um dos seus sucessores, Adriano IV, filho de um
monge da Britannia, recorrer a medidas enérgicas:

Naqueles dias o herético Arnaldo de Brescia ousou entrar na Cidade e


afastar as mentes dos simples do caminho da verdade disseminando
o veneno de seu erro. Os mencionados pontífices romanos, Eugênio e
Anastásio, tinham já trabalhado muitíssimo por sua expulsão, mas o re-
ferido herético, salvaguardado e protegido pelo favor e poder de certos
cidadãos perversos e, especialmente, pelos senadores que foram então
estabelecidos pelo povo para o governo da Cidade, permaneceu vergo-
nhosamente na Cidade contra a proibição do senhor papa Adriano, e
começou a conspirar contra ele e seus irmãos e a opor-se a eles publi-
ca e violentamente. Alguns destes mesmos heréticos ousaram de modo
nefasto invadir a via Sacra e feriram, quase que até a morte, o venerá-
vel mestre Guido, cardeal presbítero do título de S. Pudenziana, que se
dirigia à presença do papa. Por esta razão, o papa impôs um interdito
sobre a cidade de Roma, e por toda a cidade o ofício divino cessou até
a quarta-feira da santa semana. Então, os mencionados senadores, com-
pelidos pelo clero e povo de Roma, vieram até a presença do pontífice
e, conforme sua determinação, juraram sobre os santos Evangelhos que
eles expulsariam, imediatamente, o dito herético e o restante de seus
seguidores de toda a cidade de Roma, exceto se eles retornassem ao
comando e obediência do dito papa.22
20
Quatuor de populo per unamquamque contradam facient iurare securitatem et pacem vobis et rebus
vestris et omnibus ecclesiis et omnibus ad vestram curiam venienibus et redeuntibus et personis et
rebus episcoporum et cardinalem. CONRADO III. Epistola. WATTERICH 2: 312.
21
Uma trégua foi estabelecida em novembro de 1149, depois do malogrado ataque papal a Roma por
tropas sicilianas e por mercenários papais. JOÃO DE SALISBURY. Historia Pontificalis. CHIBNALL: 60.
22
In diebus illis Arnaldus Brixiensis hereticus Urbem intrare presumpserat, et erroris sui venena dis-
seminans mentes simplicium a via veritatis subvertere conabatur. Pro cuius expulsione supradictus Eu-
genius et Anastasius Romani pontifices plurimum jam laboraverunt, set favore et potentia quorumdam
perversorum civium et maxime senatorum, qui tunc ad regimen civitatis a populo fuerant instituti,
antedictus hereticus munitus et tutus, contra prohibitionem domini Adriani pape in eadem civitate
procaciter morabatur et sibi ac fratribus suis insidiari ceperat et publice atque atrociter adversari.
Venerabilem namque virum magistrum Guidonem, presbyterum cardinalem tituli sancte Pudentiane,
ad presentiam ipsius pontificis euntem, quidam ex ipsis hereticis ausu nefario in via Sacra invadere
Leandro duarte rust 389

O papa lançou sobre Roma uma sentença devastadora: a interdição aos


cuidados espirituais. Quando efetivamente observado pela hierarquia clerical,
o interdito era capaz de espalhar assombro. Proclamá-lo significava ordenar
a interrupção dos “ofícios divinos”, suspendendo a celebração de missas, ser-
mões e horas canônicas. Os batismos, a penitência e a absolvição dos pecados,
se não cessavam, eram ministrados em segredo; a comunhão e a confissão
eram proibidas; os casamentos eram proclamados diante das tumbas, ao invés
do altar (RABY, 1849: 36-38). Em sua forma mais radical, o interdito exigia
que o clero se recusasse a sepultar seus fiéis; a desobediência era punida com
a exumação: desenterrados, os corpos deveriam permanecer expostos, à vista
de todos. Altares podiam ser cobertos, crucifixos e relíquias recolhidos a crip-
tas, santuários trancados (KREHBIEL, 1909: 15-74).
Se o interdito de Adriano IV foi efetivamente colocado em ação, como
afirmou o Cardeal Boso no fragmento acima, então é muito provável que
aquela sentença realmente tenha inundado a cidade com tumultos. Ainda que
tenha vigorado por poucos dias, aquela punição teria sido suficiente para in-
cendiar a obediência aos senadores da nova República, empurrando-os para
um entendimento forçado com o papado. Portanto, a reação pontifícia ao trá-
gico ataque que feriu o cardeal Guido “quase que até a morte” teria sido impla-
cável e rápida. Tão decisiva que os historiadores oitocentistas não se cansaram
de celebrá-la como prova de um gênio político sem precedentes: “Adriano de-
monstrava seu efetivo poder. Ele não era homem preso a seus predecessores, não
estava inclinado a costume antigo algum que pudesse impedir o livre exercício
do seu poder” (TARLETON, 1896: 97-98). “Adriano exibia sua firmeza de uma
vez por todas (...), nunca antes a cidade imperial tinha sido submetida a castigo
tão severo” (MACKIE, 1907: 39). Mas, não nos parece historicamente adequa-
do reduzir uma medida tão drástica à comoção causada por um único ato: o
atentado ao cardeal pode tê-la preciptado, mas as razões que a impulsionaram
vinham de muito antes.
O interdito proclamado em 1154 sobre a cidade de Roma, punição que
pretendia fechar as portas do sagrado sobre as áreas que abrigavam os túmu-
los dos santos apóstolos, foi propiciado pela percepção cada vez mais aguçada
no interior da Cúria de que a Igreja romana e as forças laicas locais eram
corpos inteiramente distintos, contrários, em franca oposição. O clero papal

presumpserunt et ad interitum vulnerarunt. Quapropter pontifex ipse civitatem Romanam interdicto


supposuit, et usque ad quartam feriam maioris habdomade universa civitatis a divinis cessavit officiis.
Tunc vero predicti senatores, compulsi a clero et populo Romano, accesserunt ad presentiam eiusdem
pontificis et ad ipsius mandatum super sacra evangelia juraverunt quod sepe dictum hereticum et
reliquos ipsius sectatores de tota urbe Romana et finibus eius mora expellerent, nisi ad mandatum et
obedientiam ipsius pape redirent. CARDEAL BOSO. Vita Adriani IIII. Liber Pontificalis 2: 389. GODO-
FREDO DE VITERBO. Gesta Frederici. MGH rer. Ger. 30: 7.
390 coLunas de são pedro

parece ter adquirido uma consciência cada vez mais nítida quanto ao fato de
que, após décadas de desentendimentos, era chegado o momento de subir o
tom das relações mantidas com seu próprio rebanho. Era preciso endurecê-las;
conduzi-las com mão firme e pesada. Observemos esta opinião a respeito dos
romanos atribuída por Oto de Freising ao papa Adriano, que teria aconselhado
assim o rei Frederico I:

Filho, tu ainda aprenderás mais sobre a astúcia da plebe romana. Pois


tu descobrirás que em trapaça eles vêm e em trapaça eles partem. Mas,
com a ajuda da clemência de Deus, que diz “apanharei os sábios na sua
própria astúcia”, nós seremos capazes de ultrapassar as insídias de suas
astúcias. Prontamente, deixe jovens bravos e sábios do exército serem
rapidamente enviados à frente para ocupar a fortaleza Leonina e [a igre-
ja] do bem-aventurado Pedro. Nossos cavaleiros estão lá no interior das
fortificações; após conhecer nossa vontade eles prontamente os admiti-
rão.23

Oto era parente de Frederico. Como bispo e tio do sucessor de Conrado


III, ele estava duplamente suscetível a compartilhar do sentimento de ultraje
que se apoderou da corte germânica diante da notícia da pretensão dos líderes
comunais de coroar o novo imperador sem a participação eclesiástica (BEN-
SON & CONSTABLE, 1991: 346-351). Assim, é razoável supor que as transcri-
ção acima despejou como dizeres papais o gosto de injúria experimentado na
corte dos Hohenstaufen. O papa falava, mas quem se expressava era um bispo
germânico empenhado em revidar um insulto dirigido às tradições imperiais.
No entanto, mesmo que tenha sido desta maneira, a mensagem filo-im-
perial que o bispo de Freising eventualmente disfarçou como conselho pontifí-
cio não era incongruente com a visão sobre os romanos partilhada no interior
da Cúria papal. As vidas dos papas redigidas pelo cardeal Boso entre os anos
de 1155 e 1178 e reunidas no Liber Pontificalis estão repletas de trechos que
denotam juízos semelhantes, quiçá praticamente idênticos aos registrados por
Oto de Freising. Sobretudo a Vita Alexandri III, como veremos nas páginas
seguintes.

23
Romanae plebis, fili, adhuc melius experieris versutiam. Cognosces enim in dolo eos venisse et in
dolo redisse. Sed, Dei nos adiuvante clementia, dicentis: Comprehendam sapientes in astucia sua,
prevenire eorum poterimus versutas insidias.Maturato igitur premittantur fortes et gnari de exercitu
iuvenes, qui aecclesiam beati Petri Leoninumque occupent castrum. In presidiis equites nostri ibi sunt,
qui eos cognita voluntate nostra statim admittent. OTTO DE FREISING. Gesta Frederici I. MGH, SS rer.
Germ. 46: 139-140.
Leandro duarte rust 391

7.3. Um pastor de lobos

A fase aguda do republicanismo comunal romano terminou em 1155.


Ano em que Arnaldo de Brescia, capturado por forças imperiais e sentenciado
pela Cúria, foi queimado e teve suas cinzas jogadas no Tibre. Porém, o contato
mantido entre a cidade e o papado continuou oscilando entre a tolerância
forçada e a hostilidade declarada.
Após a morte de Adriano IV, o colégio de cardeais tornou-se o teatro de
uma nova disputa: a maioria escolheu o cardeal Rolando Bandinelli, eleito
com o nome de Alexandre III, enquanto uma minoria tomou partido do car-
deal Otaviano, elevado a papa como Vitor IV (ROBINSON, 1990: 49-53). Ale-
xandre, pisano de nascimento, era um estrangeiro em Roma (PACAUT, 1956:
51-78; PENNINGTON & SOMERVILLE, 1977: 21-48). Por sua vez, Vítor, o
protegido imperial, tinha berço romano, pela família Monticelli. Tão logo o
cisma se instaurou, os poderes citadinos se valeram da oportunidade para
marcar oposição contra aquele que então foi encarado como continuador dos
pontificados anteriores, rivais do ideal republicano: Alexandre.
Em 1160, no concílio reunido por Frederico I na cidade de Pávia como
fórum onde a ecclesia cristã deveria se pronunciar sobre o novo cisma papal,
figuras proeminentes do clero romano testemunharam a legitimidade de Vítor.
Os cônegos de São Pedro, membros do mais alto escalão eclesiástico citadino,
devotaram lealdade a Otaviano através do solene juramento prestado pelo
decano Pedro Cristiano. Eles finalmente se juntavam ao restante do clero ur-
bano, que aderiu ao filho dos Monticelli como se fosse um grupo compacto.24
A fidelidade ao cardeal de berço romano prometia integrar a Sé Apostólica a
uma unidade de poderes citadinos há muito desgastada e que parecia perdida
de vez quando os cônegos de São Pedro se aproveitaram da radicalização do
regime republicano para investir contra os padres capelães e subtrarir a esse
“baixo clero” o controle do patrimônio paroquial.
Como notou Tommaso Falconieri (2002: 74) no apurado estudo Il Clero
di Roma nel Medioevo, a convergência destes grupos rivais, que cerraram suas
fileiras em Pávia, indicava que o clero urbano superava divergências e unia
esforços diante da oportunidade de fazer valer seu descontentamento com o
papado até então existente (Ver ainda: CELLI-FRAENTZEL, 1932: 96-106). Os
heterogêneos extratos eclesiásticos de Roma acorreram todos para a desforra.
Uniram-se na busca por corrigir a realidade política que os oprimia há déca-
das.

24
RAHEVIN. Gesta Frederici Imperatoris. MGH, SS rer. Germ. 46: 323; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 937.
392 coLunas de são pedro

Afinal, desde a década de 1040, o clerus urbis opunha-se com regu-


laridade àqueles que chegavam ao Trono de Pedro carregados por alianças
suprarregionais: ele reagiu com tumultos à entronização de Leão IX; susten-
tou Bento X contra Nicolau II, Clemente III contra Gregório VII, Silvestre IV
e Gregório VIII contra Pascoal II; protegeu Arnaldo de Brescia das ordens de
Eugênio III e Adriano IV; e, agora, punha-se ao lado de Vítor IV contra Alexan-
dre III. A posição política assumida pelo clero citadino confirma algo que já
constatamos: em meados do século XII a dicotomia entre o papado e a frater-
nitas romana atingia as marcas de uma longa duração. Realidade que refluiu
para a composição da Vita Alexandri III. Ao contrário do que sugerem alguns
estudos modernos, o longo pontificado alexandrino não figura no texto escrito
pelo cardeal Boso como a época de uma disputa hierocrática, da luta entre o
poder secular (imperial) e o poder espiritual (pontifício) por uma supremacia
universal (Ver: PACAUT, 1956). O cardeal povoou a “Vida do papa Alexandre”
com o “drama do cisma na igreja, mas o cisma visto em relação ao governo do
papa na cidade de Roma”, como apontou com acuidade Peter Munz (1973: 4).
Aspecto já indicado por Charles Haskins (1993: 245) no clássico The Renais-
sance of the Twelfth Century, nos anos 1920: “a vida de Alexandre II, incompleta
como ela é, é a maior de toda a série papal, mas seu resultado é mais o de anais
do que uma biografia: são os anais de uma cidade”.
Da primeira à ultima linha, a Vita Alexandri III tomou forma através do
empenho de um cardeal para reconstruir o passado, rememorar os eventos
envolvendo o papado de maneira a fazê-los obedecer aos desafios vividos no
interior de um círculo social singular: o partido alexandrino. Como elucidou
Maurice Halbwachs há décadas (1935: 71-72), a memória, ainda que expres-
sada individualmente, pressupõe uma dimensão interativa. As lembranças re-
gistradas por Boso não emergiram de um vazio ou de uma tábula rasa. Não
despontaram em sua pena de maneira meramente pessoal. Sua prática me-
morialista colhia os sentidos veiculados por um pertencimento coletivo, ela se
apropriava de representações partilhadas no seio de um grupo.
Como scriptor da chancelaria apostólica entre os anos de 1149 e 1152,
camerarius entre 1154 e 1159, conselheiro pessoal de Adriano IV e Alexandre
III, Boso ocupava lugar central no cotidiano das relações de poder do partido
alexandrino.25 Nosso cardeal era alguém altamente propenso a reunir os temas
representacionais propagados pelas práticas de poder deste grupo (MUNZ,
1973: 5). Sua Vita Alexandri III obedeceu a esta premissa primordial: passar
a limpo a imagem de décadas de vicissitudes vividas por uma facção papal,
reunindo-as e transformando-as em novos espaços de legitimação. Por meio

25
Liber Pontificalis 2: xxix-xliii.
Leandro duarte rust 393

dela, construiu-se uma versão do turbulento período de 1159 a 1178 em tudo


adequada aos valores e princípios partilhados pelos principais articuladores da
causa de Alexandre III.
Característica captada por Peter Munz (1973: 25), mas por ele avaliada
como uma imperdoável manipulação tendenciosa de fatos: “a estrutura dramá-
tica do trabalho de Boso é manifesta. Em alguns casos ela conduz a uma extrema
distorção da verdade e em outros casos ele o impossibilita de narrar com um olhar
desobstruído o que tem sido corroborado por outros documentos”. O que Munz
nomeou como “distorção da verdade” deve ser visto, em nossa opinião, como o
processo seletivo e criador da representação do passado segundo as exigências
e as expectativas de uma memória curialista. A seletividade do texto bosoano
deu vida à compreensão partilhada pelo grupo leal a Alexandre III a respeito
daquilo que se passava com o papado. Ao invés de uma deturpação da realida-
de objetiva, a narrativa da vida papal deve ser vista como a “engenhosa verda-
de criada por uma trama memorialista” (POLLACK, 1992: 200-212).
A narrativa se inicia com o papa abandonando a cidade e instalando-se
na província de Ninfa, após ele e os seus serem trancafiados em Roma pelo
papa rival: “por nove dias. [Durante os quais] não havia forma de escapar, dia
e noite, com a conivência de certos senadores que corrompeu com dinheiro, Ota-
viano os manteve confinados com [o auxílio de] um bando armado”.26 Como
Inocêncio II três décadas antes, Alexandre partiu para a Gália, no ano de 1162.
Fixou residência em Sens, acolhido por Luís VII. Novamente o reconhecimento
do legítimo sucessor apostólico seria consolidado a partir da região que, des-
de os tempos de Urbano II, servia de asilo para candidatos ao trono petrino
contestados em Roma (ROBINSON, 1990: 476-494; PACAUT, 1956: 123-125,
138-139).
Alexandre III levou para a Gália amargas memórias de insegurança
e fragilidade, vivamente associadas à Cidade Eterna. Segundo a Vita, estas
lembranças vieram à tona em 1164, quando ele recebeu a notícia de que os
seus partidários tinham obtido do Senado a submissão do governo citadino.
A passagem em questão é extensa, mas cada uma de suas linhas tem grande
relevância para a análise da memória alexandrina:

Enquanto as circunstâncias encontravam-se nestas condições, Júlio, bis-


po de Palestrina, vigário do papa Alexandre, faleceu, e João, cardeal
presbítero dos SS. João e Paulo, foi designado [legado pontifício em
Roma] em seu lugar. Sob sua ordem, a maior parte do povo de Roma

26
Ibique novem diebus, ne ullo modo possent exire, fecit eos quorumdam senatorum consensu quos
pecunia oblata corruperat die noctuque armata manu cum omni diligentia custodiri. CARDEAL BOSO.
Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 398.
394 coLunas de são pedro

prestou o juramento costumeiro de fidelidade ao papa Alexandre, com


uma grande soma de dinheiro sendo entregue a ele [o povo] em seu
nome [do papa]. Ele [o cardeal] designou um Senado escolhendo no-
vos membros segundo sua vontade e agrado. Este Senado restaurou nas
mãos do novo vigário o condado da Sabina e a igreja do bem-aventurado
Pedro, que eram ocupados pelos cismáticos desde a violenta tomada pelo
imperador até aquele tempo. Assim, quase toda a cidade estava assegu-
rada pelo vigário para a glória e serviço do papa Alexandre. O vigário
aconselhou-se com os membros fiéis da igreja, ambos laicos e clérigos,
sobre chamar de volta o papa para a sé do bem-aventurado Pedro e o
palácio Lateranense, e enviou emissários e epístolas ao papa Alexandre
em Sens, implorando e exortando-o em nome de todo clero e povo de
Roma, e daqueles fiéis a ele, que ele retornasse para sua própria sé e para
o povo mais especialmente confiado a ele. “O Primado e o governo na
igreja foram dados a esta Cidade por ninguém menos do que o próprio
Senhor para que a Cidade que nos tempos do paganismo foi a mais glo-
riosa dentre todas pudesse, por ordem divina, ter na era da Revelação
da fé cristã uma dignidade magisterial sobre as demais. Embora muitos
tenham tentado resistir a esta disposição divina e agido contra ela com
seus sobressaltos, pela proteção de Deus, ninguém foi capaz de prevale-
cer. Uma vez que sobre esta questão nós apresentamos uma opinião em
espírito elevado, não apenas de nós mesmos, mas de todas as igrejas e
o povo da Itália, caríssimo Pai e Senhor, este curso é necessário; pois es-
peram que vosso retorno para a Cidade e que vossa posse da cadeira do
bem-aventurado Pedro resultem, sob a condução de Deus, em paz para
eles próprios e quietude para todo o mundo”.
Quando ouviu e ponderou sobre esta mensagem, o Pontífice reuniu-se
com os bispos e cardeais [para discutir] a respeito de seu retorno para
a Cidade, porque ele percebeu que muitas sérias e difíceis questões re-
caíam sobre si. Mas após tomar o conselho dos reis dos Francos e dos
Anglos, bem como dos bispos da Gália, ele concedeu sua firme resposta
a seu vigário sobre seu retorno e imediatamente iniciou os preparativos
para a jornada.27

27
Dum autem hec agerentur, defunctus est Rome Julius Prenestrinus episcopus, Alexandri pape vica-
rius, et in loco eius I. presbiter cardinalis sanctorum Johannis et Pauli est subrogatus. Ad cuius utique
commonitionem populus Romanus ex maxima parte Alexandro pape consuetam fidelitatem pecunia
non modica mediante iuravit, et senatum juxta voluntatem et arbitrium eius innovando constituit; ec-
clesiam quoque beati Petri et comitatum Sabinensem, que tunc a scismaticis per violentiam imperatoris
occupata detinebantur, in manibus eiusdem vicarii nichilominus reddidit. Unde factum est quod tota
fere urbs ad honorem et servitium pape Alexandri pacifice detinebatur ab eodem vicario. Habito itaque
consilio cum Ecclesie fidelibus, tam clericis quam laycis, de revocando pontifice ad sedem beati Petri
Leandro duarte rust 395

O trecho acima sugere que a reconciliação com Alexandre III teria sido
iniciativa do próprio movimento comunal. A partir do momento em que “o
retorno do papa” passou a ser visto no interior da cidade como a única forma
para preservá-la da destruição causada pelas incursões imperiais na península
(“pois esperam que vosso retorno para a Cidade e que vossa posse da cadeira
do bem-aventurado Pedro resultem em paz para eles próprios e quietude para
todo o mundo”), o apoio romano ao “antipapa” Vítor soçobrou, minando o
poder das lideranças políticas de então. Estava aberto o caminho para a for-
mação de um novo Senado. Segundo a Vita, a Urbe seguia uma linha política
própria, independente. Sua adesão não era fruto de mera cooptação pelo par-
tido imperial. Seu engajamento em prol de Vítor IV imperial fora voluntário.
Haviam aderido à causa dele, e dela podiam desertar.
Porém, esta nos parece ser precisamente uma incisão memorialista.
Uma armadilha textual. Afinal, esta caracterização nos fala menos dos pode-
res comunais do que do próprio partido alexandrino. Não podemos esquecer
que as lideranças romanas ardiam na visão da Cúpula como poderes ilegíti-
mos, espúrios. Sua caracterização como figuras que escolhiam seus rivais e
aliados era uma forma de apresentar homens à margem da lei reconhecendo
seus comparsas, distinguindo entre seus semelhantes e adversários. Em ou-
tras palavras, a Vita comunica a ideia de que a opção dos citadinos por Vítor
obedecia a certas afinidades: tratava-se de um maléfico infrator reconhecendo
seu similar.
Logo, o arrependimento atribuído ao “Senado e Povo romano” tem a
aparência de uma penitência que corrige um pecado: a comuna surge na nar-
rativa sendo expurgada por suas escolhas errôneas. O cardeal João aparece
como o responsável por substituir os líderes citadinos, por remover os que se
identificaram com Vítor IV porque almejavam alguém que seria conivente com
suas falhas, compactuaria com seus atos. Por esta razão negaram Alexandre:

et Lateranense palatium, nuntios ad eum et litteras in partibus Galliarum apud Senonas existentem
transmisit, orans et petens ab eo ex parte totius cleri et populi Romani atque fidelium suorum quatinus
ad propriam sedem suam et populum specialem sibi commissum dignaretur reverti. “Ecclesie namque
principatum et regimen in ipsa Urbe non ab alio set ab ipso Domino est procul dubio constitutum, ut
que gentilitatis tempore cunctis gloriosior fuerat, eadem divino consilio in christiane fidei revelatione
magisterii dignitatem pre omnibus optineret. Set multi quidem huic divine dispostioni resisitere et ad-
versus eam conati sunt calcanetum elevare; nullus tamen, Domino pretegente, pouit prevalere. Unde
oportet, karissime pater et domine, ut in hac parte non tantum nobis set omnibus ecclesiis et populis
Ytalie salubriter consultatis, qui de reversione vestra in eadem urbe et sessione in beati Petri cathedra
pacem sibi sperant auctore Domino provenire et orbi universo tranquillitatem. Hiis itaque auditis et
intellectis, pontifex de sua reversione ad Urbem cum episcopis et cardinalibus spatiose conferens, licet
multa imminere sibi gravia et difficilia previdere, post consilium tamen regis Francorum et alterius
regis Anglorum necnon et episcoporum Gallie, predicto vicario certum de suo redito dedit responsum,
statimque se ad iter ipsium festinanter accinxit. CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis
2: 398, 412.
396 coLunas de são pedro

como um demônio evita a luz, eles rejeitaram aquele que os repreenderia por
seus atos. A autonomia decisória atribuída aos romanos realça a ideia de que
o “povo”, traiçoeiro, insurreto e desleal, prontamente reconheceu Alexandre
como letígimo detentor da autoridade apostólica, como o portador da reta ra-
zão moral e, precisamente por isso, o teria negado. Toma forma uma oposição
entre “o mesmo” e “o diferente”, que exaltava os alexandrinos como o “outro”
deste lugar de vícios e cupidez que era “o povo romano”.
Segundo a Vita, esta incompatibilidade teria feito o papa relutar em
regressar. O sucessor apostólico recusava-se a retornar para a cidade à qual “o
primado e o governo na igreja foram dados pelo próprio Senhor”. Mas, graças
à persuasão de aliados (“o conselho dos reis dos Francos e dos Anglos, bem
como de bispos da Gália”), a mensagem do cardeal João venceu a recalcitrân-
cia pontifícia. Eis aí outro ponto em que a narrativa serve-se dos eventos de
um modo muito particular.
Pois, ao contrário do que a passagem documental sugere, a situação de
Alexandre e sua cúpula na Gália estava longe de ser cômoda a ponto de sedu-
zi-los para a permanência. Embora houvesse obtido o reconhecimento dos reis
Luís VII e Henrique II, no concílio de Tours (1163), durante todo o tempo em
que residiu em Sens, o papa e seu entourage pelejaram contra a penúria fiscal.
Em Tours, 124 bispos e 414 abades os aclamaram como cabeça da Cristandade
(caput Christianitatis).28 Vozes da “Inglaterra, Escócia, Irlanda, Espanhas e toda
a Gália”29 ofereceram apoio imprescindível para sua causa, endossando a con-
denação de seus opositores como seres movidos pela “ambição de cismáticos” e
pela “violências de tiranos” (schismaticorum ambition, violentia tyrannorum).30
Mas nada disto os redimia de uma longa precariedade de recursos. A susten-
tabilidade da causa alexandrina preocupava, ameaçava vacilar. Assim, como
poderia o pontífice preferir a precariedade da Gália à segurança material de
uma Roma pacificada? Teria a narrativa bosoana semeado um engano, um
ardil para os olhos leitores? Não em nossa opinião.
Ao apresentar um pontífice hesitante a narrativa bosoana ressignificou,
convertendo em atributo pessoal – a “relutância de Alexandre” –, um traço da
estruturação institucional do papado: a condução da romana ecclesia era mais
difícil em Roma, que volta-e-meia era tomada por arrasadoras ondas de atos
antipapais, do que em meio às flutuações e incertezas vividas longe do Lácio.

28
CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2. 408.
29
Non multo post Turonis universale concilium celebravit, in quo archiepiscopi episcopi abbates An-
glie, Scozzie, Hybernie, Hyspaniarum et totius Galliae convenerunt. ROMULADO DE SALERNO. Anna-
les. MGH SS 19: 433; HUGO DE POITIERS. Libro de Libertate Monasterii Vizeliacensis. MGH SS 26: 148.
30
Os termos são retirados do sermão pregado por Arnulfo de Lisieux no referido concílio. In: MANSI
21: 1169-1170.
Leandro duarte rust 397

Mesmo que impusessem certos riscos, as “margens” eram capazes de oferecer


mais garantias de estabilidade política ao papado do que o usual “centro” do
Patrimônio de São Pedro. Talvez por isso, os alexandrinos tenham seguido
os mesmos passos dados pelos inocencianos nos anos 1130, estendendo uma
extensa rede de cardeais legados empenhados em obter o reconhecimento for-
mal e o auxílio material dos poderosos da Gália e das áreas anglo-normandas.
Eis alguns nomes: Henrique, cardeal presbítero dos Santos Nereo et Achilleo;
Guilherme, cardeal presbítero de São Pedro in Vicoli; Odo, cardeal diácono
de São Nicolau in Carcere; Teodin, cardeal presbítero de São Vital; João, car-
deal presbítero dos Santos João e Paulo; Manfredo, cardeal diácono de São
Giorgio; Galdino, cardeal presbítero de Santa Sabina; e Hildebrando, cardeal
diácono de Santos Eustáquio (LUSCOMBE, 2005: 418-419).
Em outras palavras, o dilema pontifício foi uma fórmula encontrada
pelo cardeal Boso para expressar, segundo a racionalidade e a coerência vigen-
te entre seus pares, a percepção do profundo desencaixe que marcava a inser-
ção social da autoridade apostólica. Sua escrita apresentou como um impasse
de consciência, como uma atroz dúvida interior, a peculiar realidade do bispo
romano, um dos poucos da Cristandade que era capaz de dispor dos poderes
pastorais e jurisdicionais de sua Sé sem ocupá-la efetivamente, mantendo-se
distante das instalações diocesanas que materializavam o legítimo lugar para
o qual fora escolhido. Se a vontade papal emergiu aqui como único empecilho
que impedia o cardeal-eleito de Roma de retornar para o lugar onde deveria
ser entronizado, isto se deu porque na realidade nenhum outro vínculo poli-
ticamente relevante impunha a permanência naquela cidade como condição
para o exercício da “autoridade episcopal para reger e dispor”.
Situação peculiar até mesmo na península italiana. A cada década que
se passava, o episcopado daquelas terras se habituava à experiência de ver a
“Sé” materializada no assento do bispo e, como tal, estreitamente associada
ao habitat em uma cidade. Logo, a cathedra se tornou lugar proeminente de
sacralidade, espaço privilegiado de contato com o Além. Isso ocorria, espe-
cialmente, graças a uma fixação espacial do culto dos antecessores episcopais
como patronos da cidade. Portanto, não obstante a disseminação dos comba-
tes pela autonomia comunal, o crescimento urbano durante a Idade Média
Central estabeleceu o edifício da igreja e a residência do bispo no centro das
identidades citadinas: “esta nova centralidade física é uma medida do quanto a
cathedral, o santo patrono e seu bispo se tornaram potentes símbolos unificado-
res da cidade” (MILLER, 2000: 126). Em Roma, por sua vez, a Sé Apostólica já
havia se dissociado da cidade.
A idealização da situação de Alexandre na Gália deve, portanto, ser
encarada como uma metáfora de um fundamento da organização da política:
398 coLunas de são pedro

a antiga e sempre latente capacidade de desvinculação entre o ofício e a cathe-


dra episcopais. A Gália, na passagem acima, é uma referência que deve ser su-
perada pelo historiador. Ela simplesmente dá nome ao fato do papado poder,
legitimamente, descentrar-se. O cardeal Boso fala-nos da atração exercida por
Sens sobre a consciência do pontífice, mas poderia ter sido Benevento, Segni,
Tours ou qualquer outra cidade em que a Cúria alexandrina residiu durante
o cisma. Todas poderiam tê-lo seduzido a permanecer e a hesitar quanto ao
regresso para Roma.
Sigamos com a análise de nossa Vita. O esperado regresso não teria sido
suficiente para assegurar a lealdade dos citadinos, incorrigivelmente arredios,
insidiosos. Segundo o cardeal Boso, em 1165, quando tropas imperiais mar-
charam rumo a Roma após devastarem o Lácio, o que se viu entre os romanos
foi isto:

Uma vez que não puderam submeter Roma, a mãe das cidades, ao im-
perador pela força das armas, eles almejaram e tentaram corrompê-la
pela distribuição de somas de dinheiro. E porque Roma se põe à venda
se puder encontrar um comprador, como está escrito pelos antigos, não
houve nenhum dentre os romanos que, tendo recebido dinheiro, se fez
audacioso para desafiar a opinião comum e todos juraram fidelidade
ao heresiarca Guy e ao imperador. E assim, uma vez que estes graves
maus cresciam em todas as mãos, o bondoso pontífice frequentemente
exortou seu povo com afeição paternal, implorando-lhe a ser da mesma
opinião que ele e a igreja, a retornar para a aliança com as cidades cir-
cunvizinhas e seus capitães e reuni-los em aliança a si mesmo. Ele ainda
advertiu-os a permanecer ombro a ombro na defesa da cidade e igreja
contra um poderoso inimigo. Ele até mesmo ofereceu dinheiro da igreja
ao povo para gastá-lo na defesa para o benefício da igreja. Mas sua liga-
ção com seus pecados era tão grande que ele nada pode fazer com seu
povo, que fingiu inclinar-se a cada lado, mas não se inclinava lealmente
a lado algum. Uma vez que o povo não deu ouvidos à voz de seu pastor
nem tomou precauções contra o desastre que se abateria contra eles, eles
justamente caíram sob a vingança de Deus, uma vez que eles mereceram
a perda tanto da vida quanto as possessões.31

31
Ipsam quoque civitatum matrem Romam cum viribus armorum subjicere imperatori non possent,
pecuniarum largatione, ut admipleretur antiquorum scriptura, non absque re temptaverunt corrum-
pere. Et quia Roma si inveniret emptorem se venalem preberet, non defuerunt multi ex eodem populo
qui suscepta pecunia Guidoni heresiarche atque imperatori contra omnes homines fidelitatem jurare
presumerent. Hiis itaque gravibus malis undique increbrescentibus, benignus pontifex eundem popu-
lum affectu paterno frequenter commonuit ut cum ipso et ecclesia unum saperent, et vicinas civitates
atque capitaneos pacifice revocarent et sibi astringerent, atque pro defendenda ecclesia et civitate
Leandro duarte rust 399

A divergência entre a cidade e a igreja forçava limites. Cerca de oitenta


anos antes, em maio de 1082, uma conduta semelhante causou problemas a
Gregório VII. No calor dos enfrentamentos militares com tropas de Henrique
IV, o papa pretendeu servir-se de rendas de igrejas romanas para sustentar a
resistência. A conduta levou figuras graúdas do clero papal, como os bispos do
Porto, de Tusculum, da Palestrina e de Segni, a se reunirem com o rei para pro-
testar contra a tentativa papal de custear ações militares seculares (in militia
seculari) com recursos guardados para o socorro aos pobres e a manutenção
dos serviços divinos (ZAFARANA, 1966: 399-403; COWDREY, 1996: 153).
Em meados do século XII, todavia, a Vita Alexandri III viu em um com-
portamento semelhante uma prova de “afeição paternal” do sumo pontífice
e exaltou seus esforços para que “a cidade fosse da mesma opinião que ele e
a igreja”. A trama memorialista se serviu do enviesado trato com os romanos
para legitimar uma avançada secularização das rendas eclesiásticas. O que um
século antes causou repulsa aos aliados mais leais de Gregório VII era agora
justificativa suficiente para usos alheios aos propósitos litúrgicos e assisten-
ciais do patrimônio eclesial.
Postura que levou Bernardo de Claraval a se esfalfar em críticas ao
papa: “dirás que o patrimônio dos Apóstolos não resulta mais da ambição que da
devoção? Que as vozes da ambição ressoa em vossos palácios durante todo o dia?
Que as leis canônicas e a sua disciplina não a transpiram?32 (Ver ainda: BER-
NARD, 1975: 281-304). Esta mesma conduta inflamou de fúria os sermões de
Arnaldo de Brescia (GREENAWAY, 1931: 164-189) e convenceu gerações de
historiadores de que o papado seguia os imperativos de uma lógica estatal e,
encabeçando uma robusta “monarquia”, exercia funções típicas do governo
moderno (MORRIS, 2001: 210-219).
Em 1170, novo episódio foi acrescido à difícil relação entre o bispo de
Roma e sua cidade. Ameaçado pela política senatorial, Raino, então conde de
Tusculum, entregou seus domínios a Alexandre III, conclamando-o a protegê-
lo. Ele esperava, assim, desencorajar as investidas da comuna para anexar
suas terras. O que não aconteceu:

contra fortissimum adversarium unanimiter starent. Obtulit etiam eidem populo ecclesie pecuniam
expendendam in ipso facto, secundum ecclesie facultatem. Set peccatis exigentibus nichil cum eo po-
tuit efficere, qui se utrique parti simulabat placere et cum nulla fideliter ambulabat. Quia ergo neque
pastoris vocem intelligere neque superventuras calamitates voluit precavere, divinam ultionem juste
incurrit, cum personam simul et rerum integritatem perdere meruit. CARDEAL BOSO. Vita Alexander
III. Liber Pontificalis 2: 414.
32
Annon limina Apostolorum plus iam ambitio quam devotio terit? Annon vocibus eius vestrum tota
die resultat palatium? Annon quaestibus eius tota legum canonumque disciplina insudat? BERNARDO
DE CLARAVAL. De Consideratione. B.A.C. 2: 124.
400 coLunas de são pedro

Mas o povo de Roma, que pretendia destruir esta cidade [Tusculum],


incitou uma grande indignação contra o Pontífice sobre esta questão e
permaneceu muito perturbado. Ele afirmou com aparência de superio-
ridade que ele [o papa] não deveria aceitar ou proteger aquela cidade
em cujas mãos o próprio povo romano tinha recentemente sofrido grave
infortúnio. Ameaçou em gritos altos que, a não ser que ele [o papa]
abandonasse o lugar completamente, ele atacaria com toda sua força
oferecendo toda adversidade e oposição que pudesse. Embora o Pontífi-
ce lhe respondesse com toda mansuetude e paciência, e cuidadosamente
explicasse o manifesto direito que a Sé Apostólica há muito tinha sobre
aquela cidade, prometendo que a Cidade de Roma obteria um contínuo
benefício de um lugar que viera para as mãos da igreja, e que nenhum
mal se ergueria dali, ainda assim não houve forma alguma que aplacasse
o povo romano e removesse sua perversidade. De fato, o próprio povo
tinha se tornado completamente diferente de seus pais dos dias do bem-
aventurado Paulo, e diariamente decaía. Pois através dos séculos o que
se tornou mais conhecido do que a petulância dos romanos? Eles são
sediciosos entre si, rivais de seus vizinhos; desconhecem como ser gover-
nados nem conhecem como governar; com seus superiores são desleais,
e para seus subordinados, insuportáveis; ensinam suas bocas a expressar
palavras nobres enquanto realizam feitos mesquinhos.33

Antigas contendas eram acirradas, levando a memória alexandrina a


enxergá-las como repetições de um passado recente. Em 1142, tropas roma-
nas avançaram sobre Tívoli, guiadas pelo propósito de vergar as liberdades
comunais aí recentemente confirmadas. Pois Tívoli gozava de imunidades face
ao poder condal, que reconhecia suas consuetudines e permitia que a cidade
as estendesse para o interior, o contato. Além disso, embora fizesse parte do
“Patrimônio de São Pedro”, o papado nada mais tinha em seu interior a não ser

33
Ceterum populus Romanus qui ad destructionem illius loci non mediocriter intendebat, contra ip-
sum pontificem super hoc valde indignatus est et nimis commotus, proponens cum typo superbie
quod civitatem ipsam per quam populus ipse tam grave infortunium recenter passus fuerat neque
tueri debuerat neque recipere. Minabatur et inmoderatis clamoribus quod nisi locum ipsum omnino
desereret, pro suis viribus niteretur inferre sibi quicquid mali vel contrarietatis agere possent. Cui licet
benignus pontifex in omni mansuetudine ac patientia responderet, et manifestam iustitiam quam sedes
apostolica in eadem civitate iamdiu habuerat diligenter ostenderet, promittens quod de ipso loco qui
ad manus ecclesie devenerat Romana civitas bonum assidue consequetur et nil mali ulterius exinde
sibi proveniet; nullatenus tamen populum ipsum placare potuit vel a sua pravitatis retrahere. Quippe
a tempore beati Pauli populus ipse patribus omnino dissimilis factus est et cotidie in deterius labitur.
Quid enim tam notum seculis quam protervia Romanorum? Sunt enim seditiosi invicem et emuli in
vicinos; subesse nesciunt et preesse non norunt, superioribus infideles et inferioribus inportabiles;
docuerunt etiam linguas suas grandia loqui cum operentur exigua. CARDEAL BOSO. Vita Alexander
III. Liber Pontificalis 2: 423-424.
Leandro duarte rust 401

um único rector, figura encarregada de certos direitos reclamados pela Cúria.


Cuja presença na cidade recuou ainda mais em 1139, quando os habitantes se
rebelaram contra Inocêncio II (GREGOROVIUS 4/2: 447-448).
Após um ano de combates sangrentos e dois longos e onerosos cercos,
os tivolenses enfim se renderam. Não aos romanos, como esperava a multidão
de soldados esfarrapados, mas a Inocêncio II. O acordo de paz dispôs nas mãos
pontifícias o poder sobre a cidade, bem como todos os seus domínios, mas ao
preço de abrigá-la sob a proteção apostólica, salvaguardando-a de toda e qual-
quer pretensão romana. Ultrajado, o “populus romanus” inicou uma grande
mobilização que tomou o Capitólio e permitiu a restauração do Senado: nascia
a comuna. Trinta anos depois, este episódio foi tomado pela memória ale-
xandrina como modelo para explicar a relação entre o papado e os romanos.
Na passagem acima, Tusculum ambienta a mesma estória protagonizada por
Tívoli nas fontes papistas. Ou seja, da mesma forma que o episódio de trinta
anos antes, o que se passou com aquela cidade confirmava a lição de que a
ambição dos romanos era um dos maiores obstáculos para a legítima con-
servação das possessões papais. A cisão política vigente no interior do Lácio
foi novamente representada como um desentendimento causado por atributo
pessoal, desta vez, porém, de uma pessoa coletiva: os “petulantes romanos e
sua ganância”.
Ao se basear nos eventos de 1142 para apresentar a busca romana por
vingança – segundo a Vita os ataques a Tusculum pretendiam punir o conde
por sua participação na captura de Roma por tropas imperiais, em 1166 –,34
a narrativa bosoana deu forma a outra importante analogia: Alexandre III
encontrava-se na mesma situação que um dia foi vivida por Inocêncio II. Par-
tilhar os mesmos dramas seria uma prova de que ambos perseguiam a mesma
linha de princípios e propósitos: Alexandre seguia os passos de um antecessor
cujo governo fixou os rumos da política papal no século XII, figura reconheci-
da no interior da própria Cúria como um fundador de “santa memória”. A Vita
Alexandri III exorcizava o espectro da quebra da legítima sucessão pontifícia.
Fantasma que, desde a deflagração do cisma em 1159, rondava o grupo do
qual provinha seu autor.
O relato sobre o incidente envolvendo Tusculum é outro registro docu-
mental da consciência vigente entre os alexandrinos sobre o longo histórico
de discórdias existentes entre a Urbe e a Ecclesia. Se anos antes, em 1153, o
acordo de Constance expressou uma percepção de que elas já se arrastavam
por um século, agora, cerca de vinte anos depois, sua duração tornou-se ainda
mais longínqua, caindo nas brumas de um “antes” ainda mais distante, que

34
CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 415-416.
402 coLunas de são pedro

parecia se esfumaçar na vida cotidiana. Para tornar tangível uma duração tão
longínqua, para tornar visível aquele imenso intervalo de tempo, a memória
alexandrina recorreu a uma medida temporal familiar aos eclesiásticos do sé-
culo XII: uma distância moral.
A detestável conduta dos romanos contrariava em tudo os princípios
herdados dos “dias do bem-aventurado Paulo”. Não foi a cronologia que per-
mitiu ao cardeal Boso ver o quanto o seu presente estava distante do passado,
mas sim a intensidade de um contraste moral, disciplinar. A qualidade de “ser
antigo” não decorria de um certo número de anos ou séculos. Ela era funda-
mentada, primordialmente, pelos sentidos de posterioridade moral (declínio,
corrupção) que o presente revelava ao ser confrontado com um personagem
ou algum feito anterior (SANSTERRE, 2004: 220-235; SCHNEIDMULLER,
2002: 167-192).
Dito de outra forma, as medidas de alteridade temporal não eram, aqui,
grandezas algébricas, mas diferenças morais: “a percepção do tempo está liga-
da a critérios éticos” (LATOURELLE & FISICHELLA, 1994: 930). Quanto mais
intensos os significados de declínio do momento vivido, quando comparado a
outra época, maior era a distância entre o hoje e aquele tempo tomado como
referência de exemplaridade moral.
A última passagem documental transcrita pode ser lida como um gran-
de empenho de construir um insuperável dualismo ético. Alexandre III e o
“populus” aparecem aí como verdadeiros antípodas, em tudo contrários: um
é o avesso do outro. O primeiro é afável e paciente (“embora o Pontífice res-
pondesse com toda mansuetude e paciência”), cuidadoso (“cuidadosamente
explicasse”), abnegado (“prometendo que a Cidade de Roma obteria um con-
tínuo benefício de um lugar que viera para as mãos da igreja, e que nenhum
mal se ergueria dali”). Já o segundo, aparece como soberbo (“com aparência
de superioridade), voluntariamente violento (“ele atacaria com toda sua força
oferecendo toda adversidade e oposição que pudesse”), além de obstinada-
mente perverso (“não houve forma alguma que aplacasse e removesse sua
perversidade”).
O papa é figura de uma integridade imaculada. Como origem da voz
com a qual Pedro julgava os homens, ele imortalizava a época dos apóstolos,
cuja presença continuava viva em seus atos e palavras. Alexandre é descrito
como a própria encarnação de sentidos éticos há muito desconhecidos pelos
romanos. Estes, por sua vez, eram a própria forma humana da dissolução mo-
ral provocada pelo devir, pela erosão dos valores cristãos no leito do tempo.
Suas bocas ecoavam a perda de si, a degradação da razão. Um permitia ver
uma verdade cristã indestrutível, o outro era prova viva das feridas morais que
o tempo infligiu aos homens. O papa é aí, de alguma forma, eterno; os roma-
Leandro duarte rust 403

nos são escravos do tempo. E a eternidade moral pontifícia era um espelho


que refletia a lamentável sina romana de ser prisioneiro do devir.
Todo este movimento de significados é condensado e sintetizado pelas
linhas finais da passagem transcrita. Lá, toma forma a composição de um te-
matha que conclui a medida de tempo construída ao longo de toda narrativa
(Ver: MOSCOVICI, 2003: 215-230). Nos referimos à enfática caracterização
que parece resumir uma vasta percepção acerca dos romanos: “são sediciosos
entre si, rivais de seus vizinhos; não conhecem como ser governados nem como
governar; com seus superiores são desleais; para seus subordinados, insupor-
táveis; ensinam suas bocas a expressar palavras nobres enquanto realizavam
feitos mesquinhos”. O movimento pendular até então realizado pelo texto,
indo e vindo entre os contrastes morais existentes entre o pontífice e os cita-
dinos, atinge seu apogeu ao desenhar a impressão de que o populus romanus
soterrava a reta conduta cristã com muitas camadas de passado (“através dos
séculos o que se tornou mais conhecido do que a petulância dos romanos?”).
Logo, execrar a condição romana de refém da ação do tempo foi uma fórmula
encontrada pela escrita bosoana para expressar a percepção dos alexandrinos
de que após um tempo longínquo, quase sem medida, os antagonismos entre
a Cúria e a cidade Roma atingiam formas insuportáveis.
Não era para menos. Além das amargas lembranças partilhadas dentro
do papado, pesou sobre a memória alexandrina sua exposição a um olhar de
forasteiro, alheio ao que era romano, influenciado por juízos que circulavam
em terras muito distantes do Lácio. Comparemos, nesse sentido, o trecho cima
transcrito da Vita Alexandri III com passagens do De Consideratione, o opús-
culo dirigido por Bernardo de Claraval ao papa Eugênio III. As semelhanças
entre eles são notáveis:

Vita Alexander De Consideratione


(1176?) (1149-1152)

Pois através dos séculos o que Através dos séculos o que se


se tornou mais conhecido do tornou mais conhecido do
que a petulância dos roma- que a petulância e a obstina-
nos? Eles são sediciosos entre ção dos romanos? (...) Ímpios
si, rivais de seus vizinhos; não para com Deus, temerários para
conhecem como ser governa- com o sagrado, sediciosos en-
dos nem como governar; com tre si, rivais de seus vizinhos,
seus superiores são desleais, e desumanos contra estranhos,
para seus subordinados, insu- não são amados por nada,
portáveis; ensinam suas bocas porque nada amam (...). Não
a expressar palavras nobres en- toleram serem governados e
quanto realizavam feitos mes- não conhecem como gover-
quinhos. nar; com seus superiores são
404 coLunas de são pedro

desleais, e para seus subordi-


nados, insuportáveis; são des-
providos de pudores para pedir
e atrevidos para negar; são ino-
portunos para conseguir algo,
inquietos quando o recebem;
ingratos quando o alcançam;
ensinam suas bocas a expres-
sar palavras nobres enquanto
realizavam feitos mesqui-
nhos.35 (Os grifos são nossos)

A narrativa bosoana representou o “povo romano” valendo-se de escri-


tos do Além-Alpes. Vislumbrou-o através dos olhares de seus aliados suprarre-
gionais. O cardeal Boso encontrou no abade Bernardo de Claraval passagens
que expressavam suas opiniões acerca dos habitantes de Roma. Por esta razão
certos trechos escritos pelo cisterciense apresentam notável semelhança com
os julgamentos sustentados pelo texto curialista: um apropriou-se da escrita
do outro.
Afinal, a compatibilidade de valorações existente entre a Vita Alexan-
dri e o De Consideratione torna-os intercambiáveis, singularmente permeáveis.
“Verás que conheço algo das manhas desta gente. São especialmente sagazes para
fazer o mal e incapazes de praticar o bem”.36 Retiradas do tratado bernardiano,
estas frases bem poderiam passar por obra da pena bosoana, que via os roma-
nos como “petulantes”, “sediciosos”, “mesquinhos”.
As similitudes são marcantes. Se, por um lado, Bernardo alertou Eugê-
nio através de indagações como esta: “podes apontar-me alguém, entre os [ha-
bitantes] de toda Urbe, que não tenha te acolhido como papa pela intervenção
de dinheiro ou esperança de recebê-lo?”.37 Por outro, Boso lançou mão de uma
imagem idêntica para condenar Pascoal III, o sucessor do papa imperial Vitor
na oposição a Alexandre: “porque Roma se põe à venda se puder encontrar um
comprador, não houve nenhum dentre os romanos que, tendo recebido dinheiro,
se fez audacioso para desafiar a opinião comum e todos juraram fidelidade ao

35
Quid tam notum saeculis, quam protervia et cervicositas Romanorum? (...) impii in Deum, teme-
rarii in sancta, seditiosi in invicem, aemuli in vicinos, inhumani in extraneos, quos neminem amantes
amat nemo, et, cum timeri affectant ab omnibus, omnes timeant necesse est. Hi sunt qui subesse non
sustinent, praeesse non norunt, superioribus infideles inferioribus importabiles. Hi inverecundi ad
petendum, ad negandum frontosi. Hi importuni ut accipiant, inquieti donec accipiant ingrati ubi acce-
perint. Docuerunt linguam suam grandia loqui, cum operentur exigua. BERNARDO DE CLARAVAL. De
Consideratione. B.A.C. 2: 154-158.
36
Overimne et ego vel aliquatenus mores gentis. Ante omnia sapientes sunt ut faciant mala, bonum
autem facere nesciunt. BERNARDO DE CLARAVAL. De Consideratione. B.A.C. 2: 158.
37
Quem dabis mihi, de tota máxima Urbe, qui te in Papam receperit, pretio seu spe pretii non interve-
niente? BERNARDO DE CLARAVAL. De Consideratione. B.A.C. 2: 156.
Leandro duarte rust 405

heresiarca Guy [Pascoal]”.38 A simetria textual é a mesma nos dois trechos: o


“diferente” daquele que narra tem o mesmo rosto. O “outro” é aí uma coletivi-
dade que não conta com uma alma incapaz de vender-se.
O cardeal Boso leu e se apropriou do De Consideratione. Mas se o fez,
foi porque a memória alexandrina pôde aí encontrar respaldo para a diferença
experimentada entre o papado e a cidade de Roma. Assim, o modo particular
com que o “povo romano” é por ela representado possuía estreitas conexões
com as visões dos cistercienses de Claraval. Este é um aspecto revelador. Afi-
nal, as “representações são construções sempre ligadas a um lugar a partir do
qual os sujeitos representam, estando (...) intimamente determinadas por iden-
tidades, interesses, lugares sociais” (ARRUDA, 1998: 77). A incorporação de
trechos do opúsculo cisterciense por uma figura chave do governo pontifício
demonstra que o lugar social no qual era formada a memória curialista era
fundamentalmente constituído pelas redes suprarregionais de colaboradores
e articuladores da autoridade apostólica. Ou seja, as colunas regionais do pa-
pado medieval constituíam grande parte do espaço de construção da própria
identidade da Cúpula alexandrina. Em outras palavras, para muitos integran-
tes da Cúria, a posição ocupada pelo papado no centro do tabuleiro de poder
da península itálica ganhava maior inteligibilidade à luz das opiniões que cir-
culavam longe dali.
Na região onde o De Consideratione foi redigido, a Borgonha, a territo-
rialização do sagrado e a fixação espacial da organização eclesiástica – traços
constitutivos do processo conhecido como inecclesiamento (LAUWERS, 2005:
269-274) – ditavam os rumos das relações sociais. À luz delas, os reiterados
episódios de antagonismo entre a Igreja romana e sua territorialidade ime-
diata soavam como ataques frontais a uma das mais importantes normas da
crescente sociabilidade senhorial: a integração das populações locais em ni-
chos comunitários espacialmente circunscritos e identificados a uma ecclesia
(SANSTERRE, 2004: 297-323).
À luz desta realidade, os episódios envolvendo o papado e os romanos
eram vistos como turbulências gravíssimas, verdadeiras ameaçadas aos funda-
mentos da correta ordem das coisas. Este prisma foi adotado pelo relato bosoa-
no. Por isso, quando finalmente narra o retorno triunfal do pontífice para Roma,
o cardeal não deixou a lembrança desta violação passar em brancas nuvens:

Todo o clero e povo da cidade de Roma, ao ver o imperador F[rederico],


sob divina inspiração, ajoelhar-se aos pés do papa Alexandre e o mal do
cisma extinguido pelo poder de Deus, consideraram que havia sofrido

38
CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 414.
406 coLunas de são pedro

grandes perdas, tanto espirituais quanto temporais, em razão da longa


ausência do Pontífice. Deste modo, unanimemente e felizmente eles de-
cidiram chamá-lo de volta para a sé do bem-aventurado Pedro. Enviaram
ao papa em Anagni sete homens escolhidos entre os melhores cidadãos
romanos com cartas do clero, Senado e povo, humildemente implorando
a ele para retornar para sua Cidade e para o povo especialmente confia-
do a ele e protegê-los. O papa, apesar da solicitação humilde e devota
destes ter despertado grande contentamento nele e em seus irmãos bis-
pos, recordou da solicitação anterior [realizada] por este mesmo clero e
povo para que ele retornasse das regiões além das Montanhas, e reme-
morou quantas injustiças e insultos eles perpetraram contra ele e seus
irmãos bispos após um curto espaço de tempo, não sem razão ele hesitou
a acreditar em suas brandas promessas, em suas garantias de salvo con-
duto e quanto a retornar para a Cidade que, como é conhecido, oferece
muitos distúrbios para a paz.39

O retorno papal não era suficiente para tranquilizar a Cúria. A cúpula


apostólica ainda era atormentada pelos eventos que a realidade social vigente
no ultramontes fazia reluzir como golpes mortais infligidos sobre o conví-
vio cristão. Segundo o cardeal Boso, muitas feridas continuavam abertas na
consciência de Alexandre, fazendo-o desconfiar de “solicitações humildes e
devotas” como se estivesse diante de “promessas brandas”, sem vida e engano-
sas. Provavelmente o cardeal retratava temores de todo séquito papal. Afinal,
marcados por uma longa estadia na Gália, influenciados a olhar para Roma
pelas lentes do inecclesiamento vigente “além das Montanhas”, o alto escalão
pontifício via a si mesmo confrontado com uma tarefa improvável: ser o pes-
cador de almas acostumadas à injustiça, ao ódio, a se erguer contra a paz; ser,
enfim, pastor de lobos. Politicamente, a lição estava dada: era preciso domar
os homens, controlar Roma e restaurar a familiam beati Petri.

39
Interea universus Romane urbis clerus ac populus, videns imperatorem F. ad vestigia pape Alexandri
Domino inspirante prostratum et scismatis malum per divinam potentiam omnino extinctum, atten-
dens etiam de absentia ipsius pontificis tam in spiritualibus quam in temporalibus per longa tempo-
ra gravissimam incurrisse iacturam, commune consilium de revocando ad sedem beati Petri eodem
pontifice salubriter habuit. Miserunt ergo ad eum usque Anagniam de melioribus Romanorum civium
septem viros cum litteris cleri et senatus ac populi, suppliciter exorantes quatinus ad urbem suam
propriam et populum specialiter sibi commissum iam dignaretur reverti et curam eius habere. Pontifex
autem, licet humilis et devota eorum invitatio sibi et cunctis fratribus plurimum complaceret, ad me-
moriam tamen revocans preteritam eiusdem cleri et populi de ultramontanis partibus revocationem,
qualiter post modicum multas sibi et fratribus suis iniurias atque contumelias intulerunt, non inmerito
dubitavit eorum blandis promissionibus credere et ad civitatem ipsam, que multos disturbatores pacis
habere dinoascitur, absque certa et firma securitate redire. CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber
Pontificalis 2: 445-446.
Leandro duarte rust 407

7.4. Todos os caminhos levam a Roma

Roma não era uma nódoa de empecilhos ao poder pontifício na penín-


sula. Era um epicentro. As ações perpetradas pela comuna agravavam o declí-
nio do governo papal sobre as terras constitutivas do Patrimônio de São Pedro.
Durante a década de 1130, enquanto a Cúria permaneceu anos inteiros longe
do Lácio, quer devido ao cisma anacletiano ou em função de mobilizações
militares como a invasão da Sicília por Inocêncio II (MATTHEW, 1992: 49-54),
as grandes famílias da aristocracia local se aproveitaram de sua ausência e se
apoderaram de terras e prerrogativas atreladas à proteção apostólica.
Os condes de Galeria subjugaram as áreas vizinhas à própria Galeria; os
Stefani e os Teobaldi assumiram o controle de numerosas cidades próximas a
Capena; Pratica, uma localidade situada na costa tirrênica, se curvou às ordens
dos Barozini; o estratégico castelo de Nomentana caiu em poder dos Otaviani
da Sabina; os condes de Poli e os de Tusculum se apoderaram de possessões
monásticas. Como bem resumiu Peter Partner (1972: 175-176): “a lista de
terras eclesiásticas que caíram diante da cupidez aristocrática durante o cisma é
longa e importante” (Ver ainda: FEDELE, 1912: 586-588). Diante deste cená-
rio, a Sé Apostólica foi forçada a se aproximar dos poderosos (optimes) locais
para negociar a preservação de muitas prerrogativas temporais reclamadas
por ela. A aristocracia, por seu turno, viu na aliança com a autoridade petrina
o esteio para legitimar o controle sobre as áreas recém-conquistadas e obter o
reconhecimento eclesiástico para exações senhoriais há muito almejadas. Isto
explica porque ambos permaneceram lado a lado contra a comuna romana,
sobretudo, entre 1147 e 1155, período da liderança de Arnaldo de Brescia.
Superada, a crise protagonizada por Anacleto permitiu o triunfo histó-
rico do papado suprarregional, mas ao preço de graves repercussões sobre a
inserção peninsular do poder pontifício. O deslocamento da sustentação da
autoridade apostólica para alianças e laços de dependência mantidos no além-
Alpes criou impasses para um enraizamento local da Igreja romana, cada vez
mais encarada como um corpo estranho à identidade social das elites do Lácio.
Tal realidade, encorajou a fundação da República romana e facilitou a expan-
são dos poderes senhoriais da aristocracia. Porém, além de deixar vulnerável o
domínio temporal dos papas sobre terras peninsulares, o cisma de 1130 abriu
espaço para outra força política.
Durante a celebração do concílio lateranense de abril de 1139, Inocên-
cio II renovou um anátema proclamado anos antes, no plenário de Pisa, contra
Rogério II da Sicília,40 o principal aliado do cardeal eleito Pierleoni. A confir-

40
ANNALES CECCANENSES. MGH SS 19: 283; FALCO DE BENEVENTO. Chronicon Beneventanum:
93; OTO DE FREISING. Chronica sive Historia de Duabus Civitatibus. MGH SS rer. Germ. 45: 347.
408 coLunas de são pedro

mação da excomunhão era o prelúdio de uma mobilização militar encorajada


com votos de cruzada: Inocêncio garantiu aos que pegassem armas contra
Rogério a mesma indulgência antes concedida por Urbano II aos que tomas-
sem o caminho da luta pela libertação de Jerusalém. O pontífice prosseguia
com o propósito de disseminar ao máximo o dever de enfrentar o normando.
Dois anos antes, ele e o imperador Lotário investiram o conde Rainulfo com o
ducado da Apúlia, uma terra da qual nenhum dos dois dispunha, já que toda
aquela região fora incorporada ao reino da Sicília. Porém, aquela concessão
nada tinha de desproposital: declarando santa a luta do conde para reaver
seus domínios, Inocêncio tentava torná-lo um modelo a ser seguido. Se a con-
duta de Rainulfo fosse imitada por outros aristocratas o sul peninsular seria
devolvido à situação anterior a 1127, quando Rogério absorveu os ducados e
condados comandados por vassalos da Sé Apostólica (LOUD, 2007: 154-155;
MATTHEW, 1992: 33-49; HOUBEN, 2002: 60-76).
Três semanas após a renovação do anátema, tropas papais invadiram
o principado de Cápua. A incursão terminou tragicamente. Derrotado em
Galluccio, no dia 22 de julho, Inocêncio caiu prisioneiro de Rogério, junta-
mente com muitos cardeais.41 Sete dias depois, o pontífice se viu obrigado a
assinar um pacto em Mignano reconhecendo a legítima existência do “reino da
Sicília” e a elevação de Rogério II como seu monarca. O acordo era igualmente
a confissão de um fracasso, pois reconhecer o novo reino significava admitir
a perda do valioso principado de Cápua, tradicional domínio de vassalos da
Igreja Romana engolido pelas conquistas sicilianas.
Embora o Liber Pontificalis oculte qualquer referência à humilhação so-
frida pelo papa, a Cúria demonstraria que o acordo era um ultraje. Eleito para
a mitra apostólica em 1143, Celestino II se recusou a confirmá-lo e negou, com
o respaldo de seu consistório, a consagração a qualquer bispo eleito para as
igrejas do novo reino. As medidas eram claras retaliações pela captura e prisão
de Inocêncio, segundo a Historia Pontificalis de João de Salisbury.42 Em 1144,
tão logo sucedeu a breve estada de Celestino sob o trono de Pedro, Lúcio II
exigiu a restituição do principado de Cápua e elevou a temperatura das rela-
ções entre os dois poderes ao enviar tropas para a Campagna romana. Lúcio
tentava persuadir o “senhor da Sicília”. Por sinal, esta forma de tratamento
deixava explícita a recusa papal em reconhecer o status monárquico de Rogé-
rio. Porém, o papa recuou diante da oferta de uma trégua de sete anos. A paz
na borda meridional do Patrimônio apostólico calhava com a necessidade da
Sé Romana de voltar suas atenções para as ações da comuna.
41
ANNALES CAVENSES. MGH SS 3: 192; ANNALES CECCANENSES. MGH SS 19: 283; ROMUALDO
DE SALERNO. Annales. MGH SS 19: 423.
42
JOÃO DE SALISBURY. Historia Pontificalis. CHIBNALL: 65-66.
Leandro duarte rust 409

Nos meses seguintes, o antipapalismo do “Senado restaurado” e o fra-


casso de uma nova cruzada debilitaram a autoridade de Eugênio III (PHILLIPS
& HOCH, 2001: 32-53). João de Salisbury narra um episódio emblemático da
vulnerabilidade do papado:

Ocorreu que após o concílio [de Reims, 1148], enquanto o papa estava
celebrando a missa na igreja maior e, segundo o costume romano, o cáli-
ce estava sendo trazido a ele por seus auxiliares, um deles foi descuidado
o suficiente para derramar o sangue do Senhor sobre o tapete diante do
altar. O que fez com que todos ficassem consternados. O papa enviou
seu chanceler, o cardeal diácono Guido de Pisa, para cortar o pedaço do
tapete sobre o qual o sangue tinha sido derramado e colocá-lo entre as
outras relíquias (...). A despeito disso, os mais sábios ficaram alarmados,
pois a opinião dominante era que tal episódio jamais poderia ocorrer
em alguma igreja a menos que um grave mal a ameaçasse; e desde este
tempo a Sé Apostólica, na qual estava envolvida toda a igreja, pareceu
estar em perigo. (...) Pois naquele mesmo ano Conrado, rei dos romanos,
e Luís, rei cristianíssimo dos francos, mal escaparam com vida da aniqui-
lação de seus exércitos pelos sarracenos.43

Com o sagrado o acusando, Eugênio III se empenhou para converter o


armistício com o normando em um compromisso durável. A partir de 1148 o
papado multiplicou as concessões, em busca do entendimento com Rogério.
Capitulou quanto às consagrações de bispos normandos. Outorgou vistoso pri-
vilégio a uma abadia intimamente ligada à família de Rogério: Eugênio enviou
à corte siciliana uma bula assegurando ao abade de São João dos Eremitas –
estabelecimento da qual o siciliano era patrono – o direito de portar a mitra,
a dalmática, o anel e outras insígnias caracteristicamente episcopais (LOUD,
2007: 162; LOUD, 2002: 171-173).
Dois anos depois, as negociações frutificaram. Em Ceprano, na borda
setentrional dos domínios sicilianos, uma nova paz foi estabelecida. Contu-
do, não se deve superestimá-la: “o que foi concluído em Ceprano, efetivamente,

43
Acccidit autem post concilium cum dominus papa missam in maiori ecclesia celebraret, et ei pro
more romano calix afferretur a comministris, quod sanguis Domini nescio quam ministrorum negligen-
tia effusus est super tapetum ante altare. Unde omnes plurimum conturbati sunt. Sed dominus papa
misit Guidonem Pisanum diaconum cardinalem et cancellarium, et fecit illam tapeti partem in quam
sanguis ceciderat abscindi, inter alias relíquias reponendam (...). Sed hec res sapientiores plurimum
terruit, optinente indubitata opinione quod huiusmodi res in nulla contingit eeclesia cui non immineat
undecumque grave periculum, et quia hoc in apostolica sede contigerat, universalis ecclesie periculum
timebatur (...). Eodem enim anno Conradus rex Romanorum et Christianissimus rex Francorum Ludo-
vicus, deletis exercitibus eorum a Sarracenis. JOÃO DE SALISBURY. Historia Pontificalis. CHIBNALL: 1.
410 coLunas de são pedro

nada mais foi do que uma continuação da trégua existente” (LOUD, 2007: 162).
Os acordos se enfileiravam – 1139, 1144 e, agora, 1150 –, sem, contudo, levar
a termo o permanente clima de tensões que rondavam o sul da península.
Prova disso foi o mesmo Eugênio ter tirado proveito do já mencionado pacto
de Constance para atar o recém-eleito rei germânico, Frederico I, à promessa
de auxiliá-lo a proteger as regalia de Pedro dos sicilianos. Pouco tempo depois,
Rogério faleceu. Todavia, a Cúria continuava a negar ao seu filho e sucessor o
título de monarca, como testemunhou o arcebispo Romulado de Salerno: “o
papa continuava a designar Guilherme como senhor da Sicília, não rei”.44
Acomodações forçadas e tréguas franzinas mantinham em estado la-
tente a oposição da Cúria à elevação da Sicília a reino, obra do “cismático”
Anacleto. Mas, a resistência foi novamente atiçada pela sucessão papal. No
ano de 1154 o cardeal Nicolau Breakspeare foi eleito Adriano IV. Inclinado a
manter a aliança com a corte dos Hohenstaufen, o novo papa martelou, mais
uma vez, a recusa ao estatuto régio das terras sicilianas. Ao compor a Gesta
Dei per Francos, Guilherme de Tiro lamentou ao saber que as relações entre o
papa e o mandatário da Sicília “nasciam da inimizade e que as coisas avança-
vam rumo ao ódio manifesto, à guerra funesta e para a sentença de excomunhão
a ser lançada”.45
Em resposta, Guilherme I seguiu os passos do pai e invadiu os territó-
rios pontifícios em Benevento. Quase vinte anos tinham se passado e a Cú-
ria permanecia às voltas com hostilidades típicas da era inocenciana. Porém,
desta vez, uma revolta baronial deflagrada na Apúlia libertou a cidade do
jugo normando, oferecendo a Adriano a oportunidade para urdir uma rea-
ção. Excomungado,46 o siciliano viu seus rivais se unirem em coalizão sob os
estandartes de São Pedro: aos revoltados da Apúlia juntaram-se nobres como
Roberto III de Cápua, André de Rupecanina e Robert de Loritello; além de
uma flotilha bizantina capitaneada por Miguel Paleólogo, João Ducas e Aleixo
Comeno (HOUBEN, 2002: 168-169; MATTHEW, 1992: 62-66; LOUD, 2002:
173-174).
Contudo, sem o suporte germânico prometido em Constance, a coliga-
ção dobrou-se aos exércitos da Sicília e Calábria em Brindisi, na tarde de 29 de
maio de 1155. O desastre foi completo. Triunfantes em Brindisi, as tropas de
Guilherme I rumaram para o coração da revolta: Bari. A maior cidade Apúlia

44
Papam ipsum non regem, sed Wilhelmum dominum Siciliae nominabat. ROMUALDO DE SALERNO.
Annales. MGH SS 19: 428.
45
His autem diebus inter dominum Papam Adrianum et regem Siciliae dominum Wilelmum (...) gra-
ves ex causis quibusdam ortae erant inimicitiae, ita quodusque ad odium manifestum et guerram
noxiam prodierat res, ita ut sententiam excommunicationis dominus papa in eum iacularetur. GUI-
LHERME DE TIRO. Gesta Dei per Francos. WATTERICH 2: 340.
46
CARDEAL BOSO. Vita Adriani IIII. Liber Pontificalis 2: 390.
Leandro duarte rust 411

foi saqueada e deixada em ruínas. No intervalo entre as duas vitórias, a floti-


lha bizantina foi destruída. Grande parte dos rebeldes apulianos foi captura-
da. Roberto de Cápua foi entregue aos sicilianos por seus próprios vassalos.
Miguel Paleólogo morreu em Bari, onde João Ducas e Aleixo Comeno caíram
como prisioneiros (BOLTON & DUGGAN, 2003: 113-117).
Derrotado, restava a Adriano a busca por uma conciliação, uma rendi-
ção esculpida na forma de oferta de paz. Os termos impostos por Guilherme
em Benevento “foram duros o bastante para o papado engolir” (BOLTON &
DUGGAN, 2003: 118). Adriano teve de reconhecer seu algoz e todos os her-
deiros dele como “reis da Sicília”, além de confirmar as conquistas territoriais
normandas – cuja extensão incluía terras subtraídas por Rogério II à prote-
ção apostólica. O pontífice deveria contentar-se com uma homenagem lígia
prestada pelo novo monarca e com o pagamento de um tributo anual. A esta
imposição, seguiram-se outras exigências:

Excluído todo subterfúgio, [o papa] sustentará junto à Cristandade a


coroa que foi providenciada para que retenhamos, de modo a realizar ou
amparar nossa magnificência ou a de nossos herdeiros. A igreja romana
igualmente conservará os demais direitos que mantém em outras partes
de nosso reino, exceto aqueles de apelação e legação, que não serão aí
exercidos, a não ser mediante nossa requisição ou [segundo a de] nossos
herdeiros. (...) Quanto às eleições, que assim se faça: o clero concordará
sobre uma pessoa e manterá secreta sua decisão até a reportarem a pes-
soa [escolhida] à nossa excelência. Após essa ter sido anunciada à nossa
alteza, se ela não for traidor ou inimigo para nós ou para nossos her-
deiros, nem for odiosa à nossa magnificência, nem estiver sob nenhum
outro impedimento por uma causa que nós não devamos consentir, nós
concederemos nossa aprovação à eleição. Vós garantireis a nós e ao du-
que Rogério, nosso filho e herdeiro, que deverá suceder ao reino através
de nossa vontade e determinação, o reino da Sicília, o ducado da Apúlia
e o principado de Cápua, com todas suas possessões, Nápoles, Salerno
e Amalfi com todas as suas possessões; Marsia e o que nós por direito
possuímos além de Marsia e as demais possessões que nós mantemos e
que foram justamente mantidas por nossos predecessores como homens
da sacrossanta igreja romana, e vós nos auxiliareis a conservá-los com
honra contra todos os homens.47

47
Magnificentia nostra autem nostrorumque heredum pro christianitate facienda vel pro suscipienda
corona remoto malo ingenio retinebit, quas providerit retinendas. Cetera quoque ibidem habebit Ro-
mana ecclesia, que habet in allis partibus regni nostri, excepta appellatione ac legatione, que nisi ad
peticionem nostram et heredum nostrorum ibi non fient. De ecclesiis et monasteriis terre nostre, de
412 coLunas de são pedro

A longa busca papal para bordejar seus domínios meridionais com prin-
cipados e ducados vassalos da Santa Sé despedaçava-se na consolidação da-
quele extenso reino que, para a Cúria, carregava a sombra de Anacleto. A
busca pela criação de um equilíbrio de poderes no sul peninsular, do qual a Sé
Apostólica seria o fiel da balança, ruía diante da proclamação da nova realeza
– que gozaria de estabilidade e paz internas pelos próximos quarenta anos.
As prerrogativas papais de receber apelações em questões e disputas
eclesiásticas, realizar consagrações e visitações e enviar legados à Apúlia, Ca-
lábria e outras regiões do reino foram reconhecidas pelo siciliano. Porém, esta-
vam desde já diretamente submetidas ao consentimento do monarca, que, de
chofre, impôs duros limites à condução das eleições episcopais. O acordo de
Benevento deu início a uma détente nas relações entre o papado e o reino da
Sicília, mas sob condições extremamente desiguais. Os selos depositados junto
ao seu pergaminho não estampavam a vitória de uma política pró-siciliana arti-
culada por um punhado de cardeais de dentro da própria Cúria, como quis Ian
Stuart Robinson (1990: 52-55). Eles representavam, como demonstrou Anne
Duggan (BOLTON & DUGGAN, 2003: 153), um amargo fracasso: aquele “‘tra-
tado’ foi o preço da derrota, não o prêmio de uma diplomacia anti-imperial”. As-
sinado pouco tempo depois do arrefecimento da luta contra a comuna romana,
este acordo evidencia que “politicamente falando, o papa não era senhor em sua
própria casa; e mesmo uma precisa definição do que constituía sua própria casa
estava aberta a dúvidas e a desafios” (BOLTON & DUGGAN, 2003: 109).
O domínio pontifício acumulava perdas e reveses nas áreas interiores
à própria Sé Apostólica. Em Roma ou nas cidades vizinhas, o clero papal vi-
via em alerta, perseguido pela insegurança. Para o bispo romano, habitar seu
próprio palatium era algo arriscado. Nos anos 1140 a 1160, a localização do
palácio episcopal de Roma no complexo de edifícios da Igreja de Latrão, cra-
vado na face sudoeste da muralha Aureliana, frequentemente traduzia-se em
isolamento; sem, no entanto, oferecer a proteção da cidadela leonina, que

quibus a Romana ecclesia quesito mota fuit, sic fiet: vos quidem et vestri successores in eis habebitis,
quod habetis in ceteris ecclesiis, que sub nostra potestate consistunt, que solite sunt accipere consecra-
tiones seu benedictiones a Romana ecclesia et debitos insuper et statutos ei census exsolvent. De elec-
tionibus quidem ita fiet: clerici convenient in personam idoneam et illud inter se secretum habebunt,
donec personam illam excellentie nostre pronuntiet. Et postquam persona celsitudinis nostre fuerit
designata, si persona illa de proditoribus aut inimicis nostris vel heredum nostrorum non fuerit aut
magnificentie nostre non extiterit hodious, vel alia in ea causa non fuerit, pro qua non debeamus as-
sentire, assensum prebebimus. Profecto vos nobis et Rogerio duci filio nostro et heredibus nostris, qui
in regnum pro voluntaria ordinatione nostra successerint, conceditis regnum Sicilie, ducatum Apulie et
principatum Capua cum omnibus pertinentiis suis, Neapolim, Salernum et Amalfiam cum pertinentiis
suis, Marsiam et alia que ultra Marsiam debemus habere et reliqua tenimenta, que tenemus a predeces-
soribus nostris, hominibus sacrossancte Romane ecclesie, iure detenta, et contra omnes homines adiu-
vabitis honorifice manutenere. PACTUM BENEVENTANUM INTER HADRIANUM IV. ET WILHELMUM
I. REGEM. MGH Const. 2: 588-590.
Leandro duarte rust 413

abrigava a basílica de São Pedro (KRAUTHEIMER, 1980: 52-58, 193-227).


No restante da península, que o bispo eleito tomasse seu assento episcopal
era conduta rotineira (MILLER, 2000: 86-122); em Roma, era motivo para
alvoroços e receios.
A insegurança papal pode ser cifrada. Eugênio III governou a Sé Ro-
mana entre 15 de fevereiro de 1145 e 8 de julho de 1154. De seu pontificado
chegaram-nos os registros de 1021 cartas, privilégios e concessões.48 Deste
conjunto, somente 69 foram expedidos no Palácio episcopal de Latrão. Pou-
co mais de 6% do total. Por muito pouco, a importância desta basílica e da
própria Roma como lugares de localização da autoridade apostólica não foi
superada por Paris ou Reims, onde, respectivamente, 54 e 49 decisões foram
lavradas. De fato, durante esta quase década, o governo papal era mais fre-
quentemente encontrado em uma domus alheia aos lugares de cultos apostó-
licos, como Segni (128 registros) e Viterbo (144 registros).
Após a morte de Anastásio IV – cujo berço romano entre a família dos
Suburra facilitara o diálogo com a República e a permanência no palácio late-
ranense (PARTNER, 1972: 188) –, novo agravante somou-se a este cenário. O
confronto com a coroa da Sicília forçou nova e prolongada ausência do bispo
romano. Dos 250 atos pontificais registrados entre a eleição de Adriano IV, em
4 de dezembro de 1154, e a confirmação do acordo de Benevento, em 18 de
junho de 1156, 96 foram datados em Benevento, 16 em Sutri, 4 em Viterbo,
nenhum em Latrão.49 Por dois anos, portanto, o espaço legítimo do exercício
das atribuições papais deslocou-se de Roma para o norte (Sutri) e de lá para o
sul da península (Benevento).
Este é um aspecto relevador. Entre os termos de paz impostos por Gui-
lherme I e acatados por Adriano estava a definitiva incorporação do principa-
do de Cápua e do ducado de Nápoles ao reino da Sicília. Até então atribuídos
a vassalos pontifícios, estes domínios flanqueavam o sul da península a oeste,
formando uma espécie de “corredor territorial” de influência pontifícia, uma
via de passagem que garantia livre acesso papal a Benevento. Aquelas eram
terras politicamente estratégicas. Em outubro de 1155, antes de partir para o
combate contra Guilherme I, Adriano IV recebeu a homenagem de Robert de
Sorrento como príncipe de Cápua. Homenagem peculiar, pois as terras que os
dois empenhavam em juras de lealdade estavam em mãos sicilianas: nenhum
deles as possuía. Com aquele pacto o papado expressava a importância vital
daqueles domínios, negando-se a admitir sua perda para o reino normando
(MATTHEW, 1992: 63-65).

48
JL 8714 – 9735.
49
JL 10193 – 9943.
414 coLunas de são pedro

Além de integrar os Patrimonia beati Petri desde 1051, por oito meses
(novembro 1155 até junho de 1156), Benevento abrigou ininterruptamente a
Cúpula romana. Portanto, ao reconhecer os novos limites da monarquia sici-
liana o papado viu um dos principais pontos de exercício da autoridade apos-
tólica ser engolido pela nova extensão dos domínios dos senhores normandos.
A recente sede da política pontifícia, Benevento, estava agora cercada, ilhada
entre as terras de um regno combatido pelo próprio papado há três décadas.
Poderíamos dizer, com as palavras da historiografia vigente, que o governo
apostólico perdeu o livre acesso a uma de suas “capitais”. Com a mobilidade
da Cúria assim tolhida, restava a Adriano o retorno para o inseguro interior
das muralhas romanas, pacificado a fio de espada por tropas imperiais.
Eis aí algo que tem passado despercebido. Os pontificados de Eugênio
III e Adriano IV partilharam a mesma característica: a drástica redução do po-
der temporal da Sé Romana em seu cerne, isto é, em lugares onde era estabe-
lecida a Cúria papal. Ambos acumularam reveses em uma das “sedes do bem-
aventurado Pedro” (sedi beati Petri): o primeiro, em Roma; o segundo, em
Benevento. A fragilidade do controle pontifício sobre seus próprios domínios
ganhava relevos evidentes: a presença do papa era incerta lá onde se instalava
o “limiar dos apóstolos” (limina apostolorum). Logo, tornou-se vital fortalecer
a dominação exercida naquelas paragens. Era necessário restaurar a “família
do bem-aventurado Pedro” (novam beati Petri familiam).50 Saltou ao primeiro
plano das prioridades papais assegurar um controle efetivo e duradouro dos
acessos às suas cidades-sede.
Tal realidade alterou o modo dos papistas lidarem com uma exigência
considerada pelos historiadores o coração das identidades clericais medievais
e um princípio inviolável da “Reforma”: a sacralização dos rendimentos ecle-
siásticos (MORSEL, 2008: 161-164). A força das circunstâncias levou os altos
escalões da Igreja romana a ultrapassar os limites criados pela sacralidade da
riqueza clerical e destiná-la a fins menos sublimes, a propósitos menos celes-
tiais. Diante dos altíssimos riscos políticos e das perdas materiais enfrentadas,
o clero papal não mais ofereceu resistência ao desvio de rendas originalmente
reservadas para a caridade, a manutenção do serviço divino e a libertação de
cativos. Na realidade, foi com seu consentimento ou omissão que elas agora
jorravam para o pagamento de tropas e a ampliação do poderio militar da Sé
Romana. As exigências seculares eram incontornáveis.
O papado embrenhou-se nisto que foi visto como um “abuso do poder
eclesiástico” (abusione potestatis ecclesiastice).51 Em 6 de dezembro de 1146,

50
CARDEAL BOSO. Vita Adriani IIII. Liber Pontificalis 2: 393.
51
GERHOH DE REICHERSBERG. De Investigatione AntiChristi libri III. MGH Ldl 3: 355-356.
Leandro duarte rust 415

a Santa Sé comprou, por uma “soma de 200 libras” a fortaleza pertencen-


te a Gerardo, conde de Vetralla conhecida por “Petroniana”.52 Este castrum
permitia incrementar a proteção de uma cidade papal – Viterbo, da qual era
vizinho – e vigiar a via Cassia, acesso romano à Toscana e Ligúria. Cinco anos
depois, apoiado pelos cônsules de Roma – sobretudo os Frangipani –, Eugênio
III adquiriu metade da cidade e fortaleza de Tusculum, concedendo, em troca,
“o direito de posse sobre toda a fortificação de Trevi, 110 libras de denarius de
Pávia, 140 libras de denarius de Lucca”.53 Além de metade da cidade, Odo Co-
lonna transferiu para o papa os castra de Monte Porzio e Monte Fortini, em 10
de dezembro de 1151. Com isso, a igreja romana passou a partilhar, mediante
o aval e a cooperação senhoriais, do controle sobre o principal ponto de vigi-
lância da via Latina e do Valle Latino.
Ainda em 1151, Rainério, camerarius papal, arrematou junto a certo
“Giordano da Bruzo” a Ponte Lucano juntamente com as terras adjacentes. Lo-
calizada na via Tiburtina, sobre o curso do Aniene, a ponte, solidamente guar-
necida, dava acesso a Tívoli,54 cidade que há muitos anos era alvo de incursões
militares do “povo romano”. Entre a primavera de 1150 e o outono de 1152,
Eugênio ergueu um palácio de Segni.55 No mesmo período, ele recuperou a
fortaleza de Fumone, cujos paredões projetavam uma imensa sombra sobre
Alatri, Ferentino, Anagni, próximos ao curso da via Casilina. Esta estrada, que
descia o Lácio meridional a partir da Porta Maior das muralhas romanas, era
o esteio de uma grande parte das comunicações entre a Campagna romana e
Marittima (PARTNER, 1972: 187).
Em maio de 1153, o abade beneditino de São Salvador in Monte Amia-
ta, chamado Rainério, transferiu para Eugênio e seus sucessores a metade do
castrum de Radicofani e o burgo de Calamala, mediante o cumprimento de um
censo de “6 marcos de pura prata por cada mês”.56 Da mesma forma que a for-
taleza Petroniana, a nova aquisição papal estava estrategicamente localizada
na borda da via Cassia.
As aquisições papais surgem entremeadas por esta característica comum
de fincar enclaves de dominação sobre as principais vias de acesso à Roma e

52
Summa ducentarum librarum. DE PETRONIANO PRO CC LIBRIS OBLIGATO PIGNORI ROMANAE
ECCLESIAE. Liber Censuum 1: 381; Italia Pontificia 2: 207.
53
Totum castrum Trebani proprietario jure et centum decem libras denariorum paiensium et CXL li-
bras denariorum lucensium. In: EXEMPLUM CARTULE PERMUTATIONIS ET EMPTIONIS DE INTEGRA
MEDIETATE CIVITATIS TUSCULANI ET MONS PORCULI ET MONS FORTINI. Liber Censuum 1: 382-
383, Italia Pontificia 2: 39.
54
Italia Pontificia 2: 79.
55
Italia Pontificia 2: 158.
56
Sub Censu 6 marcarum puri argenti singulis mense. Italia Pontificia 3: 241; EXEMPLUM CARTULE
DONATIONIS ET LOCATIONIS DE INTEGRA MEDIETATE CASTRI RODICOFANI. Liber Censuum 1: 380-
382.
416 coLunas de são pedro

outras sedes do poder apostólico. Tais transações sugerem ações pontuais,


construídas caso a caso, não um plano bem articulado, planejado, regularmen-
te colocado em prática por força de um “programa reformador”. O que estava
em jogo não era a formação de uma territorialidade homogênea, isto é, um
“Estado Pontifical” (TOUBERT, 1973: 1039).
Sem dúvida, aquelas ações estavam presas a um mesmo propósito. Mas
a razão que as guiava era outra. As localizações das propriedades e fortalezas
adquiridas indicam que o papado perseguia a concretização de um objetivo
prático e emergencial, que pouco lembra as preocupações de alguma espiritu-
alidade reformadora: isolar a cidade de Roma através do controle dos veios de
abastecimento e acesso a ela. A Cúria parece ter aprendido a lição dada pela
comuna e se lançou a uma política de bloqueio das vias de comunicação liga-
das àquele centro de antipapalismo. Propósito mantido bem vivo por Adriano
IV, segundo o Liber Pontificalis:

Ele muitíssimo aumentou o patrimônio do bem-aventurado Pedro com


grandes possessões e edificações. Comprou a fortaleza de Corchiano dos
Boccaleoni por 140 libras affotiatorum. Ele comprou ainda dois exce-
lentes moinhos em santa Cristina de Hildebrando e Bernardo, filhos de
Ugolino, conde de Calmangiare por 190 libras do mesmo dinheiro. Ele
recebeu a rocca de Santo Stefano com metade de Proceno e Ripesena
dos mesmos condes em penhor por 148 libras de affortiatorum e cinco
solidos. Por espontânea doação destes, ele recebeu na herança do bem-
aventurado Pedro todas as terras dos mesmos condes, na forma contida
em seu instrumento público depositado nos arquivos. Da mesma manei-
ra e no mesmo sentido, ele adquiriu todas as terras de Odo di Poli como
perpétua herança do bem-aventurado Pedro. Ele construiu uma torre
redonda na fortaleza de Radicofani, protegida por torreões e um fosso
profundo. Para garantir a paz e a segurança daquela terra, ele restabele-
ceu a deserta fortaleza de Orcia, que era covil de ladrões, e fortificou-a
com muros e torres, não com grande gasto. Na Ponte Lucano, ele orde-
nou que fosse feita uma capela, à qual ele doou um cálice de seis onças,
um sino, livros e vestimentas sacerdotais para a celebração da missa.
Ele comprou próximo da mesma ponte duas medidas de terra da esposa
de João de Benedito, cidadão de Tívoli, por 7 libras de affortiatorum; e
uma medida de Rinaldo por 28 solidos affortiatorum; um moinho e meio
de Gregório e Milo de Valmontone por 25 solidos de dinheiro de Pávia.
Ainda próximo à ponte, ele comprou seis medidas de terra de Odo de
Insula e sua esposa por 24 libras affortiatorum; além disso, ele comprou
metade de quatro fortalezas, Castiglione Teverino, Cinigiano, Canepina
Leandro duarte rust 417

e Bulsignano, [adquiridas] das filhas de Rainaldo de Guardea, por [*]


libras affortiatorum.57

Entre 1154 e 1159, o papado investiu na fortificação e ampliação do


patrimônio material das aquisições obtidas nos anos anteriores. Em Viterbo,
a fortaleza de Radicofani recebeu a guarida de um “fosso profundo” e a ele-
vação de uma “torre redonda”, além do suporte de outra torre construída no
pináculo do vale d’Orcia, ponto nevrálgico do controle sobre a via Francigena,
conhecida rota norte de peregrinação a Roma.
Servindo-se das dificuldades monetárias da nobreza, em 1158, o papa-
do conseguiu que Gezo de Damiano lhe entregasse suas possessões em Orcia
para o papado, por 3000 marcos de prata.58 Nesse mesmo ano, a influên-
cia pontifícia na região intensificou-se. O castrum de Corchiano e metade das
fortificações de Castiglione, Cinigiano, Canepina e Bulsignano se juntaram à
cidadela “Petroniana” e às terras de Vetralla, já adquiridas por Eugênio III em
1153, que comprou a fortaleza de Gerardo de Vetralla e, pouco depois, rece-
beu do filho deste as possessões constituíntes da herança paterna.59 O controle
papal sobre os flancos da via Cassia consumava-se.
O retorno de Orvieto para o controle apostólico, ocorrido em 1156, foi
formalizado com a homenagem lígia e a fidelidade jurada a Adriano IV pelos

57
Hic beati Petri patrimonium in magnis possessionibus et edificiis plurimuma ugmentavit. Compara-
vit enim castrum Corclani a Baccaleoni por CXL libris affortiatorum. Duo quoque optima molendina
posita apud Sanctam Christinam ab Ildebrando et Bernardo, filius Ugolini comitis de Calmangiare, pro
CXC libris eiusdem monete nichilominus comparavit. Roccam Sancti Stephani cum medietate Proceni
et Repeseni ab eisdem comitibus in pignore pro CXLVIII libris affortiatorum et V solidos, eo tenore quo
scriptum est in publico eorum instrumento quod est in archivis respositum, in propriam beati Petri
hereditatem per ipsorum spontanem donationem recepit. Eodem quoque modo et eodem tenore totam
terram Odonis de Poli in perpetuam sancti Petri hereditatem nichilominus acquisivit.Hic fecit gironem
in castro Radicophini, turribus munitum et alto fossato. Desertum quoque Orcle castrum, quod erat
spelunca latronum, pro pace ac securitate illius terre populavit, et muros ac turribus non sine multis
expensis munivit. In ponte Lucano capellam fieri fecit, in qua calicem VI unciarum, campanam, ibros
et sacerdotia indumenta pro missarum celebratione donavit. Emit etiam juxta ipsum pontem ab uxore
Iohannis de Benedicto, vice Tuburtino, duos modios terre pro VII libris affortiatorum; et unum modium
et dimidium pro XXVIII solidis affortiatorum; a Gregorio quoque et Milone de Valle Montonis unum
modium et dimidium pro XX solidos papiensis monete. Emit etiam juxtra ipsum pontem VI modios ter-
re ab Oddone de Insula et uxore eius pro XXIIII libris affortiatorum; preterea medietatem IIII castrum,
Castillionis videlicet, Cincigniani, Canapine et Bulsigniani emit a filiabus Raynaldi de Guardea pro [*]
libris affortiarum. CARDEAL BOSO. Vita Adriani IIII. Liber Pontificalis 2: 396.
58
TRANSCRIPTUM CARTULE TRANSCTIONIS QUAM FECIT GEZZO DE DAMINO DOMNO PAPE
ADRIANO SUPER QUIBUSDAM POSSESSIONIBUS ET REBUS POSITIS IN CASTRO DE ORCLA. Liber
Censuum 1: 395-396.
59
Italia Pontificia 2: 207; INSTRUMENTUM CASTRI VETRALLI DOMNI EUGENIO PAPE CONCESSI.
Liber Censuum 1: 383. No dia 4 de agosto de 1158, Boccaleone, senhor de Corchiano, vendeu esse
lugar ao papado. Vinte e seis dias depois, Stéphanie, sua esposa, renunciou “spontaenaque mea vo-
luntate pro redemptione anime mee” a todos seus direitos sobre a fortificação. DE ADQUISITIONE
CORCLANI. Liber Censuum 1: 385-387.
418 coLunas de são pedro

cônsules da cidade, retribuída com “trezentas libras affortiatorum” (pro be-


neficio CCC libras affortiatorum).60 O governo pontifício estendeu-se para os
arredores da própria Roma quando Aldebrandino e Bernardino, herdeiros do
conde Ugolino de Calmangiare, concederam à Santa Sé a rocca de Santo Ste-
fano e as parcelas de localidades que compreendiam Orzoli, Collelongo, Santa
Cruz, Santa Lúcia, Ripesena e outros, em 11 de outubro de 1157.61
As aquisições papais nas áreas interioranas de Tívoli multiplicaram-se.
Entre junho e julho de 1155, o cinturão agrícola da Ponte Lucano foi ampliado
através da compra de “medidas de terra” e “moinhos”.62 Uma capela foi aí eri-
gida para assegurar a presença sacerdotal. Anos depois, expressivas doações
consolidariam o mando pontifício nas regiões próximas. Em janeiro de 1157,
Odo, conde di Poli legou ao papa e seus sucessores todas as suas terras, que
compreendiam Poli, Fustignano, Rocca de Nibli, Anticoli de Campagna, Mon-
te Manno, Guadagnolo, Saracinesco, Rocca de Muri, Castel Nuovo.63 Em 18
de abril de 1159, Rainaldo Sinibaldi de Donodei seguiu o exemplo e conce-
deu “ao apóstolo Pedro” os bens móveis e imóveis de todo o seu patrimônio,
que incluía Santa Maria de Canneto, Pomonte, Castel Ugo, Mollagara, Campo
Maior.64 De maneira semelhante, nesse mesmo mês, João Roncione e seu ir-
mão doaram ao papa, e a todos seus sucessores, o “senhorio sobre a fortaleza
de Riano”, localizada entre as vias Flaminiana e Tibertina.65
A roda de proa da ampliação territorial do poder temporal papal persis-
tia a mesma: a aquisição e fortificação de possessões estratégicas nos acessos
a Roma. Em 8 de abril de 1157, Cêncio Frangipani, João Pierleoni e outros no-
bres testemunharam novo episódio emblemático. Na ocasião, Adenolfo, Lan-
dolfo e Lando, filhos de Pandulfo de Aquino, transferiram para a Sé Apostólica
a sexta parte de duas castelanias localizadas em Monte Libretti – uma intacta,
a outra em ruínas –, em troca da sexta parte da fortaleza de Monte São João,
nas cercanias de Ceprano. Aparentemente, na mesma data, Rainério de Aqui-
no seguiu os mesmos passos: cedeu ao papado sua metade da castelania de

60
SCRIPTUM CONVENTIONIS INTER DOMNUM ADRIANUM PAPAM IIII ET URBEVERTANOS. Liber
Censuum 1: 390-391; Italia Pontificia 2: 226; CARDEAL BOSO. Vita Adriani IIII. Liber Pontificalis 2:
393.
61
ALIUD TRANSCRIPTUM CARTULE QUAM PREDICTI COMITES J. E B. TOTA TERRA SUA BEATO
PETRO ET DOMNO PAPE FECERUNT. Liber Censuum 1: 388-389.
62
Italia Pontificia 2: 80.
63
TRANSCIRPTUM CARTULE ODDONIS DE POLI DE TOTA TERRA SUA QUAM B. PETRO ET SANCTE
ROMANE ECCLESIE IN PROPRIETATEM DONAVIT IN PERPETUUM. Liber Censuum 1: 387.
64
TRANSCRIPTUM CARTULE DE DONATIONE RAINALDI SENIBALDI DE OMNIBUS BONIS SUIS.
Liber Censuum 1: 397-198; Italia Pontificia 2: 71.
65
INSTRUMENTUM QUOD JOHANNES RONCIONE ET B. FRATER EIUS ADRIANO PAPE ET ROMANE
ECCLESIE CASTRUM DE RAMAIANO DEDERUNT. Liber Censuum 1: 396.
Leandro duarte rust 419

Monte Libretti por metade do castelo de São João. 66 A Santa Sé cedeu parte de
seu domínio sobre um castrum situado na fronteira do reino siciliano (territo-
rio Campaniano) por direitos senhoriais sobre um forte localizado no interior
da Sabina, especificamente na junção entre as vias Salaria e Palombarense.
Se Adriano IV alimentava um “plano para intensificar o número e a den-
sidade das fortificações papais no patrimônio” (BOLTON & DUGGAN: 2003:
174), o propósito que o guiava era simples: assegurar para a Cúria o controle
dos acessos à mais antiga sede apostólica, Roma. Um padrão perpassa as ações
do papado: viabilizar o controle de pontos chave da comunicação entre Roma
e o centro peninsular, sobretudo com as cidades onde frequentemente residia
a Cúria, como Viterbo, Tusculum, Orvieto, Segni. O alvo de tais ações era do-
minar espaços de mobilidade, isto é, os principais corredores de deslocamento
humano. Trata-se muito mais de um poder a ser exercido sobre os homens do
que sobre o espaço em si, sobre um “território”. O papado aprendera a lição
duramente ensinada pelos normandos: o isolamento do Benevento não pode-
ria se repetir.
Peça a peça, os êxitos pontifícios reuniam práticas de cooperação se-
nhorial. Afinal, as jurisdições senhoriais preexistentes não eram anuladas com
tais aquisições, mas antes legitimadas. Outro exemplo: no mesmo em dia em
que o conde de Poli cedeu ao papado suas terras, os cardeais Boso e Rolando
– respectivamente camerarius e cancellarius da Sé Romana – investiram-no, e
a seus herdeiros, de todo o patrimônio que acabavam de doar.67 Homem lígio
do papa, Odo de Poli continuaria a usufruir de seus bens e direitos, agora
abrigados no interior da proteção apostólica e do dever de permanecer fiel
aos papas.
Exemplo seguido pelos filhos de Ugolino, o importante conde de Cal-
mangiares. Os castra transferidos para os pontífices nas cercanias de Viterbo
continuaram em seu poder mediante uma promessa de lealdade.68 Circunstân-
cias que se repetiram em setembro de 1158, ocasião em que um certo Ade-
nolfo entregou “ao bem-aventurado Pedro” o castelo de Aquapuzza, próximo
à Igreja de Sezze, e recebeu-o imediatamente de volta, como feudo (feodum),
após “prostrar-se aos pés do senhor papa em consistório e prestar homenagem
e fidelidade”.69 Um pouco antes, no dia 8 de julho, Jonatas, filho de Tolomeu

66
EXEMPLUM CARTULE PERMUTATIONIS DE BRITTIS ET MONTE SANCTI JOHANNIS. Liber Cen-
suum 1: 391-392; EXEMPLUM CARTULE DE EADEM RE. Liber Censuum 1: 391-392.
67
Italia Pontificia 2: 81.
68
ALIUD TRANSCRIPTUM CARTULE DOMNI PAPE DE EADEM TERRA QUAM EISDEM COMITIBUS
IN BENEFITIUM CONCESSIT. Liber Censuum 1: 389.
69
... protravit se ad pedes domni pape in consistorio (...). Fecit etiam ei hominium et fidelitatem
sibi. HOC TEMPORE, ANNO VIDELICET MCLVIII, INDICTIONE VI, V KALENDAS OCTORBRIS, QUOD
AQUA PUTIDA JURIS BEATI PETRI SIT, ET IN FEUDUM CONCESSA. Liber Censuum 1 : 427.
420 coLunas de são pedro

II, conde de Tusculum, havia prestado espontaneamente (spotanea voluntate),


um juramento similar. Além da fidelidade, prometida a Adriano IV “contra to-
dos os homens” (contra omnes homines), exceto contra o imperador, ele cedeu
por dois anos as fortalezas de Montefortino e Faiola para Raniero de Veczo
e Berardo de Anagni, aliados pontifícios. Em retribuição, ele recebeu como
feudo (feodum) a parcela da cidade de Tusculum possuída pelo papado, que
deveria reavê-la intacta após sua morte.70
No bojo das terras integrantes do “Patrimônio de São Pedro”, a Cúria
fomentou uma ampla partilha do “livre poder de introduzir, conservar, possuir,
comandar e usufruir” das riquezas aí existentes.71 Embora tivesse sido reincor-
porada por Eugênio “às regalia após longo tempo perdida para o bem-aventu-
rado Pedro”,72 Terracina permanecia submetida à hegemonia da aristocracia
centro-peninsular, mais precisamente aos Frangipani. Para obter a fortaleza de
Ninfa – situada às margens da via Appia, na borda superior da diocese de Ter-
racina – foi preciso que o papa desembolsasse 80 libras em denarius de Lucca
e os oferecesse a Cêncio Frangipani e seus irmãos. Os registros documentais
asseguram que o acordo envolvia não somente o líder da família Frangipani.
Na verdade, ele foi extensivo a todos os principais membros daquela estirpe,
como constata-se na distinção dos nomes dos envolvidos: “Eugênio III obteve
de Cencio Frangipani, Oddo, Cencio e seus parentes, a fortaleza de Ninfa”.73
Os exemplos se sucedem. Em agosto de 1158, o praefectus Pedro, seus
irmãos João e Otaviano, Pedro Johannis, João Uguccionis e sua mãe, além de
Pedro de Atteia e João Capparone receberam de Adriano IV a soma de “2.000
marcos de prata” (duobus milibus marcarim argenti) além dos direitos pontifícios
sobre Civitá Castellana e Montallo.74 À primeira vista, a concessão pode soar
como uma perda ou diminuição da influência papal. Afinal, aristocratas pu-
nham suas mãos em sítios estratégicos para a Sé Romana. Sobretudo o primeiro
deles. Pois, localizada na via Flaminia, Civitá Castellana abrigava uma igreja
episcopal vizinhança às costumeiras residências apostólicas de Sutri e Nepi.
Todavia, não se tratou, de fato, de uma transferência de poderes. As
centenas de marcos de prata e os direitos senhoriais constituíam a forma en-
contrada por Adriano para ressarcir o prefeito da Urbe e seus colaboradores
70
DE MEDIETATE CIVITATIS TUSCULANI DATA JONATHE IN FEODUM QUE POST MORTEM EIUS
DEBET AD ROMANAM ECCLESIAM LIBERE REVERTI. Liber Censuum 1 : 399-400.
71
Libera facultas introduendi, habendi, possidendi, tenendi, fruendi. EXEMPLUM CARTULE PERMU-
TATIONIS ET EMPTIONIS DE INTEGRA MEDIETATE CIVITATIS TUSCULANI ET MONS PORCULI ET
MONS FORTINI. Liber Censuum 1: 382-383.
72
Regalia multa longo tempore amissa beati Petro restituit. Italia Pontificia 2: 119.
73
Eugenius III obligat Cencio Frangipani et O(ddoni) et C(encio) eius nepotibus castrum Ninphae.
Italia Pontificia 2: 192.
74
QUOD PREFECTO URBIS ET COADJUTORIBUS, SUIS SATISFACTUM EXTITIT DE DAMPNIS ET
INJURIIS PASSIS PRO ROMANA ECCLESIA DEFENDENDA. Liber Censuum 1: 425-426.
Leandro duarte rust 421

pelos muitos “danos, móveis e imóveis, contraídos por ocasião da guerra movida
contra o povo romano em favor da igreja romana”.75 Compensavam, portan-
to, uma lealdade e uma solidariedade já postas à prova. Civitá Castellana e
Montallo mudavam de mãos, mas permaneciam na órbita dos poderes vin-
culados ao governo papal. Por tal razão, os homens citados nesse registro
receberiam outros bens apostólicos naquela área: cerca de três dias depois do
pacto, Adriano transferiu para o prefeito Pedro – bem como aos irmãos e os
colaboradores desse –, prerrogativas senhoriais em Casamala, recebendo em
troca a quantia de 30 marcos de prata. A localidade em questão está desapa-
recida, mas, no século XII, situava-se nas cercanias de Nepi, de acordo com
indicações do Liber Censuum.76
Os frequentes casos de aquisição de domínios fracionados revelam que
a ampliação das áreas diretamente submetidas ao poder temporal da Igreja
romana ocorria por meio da composição de uma territorialidade heterogênea
e plural, marcada por um parcelamento de co-senhorios. Após um século de
conflitos insistentes, a consolidação dos domínios papais avançava sem acar-
retar prejuízos ao poder das famílias aristocráticas locais (TOUBERT, 1973:
1079-1081). Na realidade, uma forte imbricação surgia entre eles, sustentan-
do uma forma de solidariedade no controle exercido sobre terras e homens.
Eis a razão por trás das numerosas doações ofertadas pelos grandes do centro
peninsular ao papado: reconheciam no bispo de Roma alguém atrelado à ma-
nutenção e proliferação das linhagens senhoriais do Lácio. Para sustentar esta
aliança, os pontífices selecionavam para o posto de rector das terras submeti-
das à autoridade apostólica cardeais oriundos da própria aristocracia local. Na
maioria das vezes, tratava-se daqueles que chegavam à Cúria após se destacar
na gestão local à frente de um monastério ou bispado (TOUBERT, 1973: 1057-
1059). Esta fórmula era conhecida há décadas no além Alpes: foi assim que
muitos legados foram recrutados.
Os historiadores concordam em apontar os governos de Eugênio III e
Adriano IV como um divisor de águas na história dos “Estados Pontifícios”.
Segundo Daniel Waley (1961: 12), as ações que o Liber Pontificalis atribui a
Adriano IV “são relíquias do que provavelmente foi a primeira séria tentativa
de um papa para assegurar uma base firme e permanente para o governo pa-
pal no patrimônio”. Apreciação semelhante foi professada por Peter Partner

75
Quam abebamus de damno castrorum, domorum et omnium aliarum rerum, mobilium et immobi-
lium, quod nobis contingit occasione guerre quam habuimus cum populo Romano pro Romana eccle-
sia. Liber Censuum 1: 425.
76
PETRO URBIS PREFECTO, JOHANNI ET OCTAVIANO FRATRIBUS EIUS, PETRO DE ATTEGIA, PE-
TRO JOHANNIS, JOHANNI OBITIONNIS ET JOHANNI CAPERRONIS QUI PRO QUIBUSDAM NECES-
SITATIBUS ROMANAE ECCLESIE XXX MARCHAS ARGENTI MUTUO CONCESSERUNT. Liber Censuum
1: 426-427.
422 coLunas de são pedro

(1972: 191): “ele [Adriano] tem a reputação, provavelmente merecida, de um


dos fundadores do poder temporal medieval tardio”. Embora menos propenso a
adotar um tom tão biográfico, Pierre Toubert (1973: 1074-1075) ratificou: “os
decênios medianos do século XII marcam uma nova etapa na política territorial
do papado”. Contudo, esta “política” não era resultado de alguma “razão de
estado” centralizadora. Ela não visava à formação de uma extensão geográfica
integralmente vinculada à supremacia de um único poder ou marcada pela
anulação das unidades pré-existentes da dominação senhorial.
Em outras palavras, a expressão “política territorial” frequentemente
presta-se a uma avaliação anacrônica: ela sugere o século XII como a época
em que entrou em vigor uma reorganização espacial orquestrada pelo papado
visando um ordenamento territorial coeso. Descontínua e segmentada, a ge-
ografia dos poderes no Lácio mantinha-se. As ações pontifícias orientavam-se
muito mais para viabilizar um controle sobre os deslocamentos humanos, pri-
vilegiando o domínio de cruzamentos, vias de passagem e travessias de cursos
d’água, do que a busca por uma capacidade de se apossar do espaço.
Intervir sobre o fluxo de homens e de recursos parece ter sido o nervo
da ampliação dos “bens do bem-aventurado Pedro”. Certamente, as aquisições
pontifícias ocorriam com frequência e regularidade. Mas, obedeciam a propó-
sitos de ordem prática, talvez mesmo circunstancial. Eram arranjos de poder
negociados, nos quais os poderosos locais podiam acomodar prerrogativas e
privilégios há muito existentes. Não se deve ver aí a implantação de um plano
meticulosamente traçado, um projeto de unificação planejado. Devemos nos
precaver para não permitir que a ideia de uma “política territorial” nos leve a re-
quisitar ao papado do século XII a fundação de uma ordem espacial abstrata, na
qual o mosaico de domínios senhoriais deveria ser suplantado por uma territo-
rialidade contínua e homogênea, unificada pela supremacia de um único poder.
Aquilo que a historiografia se habituou a chamar de “política de recons-
trução dos Estados Pontifícios” consistiu antes, aos nossos olhos, de reações
contra a fragilidade, de mobilizações exigidas pelas circunstâncias contra a
vulnerabilidade material e militar que rondava as sedes do papado. Foram ini-
ciativas repletas de dilemas e contradições para as quais o clero pontifício di-
ficilmente tinha respostas ou justificativas espirituais. Aquelas foram medidas
embaraçosas, especialmente quando um ex-monge cisterciense – Eugênio III
– afundava-se em esforços para expandir os domínios e prerrogativas senho-
riais das “moradas dos apóstolos”, as limina apostolorum. Seu antigo superior
e mentor, Bernardo de Claraval, o reprovou severamente por isso:

Dir-me-ás que os limiares dos Apóstolos não resumem mais ambição do que
devoção? Que não ressoa em vosso palácio todo o dia o as vozes da ambi-
Leandro duarte rust 423

ção? Que não transpiram estas questões todas as leis canônicas e sua dis-
ciplina? Não pretende a voracidade italiana arrebatar todos seus despojos
com insaciável rapacidade? (...) Nisto sucedeste Constantino, não Pedro. 77

O poderio patrimonial dos papas do século XII emergiu da necessidade


de superar fraquezas, de contornar debilidades que se tornaram ainda mais
agudas com a proclamação da República romana e o isolamento de Benevento
após as humilhações impostas pelo reino da Sicília.
Todavia, todos os esforços pelo fortalecimento material da Igreja ro-
mana ruíram em pouco tempo. O cisma papal de 1159 e a subsequente rea-
bertura do conflito com o Império fizeram naufragar a já frágil estabilidade
alcançada no interior dos domínios apostólicos. Empreendidas na península
desde 1154 para frear a autonomia das cidades mercantis do norte-peninsular
e obter a coroação imperial, as campanhas de Frederico I tornaram-se cada
vez mais mais demoradas e destrutivas. Enquanto elas se prolongavam, falan-
ges de soldados germânicos derramavam-se pelas vias de passagem e cidades
reclamadas pela Sé Papal. Em 1161, Frederico e seu “antipapa”, Vítor IV, se
apoderaram de praticamente toda a extensão do patrimônio petrino:

No segundo ano de seu pontificado, o papa Alexandre retornou para


Roma, onde, sob a inspiração de Deus, solenemente dedicou a igreja de
Santa Maria Nuova. Mas porque, diante da grande revolta dos cismáti-
cos, ele não pode mais permanecer em paz lá, retornou para a Campag-
na, persuadido pelas requisições dos romanos. A perseguição imperial
contra a igreja crescia a tal ponto na Cidade e nos arredores que todo o
patrimônio do bem-aventurado Pedro, de Acquapendente a Ceprano, ex-
ceto as cidades de Orvieto, Terracina e Anagni e a fortaleza de Castro, foi
violentamente tomado e ocupado pelos teutônicos e cismáticos, com o
consentimento dos membros leais à igreja. Com isso, Alexandre decidiu
partir através dos mares para a Gália com seus irmãos.78

77
Annon limina Apostolorum plus jam ambitio quam devotio terit? Annon vocibus eius vestrum tota
die resultat palatium? Annon quaestibus eius tota legum canonumque disciplina insudat? Annon spo-
liis eius omnis Itálica inhiat inexplebili aviditate rapacitas? (...) In his successisti, non Pedro, sed Con-
stantino. BERNARDO DE CLARAVAL. De Consideratione. B.A.C. 2: 124, 160.
78
In secundo anno sui pontificatus, Alexander papa reversus est ad urbem Romam, ubi ecclesiam
sancte Marie Nove auctore Domino sollempniter dedicavit. Quia vero diutius ibidem propter magnam
scismaticorum seditionem quiete non potuit remanere, precibus populi Romani seductus ad partes
Campanie remeavit. Et quoniam imperialis persecutio adversus Ecclesiam circa Urbem in tantum ex-
crevit quod omne patromonium beati Petri, preter civitatem Urbeveti, Terracinam et Anagniam atque
munitionem Castri, ab Aquapendente usque ad Ceperanum per Teutonicos et scismaticos violenter oc-
cupatum fuerat et detentum, consilium habuit cum Ecclesie fidelibus ut ad partes Galliarum cum fratri-
bus suis per mare transitum feceret. CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 403-404.
424 coLunas de são pedro

Apesar das ocupações intermitentes, a coroa germânica logrou instalar


legados nas áreas então diretamente submetidas à jurisdição eclesiástica ro-
mana. Entre 1165 e 1177, o arcebispo de Mainz, Cristiano ocupou a cidade
papal de Viterbo, onde ergueu um palácio e passou a governar as cidades
próximas como braço local dos Hohenstaufen (WALEY, 1961: 14-15). A domi-
nação imperial estendeu-se para Vetralla, engolfou o condado de Bagnorea,
destruiu o castrum de Ferento: áreas de suserania papal. Citadinos e aristo-
cratas acatavam a voz de Cristiano nas áreas ao norte do patrimônio de São
Pedro, na marca da Ancona, no ducado de Spoleto e nas cercanias romanas
(PARTNER, 1972: 208-209).
Enquanto isso, a Cúria se entrincheirava. Durante o verão de 1170, Ale-
xandre III assumiu o controle sobre a cidade de Tusculum e a fortaleza de
Monte Cavo, graças a concessões obtidas junto ao conde local após este re-
ceber, por intermédio do pontífice, os direitos exercidos pelos Frangipani em
Terracina e no Monte Circeo. A Igreja romana preparava-se para se instalar em
uma cidade rival da própria Roma. Buscava refúgio. A difícil situação do papa-
do foi captada por Sandro Carocci (2010: 13) em seu livro Vassalli del Papa: “o
maior resultado da política pontifícia neste período foi de tipo jurídico: a capa-
cidade de manter viva a reivindicação sobre o Lácio e a Itália Central”. Privada
de domínios, restava a autoridade apostólica lutar para não ser desarmada de
suas próprias reivindicações.
As aquisições territoriais papais no Lácio minguaram. Para o longo pe-
ríodo que se estende de 1159 a 1178 – quase vinte anos! –, o Liber Censuum
contabiliza um único e solitário registro, o instrumentum publico do dia 6 de
janeiro de 1174. Na ocasião, Raino, conde Tusculum, transferiu para a Santa
Sé de Roma o castrum de Algido, com todos os seus “pertences e usufrutos”
(pertinentiis et utilitatibus), mediante o pagamento de “200 libras de Provença”
(ducenteas libras proveniensium).79 Não obstante tenha permanecido em Roma
por dois anos (1165 – 1167) e em Tusculum por outros dois (de outubro de
1170 a janeiro de 1173), a cúpula pontifícia não exerceu controle efetivo so-
bre seu patrimônio até reconciliar-se com o Império em 1176. Somente então,
as permutas, compras, doações e a enfeudação de possessões e prerrogativas
senhoriais foram retomadas.
Ainda assim, os sucessos são menos numerosos do que nas décadas de
1140 e 1150. No dia 11 de janeiro de 1178, Adenulfo, Landulfo e Stulto,
filhos de Gregório Pagano, renunciaram à todos os seus direitos sobre o cas-
telo de Falvaterra, próximo a Ceprano. Na mesma ocasião, após obrigarem-se

79
CARULA SUPER CASTRO ALGIDI DOMNO ALEXANDRO PAPE PRO CC LIBRIS PIGNORI OBLIGATI.
Liber Censuum 1: 405-407.
Leandro duarte rust 425

a um pagamento de 300 libras de Provença (trecentas libras provesinorum),


receberam-no de volta como feudo depois de “prestarem juramento corporal”
(juramento corporaliter prestio firmaverunt). Mais de um ano depois, em 11
de outubro de 1179, o conde Raino de Tusculum transferiu, in perpetuum, sua
castelania de Lariano para o papado, recebendo em troca os castra de Norma
e Vicolo com todas as suas “possessões e pertences” (tenimentis et pertinen-
tiis). Por fim, quase dois anos se passaram até que em 7 de abril de 1181,
Guilherme de Majolo entregou a Alexandre III a quarta parte de seu senhorio,
reavendo-a de volta mediante o pagamento de “uma libra de cera e outra de
incenso todos os anos no dia de São Jovis” (unam libram cere et aliam incensi
omni anno in die sancto Jovis).80
O afastamento da Cúria de Roma descomprimiu as forças que conti-
nham o regime comunal e abriu espaço político para o populus senatusque ro-
manus. O recrudescimento da autonomia citadina em pouco tempo empurrou
a aristocracia para a busca do auxílio da coroa germânica. O Hohenstaufen
tinha diante de si um novo campo de manobras para impor a “paz imperial”.
Paz que os romanos e seus senadores sofreriam dolorosamente:

Uma vez que a rivalidade crescia entre as cidades [Roma e Tusculum],


o povo romano, no mês de maio, quando a plantação estava crescendo
branca e apesar da proibição de seu Pastor, pegou em armas com au-
dácia contra Raino, senhor de Tusculum. Os romanos avançaram sobre
o território deste e em sua inimizade não apenas devastaram vinhas e
colheitas, mas ainda atacaram para destruir os muros de Tusculum. Uma
vez que Raino não podia resistir a tão grande força nem proteger sua
terra, ele teve necessidade de voltar-se para o imperador em busca de
ajuda. E então o imperador enviou rapidamente para ajuda e proteção
de Raino uma grande hoste de bravos guerreiros, para proteger o povo
de Tusculum e testemunhar a insolência dos romanos. Quando estes sel-
vagens teutônicos, acostumados à guerra, alcançaram Tusculum e viram
que os romanos, apesar de fortes em número, eram fracos em disposição,
ele se animaram e prontamente foram encorajados para batalhar contra
eles na planície. Os dois exércitos se encontraram à tarde e subitamente
um alto clamor se ergueu aos céus de ambos os lados. Desembainhan-
do suas espadas, inimigo arremeteu-se sobre inimigo ferozmente. Mas
logo no princípio, os romanos entraram em colapso e, tanto na planície

80
Eis os registros documentais, respectivamente: INSTRUMENTUM QUOD ADINULFUS ET L. FILII
G. RENUNTIANVERUNT OMNI JURI QUOD HABEBANT IN CASTRO FALBATERIE; PERMUTATIO LA-
RIANI ET NORME; CARTULA SUPER TRADITIONE ET INVESTITURA UNIUS PARTIS CASTRI MAIOLI.
Liber Censuum 1: 402-407.
426 coLunas de são pedro

quanto entre despenhadeiros inexplorados, foram arrasados até o cair


da noite e abatidos tão gravemente que um terço de seu grande exército
escapou. Naquela noite ergueu-se por toda cidade uma súbita lamúria e
um grande clamor. O desastre era sem precedentes, um lamento como
aquele não poderia ser consolado, a derrota de homens e seus bens além
do que poderia ser reparado. Desde o dia quando Aníbal derrotou os
romanos em Cannae ninguém poderia nomear uma tão grande derrota
dos exércitos romanos.81

Desafiada a encontrar causas para a sucessão destes “dias terríveis”,82 a


memória alexandrina apontaria como culpada a violência imperial. Evocada
como o sopro de uma destruição quase inimaginável, a ferocidade atribuída
aos soldados do Barba Ruiva teria sido suficiente para intimidar espíritos até
então fidelíssimos à autoridade petrina:

Porque o imperador dos Gregos havia tomado Ancona pela força e ocu-
pado a cidade através da distribuição de uma imensa soma de dinheiro
entre os cidadãos, Frederico levantou o cerco a ela e investiu com todos
os seus para ocupá-la pela força em ordem de vingar o insulto oferecido
à sua pessoa e império. Além disso, a selvageria com que ele se lançou
sobre a Toscana, como o resultado das disputas e guerras que se ergue-
ram entre Pisa e Lucca, horrorizou todos os homens e os submeteu ao
jugo do imperador de tal maneira que nos domínios romanos dificilmen-
te havia alguém que ousava resistir aos comandos do imperador. Então
as cidades localizadas em redor de Roma e seus capitães foram sitiados

81
Unde cum inter eos emulationes augerentur et crescerent, populus ipse, in mense madio, cum mes-
ses albescunt, contra prohibitionem sui pastoris, adversus Rainonem dominum de Tusculano in omni
fortitudine sua communiter exivit armatus. Et prodecens in terram eius, non solum vineas et segetes
cum arboribus hostiliter devastavit, set etiam muros Tusculane civitatis nichilominus destruere labora-
bat. Set quoniam idem R. tante fortitudini per se ipsium resistere non valebat nec terram suam tueri,
necesse habuit ut ad auxilium imperatoris confugium faceret. Misit itaque imperator celeriter ad sub-
ventionem et presidium eiusdem R. fortium bellatorum inmensam multitudinem, ut et Tusculanorum
populum defenderet et Romanorum insolentiam coherceret. Postquam vero illa Teutonicorum seva
barbaries que in armis semper consueverat militare ad Tusculanum pervenit, videns populum roma-
num esse multum set ad bellum perperam ordinatum, animum at audaciam sumpsit ut cum eo abs-
que mora in campo haberet conflictum. Appropinquantibus ergo partibus post horam nonam, repente
clamor utrimque vehemens ad sidera tollitur, et strictis mucronibus hostes in hostes nimis atrociter
irruunt. Set in primo congressu populus irrecuperabiliter corruit, et per campestria et convallium devia
usque ad noctem ita impie contritus atque delapsus est quod de tanto agmine tertia pars vix evasit. Ea
igitur nocte factus est in tota urbe subitaneus dolor et ulutatus magnus, inaudita calamitas, insatiabilis
luctus et inreparabilis iactura virorum et rerum. Quippe ab eo tempore quo Annibal Romanos aput
Cannas devicit, tantam Romanorum stragem nullus recolit extitisse. CARDEAL BOSO. Vita Alexander
III. Liber Pontificalis 2: 415-416.
82
JL 11207.
Leandro duarte rust 427

pelos teutônicos e forçados a abandonar sua usual lealdade e submissão


ao bem-aventurado Pedro. E assim estes criminosos devastaram todas as
terras com pilhagem, incêndio e outras infâmias.83

As linhas redigidas pelo cardeal Boso abominam os soldados de Frederi-


co I. Mas, após o Pacto de Veneza, que selou a paz entre papado e Império em
1177, Alexandre III se viu completamente dependente destes “criminosos”.
Em seu retorno para Roma, ele e seu séquito foram escoltados por Cristiano,
arcebispo de Mainz e marechal líder da violenta libertação de Tusculum contra
os romanos. As circunstâncias eram semelhantes às de vinte e um anos antes,
quando Adriano IV e sua cúpula rumaram para a basílica de São Pedro flan-
queados por Frederico I e um formidável corpo de soldados, “posto que o povo
romano era-lhes hostil”.84
A Cúria alexandrina permaneceu em Roma enquanto o odiado arce-
bispo, o homem de armas dos Staufen, fez com maestria o que se esperava
dele: “difundir muitos males”85. A estabilidade do papado se manteve de pé
enquanto Cristiano ateou suas tropas sobre as áreas vizinhas e aterrorizou os
cinturões rurais da cidade com constantes ataques. Graças à proteção obtida
através da mesma “selvageria” condenada pelo cardeal Boso, o papa pôde
reunir um majestoso concílio na basílica de São João de Latrão, em março de
1179. E “quando, devido a intrigas locais, Cristiano foi capturado e mantido em
cativeiro por longo tempo, Alexandre teve de deixar Roma uma vez mais e faleceu,
em exílio, em agosto de 1181” (MUNZ, 1969: 363). Ao redigir sua Chronica,
Rogério de Hoveden assegurou que o arcebispo foi aprisionado por uma alian-
ça de cidadãos toscanos e lombardos liderada por Conrado de Monteferrat,
oficial imperial que disputava com o metropolitano a custódia de fortifica-
ções.86 O sequestro de um vassalo imperial por outro ilustrava bem o quanto as
correlações de força na península italiana eram incertas, instáveis, traiçoieras.

83
Et quia imperator Gregorum data inmensa pecunia civibus eiusdem loci civitatem ipsam detine-
bat per violentiam occupatam, ut injuriam sibi et imperio suo illatam posset ulcisci, eam obsedit ex
expugnare omnimodis nitebatur. Porro eiusdem imperatoris barbaries quam in Tusciam destinaverat,
propter dissensiones et guerras que inter Pisanos et Lucenses emerserant, ita universos perterruit et
imperiali dominio subjugavit, quod in orbe Romano fere nullus reperienbatur qui resistere imperiali-
bus jussis auderet. Tunc circumposite Urbi civitates et capitanei a Theotonicis invase sunt et a consueta
beati Petri fidelitate atque dominio separate. Sic itaque totam terram ipsam multis depredationibus et
incendiis atque aliis oppressionibus predicti nefarii devastarunt. CARDEAL BOSO. Vita Alexander III.
Liber Pontificalis 2: 414.
84
Pro eo quod eb eis romanus populus discordabat. CARDEAL BOSO. Vita Adriani IIII. Liber Pontificalis
2: 392.
85
Christianus cancellarius imperatoris Frederici, qui multa mala Tuscis intulit. ANNALES PISANI.
MGH SS 19: 265.
86
ROGÉRIO DE HOVEDEN. Chronica. STUBBS 2: 194-195.
428 coLunas de são pedro

Em meados do século XII, após décadas de um contínuo deslocamento


das relações sociais de sustentação da autoridade apostólica para as redes de
dependência estabelecidas longe do Lácio, o papado ficou às voltas com uma
precária malha local de proteção militar e material. As iniciativas realizadas
entre as décadas de 1140 e 1150 em prol de uma maior inserção da igreja ro-
mana nos circuitos regionais da dominação senhorial não reverteram este qua-
dro. Atravessado por vazios, agindo com um senhor sem terras efetivamente
suas, o governo era instável, suas reivindicações efêmeras, contingentes. Era
preciso reagir.

7.5. A captura do tempo

Turbulenta e prolongada, a vulnerabilidade política do papado repercu-


tiu sobre sua atividade conciliar. Durante o pontificado de Adriano IV houve,
segundo Josef Hefele, um grande número de reuniões protagonizadas pelos
cardeais, “mas foram poucos os concílios propriamente ditos, estes que são co-
nhecidos oferecem interesse medíocre” (HEFELE-LECLERCQ 5/2: 911). Ainda
que consideremos os concílios legatinos de Linköping (1148),87 Valladolid
(1155),88 Lismore (1171),89 Westminster (1174 e 1176),90 Dublin (1176) e
Edimburgo (1177),91 a lista persistirá exígua se comparada a outras épocas.
Para todo o período que vai de 1139 a 1159, encontramos somente cin-
co plenários eclesiásticos presididos por pontífices: um em Roma, reunido por
Lúcio II, em 1144,92 os demais celebrados em Paris, Trèves, Reims e Cremona,
por Eugênio III, entre 1147 e 1148.93 Ao cabo de aproximadamente vinte anos
à frente da igreja romana, entre 1159 e 1178, Alexandre III presidiu somente
duas assembleias: Montpellier, em maio de 1162; Tour, em maio de 1163.94 Ao
informar aos bispos Eberardo de Salzburg e a Artmano de Brixen a realização
87
MANSI 21: 743; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 840-841.
88
FITA COLOMÉ, 1894: 449-475.
89
MANSI 22: 131-136; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1053-1054.
90
MANSI 22: 145-154, 157-158; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1059-1062.
91
HADDAN & STUBBS 2: 44, 246-247; MANSI 22: 167-168; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1063.
92
MANSI 21: 619-622; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 797.
93
Sobre Paris, abril de 1147: OTTO DE FREISING. Gesta Frederici I. MGH, SS rer. Germ. 46: 68-81;
MANSI 21: 707-712; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 812-817. Sobre Trèves, dezembro de 1147 ou janeiro
de 1148: GESTA ALBERONIS. MGH SS 8: 255; GESTA TREVORUM. MGH SS 24: 378; MANSI 21: 737-
38; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 821-822. Sobre o generalem concilium celebrado em Reims, fevereiro de
1148: ANNALES CAMERACENSES. MGH SS 16: 517; ANNALES S. DIONYSII REMENSIS. MGH SS 13:
83; ANNALES MELLICENSES. MGH SS 9: 504; AUCTORIO GEMBLACENSI. RHGF 13: 273; JOÃO DE
SALISBURY. Historia Pontificalis. CHIBNALL: 1-10; OTTO DE FREISING. Gesta Frederici I. MGH, SS rer.
Germ. 46: 81; MANSI 21: 713-742. Sobre o concílio de Cremona, julho de 1148: JOÃO DE SALISBURY.
Historia Pontificalis. CHIBNALL: 50; MANSI 21: 628-629; HEFELE-LECLERCQ 5/1: 839.
94
Sobre Montpellier: MANSI 21: 1159-1160; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 956-957. Sobre o concílio de
Tour: CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 408-410; SOMERVILLE, 1977.
Leandro duarte rust 429

desta última, o papa regozijou-se: “os mais velhos, que compareceram a concí-
lios nas regiões dos ultramontes, confirmam que nenhum de nossos predecessores
é conhecido por ter, nos últimos quarenta anos, celebrado sínodo maior ou mais
solene”.95 Alexandre reportava seus leitores aos dias de Calisto II e dos sínodos
de Reims e Toulouse, no ano de 1119. Sua carta simplesmente sobrevoou os
concílios reunidos por Inocêncio II na Gália e ignorou ainda mais a assembleia
presidida por Eugênio III em Reims, palco de importantes debates, sobretu-
do dogmáticos. O decréscimo das atividades conciliares do papado levou a
memória alexandrina a embrulhar todas aquelas realizações em um mesmo
esquecimento.
Essa escassez de iniciativas conciliares agravou a necessidade, já dis-
seminada por toda a eclesiologia romana, de valer-se ao máximo daquelas
raras ocasiões em que a Igreja cristã se reunia para defender a integridade dos
patrimônios eclesiásticos. Tais pressões já haviam deixado sua marca sobre o
concílio de Tours. Promulgados no calor da acirrada luta contra o Barba Ruiva
e seus papas imperiais, seus cânones tem um perfil singular, intrigante: eles
não fazem qualquer menção direta ou explícita ao cisma de 1159. Não há aí
condenações disparadas contra o pontífice rival.
Ao invés disso, suas decisões se debruçaram sobre certas situações de
risco que se apresentavam às bases materiais da Igreja, tanto em áreas rurais
como nos espaços urbanos diretamente ligados a senhorios eclesiásticos. Os
homens reunidos em Tours parecem ter sentido menos a necessidade de com-
bater Vítor IV, o “heresiarca” amparado por Frederico I, do que de lutar contra
o fracionamento dos benefícios eclesiais (cânone 1) ou a subtração de posses
e rendas por laicos (cânone 3). Eles se empenharam para erguer barreiras
contra os comportamentos que poderiam enfraquecer o controle sacerdotal
do patrimônio eclesial. Foi então proibido o pagamento para a realização de
serviços divinos (cânone 7), prática capaz de atrair o clero para uma lealdade
indevida, fomentada pelos laicos e suas riquezas, corrompendo os vínculos
dos prelados com as prebendas eclesiásticas. Foi condenado o acúmulo de
funções episcopais ou arquidiaconais por deãos e arquipresbíteros (cânone 8),
meio frequente e irregular de concentração das rendas. Interditou-se o estudo
da medicina e das leis seculares aos que já proferiram votos religiosos (cânone
9), conduta que aproxima os sacerdotes de um modo considerado laico de
tomar decisões.96

95
Ut nullus unquam predecessores nostrorum a xl retro annis maius vel sollemnius, sicut antiquiores,
qui consueverunt in ultramontanis partibus interesse conciliis, protestantur, celebrare se noscatur. JL
10869.
96
CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 408-410.
430 coLunas de são pedro

Por fim, seguiu-se um longo cânone sobre a imunidade da propriedade


eclesiástica. Seu texto transcorre como segue. Quando os capelães de castela-
nias (capellani castrorum) tomassem conhecimento da existência de “alguma
igreja, cemitério ou possessão eclesial” (aliquid ecclesiae vel coemeterii seu eccle-
siasticae possessionis) incorporada aos bens da fortificação em que residiam,
deveriam exortar o senhor local (dominum castri) a restituí-lo. Entretanto, se
a “restituição integral não ocorresse após o oitavo dia” da demanda (de integra
restitutione infra octavum diem), “todos os serviços divinos cessariam, exceto o
batismo, a confissão e a comunhão sob o temor da morte” (ex tunc omni eccle-
siastico cessabitur divino, excepto baptismo, confessione & timore mortis com-
munione). Seria permitido apenas que a missa fosse realizada “uma vez por
semana na cidade próxima” (ut semel in hebdomada, missa in villa celebretur
proxima). Se os habitantes da fortificação se obstinassem, incorrigíveis em
sua sentença “por 40 dias” (sententiam incorrigibiles per xl dies), os capelães
deveriam abandoná-los e deixar o lugar. No que deveriam ser seguidos pelos
scriptores. Se, contudo, um capelão se encontrasse obrigado a servir ao senhor
local, ele não possuiria permissão para coabitar a fortificação “por mais de
três meses” (ultra tres menses commorandi cum eis licentiam non adhibemus). E
mais: “aquele que tiver ousado coabitar com ele após o prazo fixado será privado
de todo ofício e benefício eclesiástico” (qui ultra praefixum terminum cum eis
commorari praesumpserit, officio simul & ecclesiastico careat beneficio).97
Esse décimo cânone de Tours demonstra que o pontífice servia-se de
um plenário reunido na Gália para legislar sobre questões tocantes às relações
de patrimoniais do Lácio. Afinal, numerosas compras, doações e partilhas de
co-senhorios levaram o papado a travar contatos diretos com o fenônemo da
presença sacerdotal em fortificações laicas. Era vital regulamentá-lo. Mas, na
busca por este propósito, simplesmente lançar habituais sanções canônicas –
como o interdito ou excomunhão – não era adequado. Diante da importância
que a matéria assumia para o próprio patrimônio de São Pedro, tornou-se
inapropriado punir o senhor local a ferro e fogo, simplesmente suspenden-
do os serviços divinos em seus domínios ou removendo-o da comunhão. Isto
equivaleria a distanciá-lo, afastá-lo por uma declaração aberta e inequívoca
de hostilidade.
Após o agravamento extremo da cisão política implantada no coração
da península cem anos antes, o papado tornara-se altamente dependente dos
aristocratas regionais. Era preciso conservá-los como aliados. Tratava-se de
compeli-los a retroceder, de fazê-los desistir da oposição e voltar atrás, pelo
bem da crucial conservação material dos poderes eclesiásticos. Como ensina-

97
MANSI 21: 1179-1181; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 972-973.
Leandro duarte rust 431

ram as décadas de 1140 a 1150, o papado buscava a cooperação dos senhores


medievais, não rechaçá-los. Para isso, era preciso ser comedido na aplicação
das ações destinadas a dissuadir o infrator, assegurar a inoculação moderada
das medidas destinadas a constrangê-lo. Era necessário cadenciar as ações de
restrição de tal forma que a cada etapa os resultados da prática persuasiva fos-
sem avaliados. As sanções deveriam ganhar ritmo, compasso. Os cânones ne-
cessitavam de limites (terminum), palavra que em latim eclesiástico medieval
expressa uma ideia muito semelhante ao que nós entendemos por “prazos”.
“Oito dias”, “uma vez por semana”, “quarenta dias”, “três meses”. O
cânone lista um conjunto de durações objetivadas, intervalos que transcorrem
segundo ritmos próprios, alheios às vicissitudes humanas. A experiência da
mudança é selada como um repertório de fatias de permanência que, exte-
riores à persona, recaem sobre ela como marcos para um enquadramento de
sua existência. Regular e sistemática, a metrificação do devir dá forma a um
instrumento de monitoramento das ações humanas, sugestionamento do ser.
Em poucas linhas despontam diferentes unidades cronológicas, todas neutras,
sem maiores qualidades morais ou éticas, congeladas em formatos numéricos.
O texto conciliar está polvilhado de partículas de devir “desenraizadas”, isto é,
aplicáveis e equivalentes em toda parte: pontos de orientação objetivados para
os capelães de qualquer castelania.
Porém, talvez você leitor esteja questionando: mas não é possível que
os quarenta dias frisados pelo texto conciliar tivessem como referência a Qua-
resma? Desta forma, este “prazo” não identificaria um tempo religioso, muito
mais simbólico e sacramental, do que objetivo e quantitativo? Aquele recorte
de tempo não poderia estar coberto de conotações penitenciais e, portanto,
morais? Ao que diríamos: sim, sem dúvida, provavelmente foi assim que clé-
rigos medievais olharam para esta indicação cronológica. Contudo, se hou-
ve aí algum simbolismo, ele foi lançado para um segundo plano, diminuído,
toldado ao ser embaralhado entre intervalos fixados por uma expectativa de
eficácia. Este eventual valor imaginário foi capturado pelo forte senso de prag-
matismo que regeu a trama de escrita de todo o cânone.
As possíveis alusões metafísicas estavam eclipsadas por um uso prático
e utilitário. A lógica que aí envolveu a experiência temporal está atrelada a
eventos visíveis, palpáveis, assentados na solidez e crueza do terra-a-terra diá-
rio da vida material. Em outras palavras, a necessidade de atingir um controle
diligente sobre a gestão dos bens eclesiais imprimiu uma funcionalidade sobre
a percepção do tempo que impedia a cristalização dos sentidos transcenden-
tes, fundados por experiências de fraqueza ontológica (REEGEN, 2007: 7-14;
LIE, 2004: 201-209). Assim, a eventual densidade teológica (GUREVITCH,
1990: 115-180; KANTOROWICZ, 1998: 170-192; MARTIN, 1996: 154-174)
432 coLunas de são pedro

dos prazos acima refluía para trás da mensagem, encoberta pelos sentidos de
porções de tempo comparáveis em toda sua duração, cotejadas segundo sua
utilidade persuasiva.
A intensa frequência e o emprego estratégico distinguem estes prazos.
Não se trata, portanto, da “invenção” ou do “começo” do parcelamento racio-
nal da marcha do devir. Tal característica, certamente, pode ser encontrada
em todos os contextos de sistematização do cômputo medieval do tempo (BE-
CKWITH, 1996: 51-92; DECLERQ, 2000; ROSSUM, 1998: 29-118). Há sécu-
los os eclesiásticos medievais lançavam mão de prazos, inclusive para formar
a pedagogia pastoral que deveria tratar a culpa e o pecado (O’LOUGHLIN,
2000: 93-111. Ver ainda: FLANDRIN, 1983). Não se trata aqui de acrescentar
um novo “nascimento” aos estudos medievais, como se já se fez com o “Purga-
tório”, o “cemitério” e até mesmo a “Europa” e o “Ocidente”. Nada do que foi
dito deve ser tomado como alguma caracterização do papado como “vanguar-
da racionalista” medieval. Ao contrário, trata-se aqui de investigar o lugar que
lhe cabe na construção histórica do racionalismo ocidental (MURRAY, 1978)
e desfazer sua frequente imagem como força política retrógada, afeita a abs-
trações hierocráticas.
O traço distintivo da legislação de Tours, especialmente do cânone 10,
consistia na incorporação de parcelas fixas de tempo como instrumento nor-
mativo central e de uso regular nas relações sacerdotais com o patrimônio
eclesiástico. O papado apropriou-se de práticas preexistentes de quantificação
do tempo, vigentes havia séculos entre os processos de ordenamento clerical
da sociedade medieval (JUSSEN, 2001: 15-54), articulando-as em um trato
funcionalista e sistemático da organização material da eclesiologia romana.
Obra consolidada pelas decisões do plenário presidido por Alexandre III na
basílica de São João de Latrão, em Roma, em março de 1179. Mais conhecido
entre os historiadores como III Lateranense ou Latrão III.
Desde Tours, dezesseis invernos se passaram até o pontífice ser nova-
mente visto à frente de um concílio geral. Neste ínterim, os anos se acumu-
laram, confusos e turbulentos. Após a derrota sofrida para a liga das cidades
lombardas, em Legnano, Frederico I e sua corte renderam-se à paz com a Sé
Apostólica em Veneza, em 1177.98 Porém, nos domínios reclamados pela Igreja
romana, os encarregados papais de exercer o controle patrimonial exibiam fla-
grante dificuldade para construir uma ordem, penosamente esboçada apenas
com o recurso à violência. Um exemplo. No vale do rio Aniene, onde outrora
Adriano IV assegurou o controle sobre a rocca de Santo Stefano e a fidelidade
98
As negociações travadas em Anagni por integrantes dos poderes papal e imperial estão registradas
em: PACTUM PRAEVIUM INTER IMPERATOREM ET ECCLESIA. MGH Const. 1: 362-365; A paz em
Veneza: CONFIRMATIO PACIS CUM ECCLESIA. MGH Const. 1: 371-372; WATTERICH 2: 623-638.
Leandro duarte rust 433

dos condes di Poli, foi preciso que a Cúria romana incitasse a rivalidade entre
dois poderosos locais, atiçando o senhor de Cave contra Raone de Roiata, para
obter alguma estabilidade.99
Uma década transcorrera desde a última vez em que Alexandre residiu
em Roma (1167). Durante este tempo diversas áreas foram subtraídas à obe-
diência papal. Em 1178, a “dita cidade de Castello” (civitate q. d. Castellum)
foi devolvida à proteção apostólica por meio do mesmo privilégio promulgado
por Lúcio II no dia 13 de novembro de 1144.100 O difícil estado do poder tem-
poral pretendido pelo papado implicava em saltar décadas para trás, refazer
velhas conquistas para tentar dar as costas ao recente período de retrocessos
militares e pesadas perdas patrimoniais.
Portanto, após a assembleia da Gália, o papado acumulava pressões
para recuperar e preservar os bens e rendas constituintes da Igreja romana.
Tais prioridades dominaram a elaboração dos cânones do III Lateranense e o
empenho para atendê-las pode ser percebido por toda parte, intercalando os
mais diversos temas aí tratados. Eis um caso. Ao legislar sobre a validade das
ordenações realizadas pelos papas rivais, apoiados pela corte imperial – Vítor
IV (Otávio de Monticelli), Pascoal III (Guido de Crema) e Calisto III (João de
Struma) –, o concílio decidiu:

Reiterando as medidas tomadas por nosso predecessor Inocêncio, de fe-


liz memória, declaramos nulas as ordenações conferidas pelos heresiar-
cas Octávio e Guido, e por João de Strumi, seu sucessor, e por aqueles
que estes ordenaram. Além disso, todo aquele que tiver recebido digni-
dades ou benefícios eclesiásticos conferidos pelos referidos cismáticos,
serão privados de suas atribuições. Igualmente, as alienações ou
apropriações violentas de bens eclesiásticos realizadas por
estes cismáticos ou por laicos, perderão toda força e deve-
rão retornar para a igreja sem quaisquer danos.101 (Os grifos
são nossos)

A menção feita em preâmbulo provavelmente se reporta a uma medi-


da aprovada por Inocêncio II em Roma, em 1139, que estipulava a invalidez

99
Italia Pontificia 2: 50.
100
Italia Pontificia 4: 105.
101
Quod a praedecessore nostro felicis menoriae Innocentio factum est, innovantes ordinationes ab
Octaviano et Guidone haeresiarchis, necnon et Joannes Strumensi, qui eos secutus est, factas, et ab or-
dinatis ab eis, irritas esse censemus: adjicientes etiam, ut si qui dignitates ecclesiasticas, seu beneficia,
per praedictos schismaticos receperunt, careant impetratis. Alienationes quoque, seu invasiones, quae
per eosdem schismaticos, sive per laicos, factae sunt de rebus ecclesiasticis, omni careant firmitate, et
ad Ecclesiam sine omni ejus onere revertantur. MANSI 22: 218; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1088.
434 coLunas de são pedro

das ordenações feitas por Anacleto. Mas, o texto alexandrino estava longe de
ser mera reprodução. A começar por sua extensão. O texto da decisão ante-
rior era sumário, verdadeiramente minúsculo quando comparado ao cânone
que o evocou quarenta anos depois: “Ademais, declaramos nulas as ordenações
conferidas por Pierleoni e pelos demais cismáticos e heréticos”.102 Na ocasião da
celebração do III Lateranense, não bastava anular as ordenações cismáticas.
Era preciso restaurar “os bens eclesiásticos alienados” em consequência dos
ordenados irregulares. Os cuidados patrimoniais perpassam todo o cânone,
que condenou os “heresiarcas” sem tirar os olhos do mal que era a “apropria-
ção violenta dos bens” da Igreja.
Outro exemplo. O sétimo cânone da assembleia de 1179 proíbe a co-
brança por tudo aquilo que deveria “distribuir-se gratuitamente” (gratis im-
pendi) entre os cristãos. Não era permitido tarifar a “entronização de bispos,
abades ou de qualquer pessoa eclesiástica” (pro episcopis vel abbatibus, seu
quibuscumque personis ecclesiasticis ponendis in sede), o “ingresso de sacerdotes
na igreja” (introducendis prebyteris in ecclesiam), a “sepultura e as exéquias
dos mortos, as bençãos nupciais e outros sacramentos” (sepulturis et exequiis
mortuorum, et benedictionibus nubentium, seu aliis sacramentis).103 Mas, antes
que o texto chegasse ao fim, outra prescrição foi acrescida:

Proibimos, além disso, que os bispos, abades e outros prelados


imponham rendas sobre as novas igrejas, que aumentem as
antigas ou apropriem-se de uma parte das mesmas para seu
uso; ao contrário, é desejável que os superiores se dediquem a manter e
cumprir de boa vontade para com seus inferiores as mesmas liberdades
que eles mesmos reclamam e exigem quando se trata de si mesmos.104
(Os grifos são nossos)

Durante o cisma, a sede censitária dos bispos italianos foi experimenta-


da de forma particular pela Cúria romana. Reagindo a mais uma jornada de
declínio do poder pontifício na península, o episcopado italiano – sobretudo o
das áreas centrais e setentrionais – se apoderou de rendas eclesiásticas e até
mesmo criou novas para nutrir propósitos que pouco tinham a ver com os ritos
ou a caridade cristãos (JONES, 1997: 333-440). Na realidade, o problema era

102
Ad haec ordinationes factas a Petro et aliis schismaticis et haereticis evacuamus et irritas esse cen-
semus. MANSI 21: 533. Trata-se do cânone 30.
103
MANSI 22: 221; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1093.
104
Prohibemus, insuper, ne novi census ab episcopis vel abbatibus, aliisve praelatis imponantur eccle-
siis, nec veteres augeantur, nec partem redituum suis usibus appropriare praesumant: sed libertates,
quas sibi majores desiderant conservari, minoribus quoque suis bona voluntate conservent. Si quis au-
tem sliter egerit, irritum quod fecerit habeatur. MANSI 21: 222; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1093-1094.
Leandro duarte rust 435

ainda mais grave. Agindo desta forma, muitos destes bispos se tornaram os pa-
trocinadores das campanhas imperiais contra seu maior antagonista italiano:
as comunas da Lombardia. As rendas eclesiásticas jorravam para os campos
de batalha, transformadas em nervo da guerra. A proibição acima cumpria a
função vital de limitar esta arrecadação e cercear a influência daqueles prela-
dos que se faziam adversários políticos da integridade material do papado e
de seus aliados.
A inclinação pontifícia para defender a causa das cidades lombardas é
atestada na Vita Alexandri III. Há aí uma série de incisões narrativas operadas
para exaltar e legitimar essa aliança. A começar pelo esforço do cardeal Boso
para atribuir às comunas uma estima pelo ideal de “liberdade da igreja” (liber-
tas ecclesiae) que fosse digna da Sé Apostólica. Eis sua descrição da abertura
das negociações entre os vencedores de Legnano e Frederico I:

Então o imperador, após muitos pedidos feitos de um lado tanto quanto


do outro, cedeu e respondeu da seguinte maneira: “Salvos os direitos do
império, estou pronto para submeter esta disputa ao arbítrio de bons ho-
mens escolhidos de cada lado”. Em seguida, a assembleia dos Lombardos
afirmou: “resguardada a liberdade da igreja de Roma e a nossa própria
pela qual lutamos, nós fazemos o mesmo”.105

O elogio a Cremona, Milão e Piacenza como “libertadas pela divina


providência da tirania e restauradas à sua antiga liberdade” (Liberata itaque
Lombardia per divinum auxilium ab ipsius tyrannide et seu antique reddita li-
bertati); a descrição de Alessandria como “fundada para a glória de Deus, do
bem-aventurado Pedro e toda a Lombardia” (ad honorem Dei et beati Petri et
totius Lombardie construende civitatis); o enaltecimento da união dos coligados
em “um único espírito e vontade” (in uno spiritu et una voluntate) – embora fos-
sem marcantes os casos de deserção da Liga –, tracejavam a mesma imagem.
Na memória alexandrina, a luta dos Lombardos era travada em nome
da unidade e da liberdade da Igreja romana.106 Logo, limitar a ampliação dos
poderes episcopais servia ao duplo propósito de pôr em ordem a constituição
do patrimônio eclesiástico e retribuir o suporte prestado pelas cidades lombar-
das. O plenário de 1179 insistentemente recorreu a medidas orientadas pela
mesma razão: exigiu aos bispos que sustentassem os sacerdotes ordenados e

105
Tunc imperator suspirans, post multa que hinc inde alegata fuerant, sic respondit: “Ego salvo impe-
rii iure hac controversia paratus sum stare arbitrio honorum virorum utriusque partis”. Et consequen-
ter communitas Lombardorum dixit: “Salva ecclesie romane ac nostra libertate pro qua decertamus,
nos itidem facimus”. CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 429.
106
CARDEAL BOSO. Vita Alexander III. Liber Pontificalis 2: 418-419; 427.
436 coLunas de são pedro

que ainda não possuíssem rendas próprias (cânone 5); impediu a outorga de
dignidades e benefícios eclesiásticos sem a vacância de uma igreja (cânone
8); proibiu a transladação de priores sem motivos manifestos (cânone 10);
condenou a acumulação de duas ou mais igrejas (cânone 14); reprovou a
condução de uma Igreja à revelia da palavra expressada pela maioria e pelos
mais velhos (cânone 16). Em todos estes casos, o papado seguiu a tradição
canônica. Entretanto, o fez colocando em prática os limites e as restrições a
serem obedecidos por uma mesma figura: o detentor da função episcopal, re-
centemente convertido em fonte de problemas e oposições.
Entre a anulação das ordenações conferidas por cismáticos e o esforço
para reduzir o raio de influência episcopal, podemos enxergar um denomi-
nador comum: tratava-se de decisões que repercutiam diretamente sobre a
reorganização e a preservação dos alicerces materiais da eclesiologia roma-
na. Esta foi a espinha dorsal que sustenta os decretos do III Lateranense. O
que os tornou “mais bem estruturados, superando em muito a legislação parcial
e, todavia, rudimentar dos primeiros concílios de Latrão” (FOREVILLE, 1974a:
202-203. E ainda: MOLLAT, 1980: 16) foi a necessidade crônica e incessante
de contornar os graves retrocessos sofridos na constituição do poder temporal
pontifício ao longo de décadas. Encarar estes cânones e resumir sua “visão
coordenada do governo eclesiástico” (FOREVILLE, 1974a: 203) como consequ-
ência do desenvolvimento do direito canônico é, em nossa opinião, fechar os
olhos para o pragmatismo e a racionalidade casuística que os caracterizam de
maneira contumaz.
No concílio romano de 1179, a influência do “primeiro papa de uma
esplendorosa linhagem de legisladores” – velho mito sustentado pela historio-
grafia (LE BRAS, 1959: 57) – ou a importância do ius novuum fundado pelo
Decretum de Graciano estavam unidas por algo mais concreto e urgente: reagir
contra os reveses materiais e fiscais, reaver uma ordem patrimonial drastica-
mente abalada. A vigorosa lógica que une tais cânones derivava da necessida-
de inadiável de reagir contra décadas de perdas e reveses materiais.
As pressões pela conservação do papado neste mundo foram pungentes
o suficiente para fisgar a ética apostólica face ao trabalho e à posse de bens
terrenos. Conferindo-lhe um sentido todo particular, o III Lateranense estatuiu:

Tendo decidido o Apóstolo que os seus deveriam ganhar o sustento com


suas próprias mãos, com a finalidade de fechar a boca dos pseudo-após-
tolos e de não servir de peso àqueles que evangelizavam, nos parece ne-
cessário dispor um remédio para um grave problema: alguns de nossos
irmãos e colegas no episcopado supõem uma carga tão pesada para seus
subordinados, sob motivo de visitas aos mesmos, que estes, por vezes, se
Leandro duarte rust 437

veem obrigados a colocar à venda seus ornamentos eclesiásticos e têm


que observar, por esta razão, como os víveres reservados para um longo
período de tempo são consumidos em um breve período.107

A simplicidade (simplicitas) apostólica não consiste, aqui, na recusa vo-


luntária de posses terrenas. Uma enorme distância separa o significado que o
trabalho manual assume neste cânone de instruções evangélicas como estas:
“não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo
que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não
é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário?” (Mt 6,
25). O Lateranense ditava: “zelai pelo trabalho manual”! O Evangelho rogava:
“olhai para os lírios do campo, como eles crescem, não trabalham nem fiam”.
Porém, cuidado. Não nos percamos em jogos de palavras. O “Apóstolo”
ao qual se reporta o texto conciliar é Paulo, para quem o homem de fé era
aquele que reconhecia “os que trabalham entre vós e que presidem sobre vós
no Senhor, e vos admoestam” (1Ts 5: 12). O cânone tinha sólidos alicerces
bíblicos. Suas palavras bem poderiam ser estas: “vos mandamos isto, que, se
alguém não quiser trabalhar, não coma também” ( 2Ts 3:10). Mas as repercus-
sões eram outras: o texto de 1179 não projeta o ser para adiante de si; não o
conduz à transcendência de uma presença redentora (parousia). O trabalho
não fortalece os sentidos de uma experiência pela qual o cristão se torna capaz
de vencer o mundo que o rodeia e envolve (Ver: THEISSEN, 1985: 11-40; ME-
EKS, 1994: 61-74; 137-156). Os bens materiais são aí motivo de um cuidado
auto-justificado, de observância, do comedimento necessário para perpetuar a
vida terrena e suas reservas.
A imitação do modo de vida apostólico desliza aí para preocupações em
manter-se, preservar-se, resistir e persistir no interior do mundo. Um desejo de
durar, de adequar-se ao movimento das coisas suplanta a iminência do reino
dos céus, predominante nos livros evangélicos. Brevis hora. A falta brusca, o
cessar imprevisto e a dissipação atormentavam o plenário conciliar do III La-
teranense, que se lançou à tarefa de tentar esticar a duração da vida material,
assegurar a continuação da existência no reino do corpóreo e do terreno. A
exortação ao trabalho aparece antes como uma forma de endireitar a hierar-
quia ecleiástica, mais do que uma experiência de participação nos mistérios da
cruz, como nos textos paulinos (Ver: FINLAN, 2008: 20-135).
107
Cum apostolus se et suos propriis manibus decreverit exhibendos, ut locum praedicandi auferret
pseudoapostolis, et illis quibus praedicabat, non existeret onerosus: grave nimis, et emenadatione fore
dignum dignoscitur, quod quidam fratrum et coepiscoporum nostrorum, ita graves in procurationibus
suis subditis existunt, ut pro hujusmodi causa interdum ornamenta ecclesiastica subditi compellantur
exponere, et longi temporis victum brevis hora consumat. MANSI 22: 219; HEFELE-LECLERCQ 5/2:
1091.
438 coLunas de são pedro

Tomada por revanches contra a perda de controle sobre a materialidade


dos ofícios eclesiais, a legislação romana de março de 1179 foi movida pela
premência de mergulhar na sucessão das ações humanas. Com isso, ela pele-
jou para carrear os acontecimentos, de modo a garantir que as coisas se reali-
zariam de certos jeitos, conforme uma certa ordem. Nela estão depositados os
empenhos para antecipar-se à consumação dos atos e fazê-los ocorrer de uma
maneira favorável:

Estabelecemos pelo presente decreto que ninguém seja eleito bispo se


não possui já a idade de trinta anos, se não é filho de um matrimônio
legítimo e manifestamente recomendável por sua vida e sabedoria. (...)
Os clérigos que tiverem sido eleitos por alguém contra este mandato,
serão privados do direito de eleição e suspensos de seus benefícios por
três anos.108

Quando as prebendas ou ofício eclesiástico se tornarem vacantes em


uma igreja ou estiverem já vacantes há algum tempo, não deverão
permanecer sem ser distribuídos, em seis meses terão de ser conferi-
dos a pessoas capazes de administrá-los dignamente.109

Igualmente, [o bispo atuará] em caso de litígio entre várias pessoas a


propósito do direito de patronato se no prazo de três meses não se
puder determinar quem é o verdadeiro patrono.110 (Todos os grifos são
nossos)

Em todos estes casos uma mesma preocupação. Antecipar durações


para fecundar a ação clerical, torná-la segura e providente, dotá-la do poder
de contornar a contingência. O tempo considerado é aí um dado disposto
antes mesmo da experiência visada vir a ocorrer. É medida tangível da ação
eclesiástica, parâmetro palpável de organização de ocorrências. O recurso aos
prazos segue as linhas de força de uma racionalidade prática. A experiência
é o ponto de partida para uma busca por dotar a ação coletiva eclesiástica de
108
Praesenti decreto statuimus, ut nullus in episcopum eligatur, nisi qui jam trigesinum aetatis annum
egerit, et de legitimo sit matrimonio natus, qui etiam vita et scientia commendabilis demonstretur. (...)
Clerici sane si contra formam istam quemquam elegerint: et eligendi, potestate tunc privatos, et ab
ecclesiasticis beneficiis triennio se noverint suspensos. MANSI 22: 218-219; HEFELE-LECLERCQ 5/2:
1089-1090. Cânone 4.
109
Cum vero praebendas ecclesiasticas, seu quaelibet officia, in aliqua ecclesia vacare contigerit, vel
etiam si modo vacant, non diu maneant in suspenso, sed infra sex mense personis quae digne adminis-
trare valeant, conferantur. MANSI 22: 222; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1094. Cânone 8.
110
Idipsum etiam faciat, si de jure patronatus quaesito emerserit inter aliquos, et cui competat, infra
tres menses non fuerit definitum. MANSI 22: 127; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1100.
Leandro duarte rust 439

instrumentos eficazes contra distúrbios já vivenciados. Prevalece, em todo III


Lateranense, um ethos de pendor instrumentalista, assentado pela necessida-
de de dominar a repetição de certos eventos nocivos à organização da eclesio-
logia romana:

É conhecido que, para evitar desacordos na eleição do sumo pontífice,


nossos predecessores promulgaram decretos suficientemente precisos e
claros, todavia, é correto que apesar disto, como consequência de uma
audaz e detestável ambição, a igreja sofreu um grave cisma. Quanto ao
que nos compete, ouvido o conselho de nossos irmãos e com a aprovação
do concílio, decidimos introduzir uma cláusula suplementar. Em conse-
quência, estabelecemos que, se o inimigo semear a cizânia, e os cardeais
não puderem alcançar a plena unanimidade para dar um sucessor ao
sumo pontífice e um terço deles se negar a entrar em acordo
com os outros dois e se atrever a eleger outra pessoa, deve
ser considerado pontífice romano aquele que foi eleito e re-
conhecido pelos dois terços. (...) Todo aquele que tiver sido eleito
para o ofício apostólico sem ter alcançado completamente os dois terços
dos votos, que não assuma este ofício de maneira alguma a não ser que
mediante um acordo mais amplo.111 (O grifo é nosso)

Eis o primeiro cânone de 1179, o Licet de Evitanda, decreto que veio re-
gulamentar a sucessão papal, mais de um século depois da In Nomine Domini.
Não há aí uma única menção a prazos, a limites de tempo. Mas poucos trechos
poderiam ser mais instrutivos para o historiador a respeito da racionalidade
vigente na cúpula de Alexandre III. Seu texto revela com clareza a submissão
das preocupações conciliares à necessidade de deter certo controle sobre o
vir-a-ser das ações clericais, de impedir que a passagem do tempo desse meia-
volta e retomasse o curso de passados indesejados.
Predominam aí ações traçadas para conformar as condutas que repercu-
tiam sobre a continuidade patrimonial da Igreja romana. Medidas orientadas

111
Licet de evitanda discordia in electionis summi pontificis manifesta satis a nostris praedecessoris
constituta manaverint: tamen, quia saepe post illa per improbae ambitionis audaciam, gravem passa
est Ecclesia scissuram: nos etiam ad malum hoc evitandum, de consilio fratrum nostrorum, et sacri
approbatione concilii, aliquid decrevimus adjungendum. Statuimus igitur, ut si forte, inimico homine
superseminante zizania, inter cardinales de substituendo pontifice non potuerit concordia plena esse,
et duabus partibus concordantibus tertia pars noluerit concordare, aut sibi alium praesumpserit ordi-
nare: ille romanus pontifex habeatur, qui a duabus partibus fuerit electus, et receptus. (...) Praeterea
si a paucioribus aliquis, quam a duabus partibus fuerit electus ad apostolatus officium, nisi major con-
cordiae intercesserit, nullatenus assumatur. MANSI 22: 217-218; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1087-1088.
440 coLunas de são pedro

por uma lógica simples, linear, algébrica: se o colégio de cardeais se dividisse


novamente, a maioria numérica de dois terços prevaleceria. Com isto era colo-
cada de lado a ambivalente fórmula que atribuía maior peso eletivo à “maior
e mais digna parte” (maior et sanior pars) do clero papal. Um emaranhado de
conotações morais e espirituais dava lugar a um critério direto, objetivo, exato.
Precisamente essa busca por comandos que permitissem ajustar os comporta-
mentos, calibrá-los segundo medidas objetivas fornecidas pelas experiências,
capturou a vivência do tempo, repartindo-o em demarcações cronológicas:

Nossos irmãos e colegas no episcopado nos têm comunicado através de


suas denúncias veementes que os irmãos templários e hospitalários, as-
sim como outros religiosos, excedendo os privilégios concedidos pela Sé
Apostólica, ousam agir contra a autoridade episcopal, motivando assim
o escândalo entre o povo de Deus e colocando almas em perigo. Dizem
[os bispos] que [os mencionados] recebem igrejas das mãos dos laicos,
admitem nos sacramentos e na sepultura aqueles que se encontram sob
interdito e os excomungados, nomeiam ou destituem sacerdotes em suas
igrejas segundo sua consciência (...). Quanto ao suposto de que os hos-
pitalários e os templários cheguem a igrejas colocadas sob interdito, não
lhes será permitido celebrar os ofícios divinos a não ser uma vez por
ano e não lhes será permitido enterrar os mortos.112

Se alguém acredita ser conveniente apresentar uma apelação [contra


uma excomunhão considerada injusta], que seja assinalado um prazo
para a demanda e que, uma vez passado, no caso de ter-se descuidado
defendê-la, o bispo poderá exercer livremente sua autoridade.113

Cânones discrepantes unidos por uma mesma característica: a utiliza-


ção de fatias de duração como instrumento normatizador objetivo. O limite da
conduta legítima era, em muitos casos, uma medida de tempo, então quantita-
tivamente apreciado. Calcular e mapear o devir aparece como um pressuposto

112
Fratrum autem et coepiscoporum nostrorum vehementi conquestione comperimus, quod fratres
Templi et Hospitalis, alii quoque religiose professionis, indulta sibi ab apostolica Sede excedentes privi-
legia, contra episcopatem authoritatem multa praesumant, quae et scandalum generant in populo Dei,
et grave pariunt periculum animarum. Proponunt enim, quod ecclesias recipiant de manibus laicorum,
excommunicatos et ecclesiis suis praeter eorum conscientiam et instituant et amoveant sacerdotes (...).
Si vero Templarii sive Hospitalarii ad ecclesiasticum interdictum venerint: non nisi semel in anno ad
ecclesiasticum admittantur officium, nec tunc ibi corpora sepeliant defunctorum. MANSI 22: 222-223;
HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1095. Cânone 9.
113
Si vero quisquam pro necessitate crediderit appellandum, competens et ad prosequandam appella-
tionem terminus: infra quem, si forte prosequi neglexerit, libere tunc episcopus sua authoritate utatur.
MANSI 22: 221; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1092-1093. Cânone 6.
Leandro duarte rust 441

central da noção de canonicidade. Uma vez por ano, os Templários e os Hospi-


talários poderiam se servir de igrejas sob interdito, isto não seria contrário aos
cânones. Somente quando expirasse o prazo de uma apelação, o bispo local
poderia agir livremente; até lá cabia a ele admitir como justa a excomunhão
que motivara o apelo. As coisas se tornavam diferentes segundo os ritmos da
passagem do tempo: logo, era preciso obedecê-la. Convertido em dispositivo
de controle das competências eclesiásticas, o curso temporal assumiu certa
solidez, ganhou as propriedades de uma existência exterior e independente
do ser senciente. Ele não mais era aquilo que se sentia através da oscilação
da força moral da consciência ou quando as arestas do pecado arranhavam as
intenções de uma pessoa. O tempo se emancipava da condição humana.
Insistamos. Não é o mero fato de destacar prazos que distingue o III La-
teranense de legislações conciliares até aqui estudadas. E sim a razão prática
permanentemente apontada para a preservação do patrimônio eclesiástico e
que fazia do contato com o tempo a vivência de algo insuprimível. As experi-
ências da duração possuem aí certa indestrutibilidade, pois ela impedia uma
consolidação da percepção do fluir do tempo como algo ontologicamente in-
suficiente, precário como uma “sombra da eternidade”, translúcido como um
“véu da vida eterna” (GILSON, 1936: 183-198 ; REIS, 1998: 313-387). Nos
cânones de 1179, o devir é firme, é um ponto ao qual a decisões humanas deve
se agarrar; ele não desperta inquietação, tampouco inspira uma carência do
eterno ou tristeza da finitude (RICOEUR, 1997: 47-53).
Indigência do ser, dispersão, esterilidade, marcha inelutável para a
morte. Nenhuma destas imagens, frequentemente sacadas pelos medievalis-
tas para apresentar como o tempo era percebido pelos clérigos medievais, é
compatível com os significados cronológicos do III Lateranense. Longe de sim-
bolizar um enterramento progressivo e solicitar a celebração de um absoluto
espiritual que dê sentido à vida, a marcha temporal é aí um porto seguro, área
real de ancoragem da existência coletiva. Ferramenta para a organização prá-
tica das relações humanas segundo valores visados pela Sé Romana, o fluxo
temporal não comunica sentidos de inautenticidade existencial ou da perda de
si. Ele é antes acolhido como um elemento criador, um utensílio eficaz na revi-
talização e fortalecimento da ordem eclesial. Servindo-se da temporalidade, o
papado tentou arrancar “espinhas e sarças, as sementes de vícios que germinam
a cada dia no campo do Senhor, [pelas] inclinações dos homens para o mal”.114

114 Quoniam in agro Domini, qui est ecclesia, tanquam spinae et tribuli nascuntur quotidie et pullu-
lant germina vitiorum, tum videlicet quia proni sunt sensus hominis ad malum. ALEXANDRE III. Bulla.
PL 200: 1184-1185.
442 coLunas de são pedro

Recortada, organizada e distribuída segundo sua utilidade, a duração é


domesticada como coordenada de atuação no mundo. É matéria de controle e
eficácia, utensílio para enquadramentos mais precisos e objetivos dos compor-
tamentos sociais. Para o papado, os prazos e limites cronológicos funcionavam
como antídotos para a principal adversidade das últimas décadas: a debili-
dade do domínio exercido sobre as formas de agir em meio ao patrimônio
eclesiástico.
A dura realidade de poder vivenciada no interior da península itálica
pelos homens a serviço da autoridade apostólica capturou a razão de ser dos
principais concílios reunidos pelo papado após 1150. Tours e Latrão III foram
dominados pela necessidade de carrilar a capacidade decisória dos homens à
frente dos bens eclesiásticos, de recolocá-la em trilhos firmes, assentados pelo
poder pontifício. Isto posto, cabe lembrar algo anunciado em nosso segundo
capítulo: ditar os parâmetros de mobilização coletiva implica em intervir sobre
as formas de vivenciar o tempo. Afinal, as ações sociais adquirem inteligibili-
dade, passam a fazer sentido no fluxo incessante da vida, a partir do momento
em que ganham a aparência familiar de durações, passando a contar com
referências socialmente partilháveis para a percepção da mudança e da per-
manência (MERLEAU-PONTY, 1994: 548-558).
Precisamente sobre esta relação fundadora incidiram os concílios reuni-
dos durante o período aqui analisado: a recomposição da influência pontifícia
sobre a mobilização coletiva veio em forma de uma racionalização da tempo-
ralidade vivenciada através da política papal. Aqueles plenários eclesiásticos
estavam orientados pelas metas de fixar razões de condutas condizentes com
as experiências e as prioridades acumuladas pela Cúpula da Igreja romana. Os
eventuais princípios jurídicos e os ideais de reforma aí encontrados estavam
unidos por um forte pragmatismo: primavam por firmar comandos que re-
mediassem situações concretas, aplacassem os riscos e desafios impostos pela
difícil inserção política e social do papado em âmbito local, propriamente pe-
ninsular. As pressões pela edificação de um domínio patrimonial mais efetivo
transformaram a maneira como os integrantes da Sé Apostólica lidavam com
o decurso temporal.
A racionalização do trato com o tempo não foi privilégio dos merca-
dores medievais ou apanágio do pensar escolástico. O papado do século XII
desempenhou um papel efetivo neste processo por razões provenientes de sua
vida política: o avanço da institucionalização de um poder pontifício suprarre-
gional. Em outras palavras, o processo que, após a década de 1140, agravou a
necessidade de assumir um maior controle sobre o interior da península itálica
produziu sentidos de tempo.
Capítulo 8

Manipular o tempo, governar a igreja


(1179-1215)

Quanto mais o papa Inocêncio queria


estar livre de negócios seculares, mais
ele se imiscuía em questões mundanas.
Autor Anônimo, 1204?
Gesta Innocenti III Papae

8.1. O despojamento da temporalidade

Nas décadas seguintes à realização do III Lateranense, as ações de me-


dir, recortar e controlar o tempo se firmaram como uma rotina cada vez mais
familiar aos integrantes da Cúpula papal. É o que podemos concluir a partir
da análise dos cânones deixados por outro importante concílio. Em 11 de
novembro de 1215, após dois anos de convocações e preparativos, o papa Ino-
cêncio III reuniu cerca de 400 bispos e 800 abades na basílica de São João de
Latrão, em Roma.1 Esse imenso plenário confirmou – segundo a interpretação
dominante (GARCÍA Y GARCÍA, 2005: 65-86) – setenta extensos decretos que
teriam sido pessoalmente ditados por Inocêncio. Esta legislação revela-nos um
papado habituado a quantificar a marcha temporal e a aplicar parcelas cro-
nológicas como instrumentos de intervenção sobre as relações sociais. Obser-
1
Os relatos divergem. Alguns mencionam somente a reunião de uma “copiosa multidão de clérigos”
(tam copiosam cleri multitudinem. CHRONICA S. PETRI EFORDENSIS MODERNA. MGH. SS 30: 384),
outros enumeram a presença de “cerca de quinhentos bispos, mil abades e outros incontáveis clérigos”
(circa quingenti episcopi, mille abbates, et alii clerici infiniti. ANNALES VERONENSES. MGH SS 19:
06). Contudo, há uma cifra exata – adotada pela historiografia e por nós: “412 bispos, entre os quais
dois eram patriarcas (...). Primazes e metropolitanos foram 71, abades e priores mais de oitocentos”
(episcopi 412, inter quos erant patricarche duo (...). Primates et metropolitani fuerunt 71, abbates et
priores ultra octingentos. CHRONICON MONTIS SERENI. MGH SS 23: 186). A lista dos nomes episco-
pais encontra-se em: LUCHAIRE, 1905: 557-568.
444 coLunas de são pedro

vemos o cânone 3, seu texto impõe as formas pelas quais bispos e os poderes
seculares deveriam lidar com os acusados de heresia:

Aqueles que são simplesmente suspeitos de heresia (...), serão atingi-


dos com o gládio do anátema; deverá evitar-se o trato com os mesmos
até [que realizem] a devida satisfação. Se permanecerem sob excomu-
nhão durante o período de um ano, a partir de então, que sejam
condenados como hereges. Que se advirta, exorte e obrigue, se houver
necessidade, por meio de censuras eclesiásticas, aos poderes seculares,
qualquer que seja a sua função – se é que querem ser fiéis e tidos como
tais –, a prestar juramento público de dar caça em defesa da fé, segundo
seu poder, nas terras submetidas à sua jurisdição, a todos os hereges de-
clarados como tais pela Igreja; (...). No entanto, se um senhor temporal,
depois de ser advertido e requerido pela Igreja, descuidar-se de limpar
suas terras desta heresia contaminante, o bispo metropolitano e seus
sufragâneos o excomungarão. Se no prazo de um ano descuidar-se
de levar a cabo uma satisfação apropriada, apresentar-se-á o fato ao
pontífice romano para que este dispense os súditos da fidelidade devida
a seu senhor e exponha suas terras à invasão dos católicos; que estes,
depois de terem expulsado os hereges, tomem posse delas sem oposição
alguma e que as mantenham na pureza da fé, de modo que fiquem a sal-
vo os direitos do dono a menos que este tenha posto alguma oposição ou
obstáculo. (...) Excomungamos os que oferecem crédito aos hereges, os
recebem, os defendem ou ajudam; estabelecemos ainda que todo aquele,
excomungado por tais faltas, que se descuidar de se justificar dentro
do prazo de um ano, será ipso facto declarado infame, e ficará in-
capacitado para todo cargo ou conselho público, para toda eleição para
estas funções e desprovido do direito de prestar testemunho (O grifo é
nosso).2

2 Qui autem inventi fuerint suspicione notabiles (...) anathematis gladio feriantur, et usque ad satis-
factionem condignam ab omnibus evitentur ; ita quod si per annum in excommunicatione perstiterint,
extunc velut haeretici condemnentur. Moneantur autem et inducantur, et, si necesse fuerit, per cen-
suram ecclesiasticam compellantur saeculares potestates, quibuscunque fungantur officiis, ut, sicut
reputari cupiunt et haberi fideles, ita pro defensione fidei praestent publice iuramentum, quod de terris
suae iurisdictioni subiectis universos haereticos, ab ecclesia denatatos (...). Si vero dominus tempo-
ralis, requisitus et monitus ab ecclesia, suam terram purgare neglexerit ab [hac] haeretica foeditate,
per metropolitanum et ceteros comprovinciales episcopos excommunicationis vinculo innodetur, et, si
satisfacere contempserit, infra annum significetur hoc summo Pontifici, ut ex tunc ipse vasallos ab eius
fidelitate denunciet absolutos, et terram exponat catholicis occupandam, qui eam, exterminatis haere-
ticis, absque ulla contradictione possideant, et in fidei puritate conservent, salvo iure domini principa-
lis, dummodo super hoc ipse nullum praestet obstaculum, nec aliquod impedimentum opponat (...).
Credentes praeterea receptatores defensores et fautores haereticorum excommunicationi decernimus
subiacere, firmiter statuentes, ut, postquam quis talium fuerit excommunicatione notatus, si satisfacere
Leandro duarte rust 445

O tempo não emerge, neste decreto, dos movimentos morais interiores


à persona. É antes um curso de marcas externas que regem as ações e escolhas.
É algo a ser observado, obedecido. A passagem do tempo possui aí consequ-
ências para os estados da consciência, não o contrário. Não era preciso que o
suspeito de heresia incorresse em algum novo delito ou que uma prova irrefu-
tável surgisse contra ele para nova medida punitiva recair sobre seus ombros:
bastava certa parcela de tempo transcorrer.
O expirar do prazo de “um ano” transformava um suspeito em um he-
rege de fato, da mesma forma como fazia de um excomungado um infame. A
passagem temporal torna-se fator auto-suficiente para fundar a experiência
da mudança. Porém, devemos ser mais precisos. Afinal, não era simplesmen-
te o fluir do tempo que aparece aí remodelando o espírito do faltoso, mas
uma forma específica de devir: a duração distribuída em pedaços, em porções
identificáveis, mensuráveis, prazos. O modo de existir do ser está aí estimado
como variando segundo a contagem de parcelas cronológicas, convertidas em
unidades de medida dos distúrbios da alma.
Os prazos são aqui referências padronizadas para categorizar o ser, cons-
tituem um índice objetivo de certas qualidades da existência. Para encontrar o
faltoso escondido sob o manto opaco da suspeita ou constatar o agravamento
de uma falta não era imprescindível, segundo o cânone acima, ouvir o pecador,
confrontá-lo com seus atos e acusações. Bastava vigiar os quadros do calendá-
rio, contar os meses. Uma forma de pensar em termos de proporcionalidades
sustenta as linhas deste e dos demais decretos do concílio romano de 1215. Em
seu texto, o tempo, metrificado como uma escala cronológica, e as proprieda-
des morais ou espirituais, como o pecado e a graça divina, surgem convertidos
em grandezas relacionáveis, comparáveis segundo uma medida comum.
O cânone 51, ao tratar das violações do matrimônio, estabeleceu que
um faltoso não poderia “suplicar em sua defesa o passar dos anos, posto que o
tempo, longe de diminuir o pecado, o aumenta. A falta é mais grave quanto mais
tempo retém a alma desgraçada”.3 Parcelas de tempo, doses de pecado: quan-
to mais se acumulassem as primeiras, mais se multiplicavam estas últimas.
Fórmula, aliás, estabelecida no III Lateranense, cujo cânone 7 estipulava, a
respeito das cobranças eclesiásticas por sacramentos: “estes crimes são tanto
mais graves quanto mais tempo retém a alma desgraçada que acaba por ser total-

contempserit infra annum, ex tunc ipso iure sit factus infamis, nec ad publica officia seu consilia, nec
ad eligendos aliquos ad huiusmodi, nec ad testimonium admittatur. CCQL: 47-49; MANSI 22: 986-990;
HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1330-1131.
3
Nulla longinquitate defendantur annorum: cum diuturnitas temporum non minuat peccatum, sed
augeat; tantoque graviora sint crimina, quanto diutius infelicem detinent animam alligatam. CCQL:
91; MANSI 22: 1038- 1039; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1373.
446 coLunas de são pedro

mente escravizada”.4 As qualidades do ser conformam-se ao fluxo de fatias de


tempo, que escoa segundo um movimento próprio, precedendo e orientando
os estados morais da consciência. Emancipada dos conteúdos pessoais, a or-
dem temporal é assentada como uma existência independente, uma coisa do
mundo capaz de pesar sobre as maneiras de existir.
Os limites das durações foram fixados, padronizados como fôrmas às
quais a vida deveria se adaptar. Os prazos eram impostos como códigos cria-
dos para ditar o modo de agir, um momento de escolha. Eles surgem como
referências estabelecidas para identificar as ocasiões cabíveis a um ato, bem
como as extensões de suas pausas e interdições:

Os metropolitanos deverão celebrar todos os anos com seus sufra-


gâneos, concílios provinciais para refletir no temor a Deus e com todo
interesse acerca da correção dos abusos e da reforma dos costumes,
principalmente no clero. (...) As medidas adotadas deverão ser observa-
das; serão publicadas nos sínodos diocesanos que deverão celebrar-se a
cada ano em todas as dioceses.5

Em cada reino ou província se celebrará a cada três anos, permane-


cendo a salvo o direito dos bispos, um capítulo geral dos abades e dos
priores sem abade, que até este momento não se vinha celebrando.6

Estabelecemos que a vacância de uma igreja catedral ou regular não de-


verá exceder um período de três meses. Transcorrido este tempo e
não existindo impedimento legítimo algum, se não se houver celebrado
a eleição, aqueles a quem esta corresponde serão privados do direito
para levá-la a cabo, a qual passará ao superior imediato.7 (Todos os grifo
são nossos).

4
Quod tanto graviora sunt crimina, quanto diutius aninam infelicem tenuerint alligantam. MANSI 22:
221; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1093.
5
Metropolitani singulis annis cum suis suffraganeis provincialia nin omittant concilia celebrare. In-
quibus de corrigendis excessibus, et moribus reformandis, praesertim in clero, diligentem habeant
cum Dei timore tractatum (...). Et quae statuerint, faciant observari, publicanes ea in episcopalibus
synodis annuatim per singulas diaecceses celebrandis. Cânone 6: CCQL: MANSI 22: 991-992; HEFELE-
LECLERCQ 5/2: 1334-1335.
6
In singulis regnis sive provinciis, fiat de triennio in triennium, salvo jure diaecesanorum pontificum,
commune capitulum abbatum atque priorum abbates próprios non habentium, qui non consueverunt
tale capitulum celebrare. Cânone 12. CCQL: 60; MANSI 22: 999-1002; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1342
7
Statuimus, ut ultra tres menses cathedralis vel regularis ecclesia praelato non vacet: infra quos, justo
impedimento cessante, si electio celebrata non fuerit, qui eligere debuerant, eligendi potestate care-
ant ea vice, ac ipsa eligendi potestas ad eum qui próximo praesse dignoscitur devolvatur. Cânone 23.
CCQL: 69-70; MANSI 22: 1005-1006; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1352.
Leandro duarte rust 447

Em todos estes trechos documentais os prazos compõem a métrica


imposta pelo papado para ritmar as relações sociais. Eles formam um corpo
de vetores reguladores, formados para conferir certa previsibilidade ao curso
de ações a serem executadas. Todos estão relacionados como pontos de orien-
tação dispostos de mesma maneira: os recortes de duração – os períodos de
“um ano”, “três anos” e de “três meses” – são os marcos de uma reedição sem
fim aparente, uma repetição constante de uma razão de conduta previamente
traçada, definida. A realização de sínodos provinciais e diocesanos deveria
ocorrer a cada ano, por todos os anos, incessantemente: não havia a previsão
de um fim. O mesmo se daria com os capítulos gerais monásticos: três giros
completos da roda do calendário e pronto, eis o momento de reuni-los! Três
era ainda o número de meses de que dispunham os integrantes de uma igreja
para escolher um novo pastor, sempre e por toda parte.
Previsibilidade. Praticidade. Regularidade. A temporalidade presente
nos cânones de 1215 destoa daquela que dominou as decisões conciliares em-
preendidas pelo papado de cem anos antes. As marcas da duração encontram-
se projetadas para fora do ser, perderam em reversibilidade, mobilidade. Esta
transformação decorria da consolidação dos sentidos de tempo que despon-
taram nos concílios alexandrinos, como Tours (1163) e Latrão (1179), déca-
das antes. Os graves riscos oferecidos no interior do Lácio para a sustentação
material da igreja romana faziam com que encargos práticos da organização
eclesial mobilizassem os integrantes do papado de modo intenso. Moveram-
nos para a necessidade de envolver as relações eclesiásticas em movimentos
estáveis e duradouros. Os cânones lateranenses aprovados por Inocêncio III
prolongavam, como palavras de ordem destinadas à totalidade da Cristanda-
de, o empenho da Sé de Roma para perdurar. Assim promovia-se a busca pela
conservação. Pela consolidação e perpetuação de um papado que ascendeu
politicamente enfrentando a própria fragilidade.
Na virada para o século XIII, tal razão de conduta permanecia na or-
dem do dia dos assuntos pontifícios. O papado continuava sofrendo perdas
patrimoniais que prolongavam um quadro de tensões herdado da época de
Adriano IV e Alexandre III. A dinastia Staufen persistia empenhada em concre-
tizar o domínio imperial sobre a península itálica, cobrindo-a com uma malha
de aliados estrategicamente alocados. Entre 1190 e 1197, o norte e o leste ita-
lianos foram divididos. Felipe, irmão do rei Henrique VI, recebeu o ducado da
Toscana. Conrado de Urslingen passou a controlar o ducado de Spoleto, cuja
posse reuniu ao título de conde de Assis, por ele recebido em 1174, quando
tomou o lugar de Cristiano, arcebispo de Mainz e homem de armas de Fre-
derico I. Markward de Anweiler – um ministeriali elevado ao primeiro plano
do cenário político imperial – governava a região da Romagna, o ducado de
448 coLunas de são pedro

Ravenna, a marca da Ancona, além do condado de Abruzzi. Por fim, Dipold


de Schweinspeunt detinha o condado de Acerra e Conrado de Marlenheim
era o conde de Sora (MOORE, 2009: 13. Ver ainda: VAN CLEVE, 1937: 66-93;
WALEY, 1961: 33-37; PARTNER, 1972: 223-241).
Em consequência, em meados dos anos 1190, segundo o autor anônimo
da Gesta Innocenti III Papae, o imperador “havia ocupado todo o patrimônio da
igreja até os portões da cidade [de Roma], com exceção da Campânia, na qual,
todavia, ele era mais temido do que o papa”.8 Às áreas de dominação germâni-
ca, adquiridas no norte e no leste peninsular, somava-se um controle imperial
sobre o regno da Sicília, conquistado em 1194 por Henrique sobre o cadá-
ver de Tancredo de Lecce, nobre que o baronato siciliano tinha proclamado
rei, numa tentativa desafortunada de resistir ao filho do Barba Ruiva (ZERBI,
1993: 179-194). As duas frentes de hegemonia imperial, uma ao norte e outra
ao sul, comprimiram perigosamente as terras reclamadas pelo papado.
Na realidade, a Sé Romana entrincheirava-se, acuada pelas incursões
realizadas pelo Staufen para converter o centro peninsular em um corredor
que ligasse as áreas controladas pelos vassalos imperiais ao norte e o reino
germânico da Sicília, ao sul. Diferentemente do que ocorreu nos últimos cin-
quenta anos, a tradição normanda de expansão militar sobre o Mediterrâneo,
até então um frequente obstáculo para a hegemonia teutônica, passava agora
a confluir para os planos dos Staufen de ocupação da península. Diante da
nova correlação de forças, “a igreja romana passou a se encontrar, naqueles
dias, em uma posição muito crítica e perigosa, na qual algumas de suas exigên-
cias vitais estavam comprometidas”, concluiu Piero Zerbi (1955: 103-106. Ver
ainda: 1993: 167-96).
A contínua apropriação imperial de possessões e rendas associadas à
Sé Romana deixou marcas nos relatos de inclinação filo-papal. Referindo-se
ao ano de 1208, quando o condado de Sora foi subtraído à influência dos
Staufen, os Annales Ceccanenses saldaram o fim do “jugo teutônico que durou
por gravíssimos dezessete anos, durante os quais toda a região foi afligida de
muitas maneiras e gravemente depauperada em muitos lugares”.9 Após a morte

8
Henricus autem imperator occupaverat totum regnum Siciliae, totumque patrimonium Ecclesiae us-
que ad portas Urbis, praeter solam Campaniam, in qua tamen plus timebatur ipse quam papa. GESTA
INNOCENTII III PAPAE. PL 214: 21. Um relato mais detalhado sobre a influência imperial sobre a Cam-
pânia e a imposição da dominação germânica nas regiões próximas ao centro peninsular encontra-se
em: RICARDO DE SÃO GERMANO. Chronica. RISS 7/2: 12-14, 16-19.
9
Duravit hoc Teutonicorum iugum gravissimum 17 annis, per quos tota regio multifarie multisque
modis afflicta est et depauperata perplurimum. ANNALES CECCANENSES. MGH SS 19: 296. Em 1208,
o cardeal Pedro Saxo e o abade de Monte Cassino lideraram as tropas pro-papado contra o castelão
germânico de Sora, Sorella e Arce, Conrado de Marlei. Após derrotá-lo, o título de conde de Sora foi
dado a Ricardo, irmão do papa Inocêncio III. RICARDO DE SÃO GERMANO. Chronica. RISS 7/2: 12-
14, 16-19.
Leandro duarte rust 449

de Henrique VI, Inocêncio fixaria o cumprimento da promessa de reconhecer e


defender o patrimônio de São Pedro como condição para se pronunciar sobre
a disputa travada pelo trono imperial entre Oto de Brunswick e Felipe da Su-
ábia, nobres sucessores dos Staufen.10 As santas mãos do papa só entregariam
a coroa de Carlos Magno quando a Igreja de Roma mantivesse suas terras em
segurança.
Em Roma o cenário não era diferente. Em maio de 1188 o papado
estabeleceu a paz com o Senado. A Igreja reconhecia o direito comunal de ele-
ger seus magistrados e cedia às pretensões citadinas quanto a controlar certas
possessões que até então figuravam entre as regalia constituintes do patrimô-
nio apostólico. Caso de Tusculum, cuja cidade e fortaleza (rocca) deveriam
ser entregues ao senatus populusque romanus.11 A concordia firmada entre Cle-
mente III e os senadores, contudo, foi insuficiente para selar um compromisso
do governo urbano com a política pontifícia. Embora o pacto estipulasse que
os ocupantes dos assentos senatoriais deveriam se declarar vassalos do papa,
sua confirmação muito pouco serviu para remediar a fragilidade do domínio
secular da Sé Romana sobre o Lácio, região já virtualmente controlada pelos
Staufen (WALEY, 1961: 23; PARTNER, 1972: 223-228).
Pelo contrário, com sua autonomia finalmente reconhecida, a Urbe es-
tava agora legitimamente amparada para seguir uma linha política própria:
na Sabina e na Marítima agentes da comuna controlavam funções judiciárias
removidas da alçada dos subordinados papais. Em 1191, quando Henrique VI
restituiu a Clemente algumas cidades ocupadas na Romagna-Campânia – Or-
vieto, Viterbo, Corneto, Vetralla, Orte, Narni, Amelia, Tusculum e Terracina –,
cumprindo as condições de paz ditadas pelo papa para a coroação imperial,12
o verdadeiro beneficiado foi o senador Benedito Carushomo, não o pontífice:
o magistrado foi quem exerceu efetivo domínio sobre aqueles sítios e suas
populações (WALEY, 1961: 24-26; LAURA, 1985: 73-87; GREGOROVIUS 4/2:
262).
O Senado seguia rivalizando com a sancta ecclesia romana, resistindo-
lhe e, muitas vezes, opondo-lhe uma orientação filo-imperial. Como na época
de Eugênio III, o controle papal sobre a designação do praefectus – cujo ocu-
pante prestava uma homenagem lígia ao bispo de Roma – não era suficiente
para garantir a primazia do governo curialista sobre a cidade e suas regiões

10
JURAMENTUM OTTONIS REGIS ILLUSTRIS IN ROMANORUM IMPERATOREM ELECTI. PL 215:
1082-1083
11
CONCORDIA INTER DOMNUM PAPAM CLEMENTEM III ET SENATORES POPULUMQUE ROMA-
NUM SUPER REGALIBUS ET ALIIS DIGNITATIBUS URBE. Liber Censuum: 373-374.
12
PAX CUM CLEMENTE III. MGH Const. 1: 460-461.
450 coLunas de são pedro

vizinhas.13 A paz de Clemente devolveu a residência papal à Cidade Eterna,


contudo, ao preço de severas perdas territoriais e jurisdicionais. A gravidade
deste cenário foi insistentemente frisada pela historiografia. Taxativa, Hélene
Tilmann (1980: 1) concluiu: “em meio à fraqueza e indulgência, Celestino III
permitiu aos romanos usurpar os direitos soberanos na cidade e suas proximi-
dades”. Suas palavras reproduziam um tom já anunciado por Daniel Waley
(1961: 26): “o que emerge mais claramente da evidência fragmentada destes
anos é o fortalecimento da própria Roma e a insegurança do aparente sucesso
papal de 1188. (...) Durante todo esse tempo não houve, virtualmente, nenhum
traço de governo papal no Patrimônio”.
Por volta de 1200, a cúpula papal continuava lidando com um dos prin-
cipais traços da estruturação política seguida por ela a partir de meados do
século XI: a restrição de sua inserção senhorial. Seus integrantes permane-
ciam mobilizados, geração após geração, para pelejar contra reveses antigos.
As perdas de incontáveis domínios e rendas que acometiam aqueles homens
provinham de muito antes. Elas se multiplicaram nas numerosas brechas que a
projeção suprarregional do poder pontifício abriu na influência local do papa-
do. Em outras palavras, a dominação temporal dos papas continuava a vacilar
no centro peninsular por que tais áreas não foram alvo prioritário das relações
de sustentação política da Santa Sé. Portanto, o que debilitava seu poder não
era só a convergência entre o recrudescimento da política imperial com os
Staufen – sob um agressivo ideal de restauratio territorial cimentado por um
forte senso dinástico – e a expansão dos circuitos urbanos de poder e enrique-
cimento – força motriz da afirmação de governos citadinos (BENJAMIN, 1991:
112-220). Sua fragilidade provinha igualmente do próprio processo de sua as-
censão histórica, tema de todos os nossos capítulos anteriores: a constituição
de um papado suprarregional.
Tal processo transcorreu em meio a fortes divergências com os poderes
regionais, estado de forças que comprometeu a implantação de um domínio
temporal local por parte da sancta ecclesia romana que fosse dotado de bases
sociais duráveis. A força interna que moveu a construção dos chamados “Es-
tados papais” – obra particularmente reputada a Inocêncio III – era a neces-
sidade de reverter a fragilidade do controle exercido pela Santa Sé sobre as
próprias “possessões apostólicas” (regalia beati Petri). Não houve uma espécie
de projeto centralizador papal, como sugeriu, entre tantos outros, John Moore
(1987: 81-101) no célebre estudo Innocent III, Sardinia and the Papal State
(Ver ainda: PARTNER, 1972: 229-243; TOUBERT, 2973: 1038-1041; TILL-
MANN, 1980: 22-24; SAYERS, 1994: 49-71; MORRIS, 2001: 418-441). Cabe

13
GESTA INNOCENTII III PAPAE. PL 214: 21-23.
Leandro duarte rust 451

aqui lembrar que o próprio Daniel Waley (1961: 30) já havia identificado, a
seu modo, esta característica central da política inocenciana: “os primórdios
do primeiro Estado Papal efetivo é, em um sentido, um processo negativo, pois o
fator essencial em suas origens é o ‘vacuum de poder’ na Itália central”.
Converter domínios materiais esporádicos em controles contínuos. Pôr
um fim nas interrupções e nos vazios do poder temporal eclesiástico. Encon-
trar meios de reaver e reter o patrimônio alienado ou usurpado. Tais propó-
sitos comandavam a eclesiologia romana há décadas e em fins do século XII
despontaram como uma razão dominante, orientada para organizar, tornar
permanente, assegurar eficácia. Precisamente nesta mesma época, quando a
impotência temporal do papado tornava-se crônica, a Cúria deu forma a uma
coleção de documentos capaz de amparar legalmente muitas de suas reivin-
dicações fiscais e demandas territoriais. Era o Liber Censuum, elaborado em
1192 pelo cardeal e camerarius Cêncio Savelli. Não era a primeira compilação
do gênero, já que o próprio Liber era integrado pela coleção composta pelo
cardeal Deusdedit, no século XI, e pelos textos reunidos por outros nomes
(FABRE, 1899). Mas, o Liber Censuum destaca-se por sua organização, por
uma disposição mais coerente e prática dos cartulários de doações imperiais,
do Ordo Romanus e dos textos compostos por cronistas papais. Sistematizar,
regular, fixar. Tal era a linha de força das ações curialistas, colocada em prática
nesta compilação de registros patrimoniais.
O próprio Inocêncio III liderou ações que seguiram o mesmo sentido.
Nos dez anos seguintes à sua eleição, o novo pontífice instalou um gover-
no curialista sobre a marca da Ancona, o ducado de Spoleto, a Toscana e a
Campânia, províncias que a partir de então se tornaram parte de uma mes-
ma entidade política. Para cada uma destas áreas, cardeais eram designados
rectores e/ou enviados como legados especialmente incumbidos de assuntos
temporais.
Com isto erguia-se uma rede de governos provinciais estáveis. Em 1207,
Inocêncio presidiu em Viterbo a primeira assembleia a congregar represen-
tantes laicos e clericais envolvidos com o governo da marca, do ducado e da
Toscana. Ao longo de três dias este plenário estabeleceu medidas para assegu-
rar a eficácia da jurisdição papal, a prestação de juramentos por feudatários e
magistrados das comunas, o arbítrio de litígios e o julgamento de petições, a
promulgação de “estatutos para preservar a justiça e a paz”.14 Deste estatuto, A
Gesta Innocentii III Papae preservou o registro das medidas estipuladas para o
combate à heresia no interior do patrimônio. Após listar medidas de vigilância
e repressão, o texto termina com forte tom de ordenança:

14
GESTA INNOCENTII III PAPAE. PL 214: 162.
452 coLunas de são pedro

Este estatuto, que nunca deve ser removido, deve ser escrito no capítulo
ao qual os potestates, cônsules e rectores jurarão anualmente, e para
que sempre jurem que este estatuto seja firmemente observado.15 (O
grifo é nosso).

“Todos os anos”. “Sempre”. “Firmemente”. A mesma razão ordenadora


que regeu o Liber Censuum e orientou as ações papais em relação ao patrimô-
nio petrino prevaleceu nos cânones lateranenses de 1215. Nos quadros desta
racionalidade, o escoar do tempo passa a gerar efeitos positivos. Obedecer ao
devir e a seu inapelável fluir torna-se precisamente o antídoto contra a perda,
o mal, o vazio. É possível tomar o tempo por aliado, colocá-lo para girar em
benefício da existência material. Observe-se como o cânone 30 legislou sobre
a promoção de “pessoas indignas a benefícios eclesiásticos”:

Querendo desterrar de uma vez por todas este mal, decretamos


que se destitua os indignos e, em seu lugar, sejam concedidos esses car-
gos a pessoas aptas, desejosas e capazes, ao mesmo tempo, de render e
prestar um serviço agradável a Deus e à Igreja. Nesta matéria que nos
ocupa, por causa da celebração do concílio provincial, far-se-á todos os
anos uma investigação séria e a fundo.16 (O grifo é nosso).

O tempo não aparece aí como algoz do ser, fonte de dispersão ou de-


sagregação. Ao contrário, há aí o que poderíamos considerar como um in-
vestimento simbólico na natureza temporal da existência humana. O devir é
veiculado como um movimento regular, estável, confiável. Desponta como um
meio exterior capaz de funcionar como um contrapeso para as ações humanas,
de sustentá-las, estabilizá-las num ponto desejável, ditar-lhe um ritmo seguro,
previsível, regulado.
A partir do tempo definia-se e realizava-se um modelo para o agir. Suas
divisões, suas parcelas emergem como índices reguladores, parâmetros para
os comportamentos a serem adotados: “se o responsável pela custódia dos mes-
mos [o santo crisma e a eucaristia] abandonar imprudentemente seu encargo,
ficará suspenso de seu cargo durante três meses”;17 como se vê ainda nesta

15
Statutum istud in Capitulari scribatur, ad quod annualim intrant Potestates, Consules seu Rectores,
nec unquam removeatur ex illo, ut semper iurent ipsum statutum se firmiter servaturos. GESTA INNO-
CENTII III PAPAE. PL 214: 162.
16
Volentes igitur huic morbo mederi, praecipimus ut praetermissis indignis assumant idoneos, qui Deo
et Ecclesiis velint et valeant gratum impendere famulatum, fiztque de hoc in provinciali concilio dili-
gens inquisio annuatim. Cânone 30. CCQL: 75; MANSI 22: 1017-18; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1358.
17
Si vero is ad quem spectat custodia, ea incaute reliqueri, tribus mensibus ab officio suspendatur.
Cânone 20. CCQL: 67; MANSI 22: 1007-1008; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1349.
Leandro duarte rust 453

outra passagem “O pároco que não tiver proibido tais matrimônios [clandesti-
nos] ou o clérigo regular, de qualquer ordem que seja, que tiver assistido aos mes-
mos, será destituído de seu cargo pelo espaço de três anos”.18 (O grifo é nosso).
Há aqui uma relação do tipo sujeito-objeto, através da qual o tempo
cronológico se fez instrumento e regra dos ofícios clericais. Seu curso possui
propriedades materiais, ou melhor, espaciais: é exterior ao ser, possui uma ex-
tensão visível, é divisível, contábil, e suas diferentes partes parecem coexistir
no tecido da vida coletiva. Suas porções compõem quadrantes aplicáveis às
condutas. A Cúria papal instrumentalizou o devir, convertendo-o em vetor
de incessante enquadramento da vida. Seus integrantes o envolveram com
uma racionalidade marcada por relações de proporcionalidade e ordem. Com
isso, trabalharam-no por dentro, distribuíram-no e organizaram-no segundo
a conveniência de cada uma de suas partes para o que supunham ser o bom
funcionamento do governo eclesial:

Aqueles que, por sua vez, tiverem levado a cabo tal eleição [com inter-
ferência laica], Nós a declaramos nula ipso jure, e serão despojados de
seus cargos e benefícios durante três anos e pelo mesmo período de
tempo perderão o direito eleitoral.19 (O grifo é nosso).

Se alguém deixar transcorrer mais de três meses [acumulando benefícios


eclesiásticos], conforme o estabelecido no concílio de Latrão [de 1179],
não somente deverá entregar a outro o direito de colação como, além do
mais, estará obrigado a prover suas despesas e as necessidades da igreja
da qual depende o benefício, dada conta da parte proporcional
das rendas percebidas desde o momento da vacante.20 (O grifo é nosso).

Medidas como estas indicam a existência de uma consistente valoriza-


ção do tempo presente. As presenças que os cânones lateranenses de 1215
inscreviam na senda da vida eclesial não eram passadiças ou intangíveis. As
obrigações, as incumbências e os direitos eram inscritos em unidades cronoló-
gicas estáveis e precisas: meses inteiros; todo um ano; o curso de triênios. Eis
18
Sane parochialis sacerdos qui tales conjunctiones prohibere contempserit, aut quilibet etiam regula-
ris qui eis praesumpserit interesse, per triennium ab officio suspendatur. Cânone 51. CCQL: 92; MANSI
22: 1037-1040; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1374.
19
Qui vero electionem hujusmodi, quam ipso jure irritam esse censemus, praesumpserint celebrare,
ab officiis et beneficiis penitus per triennium suspendantur, eligendi tunc potestate privati. Cânone 25.
CCQL: 71; MANSI 22: 1013-1014; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1354.
20
Et si ultra tres menses conferre distulerit, non solum ad alium, secundum statutum Lateranensis
concilii, ejus collatio devolvatur: verum etiam tantum de suis cogatur proventibus in utilitatem Eccle-
siae, cujus illud est beneficium, assignare, quantum a tempore vacantionis ipsius constiterit ex eo esse
perceptum. Cânone 29. CCQL: 74; MANSI 22: 1015-1018; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1357.
454 coLunas de são pedro

aí as diferentes medidas do “agora”. Era possível antever, em num só relance,


o começo e o fim do presente ao qual pertenceriam os agentes eclesiásticos.
Fossem cúmplices de uma eleição conduzida sob a influência laica, deveriam
ser lançados em um estado de despojamento insuprimível por três anos. A
acumulação de benefícios seria tolerada, licitamente, por três meses. O espaço
de duração de um modo de viver era visível, podia ser antecipado e anun-
ciado previamente. Na legislação conciliar de 1215 era possível enxergar de
antemão todo o raio de duração de certas práticas e condutas. Seus cânones
demarcavam previamente o quantum das formas de proceder: quanto uma
maneira de ser deveria persistir; quanto uma ação deveria ser reeditada ou
deixada em suspenso.
Muitas das medidas decretadas naquele novembro de 1215 continham
em si as perspectivas de sua própria duração. Seus textos tomavam posse de
meses ou de anos à sua frente: a partir de então, a cada ano haveria um sínodo
provincial; a cada três, um capítulo monástico. As medidas conciliares prolon-
gavam-se sobre o porvir, tornando os momentos vindouros visíveis, palpáveis
ao agir, isto é, já presentes na consciência. As periodicidades estipuladas in-
duziam os clérigos a se “pré-ocuparem” com horizontes de vida que ainda se
realizariam, mas que estavam já antecipados, anunciados.
Esta capacidade de ver de antemão, de trazer o tempo para perto de si,
fazia com que o presente abocanhasse momentos que ainda ocorreriam, esten-
dendo-se, esticando-se: o porvir tornou-se um terreno sobre o qual o presente
seguia se realizando e no qual uma persona podia intervir, lançando-se à ação.
Afinal, tudo que desperta a impressão de uma presença, é território do presen-
te. Assim elucidou um notável estudioso russo do tempo, demonstrando que,
em termos fenomenológicos, “o movimento em direção ao porvir é o próprio
processo de sua criação, de sua atualização” (ASKIN, 1978: 131).
Toda a obra conciliar de 1215 foi, em si, essa forma de “presente es-
tendido”, no qual numerosas ações vindouras estavam inscritas no “agora”
em que se reuniu o plenário conciliar que abarrotou a basílica de São João
de Latrão sob a regência de Inocêncio III. Noutra passagem, determinou-se:
“sempre deverão respeitar-se as regras de procedimento judicial no enunciado da
sentença”.21 Antes mesmo de vir a existir, era possível divisar o conteúdo que
preencheria o porvir. Esse, portanto, não era imponderável, inapreensível ou
de teor escatológico e distante. Não constituía um futuro (tempora futura),
mas uma porção de tempo próxima, previsível. Um teatro ao qual devia se
ambientar a ação humana.

21
Illo semper adhibito moderamine, ut juxta formam judicii, sententiae quoque forma dictetur. Câno-
ne 8. CCQL: 57; MANSI 22: 993-996; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1339.
Leandro duarte rust 455

Segundo Jean-Claude Schmitt (In: BURROW, 2000: 3-13), durante a


Idade Média, a ideia de futuro (futura, em plural latino) era constituída por
um forte teor escatológico, direcionado para o “Fim dos Tempos” e para a
transcendente vontade de Deus, o que lhe conferia uma forma insondável e
misteriosa. Se algo podia ser projetado sobre o futuro, era por que esta di-
mensão temporal comportava características cíclicas: o que se realizaria nos
momentos distantes seria a consumação da mensagem das origens. O fim da
história estava escrito desde os primórdios pela divina providência que se re-
velava nos textos bíblicos.
O futuro teria sido uma dimensão temporal simultaneamente linear e
cíclica. Neste sentido, segundo Schmitt (In: BURROW, 2000: 6), quando fala-
mos do medievo, devemos opor duas formas de futuro:

A mais antiga das duas é representada pela palavra ‘futur’: o futuro, os


futura, não pode ser inteiramente conhecido, mas está localizado no in-
terior de uma estrutura de conhecimento, de prospectiva e de ação que
é fixada, acima de tudo, pelo caso do tempo escatológico da religião ou
do tempo cíclico do ritual e da liturgia. A este nós devemos opor a no-
ção moderna de ‘tempo-por-vir’ (avenir), que designa um futuro aberto,
completamente imprevisível e irreversível, um tempo sem Deus, o pro-
duto do desencantamento do mundo.

O porvir registrado em Latrão IV não se encaixa em nenhum destes dois


tipos: não era cíclico ou misterioso, tampouco irreversível ou imprevisível. Era
um prolongamento seguro do presente.
O “agora” imposto sobre a ação eclesiástica era o avesso daquele pro-
posto pelo célebre olhar agostiniano: não era uma corrente de trágicos instan-
tes-gotas, de momentos fugazes ou de pontos miúdos que o fluxo do tempo
consumia antes mesmo que os homens pudessem percebê-los. Parece não ha-
ver espaço no conjunto dos cânones lateranenses para definições como estas,
estabelecidas pelos Confessionum Libri XIII:

Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja mais suscetível de


ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse
podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro
ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em
passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço.22

22 Si quid intellegitur temporis, quod in nullas iam vel minutissimas momentorum partes dividi pos-
sit, id solum est, quod praesens dicatur; quod tamen ita raptim a futuro in praeteritum transvolat,
ut nulla morula extendatur. Nam si extenditur, dividitur in praeteritum et futurum: praesens autem
456 coLunas de são pedro

Em todos os trechos documentais analisados neste capítulo, o presente


possuía uma extensão observável e suas dimensões deveriam ser não apenas
sentidas, mas vistas cara a cara, observadas, obedecidas. Cada prazo consti-
tuía um parâmetro inequívoco oferecido à experiência, algo evidente em si
mesmo; destinado a ser apreendido por todos. O presente não era um grão
de tempo lançado nas brisas da eternidade, nem a fração de uma sina de
dispersão que se consumaria na morte. Os homens reunidos naquele concílio
de 1215 pareciam sentir o tempo de um modo diferente deste: “Não existe
ninguém que não esteja mais próximo da morte depois de um ano que antes dele,
amanhã mais do que hoje, hoje mais do que ontem, pouco depois mais do que
agora e agora pouco mais do que antes. (...) De modo que esta vida não passa
de corrida para a morte.23 Os cânones aprovados por eles nos remetem a expe-
riências sociais em que o tempo aparece como o solo das ações coletivas, seu
ponto de sustentação, o laço que as seguraria.
Vejamos a Ad Liberandam Terram, bula que, publicada juntamente com
os setenta cânones lateranenses, em dezembro de 1215, traçou o planejamen-
to para a realização de uma nova cruzada sobre a Terra Santa:

Nosso mais ardente desejo é libertar a Terra Santa das mãos dos infiéis.
Com este fim, depois de ter pedido e escutado o conselho de homens
prudentes, bem informados das circunstâncias de tempo e lugar [rela-
cionados ao nosso propósito], com a aprovação do santo concílio, esta-
belecemos o que segue. Que os cruzados se preparem e que, pelo menos
todos os que dispuseram a viajar por mar, se reúnam nas kalendas de
junho [dia 1] no reino de Sicília, uns em Brindisi e outros em Messina
ou em seus arredores, segundo lhes convenha. Se Deus o permitir, nós
nos mudaremos para ali pessoalmente, com o fim de orientar, mediante
nosso conselho e nossa ajuda, uma reta organização do exército cristão,
com a benção divina e apostólica. O mesmo prazo é fixado, para
aqueles que pensam em fazer a viagem por terra . (...) Autorizamos os
clérigos a receber durante três anos os frutos íntegros de seus benefí-
cios, como se residissem em suas igrejas e, se for necessário, a empenhá-
los pelo mesmo período de tempo. (...) Com esta finalidade, e para não

nullum habet spatium. AGOSTINHO DE HIPONA. Confessionum Libri XIII. PL 32: 817.
23
Ex quo enim quisque in isto corpore morituro esse coeperit, numquam in eo non agitur ut mors
ueniat hoc enim agit eius mutabilitas toto tempore uitae huius – si tamen uita dicenda est – ut ueniatur
in mortem. nemo quippe est, qui non ei post annum sit, quam ante annum fuit, et cras quam hodie, et
hodie quam heri, et paulo post quam nunc, et nunc quam paulo ante propinquior; quoniam, quidquid
temporis uiuitur, de spatio uiuendo demitur, et cottidie fit minus minusque quod restat, ut omnino
nihil sit aliud tempus uitae huius, quam cursus ad mortem. AGOSTINHO DE HIPONA. De Civitate Dei.
CCSL 48: 103.
Leandro duarte rust 457

omitir absolutamente nada neste assunto de Nosso Senhor Jesus Cristo,


desejamos e ordenamos o seguinte: (...) que aqueles que não forem pes-
soalmente em ajuda à Terra Santa, participem na manutenção de um
número apropriado de combatentes durante três anos, segundo seus
recursos e bens, com vistas a alcançar, desta maneira, a remissão de seus
pecados conforme os termos das encíclicas e das disposições ditadas na
continuação, para maior garantia. (...) Desejosos por oferecer aos pre-
lados das igrejas e aos clérigos em geral a possibilidade de participar e
serem consolados pelo mérito e pela recompensa [desta empresa], com
a aprovação unânime do concílio, estabelecemos o que segue: todos os
clérigos, tanto os subalternos como os prelados, dedicarão ao socorro
da Terra Santa – durante três anos, por mediação dos mandatários
da Sede Apostólica – a vigésima parte das rendas eclesiásticas.24 (Os
grifos são nossos).

Manipular o tempo; valer-se de suas unidades para regular e garantir a


eficácia das condutas coletivas; capturar e colonizar o porvir como um presen-
te estendido. Tudo isso se encontra colocado nestas linhas, compondo um qua-
dro singular. Note-se que o texto acima não fixou, explicitamente, que o clero
entregasse a vigésima parte de suas rendas enquanto durassem os esforços de
retomada da Terra Santa. Os cristãos que não haviam se engajado pessoal-
mente na cruzada não deveriam colaborar para a manutenção dos guerreiros
“até que Jerusalém estivesse em poder cristão”, mas sim “durante três anos”.
O desfecho de um evento foi transformado em um prazo, num lapso de
tempo fixo e homogêneo para toda a Cristandade. Precisamos nos distanciar

24
Ad liberandam Terram Sanctam de manibus impiorum ardenti desiderio aspirantes, de prudentum
virorum consilio, qui plene noverant circumstantias temporum et locorum, sacro approbante concilio,
diffinimus: ut ita crucesignati se praeparent, quod in kalendas junii sequentis post proximum, omnes
qui disposuerunt transire per mare, conveniant in regnum Siciliae: alii, sicut oportuerit et decuerit,
apud Brundusium, et alii apud Messanam, et partes utrobique vicinas: ubi et nos personaliter, Domino
annuente, disposuimus tunc adesse, quatenus nostro consilio et auxilio exercitus christianus salubriter
ordinetur, cum benediction divina et apostolica profecturus. Ad eumdem quoque terminum se studeant
praeparare qui proposuerunt per terram proficisci. (...) Ipsis autem clericis indulgemus, ut beneficia
sua integra percipiant per triennium, ac si essent in ecclesiis residentes;et, si necesse fuerit, ea per
idem tempus pignori valeant obligare. (...) Ad haec, ne quid in negotio Jesu Christi de contingentibus
omittatur: volumus et mandamus (...) ut qui personaliter non accesserint in subsidium Terrae Sanc-
tae, competentem conferant numerum bellatorum, cum expensis ad triennium necessariis secundum
proprias facultates, in remissionem peccatorum suorum prout in generalibis litteris es expressum, et
ad majorem cautelam etiam inferius exprimetur. (...) Cupientes autem alios ecclesiarum praelatos,
nec non clericos universos, et in merito et in praemio habere participes et consoles: ex communi con-
cilii approbatione statuimus, ut omnes omnino clerici, tam subditi, quam praelati, vigesimam partem
ecclesiasticorum proventuum usque ad triennium conferant in subsidium Terrae Sanctae, per manus
eorum qui ad hoc apostólica fuerint providentia ordinati. AD LIBERANDAM TERRAM. CCQL: 110-118;
HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1390-1392; POTTHAST 5012
458 coLunas de são pedro

da aparente naturalidade com que os prazos estão dispostos nesta bula e ten-
tar contornar a impressão de evidência familiar que seu texto assume diante
de nossos olhos. Pois se um evento foi aí substituído por um recorte de tempo
isto nada teve de simples ou banal. Ao contrário, a própria Ad Liberandam
Terram possui passagens elaboradas segundo uma lógica de temporalização
diferente. Trechos nos quais um acontecimento – e não fatias cronológicas –
determinava, formalmente, a experiência da duração:

Desde o momento em que tomaram a cruz, seus familiares e


seus bens [dos cruzados] se encontram sob a proteção de São Pedro e
a nossa. (...) Desta forma, até o anúncio certo de sua morte ou
de sua volta, seus bens não sofrerão violência ou diminuição alguma.
Quem agir contra esta norma será merecedor de censura eclesiástica.
(...) Desde o momento de sua partida até o anúncio certo de
sua morte ou de seu regresso, as dívidas deixarão de rolar.25 (Os
grifos são nossos).

Neste fragmento os recortes de tempo não duravam em si mesmos, sua


passagem não era independente ou exterior às vicissitudes humanas. “A toma-
da da cruz”, “o anúncio da morte”, a “partida”: a duração não simplesmente
corria ou escoava, ela não possuía um movimento próprio traduzido em meses
ou anos. Assim, cabe perguntar: por que o mesmo não se deu com a organiza-
ção da cruzada? Por que, na passagem anteriormente transcrita, a reconquista
de Jerusalém foi substituída por um prazo de três anos? Em outros termos: por
que o papado converteu a finalidade de suas ações em um recorte de tempo?
Qual a razão por trás destas duas formas de lidar com a temporalidade? Este
hiato presente no texto da Ad Liberandam Terram como silêncio documental
(ORLANDI, 1995: 78-91) foi a fórmula de realização de uma escolha política.
Ele nada teve de aleatório ou de fortuito, pois foi a forma de proceder a uma
seleção.
Ao converter o objetivo de suas ações em um prazo, o papado buscava
objetivá-lo, transformá-lo em algo completamente conhecido já antes de ocor-
rer. A cruzada, quando evocada na Ad Liberandam Terram, não é uma irrupção
humana volúvel, obra exposta a variantes escorregadias, à vontade cambian-

25
Cum tempus proficiscendi annum ascedat in modico, crucesignati, a collectis, vel a talliis, aliisque
gravaminibus sint immunes, quorum personas et bona, post crucem assumptam, sub beati Petri et nos-
tra protectione suscepimus (...). Ita ut,donec de ipsorum obitu vel reditu certissime cognoscatur, inte-
gra maneant et quieta: et si quisquam contra praesumpserit, per censuram ecclesiasticam compescatur.
(...) Usquequo de ipsorum obitu vel reditu certissime cognoscatur, usurarum incommoda non incur-
rant... AD LIBERANDAM TERRAM. CCQL: 113-115; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1393; POTTHAST 5012.
Leandro duarte rust 459

te dos homens, a ímpetos imprevisíveis. Ela é uma contabilidade de meses,


de anos, e como tal, tornava-se manuseável, manutenível. Ao ser substituída
por um prazo, a expedição perdia sua opacidade para exibir-se mensurável e
previsível. Com isso ela era expurgada do risco de surpreender; de hospedar
o inesperado; de revelar alguma indocilidade à Sé Apostólica. Que poderia,
desta maneira, antever sua ocorrência, criar seu desenrolar de antemão, ante-
cipar-se a desvios e projetar contratempos.
Os prazos empregados pela bula forneciam uma medida da extensão do
presente, o quanto se podia capturar do porvir da própria cruzada. Ao elabo-
rar prazos e fixá-los como uma finalidade per se, a Cúria selecionava os alvos
prioritários de seu poder, destacando suas metas de controle. Por isso, ao ten-
tar atingir diretamente o poder dos sarracenos, que desde 1187 controlavam
o Santo Sepulcro, a Igreja Romana recheou suas decisões com uma duração
que não estava condicionada a evento algum, anunciada unicamente como
uma fatia de tempo intercambiável e neutra quanto a predicados morais. Ou
seja, um prazo:

Proibimos, além disso, sob pena de excomunhão, a todos os cristãos, que


durante quatro anos dirijam seus navios até as terras que os sarrace-
nos ocupam no Oriente ou que façam escala nas mesmas. Fazemos isto
com uma dupla finalidade: primeiro, para que sejam em maior número
os navios à disposição daqueles que querem embarcar para ir em auxílio
da Terra Santa e, em segundo lugar, para que os sarracenos se vejam pri-
vados da ajuda muito estimável que este intercâmbio trazia para eles.26
(O grifo é nosso).

O mesmo não ocorreu quando o que estava em pauta era o estabeleci-


mento de uma excomunhão sobre estes que mantinham relações comerciais
com os “infiéis”:

Amaldiçoamos e excomungamos a esses falsos cristãos, esses ímpios (...)


que entregam aos sarracenos armas, ferro e madeira para suas galeras
(...); a todos aqueles, seja quem for, que lhes prestam ajuda e conselho
em detrimento e prejuízo da Terra Santa. Ordenamos que os bens de
todos estes sejam confiscados e eles mesmos reduzidos à escravidão por

26
Prohibemus insuper omnibus christianis, et sub anathemate interdicimus, ne in terras Saracenorum,
qui partes orientales inhabitant, usque ad quadriennium transmittant aut transeant naves suas: ut per
hoc volentibus transfretare in subsidium Terrae Sanctae major navigii copia praeparetur, et Saracenis
praedictis subtrahatur auxilium, quod eis consuevit ex hoc non modicum provenire. AD LIBERANDAM
TERRAM. CCQL, p. 116; HEFELE-LECLERCQ: tomo V, parte II, p. 1394; POTTHAST 5012.
460 coLunas de são pedro

quem os capturar. Ordenamos que esta sentença seja publicada em to-


dos os portos nos domingos e dias de festa, e que a estes pecadores lhes
seja proibida a volta ao seio da Igreja, até que tenham restituído
integralmente as riquezas dignas de condenação que assim
adquiriram, e, de sua própria fortuna, tenham entregado – em forma de
ajuda à Terra Santa – uma soma equivalente.27 (O grifo é nosso).

O “retorno de um pecador ao seio da igreja” não era matéria decisiva


para os rumos da cruzada. O intervalo de sua realização poderia, portanto,
ser deixado a cargo do próprio faltoso: ficava ao seu alcance, submetido à
sua capacidade de realizar certas ações, o poder para encurtar ou prorrogar o
estado de condenação que recaíra sobre ele. Diferentemente das condutas que
ocasionavam impactos diretos sobre o desfecho da expedição cruzada – como
o comércio com os muçulmanos – a degradação pessoal por meio da excomu-
nhão era algo que não figurava entre os alvos prioritários das intervenções
pontifícias. Sua duração era um tempo que o papado não precisava controlar.
O mesmo não aconteceu em relação à necessidade de estabelecer a paz
e a unidade entre os cristãos. Os torneios realizados entre eles “constituíam
um obstáculo maior para os assuntos da cruz” (crucis negotium per ae pluri-
mum impeditur). Logo, não era suficiente proibi-los, como já havia sido feito.
Era preciso zelar pela eficácia da proibição. O recurso que o papado empregou
para atingir este fim não foi outro senão recorrer à distribuição e manipula-
ção do tempo: “Desta forma, [os torneios] estão proibidos formalmente por um
período de três anos.” A Ad Liberandam ainda emendou: “durante pelo menos
quatro anos, será observada uma paz geral em todo o mundo cristão”.28 É signi-
ficativo que a autoridade apostólica não tenha recorrido às antigas fórmulas
da Trégua de Deus, muito difundidas entre os concílios papais dos séculos XI
e XII. Em tais fórmulas a interdição era descontínua, intermitente: durava do
crepúsculo de sexta-feira até a aurora da segunda-feira. Sua vigência claudi-
cava, oscilava. Para a Cúpula pontifícia de 1200, isto contrastava com a neces-
sidade de permanência, estabilidade e conservação.

27
Excommunicamus praeterea et anathematizamus illos falsos et impios christianos, (...) Saracenis
arma, ferrum et lignamina deferunt galearum (...); aut quibuslibet alii aliquod eis impendunt consi-
lium vel auxilium, in dispendium Terrae Sanctae, ipsarum rerum suarumprivatione mulctari, et capien-
tium servos fore censemus. Praecipientes ut per omnes urbes marítimas, diebus dominicis et festivis
hujusmodi sententia innovetur, et talibus gremium non aperiatur Ecclesiae, nisi totum, quod ex subs-
tantia tam damnata perceperint, et tantumdem de sua, in subsidium praedictae terrae transmiserunt....
AD LIBERANDAM TERRAM. CCQL: 115-116; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1394; POTTHAST 5012.
28
Nos illa sub poena excommunicationis firmiter prohibemus usque ad triennium exerceri (...): sancta
universali synodo suadente statuimus, ut saltem per quadriennium in toto orbe christiano servetur pax
generaliter. AD LIBERANDAM TERRAM. CCQL: 116-117; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1394; POTTHAST
5012.
Leandro duarte rust 461

Exigência plenamente atendida com os prazos contínuos e extensos esti-


pulados pela Ad Liberandam Terram. Tais características fizeram dessa bula um
verdadeiro modelo para as posteriores iniciativas de mobilização de crucesig-
nati, tornaram-na o marco de um novo capítulo na história da organização e
planejamento das cruzadas, quer elas ocorressem no escaldante deserto sírio,
quer no gélido mar báltico (BRUNDAGE, 1969: 82-83; MAIER, 2000: 63-68;
FONNESBERG-SCHMIDT, 2007: 91-105). Embora fosse, ela mesma, uma sín-
tese de dois outros textos, da bula de 1199, que ordenava ao clero o pagamento
de 1/40 de suas rendas para os esforços de cruzada, e da Quia Maior Nunc, na
qual constam diversas provisões materiais e espirituais estabelecidas para a
preparação da expedição,29 a Ad Liberandam Terram foi fielmente reproduzida,
acrescida de mínimas passagens, no texto da Afflicti Corde, e ditou o tom da
Zelo Fidei, bulas promulgadas, respectivamente, nos dois concílios pontifícios
reunidos em Lyon, em 1245 e 1274 (PURCELL, 1975: 23-33, 135-199).
Seu texto consagrou uma mutação histórica das cruzadas, segundo a
avaliação de Jean Richard (2001: 292): “A cruzada (...) tinha provado sua
eficiência por ter tornado possível reunir um grande número de guerreiros, e
provê-los com uma organização (...) e com os meios necessários para alcançar
seu teatro de operações e permanecer lá, às vezes por um longo tempo” (Ver
ainda: COWDREY, 2003: 173-192). Nas linhas que davam vida àquela bula,
a convocação de peregrinações seguidas por um limitado período de tempo
a serviço dos cristãos orientais convertia-se em empreendimento sustentado
por um suporte material regular e uma logística planejada. A peregrinação,
forma primeira das cruzadas, cedia lugar a uma obra estratégica e sistema-
tizada de conquista. A importância histórica alcançada pela Ad Liberandam
Terram não resultou apenas na lição aprendida em 1189 e 1204, quando os
rumos da guerra santa foram sentidos no papado como dois fracassos, de-
pois que Ricardo Coração de Leão se mostrou incapaz de tomar Jerusalém ao
Islã e após Veneza conduzir o exército cristão para Constantinopla, ao invés
da Palestina (MOORE, 2009: 150-154; POWELL, 1994: 131; FOLDA, 2005:
105-108). A bula de 1215 aplicou sobre a cruzada a racionalidade com que
a Sé Romana perseguia há décadas o “presente estendido” da conservação
material e da eficácia organizacional.
Através da formulação de prazos e periodicidades, o poder pontifício
determinava as matérias prioritárias de seu presente. Traçando durações alon-
gadas na forma de intervalos anuais, ele decretava por quanto tempo certas
práticas ou propósitos deveriam permanecer inscritas na existência de seus
integrantes, colaboradores e subalternos.

29
POTTHAST 922, 4725.
462 coLunas de são pedro

Este é um aspecto recorrente nas proposições aprovadas no IV Concílio


de Latrão. Muitas delas estavam orientadas para enquadrar as condutas cristãs
em grandes unidades cronológicas, em porções de tempo graúdas e regulares,
como a que vemos neste trecho: “todo fiel, de ambos os sexos, uma vez tendo
chegado ao uso da razão, deve confessar, sinceramente, todos os seus pecados a
seu pároco, ao menos uma vez por ano...”;30 ou nesta outra passagem:
“ordenamos aos bispos que publiquem este decreto anualmente em todas as
igrejas”.31 (O grifo é nosso).
A sucessão temporal parecia nutrir uma expectativa por longas continui-
dades. Tal expectativa se prolongava na rejeição por tempos minúsculos, pe-
quenos (brevi tempore). Donde a necessidade de vigiar e punir os judeus, que
– assim se acreditava – persistiam na perfídia de uma dupla falta: pôr o tempo
à venda, através da usura, e encurtar o presente vivenciado pelos cristãos:
“Quanto mais se esforça a religião cristã em desarraigar as práticas usurárias,
mais estas se estendem entre os judeus que se encontram no caminho de esgotar
em curto tempo as riquezas dos cristãos”.32 (O grifo é nosso).
Para a cúpula da Igreja romana, agir pela salvação dos homens era obra
sem fim aparente. Não poderia haver interrupção ou vazio possível. A atuação
da ecclesia em meio à Cristandade deveria ser incessante. Se por um lado um
prelado precisava ser repreendido por incorrer em hesitações morais ou por
titubear no cumprimento da disciplina clerical, por outro, era crucial adverti-
lo quanto aos riscos de negligenciar esta necessidade vital de permanência e
recorrência inacabável. Era preciso corrigir os sacerdotes cujas condutas per-
mitiam que intervalos inertes se infiltrassem no interior deste trabalho sem
tréguas que eram as tarefas eclesiásticas:

Deploramos vivamente que alguns clérigos menores, mas também cer-


tos prelados passem quase a metade da noite em festejos ostentosos e em
conversações indecorosas (...). Outros celebram a missa apenas qua-
tro vezes ao ano...33 (O grifo é nosso).

30
Omnis utriusque sexus fidelis, postquam ad annos discretionis pervenerit, omnia sua solus peccata
confideatur fideliter, saltem semel in anno, proprio sacerdoti. Cânone 21. CCQL: 67; MANSI 22: 1007-
1010; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1350.
31
Praecipimus ut dioecesani episcopi singulis annis hoc faciant per suas dioeceses publicari. Cânone
64. CCQL: 105; MANSI 22: 1051-1054; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1384.
32
Quanto amplius christiana religio ab exactione compescitur usurarum, tanto gravius super his Ju-
daeorum perfídia insolescit, ita quod brevi tempore christianorum exhauriunt facultates. Cânone 67.
CCQL: 106; MANSI 22: 1053-1056; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1386.
33
Dolentes referimus, quod non solum quidam minores clerici, verum etiam aliqui ecclesiarum prae-
lati, circa comessationes superfluas et confabulationes illicitas (...). Sunt et alii qui missarum celebrant
solemnia vix quater in anno. Cânone 17. CCQL: 65; MANSI 22: 1005-1006; HEFELE-LECLERCQ 5/2:
1347.
Leandro duarte rust 463

A ação do tempo era estimada não apenas como segura, mas fecun-
da, regeneradora. Longe de arrastar para a dissolução e a morte, a marcha
cronológica revitalizava, trazendo consigo novos começos, criando princípios
revitalizadores. Eis um exemplo emblemático, retirado do cânone 12, que re-
gulamentou a realização de capítulos monásticos trienais nas províncias ecle-
siásticas cristãs:

Para inaugurar este regime, deve-se convocar, com toda caridade, a


dois abades cistercienses dos lugares vizinhos, os quais hão de dar ajuda
e conselhos muito úteis, posto que eles por muito tempo já se encontram
perfeitamente treinados neste tipo de capítulos. (...) Neste mesmo capí-
tulo designar-se-á igualmente a alguns religiosos de ponderado conselho
para que visitem cada abadia de monges e também de religiosas do reino
ou da província e isto segundo as normas prescritas e em nosso nome,
com o objetivo de reformar tudo aquilo que requeira correção e refor-
ma. Se chegarem a julgar que o superior do lugar deva ser destituído,
comunicarão ao ordinário para que este leve a cabo a deposição; se este
último não o fizer, os visitadores submeterão o caso à Sé Apostólica.
(...) Se, porém, este novo regime suscitar alguma dificuldade que não
possa ser resolvida pelos visitadores em questão, procurando evitar
todo o escândalo, dar-se-á conta dela e se submetê-la ao juízo da Sé
Apostólica, sem que isto queira dizer que se ponha em dúvida outras
decisões adotadas por unanimidade.34 (O grifo é nosso).

Nesta passagem, a Sé Romana não revelou qualquer desconfiança diante


de uma inovação (inovatio). Na realidade, ela se fez a principal difusora de uma
medida inédita para o conjunto da Cristandade: a criação de uma periodicidade
fixa para a reunião dos capítulos de abades e priores, como estava prescrito
pela cartae caritatis cisterciense.35 Contudo, a Cúria romana não se limitou a

34
Advocent autem caritative in hujus novitatis primordiis duos Cisterciensis ordinis abbates vicinos,
ad praestandum sibi consilium et auxilium opportunum, cum sint in hujusmodi capitulis celebrandis
ex longa consuetudine plenius informati. (...) Ordinentur etiam in eodem capitulo religiosae ac circu-
mspectae personae, quae singulas abbatias ejusdem regni sive provinciae, non solum monachorum,
sed etiam monialium, secundum formam sibi praefixam, vice nostra studeant visitare, corrigentes
et reformantes quae correctionis et reformationis officio viderint indigere: ita quod si rectorem loci
cognoverint ab administratione penitus amovendum, denuncient episcopo proprio, ut illum amovere
procuret: quod si non fecerit, ipsi visitatores hoc referant ad apostolicae Sedis examen. (...) Si vero in
hac novitate quidquam difficultatis emerserit, quod per praedictas personas nequeat expediri: ad apos-
tolicae Sedis judicium absque scandalo referatur, ceteris irrefragabiliter observatis, quae concordi fue-
rint deliberatione provisa. CCQL: 60-61; MANSI 22: 999-1002; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1342-1343.
35
Sane sibi praecipuum omnium mater ecclesia cisterciensis specialiter retinuit, ut semel in anno sese
visitandi, ordinis reparandim confirmandae pacis, conservandae gratia caritatis, abbates ad eam om-
nes pariter conveniant. CARTAE CARITATIS. Cap. 4. In: GUIMARÃES: 1997: 142-143.
464 coLunas de são pedro

promover a universalização de um novo regime de assembleias monásticas. Ela


implantou outra novidade (novitatis primordiis): novos procedimentos para a
destituição de abades e priores. A medida era de fato tão nova que exigiu caute-
la, forçou o papado a ser previdente quanto à resistência que ela eventualmen-
te despertaria. Era preciso antecipar-se a um possível scandalum. Esta ameaça
de rejeição revela que o termo inovatio constituía aí uma noção propriamente
temporal, isto é, tratava-se de algo até então não praticado, do desconhecido,
ordenado pela primeira vez. Lidamos, portanto, com uma plena aceitação da ex-
periência da mudança, da ruptura com o passado, da instauração do corte cria-
dor do momento presente. A novidade é aqui o fio de corte da lâmina do tempo.
Mas, para muitos autores essa aceitação do “novus” não é um traço cor-
respondente a uma representação clerical do tempo na Idade Média Central.
Afinal ela expressa uma atitude que não seria condizente com a crença no
Mundus senescit: “o mundo envelhece”. Segundo Hervé Martin (1996: MAR-
TIN, 164-165), essa fórmula, por sua vez, lembrava os eclesiásticos medievais
que o tempo era algo necessariamente degradante, pois graças a ele a decre-
pitude e a morte se espalhavam, envelhecendo o mundo, aproximando-o cada
vez mais de seu fim inapelável. Apenas a tradição, capaz de resistir a esta ação
dispersiva, era capaz de consagrar a verdade. Somente aquilo que possuía o
aspecto de antigo poderia ser tido como portador de autoridade, como algo
bom, útil, válido. Uma inovação era encarada pelos homens das Igrejas medie-
vais como um verdadeiro crime “contra a ordem natural das coisas”, garantiu
Régine Pernourd (1996: 194). “A inovação era um pecado. A Igreja apressou-
se a condenar as novidades”, certificou igualmente Jacques Le Goff (2005a:
89). Gurevitch (1990: 149) destacou como frase-síntese desta suposta postura
comum ao clero medieval esta declaração sacada de um cronista da época:
“todas as pessoas têm medo da novidade”. Nem mesmo o riso clerical teria pou-
pado o novo. Pois sorrir significava, “de forma menos consciente, combater a
novidade, a inovação, (...) responsável pela crescente depravação dos costumes”,
conforme concluiu Georges Minois (2003: 222).
O papado do alvorecer do século XIII harmonizava-se com a passagem
do tempo. Era capaz de acolher o novo como mensageiro de algo bom, bené-
fico, criador. Em seus atos conciliares, mudar não despertava a reprovação
instantânea. O cânone 50 da legislação lateranense estampa a seguinte afir-
mação: “não poderia se qualificar como repreensível o fato de que os decretos
humanos estão submetidos à variação conforme a diversidade dos tempos, espe-
cialmente quando uma necessidade indispensável e evidente assim o exige”.36 As

36 Non debet reprehensibile judicari si secundum varietatem temporum statuta quandoque varientur
humanam praesertim cum urgens necessitas vel evidens utilitas id exposcit. CCQL: 90-91; MANSI 22:
1035-1038; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1372.
Leandro duarte rust 465

decisões tomadas em novembro de 1215 exigem que discordemos de Gurevi-


tch (1990: 200) e da ideia de que “o direito estava orientado para o passado.
(...) O novo inspirava desconfiança, o espírito inovador era sinônimo de sacrilé-
gio e imoralidade (...). Não se colocava a questão de uma data de revogação, pois
o direito estava fora do tempo”. Em Latrão IV a sucessão aparece como força
regeneradora, perante a qual o ideal do “retorno ao passado” não mais rebai-
xava o valor da mudança e da inovação.
“Razão”. Ratio. Dentre as vinte e duas acepções conferidas a esse vo-
cábulo pelo Mediae Latinitais Lexicon (NIERMEYER: 882-884) apenas uma o
vincula diretamente a um modo de pensar através de parcelas, cálculos, côm-
putos. Precisamente esta acepção, que por pouco não passa imperceptível em
meio à constelação de significados jurídicos destacados pelo Lexicon, revela-se
indispensável para a caracterização da temporalidade reinante sobre as deci-
sões do concílio de Latrão de 1215.
O vocábulo ratio aparece sete vezes na legislação promulgada sob os
cuidados do papa Inocêncio III. Seu emprego textual nos remete aos sentidos
de uma “justificativa legal suficiente” (dignam rationem);37 de uma “parcela
dos bens e direitos temporais de uma igreja” (temporalibus rationem);38 de
um “julgamento da razão” (judicium rationis);39 do “montante de dízimos de-
vidos por possessões” (rationem praediorum);40 de “incumbência ocasionada
por visita de um superior eclesiástico” (ratione visitationis).41 Em todos estes
casos, sua significação está atrelada à inteligibilidade de questões e práticas
diretamente ligadas à gestão dos bens materiais das igrejas (benefícios, dízi-
mos, recursos devidos por visitações) e à organização eclesiástica (justificação
legal para obtenção de dispensas ou para condução de ofícios e funções) (Ver
ainda: MOLLAT & TOMBEUR, 1974: 128).
Essa “razão”, que desde meados do século XII saltou ao primeiro plano
da política pontifícia, acarretou a reformulação das maneiras como o papado
inscrevia as presenças do “outro” e o “mundo” na trama de seu poder deci-
sório. Essa racionalidade norteada para o domínio secular e a conservação
material pressionou os fundamentos da temporalidade partilhada durante a
realização das assembleias clericais. Ela, portanto, alterou as “redes de inten-
cionalidade” (MERLEAU-PONTY, 1994: 558) que o exercício do poder pontifí-
cio então estendia sobre as relações sociais.

37
Cânones 8 e 29. O termo aparece veiculando tal sentido por três ocasiões nestes decretos. CCQL:
54-57, 73-74; MANSI 22: 993-996, 1015-1018; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1337-1338 , 1357-1358.
38
Cânone 61 CCQL: 100-101; MANSI 22: 1047-1050; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1380-1381.
39
Cânone 30 CCQL: 74-75; MANSI 22: 1017-1018; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1358.
40
Cânone 55 CCQL: 95-96; MANSI 22: 1041-1044; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1376-1377.
41
Cânone 33 CCQL: 77; MANSI 22 : 1019-1020; HEFELE-LECLECQ 5/2 : 1360-1361.
466 coLunas de são pedro

O tempo foi despojado de uma interioridade humana. Cada vez mais


desprovido de significados morais e ressonâncias pessoais, ele foi revestido
com as características de uma existência em si, exterior, dotada de movimen-
tos próprios. Na legislação lateranense de 1215, o tempo aparece como uma
res naturata. Encontra-se deslocado para os domínios de uma ontologia disso-
ciada da mobilidade e da reversibilidade dos estados de consciência. É men-
surável, divisível em porções neutras, uniformes e equivalentes de uma ponta
à outra da Cristandade. “Três meses”, “dois anos”, “anualmente”. Seu curso
foi retalhado em fatias que compõem um quadro de referências a ser partilha-
das em todas as províncias eclesiais cristãs. O devir é fator para reconduzir à
ordem. É estável, seguro, fonte de unicidade e de controle sobre o compor-
tamento. Em Latrão IV, o tempo está despido de humanidade, pois cabe a ele
guardá-la.

8.2. Revendo uma paternidade papal

Falemos com clareza: o papado medieval foi o lugar social de uma tem-
poralidade singular. Porém, a particularidade da percepção temporal presente
nas legislações de 1179 e de 1215 não estava nas unidades cronológicas aí
estipuladas, mas na racionalidade (ratio) que as envolvia. Não se trata, por
conseguinte, de destacar o emprego de prazos, mas o uso que os capturava.
Estes recortes cronológicos encontram-se aí apanhados por uma lógica polí-
tica, um trato com a materialidade do poder, cuja trama fazia do devir uma
existência-em-si, um objeto dotado de certas propriedades que poderiam ser
apreendidas, aplicadas. O tempo figura aí como uma res. Ele estava ali, bem
diante dos olhos. Portava uma aparência projetiva: nele era possível ver um
panorama de previsibilidade e pragmatismo. Não mais era necessário vascu-
lhar dentro da persona para descobri-lo.
O sentido de coisa-em-si, que sistematicamente absorvia a experiência
da duração e da sucessão, decorria do lugar sócio-político ocupado pelos artí-
fices do poder pontifício. Como espaço suprarregional de correlação de forças,
o papado tornava-se foco duradouro para a confluência regular de pressões
materiais e jurisdicionais de toda a Cristandade. A conservação material e a
permanência organizacional eclesial encontravam-se no primeiro plano das
negociações e alianças constituídas sob a égide da autoridade apostólica.
A esta realidade respondiam também os decretos aprovados pela mul-
tidão de bispos e abades que Inocêncio III reuniu na basílica de São João de
Latrão, pouco antes de seu pontificado encontrar seu fim. Os cânones promul-
gados nesta ocasião não devem ser vistos sob a imagem de uma “paternidade
papal” (GARCÍA Y GARCÍA, 2005: 52), o que nos obrigaria a encará-los como
Leandro duarte rust 467

“trabalho pessoal de Inocêncio”.42 Sua elaboração não cabe no interior de uma


autoria do papa, como tanto se tem afirmado desde meados do século XIX
(EVANS, 1843: 1-27; LUCHAIRE, 1908: 1-190; MANN 12: 297-299; FOREVIL-
LE, 1972b: 13-41, TILLMANN, 1980: 195).
Não nos arriscamos a discordar da premissa de que Inocêncio desem-
penhou um papel chave na formulação e na elaboração final dos textos que
foram lidos e submetidos à aprovação do plenário lateranense, bem como da-
queles entregues aos padres conciliares em dezembro do ano de 1215. Isto nos
parece convincentemente demonstrado, entre outras maneiras, pelo fato de
cartas e opúsculos redigidos pelo papa conterem trechos idênticos a passagens
que dão forma a mais de trinta dos setenta cânones conciliares (GARCÍA Y
GARCÍA, 2005: 72-73). Contudo, isto não é o mesmo que tomar o Lateranense
IV como obra pessoal do outrora cardeal Lotário de Segni e reduzi-lo a uma
autoria papal. Supô-lo é fazer de Inocêncio III o ponto de coerência das for-
mulações, dos conteúdos e de todas as razões históricas que perpassam estes
cânones. Tal compreensão duplica a imagem que os historiadores usualmente
têm da “Reforma”: assim como Roma é vista como a cabeça das ações reforma-
doras desempenhadas por uma descentrada malha de poderes eclesiásticos, o
papa aparece como mentor da extensa obra legislativa conciliar (GARCÍA Y
GARCÍA, 1969: 50-68; PIXTON, 1995: 462-465). Perspectiva em pode chegar
às raias de nutrir, ainda nos dias de hoje, o velho culto oitocentista ao “gênio
do grande líder”, como fez Jean Théry (2005: 33-37), ao sugerir que “pode-se
considerar o conjunto do pontificado como a construção progressiva, consciente
e voluntária, por Inocêncio III, de um edifício que seria finalmente revelado ao
mundo em sua totalidade formidável, no fim do ano de 1215, com a síntese nor-
mativa oriunda do IV concílio de Latrão”.
Procedendo desta forma, lançamos para trás da biografia pontifícia
toda a rede de realizações conciliares que, soerguida entre 1190 e 1215, con-
feria imprescindível respaldo social e político aos cânones de Latrão IV. Seus
textos contêm precedentes estabelecidos por diversos sínodos regionais e pe-
las atuações de legados e colaboradores papais longe de Roma. Nas páginas
seguintes segue-se uma tabela na qual reunimos os resultados de um mapea-
mento documental dos antecedentes e fundamentos regionais das decisões do
IV Concílio Lateranense.

42
CCQL, p. 6.
468
Tabela: Caracterização dos cânones lateranenses de 1215 segundo seus precedentes regionais

coLunas de são pedro


Leandro duarte rust 469
470 coLunas de são pedro
Leandro duarte rust 471
472 coLunas de são pedro
Leandro duarte rust 473
474
Representação dos cânones lateranenses de 1215 segundo seus precedentes regionai

coLunas de são pedro


Leandro duarte rust 475

A tabela demonstra que trinta e nove dos setenta cânones de Latrão


(55,7 %) não foram elaborados de forma inédita. Pelo contrário. Mais da
metade deste corpus legislativo contava com algum precedente – parcial ou
integral –, regionalmente articulado, capaz de conferir familiaridade e plau-
sibilidade às medidas decretadas. Isto sem levar em conta os eventuais con-
tatos dos círculos eclesiásticos do Ocidente com os decretos aprovados pelos
plenários lateranenses de 1123, 1139 e 1179. Nos cânones 44, 50, 60, 61 e 70
de 1215 há alusões às decisões estabelecidas no primeiro destes concílios; em
relação às deliberações do segundo, encontramos referências nos cânones 18,
31, 44 e 50; por fim, determinações do terceiro e último concílio sustentam
os cânones 18, 26, 47 e 57 (Ver igualmente: FOREVILLE, 1972b: 155-203;
GARCÍA Y GARCÍA, 2005: 22-23).
Entre os principais precursores regionais do IV Lateranense estavam seis
concílios provinciais presididos por legados. Os dois primeiros foram reunidos
em York, em 1195, e em Londres, no ano de 1200, por Hubert Walter. Este
nome, como advertiu Christopher Cheney (1965: 32), merece atenção espe-
cial. Sobrinho de Ranulf Glanvill, o Justiciarius régio de Henrique II, Hubert se
tornou juiz e barão do Exchequer, o principal órgão de finanças do reino. Isto
após 1184. As boas graças do poder régio conduziram-no ao posto de deão da
Igreja de York, em 1186, e a bispo de Salisbury, em 1189. Para a primeira fun-
ção Hubert foi pessoalmente escolhido por Henrique II, a segunda foi obtida
através de uma designação de Ricardo I – ou “Ricardo Coração de Leão”, se
preferir, caro leitor.
Em 1190, Hubert seguiu Ricardo na expedição que ficou conhecida
como terceira cruzada, figurando entre os primeiros a ingressar em Jerusalém
após o pacto firmado entre o rei e Saladino. De volta ao reino, três anos mais
tarde, ele foi escolhido arcebispo de Canterbury, por obra de uma determi-
nação do monarca (GILLINGHAM, 2002: 238-240). No mesmo ano, além de
primaz, Hubert foi comissionado Justiciarius do reino, à exemplo do próprio
tio. Em 1195, o papa Celestino III nomeou-o legado papal no além-Mancha,
embora Hubert, exercendo simultaneamente as funções de juiz régio e de
arcebispo, se encontrasse em um estado de flagrante violação do cânone 12
do III Lateranense, onde se lê uma estrita proibição aos eclesiásticos de atuar
como juízes seculares (GILLINGHAM, 2004: 1275-1284). A contrapelo de sua
própria legislação, o papado consentiu e admitiu que Hubert “empunhasse
ambas as espadas, a espiritual e a material” (CHENEY, 1965: 32). Beneficia-
do por este acúmulo extraordinário de funções e da prolongada ausência de
Ricardo I, absorto em aventuras guerreiras em Jerusalém e na Gália, o arce-
bispo se tornou “a cabeça efetiva de um governo muito eficiente” (BROOKE,
1975: 364).
476 coLunas de são pedro

A renúncia ao posto de Justiciário, em 1198, não diminuiu a influência


do arcebispo sobre os assuntos do reino. Alguns registros sugerem que a re-
núncia teria sido forçada pelo próprio monarca Ricardo, em razão da dubie-
dade com que nosso dignitário cumpria suas atribuições. Por exemplo, como
justiciarius, Hubert era incumbido da imposição de taxas régias sobre o clero
– matéria censurada pela Santa Sé e que deixava a aberta na memória a ferida
do assassinato de Tomás Becket. Ficava igualmente à seus cuidados a realiza-
ção de torneios, formalmente proibidos por concílios papais, mas importantes
para a estratégias régias de recrutamento militar (YOUNG, 1968: 125-143).
Após a morte de Ricardo, o arcebispo foi diretamente responsável pela conti-
nuidade dinástica ao empenhar-se para que a coroa fosse assegurada a João,
conde de Mortain, que entrou para a História como “João Sem Terra”. Não
causa surpresa, portanto, que um dos primeiros atos do novo monarca tenha
sido designar o arcebispo para chanceler. João I quitava uma dívida de poder.
A Historia Anglorum, de Mateus Paris, exaltou o poder do arcebispo ao difun-
dir uma estória que se tornou célebre. Nela o rei João aparece se regozijando
com a morte de Hubert, em 1205. Exultante como poucas vezes se viu, ele te-
ria dito: “agora, pela primeira vez, sou rei da Inglaterra”.43 Ainda que fictícia, a
cena é significativamente ilustrativa do lugar político ocupado pelo arcebispo
(PAINTER, 1979: 57-65; GILLINGHAM, 2004: 1277).
As epístolas de Inocêncio revelam que o primaz e o papa mantinham
uma estreita colaboração. Nelas, Hubert aparece imbuído de prosseguir ins-
truções referentes a eleições episcopais, colação de benefícios eclesiásticos,44
e à condução das investigações necessárias para a abertura de processos de
canonização. Processos como o que contemplou Gilbert de Sempringham, an-
tigo colaborador de Thomas Becket. As instruções deixavam claro que o aval
pessoal do arcebispo era imprescindível para o papado: “tudo isto vós deveis
gravar fielmente por escrito e transmitir sob o testemunho de vossos selos para a
Sé Apostólica (...), para que, precisamente informados por sua investigação, nós
possamos proceder em toda esta questão com maior acuidade, para a glória do
nome divino.45
Segue-se outro caso ainda mais expressivo, politicamente falando. Em
1202, o papa autorizou o arcebispo a investigar, em toda Inglaterra, as somas
recebidas por seu enviado pessoal (nuncius apostolicus), certo Mestre Felipe.

43
Eodem tempore Hubertus, Cantuariensis archiepiscopus, apud Tenham diem clausit extremum, rege
super hoc nimis gaudente et exultando dicent “Nunc primum sum rex Angliae”. MATEUS PARIS. His-
toria Anglorum. MADDEN 2: 104:
44
CHENEY, 1953: 16-22, 35-36, 41-47.
45
Cunctaque fideliter conscribentes sub testimonio sigillorum vestrorum (...) ad sedem apostolicam
transmittere curaretis, ut per inquisitionem vestram difigenter instructi, ad divini nominis gloriam.
Idem, p. 29; Ver ainda: POTTHAST, 1612.
Leandro duarte rust 477

Esse havia sido responsável por coletar, em 1200, o 1/40 de rendas eclesi-
ásticas necessárias para a realização da cruzada. Ou seja, o próprio Inocên-
cio expôs seu homem de confiança, um legado, ao julgamento do prelado da
Britannia. Além desse episódio, poderíamos relembrar a recusa do papa em
reconhecer a eleição de Gerardo de Gales para bispo de São David, bem como
sua negação quanto à elevação desta Sé à condição de arcebispado, gestos que
visavam agradar Hubert, opositor declarado de ambas as questões (MOORE,
2009: 77-98; TILLMANN, 1980: 225).
Por conseguinte, os doze cânones promulgados por Hubert no concílio
de York e os outros catorze aprovados na assembleia de Londres estavam no
primeiro plano do governo monárquico da Britannia e do exercício do poder
papal. Destes decretos, que renovaram algumas decisões do Lateranense III,
a legislação de novembro de 1215 sorveu orientações para a disciplina eclesi-
ástica, para os trabalhos pastorais e a gestão de dízimos (cânones 1, 6 e 8 de
York; cânones 1, 3, 5 e 8 a 11 de Londres).
Panorama semelhante pode ser estendido para o concílio de Avignon,
outra matriz de antecedentes para Latrão IV. No dia 9 de setembro de 1209,
Milon, legado pontifício, e Hugo, bispo de Riez, presidiram o primeiro ple-
nário eclesiástico reunido após a onda de saques e massacres que fustigou a
Occitânia por ação da “cruzada albigense” (COSTEN, 1997: 122-129). Com-
posto por quatro arcebispos – Vienne, Arles, Embrun e Aix –, vinte bispos e um
grande número de abades, o concílio ocorreu em meio ao desencadeamento
de uma imediata alteração dos quadros nobiliárquicos locais.
Diversos domínios e fortalezas da região caíram em poder dos cruzados,
nobres oriundos da Gália setentrional. Tratava-se, em maciça maioria, de do-
mínios do viscondado de Bézier-Albi e do condado de Carcassone. Estas terras,
assediadas na primeira campanha da “cruzada albigense”, possuíam uma rele-
vante característica em comum: pertenciam ao mesmo senhor, o jovem conde
Raimundo Rogério Trencavel. Segundo a tese defendida por Elaine Graham-
Leigh (2005: 42-57), no instigante livro The Southern French Nobility and the
Albigensian Crusade, tal aspecto estava longe de ser mera “coincidência”. O
fato dos exércitos cruzados marcharem todos para um mesmo alvo, para as
terras de um mesmo nobre, indicava que a investida era guiada por um sólido
e nítido propósito: expropriar os Trencavel e transferir seu patrimônio para os
conquistadores do norte. Portanto, além de “purificar” o sul da “depravação
herética”, os líderes dos exércitos que se deslocavam pela Occitânia sob o sol
de verão de julho e agosto de 1209 buscavam conquistar uma base territorial
permanente para o esforço de incorporação de domínios e apropriação dos
poderes senhoriais locais (Ver ainda: STRAYER, 1993: 61-65; MACEDO, 2000:
19-64; MARVIN, 2008: 37-59).
478 coLunas de são pedro

A necessidade dos novos senhores de legitimar a posse sobre as áreas


conquistadas – prerrogativa que as linhagens derrotadas não cessaram de con-
testar – forçou-os a uma postura conciliatória com o alto escalão de dignitários
da igreja aliados ao papado. O que, por seu turno, ofereceu a estes últimos
novas possibilidades para impor o controle sobre questões consideradas prio-
ritárias: a repressão dos hereges e a confirmação de privilégios e imunidades
eclesiásticas. É o que comprova a carta enviada por Milo a Inocêncio III, na
primeira semana após a tomada de Carcassonne, em 15 de agosto:

Para que esta terra, colocada por Deus nas mãos de seus servos possa
ser preservada para Sua honra e para a honra da Santa Igreja romana e
de toda a Cristandade, o nobre Simon de Montfort, um homem conhe-
cido por vossa Santidade, assim acreditamos, mui corajoso em armas
e mui devoto em fé, desejoso de aplicar seus esforços para extirpar a
heresia, foi escolhido pela opinião comum príncipe e senhor destas ter-
ras. A extensão de seu desejo de restaurar a condição da igreja de Deus
nestas terras é claramente demonstrada por sua determinação de que
os dízimos e os primeiros frutos [primícias] fossem inteiramente pagos
à Igreja, por todo o território que Deus lhe concedeu; e que, além disso,
se alguma pessoa agisse contra esta decisão, ele lhe oporia, ameaçando-
o como seu inimigo tanto quanto da própria Igreja. E ainda, ele deseja
que três denarii sejam pagos à Igreja anualmente por cada estabeleci-
mento destas terras; e para assegurar a autoridade da Igreja nas terras
sobre seu controle não é menos significativo que ele tenha estabelecido
que, se algum castelão permanecer sob a sentença de anátema por qua-
renta dias, antes de ser reconciliado com a Igreja, deverá pagar uma
penalidade de cem solidi se for um cavaleiro, cinquenta solidi se for um
burguês, vinte solidi se for um comum. Igualmente, em reconhecimento
aos direitos de dominium da Igreja Romana, salvo os direitos dos outros
senhores, ele determinou que uma soma fosse paga a vós anualmen-
te.46 (Os grifos são nossos).

46
Ut igitur terra, quam in servorum suorum manibus Deus dedit, ad honorem ipsius sanctaeque Romanae Ec-
clesiae ac totius Christianitatis servetur, nobilis vir Simon de Monteforti, sanctitati vestrae, sicut credimus, bene
notus, vir armis strenuissimus, fide devotissimus, ac totis viribus persequi desiderans haereticam pravitatem,
in principem et dominum terrae ipsius de communi consilio est electus; cujus quantum sit desiderium circa
reparandum in partibus illis Ecclesiae Dei statum ex hoc evidenter apparet, quoniam jam ipse disposuit ut de
tota terra quam ibidem dederit ei Deus decimae et primitiae Ecclesiis cum integritate solvantur, ac si quis huic
suo proposito contrairet, ipsum tanquam suum et Ecclesiae inimicum totius viribus impugnaret, ac de singulis
laribus terrae suae vult annuatim Romanae Ecclesiae denarios tres persolvi; et, ne possit in sua censura eccle-
siastiaca vilipcndi, constituit ut si caslellanus per quadraginta dies in excomniunicatione permanserit antequam
reconcilietor Ecclesiae, centum solidos, si iniles fuerit, vel burgensis qiiinquaginta, si plebeius quilibct, viginti
solidos componat; et in recognitionem domlnii Romanae Ecclesiae aliorum dominorum in omnibus salvo jure
Leandro duarte rust 479

As ofertas feitas pelo líder cruzado, Simon de Montfort, ao papado de-


veriam selar um compromisso regional de poder. Os laicos e eclesiásticos en-
volvidos na cruzada uniam esforços para que as áreas recentemente ocupadas
fossem recobertas por uma renovada ordem senhorial. Esta cooperação, que
em poucos meses despertou a atenção papal,47 fez os desafios da ancoragem
patrimonial e judicial dos novos poderes predominarem sobre os cânones de
Avignon.
A “cruzada albigense” abriu outro flanco de atividades conciliares para a
aplicação da racionalidade em torno da qual a Sé Romana cerrava suas fileiras
internas há décadas: a conservação material e a eficácia governamental. As
aspirações dos poderosos que então ganhavam o Languedoc encontrariam eco
na experiência acumulada no interior do papado com as ações empreendidas
para assegurar a presença pontifícia no indócil Lácio. O sul da Gália era agora
o palco de uma realidade semelhante àquela vivida pelo papado no centro
peninsular italiano desde o século XI: em ambos os casos tratava-se de áreas
onde a ordem senhorial foi cindida pela intervenção de um agente externo e
seria redefinida a partir de uma projeção dos grupos dominantes recentemen-
te instalados para o exterior.
As marcas desta racionalidade comum perpassam os cânones lavrados
em Avignon. Elas estão na determinação para que os dízimos fossem exata e
integralmente cumpridos (cânone 5); na afirmação da exclusividade do
foro pontifício sobre os que permanecessem excomungados por mais de seis
meses (cânone 13); na proibição de uma igreja permanecer vacante por mais
de seis meses (cânone 14).48 Além destas, as medidas para o combate à
heresia e as interdições impostas aos judeus (cânones 1 e 2), as decisões de
regulamentação de direitos patrimoniais, clericais e laicos (cânones 5 a 9) e de
disciplinarização eclesiástica (cânones 11 a 15, 17 a 19) integrariam o conjun-
to de princípios retomados pelos cânones do concílio de Latrão.
Na esteira de Avignon, outros plenários foram convocados por legados
papais tendo como finalidade primordial ajustar a correlação de forças que o
curso da cruzada enraizava nos domínios do Languedoc: Saint-Gilles (1210),
Arles (1211), Lavaur (1213), Montpellier (1215).49 Reunido em janeiro, este
último foi composto por cinco arcebispos (Narbonne, Auch, Embrun, Arles e
Aix), vinte e oito bispos e numerosos nobres da região. Além de reconhecer
Montfort como detentor legítimo de todas as terras ocupadas – outorgando-

disposuit annis singulis certam vobis solvere pensionem. MILO & ARNALDO AMAURY. Epistola. PL 216:
137-141.
47
POTTHAST, 3827-3834
48
MANSI 22: 784-794; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1283-1286.
49
HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1288-1298.
480 coLunas de são pedro

lhe o título de “príncipe e monarca de toda aquela terra”50 – esta assembleia


aprovou quarenta e seis decretos, todos empenhados pela causa comum aos
presentes: obter garantias para a nova dominação senhorial. Donde seu texto
ter sido marcado por forte teor de praticidade e pela preocupação em assegu-
rar sua própria eficiência: quinze dias após a proclamação da paz, aqueles
que não a obedecessem deveriam ser compelidos a fazê-lo através da viva for-
ça da excomunhão e do interdito (cânones 32 e 33); passados quinze dias
da publicação daqueles decretos, todos os laicos deveriam renovar o juramen-
to de obediência da paz, estando ainda obrigados a reiterá-lo em quinze anos
(cânone 37); as excomunhões contra os perturbadores da paz deveriam ser
publicadas todos os domingos (cânone 41).51
Estamos às voltas com os mesmos sentidos de tempo impressos sobre os
decretos do IV Lateranense. Isto não nos parece uma coincidência. O concílio
de Montpellier era o herdeiro de uma linhagem de plenários occitanos pre-
sididos por legados romanos, afinal, desde o raiar do século XIII, clérigos da
Igreja romana foram constantemente enviados à região: João Paulo, cardeal
diácono de Santa Prisca (1200); o notário Milon (1207); Pedro, cardeal diáco-
no de Santa Maria in Aquiro (1213); Pedro de Benevento, cardeal presbítero
de São Lorenzo in Damaso (1214). Além disso, entre os cânones daquele ple-
nário estavam decisões aprovadas por Alexandre III em 1179: aquela assem-
bleia estava ligada de muitas formas às razões de conduta que predominavam
na eclesiologia romana. Entre elas havia vínculos suficientes para estabelecer
aquele concílio como ponto de contato e propagação da temporalidade papal
no sul da Gália.
Afinidade que atendia a necessidades de recompor a hegemonia local.
Os novos líderes eclesiásticos do Languedoc beneficiaram-se da representação
de tempo partilhada pelos integrantes do papado, na mesma medida em que a
sustentaram e difundiram. As provas desta vinculação estão na legislação late-
ranense: aclimatados a este ambiente de negociações e alianças aristocráticas,
os decretos de Montpellier encontraram eco nas decisões de 1215, sobretudo
naqueles versados sobre a disciplina clerical (cânones 1 a 7), o governo de
bens e funções eclesiásticas (cânones 9 a 22), a manutenção da “paz” (câno-
nes 32 a 41).
A Gália ofereceu ainda outros importantes precursores para os decretos
conciliares atribuídos a Inocêncio III. Estes, todavia, vieram das paragens se-
tentrionais. Em junho de 1213, Paris foi palco do concílio provincial presidido

50
MANSI 22: 936. Decisão provisoriamente confirmada pelo papa quatro meses depois, já que Ino-
cêncio conferiu à Montfort a custódia de todas as terras ocupadas pelos cruzados até que o concílio de
Latrão deliberasse em definitivo sobre a questão. POTTHAST, 4967.
51
MANSI 22: 935-950 ; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1299-1302.
Leandro duarte rust 481

por Robert de Courson. Discípulo de Pedro, o “Cantor”; cônego e mestre de


teologia naquela cidade desde 1204; autor de uma Suma Celestis Philisophie;
juiz delegado de eleições episcopais em Reims, Amiens, Troyes e Thérouanne,
Courson possuía – frisou John Moore (2009: 219) – “soberbas credenciais para
servir ao papa na França” (Ver ainda: DICKSON & DICKSON, 1934: 53-142).
Inocêncio elevou-o a cardeal presbítero de Santo Estevão in Coelio Monte, em
fevereiro de 1212, e o designou o legado encarregado de conduzir na Gália
os preparativos de uma nova cruzada. O concílio de Paris promulgou extenso
corpus de aproximadamente cem cânones, distribuídos ao longo de cinco se-
ções temáticas: clero secular; monges e cônegos; monjas; arcebispos e bispos;
usurários e bandidos.52
Agrupados de maneira clara e harmônica, os cânones parisienses não
eram criações integralmente originais. Suas linhas continham extratos reti-
rados dos decretos de Latrão III; dos estatutos diocesanos de Eudes de Sully,
bispo parisiense entre 1196 e 1208; das Constitutiones publicadas naquela
mesma cidade por outro legado, Gualo, em 1208 (PONTAL, 1971: 51-103).
Predecessor da legislação de 1215, o plenário legatino de Paris cercou-se do
respaldo oferecido por modelos canônicos já consagrados. E assim, estribado
por uma tradição jurídica que reunia elaborações tanto papais quanto locais,
este concílio tornou-se a matriz legal de outras assembleias. Em menos de um
ano, logo em fevereiro de 1214, Courson levaria os decretos parisienses para a
Normandia, valendo-se do concílio reunido em Rouen para reproduzir, quase
palavra por palavra, grande parte de seu texto. Raymonde Foreville (1976: 19-
40) teve razão ao localizar o concílio normando como o elo de uma corrente
de mobilizações eclesiásticas que se estendeu de Paris (verão de 1213), a Bor-
deaux (onde Courson presidiu outro concílio em junho de 1214) e Montpellier
(janeiro de 1215) (Ver ainda: LYNCH, 1976: 187-192).
Logo, entre 1213 e 1215, formou-se na Gália um circuito de iniciativas
conciliares protagonizadas por Robert de Courson e integradas pela mesma
orientação eclesiológica do papado. Segundo John Baldwin (1970: 19-25),
seu alicerce comum era a teologia pastoral formada a partir dos ensinamentos
de Pedro, o “Cantor” e de outros mestres parisienses (Ver ainda: ANDREA,
1981: 141-151). O papa Inocêncio III, ele próprio ex-discípulo de Pedro, foi
profundamente marcado por essa orientação, encontrada em alguns tratados
pastorais redigidos no período de seu cardinalato, de 1189 a 1198: De Missa-
rum Mysterii (também conhecido por De Sacro Alteris Mysterio) e De Quadri-
partia Specie Nuptiarum Liber.53

52
MANSI 22: 817-854.
53
Ambos em: PL 217: 773-916, 921-967.
482 coLunas de são pedro

Implantada na Gália pelo cardeal Courson, essa concepção sobre a orga-


nização e as funções da ecclesia cristã – familiar ao papa e a outros integrantes
da Cúria – confluiu para as páginas de Latrão IV. Entre as medidas que in-
fluenciaram a legislação de 1215 cabe destacar aquelas referentes à disciplina
clerical, à administração do patrimônio eclesiástico e ao cuidado pastoral (as
extensas seções 1 e 4 da legislação de Paris). Frisemos ainda que nas decisões
parisienses constavam prescrições redigidas para a preservação patrimonial
eclesiástica, como a proibição da divisão de benefícios e prebendas (seção
1, cânone 13), colhida junto aos textos do concílio papal de Tours, 1163, e a
interdição de que benefícios fossem incorporados como bens hereditários e,
assim, alienados sob a forma de heranças (seção 1, cânone 20). Havia também
medidas que pressupunham a fixação do tempo como grandeza quantificá-
vel, como a fixação do prazo de dois meses para retornar ao monastério
todos que estivessem ausentes (seção 3, cânone 20) e a determinação de uma
periodicidade anual para a celebração de sínodos diocesanos (seção 4,
cânone 8 e 17).54
Outros concílios, convocados e conduzidos sob o aval da autoridade
petrina, podem ser diretamente relacionados com o processo de formação dos
cânones de Latrão IV. Caso da assembleia de Diocleia, realizada no ano de
1199 na Dalmácia sob a presidência de João de Casemario, capelão papal, e
Simão, subdiácono romano. Os enviados papais moviam-se nos flancos da po-
lítica de aproximação das igrejas locais junto à Sé de Roma, então encampada
pelo rei Emeric da Hungria, após proferir voto de cruzado (SWEENEY, 1973:
320-334; MOORE, 2009: 73-75). Entre os doze cânones aprovados estão me-
didas relativas ao patrimônio eclesiástico e que remetem a decisões caracterís-
ticas da política papal, como a determinação para que as rendas eclesiásticas
fossem divididas em quatro parcelas: “uma para o bispo, outra para as
igrejas, a terça parte para os pobres e a quarta para os clérigos” (cânone 3);55 e
ainda a excomunhão lançada sobre todos os que “injustamente detém os tesou-
ros das igrejas” (cânone 9). Outras medidas tem relação ainda mais direta com
os cânones de 1215, caso da ordem para que fossem observadas a inviolabi-
lidade do segredo de confissão (cânone 4) e a interdição ao casamento entre
parentes até o quarto grau (cânone 6).56
Em dezembro do mesmo ano, o cardeal Pedro de Cápua – outro teólogo
educado nos círculos parisienses – reuniu em Dijon um concílio, iniciando a

54
MANSI 22: 817-854; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1308-1316.
55
Decernimus ut decimae seu oblationes fidelium, tam pro vivis quam pro defunctis, in quatuor partes
dividantur: quarum una sit episcopi, alla ecclesiarum, tertia pauperum, quarta clericorum. MANSI 22:
704.
56
MANSI 22: 693-697; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1222-1223
Leandro duarte rust 483

preparação para lançar o reino de Felipe Augusto em interdito. A medida res-


pondia à conduta do rei. Em 1193, o monarca repudiou sua esposa, Ingeborg,
filha de Valdermar I da Dinamarca, e, recusando-se a vê-la coroada, tranca-
fiou-a em um convento. Três anos depois, após apelar em vão pela anulação
do casamento junto ao papa Celestino III, Felipe uniu-se a outra mulher, Inês
de Méranges. Após a eleição de Inocêncio III, a Cúria reagiu aos anos de tole-
rância de parte da igreja capetíngia à “concubinagem e às injúrias cometidas
contra a igreja cristã e seus sacramentos”. Em março de 1200, isolada entre
paredes religiosas, Ingeborg recebeu uma carta de Inocêncio e soube o que seu
repúdio havia custado ao reino capeto:

Nós acreditamos que tu tens conhecido desde antes e notado mais ple-
namente agora quanta solicitude e diligência nós temos empenhado a
demonstrar em tua questão: o quanto nós primeiro zelamos por cartas
e enviados para admoestar nosso filho em Cristo, Felipe, ilustre rei dos
Francos, embora caríssimo, a receber-te conforme a ordem da lei, e en-
tão com o óleo alimentando as feridas, nós infundimos vinho com o
Samaritano, impondo a sentença do interdito sobre a terra daquele rei.57

O interdito foi solenemente proclamado no mês de janeiro daquele ano,


por decisão do concílio de Vienne, capitaneado pelo legado Pedro. A fórmula
do interdito, preservada na Nova et Amplissima Collectio, evoca as instruções
posteriormente firmadas pelo cânone 58 de novembro de 1215 para o estabe-
lecimento da suspensão dos serviços divinos em um reino.58
Por fim, caberia uma menção ao sínodo de Dublin. Embora palco “uni-
camente de questões dos clérigos da diocese” (HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1259),
este plenário formou um relevante conjunto de referências a respeito a disci-
plina eclesiástica no contexto da paz entre Inocêncio III e João I da Inglaterra,
depois da luta protagonizada por eles acerca da escolha de um sucessor para
Walter Hubert no arcebispado de Canterbury (Ver: CHENEY, 1965: 87-118;
POWICKE, 1928).
Um dos traços mais notáveis da legislação do IV Concílio de Latrão
encontrava-se na forma como suas páginas combinaram um espectro de pre-
cedentes conciliares regionais para chamar à existência um corpus canôni-

57
Intellexisse te credimus hactenus et nunc plenius percepisse quantam sollicitudinem et diligentiam
in negotio tuo curaverimus exhibere; cum, etsi charissimum in Christo filium nostrum Philippum Fran-
corum regem illustrem, ad receptionem tuam, juxta juris ordinem, prius curaverimus per litteras et
nuntios, commonere, tandem vulneribus fotis oleo, vinum cum Samaritano duxerimus infundendum,
in terram regis ipsius interdicti sententiam proferentes. INOCÊNCIO III. Epistola. PL: 214: 881-883;
POTTHAST, 989.
58
MANSI 22: 710-712; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1226-1227.
484 coLunas de são pedro

co dotado de congruência e de sistematicidade normativas. A Cúria romana


apropriou-se do teor de decisões aprovadas nas províncias da Cristandade.
Por tratar-se de “apropriação” devemos, portanto, afastar a ideia de relações
puramente formais, redutíveis ao vínculo de uma simples reprodução ou uma
transposição linear de textos e fórmulas. Ao compor os cânones de 1215, o
papado respondeu àquelas assembleias locais de maneira criadora, adaptou
suas orientações como herança recriada, repensada. Esculpiu-as através de
re-empregos, quiçá de desvios.
Entretanto, não devemos tampouco desviar a atenção da característica
de que esses concílios locais foram pilares de sustentação dos decretos latera-
nenses, plataformas de sua gestação e constituição. Esparramados pela geogra-
fia cristã, aqueles plenários apresentam afinidades e orientações comuns. Em
muitos casos, mostram-se complementares uns aos outros. A razão para tais
características foi estudada ao longo deste livro: todos integravam o mesmo
espaço de poder, o papado suprarregional. Capitaneados por legados romanos,
eles ocorreram sob a alçada da autoridade apostólica. Estavam interligados
pelo nexo geral do exercício do poder pontifício. Partilhavam, assim, priorida-
des, princípios e propósitos para a condução das relações sociais eclesiásticas.
Noutras palavras, entre os anos de 1190 e 1215 o papado levou a cabo a rea-
lização de uma obra conciliar tanto integrada quanto descentrada, tanto coesa
quanto coletiva. Obra da qual os decretos promulgados em Roma sob a tutela
de Inocêncio III foram convertidos na faceta mais visível. Lateranense IV era
parte de um movimento conciliar maior e que, sustentado por colunas regio-
nais, não cabe na autoria de um papa ou de um punhado de cardeais.
Sem dúvida, a legislação de 1215 deve muito aos avanços do letramen-
to jurídico e da educação escolástica (McKEON, 1966b: 24-34). Todavia, o
percurso trilhado por esses saberes nas decisões lateranenses foi traçado por
metas e experiências singulares, oriundas da trajetória política do papado
dos séculos XI e XII. Sua dimensão suprarregional semeou práticas sociais e
orientou condutas no rastro de uma racionalidade irreprimível, impulso que
mobilizou os portadores da autoridade apostólica para agir em prol da per-
manência patrimonial e da durabilidade da ordem eclesiástica. Racionalidade
que a grande obra conciliar de 1190-1215 condensou na forma de relações
singulares com o tempo.

8.3. Olhos, boca, ouvidos e sangue: o corpo sob regência do tempo

A temporalidade propagada pelos concílios papais em fins do século XII


e início do XIII enfraqueceu o continuum ontológico antes existente entre a
persona e as experiências de duração e sucessão. Está aí o fio e a trama de uma
Leandro duarte rust 485

ampla transformação das relações de poder mantidas pela política pontifícia.


O desenrolar dessa mudança seguiu diferentes vias, avançou por diferentes
matérias conciliares. As marcas documentais desta transformação podem ser
encontradas, por exemplo, no cânone 38 da legislação de Latrão IV:

Contra a falsa afirmação de um juiz iníquo, um litigante inocente não


pode provar a verdade mediante simples negação, porque a mera nega-
ção de um fato não constitui, pela natureza das coisas, prova direta. Com
o fim de que a falsidade não prejudique a verdade e a iniquidade triunfe
sobre a equidade, estabelecemos o que segue: em todo julgamento, or-
dinário ou extraordinário, o juiz disporá sempre de um notário público
– se puder mantê-lo – ou, caso contrário, de dois homens idôneos que
transcrevam com fidelidade todas as atas do processo, quer dizer, as cita-
ções, estabelecimento de prazos, recusas, exceções, petições e respostas,
interrogatórios, confissões, declarações das testemunhas, apresentação
das provas, diálogos, apelações, renúncias, conclusões e todas as demais
circunstâncias; deverão ser transcritas em ordem, assinalando os luga-
res, tempos e pessoas. Todo o conjunto deverá ser comunicado às partes,
mas os originais deverão ficar em poder dos escrivães para que, em caso
de contestação do processo judicial, por meio deste possa ser declarada
a verdade.59

A vocalidade desbotou. Perdeu o vigor que possuía cem anos antes. A


iniquidade agora abria juncos na voz, cravava fraquezas, deixando o inocente
que podia justificar-se apenas pela fala negrejando pelas águas da impotência.
Diferentemente dos tempos em que a Igreja romana foi governada por Gregó-
rio VII ou Pascoal II, um concílio papal agora tomava a palavra falada como
ausência de meios. A verdade tem novo fiador, a escrita.
Todos os passos de um julgamento deveriam ser levados aos toques do
textual: desde os acta argumenti (“citações, estabelecimento de prazos, recu-
sas, exceções, petições e respostas”), passando pelos acta probationis (“inter-

59
Quoniam contra falsam assertionem iniqui judicis innocens litigator quandoque non potest veram
negationem probare: cum negantis factum per rerum naturam nulla sit directa probatio: ne falsitas
veritati proejudicet, aut iniquitas prevaleat oequitati: Statuimus, ut tam in ordinario judicio, quam ex-
traordinario, judex semper adhibeat aut publicam (si potest habere) personam aut duos viros idoneos,
Qui fideliter universi acta judicii conscribant: videlicet citationes, dilationes, rccusationes, exceptiores,
petitiones, responsiones, interrogationes, confessiones, testium depositiones, instrumentorum produc-
tiones, interlocutiones, appelationes, renunciatones, conclusiones, et coetera, quoe occurrerint, com-
petenti ordine conscribendo, loca designando, tempora et personas. Et omnia sic conscripta partibus
tribuantur, ita quod originalia penes scriptores remaneant: ut si super processu judicio fuerit solerta
contentio, per hoc possit veritas declarari. CCQL: 80; MANSI 22: 1023-1026; HEFELE-LECLERCQ 5/2:
1363-1364.
486 coLunas de são pedro

rogatórios, confissões, declarações de testemunhas, apresentação de provas”),


até chegar a etapa conclusiva, os acta decisoria (“diálogos, apelações, renún-
cias, conclusões e as demais circunstâncias”). Para esclarecer o que havia de
verdadeiro numa decisão ou ato era preciso deixá-la visível, tangível através
dos contornos da escrita. Por isso uma ação legal não seria admitida “a não
ser que [o juiz] apresentasse documentos legais” (nisi quatenus in causa legitimis
constiterit documentis).
O rigor do controle textual avançou com rapidez e se apoderou do ex-
tenso terreno canônico que, décadas antes, estava dominado por gestos de jus-
tificação fundamentalmente orais e corporais. Não bastava empunhar a voz.
O modo através do qual um cristão deveria desembaraçar-se das evidências
da culpa implicava em saciar os olhos de seu juiz, mais do que os ouvidos.
Premissa enunciada também no cânone 51. Segundo consta aí, uma vez anun-
ciada publicamente a intenção de casar-se, quem esbarrasse em algum impe-
dimento legítimo para a celebração das núpcias, estaria proibido de consoli-
dar a união até que essa pudesse ser autorizada por “documentos manifestos”
(quid fieri debeat super eo manifestis constiterit documentis).60 A mesma lógica
desaguava sobre os procedimentos das eleições eclesiásticas. Afinal, o cânone
24 determinou: durante uma eleição, aqueles que deveriam tomar parte dela
escolheriam “três escrutinadores, dignos de fé, para que recebam em segredo, um
a um, cuidadosamente, todos os votos”. Reunidos, os votos seriam “colocados
por escrito e tornados públicos” pelos escrutinadores.61
Da mesma maneira que o tempo, a verdade movia-se para uma exis-
tência exterior à persona, tornava-se objetivada e tangível, capaz de ser de-
positada e resgatada sempre que alguma contestação o exigia. Os sentidos de
verdade realizavam-se conforme o sentido de tempo que então permeava as
ações conciliares pontifícias. No decreto transcrito na página anterior, a pala-
vra falada, veículo da “simples negação”, não figura como uma “prova dire-
ta” correspondente à “natureza das coisas” (per rerum naturam). Assim como
o tempo emancipava-se dos movimentos morais de uma pessoa, a verdade
dissociava-se da voz e do coração.
Os domínios das coisas exteriores ao ser humano foram tomados como
fonte de autenticidade da prática probatória: a correspondência de um ato
com as propriedades das coisas, com aquilo que existe em si mesmo, enfim,
com as res extensa, era agora o que se compreendia como uma “prova direta”.
Nos cânones de 1215, a representação do tempo impulsionou a cristalização

60
CCQL: 90-92; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1374.
61
Presentibus qui debent et volunt et possunt commode interesse, assumantur tres de collegio fide di-
gni, qui secreto et singulatim voces cunctorum diligenter exquirant, et in scriptis redacta mox publicent
in communi. CCQL: 70-71; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1353.
Leandro duarte rust 487

desta percepção comum de uma ecceidade do mundo exterior. Antes do apa-


recimento de Duns Scotus – usualmente reputado como autor deste conceito
– podemos dizer que a política papal fundamentou processos de individualiza-
ção de certos elos da vida humana, como o tempo ou a verdade, constituindo-
os como unidade numérica, fazendo de sua manifestação do mundo um fenô-
meno singular (REICHMANN, 2008: 63-75). Observe-se a passagem seguinte,
retirada do cânone 40:

Algumas vezes o demandante, a quem em razão da contumácia da par-


te contrária, tendo adjudicado ante o juiz a posse do bem com o fim
de continuar conservando-o, após passar um ano, não pode aceder ao
domínio do bem em custódia e, inclusive, perde o que sob este conceito
lhe havia sido entregue. E como, segundo a opinião de muitos, não se
converteu, passado o ano, no dono autêntico e indiscutível, resulta tudo
isso em proveito do réu graças a sua malícia. Desde agora, para que o
contumaz não fique em melhor situação que o obediente, em nome da
equidade canônica, estabelecemos que, no caso já citado, ao final do
ano, o demandante seja reconhecido proprietário legítimo.62 (Os grifos
são nossos).

Segundo estipulava este cânone, o prazo de um ano devolveria a equi-


dade canônica a um procedimento judicial marcado por contumácia. Era pre-
ciso combater uma manobra que constantemente fraudava a posse legítima
de um bem. Para isso, a partir de então, se impôs a determinação de que toda
vez que surgisse um litígio envolvendo essa questão não seria mais necessá-
rio esperar pela ocorrência de algum evento, o cumprimento de um rito ou
a interferência da palavra de uma auctoritas: o tempo bastava como fonte
instauradora da correta possessão de algo. Segundo o papado, o próprio devir
consumava a maneira de ser das coisas, fundando uma posse legítima onde
até então havia uma custódia reversível e contestável. O cumprimento de um
prazo era suficiente para alterar a natureza jurídica da posse de um bem.
Outros decretos demonstram como os referenciais da verdade eram
assentados pela temporalidade conciliar pontifícia. Vejamos as constituições
lateranenses que regularam o casamento entre cristãos. O cânone 52 proibiu

62
Contingit interdun, quod cum actori ob contumaciam partis adversae adjudicatur causa rei ser-
vandae possessio, propter rei potentiam sive dolum actor infra annum rem custodiendam nancisci
non potest, vel nactam amittit: et sic cum secundum assertionem nultorum verus non efficeretur post
lapsum anni possessor, reportat commodum de malitia sua réus. Ne igitur contumax melioris, quam
obediens, conditionis existat: de canonica aequitate sancimus, ut in casu praemisso actor verus con-
stituatur elapso anno possessor. CCQL: 81-82; MANSI 22: 1025-1028; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1365.
488 coLunas de são pedro

que o testemunho de “ouvido” (testimonium de auditu) fosse admitido para


a determinação dos graus de consanguinidade ou afinidade. A justificativa
fornecida foi: “em razão da brevidade da vida humana, não existiriam
testemunhas de visão que pudessem dar testemunho sobre o cômputo de con-
sanguinidade ou afinidade até o sétimo grau.” (O grifo é nosso).63 Estas linhas
complementavam as determinações de um cânone anterior, que estipulava: “o
impedimento do matrimônio não excederá o quarto grau de consanguinidade e
de afinidade, pois além deste grau já não se pode manter a proibição em geral
sem graves inconvenientes”.64
Esta aproximação dos dois cânones avisa-nos da cautela necessária para
lidar com nossos documentos. Afinal, antes do aparecimento daquela passa-
gem do cânone 52, outra razão havia sido oferecida para legitimar a modifi-
cação das regras a respeito do casamento: um simbolismo. O novo número
do grau de parentesco estabelecido como impedimento para a união carnal
(quarto grau) foi escolhido, assim afirmou o papado, para que o novo limite
correspondesse ao número de humores existentes no corpo: quatro. Que, por
sua vez, eram oriundos dos quatro elementos (quia quatuor sunt humores in
corpore quod constat ex quatuor elementis). Expliquemos melhor.
Durante séculos, de Hipócrates a Paracelso, o saber medicinal foi pau-
tado sobre a ideia de que a vida humana era um microcosmo, também ela re-
sultava da mistura de quatro elementos ou qualidades do cosmo: quente, frio,
seco, úmido. Cada um destes elementos predominava em uma das substâncias
corporais: o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra. Embora todos
os corpos fossem formados pelas quatro substâncias, em cada ser uma delas
prevalecia, impondo à força vital um tipo de temperamento ou uma espécie
de “humor”: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico, respectivamente.
Cada humor ditava um conjunto de características físicas e psicológicas: o
colérico, por exemplo, seria reconhecido pela pulsação rápida, a respiração
arfante, a índole irascível, por sentir-se bem durante os dias quentes; o fleu-
mático era identificado pelo acúmulo de gordura corporal, por ser refém de
sonolências e por sua conduta oscilar entre a indiferença e a amabilidade; etc.
(LONIE, 1981: 54-61; CARRICK, 2001: 27-35).
Em cada corpo esses fluídos vitais alcançavam uma proporção espontânea
e singular. Essa distribuição passava a ser o fundamento da harmonia física, do-
tando cada pessoa de qualidades próprias (dynameis) e de saúde (sanitas). Qual-

63
Cum propter brevem hominum vitam teste de visu deponere non valerent usque ad gradum septi-
mum computando. CCQL: 93; MANSI 22: 1039-1040; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1375.
64
Prohibitio quoque copulae conjugalis quartum consaguinitatis et affinitatis gradum de cetero non
excedat: quoniam ulterioribus gradibus jam non potest absque gravi dispendio hujusmodi prohibitio
generaliter observari. Cânone 50. CCQL: 90; MANSI 22: 1036-1037; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1372.
Leandro duarte rust 489

quer desequilíbrio nesta mistura manifestava-se como doenças, dores e feridas.


Para manter a existência em bom termo era preciso devolver o corpo à proporção
original de seus elementos e humores, restaurá-los à ordem natural. Ao referir-se
aos “quatro elementos”, o cânone lateranense provavelmente revestia com uma
significação espiritual este ideal ancestral de equilíbrio: da mesma forma que
esse conjunto de temperamentos balanceava a própria vida, o número quatro ga-
rantiria um equilíbrio às regras do casamento, tornando-as salutares, adequadas.
Além do mais, tratava-se de um ideal constantemente estampado nas
iluminuras medievais. O novo número fazia jorrar diante de olhos clericais
uma cascata de símbolos sagrados, pois quatro eram os evangelistas e suas for-
mas (o anjo, o touro, a águia, o leão), os rios do paraíso (Pisom, Giom, Tigre
e Eufrates), as virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança),
as extremidades da cruz e as direções cardeais, os cavaleiros do apocalipse
(o da guerra, o da fome, o da epidemia, o da morte). A lista pode ser esten-
dida com facilidade, mas o que foi dito é suficiente para concluir que muitos
dos homens que aprovaram os cânones lateranenses provavelmente viam no
número “quatro” uma analogia que exprimia a totalidade da vida, incluindo
desde a constituição corporal dos homens até os principais componentes do
cosmo entalhado pelo verbo divino. Nada mais adequado do que esperar que
ele conferisse boa ordem ao casamento cristão.
Por fim, à primeira vista, a trama alegórica que permeia a nova proibi-
ção canônica parece decorrer de um toque particular de Inocêncio III. Afinal,
ela corresponde à ideia de perfeição e harmonia presente em seus escritos. A
predileção pessoal do papa pelo número quatro é confessada já no título do De
Quadripartita Specie Nuptiarum Liber: “Livro sobre as Quatro Formas de Casa-
mento”. No prólogo deste opúsculo marcado por um forte tom de homilia, o
então cardeal Lotário de Segni esclareceu a seu interlocutor, certo presbítero
Benedito, que “um sacerdote deve discernir entre quatro coisas: a verdade e o
falso, para evitar um desvio de fé; entre o bem e o mal, para evitar desvio ao
agir”.65 As escrituras que um prelado deveria compreender, continuou o car-
deal, estavam dispostas à maneira do “quatro” e suas metades: dois eram os
testamentos que um clérigo não poderia ignorar, o Novo, que se encontrava
em formato quadrangular, por conter os quatro evangelhos, e o Velho, que
havia sido escrito em duas tábuas.66 Ao longo de todo texto o casamento e a
própria vida são desdobrados em quadrantes:

65
Sacerdotis debet discernere inter quatuor: inter verum et falsum, ne deviet in credendis, et inter
bonum et malum, ne deviet in agendis. LOTÀRIO DE SEGNI. De Quadripartia Specie Nuptiarum Liber.
PL 217: 921-922.
66
LOTÀRIO DE SEGNI. De Quadripartia Specie Nuptiarum Liber. PL 217: 921-922.
490 coLunas de são pedro

Segundo ensinam as Sagradas Escrituras, aprendemos que as formas


de casamento são quatro, conforme as quatro compreensões teológicas:
histórica, alegórica, tropológica, anagógica. A primeira ocorre entre o
homem e a mulher legítima. A segunda entre Cristo e a santa Igreja. A
terceira entre Deus e a alma justa. A quarta entre o verbo e a natureza
humana. (...) Um casamento não é clandestino quando quatro pessoas
estiverem presentes: o Pai, a Mãe, o Sacerdote e o Paraninfo, os quais
certamente compreendemos ser como Deus Pai, a Virgem Mãe, o Espírito
Santo e o Anjo Gabriel.67

O cânone lateranense parece ter sido a aplicação canônica do simbolis-


mo exaltado no De Quadripartita Specie Nuptiarum Liber. Porém, havia mais
do que jogos analógicos nos fundamentos daquela medida. Havia a busca por
um pragmatismo e uma eficiência que a vocalidade não poderia proporcionar,
havia a necessidade de contornar uma limitação temporal.
Incapazes de durar, os homens não poderiam fornecer provas precisas
a respeito de elevados graus de consanguinidade e afinidade (“em razão da
brevidade da vida humana, não existiriam testemunhas de visão que pudes-
sem dar testemunho sobre o cômputo de consanguinidade ou afinidade até
o sétimo grau.”). Esse grau ultrapassava a minguada duração da existência
corporal. Um dos efeitos dessa finitude tão apertada e incontornável estava
na característica de que após o quarto grau de consanguinidade – e daí até
o sétimo – a vocalidade não vinha guarnecida por testemunho ocular. Vinha
só. Insinuada somente pela memória herdada dos antepassados. E isto, para
o papado de fins do século XII, não bastava como critério de “defesa legal”.
Restava retroceder e remodelar a lei segundo a limitada realidade intra-
temporal da vida humana: “estabelecemos que não sejam admitidos a este res-
peito os testemunhos de ouvido, posto que este impedimento [quanto aos matri-
mônios] não deve exceder o quarto grau”.68 Para restaurar a equidade canônica
foi necessário adequar-se à marcha do tempo e encontrar, em meio à transito-
riedade, o fundamentum da verdade. Buscá-lo significava, na linguagem que
perpassa Latrão IV, reconhecer a primazia da visão sobre a voz. Aspecto que o

67
Sacra docente Scriptura, didicimus quatuor esse species Nuptiarum juxta quatuor theologicos in-
tellectus: Historicum, Allegoricum, Tropologicum, et Anagogicum. Primum inter virum et legitimam
feminam. Secundum inter Christum et sancta Ecclesiam. Tertium inter Deum et justam animam.Quar-
tum inter Verbum et humanam natura. (...) Ne vero conjugium esset omnino clandestinum, quatuor
adfuerunt personae: Pater, et Mater, Sacerdos et Paranymphus; quos utique Deum Patrem et Virginem
Matrem, Spiritum Sanctum et Gabrielem Angelum intelligimus. LOTÀRIO DE SEGNI. De Quadripartia
Specie Nuptiarum Liber. PL 217: 923- 926.
68
Statuimus ne super hoc recipiantur testes de cetero de audito, cum jam quartum gradum prohibitio
non excedat. CCQL: 93; MANSI 22: 1039-1041; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1375.
Leandro duarte rust 491

cânone 52 definiu como quesito para que um testemunho sobre o grau de pa-
rentesco colocado em jogo em um matrimônio fosse tomado como conclusivo:

Estas testemunhas estão obrigadas a jurar que, ao declarar em tal causa,


não foram movidas nem por ódio nem por medo, assim como tampouco
para prejuízo ou pelo interesse. Deverão, além disso, designar as pes-
soas por seus nomes exatos; descrevê-las explicitamente, quer seja por
gestos ou por palavras; distinguir claramente, no que a determinação se
refere, os graus de parentesco em cada um dos dois ramos genealógicos,
e, finalmente, incluir em seu juramento que os fatos sobre os quais se
declara, os conhece por transmissão de seus antepassados e que eles os
julgaram autênticos. Que estas testemunhas não sejam juizes defi-
nitivos, a menos que declarem sob juramento que eles mesmos viram
as pessoas que pertencem pelo menos a um dos graus citados e as reco-
nhecerem como consanguíneas. É preferível, certamente, unir a algumas
pessoas contra as leis humanas que separar a esposos legítimos contra as
leis divinas.69 (Os grifos são nossos)

Para impedir que algum atentado fosse cometido contra as “leis divinas”
era preciso agarrar-se às formas visíveis, pois elas transmitiam a firmeza e a
natureza insuprimível de um ato ou escolha. Proceder dos domínios da visão
era o que assegurava a um testemunho a qualidade de confiável, assentando-o
como fonte de credibilidade e relevância jurídicas. Exposta à torrente de brevi-
dade que cerca a vida, a fala humana necessitava de um ponto de apoio firme
o suficiente para sustentar a verdade contra as vicissitudes do efêmero e do
transitório. A visualização era esta garantia. Ela ampararia um testemunho e
o dotaria de uma consistência que a finitude dos homens não poderia tocar ou
macular. Sob a regência de uma temporalidade dissociada do ser, que envolvia
a existência em formatos exteriores e objetivos, os olhos triunfavam sobre a
boca e os ouvidos como condutores da verdade.
Marcada por um pragmatismo e um racionalismo aguçados, a legislação
lateranense nos faz atinar para um aspecto histórico ressaltado há cinco déca-
das pelo teólogo Henri de Lubac (2000: 56), mas que teve suas nuanças enco-

69
Testes autem hujusmodi, próprio juramento firmantes, quod ad ferendum in causa ipsa testimo-
nium, odio, vel timore, vela more, vel commodo non procedant, personas expressis nominibus, vel
demonstratione, sive circumlocutione sufficienti, designent, et ab utroque latere clara computatione
gradus singulos distinguant: et in suo nihilominus juramento concludant, se accepisse a suis majoribus
quod deponunt, te credere ita esse. Sed nec tales sufficiant, nisi jurati deponant, se vidisse personas
saltem in uno praedictorum graduum constitutas pro consanguineis se habere. Tolerabilius est enim
aliquos contra statuta copulatos dimittere, quam conjunctos legitime contra statuta Deomini separare.
CCQL: 93-94; MANSI 22: 1039-1041; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1375.
492 coLunas de são pedro

bertas por uma influente historiografia magnetizada pelo conceito de “menta-


lidade”. Podemos concordar em caracterizar as elites clericais e monásticas dos
séculos XI e XII como enredados por uma linguagem repleta de particularida-
des. Sendo uma das mais marcantes o predomínio de “usos destemperados do
alegorismo”, de um modo de pensar dominado pela ideia de que conhecer era
desatar os nós dos simbolismos e decifrar os significados da existência oculta-
dos por similitudes, figurações, analogias. O “alegorismo” buscava alcançar a
presença que se escondia por trás de tudo que é tangível e aparente. Mas, esta
busca por sentidos espirituais, misteriosamente entalhados por Deus sobre o
mundo como “imagens opacas” e “sombras”, não deve ser vista como uma ne-
gação ou diminuição do senso prático ou lógico acerca da existência.
De Lubac (2000: 50-58) frisou com lucidez que atribuir ao mundo uma
textura de simbolismos não implicou, para aqueles homens e mulheres, em
restringir sua capacidade de vivenciar a solidez da história ou praticidade do
cotidiano. As articulações variáveis e paradoxais criadas entre o mundo ma-
terial e as crenças em um Além espiritual levavam os medievais a orientar-
se pela premissa de uma coexistência de planos ontológicos, nunca de uma
supressão do primeiro no interior do segundo. Imersas em símbolos e analo-
gias, as elites eclesiásticas significavam a materialidade de modo irredutível,
percebiam-na em sua impossibilidade de ser reduzida a uma simples extensão
do se acreditava ser o espiritual, a apreendiam segundo uma dimensão da vida
dotada de fundamentos próprios.
Logo, não deve o historiador fechar a linguagem eclesiástica medieval
dentro dos limites de uma univocidade, reduzi-la a uma única tonalidade de
sentidos. Não devemos concebê-la como se ela nada mais fizesse a não ser
girar em redor de núcleos de alegorias e de associações figurativas, de simbo-
lismos que, singrando o pensamento de ponta a ponta, fariam da compreensão
do mundo um ato pré-lógico. É preciso reconhecer a plurivocidade alojada sob
a visão alegórica e sua permanente abertura para a realização de significações
que reportam à vida cotidiana, a seus dilemas e desafios. Isto se aplica ao que
aqui temos investigado. Nos simbolismos que rondavam o número quatro,
imposto na legislação de 1215 para demarcar o grau de consanguinidade que
limitava o matrimônio, havia espaço suficiente para abrigar um forte senso de
utilidade e racionalização da ação eclesiástica, necessidade prática do papado.
Com o textual prevalecendo sobre o gestual e o gradual predomínio da
visualidade sobre a vocalidade, o regime judicial vigente nos concílios pontifí-
cios transformou-se de maneira decisiva. Segundo a historiografia, na legisla-
ção de Latrão IV há um decreto que põe esta mudança em evidência, realçan-
do-a de modo emblemático: o cânone de número 18. Trata-se do decreto que
proibiu a participação clerical em sentenças de morte e castigos corporais que
Leandro duarte rust 493

implicassem em derramamento de sangue. Tal comando negava aos homens


estabelecidos nas ordens sagradas a possibilidade de abençoar ou consagrar os
ordálios, os julgamentos por meio de provas corporais.70
Ficava assim abolida uma prática ancestral e muito comum no ocidente.
Proibia-se um modo de agir constantemente associado às memórias de Leão IX
e de Gregório VII, além de tolerado por Eugênio III e Alexandre III em ocasiões
excepcionais (BALDWIN, 1961: 613-636). A supressão dos ordálios anuncia-
ria a ascensão de um novo conjunto de práticas judiciárias que eclipsavam o
“direito feudal”. A decisão lateranense foi saudada como marco de nascimento
e afirmação social do inquérito, uma nova forma de exercício do poder, pon-
to de divergência do antigo sistema judiciário no qual a verdade revelava-
se através de fórmulas mágicas, duelos e batalhas travadas, primeiramente,
contra o próprio corpo. Para muitos historiadores não há dúvida: o décimo
oitavo cânone de 1215 assinalou a drástica transformação das formas jurídicas
ocidentais (FOUCAULT, 2002: 53-78; Ver ainda: COLEMAN, 1974: 571-591;
HYAMS, 1981: 90-126; BARTLETT, 1986: 98-106; BALDWIN, 1994:327-353;
MCAULEY, 2006: 473-513).
Porém, a interdição fincada em 1215 não era inédita. O concílio lega-
tino de Paris, reunido por Robert de Courson em 1213, já havia determinado
que “duelos e ordálios não deveriam ocorrer em lugares sagrados, cemitérios ou
em presença dos bispos”.71 Decisão confirmada no ano seguinte, na assembleia
provincial de Rouen. Ações regionais como essas fechavam um longo cerco de
reprimendas papais aos “juízos de Deus”. Os protestos pontifícios não eram
recentes. Em uma epístola endereçada a um aristocrata da Sardenha, uma
década antes das ações lideradas por Courson, Inocêncio redarguiu:

Embora a lei canônica não permita [provas corporais que incluem] ferro
incandescente, água congelada e outros julgamentos semelhantes, sa-
cerdotes infelizes têm sido compelidos a pronunciar a benção [sobre tais
juízos] e, se compelidos, não consentem em se submeter, são arruinados
com penas pecuniárias.72

A participação clerical nos ordálios era, para o papa, uma violência co-
metida contra a condição sacerdotal. Decorria, segundo a epístola, do modo

70
CCQL: 66; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1348.
71
Ne monomachiae, vel judicia peregrina in sacris locis, vel coemeteriis, vel episcoporum praesentia
fiant. MANSI 22: 842.
72
Cumque candentis ferri et aquae frigidae ac similia judicia lex canonica non admittat, benedicere
ac interesse talibus compelluntur miseri sacerdotes, et si compellentibus parere noluerint, (...) poena
pecuniaria percelluntur. INOCÊNCIO III. Epistola. PL 214: 394; POTTHAST, 2268.
494 coLunas de são pedro

de agir imposto por laicos (mandatum laicale) e acabava por curvar a presença
clerical a causas da justiça secular (in causis civilibus coram saeculari judice tes-
timonium perhibere), atraindo a ira do Altíssimo (indignationem in te Altissimi
provocare). Combater a prática dos ordálios significava para a Cúpula papal
zelar pela distinção entre as justiças eclesiástica e secular. Este princípio é de
importância vital para a compreensão de outra epístola despachada pela chan-
celaria apostólica em janeiro de 1212.
Um ano antes de iniciar a convocação do plenário lateranense, o papa
escreveu a Henrique, bispo de Strausburg. Precisava repreendê-lo por ter per-
mitido que um homem chamado Raimbaldo se justificasse da acusação de
heresia através da realização de um desses juízos corporais.73 Ao admitir o
ordálio, o bispo consentiu que um gravíssimo caso de desvio de fé fosse re-
movido da alçada das decisões eclesiásticas. O bispo minou a base da justiça
sacerdotal.
O papado investiu pesadamente contra os ordálios. A interdição conci-
liar de 1215 é acolhida pelos historiadores como o marco do banimento desta
prática da vida eclesiástica ocidental (BARTHÉLEMY, 1988: 3-25; MOORE,
1889: 151-153; LEA, 1996: 227). As opiniões sobre as razões históricas deste
declínio, todavia, divergem.
Um importante divisor de águas historiográficas foi uma tese proposta
por Charles Radding em meados da década de 1980. O argumento central de
seu livro A World Made by Men: Cognition and Society (400-1200) consiste na
constatação de uma ampla mudança da “mentalidade ocidental” durante o
século XI. Segundo o próprio autor, estava em jogo a transformação social dos
“processos coletivos de cognição”. Estes teriam sido refundados, reconstruídos
sobre as bases de uma nova lógica, a da propagação de um apreço intelectual
por causalidades físicas e de uma transcendentalização do sagrado. Este novo
ambiente de pensamento teria alterado a postura dos homens em relação ao
mundo: a vida em sociedade passou, segundo Radding (1985: 262), a incor-
porar atitudes pautadas na independência entre a ação coletiva e as forças
sobrenaturais. A percepção dos medievais acerca do que era racional teria
sido reconfigurada pela disseminação de uma “nova cultura esclarecida”: “é a
transformação de uma cultura no espaço de poucas gerações (...). Para ser claro,
isto não é algo que ocorre frequentemente; até onde conheço, somente os gregos
do quinto e sexto séculos a.C. oferecem um paralelo real”.
Os ares desta nova atmosfera mental sufocaram os ordálios. Não havia
mais lugar para práticas judiciárias como aquelas, que plasmavam o homem
em um mundo repleto de potências misteriosas, temíveis, insondáveis. O direi-

73
POTTHAST, 4358.
Leandro duarte rust 495

to deveria adequar-se à percepção de que a vida tinha agora um novo palco:


a natureza, um tema de interesse em seus próprios méritos, em seus próprios
mecanismos. Pois, segundo Radding (1985: 256), é disso que se tratava, de
um processo de “mecanização da natureza, com nenhum espaço restando para
forças ocultas (...). Esta semelhança entre os séculos XII e XVIII, ambos testemu-
nhando o florescimento de novas poderosas formas de raciocínio, permite-me
sugerir a utilidade de pensar sobre o século XII como um tipo de ilustração”.
Cabe notar que nosso autor se recusou a tomar os “juízos de Deus”
como ações que pudessem ser explicadas em termos unicamente simbólicos
ou emocionais. Não devemos concebê-los, como até então tinha feito a histo-
riografia na esteira de estudiosos como Paul Rousset (1948: 225-248), como
traços de um irracionalismo que privilegiava forças ocultas e a crença em uma
“justiça imanente”. Radding não viu nos ordálios um modo de agir caracte-
rístico de uma “mente primitiva”. O abandono dessas formas judiciárias não
teria decorrido de um desacerto intelectual das elites, como se, em certa altura
da história, algo tivesse estalado em suas mentes, abrindo seus olhos para a
irracionalidade embutida em tais práticas. Os “juízos de Deus” teriam entrado
em declínio por que sua racionalidade teria sido sobrepujada por outra, que se
alastrou pela civilização ocidental ao longo do século XII. A lógica dos ordálios
teria fraquejado perante os novos parâmetros de racionalismo estabelecidos
pelo “Renascimento do Século XII”, velho tema historiográfico que sustenta
toda argumentação de Radding (FREEDMAN & SPIEGEL, 1998: 677-704).
Esta tese desautorizava as interpretações inspiradas em Peter Brown.
Em 1975, este ilustre autor, mais conhecido por sua contribuição ao estudo
da “Antiguidade Tardia”, publicou Society and Supernatural: a medieval chan-
ge, insistindo na compreensão dos ordálios como rituais de conservação da
coesão de pequenas comunidades: por meio deles o indivíduo oferecia sua
própria integridade física em sacrifício à coletividade, como prova de não ter
violado as regras e os costumes do grupo a que pertencia. Assim, os “juízos de
Deus” teriam desempenhado uma função sociológica de grande importância:
assegurar o consenso e a união de modestas células populacionais.
Portanto, a chave explicativa de seu declínio também estava dada.
Quando esses pequenos grupos foram arrebatados pelo crescimento popula-
cional e a diferenciação social que marcaram o “mundo feudal”, novas tensões
se infiltraram no seu interior, criando um quadro de lutas e contradições que
os ordálios não mais aplacavam (BROWN, 1975: 133-151). Perspectiva antes
sustentada por Rebecca Colman (1974: 571-591) e retomada por Paul Hyams
(1981: 90-126). Já em Superstition to Science: nature, fortune and the passing
of Medieval Ordeal, artigo publicado em 1979, Radding insurgiu-se contra esta
explicação. Com um tom duro e muitas vezes sarcástico, ele afirma que o
496 coLunas de são pedro

crescimento das cidades não impôs recuos à aplicação dos ordálios. Afinal, a
história das grandes cidades mercantis dos séculos XII e XIII está repleta de
casos de sua utilização. As repostas para o declínio dos ordálios não estariam
aí, na ênfase funcionalista de Brown, que faz a crença em uma prática social
refluir para trás de sua utilidade coletiva:

Ao invés de um solene apelo ao julgamento sobrenatural, os ordálios se


tornam uma bizarra performance teatral na qual é difícil distinguir os
atores da plateia. Uma teoria que se inicia como tentativa de absolver
pobres primitivos das acusações de superstição se transformou assim em
uma reivindicação de que ninguém realmente acredita em nada signifi-
cativamente diferente daquilo que nós fazemos hoje em dia (RADDING,
1979: 950).

Pouco menos de um ano depois da publicação de A World Made by Men,


foi a vez de Radding ver suas ideias na berlinda, sob o fogo cerrado dos ques-
tionamentos de Robert Bartlett. Este medievalista britânico expôs suas discor-
dâncias nas páginas de “Trial by Fire and Water: the Medieval Judicial Ordeal”.
A crença nos “juízos de Deus” não enfraqueceu durante o século XII. Na rea-
lidade, garante Bartlett (1986: 100), são muitos os indícios documentais que
apontam para o frequente recurso aos ordálios durante todo este período,
inclusive às vésperas da decisão lateranense de proibi-los. Logo, seu declínio
foi um fato brusco, um corte político imposto à História, não um processo ou
uma transformação de racionalidades:

Papas no nono século denunciaram os ordálios e eles ainda assim flo-


resciam. Inocêncio III ergueu a voz e eles pereceram. (...) Não houve
declínio do ordálio, ele foi abandonado. A decisão papal não foi o tardio
reconhecimento de um longo processo de definhamento, foi uma deci-
são política que resultou no abandono do ordálio.

A historiografia carecia de apontar fatores precisos, razões mais palpá-


veis para o ocaso dessas práticas. Para Bartlett (1986: 85-87), em primeiro
lugar, a renúncia às provas corporais foi determinada pelo aparecimento de
um novo regime de governo eclesiástico, supostamente articulado pela cen-
tralização papal: “A controvérsia sobre a legitimidade do ordálio deve ser vista
no contexto global das atitudes eclesiásticas em relação ao costume. É um lugar
comum – e verdadeiro – caracterizar os Gregorianos como encampando a lei
contra o costume”. Em segundo lugar, deve-se atribuí-la à nova compreensão
do sagrado proposta pelas elites intelectuais escolásticas: “a crítica escolástica
Leandro duarte rust 497

do julgamento por ordálio não reflete naturalismo cético ou racionalismo, mas


antes uma nova e mais rigorosa metafísica” entre 1050 e 1215 o refinamento da
especulação abstrata intensificou os limites a ser observados pela explicação
dos procedimentos jurídicos.
A nova ordem política firmada desde o “momento gregoriano” e as for-
mulações de uma nova metafísica forçaram um deslocamento das linhas entre
o natural e o sagrado, tornando o recurso ao ordálio intolerável. Dispor a
questão como problema relativo a um “racionalismo ocidental” seria reduzi-la
aos termos de uma causalidade vaga e generalista. Em frase lapidar, Bartlett
(1986: 86) concluiu: “eles [os clérigos] não o abandonaram porque ele era
irracional, ele se tornou irracional porque eles o abandonaram”. John Baldwin
(1994: 327-353) retocaria as linhas gerais desta interpretação ao conceber o
cânone 18 de Latrão IV como uma aplicação dos ensinamentos de Pedro, o
“Cantor”: este mestre parisiense seria o elo palpável entre o pensamento esco-
lástico e o declínio dos ordálios.
Para Kenneth Pennington as visões de Charles Radding e Robert Bartlett
possuíam a mesma fraqueza: ambos negligenciavam as razões propriamente
legais por trás desta questão, isto é, os impactos ocasionados pelas altera-
ções dos procedimentos judiciais sobre o mundo medieval. Em The Prince and
the Law, 1200-1600: Sovereignty and Rights in the Western Legal Tradition, de
1993, este especialista norte-americano na História do Direito alertou para as
profundas repercussões que a constituição de novos saberes legais acarretou
sobre a legitimidade dos ordálios. A ampliação das atividades legisladoras nas
cortes e, sobretudo, no papado; a retomada dos fundamentos romanos para
os direitos e a formação de novos “projetos normatizadores” ergueram um
“sistema de justiça” onde a ordem da lei escrita ocupava agora o posto de um
verdadeiro mandamentum.
Estas transformações difundiram nas cortes, tanto eclesiásticas, quan-
to laicas, um novo entendimento dos processos judiciários, que deveriam ser
integralmente orientados pela materialidade das provas, a publicidade das
etapas decisórias, a conservação de uma equidade entre as partes envolvidas
em litígio (PENNINGTON, 1993: 135-149). Todas estas características básicas
eram afrontadas pelo ordálio. Baseado no desempenho de uma provação vi-
vida pelo acusado contra o próprio corpo, o “Juízo de Deus” revelava-se uma
prática unilateral, uma vez que ele dependia fundamentalmente do papel re-
alizado por um dos litigantes, o que feria o ideal de equidade. Além disso, ele
deixava oculto o verdadeiro meio de prova da inocência ou culpa, afinal de
contas, tratava-se de um “julgamento de Deus” revelado de maneira misterio-
sa. Por fim, a decisão sobre o litígio era revelada em um único ato, violento
e aterrador, impossibilitando a demonstração da verdade ao cabo de um pro-
498 coLunas de são pedro

cesso gradativo, cujo desenrolar seria vigiado em cada um de seus passos.


Portanto, os ordálios contrariavam a nova “ordem jurídica” (ordo judiciarius)
consolidada no século XIII, da qual o IV Lateranense fez parte. Perspectiva
endossada Robert Jacob (1995: 87-104).
A história institucional do papado tem algo a oferecer para este já rico
debate (Ver ainda: MAJZOUB: 2005: 11-34). Para isso precisamos regressar
ao cânone 18 e redizê-lo com maior rigor. Pois ele não pode ser definido,
como habitualmente tem sido feito, como o “decreto de proibição dos ordá-
lios”. Essa definição nos parece reducionista, já que seu propósito foi maior.
Seu texto visava coibir o envolvimento dos homens da igreja cristã com o ato
de verter sangue. O que, por sua vez, desautorizava um amplo espectro de
ações: participar ou proferir “sentenças de sangue” (sententiam sanguinis), ou
seja, sentenças de morte; estar implicado em “punições de sangue” (sanguinis
vindictam), castigos corporais que sulcassem feridas; assumir a liderança de
“arqueiros” (balistriis); realizar “cirurgia que induza a queimaduras e incisões”
(Nec illam chirurgiae quae ad ustionem vel incisionem inducit); consagrar ou
bendizer “ordálios” (purgationi aquae ferventis vel frigidae seu ferri cadentis), e
participar em “duelos” (monomachiis).74
Desde modo, a proibição conciliar atingiu os ordálios ao cabo de um
efeito dominó: a censura ao contato clerical com a efusão de sangue desenca-
deou uma reação em cadeia de interdições, fulminando práticas diversas. Em-
baralhados no interior desta sequência de proibições estavam julgamentos por
meio de provas corporais. Os “Juízos de Deus” não formavam “o” propósito do
texto conciliar, não eram, por assim dizer, “o alvo” daquele decreto, que, não
obstante, os atingiu em cheio. A meta na qual mirou o décimo oitavo cânone
de 1215 era muito maior, mais abrangente: o continuum ontológico existente
entre a persona e as práticas decisórias, insustentável à luz da representação
de tempo cultivada nos concílios papais.
O cânone em questão foi uma aplicação da razão (ratio) que norteava
a realização da política papal. Seu texto aplicou aos domínios da corporalida-
de a lógica de objetivação e exteriorização fomentada pelas experiências de
tempo. O corpo deveria ser integrado à mesma ordem ontológica que então
envolvia a percepção da duração e a ideia de verdade. Ele deveria adequar-
se ao modo de existir orientado para a conservação de limites. Assim como
a temporalidade ganhou fronteiras ao ter sido demarcada como prazos, e da
mesma forma que a verdade estava cerrada entre os contornos das provas visí-
veis, a corporalidade também deveria passar a obedecer as formas da “nature-
za das coisas em si”. Ela foi envolvida por comandos de fixação e preservação.

74
CCQL: 66; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1348.
Leandro duarte rust 499

O corpo devia fechar-se e, como o tempo, já encapsulado em prazos, ceder a


um isolamento frente ao mundo e ao outro.
Donde a exigência de afastar-se do sangue vertido. Afinal, por meio
dele, a forma corporal era levada a transbordar seus limites, a escapar, disper-
sar-se, desfazer-se. Ainda que o cânone em questão veiculasse o antigo tabu
judaico do sangue que jorra como fonte de impureza (LE GOFF, 2006: 38-40),
devemos reconhecer este outro sentido presente em suas linhas: a efusão san-
guínea foi proibida por que feria o ideal tácito de um modo de existir definido
pela identificação de limites, a fluidez do sangue era a própria imagem de
barreiras físicas gravemente violadas. Ela instaurava a dispersão: ao fugir por
uma ferida, este líquido vermelho levava consigo a vida, fluida e frágil, abrin-
do a contagem regressiva para a morte. Derramar o sangue era despertar a
angustia da finitude, a tristeza de ver a existência escapar, findar. Era criar um
terrível face-a-face com a falta, a perda, o efêmero, a brevidade. Ao escorrer,
o sangue afrontava um duplo propósito que décadas de perdas patrimoniais
converteram em carro-chefe da política pontifícia: a preservação da ordem
material e a permanência física.
As razões para o combate aos ordálios não eram alheias às relações te-
cidas dentro do papado. Não estamos condenados a buscá-las fora dele, numa
metafísica escolástica ou na sofisticação racionalista. Motivações propriamen-
te institucionais exigiam um recuo das manifestações corporais insólitas, de
interferências que transbordavam limites, despertando o fantasma da finitude,
do esgotamento do tempo. A racionalidade temporal cultivada nos concílios
papais tornou insustentável a tolerância àquelas ocorrências maravilhosas, pe-
las quais o corpo ultrapassava suas bordas físicas para alcançar as potências
divinas através da força de ferros incandescentes ou águas insuportavelmente
gélidas. O corpo devia seguir o exemplo do tempo: a fronteira entre ele e o
restante dos seres deveria permanecer firme, estável, visível; todas as práticas
que a tornavam porosa e fluida deveriam ser combatidas e desautorizadas.
Em nossa opinião, essa lógica, uma das razões para a proibição dos
ordálios, foi menos a característica de um “renascimento intelectual” – tese
de Charles Radding – e mais uma questão que envolvia as posições de poder
ocupadas pela Igreja romana na própria sociedade senhorial – como sugeriu
Kenneth Pennington.
Separação entre a vocalidade e as “provas diretas” da defesa canônica.
Promoção da escrita como fundamentum da verdade. Triunfo do ocular sobre
o invisível. Defesa do isolamento corporal. Todas estas transformações alinha-
vam-se na mesma direção. Todas obedeciam aos sentidos de exteriorização e
objetivação ontológicas que uma representação de tempo difundia por toda a
eclesiologia romana. Destacar, isolar, distanciar, controlar, conservar, estender,
500 coLunas de são pedro

perdurar. Eis aí algumas das principais orientações comportamentais presen-


tes nas deciões conciliares empreendidas pelo papado nas décadas seguintes
ao fim do cisma anacletiano.

8.4. O tempo, coluna viva de São Pedro

Entre as ciências chamadas “humanas” há um conceito especificamente


modelado para destacar essas características que tanto marcaram as assem-
bleias eclesiásticas papais da segunda metade do século XII. Conceito que,
como tal, revela-se útil para a escrita de uma história institucional do papado
na Idade Média: secularização. “Mas esta escolha é um tremendo risco!” Prova-
velmente, pensará o leitor, sobretudo se estiver familiarizado com a sociologia
da religião. E o faz com certa razão. Em redor deste termo cristalizou-se um
sentido eminentemente negativo: “secularizar” seria suprimir o “sagrado” na
vida em sociedade, diminuir o apelo ao divino no bojo das relações sociais.
Este frequentemente é o nome que se dá ao declínio sociológico da crença no
transcendente e no sobrenatural, que perderia espaço para uma vida confor-
mada ao empirismo, à irredutibilidade “deste mundo” (SHINER, 1967: 207-
220).
Muito desta forma de compreensão se deve a Max Weber (2004: 34,
159, 161, 202) e seu clássico A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo.
A ideia de “secularizar” surge quatro vezes ao longo deste estudo de 1904. Em
todas as ocasiões, ela é atravessada pelo significado recorrente de um proces-
so de racionalização a partir da “dessacralização”. Com isto, o termo localiza
tudo que é distinto ou até mesmo oposto à religião, alicerçado na imagem
do mundo como detentor de seus próprios nexos causais. Numa perspectiva
weberiana, uma época secularizada não deixaria espaço para a crença na exis-
tência de forças exteriores a este mundo, e toda ação seria guiada por cálculos
envolvendo somente meios e fins racionais, empíricos, “reais” (SWATOS &
CHRISTIANO, 1999: 209-228).
Desde então, as definições se multiplicaram. Sua avassaladora maioria,
no entanto, seguia orbitando em redor do núcleo teórico weberiano. Uma
acepção mais generalista, como a estabelecida por John Headley (1987: 21-
37), que chamou de “secularizar” o processo de “liberação da humanidade das
divindades ocultas no mundo da natureza e reconhecimento do mundo em si mes-
mo como somente mundo”, e uma abordagem mais restrita, como a delimitada
por Terrance Carroll (1984: 362-382), que via a secularização como a cisão
entre Estado e Igreja, viés da “diminuição do âmbito da vida humana que é
governado por leis religiosas, valores religiosos ou autoridades religiosas” tinham
isto em comum: a afirmação de um recuo ou de uma restrição das hierofanias,
Leandro duarte rust 501

de espaços públicos povoados pela crença em manifestações de entidades e


potências superiores ao “mundo” e o “outro”. Não faz muito tempo Steve Bru-
ce (2002: 241) concluiu seu provocador God is Dead: secularization in the West
afirmando: “onde o estado permanecer suficientemente próspero e estável para
que a realidade da diversidade e da atitude do igualitarismo não sejam varridos
por algum cataclisma inimaginável, eu não vejo razão para se esperar que a
secularização seja revertida”. A Modernidade Ocidental parecia possuir uma
vocação secularizante.
Marcado por este sentido seminal, o conceito sofreu severo desgaste.
Em primeiro lugar porque nenhum período histórico validou a ideia de uma
maciça demissão daquilo a que se tem chamado de “sagrado” da existência
social. Nem mesmo nossa Modernidade capitalista, tão saturada de cientifici-
dade, estimada por muitos como modelo de sociedade secularizada, pôde pro-
ver este conceito de provas convincentes. Os recorrentes revivals das religiões
e da religiosidade como fatores predominantes nas ações sociais levantaram
a poeira do princípio de que uma acentuada urbanização e a industrialização
minariam a vitalidade das crenças no divino e em sua interferência nos assun-
tos humanos, como constatou Staff Hellemans (1998: 76): “Na Europa, onde a
secularização mais avançou, parece haver espaço suficiente para a vida religiosa
(...). Esta duradoura vitalidade da religião na modernidade é difícil de explicar a
partir da perspectiva da secularização”.
A globalização não erodiu o solo da plausibilidade de um ethos religio-
so, tal como o individualismo não sentenciou as visões coletivas que definiam
o mundo como arena de potências sobrenaturais. A contínua construção das
identidades sociais a partir de crenças e rituais pautados na existência do sa-
grado, em plena era de impensáveis saltos tecnológicos, obrigou um dos mais
notórios teóricos do paradigma da secularização, o austro-americano Peter
Berger (Ver: WOODHEAD, 2001: 87) a retratar-se: “nos últimos anos comecei a
acreditar que muitos observadores da cena religiosa (eu entre eles) superestima-
ram o grau e a irreversibilidade da secularização”.
Além disso, a credibilidade do conceito foi arranhada por um controver-
so efeito dicotômico associado a ele. Muitos dos que falam em “secularização”
supõem que os dias atuais são menos religiosos do que os de outrora. Veicu-
lando a ideia de um declínio social da religião, eles afirmam ou pressupõem a
existência de uma época anterior dominada por uma “plenitude do sagrado”
sobre a vida em sociedade. Com isso, falar em uma etapa da história ocidental
na qual a religião teria deixado de ser o fator sociológico agregador gera uma
contrapartida: manter em mente a imagem de um passado inteiramente domi-
nado pela experiência religiosa. A visão de uma “modernidade secularizada”
encontra seu alter ego, seu reflexo no espelho: uma Idade Média pensada em
502 coLunas de são pedro

bloco como “reino da ortodoxia e da Igreja” (SWATOS & CHRISTIANO, 1999:


209-228). Tal como ocorreu com a primeira imagem, a segunda foi descartada
por historiadores e sociólogos como artificial e abusiva.
Por fim, haveria ainda o inconveniente de tratar-se de um conceito que
carrega uma fortíssima dose de teleologia. Herdeira da noção de “progresso”
talhada pelo Iluminismo, a ideia de secularização aportou no pensamento de
Weber como um movimento histórico longo, constante e inevitável. Algumas
décadas e certas leituras discutíveis acrescentaram outros aspectos à inevita-
bilidade weberiana: irreversibilidade, totalidade, linearidade. A secularização
seria, portanto, uma espécie de sentença evolutiva, estágio de maturidade de
toda sociedade (SKOLNIL & GORDO, 2005: 3-7).
Todas estas características fazem a “secularidade” assemelhar-se a uma
utopia da racionalidade, cujo valor teórico Rodney Stark (1999: 249-273) ten-
tou sepultar:

Após aproximadamente três séculos de profecias completamente falhas


e deturpações tanto do presente como do passado, parece tempo de con-
duzir a doutrina da secularização para o cemitério das teorias fracassa-
das e lá sussurrar ‘resquiescat in pace’.

Então, porque recorrer a um conceito tão temerário, tão incômodo? E


para o estudo de um período (a Idade Média Central) que figura como seu an-
típoda documental? Nossa resposta: por que o conceito “secularização” parece
ser a ferramenta teórica especialmente modelada para a análise de processos
de diferenciação axiológica, como o que dominou os concílios papais situados
nas cercanias do ano de 1200. David Martin (2005: 17-25) tinha razão: é pre-
ciso escavar as camadas de desdobramentos teóricos e reter apenas o princípio
medular que sustenta este conceito, isto é, o de nomear as diferenciações de
esferas sociais de valor. Tal argumento exige-nos alguns ajustes, certas cor-
reções de foco quanto às implicações que acabamos de listar a respeito da
“secularização”.
Comecemos prestando atenção a advertência de Karel Dobbelaere
(1999: 229-247): a “secularização” é um processo societário e, como tal, não é
redutível ao que os agentes sociais expressam conscientemente. Eis o primeiro
acerto de contas teóricas: secularizar é transformar os inesgotáveis feixes de
relações humanas constituintes do sentido das ações sociais. É, portanto, um
conjunto de alterações históricas que vai muito além daquilo que pensavam
ou diziam os indivíduos. Em outras palavras, não cabe ao pesquisador manter
o olhar fixo sobre as ideias e os imaginários formulados pelos atores sociais,
esperando pela aparição dos significados secularizados. Na realidade, graças
Leandro duarte rust 503

à própria separação axiológica à qual dá nome, a secularização nos leva a


esperar divergências entre as práticas e as ideias acalentadas pelos agentes
históricos. O papado medieval o demonstra com precisão.
Entre as décadas de 1160 e 1210, os concílios pontifícios tornaram-se
palco de um reordenamento da temporalidade. O tempo foi crescentemente
dissociado das qualidades interiores da persona. Exteriorizado e objetivado,
ele foi vivenciado como parâmetro para adequar as relações de poder, tornan-
do-as mais eficazes, especialmente, para a concretização das metas da perma-
nência patrimonial. Neste mesmo período, um diácono, plenamente compro-
metido com estas transformações, expressou em seus escritos uma consciência
do devir drasticamente divergente: Lotário de Segni, eleito em 1198 papa
Inocêncio III.
A julgar por seus opúsculos, diríamos que Latrão IV teria causado pro-
fundo mal-estar àquele homem. Examinemos, ainda que brevemente, um de
seus trabalhos pastorais: De Contemptu Mundi, Sive de Miseria Conditionis Hu-
manae, escrito, provavelmente, em 1195 (VILLER, 1971: 1770). O plano ar-
gumentativo traçado pelo cardeal distribuiu suas ideias sobre “o desprezo ao
mundo” em três livros.
Ao longo dos trinta e um capítulos do primeiro livro, Lotário se confessa
“tomado pelas lágrimas” (consideravi ergo cum lacrymis) diante da tarefa de
descrever a deplorável constituição humana. Parece ser incontrolável seu la-
mento pelo homem ter sido criado a partir da vil matéria, por sua “detestável
e impura” (detestabilis et immundus) condição no ventre materno, onde “é
nutrido pela imundície do sangue menstrual” (profecto sanguinem menstruo/
immunditiam menstruorum). As palavras do cardeal pareciam se desfazer em
tristeza ao descrever as vulnerabilidades da infância; a incessante sina de an-
siedades e atribulações da vida adulta; os sofrimentos da velhice e a proximi-
dade da morte. Leitor de Ovídio e Gregório I, Lotário via os “tempos tão pas-
sageiros quanto as nuvens” e o homem destinado a morrer sozinho e padecer
pelo corpo, “odiosa prisão da alma”.75
O segundo livro não sucumbiu aos lamentos como o anterior, pois cada
um de seus quarenta e três capítulos parece empenhado em esbravejar con-
tra o “irrefreável avanço da culpa na vida humana”. Ele nos leva a ver nosso
personagem enfurecido diante da matéria humana, vista por ele como sempre
sedenta de riqueza, prazer e honra; ânsia que desperta a “concupiscência da
carne para os prazeres, a concupiscência dos olhos para as riquezas, o orgulho
da vida pertencente à honra” (concupiscentia carnis ad voluptates, concupiscen-
tia oculorum ad opes, superbia vitae pertinet ad honores). Das ações humanas,

75
LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 703-713; ACHTERFELDT: 13-47.
504 coLunas de são pedro

Lotário extraiu um verdadeiro calvário de falhas: cobiça, vaidade, orgulho,


gula, avareza, luxúria. E antes de encerrar o livro, ele detestou seus semelhan-
tes por rebaixarem a si mesmos: “Ó vaidade das vaidades, mais honra é dada às
vestimentas do que às virtudes, mais honra à graça de estilo do que à retidão”.76
Os dezessete capítulos seguintes compõem o terceiro livro, que se as-
semelha ainda mais a um sermão ao lembrar o homem do doloroso fim que
o aguarda, destino imposto por uma condição tão vil e pecaminosa: a morte,
“condenável saída da condição humana”. Bastava olhar para aquilo que a exis-
tência deixa para trás para render-se à certeza de que a vida neste mundo é
uma forma de privação, um desterro da alma e jamais poderá justificar a si
mesma: a putrefação dos cadáveres, o destino dos condenados, os tormen-
tos infernais, o dia do julgamento. Tudo revela como “quase toda a vida dos
mortais é plena em pecados mortais, de modo que dificilmente se pode encon-
trar quem não se desvie, quem não retorna para o seu próprio vômito e para a
podridão dos excrementos”. A morte deixa a vida terrena desnuda, revelando
sua verdadeira natureza: um tipo de embalo sôfrego para a alma. Por mais
sedutoras que possam ser as glórias e os triunfos humanos, tudo não passa
de um simples intervalo, do qual praticamente nada se leva para a verdadeira
existência: “quando o homem morrer, seus herdeiros serão as bestas, as serpen-
tes e os vermes. [Pois] vivo, ele produziu esterco e vômito, morto, ele produzirá
podridão e fedor”.77
Apegar-se a vida neste mundo é entregar-se a misérias, à dor, é sentir o
sofrimento como alegria. Pois a condição humana é um vale de lagrimas, uma
penumbra para a alma. Aos olhos do próprio Lotário, o maior responsável pela
precariedade da existência não é outro senão o tempo:

O tempo passa, a morte se aproxima. Aos olhos de um moribundo, mil


anos são como ontem, que passou. O futuro está sempre nascendo, o
presente sempre morrendo, e o que é passado está completamente mor-
to. Nós estamos sempre morrendo enquanto estamos vivos, nós somente
cessamos de morrer quando cessamos de viver. Por isso, é melhor morrer
para a vida do que viver para a morte, pois a vida mortal nada mais é
do que uma morte vivente. (...) A vida foge rapidamente e não pode ser
retida; a morte, todavia, ocorre instantaneamente e não pode ser impe-

76
O vanitas vanitatum, plus honoris defertur vestibus, quam virtutibus, plus venustati, quam honesta-
ti. LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 717-733; ACHTERFELDT: 61-114.
77
Tota pene vita mortalium mortalibus est plena peccatis, ut vix valeat inveniri, qui non declinet ad
sinistram, qui non revertatur ad vomitum, qui non computrescat in stercore. (...) Cum autem morietur
homo haereditabit bestias, serpentes et vermes. (...) Vivus produxit stercus stercus et vomitum, mor-
tuus producet putredinem et fetorem. LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 734-737;
ACHTERFELDT : 125-133.
Leandro duarte rust 505

dida. Isto é maravilhoso: que quanto mais a vida se estende, tanto mais
ela encurta; pois assim que ela avança, avança em direção ao fim.78

Na contramão dos cânones lateranenses, o tempo é aí visto como car-


rasco da vida humana. Ele nos assola, faz de nossos dias uma sucessão de
feridas. Ele nos afunda numa existência sempre indigente de duração, à luz da
qual não pode haver presente extenso, fecundo ou criador. Ao contrário, o mo-
vimento temporal desenha um constante declínio. Sob ele nunca cessamos de
cair: a queda original jamais termina. Mortal, o corpo é abismo para a alma:
por ele somos lançados em decadência, em fraquezas, em frivolidades.
Esta decadência tornava-se mais clara quando se observava o que se
passou com a extensão da vida dos homens. Tendo em mente o livro do Gê-
neses, Lotário assegurou que no princípio da condição humana (in primordio
conditionis humanae), os homens viviam novecentos anos. Porém, pouco a
pouco, a vida se fez curta, e poucos são os afortunados capazes de chegar aos
sessenta anos; alcançar os oitenta é ocupar-se da dor.79
O momento vivido é sempre uma versão corrompida do que veio antes,
o doloroso resultado da corrosão de tudo que se passou. Por isso, exortou o
cardeal: “louva o antigo, despreza o moderno: desaprova o presente, confia no
passado”.80 A salvação exigia negar a mudança, avançar para a redenção dan-
do as costas para o devir e seu apetite devorador disfarçado de “inovação”. Só
assim os homens poderiam encontrar algum remédio para a decrepitude da
vida corpórea. O tempo dilui e desfaz. Ele opera sobre a vil condição de um
ser “concebido no prurido das carnes, no fervor do desejo, no fedor da luxúria,
nascido para o trabalho, para a dor, para o medo, por isso é desgraçado, para a
morte”.81
Sem o consolo do eterno, a passagem do tempo é dor, angústia, pois faz
pesar sobre cada um de nós fardos de pecados, carregados sem descanso do
nascimento até o instante da morte. Como o inapelável deixar-de-ser que ar-

78
Tempus praeterit, ar mors appropinquat. Mille anni ante oculos morientis, tanquam dies hesterna,
quae praeteriit. Semper enim futura nascuntur, semper praesentia moriuntur, et quicquid est praete-
ritum, est mortuum totum. Morimur enim dum vivimus semper, et tunc tantum desinimus mori, cum
desinimus vivere. Mellius est ergo mori vitae, quam vivere morti, quia nihil est vita mortalis, nisi mors
vivens. (...) Vita velociter fugit et retineri non potest, mors autem instanter occurrit et impediri non
valet. Hoc est illud mirabile, quod quanto plus crescit, tanto magis decrescit, quia quanto plus vita
procedit, tanto magis ad finem ccedit. LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 713-714;
ARCHTERFELDT: 53-54.
79
LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 706; ARCHTERFELDT: 25-26.
80
Laudat antiquos, speruit modernos: vituperat presens, commendat praeterium. LOTÁRIO DI SEGNI.
De Contemptus Mundi. PL 217: 706; ARCHTERFELDT: 27.
81
Conceptus in pruritu carnis in fervore libidinis, in fetore luxuriae: (...) natus ad laborem, dolorem,
timorem: quodque miserius est ad mortem. LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 702;
ARCHTERFELDT: 14.
506 coLunas de são pedro

rasta as criaturas para o desaparecimento, o devir é uma contagem regressiva


da qual ninguém escapa. O cardeal sentia a vida inquietantemente curta, tão
breve que desencorajava a ação, o engajamento:

Um pássaro nasce para voar, o homem nasce para labutar. Todos os seus
dias estão repletos de labuta e sofrimento, e à noite sua mente não tem
descanso. E não é isto em vão? Nada sob o sol é mantido sem labuta,
nada sob a lua sem declínio, nada sob o tempo sem vaidade. Pois o tem-
po é o modo das coisas mutáveis. “Vaidade das vaidades”, diz Eclesiásti-
co, “e tudo é vão”. Oh! Quão variados são os propósitos do homem, quão
diversas suas ações. Mas tudo tem um fim e o mesmo resultado: labuta
e aflição do espírito.82

A condição temporal dos homens caminha para um único desfecho, a


putrefação, a dissipação que conhecimento como “morrer”:

Se alguém avança para a velhice, logo seu coração é atormentado e a


cabeça aterrorizada, o espírito enlanguesce e abunda a respiração difícil,
o rosto é enrugado e a estatura curvada, os olhos obscurecem e as arti-
culações vacilam, as narinas deixam escorrer e os cabelos caem, o tato
treme e o agir se perde, os dentes apodrecem e os ouvidos ensurdecem.83

O título do opúsculo de Lotário, Contemptus Mundi, nomeava um gê-


nero de escrita eclesiástica definida por uma fidelíssima reprodução de estilo
e enunciados. Identificava uma tradição letrada marcada pela recorrência de
temas como o lamento pela mutabilidade e a qualidade vã das coisas terrenas,
a corrupção da vida material, os males da existência corporal e as punições
e recompensas do post mortem. (HOWARD, 1966: 56-160). Muito do que foi
escrito pelo cardeal deve ser visto como resultado de um estilo de imitação, da
força de certas convenções, da necessidade de adequar-se a modelos literários
e ser capaz de repetir fórmulas mórbidas para dotar o texto das marcas de
uma autoridade já venerada. Sua conduta, neste sentido, era mais doutrinária
82
Avis ergo nascitur ad volandum, et homo nascitur ad laborem. Cuncti dies eius laboribus et aeru-
mnis pleni sunt, nec per noctem requiescit mens eius. Et quid hoc est nisi vanitas? Non est quisquam
sine labore sub sole, non est sine defectu sub luna, non est sine vanitate sub tempore. Tempus est mora
rerum mutabilium. Vanitas vanitatum, inquit Ecclesiastes, et omnia vanitas. O quam varia sunt studia
hominum, quam diversa sunt exercitia. Unus est tamen omnium finis et idem effectus, labor et afflictio
spiritus. LOTÁRIO DI SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 706-707; ARCHTERFELDT: 28.
83
Si quis autem ad senectutem processerit, statim cor ejus affligitur, et caput concutitur, laguet spiritus
et fetet anhelitus, facies rugatur, et statura curvatur, caligant oculi, et vacillant articuli, narees effluunt,
et crines defluunt, termit tactus, et deperit actus, dentes putrescunt, et aures surdescunt. LOTÁRIO DI
SEGNI. De Contemptus Mundi. PL 217: 706; ARCHTERFELDT: 27.
Leandro duarte rust 507

do que pessoal e não foi diferente daquela seguida por Roberto de Grosseteste,
Jean Gerson, Erasmo de Roterdam ou por missionários jesuítas do século XVI
(DELUMEAU, 2003: 19-160; Ver ainda: HOWARD, 1969: xxiv-xxxiii).
Tratava-se de um gênero de escrita profundamente carregado de espírito
ascético, fonte de sua exaltação da pobreza, pureza, obediência e humildade.
Muitas das fórmulas usadas por Lotário haviam sido consagradas por homens
do monaquismo, como fez Pedro Damião no Apologeticum de Contemptu Sae-
culum, o cluniacense Bernardo de Morlaix nos 3000 versos de De Contemptu
Mundi e Bernardo de Claraval nas Meditationes Piissimae De Cognitione Hu-
manae Conditionis, ou por mentes inspiradas nas lições agostinianas, como o
arcebispo Anselmo de Canterbury na Exhortatio ad Contemptum Temporalium
et Desiderium Eternorum e o cônego Hugo de São Victor no De Vanitate Mundi
et Rerum Transeuntium Usu Libri Quatuor.
Essa tradição textual fundamentava-se num princípio oposto ao aspecto
definidor da temporalidade lateranense: o mundo como uma grandeza moral.
Mais do que um lugar ou um quadro no qual a vida se insere, o mundo surge
aí como constituído pelo pecado que habita os homens, pela luxúria da carne e
dos olhos, pelo orgulho da vã glória. A matéria de tudo o que existe em redor
das criaturas não se distinguia qualitativamente das próprias formas humanas,
pois ela também era composta por tentações, pelas mesmas imperfeições que
colocavam em risco os destinos das almas. Compreensão realçada pelo empre-
go do vocábulo saeculum, que assinalava a visão do mundo como passagem da
vida e não apenas como sítio das coisas terrenas (NIERMEYER: 951).
No opúsculo de Lotário o mundo era o reino de armadilhas para os jus-
tos, das quais o cristão deveria se afastar por meio da “rejeição”, do “desprezo”
(contemptus) a tudo o que era corpóreo (HOWARD, 1966: 43-56). Ao ler as li-
nhas tracejadas pelo cardeal não sabemos quem é o que: o desprezo do mundo
é o desprezo pela condição humana? Ou é a miséria dos homens que os obriga
a desprezar o mundo? Na realidade tais perguntas são inadequadas. Pois, elas
tratam como entidades diferentes – o homem e o mundo – o que o nosso autor
nunca deixou de ver como uma continuidade, um único amálgama de formas.
No De Contemptu Mundi sive de Miseria Conditionis Humanae as cria-
turas e as coisas terrenas formam a mesma massa pecaminosa. Para realizar a
verdadeira penitência e esquivar-se da morte da alma, era preciso conscienti-
zar-se da vileza moral de tudo o que é matéria, da culpa do mundo, criatura
divina como todas as demais. Lidamos aqui com uma percepção baseada na
continuidade ontológica entre a persona e o mundo.
Quão diversos são estes valores daqueles que analisamos ao longo deste
capítulo! O homem e o mundo são aí a mesma totalidade. Eles partilham a
mesma substância moral e, como tal, um mesmo destino. Não há distância ou
508 coLunas de são pedro

isolamento entre eles. Um não se impõe ao outro, pois são cúmplices das mes-
mas falhas, comparsas dos mesmos pecados. Não há exterioridade objetiva
entre eles, tampouco limites palpáveis, observáveis. Neste universo unificado
pela metafísica não havia lugar para o tempo como algo dotado de uma razão
própria, cujo desenrolar estaria emancipado das intenções e do coração huma-
nos. O devir, como o próprio mundo, é aí uma grandeza moral.
A discrepância entre esta percepção e a representação de tempo predo-
minante em todo Latrão IV leva-nos a indagar: por que as ações de Lotário à
frente do plenário de 1215 foram tão díspares das ideias da época do cardi-
nalato? Após tornar-se sumo pontífice, teria o cardeal ingressado no domínio
de outra temporalidade, seduzido pela conveniência política da manipulação
cronológica? Teria ele abandonado a forma de pensar expressada no De Con-
temptus Mundi? Para todas as perguntas, acreditamos que a resposta é não.
Não parece ter sido este o caso. Primeiramente, porque a ideia de uma
unidade ontológica entre o ser e as coisas – verdadeira viga-mestra que susten-
ta todos capítulos do opúsculo de 1195 – continuava a povoar a consciência
papal. Ela se fez presente no sermão proferido por Inocêncio na abertura do
próprio concílio de Latrão. Na manhã do dia 11 de novembro de 1215, a basí-
lica do Salvador transbordava espectadores, centenas de cristãos aguardavam
o início do grande concílio, anunciado há mais de dois anos. Com o santuário
enxameado por vozes e o átrio agitado pela disputa por espaço que derramava
os fiéis pelas portas, o pontífice tomou a palavra e advertiu os padres conci-
liares quanto ao verdadeiro significado de suas presenças ali: os que tinham
atendido à convocação para o concílio, na realidade, escutaram o chamado
para a celebração de uma pascha, isto é, de um trânsito, uma passagem. Uma
tripla “páscoa”, melhor dizendo.
Primeiramente, “corporal” (corporale), pois o concílio deveria tomar
medidas para garantir a passagem cristã para um lugar, a cidade de Jerusa-
lém, a ser libertada por nova cruzada. Além disso, estava também em jogo
um trânsito “espiritual” (spirituale), uma vez que as decisões daquele digno
plenário deslocariam a devoção da sociedade cristã para um estado superior,
no qual se asseguraria o cuidado das almas, por meio da reforma da Igreja. E,
por fim, aquela seria simultaneamente a ocasião de uma passagem “eterna”
(aeternale), já que seria a preparação para um “trânsito desta vida a outra, de
modo a alcançar a glória celeste” (ut fiat transitus de vita in vitam, pro caelesti
gloria obtinenda).84
Estão aí três dimensões da mesma transição, que arrebataria num único
movimento o mundo (através de Jerusalém) e as almas (por meio da refor-

84
INOCÊNCIO III. Sermone. MANSI 22: 969.
Leandro duarte rust 509

ma). A luta pela Terra Santa deixava claro que a salvação cristã estava deposi-
tada em um lugar singular, não ocorreria da mesma forma em todas as partes:
a remissão dos pecados tinha um solo próprio para transcorrer. Por sua vez, a
cruzada purificaria Jerusalém, transformaria suas propriedades. Suas pedras,
muros e ruas não seriam como antes depois que o contato com a presença
cristã lhes atribuísse novas qualidades, derramando sobre ela suas virtudes,
tornando-a uma cidade verdadeiramente santa, pura e leal. A crença em um
contínuo ontológico entre o ser e as coisas está aí, igualando pessoas e lugares
como criações divinas, amarrando-as em um mesmo desejo de superar a mu-
tabilidade terrena para alcançar as dádivas eternas. Mais do que inspirar um
controle objetivo do mundo e das condutas humanas, o sermão proclamado
por Inocêncio pregava uma incontida expectativa de evasão da vida material.
Suas palavras direcionavam os olhos para os céus, mais do que para a terra.
O sermão de abertura do concílio de 1215 tem, portanto, nítidas afini-
dades com a linguagem e os valores do De Contemptu Mundi sive de Miseria
Conditionis Humanae. O papa não renunciou às ideias expressadas vinte anos
antes. Ele enxergava o mundo com os olhos do cardeal Lotário. Como então,
compreender esta coexistência de temporalidades diversas no bojo do próprio
Latrão IV? Como equacionar esta divergência entre aquilo que se professava
no interior da Cúria e o que se decidia na política papal? Entre o que estava
no sermão e o que apareceria nos cânones? Uma resposta reside precisamente
em pensar nos termos de uma secularização. Vejamos como.
A estruturação institucional do papado suprarregional acarretou um
processo de secularização, ou seja, a diferenciação de significados temporais
mobilizados no exercício do poder pontifício. Diferenciação! Não redução ou
declínio do que existia até então. O que quer dizer que diferentes modalidades
de percepção temporal (e, por conseguinte, das relações de poder) coexistiam
no interior da Cúria. A Igreja romana tornou-se um espaço multiforme e extre-
mamente polivalente no que tange à vivência do tempo e da política. Com isso
suas relações incorporaram a lógica da ambivalência, da contraditoriedade; não
como “desvio” ou alguma “distorção intolerável”, mas como característica cons-
titutiva da peculiar estrutura de poder de uma igreja forçada a descentrar-se.
Não cabe a nós, historiadores, tentar “endireitar” estas relações múlti-
plas. Dissecá-las para encontrar em seu cerne uma coerência unitária. Deixe-
mos de lado as fórmulas duais que nos levam a pressionar a documentação
com perguntas do tipo: “Inocêncio III, vigário de Cristo ou senhor do Mundo?”
(POWELL, 1994). Diante da tarefa de tomar decisões, os integrantes da polí-
tica papal medieval não estavam limitados a escolher entre alternativas exclu-
dentes, pois desde meados do século XI o exercício do poder pontifício exigia-
lhes a capacidade de acionar um amplo espectro de variáveis, a tecer relações
510 coLunas de são pedro

de forças flexíveis, maleáveis, negociáveis; a ser, simultaneamente, “vigário de


Cristo e senhor do Mundo”.
Uma das utilidades do conceito de secularização está justamente na ma-
neira como ele enfatiza a complexidade dos agentes históricos, sua capacidade
de “descentrar-se” para lidar com a pluralidade de pertencimentos sociológi-
cos. Secularizar significa acentuar este processo de variação axiológica a ponto
de insuflar nas relações sociais elevadas tensões, sem que isso indique algum
estado anômalo ou desviante do convívio coletivo (MARTIN, 2005: 123-200).
O conceito de “secularização” é particularmente valioso para criar perspecti-
vas de análises capazes de evidenciar a multi-dimensionalidade dos agentes
sócio-históricos. Sobre o pesquisador ele age, segundo a feliz expressão de
Karel Dobbelaere (2002: 24-25), como um estímulo de “sensibilização teórica”
quanto à simultaneidade de razões que podem atravessar a ação social.
Tal foi o caso do papado medieval, que, de meados do século XII em
diante, se viu ainda mais exposto à necessidade de oscilar entre as máximas
da espiritualidade (como a da existência de uma continuidade ontológica
existente entre o gênero humano e o mundo, expressada no De Contemptus
Mundi) e o pragmatismo decisório conciliar (viabilizado na forma de uma
temporalidade em que o devir era percebido como algo separado do tecido
existencial dos homens). Este agudo tensionamento de valores e orientações
de condutas particularizava o papado, aproximando seus integrantes. Fazer
parte da política pontifícia implicava em desempenhar papéis decisórios dife-
renciados, quando não divergentes.
Não é porque houve a racionalização das formas de agir em um espaço
coletivo singular – neste caso, nas assembleias eclesiásticas papais – que toda
a gama de sentidos partilhados pelos agentes históricos foi refeita em bloco,
quer por meio do abandono, quer da substituição por novos valores e propó-
sitos. Como se tal espaço só pudesse comportar, a cada contexto, uma única
lógica social, compacta e mono-causal. Subentender o conceito de seculari-
zação como sinônimo de relações sociais delimitadas por uma unidade racio-
nal é distorcê-lo. É fazer o princípio da diferenciação sociológica dos valores
naufragar em seu contrário: a unidimensionalização dos agentes sociais pela
racionalidade.
Eis um segundo ajuste conceitual a ser feito. “Secularizar” é aproximar
diversos, é unir pela separação. É, enfim, dotar a significação da ação social de
lógicas distintas, mas não inconciliáveis ou apartadas. O que não significa di-
zer que o pensamento dos agentes sócio-históricos não possa ser influenciado
por este processo. Mas este é outro problema. Por hora, basta reconhecer que
a secularização social ou organizacional não é sinônimo de secularização das
ideias (DOBBELAERE, 2002: 29-45). Mas, o que está efetivamente em jogo é o
Leandro duarte rust 511

argumento de que através deste conceito podemos enxergar com mais clareza
a inexistência de empecilhos sociológicos ou históricos para que um pensa-
mento fortemente marcado pela sacralidade e por crenças no inominável coe-
xista com ações racionalizadas e pragmáticas. Ao contrário do que usualmente
se afirma, a teoria do “secularismo” não tem suas raízes presas ao pressuposto
de uma atrofia dos apelos ao transcendente por parte de uma concepção de
mundo, não está atrelada à extinção da busca pelos reinos do metafísico. Tal
paradigma consiste antes em uma negação da ideia de “sagrado” do que na
adoção de uma teoria da secularização. Portanto, uma útil característica emer-
ge de nosso conceito: ele nos permite pensar para além das dicotomias e das
visões unitárias.
Definir este termo como o nome que se dá a uma “totalização racionalis-
ta” das relações sociais é, em nossa opinião, um excesso. Por que deveríamos
pensar a respeito do “secularizado” como realidade social uniforme, marcada
por um fechamento irreversível e não, como a própria religião, como algo vari-
ável e aberto a multiplicidades sociológicas? Os sentidos sociais diferenciados
são historicamente combinados, são articulados conforme as relações de po-
der de cada época e não há alguma receita teórica que nos permita definir de
antemão em que irão resultar. Trata-se de um processo que não está fadado a
produzir uma tirania da racionalidade, mas que pode assumir formas inume-
ráveis e imprevisíveis aos olhos do estudioso. Novamente, Latrão IV tem algo
a dizer sobre essa nova adequação teórica.
Os cânones de 1215 arrematam uma transformação tracejada ao longo
de quase um século: eles desatam os nós ontológicos que prendiam a tempora-
lidade a atributos pessoais. Secularizaram-na. Todavia, não percamos de vista
o fundamento propriamente político de tal transformação: esta foi a maneira
de realizar uma reformulação do poder papal, um meio socialmente encontra-
do para aprimorar e consolidar a autoridade apostólica após um longo período
de perdas patrimoniais e fracassos do governo da Igreja Romana. Portanto, a
racionalização da percepção do tempo estava orientada para um fortalecimen-
to do papado, retirá-lo de suas fraquezas.
Em outras palavras, os concílios pontifícios demonstram que a secula-
rização não equivale a uma perda irreversível da autoridade eclesiástica, mas
que ela pode ocorrer para servi-la, fortalecê-la. Retornemos ao texto da Ad
Liberandam Terram, a bula que, crivada de deliberações ocorridas em Latrão,
definiu a organização para a próxima cruzada. Como vimos, ela está repleta
das recorrências de uma instrumentalização regular do tempo – em forma
de prazos –, solução encontrada pelo papado para assegurar o controle mais
eficaz sobre o planejamento e preparação da nova expedição a Jerusalém.
Entretanto, suas linhas finais estabeleciam:
512 coLunas de são pedro

De nossa parte, seguros da misericórdia de Deus onipotente e da autori-


dade dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo, pelo poder de atar
e desatar, que, apesar de nossa indignidade, recebemos de Deus, a todos
os que participarem [deste empreendimento] pessoalmente e por suas
expensas, concedemos a remissão total da pena merecida pelos pecados
a respeito dos quais tenham contrição perfeita e tenham confessado e
lhes asseguramos a recompensa dos justos, a salvação eterna na pleni-
tude da glória.85

A bula é encerrada com a concessão de uma indulgência, instituindo


o perdão dos pecados. Esta medida de redenção exerceu efeitos retroativos
sobre todo o restante da Ad Liberandam Terram. Este “perdão dos pecados”
tornou-se uma espécie de revelação, como se o final do texto trouxesse o re-
gistro da verdadeira razão de todos os procedimentos até então estipulados.
Todas as ordens e instruções antes apresentadas foram assim capturadas por
uma finalidade espiritual e apontadas para a mesma direção: “caminhar dig-
namente para a salvação” (digne proficiat ad salutem). Todas as regras impos-
tas pelo texto da bula para a organização da cruzada foram atadas ao mesmo
propósito, o trânsito (pascha) desta vida corporal para a eternidade. Com isso,
os sentidos de eficácia e de pragmatismo fomentados por um modo de lidar
com o tempo afluíram para um desígnio sublime, transcendente. O cumpri-
mento dos numerosos prazos estabelecidos pela Ad Liberandam Terram e a
incorporação de sua forte dosagem utilitária foram ressignificados: tornaram-
se exigências da “recompensa dos justos”.
A concessão desta absolvição dos pecados não anulou ou ocultou a tem-
poralidade secularizada, ou seja, selada pela diferenciação axiológica ditada
pela política papal. Ela incrustou-lhe uma orientação para o “Além”. Não sim-
plesmente qualquer “Além”, mas aquele definido e legitimado pela Sé Roma-
na, portadora da “autoridade dos apóstolos Pedro e Paulo”. O mesmo ocorreu
em todos os demais cânones lateranenses: no combate à heresia, na organiza-
ção eclesiástica, na regulamentação do matrimônio, nos procedimentos judici-
ários, na proibição da participação clerical nas efusões de sangue.
A proibição do prolongamento da vacância de igrejas por mais de três
meses foi justificada, no cânone 23, pelo temor de que “na falta do pastor,
o lobo sagaz apodere-se do rebanho do Senhor, e que, ao tornar-se viúva, uma
85
Nos ergo de omnipotentis Dei misericordia et beatorum apostolorum Petri et Pauli authoritate con-
fisi ex illa, quam nobis, licet indignis, Deus ligandi atque solvendi contulit, potestate, omnibus qui la-
borem propriis personis subierint et expensis, plenam suorum peccaminum, de quibus veraciter fuerint
corde contriit et ore confessi, veniam indulgemus, et in retributione justorum salutis aeternae polli-
cemur augmentum. AD LIBERANDAM TERRAM. CCQL: 117; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1394-1395;
POTTHAST 5012.
Leandro duarte rust 513

igreja sofra graves perdas, [por isso, ordenamos,] desejosos de evitar o perigo
para as almas e preservar a integridade das igrejas”.86 Notemos que a conserva-
ção material figura explicitamente nestas linhas. Mas ela está envolvida por
preocupações pastorais, pelo zelo acerca dos assuntos da alma. No cânone 29,
o papado revelou a razão que o levava a repreender o acúmulo de benefícios
eclesiásticos pelo mesmo prelado, violação tolerável apenas por três meses: a
necessidade “expressa e manifesta de resistir aos que agem pela cupidez” (nos
evidentius et expressius occurrere cupidentes).87 O controle sobre o patrimônio
das Igrejas era vivido como uma batalha contra desvios pecaminosos, neste
caso, contra a cupidez. Passemos a outro caso.
O cânone 48 justificou deste modo a obediência devida pelos cristãos
aos novos procedimentos judiciais: “saibam que estão obrigados a executar fiel-
mente e observar estas normas em virtude de obediência que nos devem em nome
do juiz divino”.88 Todo o rigor e toda a racionalidade dos procedimentos de
apelação e recursos judiciários foram justificados pela sacralidade da auctori-
tas pontifícia. Este processo de ressiginificação do pragmatismo e da eficácia,
apresentados como razões de fé, perpassa toda a legislação de 1215. Ele trans-
correu por meio de dezenas de citações bíblicas, todas ativadas para dispor os
sentidos diferenciados pela ação política em uma ordem de valores compatí-
veis com o modo de pensar dos integrantes do papado, isto é, voltados para
fins transcendentais. Esta captura simbólica de uma racionalidade temporal
permitia aos agentes históricos assimilar, em suas intenções e compreensão,
os valores secularizados presentes em suas decisões.
Numerosas práticas constitutivas do exercício do poder pontifício foram
dispostas em rota de franca racionalização. Todas estavam igualmente atre-
ladas a aspirações morais, a ideais espirituais partilhados no interior da Sé
Apostólica. Portanto, a história política do papado permite constatar o aspecto
multidimensional do conceito de secularização: pode-se falar em sacralização
dos efeitos de secularização, tanto quanto em racionalização das relações so-
ciais sem sugerir o enfraquecimento da autoridade eclesiástica.
O exercício do poder papal secularizou a temporalidade. Acarretou a
diferenciação de uma percepção coletiva do tempo. Falar em “percepção” não
quer dizer – como alertou Maurice Merleau-Ponty (1994: 88-98) – atos refle-
xivos ou processos de significação que implicam em psiquismos de um Ego

86
Ne pro defectu pastoris gregem dominicum lupus rapax invadat, aut in facultatibus suis ecclesia
viduata grave dispendium patiatur volentes in hoc etiam occurrere periculis animarum, et ecclesiarum
indemnitatibus providere. CCQL: 69; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1352.
87
CCQL: 73-74; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1357.
88
Sciantque se ad id fideliter exequendum, ex injuncto a nobis in virtute obedientiae, sub attestatione
divini judicii districto praecepto, teneri. CCQL: 88; HEFELE-LECLERCQ 5/2: 1371.
514 coLunas de são pedro

meditante. “Perceber” é integrar algo nos campos de sentidos que constituem


a existência; estabelecer vínculos de co-presença com as coisas. Ao “sentir” o
ser comunica-se com o mundo, instituindo um tecido sensitivo “mais velho do
que o pensamento” e o qual passará o restante da vida decompondo em ideias,
escolhas e aptidões. O perceptível é, primordialmente, pré-objetivo. Ele está
aquém de uma ordem do pensar, não pressupõe uma centralidade e unicidade
da consciência. Toda percepção é um sentido-sobre-um-irrefletido que emerge
do pertencimento mútuo estabelecido entre os seres e o mundo (Ver: ALEXAN-
DRE E CASTRO, 2008: 179-190). A perceptibilidade não anda lado a lado com
a subjetividade: ela a excede e trespassa. A secularização atingiu a percepção
registrada nas atas e decisões conciliares papais, não necessariamente o pen-
sar dos integrantes do papado.
Nos últimos dois capítulos vimos que o processo de secularização da
percepção do tempo nos concílios papais transcorreu segundo uma duradoura
lógica política: equilibrar a singular realidade social de uma igreja sustentada
por sólidos alicerces suprarregionais, mas acometida por severas fragilidades
em sua imediata inserção patrimonial. O avanço da exteriorização e objeti-
vação da temporalidade resultou de pressões difundidas por todo o governo
pontifício a partir de 1046 e que, nas décadas seguintes, se tornaram mais
graves e contundentes, especialmente após o cisma anacletiano. Porém, os
novos sentidos presentes na vivência do devir não cabem na imagem de mera
“consequência de alterações políticas”.
Afinal, esta temporalidade levou os integrantes do papado a reformular
o modo de exercer o poder decisório. Por meio dela, eles encontraram novas
formas de mobilização coletiva em prol da permanência material e da eficácia
da organização eclesiástica romana. A representação de tempo vigente sobre
os concílios papais não foi aparência ou efeito das relações de poder. Ela as re-
construiu, dobrou-se sobre elas de modo ativo e criador. A nova percepção do
tempo viabilizou medidas que projetavam um ajuste de práticas sociais vitais
à eclesiologia apostólica, conferiu uma constituição conveniente a modos de
agir e escolher ainda mais implicados no fortalecimento do governo dos papas.
A temporalidade secularizada operou uma reescrita dos momentos
oportunos para certas condutas; redefiniu a presença de alguns traços da rea-
lidade, bem como a ausência de outros tantos; indicou o ponto da vida em que
atividades deveriam durar ou cessar. A experiência do tempo transformou a
aplicação da lei canônica, alterou as formas de revelar a verdade, redesenhou
a linha entre o tolerável e o inadmissível, remodelou a própria corporalidade.
Intervalos e extensões. Limites e continuidades. Fins e começos. O modo
como os concílios pontifícios conjugavam estas características da ação eclesiásti-
ca foi rearrumado a partir de 1150, respondendo aos desafios de poder estabe-
Leandro duarte rust 515

lecidos pela ascensão do papado suprarregional. Mudança que se consolidou


com a elaboração da legislação lateranense de 1215. Seus cânones assinalam,
portanto, um ponto de inflexão do longo e penoso processo de adaptação do
poder pontifício à realidade sócio-política que envolveu a Igreja de Roma em
meados do século XI. O Papado ascendeu institucionalmente sobre a Cristan-
dade. Na secularização do tempo, a Sé Apostólica encontrou outra coluna viva
para a sustentação de seu poder.
Conclusão:
ou algumas considerações de conjunto

Que seja este o final do livro, mas não


o de nossa busca.
Bernardo de Claraval, 1152.

Instituições, institucionalização, institucional. A esta altura do caminho,


após tantos capítulos dobrados, chega o momento de oferecer um balanço
do percurso cumprido. E não poderíamos fazê-lo sem clarear os significados
assumidos por estes termos. Para isso, será preciso compor uma visão de con-
junto da pesquisa realizada, deter o passo para reparar em todo o itinerário
de reflexões já trilhado. Mas, ainda assim, não passará de uma pausa, de um
interlúdio. As próximas páginas farão o entreato de um acerto de contas com
o que foi pensado e escrito. Darão forma a uma verificação para que a pesqui-
sa possa, em breve, ser retomada e prosseguir fecundada. O que oferecemos
aqui é um balanço, por certo; mas não uma palavra final ou encerramento. Os
parágrafos seguintes não fecharão o pensamento. Deles esperamos, antes, que
componham o intervalo que precede um recomeço.
O século XI assinala a ascensão política da Sé de Roma, não como a pre-
cursora de uma centralização do tipo moderno e burocrático, mas como uma
Igreja forçada a superar fraquezas excepcionais. Entre as décadas de 1040 e
1130, o exercício do poder pontifício seguiu à risca a mesma lógica delineada
pelas experiência de tempo que pouco nos lembra a “construção de um Estado
moderno”. Ele contou com uma disposição regular, perpetuada por gerações
de modo constante, interpessoal, estabelecida como modalidade de integra-
ção decisória de grande abrangência social e prolongada permanência. Esta
disposição estável e coletiva do modo de tomar decisões constitui o que enten-
demos por institucionalidade papal.
518 coLunas de são pedro

A análise da temporalidade mobilizada nas assembleias pontifícias trou-


xe à tona algumas características definidoras desta institucionalidade: a vivên-
cia da capacidade decisória como grandeza interior à persona e o predomínio
da vocalidade como um meio primordial de realização desta mesma capaci-
dade. Decênio após decênio, sucessivos papas, legados e cardeais tomaram
parte desta ordem deliberativa, concretizando sua incorporação ao contínuo
processo de promoção de uma esfera eclesial cada vez mais desenraizada de
seu nicho espacial. A Cúpula clerical romana se adaptava às agudas tensões
e aos conflitos criados por sua difícil realidade política projetando-se como
domínio político das próprias elites regionais da Cristandade: tecendo alian-
ças, lançando-se em negociações, cedendo a concessões; enfim, explorando a
maleabilidade de um poder pessoal.
Tais foram as características regulares de uma conduta comum que se
impunha aos integrantes da Sé Romana. Tais aspectos modelaram suas esco-
lhas e ações, perpetuando-se através delas. Eis aí os aspectos constitutivos da
institucionalidade do papado que adentrou o século XII. Uma relevante cons-
tatação pode ser sacada deste estudo: “institucional” não é, inevitavelmen-
te, sinônimo de impessoalidade. Não é, necessariamente, um modo de agir
despersonalizado, dominado pelos maquinismos de “esquemas” de comporta-
mento. Pois foi tratando a faculdade de tomar decisões como atributo interior,
indistinto de aptidões e inclinações pessoais, que os integrantes do papado
– dos papas aos legados – consolidaram-no como locus de uma modalidade
decisória durável, de grande repercussão social, capaz de condicionar a inte-
ração coletiva. Pertencer aos domínios institucionais não é se deixar capturar
por tudo o que é rígido, monótono ou uniforme. Não é “coagular o espírito” ou
render-se a alguma sentença de desumanização. A institucionalidade pontifícia
medieval caracterizou-se por uma ampla maleabilidade na aplicação da lei ca-
nônica, por manter substancial flexibilidade no exercício jurídico. No tocante
à Sé Romana da época de Leão IX, Gregório VII e Urbano II, a qualidade de
“institucional” designa um modo de agir regularmente ditado por inclinações
pessoais.
Pessoalidade. Vocalidade. Descentralidade. Mobilidade. Os aspectos ins-
titucionais da política papal se mostrariam decisivos nos primeiros decênios do
século XII. A outorga do Privilegium Paschalis II, em abril de 1111, mergulhou
o pontífice em uma grave crise. No entanto, o papado não se resumia à cúpula
que habitava as colinas romanas. Sustentado por colunas de aliados regionais
e explorando o formidável campo de possibilidades decisórias criado pelo pre-
domínio legal da vocalidade, o pontífice pôde manobrar o rigor canônico e
esvaziar de relevância jurídica a concessão que ele próprio havia proferido e
na qual depositara sua fé por escrito. A mobilidade das ações papais salta aos
Leandro duarte rust 519

olhos: críticos mordazes como Bruno de Segni foram convertidos em aliados;


a autoridade violada – de Gregório VII e Urbano II – foi convertida em manto
protetor para o homem responsável por transgredi-la; o papa tomou parte
das diversas excomunhões do imperador sem jamais macular formalmente a
promessa de condená-lo.
A legitimidade do papado foi restaurada por certas formas de perceber o
tempo, por ações que desligavam e ligavam o passado, cortando e deslocando
as linhas definidoras da duração das escolhas. Assim, foi possível reordenar
tudo que se conhecia como “presente”: os significados de violações, deveres,
prioridades, rigores canônicos. A reconstrução temporal da política papal foi
igualmente decisiva para impor um desfecho ao Cisma de 1130. Favorecido
pelo recente histórico de compromissos firmados pelos legados pontifícios,
Inocêncio II estabeleceu um senso de permanência, uma continuidade tangível
entre a sua causa e a legítima prática da autoridade apostólica. A superação
das crises de legitimidade deflagradas nas décadas de 1110 e 1130 recaíram
sobre manobras temporais concretizadas por uma vasta rede suprarregional
de partícipes na condução do poder dos papas. Não foi obra de um cerrado
círculo político abrigado em Roma como um “centro governamental de uma
monarquia eclesiástica”. O processo de formação da Cúria papal, tão exaltado
pelos historiadores, não deve desviar nossas atenções do elo fundamental da
institucionalidade pontifícia dos séculos XI e XII: a ascensão da autoridade
apostólica e a manutenção de sua superioridade como promotora de uma plu-
ralidade de núcleos regionais de poder.
Todavia, o êxito em restaurar a legitimidade da sucessão apostólica
agravou ainda mais a inserção propriamente peninsular da Igreja Romana, in-
fligindo-lhe drásticas perdas materiais e alarmantes reveses em seu já limitado
enraizamento senhorial. Tais pressões impuseram-se sobre a institucionalidade
papal. As ações de diversos pontífices, legados e aliados convergiram para a
conservação patrimonial e o aprimoramento da organização eclesiástica ca-
pitaneada pela autoridade apostólica. A adequação das iniciativas conciliares
a estes propósitos acarretou a transformação da temporalidade partilhada no
interior do papado: secularizou o tempo.
O devir surge despojado dos predicados morais de outrora, removido à
interioridade da persona. Nos concílios papais da segunda metade do século
XII, a duração é, cada vez mais, auto-fundada. Ela escoa segundo uma or-
dem própria, independente dos movimentos da alma. Além disso, ela aparece
alongada, extensa o suficiente para capturar o porvir: o “agora” dos agentes
sociais postos a agir em nome do papado aparece dilatado, vivido como um
largo pedaço de tempo, em cujo interior podia-se antever a presença daquilo
que ainda ocorreria ou deveria ocorrer. A percepção da mudança surge igual-
520 coLunas de são pedro

mente alterada, ressignificada. Mudar é, nas decisões aprovadas no Concílio


Lateranense de 1215, fecundar a capacidade humana de criar e corrigir, de
fundar e endireitar. O tempo era agora conjugado na forma de prazos. Por
meio deles o papado potencializou os meios para intervir sobre a organização
e conservação patrimonial das Igrejas. Manipular o tempo consolidou-se como
competência imprescindível para os promotores da eclesiologia romana.
Todavia, este rearranjo da representação de tempo alterou a institucio-
nalidade do poder papal. A pessoalidade da ação decisória foi então pressiona-
da por uma categorização objetiva dos atos e dos estados morais, congelados
por fórmulas fixadas como prazos. A vocalidade recuou de sua condição de
veículo decisório privilegiado, cedendo lugar ainda maior à escrita e a um
primado das “provas diretas”: a visualização se impôs aos ouvidos e à boca.
A mobilidade da política papal foi suplantada pelo predomínio da previsibi-
lidade e da regularidade no funcionamento da vida eclesiástica atrelada à
autoridade apostólica.
Secularizada, a temporalidade dobrou-se sobre a própria instituciona-
lidade papal, semeando no seu interior uma nova razão (ratio) ontológica: a
crescente diferenciação dos domínios do ser. A temporalidade diferenciava-se
da persona, a verdade da vocalidade, o valor probatório das intenções, a mani-
festações do poder da corporalidade. Portanto, por meio da percepção do tem-
po o exercício do poder pontifício foi reformulado, remodelado para atender
aos novos desafios de poder trazidos pela sociedade medieval.
Quando falamos em “instituições papais” nos referimos aos conjuntos
de práticas sociais historicamente integradas a uma institucionalidade, isto é,
uma disposição coletiva do poder decisório. No nosso caso, àquela associada à
autoridade apostólica. Esmiucemos esta definição.
Primeiramente, ela implica em reconhecer que as instituições só existem
em função de certas ações empreendidas por agentes históricos coletivos, elas
derivam do sentido que esses conferem a certas práticas socialmente perpetu-
adas. As instituições não existem per se. Não podemos falar em uma “institui-
ção medieval” como um aspecto geral da existência coletiva, como um compo-
nente genérico e interclassista que pertenceria a alguma época plurissecular, a
uma abstrata “Idade Média de Mil Anos”. Elas decorriam das relações tecidas
por um grupo social específico, em contextos históricos concretos.
Um procedimento, uma regra veiculada ou um espaço de interação co-
letiva foram “instituições papais” na medida em que integraram o conjunto
de fatores que regularmente condicionavam o curso efetivo das formas de
tomar decisões por parte dos diferentes membros de um grupo político. Tais
instituições, portanto, apareceram na senda histórica marcadas pela repeti-
ção intersubjetiva, pela perpetuação e pela união dinâmica impostas pelos
Leandro duarte rust 521

desafios, metas e valores atuantes entre o grupo. No nosso caso, tal “grupo”
consistia no heterogêneo rol de clérigos e monges unidos pela participação e
pelo reconhecimento da superioridade da autoridade apostólica. Nisto consis-
tia o papado dos séculos XI e XII: em um abrangente círculo social marcado
pela reprodução de um desempenho decisório comum, definido pela vigência
da palavra falada como valor canônico-legal; pela partilha e pluralidade das
prerrogativas de intervenção, julgamento e comando; pela manutenção de
uma legítima práxis de reformulações, negociações e concessões normativas.
O alto valor legal da voz, a multiplicidade dos pólos decisórios, a mo-
bilidade dos referenciais de normatividade eram algumas das “característi-
cas” que fundamentaram a maneira como aquele grupo regularmente tomava
decisões: sua institucionalidade. Estão aí algumas das principais “instituições
papais” vigentes entre os séculos XI e XII, a saber: a vocalidade, a dilatação
dos domínios de acionamento da palavra pontifícia, a lei canônica integrada à
experiência do poder como grandeza pessoal. Portanto, não podemos apontar
o dedo para o que seria uma “instituição medieval” sem nos ater a perguntas
cruciais: de qual agente histórico estamos falando? De qual universo decisó-
rio?
Em segundo lugar, a definição escrita acima pressupõe a inseparabili-
dade entre as instituições e a sociedade. Com essa afirmação pretendemos
expressar a recusa de uma postura de grande parte da historiografia e que
consiste em conceber o institucional como uma “instância” ou “nível” diferen-
ciado do tecido social em sua lógica de constituição. Os autores que defendem
a existência de um “programa ou projeto reformador” constituído pelo papado
corroboram esta perspectiva. Para eles, a Igreja Romana teria sido capaz de
sustentar um universo de valores, ideias, representações e práticas que diver-
gia daqueles encontrados na maior parte da vida social de então. As institui-
ções papais seriam capazes de gerir toda uma “correta ordem do mundo”. Elas
abrigariam um receituário de relações sociais a ser inoculado na sociedade.
Os domínios do institucional surgem, sob esta ótica, com um território à parte
da vida social, separado dela por uma fronteira claramente discernível. Cuja
linha, ao ser cruzada por um agente histórico, implicaria na adoção de um
modo de pensar particular, de ver o mundo com outros olhos. Nossa pesquisa
nos exigiu distância desta perspectiva. Como dissemos acima, as instituições
pontifícias com as quais nos deparamos eram ações sociais dotadas de um
sentido particular, elas tinham, de fato, finalidades específicas, mas não eram
alheias à sociedade senhorial, tampouco “criações” do papado. Expliquemos
melhor.
Por um lado, isto significa que elas não são redutíveis a qualquer for-
ma de ação ou prática coletiva. Portanto, mantenhamos sempre em mente a
522 coLunas de são pedro

distância existente entre estas duas ideias: afirmar – como nós tentamos fazer
– que a constituição das instituições papais pressupunha a própria vida social,
não equivale a admitir que qualquer forma de interação social era, por assim
dizer, institucional. Afinal, os atos empreendidos pela Sé Romana seguiam
uma orientação singular: sustentar e perpetuar uma ordem decisória estabe-
lecida pela formação de um agrupamento social suprarregional. Para conferir
maior visibilidade a esta característica, nos vimos forçados a superar a utiliza-
ção do conceito de “Reforma”. Afinal, como tem demonstrado os medievalis-
tas, metas e preocupações reformadoras estavam amplamente difundidas pelo
tecido social medieval. Veiculá-las não distinguia o papado, não particulariza-
va o sentido das ações decisórias de seus integrantes. Em outras palavras, as
chaves explicativas da ascensão histórica da institucionalidade pontifícia no
século XI não residem na espiritualidade reformadora e em seus correlatos.
Por outro lado, reconhecer as especificidades e a relativa autonomia
das instituições papais não significa separá-las dos demais vínculos sociais e
pertencimentos coletivos que fundavam as existências dos agentes históricos.
Será que estes teriam sua trajetória social anulada ou drasticamente altera-
da ao ingressar no domínio institucional pontifício? Será possível que suas
experiências fossem completamente rearranjadas pela incorporação de uma
lógica de conduta singular, fornecida pelo papado e capaz de enfraquecer ou
ofuscar os vínculos sociais até então partilhados? Em termos mais concretos:
será que a elevação ao cardinalato implicaria em uma espécie de segunda
vida social? Em uma transformação capaz de impor a um clérigo ou monge
um novo universo de valores, representações e experiências, suficiente para
re-orientar toda sua existência? Será que a designação de um eclesiástico local
para o papel de legado o removia de sua inserção e identidade cunhadas regio-
nalmente para torná-lo um “homem do papa”? Enfim, podiam as instituições
papais desatar as relações sociais em uma sociedade tradicional como a que
nos habituamos a chamar de “medieval”? Não em nosso entendimento.
A institucionalidade é constituída por uma mescla complexa, e amiúde
tensa, entre os laços sociais que os agentes históricos carregam em si mesmos
e uma necessidade de perpetuar certos modos da ação decisória. Ela podia
reorientar ou revestir tais laços com propósitos coincidentes, mas não supri-
mir ou desativar os já existentes. Tampouco nós devemos conceber os grupos
sociais simplesmente se apoderando das instituições, como se uma “classe”
tomasse de assalto o papado, cuja malha institucional seria então algo dado,
pronto para ser conquistado e colocado a serviço de certos interesses. O ins-
titucional não existia apartado das ações empreendidas pelos grupos, ele não
permanecia nunca sem um operador concreto. Não havia qualquer estado
de latência ou repouso das instituições. Elas emergiam no próprio curso das
Leandro duarte rust 523

ações e relações sociais que as fundavam, as redefiniam, as reescreviam e


transformavam sua vigência em um movimento histórico que atinge certos pe-
ríodos de estabilidade sem jamais deixar de ser interminável. Assim, segundo
as lições retiradas desta pesquisa, a história institucional é, por princípio, uma
história social.
Em terceiro lugar, falar em “institucional” implica, no caso do papa-
do medieval, em referir-se a uma disposição de poder caracterizada por um
alcance intersubjetivo e por vínculos de pertencimento coletivo duradouros.
Uma organização grupal momentânea, realizada em função de uma razão
efêmera, pontual, algo como uma atividade específica, não configura uma
instituição. Se assim o fosse, deveríamos chamar de instituição toda forma de
integração e estipulação de regras sociais, até mesmo uma reunião e a divisão
de tarefas realizadas por um punhado de comparsas que se juntam para pro-
mover um roubo. Quanto à política papal de 1140 a 1215, o institucional dizia
respeito a uma disposição dos modos de agir que emergiu como resposta às
contradições e tensões criadas pela inserção social da Igreja Romana. Por meio
dele, os homens implicados na autoridade dos papas lidavam com incessantes
desafios de poder, exigências éticas e pressões normativas que a própria vida
em sociedade fazia pesar sobre suas cabeças.
Não se tratava de uma ocorrência breve ou circunstancial, a menos que
admitamos que as interações e os conflitos de sua existência variavam de uma
maneira igualmente circunstancial e passadiça. Muitas das razões historica-
mente suficientes para a constituição daquela esfera institucional foram ope-
radas de maneira fundamentalmente inconsciente e repetitiva – ainda que
jamais de modo mecânico ou simplesmente rotinizado. Há poucas páginas dis-
semos que a institucionalidade papal centro-medieval foi constituída por um
modo de agir “pessoal”. Em momento algum dissemos “individual”. Agir de
modo intrinsecamente pessoal era uma característica comum que a vinculação
ao exercício do poder papal impunha a homens dos séculos XI e XII. Era, por-
tanto, uma orientação das condutas dotada de uma incidência coletiva, irre-
dutível à vontade ou mesmo à consciência dos agentes históricos. Pois aquele
era um aspecto estabelecido para a superação dos obstáculos à constituição de
um governo da Sé Romana: os papas faleciam, os cardeais se revezavam em
seus títulos, os legados eram substituídos, mas a necessidade da Igreja de Pe-
dro de projetar seus alicerces de poder para além do Lácio permanecia. E com
a ela persistia a duradoura obrigação de empunhar uma habilidade decisória
flexível, criadora de aliados, frutífera em negociações, alianças, concessões e
pactos.
Esta era uma característica institucional. Os papas transmitiram-na in-
sistentemente a seus legados, que a recebiam cifrada, codificada como desau-
524 coLunas de são pedro

torizações e repreensões: embora fossem oriundos de diversos pontos da Cris-


tandade, os vicarii papae precisavam se adequar à realidade social e política da
Sé Apostólica, isto é, cultivar um poder pessoal, maleável e vocalizado, vital
para um poder carente de sustentáculos locais. A montagem da Cúria romana
consistiu precisamente na efetivação de recursos capazes de atender a este
propósito coletivo. A formação da corte administrativa dos pontífices foi um
processo de acumulação de técnicas e recursos capazes de operacionalizar a
perpetuação do domínio institucional da Santa Sé. Esse conjunto de funções,
ofícios, regras processuais e tarefas não pode ser visto como síntese das insti-
tuições pontifícias medievais, mas como formas de desenvolvimento e aplica-
ção das mesmas, que os ultrapassavam em complexidade e extensão societal.
Por fim, em quarto lugar, as instituições papais constituem um objeto
de estudo intrinsecamente regido pela historicidade. O institucional se trans-
formou no tempo. Cada contexto o constituiu de modo único. Cada nova cor-
relação de forças o redefiniu, à medida que reordenou o universo de práticas
sociais que incidiam sobre as ações deliberativas do papado. As instituições
pontifícias, portanto, não podem ser definidas no ponto de partida de uma
pesquisa histórica. Elas não podem ser previamente classificadas e categori-
zadas para que o investigador possa, só então, sondar o que a documentação
tem a dizer sobre elas. Só o mergulho nas reminiscências do passado e no jogo
de permanências e mudanças históricas das relações decisórias pode dizer o
que foi ou não uma instituição papal.
Não há como listá-las a priori. Não podemos catalogá-las de antemão
sem incorrer em forte dose de artificialidade ou de inutilidade do esforço.
Afinal, a cada novo período, cada nova dimensão de passado que vier a ser
analisada forçará o estudioso a incluir novas instituições na listagem que se
arriscou a elaborar, bem como a dela riscar outras tantas. O estudo aqui apre-
sentado pode ser encarado como uma demonstração de que as instituições
vêm e vão ao longo da senda histórica. O que permanece são as incessantes
construções da institucionalidade, as diversas possibilidades de formulação
das disposições coletivas para tomar decisões.
Por conseguinte, uma história institucional do papado medieval deve se-
guir a lição dada ao historiador pelo próprio tempo: não há ato que figure no
imobilismo, nem modo de agir que conte com a imunidade da inércia, que se
conserve suspenso como uma presença inalterada, capaz de escapar ao dina-
mismo, à mutabilidade; enfim, à finitude. O tempo depõe o ser. Conjuga-o no
fluxo de uma perpétua sina de mudanças. Assim ocorreu com as instituições
papais medievais: elas nunca simplesmente “foram”, pois jamais cessaram de
mudar. Moveram-se e foram movidas a cada nova correlação de forças sociais,
a cada giro dos desafios de poder e das transformações da vida coletiva. Na
Leandro duarte rust 525

passagem para o século XII a vocalidade era uma destas “instituições”. Mas,
após décadas ela cedeu espaço para a escrita e recuou diante das chamadas
“provas diretas”. O mesmo ocorreu com os gestos corporais de justificação;
com a mobilidade dos referenciais normativos; com a projeção do poder man-
datário como grandeza pessoal. Todos tiveram o seu quantuum institucional
– sua inserção na institucionalidade – diminuído pela secularização do tempo
e a lógica de uma objetivação dos limites, de uma progressiva exteriorização
das razões de comando e obediência.
O estudo da política papal medieval revela uma medida histórica do
institucional que não é aquela do jurisdicismo ou do centralismo político exal-
tados nos séculos de nossa Modernidade industrial. Nas instituições, tal como
na temporalidade, há apenas interlúdios e pausas, intervalos discerníveis em
movimentos, mudanças intermináveis. Não podemos capturá-las num único
olhar ou esgotá-las numa mesma definição que atravesse a história e aspire
ao valor de fórmula universal. Portanto, nada de palavras derradeiras, que im-
ponham molduras ao saber histórico. E, principalmente, nada de ponto final.
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