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Nas Asas de Fé i

Nas Asas da Fé
Por Frederick W. Babbel

Publicado por Bookcraft em 1972

Título do Original em Inglês:


“On Wings of Faith”

Tradução em português: Edson Lopes em 2012

Editor David Frederick Babbel

© 2012 por David F. Babbel

Todos os direitos reservados. É permitido tirar cópias livramente


para uso não comercial, mas não é permitido alterar o texto.

[Type text]
Prefácio

Este livro tinha de ser escrito!

Certa tarde, quando eu estava no escritório do Presidente Henry D. Moyle, ele


me disse: “Irmão Babbel, você tem de escrever um livro sobre algumas das coisas que
edificam a fé, coisas que você ouviu e viveu durante sua missão na Europa.” Também o
Presidente George Albert Smith disse algo semelhante e o Presidente Hugh B. Brown
lembrou‐me que, como eu era uma das duas testemunhas ainda vivas (o Élder Ezra
Taft Benson era a outra), eu tinha a obrigação de fazer essa narrativa chegar aos
outros.

Frederick W. Babbel, June Babbel; Élder Matthew Cowley, Flora Benson, Élder Ezra Taft Benson, Emma Petersen,
Élder Harold B. Lee, Camilla Kimball, Elva Cowley, Élder Mark E. Petersen, Fern Lee, e Élder Spencer W. Kimball,
todos reunidos no dia 29 de janeiro de 1946 no aeroporto de Salt Lake City na despedida de Élder Benson e irmão
Babbel para servir uma missão de bem estar na Europa logo depois da Segunda Guerra Mundial.

Porém, mais do que isso, Nas Asas da Fé foi escrito por causa das muitas
pessoas que, depois de ouvirem meu relato, levaram‐me a perceber a importância de
publicar essas preciosas narrativas para torná‐las disponíveis a eles e a seus filhos.

A maioria das passagens foi tirada do meu diário, que escrevi sob tremenda
pressão, e sem qualquer esforço de alcançar fluência literária.

Nas Asas da Fé relata algumas das experiências de fé mais inspiradoras na


história do relacionamento de Deus com Seus filhos durante o Século XX. O livro é uma
testemunha de que a promessa do Senhor “... Eles irão e ninguém os deterá, porque

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eu, o Senhor, os mandei ir” (Doutrina & Convênios 1:5) é um passaporte divino para
Seus servos.

Ninguém poderia viver durante aqueles dias momentosos, como o fizeram os


participantes do relato, sem o conhecimento obtido pelas revelações do Todo‐
Poderoso reafirmando que Ele vive, que é onipotente e que abençoa e sustém Seus
servos.

Tais experiências têm sido, ao longo dos anos, de inestimável valor para minha
família e para nossos amigos. Espero que tenham o mesmo valor para você e para os
seus.

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Agradecimentos

Expresso sincera gratidão ao falecido Don C. Corbett, que colocou algumas de


suas anotações à disposição e me permitiu usar quaisquer partes delas que eu
desejasse.

Agredeço também ao Reader’s Digest pela permissão de incluir nesta obra


partes de um artigo especial escrito para aquela revista pelo Élder Ezra Taft Benson, do
Conselho dos Doze Apóstolos. Estendo os agradecimentos à Progress Research
Corporation pela permissão de incluir uma breve passagem sobre Dunquerque
publicada em Complete History of World War II, de Francis Trevelyan Miller, Litt.D.,
LL.D.

Dirijo agradecimentos especiais à minha devotada esposa, que nunca hesitou


em sua determinação de ver este livro em seu formato final; também aos meus filhos e
ao meu genro que ajudaram na seleção e nas provas, além de darem várias sugestões
úteis. Minha filha, Julene Updike, tomou a responsabilidade de datilografar o
manuscrito final para publicação, enquanto seu marido, Lisle, revisou as provas do
manuscrito e as provas gráficas. Meu filho, David Frederick, revisou as provas do
manuscrito traduzido em português por Professor Edson Lopes.

Entretanto, sem a paciência e a incansável assistência editorial de Marvin W.


Wallin e George Bickerstaff, da Editora Bookcraft, este livro ainda não estaria pronto.

Agradeço aos muitos amigos que esperaram pacientemente pela publicação


deste volume.

Além de tudo, expresso profunda gratidão pelo privilégio de ter participado dos
memoráveis eventos registrados neste livro.

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CAPÍTULO 1

“Ninguém Os Deterá”

Quando o C‐47, avião de transporte militar, se aproximava da pista de pouso,


inclinei‐me em meu assento de lona para olhar pela janela. Nosso voo, originado na
Inglaterra, tinha transcorrido sem transtornos. O mar da costa holandesa estava calmo
e pacífico e a planície costeira, verde e plana, riscada por canais e riachos, parecia‐nos
convidativa. Eu tinha um trabalho a fazer na Holanda, o primeiro país que eu visitava
nessa missão especial no pós‐guerra.

Só o fato de chegarmos ali já era o resultado de uma sucessão de verdadeiros


milagres. Em minha mente revi, numa fração de segundo, os eventos das seis semanas
anteriores: os telefonemas do Élder Ezra Taft Benson e do Presidente David O. McKay,
o chamado oficial para a missão, o apoio inspirador de minha esposa, June, a obtenção
de minha baixa honrosa do exército apenas três meses antes da missão, além do
“impossível” empreendimento de obter meu passaporte e vistos para visitar dez países
europeus, de permissões militares especiais para entrar em quatro zonas de ocupação
na Alemanha e na Áustria, e a bênção especial que eu recebera da Primeira
Presidência — tudo em duas semanas. Essas reflexões e uma centena de outras
relacionadas inundaram minha mente enquanto a verdejante paisagem holandesa
avançava ao encontro do avião naquele dia de fevereiro de 1946.

Vistos do alto, os telhados vermelhos e os campos luxuriantes conferiam à


paisagem uma enganadora aparência de uma terra idílica, de contos de fadas, que
teria ficado imune aos efeitos da Segunda Guerra Mundial, terminada na Europa
apenas onze meses antes. Após aterrissar, confrontamos a realidade. Entre o
aeroporto e a cidade de Haia, as estradas apresentavam indiscutíveis sinais de
bombardeios e destruição. Os reparos feitos às pressas somente aumentavam o
desconforto da viagem. As explosões haviam arrancado as janelas de muitas casas,
mas em algumas residências menos atingidas a vida parecia fluir normalmente. Na
cidade, porém, a história era outra. Quarteirões inteiros haviam sido arrasados e o
entulho ainda estava por todo lado. A parte mais desolada era a área de onde os
alemães haviam lançado os foguetes V‐2 em direção à Inglaterra. Os aliados, numa
reação de autodefesa, tiveram de varrer aquela área do mapa. Ainda no caminho,
fomos informados de que o centro de Rotterdam não passava de um amontoado de
metais retorcidos e destroços.

Ao chegarmos ao escritório da KLM, a empresa aérea holandesa, notamos três


homens que examinavam uma foto e a mostravam ao piloto do nosso avião. Decidi

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investigar o que estava acontecendo e descobri que a foto era do Presidente Ezra Taft
Benson. Então me apresentei e os três se identificaram como o irmão S.
Schipaanboord, presidente interino da missão, o irmão Peter Vlam, seu segundo
conselheiro, e o irmão Theodore Mebius, genro do presidente Schipaanboord.

Fora o Élder Benson que telefonara de Salt Lake City para mim em San
Francisco na véspera do Ano Novo e disparara a extraordinária sequência de eventos
que finalmente me trouxera agora à Europa em uma segunda missão1 para a Igreja. A
Primeira Presidência o havia designado para reestabelecer as missões europeias após
a tenebrosa escuridão dos anos de guerra e também para organizar a distribuição de
itens essenciais, como alimentos, roupas e cobertores entre os sofridos santos
europeus. Tive a emocionante responsabilidade de assisti‐lo nessa grande obra.

Na despedida no aeroporto, alguns dos apóstolos e sua esposas deram apoio. Élder Matthew Cowley,
Élder Spencer W. Kimball, Élder Harold B. Lee, Irmão Frederick W. Babbel, Élder Ezra Taft Benson, Élder
Mark E. Petersen.

Tínhamos saído de Salt Lake City no dia 29 de janeiro e, depois de


estabelecermos nosso escritório operacional em Londres, havíamos nos separado por
alguns dias. O Presidente Benson foi para Paris em 11 de fevereiro a fim de adquirir
automóveis para os presidentes das missões. Dois dias mais tarde, ele foi para a
Holanda na companhia do capelão SUD, Howard C. Badger, do Exército americano,
cujos serviços naquela nossa viagem inicial à Europa revelaram‐se de valor
inestimável, pois ele facilitou os contatos com os oficiais do exército e outras
autoridades. Minha responsabilidade era providenciar transporte para nós à

1
N do T: O autor servira anteriormente em uma missão de três anos de proselitismo para a Igreja de
Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, na Alemanha e Áustria, entre 1936 e 1939.

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Dinamarca, Noruega e Suécia e depois dirigir‐me à Holanda, fosse como fosse, para
encontrar o Élder Benson lá. Assim como os três homens no aeroporto de Haia, eu
estava ansioso para encontrar‐me com o homem que correspondia à foto.

Pouco depois, nós quatro entramos em um pequeno DKW, um carrinho alemão


de pouca potência, e nos dirigimos à casa do presidente da missão em Utrecht. Meus
companheiros de viagem informaram‐me que, embora muitos holandeses falassem e
entendessem alemão, eles se ressentiam muito da humilhação de terem sido
obrigados a usar esse idioma durante a recente ocupação pelas tropas alemãs. Os
alemães haviam confiscado praticamente tudo no que pudessem por as mãos.
Somente bicicletas e carros caindo aos pedaços ou que haviam sido enterrados haviam
sido deixados para trás quando os alemães se retiraram, exceto por alguns veículos
que foram mantidos pelos colaboradores, por quem os holandeses sentiam profundo
desprezo. Mesmo o carro no qual viajávamos havia sido completamente desmontado
quando os alemães chegaram. Cada peça havia sido coberta de graxa e
cuidadosamente escondida no solo, de modo a não ser encontrada pelos alemães.
Quando a guerra acabou, os donos dos carros os desenterraram, removeram a pesada
graxa que os envolvia e os puseram a funcionar novamente.

Fiquei sabendo que todo homem capaz que os nazistas capturaram tinha sido
usado em algum tipo de trabalho escravo. Durante cinco anos e meio, a maioria dos
holandeses procurou evitar a captura vivendo na clandestinidade e sobrevivendo com
uma alimentação paupérrima. Muitos foram apanhados e executados, mas os
trabalhadores resistiram, se esconderam e, sempre que possível, mataram vários
alemães para cada holandês que fora morto ou capturado. Crianças foram
sequestradas e as mulheres eram forçadas sob ameaça a revelar o esconderijo dos
maridos. O assassinato e o roubo tornaram‐se meios habituais de represália. Fora uma
época de intenso horror.

As estradas estavam salpicadas de barricadas anti‐tanques, algumas intactas,


outras destruídas, e também de rolos de arame farpado espalhados. A maioria das
pontes tinha sido dinamitada ou bombardeada e os pátios ferroviários e portos haviam
sido arrasados. Durante algum tempo, barcaças alemãs transportaram para a
Alemanha até mesmo a fértil terra que formava a camada superficial do solo holandês,
acrescentando mais esse insulto à já profunda indignação.

Em fevereiro de 1946, tudo era racionado ao extremo, embora se pudesse


obter alguns produtos no mercado negro a preços exorbitantes. Cerca de um ano
antes, segundo me disseram, um par comum de sapatos com sola de madeira custava
uns 50 dólares, quantia absurda para a época. As pessoas tinham aprendido e se
acostumado a roubar em virtude da guerra e da ocupação e haviam mantido esse
hábito como forma de sobrevivência. Caso alguém deixasse o carro sem alguém
vigiando, corria o risco de encontrá‐lo sem as rodas ou sem peças vitais do motor.

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A maior parte do equipamento ferroviário tinha sido levada pelos alemães em
retirada ou havia sido destruída na guerra. Essa extrema falta de recursos tornava as
viagens desagradáveis e difíceis. Segundo me informou o gerente do hotel onde eu
conseguira reservar quartos para o Presidente Benson e para mim, não havia um único
táxi funcionando em toda a cidade de Haia.

Por mais estarrecedoras que fossem as cicatrizes da guerra, a decadência moral


causava uma impressão ainda mais doentia. Meus companheiros me disseram que a
honestidade e a confiança pareciam ter desaparecido completamente. Os padrões de
comportamento sexual tinham decaído a um nível nunca antes visto no país. A maioria
dos homens e mulheres — e até mesmo muitas crianças pequenas — fumava, o que
também ocorria na Inglaterra. Esse hábito parecia estar muito mais disseminado
nesses países do que nos Estados Unidos.
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Ao verificar com os funcionários da empresa aérea holandesa, fiquei sabendo


que as reservas que eu tinha feito no voo para Londres haviam sido canceladas e que
não havia possibilidade de se conseguir qualquer outro voo para a Dinamarca nos
próximos 10 dias. Foi em vão todo meu esforço de convencê‐los da imperiosa
necessidade de partirmos em dois dias no máximo. Inflexíveis, lembraram‐me de que
os lugares nos voos eram pouquíssimos e estavam reservados para pessoal militar e
altos funcionários do governo. Segundo me informaram, não havia outros meios de
transporte disponíveis para a Dinamarca. Eu sabia que essa dificuldade representaria
uma grande decepção para o Presidente Benson, mas não conseguia encontrar
solução.

O Presidente Benson não conseguiu chegar à Embaixada Americana no horário


previsto, mas havia avisado por um telegrama que me foi entregue por um funcionário
da embaixada, que não mais viria de carro, mas de trem e que chegaria no final da
tarde.

Havia duas estações de trem em Haia. Verifiquei na estação Niederlaendische e


o agente da estação informou‐me que o trem que eu esperava, a julgar pelo horário
previsto de chegada, era um trem de subúrbio e que os passageiros oriundos da
França ou Bélgica só poderiam descer na estação Staats, que ficava a quase dois
quilômetros de onde eu estava.

Um trem vindo direto de Paris estava previsto para chegar à estação Staats em
poucos minutos, por isso me dirigi para lá a pé, na verdade correndo a maior parte do
trajeto. O Presidente Benson não estava naquele trem e o trem seguinte só chegaria
daí a uma hora. Então voltei apressadamente à estação Niederlaendische para verificar
se ele não estava no trem de subúrbio. O agente da estação assegurou‐me que não
havia visto ninguém no trem parecido com a descrição que lhe fiz do Presidente

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Benson. Mais uma vez, me apressei a voltar à estação Staats para verificar o segundo
trem procedente de Paris, porém mais uma vez minha busca foi infrutífera.

Telefonei então para o Hotel des Indes, onde tínhamos reservas, e me


informaram que o Presidente Benson havia chegado. Fiquei pensando se não estavam
confusos e falavam de mim, pois disseram que “ele” voltaria dali a alguns minutos.
Ainda confuso e frustrado, retornei ao hotel.

Ao entrar em meu quarto de hotel, lá estavam o Presidente Benson e o Capelão


Badger.

“Por que você não nos encontrou na estação?”, perguntou o Presidente


Benson.

Surpreso, disparei: “Como é que conseguiram chegar aqui?”

“Chegamos no trem em que avisamos que estaríamos.”

Então lhes expliquei


que o agente da estação
havia‐me assegurado que
ninguém proveniente de
Paris poderia estar naquele
trem.

“É, eu sei”, disse ele.


“Disseram‐me a mesma
coisa em Paris!”

Fiquei perplexo,
embora não devesse me
sentir assim. Afinal, eu já
havia visto a fé e a
inspiração do irmão Benson
em ação outras vezes —
como na ocasião em que
fizemos um pouso forçado
em North Platte, Nevada,
no voo para Nova York. O
mau tempo impedia
qualquer voo por dois ou
três dias, um atraso inaceitável em nossa agenda. Num quarto de hotel em North
Platte, o irmão Benson sugeriu que pedíssemos orientação ao Senhor e nos

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ajoelhamos com esse objetivo. Naquele momento, aprendi algo sobre a doce e
poderosa humildade do Élder Benson.

Alguns telefonemas interurbanos que ele fez nos colocaram em um trem,


supostamente lotado, para Chicago e, de lá para Nova York no primeiro avião, apesar
das intermináveis listas de espera causadas pelas nevascas que cobriram de branco a
paisagem. Em Chicago, onde o tráfego aéreo estava suspenso havia três dias, o céu se
abriu por um período curto, mas o suficiente para embarcarmos e partirmos no
mesmo dia. Depois de partirmos, a tempestade voltou a assolar a cidade.

A tempestade atrasou em um dia nosso voo que partiria de Nova York, o que
nos deu tempo suficiente para obter os vistos que faltavam. Sobre o Atlântico, dois
dos quatro motores da aeronave estavam engasgando antes de chegarmos a Gander,
em Newfoundland, Canadá, e o problema não foi solucionado pela equipe de
manutenção de terra durante nossa parada de duas horas. Antes de chegarmos à
Irlanda, estávamos voando com apenas três motores.
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Logo que recebi meu chamado para essa missão, eu e June, minha esposa, nos
ajoelhamos e suplicamos a orientação do Senhor. Enquanto orávamos, uma escritura
veio a minha mente repetidas vezes: “E eles irão e ninguém os deterá, porque eu, o
Senhor, os mandei ir” (Doutrina & Convênios 1:5).

“Ninguém os deterá!” Desde então, tenho tido muitas oportunidades de


refletir sobre essas palavras. A maneira extraordinária que minha baixa do exército
tinha sido obtida e acelerada e a obtenção dos passaportes e permissões necessárias
— tudo isso era apenas o começo. Conseguir com a Embaixada Americana reservas
prioritárias para viagens normalmente exclusivas para altas patentes militares era
outro exemplo. Quando fui ao escritório londrino do Serviço Europeu de Transporte
Aéreo, órgão do exército americano, para pegar a passagem a fim de que o Presidente
Benson fosse a Paris, o oficial estava convencido de que havia alguma coisa errada. Ele
telefonou à embaixada para confirmar se o certificado de prioridade estava correto e,
mesmo após a confirmação, balançava a cabeça e resmungava: “Não dá pra acreditar.”
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Apesar de todos esses acontecimentos, eu ainda não conseguia entender como


o Élder Benson pôde vir de Paris e ir parar no hotel correto em Haia — especialmente
porque eu testemunhara a dificuldade com os trens. Aos poucos, ele me revelou toda
a história.

“Quando verifiquei com as autoridades francesas”, começou, “ficou claro que


eu tinha enviado a você informações incorretas sobre nossa hora de chegada.
Informaram‐me que deveríamos atrasar mais um dia, porque as únicas conexões para

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a Holanda passavam pela fronteira leste e a programação que eu havia mencionado no
telegrama era apenas do trem holandês de subúrbio.”

“Já estávamos quase resignados a proceder como indicado”, continuou,


“quando notei um trem que se preparava para partir. Perguntei ao agente da estação
para onde ia aquele trem e ele respondeu que ía para Antuérpia, na Bélgica. Eu lhe
disse que íamos embarcar nele, mas ele assegurou‐nos que só iríamos perder mais um
dia, porque todas as ligações entre Antuérpia e a Holanda haviam sido interrompidas
por causa da guerra e ainda não havia sido restabelecidas.”

“Todavia, senti que devíamos embarcar, apesar dos protestos do agente da


estação.” Em seguida, o Presidente Benson descreveu as precárias condições do trem.
Os vagões estavam em ruínas e tinham bancos de madeira improvisados. Os vidros das
janelas tinham sido substituídos por papelão. Tudo isso proporcionou‐lhes uma viagem
nada agradável.

“Ao chegarmos a Antuérpia”, continuou ele, “o agente da estação estava muito


irritado e quis nos fazer voltar e perder mais um dia. Mais uma vez vi outro trem se
preparando para partir e perguntei para onde ia. Ele disse que era apenas um trem de
subúrbio que ia até a fronteira holandesa, onde a grande ponte que cruzava o rio Mass
ainda estava em ruínas. Senti de novo que devíamos embarcar naquele trem, apesar
dos protestos do agente da estação.

Quando chegamos ao rio Maas, tivemos de desembarcar. Ao pegarmos nossa


bagagem, vimos aproximar‐se um caminhão do exército americano. O irmão Badger
fez sinal para ele parar e, ao saber que havia uma ponte provisória nas proximidades,
persuadiu o motorista a nos levar até o lado holandês. Ao chegarmos ao primeiro
vilarejo, já na Holanda, ficamos agradavelmente surpresos de encontrar esse trem de
subúrbio esperando para nos levar até Haia.”

Fora, sem dúvida, uma surpreendente sequência de eventos. Perguntei‐lhes


como conseguiram localizar o hotel, já que havia dezenas de grandes hotéis na cidade.

O Presidente Benson disse calmamente: “Quando o irmão Badger e eu


descemos do trem e você não estava nos esperando, começamos a caminhar nesta
direção. Ao vermos este hotel, entramos para perguntar se tinham vagas e
descobrimos que era aqui mesmo que você havia feito reservas para nós.”
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O Presidente Benson em seguida me perguntou sobre as reservas no voo até a


Dinamarca, mas tive de informá‐lo que infelizmente não havia voos nem qualquer
outro tipo de transporte. Ele replicou: “Mas precisamos partir amanhã… Vou orar a
respeito.”

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Antes de deitar‐me, tive a oportunidade de conhecer melhor o Capelão Badger,
que tinha recebido permissão de nos acompanhar em nossa visita a todas as missões
da Europa. Ele tinha uma personalidade muito agradável e se mostrava ansioso para
ajudar. Uma das sacolas de lona do exército que ele trouxera estava transbordando, a
ponto de estourar as costuras, cheia de coisas que os soldados SUD estacionados em
Paris haviam enviado para os santos holandeses. Teríamos o prazer de entregar
aqueles suprimentos à presidência interina da missão no dia seguinte. A gratidão
daquelas pessoas por receberem aqueles artigos foi extraordinária.

Bem cedo na manhã seguinte, o Presidente Benson nos acordou: “Vamos


trabalhar!”

Tendo em vista a experiência da chegada dele a Haia procedente de Paris, eu


estava preparado para qualquer outra surpresa. Fomos até a Empresa Aérea Militar
Holandesa, que era a única companhia que tinha voos para Copenhague e lá o
Presidente Benson ressaltou aos oficiais a urgência de nossa missão. O oficial em
comando replicou: “Sr. Benson, gostaríamos de atendê‐lo. Já discutimos a questão
com o seu secretário e deixamos claro que simplesmente não há como obter
passagens para os próximos dez dias. Essa é a pura verdade. Vocês americanos
parecem se esquecer de que houve uma guerra terrível por aqui, mas vão ter que
aceitar as coisas como elas são!”

O Presidente Benson ficou visivelmente decepcionado e, de certa forma, senti‐


me justificado pelos meus esforços fracassados. Eu tinha feito tudo o que podia.

Então o Presidente Benson procurou ver a situação por outra perspectiva.


Fomos à Embaixada Americana onde nossas credenciais nos habilitaram a obter uma
audiência imediata com o embaixador. O Presidente Benson explicou‐lhe que o avião
ia partir para Copenhague logo após o meio‐dia e acrescentou: “Temos de embarcar
nesse avião e apreciaríamos se pudesse nos conseguir as passagens.”

Depois de se inteirar de todos os nossos esforços anteriores, o embaixador


ligou para os militares holandeses. A princípio, se mantiveram irredutíveis, mas
finalmente concordaram em nos ceder os dois lugares que havíamos reservado antes.
Deixaram claro, porém, que definitivamente não havia como arranjar mais um lugar
para um terceiro passageiro, o irmão Badger.

Sem se deixar abater, o Presidente Benson aceitou a oferta do embaixador para


que seu motorista nos levasse no veículo da embaixada até o aeroporto, uma vez que
estávamos em cima da hora e a distância era de cerca de 40 quilômetros.

Fomos recebidos no aeroporto Schiphol pelos militares holandeses com quem


havíamos falado mais cedo. Ao notarem que o Capelão Badger estava conosco,
reiteraram que não havia absolutamente como acomodar o terceiro passageiro. O

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Presidente Benson assegurou‐lhes que não estava preocupado. Em seguida, nos
mostraram a lista de passageiros que estava completa e se prepararam para embarcá‐
los. Porém, o Presidente Benson continuava seguro de que o irmão Badger iria
conosco.

Por alguma razão, o voo foi retardado alguns minutos mais. Nesses breves
minutos, os oficiais notaram que nós três ainda estávamos esperando ali.

“Por que vocês ainda estão aqui?” perguntaram.

“Porque nós três temos de chegar a Copenhague hoje”, respondeu o


Presidente Benson.

“Mas deixamos absolutamente claro a vocês que isso é impossível!”

Ao ouvir isso, o Presidente Benson sorriu e disse com firmeza: “Mas temos de
ir!”

O rosto do oficial que estava no comando contraiu‐se numa expressão estranha


e ele disse: “Bom, então é melhor se apressarem!” Apressamo‐nos a entrar no avião e
nos acomodamos em nossos assentos!

Ao nos sentarmos, o irmão Badger comentou: “Presidente Benson, o senhor


tem mais poder e autoridade com esses oficiais do que qualquer general do Exército
dos Estados Unidos!” Sem dúvida senti que concordava com essa afirmação. A cada
dia que passava, essa evidência continuava a aumentar assim como a nossa certeza de
que o Senhor estava realmente com aquele Seu servo dedicado e que Ele cuidava de
nós a cada dia.
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O voo de 4 horas e 45 minutos foi excelente e a aterrissagem foi perfeita.

Quando a limusine do aeroporto nos deixou na praça central da cidade, sugeri


que tomássemos o bonde número 8 que nos levaria à casa da missão. Embora eu
insistisse que sabia o que estava fazendo, o Élder Benson deve ter duvidado da minha
memória. Ele preferiu que tomássemos um táxi para não corrermos o risco de nos
perdermos, principalmente porque já estava escurecendo. Com o precário holandês
que eu havia aprendido antes da guerra, dei o endereço ao motorista do táxi e escrevi‐
o num papel para ele. Ele disse nunca ter ouvido falar naquela rua; então sugeri que
ele fosse em frente e eu o orientaria até nosso destino. Para a surpresa de todos,
conseguimos chegar à casa da missão. (Depois dessa experiência, o Presidente Benson
pareceu confiar mais nas minhas decisões nesses assuntos).

Na casa da missão, fomos tratados como irmãos que havia muito não se viam.
Eles estavam tão gratos e felizes. Eles fizeram de tudo o que podiam para nos agradar.

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O Presidente Orson B. West, presidente da missão em exercício, convidou a
presidência do ramo para vir nos conhecer. Mostraram‐nos folhetos muito atraentes
que anunciavam que um apóstolo falaria à congregação no domingo à tarde. Haviam
também convidado vários jornalistas para entrevistar o Presidente Benson na manhã
seguinte. À tarde, haveria uma entrevista pelo rádio, que seria transmitida pela rede
escandinava.

Naquela noite, nos deliciamos com um bufê que tinha de tudo, até leite e
manteiga à vontade. Em contraste com a Grã‐Bretanha e a Holanda, que ainda tinham
racionamento, a Dinamarca estava repleta de leite e mel. De fato, o país parecia ser a
nação mais bem abastecida da Europa. Disseram‐nos que mesmo durante os anos da
guerra, sempre houve fartura, devido à sábia maneira com que o rei conseguira dirigir
o país, apesar da ocupação alemã — uma verdadeira jogada de mestre na diplomacia.
Porém, ainda havia dificuldades em se conseguir peças de vestuário.

Essa, porém, não é a história toda. Em agosto de 1939, quando parecia que a
guerra era inevitável, a Primeira Presidência determinou que todos os missionários
que se encontravam na Alemanha deviam ser transferidos para países “neutros”. O
Presidente Joseph Fielding Smith, que naquela ocasião visitava as missões europeias,
determinou que os missionários da Missão Alemanha Leste fossem para a Dinamarca e
os da Missão Alemanha Oeste fossem transferidos para a Holanda. Como a Holanda
não permitiu a entrada dos missionários, todos os missionários da Alemanha foram
enviados para a Dinamarca, que lhes franqueou a entrada. Logo depois disso, o
Presidente Joseph Fielding Smith profetizou que devido à ajuda que o povo
dinamarquês tinha dado aos missionários, sua nação seria abençoada.2

Enquanto estávamos em Copenhague, visitamos a “Fruth Kirke” (a Igreja de


Nossa Senhora), onde ficam expostas as magníficas esculturas do Cristo e dos Doze
Apóstolos esculpidas pelo mais famoso escultor dinamarquês, Bertel Thorvaldsen, que
concluíu essas maravilhosas obras de arte em 1838.

Todas essas estátuas foram esculpidas em belíssimo mármore Carrara italiano.


Ao longo das paredes da nave central encontram‐se as enormes estátuas em mármore
dos Doze Apóstolos (Paulo já no lugar de Judas Iscariotes). Sobre o altar‐mor, rodeado
por quatro grandes candelabros de bronze, em um belo nicho, está a famosa estátua
de Cristo, popularmente conhecida como o Christus. (Uma bela réplica dessa estátua
encontra‐se agora no Centro de Visitantes da Praça do Templo, em Salt Lake City). Aos
pés da estátua, esculpidas no mármore, estão as palavras do Salvador: “Vinde a mim”.
E acima da estátua, estão as comovedoras palavras: “Este é meu Filho Amado”.

2
Ver Joseph F. McConkie, True and Faithful: The Life Story of Joseph Fielding Smith (Salt Lake City:
Bookcraft, 1971, p. 52).

Nas Asas de Fé 13
Nessa concepção do artista, Cristo é robusto e forte, mas tem um olhar
compassivo, o que nos faz pensar que vai falar a qualquer momento. A obra toda, cada
estátua, é extraordinária, mas o Christus é, sem dúvida, a obra‐prima máxima de
Thorvaldsen. Até mesmo os dedos e artelhos têm uma delicada configuração. Em cada
estátua esculpida por Thorvaldsen, o menor artelho direito é parcialmente curvado
por cima do artelho mais próximo. Essa era a marca registrada do escultor.

Uma bela placa próxima do Christus, escrita em vários idiomas, diz: “Se queres
contemplar a arte do mestre, ajoelhe‐se e olhe para cima”. Quando o observador se
ajoelha, uma bela transformação tem lugar. A estátua parece quase respirar e pode‐se
ver suas veias e músculos. Lágrimas parecem brilhar nos olhos do Salvador.

O Christus de mármore tem a verossimilhança da vida e da vitalidade.


Contemplar essa incomparável obra de arte foi uma experiência profunda e
comovente.
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A entrevista radiofônica do Presidente Benson, mais tarde, foi transmitida ao


vivo graças a uma unidade portátil de transmissão e foi também gravada para ser
retransmitida à noite por toda a rede de emissoras escandinavas. O repórter que
conduziu a entrevista fez um breve comentário na conclusão convidando o povo
dinamarquês para assistir à reunião no dia seguinte, de forma a que pudessem ver e
ouvir um apóstolo verdadeiro! Durante o dia, o Élder Benson foi também entrevistado
pelos quatro principais jornais do país e todos publicaram comentários favoráveis e
amistosos sobre as entrevistas.

Quinhentas e setenta e cinco pessoas assistiram à reunião pública na tarde


seguinte — o maior público a comparecer à capela de Copenhague desde sua
inauguração em 1931. Todos os lugares disponíveis estavam ocupados e havia pessoas
em pé até o limite de capacidade do edifício. O Presidente Benson fez um comovente
discurso sobre as três perguntas: “De onde vim? Por que estou aqui? Para onde vou
depois desta vida?

Na segunda‐feira pela manhã, o irmão Gregersen, presidente do ramo, veio nos


visitar brevemente na casa da missão. O Presidente Benson, em tom jovial, tentou
pegá‐lo de surpresa, dizendo: “Há anos que ouço dizer que ‘há algo de podre no reino
da Dinamarca’3 e fiquei pensando se você sabe o que é?” Provavelmente suspeitando
que o nome Benson fosse de origem sueca (por causa da terminação “son”), o
presidente do ramo retrucou rapidamente: “A única coisa podre na Dinamarca são os
suecos que vivem aqui!” E assim começou um novo dia…

3
N do T. A frase é uma citação conhecida da peça de Shakespeare “Hamlet, Príncipe da Dinamarca”.

Nas Asas de Fé 14
Naquela tarde, o Presidente Benson e o irmão Badger voltaram à casa da
missão em um elegante automóvel alemão modelo Horch, que havia sido feito sob
encomenda para os generais alemães que se encontravam na Dinamarca durante a
ocupação. Ele tinha um motor de dezesseis cilindros em linha e seis marchas à frente.
O motorista dinamarquês que nos fora designado parecia deliciar‐se em fazê‐lo “voar”.
Ao chegarmos a uma das super autoestradas — praticamente desertas desde a guerra
— ele tinha de demonstrar do que aquela máquina era capaz. Antes de percebermos,
ele estava jogando a sexta marcha e deslizava a 235 quilômetros por hora. Nunca na
vida eu tinha andado tão depressa em um meio de transporte terrestre! Sentado no
banco de trás do cupê com o irmão Badger, eu me deliciava em ver o Presidente
Benson sentado no banco da frente segurando o chapéu firmemente com as duas
mãos!

Foi difícil conseguir dar adeus aos santos dinamarqueses que foram à estação
se despedir de nós quando partimos para a Suécia.

O sistema de suprimento de água do trem estava congelado, o que resultou na


falta absoluta de água e de aquecimento. O solo estava coberto por grossa camada de
neve e a temperatura estava dezessete graus abaixo de zero. Em razão disso, era
quase impossível dormir, apesar dos pesados cobertores que trouxéramos.


Na estação ferroviária de Estocolmo, estavam nos esperando o Presidente Eben


R. T. Blomquist, recém‐chegado dos Estados Unidos e o presidente do ramo local, o
irmão Einar Johannson. Naquela noite, assistimos a uma reunião pública a que
compareceram 225 membros e amigos. Alguns músicos clássicos locais ofereceram
bela música instrumental e um excelente coro cantou belos hinos.

As palavras que o Presidente Benson proferiu trouxeram um forte espírito de


convicção aos presentes. Eles estavam visivelmente emocionados pela efusão do
espírito de amor que estava presente e ficaram tristes por ter a reunião chegado ao
fim. Quando começou a falar, o Presidente Benson disse: “Eu desejaria tanto falar‐lhes
em seu idioma pátrio, mas tenho certeza de que conseguiremos nos entender, porque
há uma linguagem mais poderosa do que o idioma de qualquer nação: a linguagem do
evangelho do amor”. Ficou evidente que ele falara nessa linguagem devido à plena
compreensão que os ouvintes demonstraram.

O Élder Benson sentiu que deveria relatar alguns dos eventos relacionados à
escolha do Presidente George Albert Smith como Profeta, Vidente e Revelador após o
falecimento do Presidente Heber J. Grant. Entre outras coisas, ele disse:

“Nunca senti o Espírito do Senhor tão fortemente quanto na ocasião em que o


Presidente George Albert Smith foi designado no templo… Vários rumores de inimigos

Nas Asas de Fé 15
da Igreja tinham sido alardeados sugerindo que alguns membros do Conselho dos
Doze aspiravam à posição de presidente.

Em nossa reunião, os dois conselheiros do Presidente Grant tomaram seus


lugares no Conselho dos Doze de acordo com a ordem de senioridade. O Presidente
David O. McKay sentou‐se ao lado do Presidente George F. Richards e o Presidente J.
Reuben Clark, Jr. sentou‐se ao lado do Élder Albert E. Bowen, por antecedê‐lo em
senioridade. O Presidente George Albert Smith, como Presidente do Conselho dos
Doze, presidiu.

Durante a reunião senti tão poderosamente o Espírito do Senhor como nunca


antes. Não havia nenhum sentimento de egoísmo ou de vã ambição naquele lugar. O
Espírito mostrou a cada membro daquele Conselho quem o Senhor escolhera, a ponto
de todos chegarem às lágrimas. Quando o Espírito do Senhor é sentido com tanto
poder a ponto de levar quatorze homens fortes e maduros simultaneamente às
lágrimas e o espírito de unidade divina se manifesta, como naquele momento, não há
como não saber que há um Poder Maior do que o do homem à frente da Igreja.

Antes do término da reunião, o Presidente George Albert Smith foi apoiado por
unanimidade e ordenado Presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias e Profeta, Vidente e Revelador escolhido por Deus. O Presidente David O. McKay
foi o porta‐voz do quórum na ordenação do profeta. Mais tarde, na Conferência Geral
de Outubro, ele foi apoiado por unanimidade pelos membros da Igreja.

Em nenhuma ocasião até hoje ouvi sequer uma única palavra de oposição…
Testifico que existe unidade nos conselhos da Igreja… Nenhuma ação é empreendida
nos conselhos da Igreja, a não ser que a decisão seja unânime”.

Os santos suecos tinham realizado um excelente trabalho durante os anos de


guerra. Eles sustentaram no campo quase vinte missionários suecos de tempo integral
durante todo aquele período. Os registros mostram que houve mais batismos de
conversos naqueles anos do que nos anos que precederam a guerra, embora houvesse
mais missionários no campo antes da guerra. O dízimo total aumentara 300% e as
ofertas de jejum cresceram 600% durante a guerra. Além disso, atingiram a frequência
de cerca de 85% nas reuniões sacramentais.

Depois da reunião, ficamos autografando fotografias e apertando mãos por


quase uma hora e meia antes de irmos para o hotel.
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Antes de o Presidente Benson e eu sairmos para essa missão na Europa, fomos


designados pela Primeira Presidência e recebemos bênçãos especiais deles. Na bênção
do Presidente Benson foi‐lhe prometido que, por seus esforços, o evangelho seria
pregado em terras onde nunca havia chegado antes. Um prelúdio do cumprimento

Nas Asas de Fé 16
parcial dessa promessa aconteceu na manhã seguinte àquela primeira reunião com os
santos suecos.

Naquela manhã, reunimo‐nos com dez missionários locais de tempo integral,


membros da liderança da missão e dois ou três santos locais. Desfrutamos de uma
maravilhosa reunião de testemunhos que enriqueceu‐nos a alma. Embora nós,
americanos, não entendêssemos o idioma em que os testemunhos foram proferidos,
podíamos sentir sua força e sinceridade.

Quando o Presidente Benson levantou‐se para prestar seu testemunho, ele


estava pleno daquele mesmo doce espírito. Entre outras coisas, ele mencionou que ao
longo do dia anterior e mesmo durante a noite ele sentiu o Espírito sussurrar‐lhe que o
evangelho deveria ser levado ao povo da Finlândia.

“Como servo do Senhor”, disse ele, “chamo a você, irmão Fritz Johansson, para
ir à Finlândia como missionário e abrir o caminho para a pregação do evangelho
àquele povo maravilhoso. Você pode levar como companheiro aquele que você e o
Presidente Blomquist escolherem. Se você for com humildade, no espírito deste
chamado, muitos de coração honesto ficarão felizes e desejosos de receber seu
testemunho e de serem batizados na Igreja.”

Que pronunciamento glorioso! Todos nos sentimos comovidos e vertemos


lágrimas de gratidão. O irmão Johansson estava todo radiante ao aceitar o chamado e
foi designado com uma bênção e uma promessa. Fiquei particularmente
impressionado porque, depois de servir por quase sete anos como presidente interino
da missão durante a guerra, ele aceitava agora outro chamado, desta vez para abrir a
Finlândia à pregação do evangelho. Nenhum de nós que estávamos presentes poderia
se esquecer daquela ocasião ou do doce espírito e a inspiração que nos foram
manifestados.

Naquela noite, fomos convidados a jantar com o irmão Einar Johannson, o


presidente do ramo. Ele nos levou para um dos mais sofisticados restaurantes de
Estocolmo, o “Gôndola”, que fica suspenso por cabos sob a passarela que leva ao
elevador da cidade, que por sua vez transporta as pessoas para a parte baixa da
cidade. A casa da missão ficava localizada no alto do rochedo do qual se pode
contemplar a cidade.

Ficamos ali por cerca de cinco horas. O farto jantar incluía um lauto bufê com
dez pratos principais e numerosas guarnições e sobremesas. Provamos trinta tipos
diferentes de queijo — desde queijo de leite de iaques e de renas, até de leite de
cabra, entre outros. Havia muito tempo que eu não comia tanto e apreciei cada
minuto do jantar.

Nas Asas de Fé 17
Ao término desse banquete indescritível, o Presidente Benson brincou com o
irmão Johannson, dizendo que aparentemente os suecos viviam para comer e não
comiam para viver. O irmão Johannson concordou plenamente e acrescentou: “E
adoramos fazê‐lo!”

Do ponto elevado em que estávamos, podíamos contemplar toda a beleza


daquela “Veneza Nórdica”, como Estocolmo é carinhosamente conhecida. Belas
melodias clássicas e semiclássicas tocadas por um ensemble de violino e piano
completavam aquele momento perfeito.

Era quase meia‐noite quando retornamos à casa da missão. Lá chegando, nos


ajoelhamos com os missionários para deixar uma bênção e rogar a proteção do Senhor
em nossas viagens seguintes. Embora já fosse tarde, o grupo inteiro caminhou conosco
até a estação ferroviária sob uma temperatura de dezoito graus abaixo de zero.
Muitos deles usavam seus pesados chapéus suecos de pele.

A caminhada nos deu a excelente oportunidade de ver aquela adorável cidade


em sua bela roupagem noturna. Sob uma alta colina de onde se vê a cidade, fica o
castelo do rei. A cidade é entrecortada por vários canais e pitorescas pontes. A
arquitetura varia entre antiga, medieval e ultra‐moderna. Iluminada pelo brilho de
muitos neons, a cidade nesse aspecto se parece com as mais modernas cidades norte‐
americanas. Não é de admirar que ela seja conhecida também como “a jóia do Norte”.

Imagine a nossa surpresa ao sermos recepcionados na estação por outro


grande grupo de santos. Eles formaram um semicírculo enorme e cantaram várias
canções alegres, entre elas “Farewell to Thee”, cantada em inglês. Foi uma experiência
enternecedora. Enquanto o trem partia, os santos continuaram a acenar com seus
lenços até nos perder de vista.

Viajávamos em um trem norueguês sem aquecimento e que estava desprovido


das mais simples conveniências. A situação não possibilitava um sono reparador, mas
as lembranças do dia pareciam compensar plenamente as inconveniências que
havíamos encontrado aqui e ali.
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Os fiscais da alfândega norueguesa, que nos acordaram antes das seis da


manhã para checar nossos passaportes e bagagens continuaram a fazer várias
inspeções até chegarmos a Oslo. Embora não nos tenha agradado o precoce despertar,
sentimos uma compensação ao contemplarmos a magnífica paisagem. As casas
ficavam bem distantes umas das outras e aqui e ali víamos grupos de valentes
esquiadores. Toda a paisagem estava coberta por um lençol de neve branquíssima.
Fiquei fascinado por aquele cenário de altas montanhas, densas florestas e lagos azuis.

Nas Asas de Fé 18
Ao chegarmos a Oslo, fomos calorosamente recepcionados pelo Presidente A.
Richard Peterson e sua família. Com eles estava Sherman A. Gowans, oficial do
exército, membro da igreja e adido militar da Embaixada Americana.

Passei a maior parte da tarde ajudando os secretários que estavam saindo e os


novos secretários a prepararem uma auditoria dos registros da missão, para que
pudessem começar a usar o sistema revisado de manutenção de registros. Esses
registros estavam confusos e eram de difícil compreensão, porque os dados
financeiros tinham sido anotados às pressas durante a ocupação nazista. Essa
providência havia sido adotada para evitar o confisco completo das propriedades por
parte das forças militares de ocupação.

Um acontecimento incomum relacionado a esses registros foi o narrado pelo


irmão Olaf Sonsteby, presidente da missão em exercício durante a guerra e alfaiate
por profissão. Quando as forças de ocupação começaram a apropriar‐se dos recursos
financeiros das diversas denominações, uma interessante caçada teve lugar. O irmão
Sonsteby transferia os recursos da missão de um banco para outro, até que ficou
patente que não havia mais condição de continuar com essa estratégia. Ele então se
viu forçado a enterrar o dinheiro. Quando voltou para recuperá‐lo depois da libertação
do país, encontrou um problema incomum. Disse ele:

“Quando retirei o dinheiro do buraco onde o havia enterrado”, disse ele,


“descobri que havia 37.000 coroas a mais do que eu tinha colocado lá. E eu não tinha
como contabilizar esse dinheiro extra!” Esse foi um caso único em que os “talentos
enterrados” deram dividendos. A sua justa preocupação desapareceu quando sugeri
que lançasse esse dinheiro extra como doações diversas de fonte desconhecida.

O jornal vespertino trazia notícias inquietantes. O edifício da polícia em Tel Aviv


tinha sido destruído naquele dia por terroristas palestinos que atacaram vários postos
policiais na capital israelense e em Haifa. No entanto, o Presidente Benson nos
assegurou que, uma vez cessadas as hostilidades presentes, o povo judeu encontraria
refúgio em sua antiga terra de herança e a reconstruiria com as bênçãos do Senhor.
Foi reconfortante observar a reação dele a tais incidentes. Desde então, os
acontecimentos que se sucederam provaram que as palavras dele se cumpriram.4

Nossa reunião vespertina com os membros e amigos foi um banquete


espiritual. Um coro de oitenta vozes acompanhado por uma afinada orquestra de
cordas ofereceu uma bela música. Ficamos sabendo que aquele coral de Oslo era
famoso em toda a Escandinávia e mesmo o Presidente Benson admitiu que era o
melhor coro que ele já ouvira, exceto pelo Coro do Tabernáculo de Salt Lake City!

4
N do T: Nessa ocasião, 1946, não existia ainda oficialmente o Estado de Israel, que só foi aprovado pela
ONU em 1948.

Nas Asas de Fé 19
Aos que ali se reuniram, o Presidente Benson fez uma significativa promessa,
dizendo:

“Prometo‐lhes, como servo do Senhor, que se cumprirem fielmente os


convênios que fizeram com Ele e viverem o evangelho restaurado, todas as bênçãos
que receberiam se vivessem perto do templo lhes serão dadas, até mesmo o reino
celestial de Deus. Deus nos julga não apenas pelo que fazemos, mas pelo que faríamos
se nos fosse dada a oportunidade. Ele não reterá nenhuma bênção de nós se formos
dignos dela.”

Após a reunião, o irmão Gowans nos convidou a passarmos a noite em sua


adorável casa, que havia pertencido a um milionário norueguês que fora preso depois
da guerra por ter colaborado com os nazistas e ter auferido lucros ilícitos com a
guerra. As paredes estavam repletas de quadros raros e valiosos, pintados a óleo, e a
mobília e os tapetes orientais acrescentavam um tom luxuoso a que não estávamos
acostumados.

O irmão Badger e eu fomos obrigados a nos acomodar numa cama de solteiro


— bem desconfortável — porém aceitamos de bom grado, especialmente depois de
duas noites mal dormidas em trens desconfortáveis para chegar a Estocolmo e depois
a Oslo. O Presidente Benson ficou com uma cama mais larga, acima da qual havia um
belo quadro em tamanho real.

Embora até então eu pouco conhecesse o Presidente Benson, comecei a


perceber o privilégio que eu tinha de trabalhar com ele. Eu nunca conhecera um
homem de Deus que fosse tão humilde, tão grato pela lealdade e pela bondade que
lhe ofereciam, tão genuína e profundamente sensível e receptivo a tudo o que era
bom e puro, um homem que tivesse um amor tão profundo pelos filhos de nosso Pai.
Desde que chegáramos à Europa, ele fora capaz de fazer tanto em tão pouco tempo e
esse tanto com tal completude e eficiência do que eu jamais imaginara possível.
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Ficamos sabendo que até 1925, Oslo era chamada de Cristiana, em


homenagem ao rei Cristiano da Dinamarca. Ele fundara a cidade em 1624 sobre as
ruínas da antiga cidade de Oslo, cuja história remontava a 1047. O orgulho nacional fez
os noruegueses restaurarem o nome original da cidade depois de tantos anos. O fiorde
ao longo do qual a cidade é localizada ainda é conhecido por muitos como Fiorde
Cristiana.

O Museu do Folclore contém três famosos barcos vikings, todos escavados e


restaurados bem recentemente. Contemplando‐os, nos maravilhamos da ousadia
daquele povo de ter navegado até a América em barcos tão pequenos cerca de mil
anos antes.

Nas Asas de Fé 20
Depois de um breve e agradável passeio pela cidade, embarcamos em um avião
C‐47, de transporte militar, pilotado por uma tripulação britânica. A temperatura
externa era de vinte e nove graus negativos, mas ao atingirmos a altitude de sete mil
pés (cerca de dois mil metros) a temperatura caiu rapidamente para mais de quarenta
graus abaixo de zero. Acomodados nos assentos de lona, estávamos quase congelados
ao chegarmos a Copenhage. Foi com extrema dificuldade que conseguimos
desembarcar e a neve ainda caía, apesar da temperatura de dezoito graus abaixo de
zero.
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Assistimos a uma reunião vespertina em Copenhage no dia seguinte. O


Presidente Benson falou sobre muitas coisas e mencionou duas histórias dignas de
nota.

A primeira foi a de um jovem membro da Igreja que voava de Washington D.C.


para o Canadá a fim de trabalhar. As condições climáticas obrigaram o avião a
aterrissar em uma pista improvisada no oeste da Pennsylvânia. Os passageiros foram
informados de que permaneceriam naquele lugar por muitas horas. Notaram então
uma luz entre as árvores e descobriram que se tratava de um acampamento CCC.5

Os rapazes do acampamento estavam se preparando para o jantar e


convidaram os passageiros para comer com eles. Serviram café quente e embora
aquele jovem membro da Igreja fosse bem obediente aos padrões em circunstâncias
normais, ele decidiu tomar um pouco, porque estava muito frio e ele tinha certeza de
que ninguém ali o conhecia.

Na primeira golada, o jovem ao lado perguntou‐lhe de onde ele era.

“Washington D.C., mas nasci em Utah”.

“Por acaso você é mórmon?”

“Sou sim”.

Ao ouvir isso, o outro rapaz disse: “Mas você não é muito firme não, é?”

Então explicou que tinha morado por algum tempo num acampamento CCC
perto de St. George, Utah, onde aprendera pela observação que os mórmons de
verdade obedeciam estritamente aos padrões da Igreja. Ele frequentara algumas
reuniões da Igreja e se familiarizara com a Palavra de Sabedoria.

5
N do T: Acampamento CCC (Civilian Conservation Corps), durante a depressão, tratava‐se de um
programa de emprego do governo federal que funcionou de 1933 até 1942 e foi instituído pelo
Presidente Frankiin D. Roosevelt.

Nas Asas de Fé 21
A segunda história que o Presidente Benson contou foi de certo bispo que
muitas vezes almoçava em um restaurante chinês das proximidades. Após uma das
sessões da conferência da estaca, ele se encontrou com outro bispo que também
frequentava o mesmo restaurante. Ao fazerem o pedido, ambos pediram leite.

Ao trazer o que pediram, o garçon chinês não suportou a curiosidade e


perguntou: “Por que vocês sempre pedem café quando vêm sozinhos e leite quando
estão juntos?”

Por meio dessas excelentes ilustrações, o Presidente Benson enfatizou a


importância de reconhecermos que os olhos do mundo estão sobre o povo desta
Igreja. Ao concluir, ele pediu aos membros para continuarem a ser “um povo peculiar
pela estrita observância da vontade de Deus”.
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Ao partirmos de Copenhague, nós três usávamos roupas bem grossas e


quentes para enfrentar o voo até Londres. O avião militar britânico não tinha
aquecimento, exatamente como o que nos trouxera de Oslo poucos dias antes. Aos 7
mil pés de altitude (cerca de 2 mil metros), o frio era tão intenso que tivemos de ficar
andando de lá para cá para nos mantermos aquecidos e o sangue circulando. Por fim,
ficamos com tanto frio que quase não conseguíamos nos mover sem fazer grande
esforço. As asas do avião acumulavam gelo, a ponto de fazer alguns de nós ficar
preocupados. Para mim, no entanto, não havia preocupação, pois sabia que estava
viajando com o Presidente Benson a serviço do Senhor. Eu confiava na bênção que
fora dada pelo Presidente J. Reuben Clark, Jr., quando me designou:

“… Você irá retornar para trabalhar entre as pessoas com quem trabalhou na
sua primeira missão — e com as bênçãos do Senhor voltará para o lar. (…) Selamos
estas bênçãos sobre você para que tenha força e saúde, para que vá em paz e retorne
em segurança, tudo em razão de sua fé e fidelidade…”

Quando aterrissamos no aeroporto Croydon, perto de Londres, cerca de quatro


horas mais tarde, éramos um grupo que inspirava pena. A cada passo, nossos joelhos
estalavam e cada pé parecia ser um bloco de gelo. As pernas estavam totalmente
insensíveis. Nunca havia sentido tanta dificuldade para caminhar.

Ao chegar à casa da missão, banhamos as pernas com água fria e gradualmente


conseguimos restaurar a sensibilidade. Devido à bênção do Senhor, não tivemos
quaisquer das complicações comuns que se seguem ao congelamento de partes do
corpo. Sentimos uma gratidão enorme naquela noite.
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Nas Asas de Fé 22
Havia pilhas de correspondência sobre a mesa do Presidente Benson. Ele
começou a ditar as respostas no momento que entramos em casa e continuou a fazê‐
lo até tarde da noite. Como a despensa estava vazia, tive de comprar alguma comida
com os cupons de racionamento antes da maratona de escrever à máquina as
respostas que o Presidente Benson ditava.

Durante nossa ausência, o aquecimento central não fora irradiado para os


nossos quartos, o que tornava cada dependência uma verdadeira geladeira. Graças às
várias lareiras elétricas existentes na casa, conseguimos aos poucos reduzir a fria
umidade, porém gastando muito mais eletricidade e por mais tempo do que permitia a
regulamentação governamental.

Sentíamo‐nos abençoados por termos aquelas acomodações. Os bombardeios


tinham tornando escassas as residências e os espaços para escritórios. Por isso,
quando chegamos a Londres, o presidente da missão, Hugh B. Brown, havia sugerido
que usássemos provisoriamente alguns aposentos da casa da missão. O Presidente
Benson recusou essa generosa oferta e começamos a procurar uma casa para alugar.

Nossa busca nos fez perceber a seriedade da falta de imóveis. Desde a guerra,
nenhuma obra de reconstrução de vulto havia sido iniciada na cidade inteira. Lojas e
casas bombardeadas ainda exibiam, sob um céu plúmbeo, pedaços de paredes
escurecidas pela fumaça. Alguns setores de Londres haviam escapado
miraculosamente, mas outros tinham
sido seriamente atingidos, especialmente
nos últimos meses da guerra, quando os
alemães começaram a usar as bombas
voadoras V‐1 e V‐2. Mesmo assim, a
destruição na Europa continental fora
imensamente maior, em comparação.

Nossa busca nos levou finalmente


a um dos bairros mais sofisticados de
Londres — a área das ruas Bond e Brook.
Entramos em um jardim de aparência
horrível, passando por uma viela estreita.
Da rua, o lugar parecia comum e pouco
interessante, mas o interior da casa
excedia às nossas melhores expectativas.
Ambos sentimos que aquilo era uma
resposta do Senhor às nossas orações e
na manhã seguinte nos mudamos para lá.

Nas Asas de Fé 23
Acabamos descobrindo que havíamos alugado uma parte da antiga casa que
pertencera ao renomado compositor George Frederick Handel e era o lugar onde ele
compusera sua obra‐prima, o Messias. A aparência da casa era de um castelo
medieval. Nossa porção do imóvel consistia de três quartos e um banheiro, além do
direito de usar a cozinha. A entrada da casa, que consistia de um longo vestíbulo, nos
lembrava um enorme museu. A porta que levava à sala de estar tinha uma pesada
fechadura de ferro semelhante às que vemos em velhos castelos. As paredes eram
cobertas por elegantes painéis de nogueira. Descobrimos mais tarde que havia muitos
compartimentos e passagens secretas por trás dos painéis que levavam a outros
aposentos da enorme casa.

Todas as janelas eram protegidas por pesadas grades de ferro, o que dava à
casa a segurança de uma prisão. As cortinas nas janelas eram feitas de luxuoso e
pesado veludo. A mobília era de muito bom gosto, incluindo um piano de cauda e
vários tapetes persas na sala de estar.

Foi nesse local que estabelecemos tanto o escritório quanto nossa residência.
Com uma máquina de escrever e um equipamento ditafone que eu havia resgatado do
úmido porão da casa da missão e que conseguira milagrosamente fazer funcionar,
estávamos prontos para nossas tarefas.

O equipamento sem dúvida foi usado até a exaustão depois que retornamos
das primeiras jornadas à Europa. O irmão Badger ficou conosco e dormia em um sofá
que ficava na sala da frente. Ele se recolhia cedo, enquanto eu ficava datilografando a
correspondência até de madrugada. Foram necessários vários dias para pôr a
correspondência em dia. No entanto, apesar do esforço, do pouco repouso, do clima
úmido e frio e de refeições pouco adequadas, o Senhor continuou a me abençoar e
suster. Não fiquei gripado e consegui realizar minhas atividades missionárias com um
mínimo de dificuldade.

Ao relembrar aquele primeiro mês na Europa, parecia quase incrível que tantas
coisas tivessem acontecido. Sem dúvida o Senhor havia‐nos concedido muitas
bênçãos!

Em um relatório especial enviado à Primeira Presidência e que foi incluído na


História Oficial da Missão Europeia, o Presidente Benson resumiu nossa primeira
viagem da seguinte forma:

As condições dos membros da Igreja em geral têm melhorado dia a dia. Do ponto de vista
espiritual essas condições permaneceram boas durante a guerra e provavelmente agora
estavam melhores do que nunca. Os relatórios dos líderes das missões indicam que na
experiência deles os santos nunca antes haviam vivido tão plenamente a lei do dízimo e
guardado a Palavra de Sabedoria, assim como observavam também os padrões da Igreja.
Embora os santos tenham enfrentado dificuldades inacreditáveis, em muitos casos eles

Nas Asas de Fé 24
permaneceram esperançosos e otimistas, mesmo durante a ocupação de seus países por um
inimigo externo, período em que até mesmo temiam pela própria vida.

Nas últimas duas ou três semanas, temos viajado em trens, aviões e caminhões sem
aquecimento para podermos visitar as várias missões. Mas em todas as ocasiões temos sido
recebidos com tanto amor e com um caloroso espírito fraterno que quaisquer dificuldades que
tenhamos encontrado são logo esquecidas. Provavelmente o evangelho nunca foi tão
apreciado pelos membros europeus quanto durante a recente guerra. Já sentimos um
profundo amor por eles e é quase impossível encontrar palavras que descrevam sua devoção à
verdade e seu amor pelas Autoridades Gerais da Igreja.

Nas Asas de Fé 25
CAPÍTULO 2

“Irei Adiante Deles”

A pior nevasca desde 1867 acabara de cair sobre Paris. O Campo Orly, o
aeroporto parisiense no qual deveríamos pousar estava com as pistas interditadas por
montanhas de neve. Por isso, tivemos de procurar alternativas para chegar à França.

O trem mais conveniente partiria da Estação Waterloo, em Londres, às 22


horas. Quando esse trem chegou ao Canal da Mancha, embarcamos em um vapor que
nos levaria a Dieppe, na França. Nossas passagens eram para cabines‐leito de primeira
classe. Porém, quando embarcamos, tivemos de ficar em uma longa fila até que nossas
cabines nos fossem designadas. Imaginem nossa surpresa quando fomos colocados em
um salão com uns quarenta beliches, cada cama com um cobertor, porém sem lençol!
Curiosamente essa viagem de trem e vapor custou a metade do que custaria a
passagem de avião.

Pareceu‐nos que nos deram os dois últimos beliches, porque as pessoas que
estavam atrás de nós na fila ficaram instalados em poltronas. Depois que se esgotaram
as poltronas, o restante dos passageiros teve de permanecer em pé, embora todos
também tivessem passagens de primeira classe. Esse episódio era um prelúdio das
condições que iríamos vivenciar continuamente devido à desorganização causada pela
guerra.

Felizmente, o Capelão Badger veio nos socorrer. Ele conseguiu uma cabine em
ruínas pagando dois dólares a mais por pessoa. Essa cabine, embora muito acanhada
para os padrões a que estávamos acostumados, deu‐nos um pouco mais de
privacidade e o repouso pelo qual tanto ansiávamos.

Quando atracamos na baía de Dieppe de madrugada, contemplamos o pior


cenário de destruição que eu já vira até então. A maioria dos prédios não era mais que
uma massa de destroços e ruínas. Todas as pontes haviam sido destruídas e estavam
reduzidas a massas disformes e inúteis. A própria baía era um triste quadro de
desolação e entulho. Aquela era a Dieppe que fora alvo de terríveis bombardeios no
Dia D, não a pitoresca Dieppe de antigamente.

Esse panorama se repetiu de aldeia em aldeia por todo o caminho até Paris,
mas nos informaram que essa devastação era modesta em comparação com o que
iríamos observar ao chegar à Alemanha. Mesmo assim, era uma visão aterradora.

Dois militares americanos, o Capitão Sherman L. Brinton e o Capitão Thomas L.


Adams, conseguiram nos acomodar no Hotel Terrasse, colocando‐nos em seus

Nas Asas de Fé 26
próprios quartos. Esses dois santos dos últimos dias extraordinários haviam realizado
maravilhas entre os soldados SUD naquela área.

Em Paris, o Presidente Benson conversou com o coronel encarregado das


comunicações com a Alemanha. Ele explicou ao militar que desejava planejar nossa
visita aos membros da Igreja na Alemanha a fim de distribuirmos os suprimentos de
bem‐estar e de reabilitação e preparar nossas fileiras para receberem a gigantesca
obra de rejuvenescimento espiritual. Começou então a analisar com o coronel nosso
itinerário previsto, que incluía visitas a todas as quatro zonas militares de ocupação na
Alemanha e na Áustria, bem como uma viagem à Checoslováquia.

Quando o coronel viu o nosso plano de viagem, explodiu com descrença: “Sr.
Benson, o senhor está louco? O senhor não compreende que houve uma guerra aqui e
que até agora nenhum viajante civil recebeu permissão de entrar nessas áreas
militares para realizar esse tipo de trabalho que o senhor sugeriu? No momento, não
temos provisões disponíveis para oferecer a visitantes. Todo alimento, acomodações e
meios de transporte estão reservados para uso restrito dos militares”.

O Presidente Benson indagou então calmamente se poderíamos obter


permissão para a viagem se conseguíssemos comprar um carro. O coronel respondeu
que era quase impossível adquirir um carro na América e que era muito mais difícil na
Europa, onde havia falta de tudo. Além disso nos alertou que como civis não teríamos
acesso a gasolina na Alemanha e que portanto, essa alternativa era fora de questão.

Depois de várias explosões semelhantes por parte do militar, o Presidente


Benson perguntou: “Se eu conseguir transporte, alimento e permissões militares, você
acha que posso prosseguir?”

Com um olhar de incredulidade, o coronel respondeu: “Se você conseguir tudo


isso, talvez lhe seja possível entrar na Zona Americana, mas obter tudo o que precisa é
impraticável!”.

Nem isso desanimou o Presidente Benson. Ao sairmos, ele se virou para nós e
disse: “Vamos. Mãos à obra!”

Antes de o dia terminar, tínhamos conseguido comprar, através da Comissão


do Exército de Vendas de Excedentes de Guerra, um caminhão Dodge que estava em
razoáveis condições de uso e já tínhamos feito contato com vários líderes
governamentais e industriais franceses para sondarmos a possibilidade de adquirirmos
carros franceses novos. Seriam ainda necessários muitos contatos, mas o Presidente
Benson estava otimista e tinha aquela coragem que emanava da fé.

No dia seguinte, o Presidente Benson determinou que eu e o irmão Badger


levássemos o caminhão adquirido do Exército até a Holanda para que a Missão

Nas Asas de Fé 27
Holandesa pudesse usá‐lo na distribuição dos suprimentos de bem‐estar. Saímos por
volta das três horas da tarde em direção à Liege, na Bélgica, numa viagem bem atípica.

As estradas estavam ruins em muitos lugares e em outros estavam


escorregadias por causa da neve e do gelo. Em todo o trajeto, pudemos observar a
destruição que se abateu sobre os campos franceses, cheios de vilarejos arrasados e
pontes em ruínas. De fato, não atravessamos uma única ponte que tivesse sido
construída antes da guerra. Ao longo das estradas, encontrávamos enormes pilhas de
munição que se estendiam por vários quilômetros. Aqui e ali havia tanques americanos
destruídos, assim como aviões e tanques alemães. Enormes crateras abertas por
bombas pontilhavam a paisagem em todas as direções. Tudo aquilo era uma imagem
triste e didática da inutilidade e do desperdício de uma guerra.

Por volta das oito e trinta da noite, cruzamos a fronteira e entramos na Bélgica.
Por estarmos em um caminhão do Exército americano, os agentes de fronteira nem
sequer nos paravam e meu passaporte e vistos nem foram examinados ou carimbados.

A uns cinquenta quilômetros ao sul de Liege, enfrentamos forte cerração, o que


tornou a viagem lenta e perigosa. Estávamos indo a uns vinte quilômetros por hora
quando uma menina fez sinal e pediu para levarmos ela, a avó e a tia até Liege. Elas
tinham perdido o último ônibus e, apiedados, decidimos ajudá‐las.

Como a carroceria estava abarrotada de gasolina, óleo e bagagens, tivemos de


acomodá‐las na cabina. A tia tinha uns trinta e poucos anos e a avó era uma vivaz
senhora de uns setenta anos. Embora elas não falassem uma palavra de inglês,
conseguimos entender‐nos razoavelmente.

Nos primeiros vinte quilômetros, tive de levar a avó no colo e depois assumi a
direção e o irmão Badger assumiu a função de poltrona. Ambos ficamos gratos quando
finalmente nossas passageiras desembarcaram nas proximidades de Liege. A senhora
idosa levava consigo uma boa quantidade de ovos frescos, vários dos quais estavam
estalados quando chegamos, mas ela conseguiu salvar uma meia dúzia e alguns
tomates com os quais nos recompensou por nossa gentileza.

O irmão Badger tinha já passado algum tempo em Liege com a família Devignez
no final da guerra e assim foi relativamente fácil achar o caminho até a casa deles. Já
passava da meia‐noite quando acordamos a família para pedir abrigo por uma noite.
Ambos estávamos exaustos e sujos de graxa, mas apesar de nossa aparência horrível,
fomos recebidos com alegria e dormimos uma boa noite em camas confortáveis.

Paul Devignez era o presidente em exercício da missão na Bélgica durante a


guerra e prestou serviços extraordinários. O irmão dele, também membro fiel, fora
morto nos últimos dias da guerra depois de ter sido poupado milagrosamente durante
várias e importantes batalhas. Sete ou oito membros belgas morreram na guerra.

Nas Asas de Fé 28
Apesar de a madrugada estar se aproximando, a irmã Devignez insistiu em nos
preparar uma refeição antes de partirmos. Depois de horas a fio dirigindo, sem parar
para comer, ficamos gratos pelo convite. Também as camas pareciam extremamente
confortáveis depois da acidentada viagem de caminhão.
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O prédio da Igreja em Liege não havia sido danificado seriamente, embora a


cidade fosse considerada uma das que foram mais castigadas pelo bombardeio na
Bélgica. Todas as nove pontes da cidade tinham sido destruídas.

Na manhã seguinte, percorremos cada quilômetro de ruína em ambos os lados


do rio. Grande parte da Batalha do Bulge e as lutas mais violentas haviam sido
travadas na região de Liege. Já se evidenciavam então os sinais de reconstrução.

Graças aos pacotes de bem‐estar que haviam sido enviados pelos santos, os
membros locais estavam se saindo melhor do que a maioria da população. Encaravam
o futuro com confiança e pareciam gozar de excelentes condições espirituais. No geral,
a situação da Bélgica tinha melhorado muito desde o final da guerra. Muitos gêneros
alimentícios podiam ser encontrados em pequenas quantidades, bem como artigos de
vestuário, porém os preços eram muito altos para a população em geral.

Em Antuérpia, encontrei algumas instalações e galpões que nos pareciam


adequados para estocarmos nossos suprimentos para posterior distribuição. O
Presidente Benson sugeriu, antes de nossa partida, que Antuérpia poderia tornar‐se
um dos principais centros de recebimento de recursos. Pesquisamos também as
possibilidades de distribuição a partir dali por meio da Cruz Vermelha Internacional e
foi‐nos assegurado que aquela organização estaria à nossa disposição para ajudar‐nos
nessa tarefa.

Na fronteira holandesa, encontramos o Presidente Cornelius Zappey,


presidente da missão naquele país. Ele não cabia em si de contente quando lhe
entregamos o caminhão e lhe mostramos a grande quantidade de combustível que
seria essencial para ele concretizar seu trabalho de distribuição de gêneros.
Despedimo‐nos dele e ele imediatamente retornou a Haia. Como o caminhão ainda
tinha as insígnias e placas do Exército, o Presidente Zappey não teve dificuldades para
chegar em casa. Esse caminhão provou‐se uma bênção que possibilitou a distribuição
dos recursos de bem‐estar em toda a Holanda.

Quando chegamos a Bruxelas, ficamos sabendo que não havia leitos disponíveis
no trem para Paris. O trem estava dividido em duas seções: uma para os militares e
outra para os civis, e o irmão Badger, como capelão, conseguiu um leito para si na
seção dos militares. Porém, eu ainda tinha de resolver como viajar.

Nas Asas de Fé 29
Para todos os efeitos, eu tinha entrado na Bélgica ilegalmente, pois meu
passaporte e visto não haviam sido carimbados por autoridades daquele país. Sem
dúvida, os funcionários da alfândega me considerariam suspeito. Sabíamos que eu
correria riscos se meu passaporte fosse examinado, o que fatalmente ocorreria se eu
viajasse na seção dos civis, mas eu tampouco poderia ficar na seção dos militares.

O irmão Badger, muito criativo, emprestou‐me sua capa de chuva do Exército e


me fez entrar na seção militar carregando a bagagem dele, enquanto ele carregava a
minha. Ele dividia a cabine com outro oficial e, quando entramos, ele explicou ao
oficial as nossas dificuldades. Assim, fiquei escondido na cabine deles, encolhido entre
um leito e outro até que os funcionários da alfândega completassem a inspeção. Eu
estava quase sufocado, mas nem ousava respirar direito por medo de ser descoberto.
Depois que a porta da cabine foi trancada, pude sair do esconderijo e ficar mais à
vontade.

Cobrimos então a escadinha do beliche com algumas peças de roupa,


improvisando assim um colchão rudimentar, o que me permitiu dormir a noite inteira
com relativo conforto e segurança. Chegamos a Paris por volta das seis horas da
manhã. Com as devidas precauções, consegui sair da seção militar sem despertar
suspeitas.
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O Presidente Benson ficou satisfeito com nosso relato sobre a entrega do


caminhão e sobre as instalações de armazenamento e serviços de Antuérpia. Durante
nossa ausência, ele conseguira comprar dois automóveis Citroen novos, um feito que
exigiu dele a visita a trinta diferentes repartições do governo e a executivos da
indústria. Os dois veículos estavam entre os primeiros a sair da linha de montagem
francesa depois da guerra. Usamos um deles para nossas viagens e deixamos o outro
com o Presidente James L. Barker, da Missão Francesa.

Ambos os veículos eram pequenos sedãs de quatro portas, semelhantes ao


modelo Ford 1932. Tinham um design rebaixado, que fazia seus ocupantes sentirem
que estavam quase ao nível do piso da estrada. Eram considerados econômicos e
apesar de não serem nem confortáveis nem espaçosos quanto o menor carro
americano, eles nos proporcionaram o tão necessário transporte. Todos estávamos
muito satisfeitos porque o Senhor havia respondido nossas orações dessa maneira.

Além do meio de transporte, tínhamos conseguido com o governo francês uma


pequena quantidade de combustível, o suficiente para nos levar até a fronteira com a
Suíça, onde encontramos um coronel que se mostrou muito surpreso com o que
havíamos obtido. Havia algo na maneira humilde e confiante do Presidente Benson
que despertava nos outros a simpatia. Assim, em poucos minutos, as necessárias

Nas Asas de Fé 30
autorizações militares tinham sido preparadas para entrarmos na Zona de Ocupação
Americana na Alemanha, passando pela Zona de Ocupação Francesa.

Embora o coronel duvidasse que, em Frankfurt, o General McNarney,


comandante das forças americanas na Europa, nos concedesse autorizações para
prosseguirmos, ele nos concedeu as duas primeiras permissões para civis entrarem
nessas áreas.

Que gloriosa demonstração do poder do Senhor! Poucos dias antes, tudo


parecia humanamente impossível, mas naquele momento, tudo tinha se tornado
realidade. Nós três estávamos deslumbrados e gratos e reconhecíamos a mão de Deus
no que havíamos conseguido. O significado disso para nós era de que o Senhor
desejava que prosseguíssemos com toda a rapidez a fim de realizarmos a tremenda
tarefa de reabilitarmos física e espiritualmente os membros da Igreja na Europa.

Paris havia sido respeitada como “cidade aberta” durante a guerra, o que fez
com que a cidade não sofresse danos significativos, mas ao circularmos pelas estradas,
cada cidade e vilarejo era uma terrível evidência da violência da guerra. Em muitas
regiões, as estradas estavam em condições deploráveis, não só devido ao pesado
tráfego que suportaram durante e após a guerra, mas também pela inclemência do
inverno que chegava agora ao fim.

Durante a viagem até a Suíça, tivemos horas de agradáveis conversas e também


cantamos muito. O irmão Badger cantava a quarta voz, o Presidente Benson fazia a
melodia e eu, a harmonia. O Presidente Benson dirigiu a maior parte do tempo.

Gastamos dezesseis horas, mas como foi bom chegar em segurança à agradável
casa da missão em Basiléia, na Suíça, onde fomos alegremente recepcionados pelo
irmão Max Zimmer e sua esposa!

Nas Asas de Fé 31
CAPÍTULO 3

“Não Temais”

Max Zimmer, o Presidente interino da Missão, nos acompanhou na manhã


seguinte para assistirmos a uma conferência de distrito realizada em Karlsruhe,
Alemanha.

A destruição que vimos em Dieppe e Liege nem de longe se comparava em


fúria à desolação que encontramos em cada cidade da Alemanha. A maioria das ruas já
estava livre de grandes escombros, mas por todo lado existia a silenciosa evidência da
eficácia e da violência dos bombardeios aliados.

A cidade de Freiburg, na zona de ocupação francesa, era uma visão


terrivelmente chocante de pessoas desesperadas que vasculhavam as ruínas retorcidas
de sua outrora bela cidade. A desolação era absoluta. Estimava‐se que a vizinha cidade
de Pforzheim fora dizimada em noventa por cento. Ao chegarmos a Karsruhe, ficamos
horrorizados com a devastação que contemplamos. Não tenho palavras para descrever
com propriedade o que vimos. Somente estando no local poderia alguém testemunhar
verdadeiramente o horror e compreendê‐lo. Tudo isso, no entanto, atestava o inferno
que é a guerra!

No trajeto, passamos por grupos de crianças e pessoas mais velhas se dirigindo


à igreja. Muitos se vestiam de trapos e estavam descalços. Quando nosso carro se
aproximava, eles demonstravam medo, em alguns casos ao ponto de histeria,
enquanto muitos se escondiam onde possível, demonstrando pânico. Se
buzinássemos, podíamos ver o temor e a ansiedade estampada em seus rostos. Outros
por vezes pareciam tão alheios que ficavam paralisados, como se fossem incapazes de
reunir forças suficientes para chegar à margem da estrada.

Felizmente, as comunidades rurais e agrícolas pareciam ter sido poupadas.


Nelas tudo parecia bem organizado e os campos verdejantes se estendiam por
quilômetros. As pessoas ali pareciam respirar livremente e caminhavam com
naturalidade. Aqui e ali, entretanto, havia inúmeras amostras do que os bombardeios
fizeram às ferrovias. Onde quer que houvesse existido um grande edifício industrial,
nada mais havia, a não ser um amontoado de entulho.
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Ao chegarmos a Karlsruhe, pedimos informações sobre onde possivelmente


estaria acontecendo a conferência do distrito. Após várias tentativas, finalmente nos

Nas Asas de Fé 32
indicaram uma grande área de prédios em ruínas e nos disseram que talvez a reunião
fosse lá.

Estacionamos perto de um enorme amontoado de metal retorcido e pedaços


de concreto, subimos em várias pilhas de entulho e caminhamos entre paredes
semidestruídas, seguindo a direção geral que nos fora indicada. Diante de toda a
desolação que encontramos, parecia ser uma procura inútil. Então, ouvimos ao longe
os acordes de “Vinde, Ó Santos” cantados em alemão. Ficamos extasiados. Nunca
ouvimos um som que pudesse ser mais bem‐vindo!

Corremos em direção ao local de onde provinha a melodia e chegamos a um


edifício bem danificado, mas que ainda tinha alguns cômodos utilizáveis. Em um deles,
encontramos 260 alegres santos dos últimos dias ainda reunidos, apesar de ter já
passado do horário de encerramento. A conferência já durava mais de três horas
naquela tarde, mas eles estavam orando pela nossa chegada e esperavam que
chegássemos a tempo de nos reunir com eles.

Ao entrarmos na sala, a última estrofe desse amado hino mórmon soava em


um alegre crescendo que nos saudava. A irmã Betty Baier Dahl e a irmã dela, ambas de
Nuremberg, me reconheceram e começaram a gritar alegremente: “Irmão Babbel!
Irmão Babbel!”

Com lágrimas de gratidão escorrendo‐nos pelo rosto, dirigimo‐nos o mais


rápido que pudemos para o púlpito improvisado. Nunca vi o Presidente Benson mais
profunda e visivelmente emocionado do que naquela ocasião. Para mim em especial,
era uma cálida emoção retornar para perto de tantos amigos fiéis. Toda a congregação
ficou de pé para homenagear silenciosamente o Presidente Benson e para poder nos
ver melhor à medida que avançávamos para a frente do salão.

O prédio, que havia sido uma escola, tinha escassa luminosidade e pouca
ventilação. Não havia aquecimento e o dia estava frio. Os membros acomodaram‐se
em assentos improvisados e muitos tremiam de frio. Muitos se vestiam com trapos. O
preço que a dor, a tensão e a fome haviam cobrado deles era visível em seus rostos,
mas havia uma reverente expectativa e um silencioso anseio em sua expressão. A sala
estava superlotada, mas os membros estavam em absoluto silêncio, aguardando
ansiosamente as palavras daquele servo escolhido do Senhor. Naqueles instantes que
precederam as palavras do Presidente Benson, foi com alegria que contemplei no
púlpito e na congregação dezenas de rostos familiares, muitos dos quais emaciados,
mas todos agora com largos sorrisos. Logo o Presidente Benson se levantou e disse:

Meu coração está repleto de gratidão, irmãos e irmãs, ao contemplar seus rostos. Meu coração
se aproxima de vocês no mais puro amor de Deus. Embora eu esteja grato por esta
oportunidade, vim aqui com o coração pesaroso. Ao viajarmos por seu verdejante e frutífero
país, contemplei em cada cidade e vilarejo o temido resultado da desobediência às leis de Deus.

Nas Asas de Fé 33
Não apóio nem condeno ninguém pelo que sucedeu. Deus será o juiz e Seus julgamentos serão
justos, porque Ele vê não apenas os resultados de nossas decisões, mas julga‐nos pelo intento
de nosso coração também.

Os frutos da desobediência estão evidentes por todo lado. Ao testemunhar pela primeira vez a
terrível desolação e a incrível destruição que aqui ocorreu, não pude deixar de pensar em mim
e na minha família, caso estivéssemos em seu lugar. Só de pensar nas terríveis provações que
teríamos de enfrentar se tivéssemos vivido nesta terra nos últimos anos, comecei a
compreender que experiência amedrontadora e desoladora que vocês passaram. Então veio‐
me à mente o inestimável valor de nossa tradição do evangelho restaurado de Jesus Cristo que
é, afinal de contas, não só o mais precioso bem que possuímos, mas também a única coisa de
real valor nesta vida.

Contemplando seus olhos marejados de lágrimas e vendo muitos de vocês vestidos em trapos e
à beira da morte e, apesar de tudo, com um sorriso nos lábios feridos e a luz do amor e da
compreensão brilhando em seu semblante, sei que vocês têm sido fiéis a seus convênios, que
têm se mantido limpos, que não permitiram que o ódio e a amargura tomassem conta de seu
coração. Vocês – muitos de vocês – estão entre as maiores testemunhas do Senhor dos frutos
do evangelho de Jesus Cristo.

Nenhuma nação pode escapar dos horrores da guerra a menos que seu povo viva de acordo
com a palavra de Deus… Sempre fomos e continuaremos sendo contra a guerra… Cristo disse
que nenhum homem pode exercer injusto domínio sobre seus irmãos. A violação dessa
profunda verdade sempre trará consigo uma colheita de guerra e destruição… No entanto,
fomos também admoestados a obedecermos às autoridades que nos presidem e, quase sem
exceção, vocês foram leais a seu país, ainda que sentissem repulsa pelos princípios
manifestados pelo seu governo, que estavam em total desarmonia com o evangelho de Jesus
Cristo.

Tínhamos algum conhecimento de suas terríveis dificuldades. Nosso coração sofria com vocês
dentro do puro amor de Cristo, que é mais forte que a morte. Nós os amamos! Somos gratos
por sua devoção, por sua fé e lealdade à causa do Mestre… Recebemos registros suficientes
para nos mostrar que vocês fizeram um trabalho maravilhoso.

Existe um idioma no evangelho de Jesus Cristo que pode ser entendido mesmo sem falarmos a
mesma língua. Sinto esse mesmo espírito aqui hoje.

Espero que sejamos capazes de trazer alívio dentro dos próximos dias para o sofrimento que
existe aqui, especialmente para aqueles que estão refugiados e sem abrigo. Estamos aqui com
a aprovação do Presidente dos Estados Unidos. Nosso pessoal militar, do governo e do
Departamento de Estado têm oferecido a maior cooperação possível e estamos muito
animados sabendo que, com a ajuda de Deus, seremos capazes de executar os Seus propósitos
divinos relacionados a vocês e ao seu bem‐estar temporal e eterno.

Somos todos irmãos e irmãs. Somos todos membros da Igreja de Jesus Cristo, o reino de Deus
na terra. Aceitamos de todo o coração a declaração do Mestre de que somos guardadores de
nossos irmãos.

Se nos permitirem executar nosso programa conforme ele foi elaborado, por inspiração do
Todo‐Poderoso, seremos capazes de trazer‐lhes ajuda material e espiritual verdadeira. Esse
plano não foi elaborado pelo homem; ele é o plano do Senhor. É o único plano que vai

Nas Asas de Fé 34
funcionar. Disso presto meu humilde testemunho como uma das testemunhas especiais do
Senhor

Todo homem e mulher que tem um testemunho dessa obra não terá medo do futuro. Haja o
que houver, pessoas assim olharão para frente e para cima. Precisamos do evangelho de Jesus
Cristo neste mundo. Nós o possuímos e, por nosso intermédio, podemos dá‐lo aos outros para
que sejam abençoados.

Sejam unos de coração. Orem sempre. Amem‐se uns aos outros. Marido, ame sua esposa.
Filhos, amem seus pais. Lembrem‐se de Deus em tudo o que fizerem busquem conselho e
orientação em todos os seus empreendimentos.

Que sejam abençoados com líderes que creiam em Jesus Cristo e que estejam desejosos de
aplicar os princípios de conduta tanto na vida pública, administrando o governo, quanto na vida
particular. Oro para que sua fé e suas orações sejam dirigidas ao Pai, para que Ele abençoe
esses líderes com a sabedoria, a paciência e a coragem necessárias para restaurar sua nação,
para que ela seja uma bênção para todos os que amam a liberdade. Acima de tudo, oro para
que continue aberto o caminho para a pregação do evangelho entre seus conterrâneos. Tenho
certeza de que milhares aceitarão esta alegre mensagem e a viverão, assim como vocês fazem.

Sei, assim como sei que vivo, que Jesus é o Cristo, o Redentor da humanidade, o Salvador do
mundo. Sei que Deus, o Pai Eterno, vive, que Ele fala a seus profetas hoje e que todos somos
literalmente seus filhos e filhas espirituais. Sei que poderemos nos tornar como Ele
plenamente, ao longo das eternidades, se aceitarmos e vivermos o evangelho para
merecermos e vivermos com Ele no reino celestial. Tenho visto esse poder; tenho‐o sentido em
minha vida. Desde que me tornei membro do Conselho dos Doze Apóstolos, tenho visto esse
poder se manifestar com mais força do que em qualquer época de minha vida.

Deus está ao leme. Ele nos dirige. Ele não permitirá que Sua Igreja e Seu reino fracassem. O
Senhor nos assegurou isso desde os céus. Esta é a Sua obra. Que Ele nos ajude a amarmos seus
ensinamentos e a vivê‐los… Abençoo‐os para que sempre amem a verdade. E prometo‐lhes,
como servo do Senhor que, se forem fiéis e verdadeiros, nenhuma bênção que mereçam lhes
será negada, mesmo que no momento não consigam desfrutar plenamente as bênçãos que
Seus filhos poderão receber nos templos sagrados. Mas asseguro‐lhes que Ele colocará essas
bênçãos a sua disposição, a Seu modo, pois Ele conhece seus desejos justos e vocês ainda terão
a oportunidade de expressá‐los plenamente.

A mensagem do Presidente Benson tocou cada coração. O irmão Max Zimmer


foi o intérprete e o fez com brilhantismo. Fiquei tão embevecido com o que estava
sendo dito e em observar a fisionomia da congregação, que minhas anotações ficaram
incompletas, mas o Espírito presente na ocasião deixou uma marca indelével em
minha alma. Raras vezes senti com tanta força a presença do Poder Divino como
naquela ocasião.
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Após a reunião, o Presidente Benson postou‐se à saída da sala e cumprimentou


pessoalmente cada pessoa que ali estivera. Expressões de fé e devoção iluminavam
suas fisionomias por sentirem o calor e o amor que ele tinha por eles. Algumas pessoas

Nas Asas de Fé 35
voltaram a entrar na fila e outras fizeram isso três vezes para poderem apertar a mão
dele de novo e serem fortalecidos por seu radiante espírito de amor e compaixão.

Enquanto isso acontecia, o Presidente Zimmer mostrou‐me uma irmã tímida e


magra que estava com sacos de linhagem amarrados aos pés e pernas, em vez de
sapatos. Mesmo esses sacos já estavam em frangalhos, assim como estavam suas
roupas, onde não estavam remendadas. Disseram‐me que sua face cinza‐arroxeada, os
olhos vermelhos e inchados e as articulações protuberantes eram sinais de avançado
estado de desnutrição. O Presidente Zimmer falou‐me então das dificuldades que ela
enfrentou e de seu incrível testemunho.

Essa boa irmã era proveniente da Prússia Oriental. Durante os últimos dias das
terríveis batalhas que se travaram naquela região, o marido dela fora morto. Ela ficou
com quatro filhos pequenos para criar, sendo que o mais novo era um bebê de colo.
Devido aos acordos feitos entre as nações que ocuparam a Alemanha, ela ficou entre
os 11 milhões de alemães que tiveram de sair da terra natal deixando para trás tudo o
que possuíam a fim de procurarem um novo lar na Alemanha Ocidental. Permitiram‐
lhe levar apenas o mínimo, tais como alguma roupa de cama, ou seja, tudo o que
coubesse em um carrinho de madeira – cerca de 15 quilos, no total – que ela puxou ao
longo da desolação e devastação da guerra. Ela carregava nos braços o bebê, enquanto
os filhos pequenos faziam o possível para acompanhá‐la ao longo de 1.600
quilômetros a pé.

Ela começou a jornada no final do verão. Sem dinheiro ou bens, ela se viu
forçada a procurar algo para subsistirem nos campos e florestas pelo caminho.
Enfrentou perigos constantes representados por refugiados em pânico e por
desertores que saqueavam tudo.

Logo começou a nevar e a temperatura caiu para menos de 20 graus negativos.


Seus filhos morreram, um após o outro, vítimas do frio, da inanição ou de ambos. Ela
os enterrou em covas rasas que cavou com uma colher de mesa. Quase no final da
jornada, seu último filho morreu em seus braços. Como a colher se perdera, ela cavou,
com as próprias mãos, uma sepultura para ele na terra congelada.

Ao relatar essas e outras dificuldades em uma reunião de testemunhos, ela


explicou que naquele momento, sua tristeza se tornou insuportável. Ela então
ajoelhou‐se na neve ao lado da sepultura de seu último filho, tendo já perdido toda a
família. Ela tinha perdido também todos os seus bens terrenos, seu lar e até mesmo
sua pátria e se encontrava agora entre pessoas cujas condições não eram nada
melhores que as dela.

Naquele momento de profunda tristeza e perplexidade, ela sentiu que seu


coração não aguentaria mais. Em desespero, pensou em como poderia dar fim à

Nas Asas de Fé 36
própria vida, como já haviam feito tantos de seus compatriotas. Como seria fácil saltar
de uma ponte das proximidades ou pular na frente de um trem!

Ela então testificou que quando esses pensamentos tomaram conta dela, algo
dentro da alma lhe disse: “Ajoelhe‐se e ore”. Então ela explicou com alegria como orou
com um fervor que nunca experimentara antes.

Ao terminar, prestou um glorioso testemunho, declarando que entre todas as


pessoas que sofriam em sua triste pátria, ela era uma das mais felizes, porque sabia
que Deus vive, que Jesus é o Cristo e que, se ela permanecesse fiel e verdadeira até o
fim, seria salva no reino celestial de Deus.

Quando o impacto da história dessa boa irmã penetrou minha alma, senti
vontade de gritar contra minha ingratidão. “Foi pela graça de Deus”, pensei, “pois essa
poderia ter sido a minha história se meus pais não tivessem aceitado o evangelho
quando jovens e enfrentado as dificuldades que passaram ao emigrar para os Estados
Unidos”. Nunca senti maior gratidão por meus maravilhosos pais do que naquele
momento.
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O irmão Badger conseguiu nos levar para tomarmos o desjejum com alguns
oficiais na manhã seguinte. Foi uma refeição simples, mas muito nutritiva. Não pude
deixar de notar quantas refeições foram comidas apenas pela metade. Ver aquele
alimento ser desperdiçado em meio a uma fome tão abjeta parecia‐me algo próximo
do imperdoável. Muitos nas proximidades teriam se regozijado se recebessem uma
parte de tudo o que estava sendo jogado fora a cada dia naquela unidade militar.

Quando voltamos à Suíça, fiquei surpreso com o contraste em relação ao que


acabáramos de ver e viver. Esta era uma terra de limpeza e beleza. Onde quer que
fôssemos, tudo era imaculadamente limpo. As colinas verdejantes, os belos vales, os
transparentes riachos que nasciam nas montanhas, pitorescas cascatas e as
montanhas dos Alpes cobertas de neve – tudo se mesclava para fazer da Suíça um
verdadeiro paraíso.

Basileia, sede da missão, é uma charmosa cidade às margens do rio Reno,


situada bem na fronteira com a França e a Alemanha. É uma cidade bem antiga. Os
exércitos romanos já se referiam a ela em 374 d.C como Campo Basileia. O rio Reno é
navegável desde sua foz até Basileia, o que oferece à Suíça uma saída direta para o
mar. Seu povo tem orgulho de ser industrioso e faz questão de indicar aos americanos
que um dos cidadãos ali nascidos foi o General John August Sutter, que ficou famoso
na Califórnia.

Antes de voltarmos à Alemanha, visitamos Berna, a capital da Suíça e fomos até


Genebra, com o objetivo, em ambas as cidades, de reunirmos suprimentos e gêneros

Nas Asas de Fé 37
para atender às extremas necessidades dos membros da Igreja a fim de serem usados
até que chegassem nossos próprios recursos em quantidade suficiente. Conseguimos
autorização para enviar imediatamente um vagão de alimentos para Berlim com o
objetivo de suprir às necessidades extremas dos membros refugiados que ali
chegavam. A Cruz Vermelha Internacional e outros organismos prometeram nos ajudar
dentro do possível, diante das restrições governamentais e militares existentes.

Quando começamos a viagem de retorno à Alemanha, nosso carro estava


abarrotado de todo o alimento que nele cabia, deixando espaço apenas para nós
quatro, mesmo assim viajando como sardinhas em lata. Felizmente, fomos liberados
pelos fiscais da alfândega, tanto da Suíça quanto da França, sem que confiscassem
qualquer item.

Prevendo nossa chegada a Freiburg, os membros da Igreja se reuniram na casa


do presidente do ramo. Ficaram exultantes em nos ver e conversar conosco, embora
nossa estada tivesse de ser rápida. Nessa visita, demos uma bênção a um irmão
esquálido que acabara de chegar após ter passado três anos como prisioneiro de
guerra entre os franceses. Ele estava à beira de um colapso físico total em virtude da
inanição e sentia que somente o poder de Deus poderia preservá‐lo e restaurar‐lhe a
saúde, uma vez que a maioria das pessoas na zona de ocupação francesa podia obter
no máximo 350 calorias de alimento por dia. Ao término da bênção pronunciada pelo
Presidente Benson, todos expressamos nossa determinação de fazer o máximo para
encontrar meios de trazer os suprimentos de bem‐estar para aquelas pessoas o mais
brevemente possível.

No trajeto, passamos ao longo da Linha Siegfried. Algumas das casamatas de


concreto reforçado estavam praticamente demolidas, enquanto outras estavam
divididas ao meio. Nas proximidades de Heidelberg havia um grande depósito de lixo
no qual os caminhões do exército despejavam o entulho. Paramos ali, surpresos de ver
um grande número de pessoas – desde crianças pequenas até pessoas idosas –
vasculhando o lixo à busca do que pudessem encontrar de útil, fosse alimento ou
roupas. Era uma visão aterradora. O Presidente Zimmer tinha os bolsos cheios de balas
suíças e quando ele começou a distribuí‐las a algumas das poucas crianças que
estavam próximas do carro, nos vimos logo subjugados por uma multidão que se
aproximava de todos os lados. Para nossa segurança, tivemos que sair dali
rapidamente.

Quanto mais nos aproximávamos de Frankfurt, mais evidente se tornava a


intensidade dos bombardeios que ali tinham ocorrido. Antes do final da viagem,
estávamos chocados e impressionados com o que víramos e vivenciáramos. Frankfurt,
embora não estivesse na lista das cidades alemãs que mais sofreram com os
bombardeios, estava, apesar disso, em ruínas. A cidade tinha sido devastada em cerca
de sessenta ou setenta porcento. Todas as pontes tinham sido bombardeadas ou

Nas Asas de Fé 38
dinamitadas. Algumas estavam remendadas com seções feitas de madeira para
permitir o fluxo de tráfego, enquanto outras não permitiam qualquer conserto
possível. A torre da velha catedral ainda estava de pé, mas tudo que era inflamável
tinha sido devorado pelas chamas. A casa da ópera e o belo centro cívico estavam em
ruínas. Zeilstrasse, que havia sido a “Quinta Avenida” de Frankfurt, não era agora mais
que uma rua fantasmagórica, de paredes destruídas e metal retorcido.

A casa da missão ainda estava de pé e tinha condições razoáveis de utilização.


Tinha sofrido com as bombas que caíram por perto, mas havia milagrosamente
escapado de uma bomba “arrasa‐quarteirão” que caíra no jardim, mas não explodira.
O mero impacto dessa bomba ao penetrar o solo tinha rachado algumas das paredes.
Se essa bomba tivesse explodido, todas as pessoas que estavam na casa da missão e
todos os registros da missão teriam sido varridos do mapa.

O dano mais sério sofrido pela casa da missão foi resultado da demolição da
ponte Adolf Hitler, que ficava do outro lado da rua, diretamente em frente. Disseram‐
nos que os alemães em retirada tiveram de fazer oito detonações antes de torná‐la
inutilizável.
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Os militares SUD, prevendo nossa chegada, já tinham tomado providências e


obtiveram passes militares para o Restaurante dos Oficiais e para quartos no Carlton
Hotel, que tinha sido parcialmente restaurado pelo Exército para hospedar militares e
funcionários do governo em trânsito.

Depois de um desjejum de boas‐vindas, dirigimo‐nos ao quartel‐general da


USFET (United States Forces, European Theater – Forças Armadas dos Estados Unidos
– Teatro Europeu), localizado no belo edifício I. G Farben, em Frankfurt. Esse edifício,
segundo nos disseram, tinha sido poupado nos bombardeiros pelos pilotos aliados
prevendo que ele seria usado como quartel‐general de nossas forças armadas.

Dirigimo‐nos ao escritório do General de Exército, Joseph T. McNarney,


comandante de todas as forças norte‐americanas na Europa. Nossa primeira
solicitação à comissão que nos atendeu foi descartada de forma burocrática e
imediata. O ajudante de ordens do general, um major muito metódico e formal,
avisou‐nos de que seria impossível falarmos com seu comandante nos três dias
seguintes, pelo menos.

Um pouco decepcionados, voltamos ao carro e o Presidente Benson sugeriu


que orássemos com fé em súplica ao Senhor. Humildemente pedimos a Ele que
atentasse para nossa situação e abrisse um caminho para nós.

Quando voltamos ao gabinete do General McNarney, alguns minutos mais


tarde, fomos recebidos por outro oficial que aparentemente tinha substituído o major.

Nas Asas de Fé 39
Sem mencionar nosso contato anterior com o outro oficial, o Presidente Benson
solicitou uma audiência com o general. O novo ajudante de ordens concordou em
entregar ao general uma carta de apresentação do Senador Elbert D. Thomas,
Presidente do poderoso Comitê de Assuntos Militares do Senado. Quinze minutos mais
tarde, fomos levados à sala do general para falarmos com ele.

Ao entrarmos, ficou evidente que o general considerava essa reunião uma


mera formalidade, a qual ele estava ansioso por concluir para voltar a seus assuntos
mais prementes. O Presidente Benson apertou a mão do general, olhou‐o diretamente
nos olhos e falou com solenidade. Aquele era o momento decisivo. Quase todo o
sucesso posterior de nossa missão dependia do resultado daquela entrevista.

A princípio, o general estava visivelmente aborrecido. Quando o Presidente


Benson lhe falou sobre o itinerário que estávamos propondo, cruzando as quatro
zonas de ocupação da Alemanha e da Áustria e ainda uma passagem pela
Checoslováquia, o general ficou surpreso com a audácia de solicitarmos tal coisa
diante de tantas condições desfavoráveis e restritivas. O Presidente Benson manteve o
olhar firme enquanto continuava a conversa e falava com tal sentimento e convicção,
que os olhos do general encheram‐se de lágrimas. Sua fria postura militar deu lugar a
uma expressão espirituosa e afetuosa: “Sr. Benson, há algo em você que me agrada.
Quero ajudá‐lo em tudo o que estiver ao meu alcance!”

Imediatamente me lembrei da promessa feita ao Presidente Benson em sua


carta‐chamado. A Primeira Presidência havia escrito:

“Sua bondosa influência será sentida por todos que encontrar… e eles sentirão
que o poder e o espírito que o acompanham não são coisas do homem.”

Depois de o Presidente Benson explicar‐lhe a natureza da nossa missão e a


organização da Igreja e do seu programa de bem‐estar, o General McNarney
exclamou: “Senhor Benson, nunca ouvi falar de uma igreja que tivesse uma visão como
essa!”

O General então nos alertou que, naquele momento, as normas exigiam que
todos os suprimentos destinados à subsistência da população fossem gerenciados e
distribuídos pelos canais militares. No entanto, ele se mostrou bastante surpreso com
a nossa missão e a nossa capacidade de fazer uma distribuição equitativa. Por fim,
arriscou‐se a dizer que talvez pudessem modificar as normas em breve para tornar
possível nosso trabalho. Enquanto essa mudança não se materializava, ele nos sugeriu
que começássemos a estocar os suprimentos.

Quando o Presidente Benson informou a ele que já tínhamos noventa grandes


armazéns abarrotados de alimentos e roupas prontos para serem despachados em
vinte e quatro horas, foi notável o assombro do general. Por isso, ele concordou em

Nas Asas de Fé 40
nos dar autorização por escrito para conduzirmos a distribuição por nossos próprios
canais. Em retribuição, concordamos em doar uma parte substancial do alimento
estocado para um programa de alimentação infantil já em andamento.

Tendo chegado a esse ponto, o General McNarney parecia disposto a favorecer


qualquer outra solicitação nossa. Ele nos lembrou que seríamos os primeiros civis
norte‐americanos a viajar de carro para Berlim desde que a ocupação fora iniciada e
que os militares não podiam responder por nossa segurança ao passarmos pela zona
russa. Explicou‐nos que até os militares já haviam inexplicavelmente perdido
equipamentos e soldados na estrada para a capital alemã recentemente.

O Presidente Benson então explicou que não temíamos por nossa própria
segurança e que não esperávamos que nos fosse oferecida qualquer garantia. O
general pareceu aliviado e concordou em nos conceder os salvo‐condutos militares
que nos garantiriam a utilização de instalações militares em nossas viagens. Ditou
também uma carta de apresentação dirigida ao General Lucius Clay, encarregado do
Escritório do Governo Militar dos Estados Unidos (OMGUS), em Berlim. Esse
documento mostrou‐se de grande valia para conseguirmos as audiências adequadas
ao chegarmos àquela cidade.
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Enquanto almoçávamos na cantina dos oficiais em Frankfurt, um inspirado


conjunto de cordas tocava doces melodias. O líder do conjunto dirigiu‐se ao Presidente
Benson e perguntou‐lhe se tinha alguma música favorita que gostaria de ouvir. Ele
respondeu que gostaria que tocassem “When It’s Springtime in the Rockies” (Quando
É Primavera nas Montanhas Rochosas), mas o jovem disse que não conhecia a canção.
O Presidente Benson então cantarolou a melodia e o líder do grupo fez o mesmo para
seus talentosos companheiros. Logo tocaram a música inteira quase sem errar.
Ficamos muito alegres com essa apresentação musical. Mais tarde, soubemos que
aqueles excelentes músicos tocavam a noite inteira em troca de uma refeição e de
quaisquer presentes extras que os ouvintes lhes dessem.

Mais tarde, fomos até Langen, próximo a Frankfurt, para visitar o Sr. P.
Moderegger, cuja esposa era membro da Igreja. Ele era o proprietário de uma grande
sementeira de frutas e vegetais e havia permitido que alguns dos santos refugiados do
Leste ficassem alojados em suas terras, onde muitos encontraram trabalho.
Examinamos com ele a situação e elaboramos um plano pelo qual outras vinte e cinco
famílias pudessem ter a mesma oportunidade. Já havia mais de trinta membros da
Igreja vivendo lá naquela ocasião.

O Presidente Benson mostrou‐se preocupado com o estado dos registros da


missão. As condições durante a guerra haviam tornado virtualmente impossível
manter um registro adequado dos membros e dos acontecimentos, embora houvesse

Nas Asas de Fé 41
um bom livro‐caixa no qual as receitas e despesas tinham sido anotadas. Transformar
aquela quantidade de informações desorganizadas em sete anos de relatórios precisos
e aceitáveis mostrou‐se uma tarefa medonha, especialmente porque encontramos
situações similares em todas as missões da Europa. Em cada uma delas foi preciso
tomar as mesmas providências. Apesar da tarefa hercúlea, em menos de um ano toda
a tarefa havia sido bem‐sucedida.

Um dos problemas mais difíceis que enfrentamos foi o de conseguir lugar para
os muitos membros da Igreja ficar, pois muitos estavam fugindo do território polonês
e vinham para Berlim. Muitos chegavam sem roupas ou alimentação adequada e
outros caminhavam descalços pela neve. Alguns desses refugiados estavam morrendo,
apesar dos esforços feitos para ajudá‐los. Dois projetos temporários de bem‐estar
estavam sendo supervisionados em Berlim pela presidência da missão, mas o grande
número de recém‐chegados tornou os recursos disponíveis totalmente inadequados.

Para amenizar a situação, enquanto estava na Suíça, o Presidente Benson


adquiriu algumas barracas militares, que foram rapidamente enviadas em caminhões
militares para as áreas onde eram mais necessárias. Na ocasião, tais providências
pareciam absolutamente inacreditáveis, não só na perspectiva dos santos, mas
também na dos próprios militares, que conheciam as restrições e a escassez
existentes. Isso era mais uma evidência de como o Senhor preparou o caminho diante
de nós para que Seus propósitos fossem alcançados.

Na semana anterior, uma reunião batismal tinha sido realizada em Bielefeld, na


qual onze pessoas foram batizadas na Igreja. Foi necessário fazer um grande buraco no
gelo que cobria o rio a fim de tornar possível a realização dos batismos. Apesar de sua
condição física debilitada, nenhum dos novos membros sofreu qualquer consequência
negativa. Informaram‐nos também que no dia anterior, onze outros batismos tinham
sido realizados in Karlsruhe.

Naquela ocasião, a ração diária de alimentos na zona de ocupação francesa era


de 400 a 500 calorias. Um grupo de santos que vivia lá não tinha conseguido por várias
semanas obter pão para o sacramento. Mas estavam tão ansiosos por participar do
sacramento que compraram cascas de batata que lhes custaram cinquenta dólares
(um valor ainda muito mais significativo naquela época) a fim de usá‐las como
emblemas em lugar do pão. O Presidente Benson, ao saber daquela situação,
mencionou que o Senhor provavelmente ficou feliz em aceitar a oferta deles, porque
Ele já havia revelado à Igreja que não importava o que era usado como emblemas,
desde que fossem abençoados e partilhados para a renovação dos convênios sagrados.
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Durante a guerra, alguns de nossos santos perderam a vida, enquanto outros


ficaram com cicatrizes ou aleijados para o resto da vida. A secretária de nossa missão

Nas Asas de Fé 42
na Alemanha, a irmã Ilse Bruenger Foerster, foi uma dessas vítimas. Ela teve de
suportar a violência das brutais investigações da Gestapo e impiedosas surras. Além
disso, muitas vezes teve de levar nos ombros a responsabilidade dos principais
negócios diários da missão.

Foram‐lhes imputadas acusações de que ela estaria enviando recursos da


missão para a América. Após duas semanas de impiedosos interrogatórios, surras e
vigilância constante, período em que os registros da missão foram confiscados e alguns
destruídos, ela foi liberada sob a ameaça de que sua vida e a de seus familiares
estariam ameaçadas caso ela revelasse a natureza dos interrogatórios. Durante essa
época terrível, ela esperava seu primeiro filho, mas apesar de tais ameaças e do
terrível sofrimento que lhe foi imposto, ela conseguiu refutar todas as falsas
acusações. Seus algozes surpreenderam‐se com a grande fé e devoção que ela tinha
pela Igreja. Quando perguntada como fora capaz de suportar tais dificuldades, ela
respondeu apenas que tinha sempre colocado completa confiança no Senhor e que Ele
a havia protegido e amparado em todas as circunstâncias.
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Alguns dias depois de chegarmos a Frankfurt, três alemães, ex‐prisioneiros de


guerra que tinham acabado de ser libertados de um campo de prisioneiros próximo a
Ogden, Utah, chegaram à agência local de empregos em que a irmã Foerster
trabalhava como tradutora. Um deles era médico, o outro dentista e o terceiro
engenheiro. Enquanto preenchiam seus formulários de pedido de emprego, eles
distribuíram folhetos e livros aos funcionários. Em seguida, falaram ao grupo, dizendo
que tinham recebido aquela literatura enquanto estavam na prisão na América e que
sentiam que tinham finalmente encontrado a verdade.

Explicaram ainda que não tinham apenas estudado e aprendido aqueles


ensinamentos, mas que também haviam visto os maravilhosos resultados do
evangelho na vida dos membros da Igreja entre os quais tinham vivido como
prisioneiros. Acrescentaram que embora não fossem ainda membros daquela Igreja,
sentiam‐se na obrigação de falar aos outros sobre a enorme felicidade que entrara em
sua vida. É claro que os folhetos eram da Igreja e os livros eram exemplares do Livro de
Mórmon!

Enquanto eu trabalhava com os registros da missão, perguntei sobre a enorme


bomba que caíra no jardim da casa da missão, sem explodir. Os seguintes detalhes
foram então relatados:

O pessoal que trabalhava na casa ouvira os bombardeiros se aproximando,


quarteirão por quarteirão, despejando as bombas sobre os quarteirões próximos e
pensaram que aquele era o fim. Apenas sísteres estavam na casa naquele dia e todas
correram para o porão, onde se ajoelharam em um círculo de oração, rogando ao

Nas Asas de Fé 43
Senhor que poupasse sua vida, porém imaginando que a qualquer momento poderiam
morrer. Ouviram a terrível explosão do quarteirão próximo e depois ouviram e
sentiram o terrível impacto da bomba arrasa‐quarteirão que caíu no jardim, mas a
explosão não ocorreu. A força do impacto foi tão grande que as janelas foram
arrancadas e algumas paredes racharam. A bomba seguinte caiu com precisão mortal
no quarteirão seguinte e o pulverizou. Ao final do bombardeio, a maioria das casas e
edifícios daquele lado do rio tinham sido arrasadas e incendiadas. Aquelas sísteres
haviam escapado milagrosamente para poderem contar sua história.

Naquela época, veio‐me à mente o relato da irmã Edith Longbone, da Missão


Britânica, sobre uma experiência similar alguns dias antes. Ela morava próximo aos
brancos rochedos de Dover durante a guerra, área que foi castigada por contínuos
bombardeios, tendo sido atingida até pelas terríveis bombas V‐2. Durante aqueles dias
de horror, ela convidara muitos de seus vizinhos para ficarem em sua casa, em vez de
se retirarem para os abrigos antiaéreos. Ela disse: “Meu lar foi dedicado por um servo
do Senhor e nenhum mal vai lhe suceder.” Sua fé foi recompensada e ela e seus
agradecidos vizinhos sobreviveram.
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Os santos alemães, naquela época, estavam muito espalhados, o que tornou


difícil a frequência à Igreja, mas mesmo assim a fidelidade deles era notável. Quase
todas as capelas tinham sido destruídas e muitos ramos estavam se reunindo nos lares
dos poucos membros que ainda podiam dizer que tinham uma casa. Cerca de oitenta e
cinco por cento dos membros alemães tiveram suas casas parcial ou totalmente
destruídas pelos bombardeios.

Quando o Presidente Benson delineou as providências que haviam sido


tomadas e o que estava planejado para ser feito à frente, a chama da fé e da
perseverança foi visivelmente reavivada na alma dos membros.

Ficamos sabendo que o ramo de Pforzheim tinha sido virtualmente varrido do


mapa. Durante a guerra, dissenções significativas apareceram entre os membros e
chegaram a tal ponto que foi necessário cancelar as reuniões por completo. Por ser um
centro produtor de jóias e não se tratar portanto de um alvo militar primário, a
população dessa cidade se sentia razoavelmente segura. Apesar disso, todas as vezes
que os aviões sobrevoavam a cidade a caminho de alvos militares no sul e no leste, a
população buscava proteção nos abrigos antiaéreos.

Depois de um sobrevoo de uma esquadrilha e de ter soado o sinal de fim de


alerta, as pessoas tinham retornado à rotina diária. Em seguida, sem qualquer aviso, as
bombas começaram a cair. Aparentemente a força britânica de ataque tinha
encontrado forte resistência de caças alemães e não tinha conseguido bombardear os
alvos pretendidos. A fim de tornar os bombardeiros mais leves para terem uma chance

Nas Asas de Fé 44
de chegar com segurança ao litoral britânico, as tripulações descarregaram todas as
bombas sobre a cidade desprevenida. Noventa e cinco por cento da cidade
desapareceu. As informações que tínhamos era de que apenas uma família de
membros da Igreja tinha escapado ao massacre.

Ficamos convencidos de que onde havia existido unidade e união, a maioria das
pessoas sofreu menos baixas. Foi‐nos relatado o exemplo de um ramo que continuara
a realizar as reuniões apesar dos frequentes ataques aéreos. A única vez em que as
reuniões terminaram mais cedo foi no dia em que os soldados americanos chegaram.
Entre os militares americanos sempre havia alguns membros da Igreja e esses
ajudavam em tudo o que podiam. Onde quer que fôssemos, a população demonstrava
a maior estima pelos soldados SUD.

Ainda na Alemanha, o Presidente Benson instruiu nossos líderes para que


compilassem os nomes e endereços de todos os líderes e professores da missão, dos
distritos e dos ramos e apresentassem essas listas aos tribunais de desnazistização, o
que foi feito. Em todos os processos que se seguiram, nem um só dos nossos membros
foi considerado culpado de crimes passíveis de punição — um recorde notável!

Antes de prosseguir em direção a Berlim, o Presidente Benson falou a um


grande grupo de santos no domingo, deixando‐lhes na ocasião o seguinte desafio:

“Enquanto vocês permanecerem verdadeiros e fiéis e viverem o evangelho, nunca perderão


seu testemunho da divindade desta obra e da transcendente missão de Jesus Cristo. Todas as
experiências pelas quais passarem na vida ser‐lhes‐ão doces de acordo com o tempo do Senhor
e vocês ainda serão salvos no reino celestial de Deus, o que significa serem herdeiros do maior
de todos os dons de Deus concedido ao homem.”

Foi animador ver e sentir a imensa preocupação que os militares tinham por
nosso bem‐estar. Eles sabiam muito bem das tarefas quase impossíveis que nos
esperavam, mas em virtude das bênçãos que havíamos recebido, tínhamos certeza de
que realizaríamos tudo o que o Senhor quisesse. Quanto a nossa segurança, eu tinha
certeza de que nunca seríamos feridos; consequentemente, a preocupação e o medo
eram estranhos a mim. Senti às vezes uma curiosidade natural quanto à maneira pela
qual nossa missão se cumpriria.
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A caminho de Berlim, pernoitamos em Hanover para nos encontrarmos com os


presidentes do distrito e do ramo que ficavam na zona britânica de ocupação.
Verificamos que essa cidade estava em condições ainda mais precárias que Frankfurt.
Durante a reunião, ficamos sabendo o quanto nossos membros sofreram por causa da
guerra. Nos reunimos na casa do irmão Pohlsander, presidente do distrito. A maioria
dos presentes estava tão magra, que as roupas ficavam largas nos ombros. Não havia
ninguém ali que não tivesse tido de apertar o cinto ao máximo para segurar as roupas.

Nas Asas de Fé 45
Fomos informados de que em alguns dos ramos maiores a destruição tinha sido
tão completa que nem uma só Bíblia havia restado ao final dos conflitos. Eles tiveram
de confiar completamente na orientação divina, o que lhes permitiu continuar firmes
na doutrina e na fé.

Foram tomadas providências apressadas para realizarmos uma reunião


vespertina com os membros na sala de uma escola parcialmente destruída. Não havia
eletricidade. Quando chegamos já ao final da tarde, a sala estava totalmente lotada. O
mais surpreendente para mim foi ver cerca de uma dúzia de crianças em pé sobre as
cadeiras em fileiras, no centro. Ao nos dirigirmos para a frente da sala, as crianças
espalharam uma grande quantidade de belas flores no caminho, criando assim um
tapete vivo de beleza indescritível. Que maneira gloriosa de saudar um Apóstolo do
Senhor! O Presidente Benson e nós ficamos comovidos às lágrimas pela profunda
gratidão por aquela pura demonstração de amor. Foi com dificuldade que
conseguimos suprimir a cálida emoção o suficiente para falar e participar da reunião.

Todas as vidraças haviam sido estilhaçadas e tinham sido substituídas por


papelão. As janelas estavam totalmente abertas para permitir a entrada da pouca
luminosidade que restava do dia. Mal tínhamos começado a reunião, quando irrompeu
uma forte chuva, seguida de ventos. Isso fez com que as janelas tivessem de ser
fechadas e a reunião continuou em escuridão quase completa. Apesar das condições, o
coro formado às pressas, do qual fui convidado a participar, cantou fervorosamente,
embora quase não enxergássemos o regente.

O primeiro hino foi “Graças Damos, Ó Deus, por Um Profeta”. E como foi belo!
Depois das estimulantes palavras do Presidente Benson (estava escuro demais para
que eu fizesse anotações), o coro cantou “Ó, Vem Supremo Rei”. Creio que os próprios
céus se comoveram com o ânimo do coro.

Nas Asas de Fé 46
CAPÍTULO 4

Dificuldades Inomináveis

Várias histórias sobre os “terríveis” russos nos tinham sido contadas, mas
quando chegamos ao posto de controle da fronteira da zona de ocupação russa em
Helmstedt, tivemos a agradável surpresa de receber permissão para prosseguir sem
grande dificuldade. Os guardas mostraram‐se surpresos de ver a nós e nosso carro de
estranha aparência. Tínhamos pintado as letras US6 em cada para‐lama antes de
saírmos de Hanover.Talvez eles tenham ficado se perguntando porque não havíamos
escrito USSR7! Não conseguíamos conversar com eles, uma vez que não falavam inglês,
alemão nem francês, mas depois de examinarem nossas credenciais e documentos
militares que nos haviam sido dados em Frankfurt, mostraram‐se satisfeitos. Disseram‐
nos “dobra”, ou algo parecido, e fizeram sinal para prosseguirmos.

Exceto por pequenos desvios, a viagem até os postos de controle russo e


americano nos arredores de Berlim foi muito agradável.

Nós quatro, o Presidente Benson, eu, o Presidente Zimmer e o Capelão


Badger, viajando juntos pela primeira vez, formamos um quarteto. Cantamos
todas as canções que conhecíamos a fim de passar o tempo de forma mais rápida
e agradável. O Presidente Benson cantava a melodia, o Presidente Zimmer fazia o
tenor, o irmão Badger cantava o baixo e eu completava como tenor ou barítono,
de acordo com a necessidade. Denominamos nosso grupo de “K‐Ration Quartet”8,
pois comemos essas refeições militares durante toda a viagem. Sempre nos
perguntavam se gostávamos dessa dieta obrigatória e o Presidente Benson sempre
dizia que ela era “nutritiva, mas monótona!”

Os militares americanos que estavam de guarda no “Checkpoint Charlie”9


ficaram surpresos em ver nosso carro decorado de maneira insólita, mas mesmo
assim foram muito cordiais ao nos dar as boas‐vindas àquela cidade “livre”.

A outrora magnífica cidade de Berlim era agora um cenário de indescritível


destruição e desolação. Provavelmente nenhuma casa, segundo nos disseram,

6
N do T: US: United States = Estados Unidos
7
N do T: USSR: Union of the Socialist Soviet Republics = União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS), sigla da antiga União Soviética.
8
N do T: K ‐Ration: alusão à refeição compacta e calórica lançada pelo Exército norte‐americano em
1942, que cabia no bolso do combatente e lhe fornecia nutrição e energia para um dia.
9
N do T: Checkpoint Charlie era um dos postos de controle entre a zona russa e a zona americana em
Berlim e era o único que podia ser usado por militares que quisessem atravessar de uma zona para a
outra.

Nas Asas de Fé 47
havia escapado, pelo menos de danos parciais. Parecia evidente que as casas de
algumas ruas haviam sido consertadas o suficiente para servir de moradia. Eu não
conseguia acreditar no que via ao passar por muitas das antes famosas ruas. Os
sentimentos de tristeza e de incredulidade eram tão fortes que mal podíamos falar
e quase nos sentíamos tentados a fechar os olhos para não encarar a triste
realidade.

Presidente Max Zimmer, Presidente Ezra Taft Benson, Frederick W. Babbel, Capelão H. Badger

Por todo lado havia a evidência de que a população tinha começado a


resgatar e enterrar os mortos, a remover o entulho tão rapidamente quanto
permitiam seus corpos esquálidos, a fim de seguir em frente na esperança de que
algum dia Berlim se erguesse novamente.

O belo parque Tiergarten — que já fora um dos maiores do mundo e que


tivera um jardim luxuriante e bem cuidado — não era agora mais do que uma
massa disforme de tocos de árvores, monumentos destruídos e terríveis
casamatas, que eram testemunhas silenciosas da mais destrutiva de todas as
guerras até então.


No dia seguinte, o General de Exército Lucius D. Clay, Governador nomeado


da OMGUS, reexaminou as dificuldades que a Igreja teria na execução de suas
atividades de bem‐estar e reabilitação, bem como de proselitismo. Ele prometeu

Nas Asas de Fé 48
total cooperação, atendendo à solicitação do General McNarney e expressou
satisfação em ter a Igreja executando esse trabalho nas áreas de ocupação, pronta
para ajudar na gigantesca obra de reabilitação material e espiritual.

O representante da Cruz Vermelha Internacional em Berlim, o Dr. A. R.


Lindt, garantiu‐nos que aquela organização estava preparada para receber os
carregamentos de bem‐estar que havíamos adquirido na Suíça e que os entregaria
às autoridades da missão logo que chegassem, embora o seu conteúdo tivesse de
ser distribuído em Berlim e não na Zona de Ocupação russa, que ainda estava
fechada para tais iniciativas.

Mais cedo, tínhamos visto a destruição que ocorrera nos setores ocidentais
daquela enorme cidade, mas ao visitarmos o setor russo em companhia de alguns
militares naquela tarde, contemplamos um cenário inacreditável. Esforços de
limpeza e reconstrução eram feitos nos setores que tínhamos visitado mais cedo,
mas no setor russo, a estagnação era total e o sentimento mortal de desesperança
era palpável. Só mesmo estando ali era possível começar a perceber a profunda
diferença. O odor penetrante de corpos em decomposição tornava a cena mais
opressiva e debilitante sobre o espírito de desespero abjeto que parecia presente
por todos os lados.
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Visitamos a sede da missão em Berlim, uma casa alugada que tinha sido
residência de um alto oficial nazista. Um membro alemão tinha preparado o jardim
em volta da casa para a visita do Presidente Benson. Pouco se pudera fazer pelo
edifício, no entanto. Todas as vidraças estavam estilhaçadas e cortinas feias
cobriam os vãos das janelas. O teto, no entanto, parecia estar em boas condições.

O presidente interino da missão, Richard Ranglak, e seu primeiro


conselheiro, Paul Langheinrich, nos receberam. Ao acompanhá‐los para conhecer a
casa, o Presidente Benson ficou surpreso com a quantidade de pesados volumes
de registros da Igreja em alemão, todos em pilhas de cerca de um metro de altura,
espalhadas pelos espaçosos cômodos. Foi então informado daquela que fora a
mais notável atividade daqueles irmãos alemães durante todo o período da guerra.

Em 1938 e 1939, a Sociedade Genealógica de Utah tentou, sem sucesso,


adquirir microfilmes de registros genealógicos do governo alemão. Com a
evacuação dos missionários, o irmão Langheinrich, que era o líder de genealogia da
missão, conseguiu que o governo alemão construísse uma máquina de microfilmes
para uso da Igreja. A máquina foi concluída, mas a guerra entre a Alemanha e os
Estados Unidos interrompeu o trabalho.

Nas Asas de Fé 49
O irmão Langheinrich observou cuidadosamente o desenvolvimento dos
fatos e depois da guerra, em 9 de agosto de 1945, escreveu uma carta ao Marechal
de Campo Zhukoff, comandante russo da Zona de Ocupação em Karlshorst, Berlim
Oriental, pedindo‐lhe permissão para oferecer alimentos aos santos refugiados e
também para procurar todos os registros genealógicos e filmes naquele território.
A permissão foi dada.

Essa permissão, conseguida com a ajuda da Cruz Vermelha Internacional,


nos permitiu distribuir gêneros no setor russo de Berlim. Uma vez que esse setor
representava livre acesso à Alemanha Oriental, conseguimos enviar uns poucos
suprimentos aos nossos campos de refugiados localizados lá. Não tivemos,
entretanto, a liberdade de fazer ampla distribuição até que uma permissão
definitiva fosse dada pelas autoridades russas durante a última semana da nossa
missão.

Depois de uma longa procura por tais registros, dois grandes grupos deles
foram descobertos nos castelos de Rothemburg e Rathsfeld, situados nas
montanhas da Turíngia. Outros preciosos registros tinham sido descobertos em
minas de sal nas montanhas próximas. As primeiras descobertas resultaram em
seis ou sete mil livros, em fotocópias desses livros e em cerca de cinco mil rolos de
microfilme. Essa preciosa carga de registros foi transferida para o escritório da
missão.

Dois dias antes de nossa chegada, uma quantidade de registros muito


maior foi descoberta nas minas de sal da Turíngia — três vezes mais, na verdade,
entre os quais muitos eram registros da Prússia Oriental. Estimava‐se que havia
140 caixas de microfilmes que poderiam conter mais de 100 milhões de nomes,
tudo pesando quase 25 toneladas. Além disso, havia 60 caixas de registros
eclesiásticos, 30 caixas de cartões de indexação, 15 mil pacotes de livros religiosos,
15 mil fotocópias de livros, além de muitos outros itens. Observamos que, nessas
pilhas, havia muitos registros judaicos, bem como registros da igreja católica.
Pouquíssimos tinham sofrido danos significativos.

O irmão Langheinrich relatou‐me a surpreendente história de como haviam


conseguido trazer os registros da montanha onde ficava o castelo de Rothenburg.
Um oficial russo havia‐lhe prometido arranjar um vagão ferroviário alemão no qual
ele poderia transportar os registros até Berlim. O irmão Langheinrich dirigiu‐se ao
castelo com 15 missionários para carregar os registros montanha abaixo até o
vagão que esperava em um desvio. Dois irmãos tentaram conseguir um caminhão
nas proximidades, enquanto os outros foram para o castelo preparar os registros
para o transporte. Depois de esperar pelo caminhão por muito tempo, foi‐lhes
informado que o veículo não poderia subir a estrada montanhosa por causa do
gelo que a cobria. Era uma situação crítica. O vagão iria partir logo e a carga

Nas Asas de Fé 50
precisava estar a bordo dentro de duas horas. Era portanto vital que os registros
fossem levados até o vale rapidamente.

O irmão Langheinrich e três outros irmãos retiraram‐se até um bosque


próximo e ofereceram uma oração ao Senhor. Explicaram a urgência da situação e
a necessidade que tinham de ajuda. Ao dizerem “amém”, o caminhão chegou,
porém sem o reboque que esperavam usar. No entanto, mesmo com a estrada
escorregadia, eles conseguiram colocar a carga no vagão em segurança.

Em seguida, precisavam buscar os outros registros que estavam em outro


castelo das proximidades. Pressentiram que a única forma de conseguirem fazer
isso seria uma chuva morna que pudesse derreter o gelo que cobria a estrada.
Embora a temperatura fosse baixíssima, houve uma mudança brusca, uma chuva
cálida caiu durante a noite e eles conseguiram transportar todos os registros que
depois havíamos contemplado na casa da missão. Logo que os registros foram
colocados em segurança, uma pesada nevasca caiu e a estrada voltou a congelar.

Dessa maneira, conseguimos salvar todos aqueles registros e finalmente,


mais tarde, entregá‐los às autoridades da Alemanha Ocidental em perfeitas
condições. Posteriormente, foram colocados no Arquivo Nacional da Alemanha
Ocidental, onde poderão no futuro ficar à disposição de pesquisadores e
historiadores.
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Mais tarde, naquele dia, visitamos o local da casa da missão anterior, na rua
Haendelallee 6 e também a casa do irmão Langheinrich na rua Rathenowerstrasse.
Ao chegarmos à antiga casa da missão, constatamos o que havia sobrado dela —
parte de uma parede onde antes existia uma janela. A parede agora tinha apenas
um metro de altura.

Tão grande havia sido a destruição do parque Tiergarten, antes cheio de


árvores, e que ficava ao lado da casa da missão, que eu podia olhar em todas as
direções sem que a visão fosse obstruída. Era impossível para mim imaginar que
uma destruição tão completa pudesse ter ocorrido em algum lugar neste mundo.
Senti‐me mal e minha alma chorou.

A caminho da casa do irmão Langheinrich, ele nos contou sobre a noite em


que a casa da missão foi destruída. Um dos militares que nos acompanhava, o
irmão Don C. Corbett, havia escrito anteriormente sobre essa tragédia em palavras
tão inspiradoras que o convenci a dar‐me uma cópia do relato, a fim de que eu
pudesse narrar os fatos com mais precisão. Eis seu relato:

Na noite de 22 de novembro de 1943, Berlim sofreu pesado ataque de bombardeiros. Mais


de mil aviões vindos da Inglaterra participaram do ataque. Todas as casas em torno da casa

Nas Asas de Fé 51
da Missão Alemã Oriental foram destruídas. A vizinhança do irmão Paul Langheinrich, na
Rua Rathenower 52, foi seriamente danificada e queimada. Na manhã seguinte, verificou‐
se que as janelas da casa da missão haviam sido quebradas. O telhado e o forro haviam
sido danificados. Os membros que trabalhavam na casa da missão varreram o vidro
estilhaçado e remendaram o telhado da melhor maneira que puderam.

Por volta do meio dia, de acordo com Paul Langheinrich, ele ouviu um sussurro: “Retire
todas as sísteres da casa da missão imediatamente”. Naquele momento, havia quatro
sísteres alojadas na casa. Ele lhes disse para arrumarem suas coisas e prepararem‐se para
sair com suas malas. Carregando seus pertences, as sísteres evacuaram a sede da missão e
se dirigiram à casa do irmão Paul Langheinrich.

Duas ou três horas mais tarde, o irmão Herbert Klopfer, presidente interino da missão,
chegou à casa da missão com sua esposa, desfrutando uma licença do front russo. Como
encontrou tudo trancado e esquecera suas chaves, saiu a procura do irmão Richard
Ranglak, que o substituira na presidência em sua ausência. Alguns minutos depois, os
bombardeiros retornaram. O impacto direto de uma bomba de 250 quilos destruiu a casa
completamente, deixando no lugar um amontoado de destroços. Graças aos sussurros do
Espírito, no entanto, nenhuma vida do pessoal da missão foi ceifada.

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No nosso primeiro domingo em Berlim, nos reunimos no setor russo com


480 amigos, em uma escola muito danificada. Foi um momento de grande
regozijo. Outro texto escrito pelo irmão Corbett relata belamente o que ocorreu:

Os membros já estavam sentados aguardando, quando o Presidente Benson chegou.


Todos se levantaram quando ele entrou e permaneceram de pé até ele chegar ao púlpito.
Contemplar as fisionomias daquelas pessoas e sentir seu espírito de devoção e de gratidão
era uma experiência maravilhosa. Havia no ar uma grande expectativa, bem como alguma
tensão. Todos aguardavam as palavras daquele servo do Senhor. Havia também um tom
de tristeza. Quando observávamos aqueles rostos emaciados e marcados pela tristeza e
pela tragédia, brotava em nosso ser uma profunda simpatia por eles. Muitos sofriam com
avançados estágios de desnutrição, outros tinham grande necessidade de cuidados
médicos. Naquele momento, no entanto, sua necessidade espiritual transcendia sua
carência física. Aqueles eram os fiéis, a espinha dorsal da Igreja em Berlim, mas muitos
necessitavam de encorajamento, luz e orientação para conseguirem ordenar seus
pensamentos.

O Presidente Benson levantou‐se, tendo o irmão Zimmer como intérprete… Quando


concluiu, cada um dos presentes compreendeu que ele falara sob a direção do Espírito de
Deus. Quando começou a falar, estava com a voz embargada de emoção, mas aos poucos
ganhara vigor e poder. O clímax parece ter sido atingido quando muitos abaixaram a
cabeça ao ouvirem‐no dizer: “Quando uma nação segue líderes iníquos, os justos sofrem
junto com os injustos.”

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Quando cumprimentávamos os presentes após a reunião, uma irmã de


pequena estatura se aproximou e me perguntou: “Lembra‐se de mim?” Olhei para
ela por alguns instantes e respondi: “Claro, você é a irmã Labeda Freitag.”

Nas Asas de Fé 52
Ela pareceu feliz por eu tê‐la reconhecido. Antes da guerra, ela pertencera
ao ramo de Schoeneberg, local que ficara agora no Setor Russo.

“Estava imaginando se você se lembra do discurso que fez aqui pouco antes
do Natal de 1937”, disse‐me ela.

Vasculhei minha mente e me dei conta do que ela queria dizer. Então ela
prosseguiu: “Caso você não se lembre, anotei na época algumas de suas palavras e
as tenho aqui neste livrinho. Naquele dia, você nos desafiou a liderar a Igreja na
preparação de nossos registros genealógicos. Em seguida, fez uma promessa e
uma profecia — quero lê‐las para você — de que se mostrássemos fé e sinceridade
e nos fossem dados dez anos de paz para trabalhar, o Senhor nos abençoaria com
um templo na Europa, no qual poderíamos receber nossos selamentos e
investiduras. Mas agora quero saber, você estava falando sob inspiração naquele
dia? Essa promessa vai se cumprir?”

“Quanto tempo nos resta para ela se cumprir?” perguntei.

“Uns oito anos”, respondeu ela.

“Se eu tiver falado sob a influência do espírito de revelação”, continuei,


“você verá a promessa se cumprir plenamente. Se não acontecer, você saberá que
minhas palavras não foram dirigidas pelo Senhor.” Ela pareceu satisfeita em
esperar para ver. Quando o templo da Suíça começou a ser construído ainda
dentro daqueles dez anos, eu me sentia um dos mais gratos membros da Igreja!

Observamos que nem durante a reunião, nem depois dela, ninguém fez a
mínima reclamação sobre suas circunstâncias, apesar de ser evidente que muitos
estavam nos mais avançados estágios de inanição. Somente em Berlim, nos
disseram depois, o desespero era a causa de mais de cem suicídios a cada dia.
Nossos santos, por outro lado, estavam cheios de esperança, coragem e fé. Onde
quer que os encontrávamos, refletiam um sereno otimismo e um espírito de
gratidão pela Igreja e pelo evangelho de Jesus Cristo.

Ao nos ajoelharmos juntos em oração naquela noite, o Presidente Benson


derramou os anseios de sua alma ao Senhor em favor daquele povo maravilhoso.
Eram evidentes as condições restritivas sob as quais ele tinha de viver, mas não
podíamos duvidar que estava à altura do desafio, pois já tínhamos testemunhado
o vigor de sua inigualável fé.

Depois de dezessete longas horas na estrada, chegamos a Nuremberg,


onde estavam sendo realizados os julgamentos dos crimes de guerra. A velha
cidade era considerada por muitos a cidade alemã mais castigada pelos
bombardeios. Não havia um só edifício de pé. Muitas das ruas ainda estavam

Nas Asas de Fé 53
bloqueadas por enorme quantidade de escombros e por crateras abertas pelas
bombas. Ambas as capelas que tínhamos na cidade haviam sido completamente
destruídas. Quase sem exceção, os membros da Igreja haviam sido forçados a sair
de suas casas, alguns mais de uma vez.

A noite havia caído sobre a cidade muito antes de lá chegarmos. Com


extrema dificuldade, conseguimos localizar a escola em ruínas onde os santos
haviam se reunido nas mais adversas circunstâncias, especialmente porque não
havia iluminação pública e nem mesmo qualquer outra fonte de luz em toda
aquela área.

Apenas uma lâmpada fraca foi acesa para iluminar a sala onde nos
reunimos. Uma das paredes havia sido destruída. Havia uma brisa fria e caía uma
neve fina, o que aumentava o desconforto daquele ambiente desprovido de
aquecimento. Os duzentos membros que ali estavam, tremendo de frio, tinham
começado a reunião às sete e meia da noite e, apesar do toque de recolher que
requeria que nenhum civil alemão estivesse nas ruas após as dez da noite, os
membros tinham decidido permanecer ali até a nossa chegada.

O Presidente Benson aventou a possibilidade de terminar a reunião sem


que ele falasse, para que os irmãos pudessem chegar em casa dentro dos poucos
minutos que restavam antes do toque de recolher, mas eles disseram quase em
uníssono: “Fale a nós. Ficaremos aqui a noite inteira!”

Depois da oração de encerramento, uma irmã se aproximou de mim e


perguntou‐me: “Lembra‐se de mim?” Olhei atentamente para ela e disse: “Irmã
Frenzel, como vai?” Ela respondeu e acrescentou: “Lembra‐se das promessas que
me fez ao me dar uma bênção pouco antes de sair de Nuremberg, em 1939, para
retornar aos EUA?”

Como eu poderia esquecer! Eu tinha feito meu discurso de despedida na


Igreja. Depois, por solicitação dela, fui até a casa dela para dar‐lhe uma bênção. Ela
estava grávida do primeiro filho. A saúde dela estava tão abalada, que ela nem
podia ir à Igreja, a não ser em uma ocasião ou outra. Devido a sérias complicações
de saúde e também devido ao fato de ela já ter mais de quarenta anos e estar
grávida do primeiro filho, o médico havia expressado sérias preocupações de que
ela poderia morrer no parto. Em vista disso, ela pediu uma bênção especial.

O marido dela tinha perdido uma perna. Eram pobres e moravam em um


barracão em sua “Gartenlaube”, que era originalmente um depósito de
ferramentas que usavam no cuidado do pequeno lote onde plantavam algumas
frutas e verduras. Devido às condições difíceis em que viviam, eles haviam
transformado o barracão em uma moradia de um cômodo e, nas circunstâncias, a
chegada de um bebê tornava tudo muito mais difícil.

Nas Asas de Fé 54
No meio da bênção, parei completamente aturdido por ter prometido a ela
que ela teria um filho homem. Consciente do fato de que aquela boa gente
acatava cada palavra dos élderes, fiquei preocupado imaginando se não teria
cometido um erro.

Meu companheiro então me fez sinal para que eu continuasse e, ao fazê‐lo,


tentei pensar em uma maneira de usar palavras que pudessem tornar condicional
a promessa que fizera. Em seguida, percebi que tinha reiterado a promessa e que
adicionara que o filho cresceria, receberia o sacerdócio e se tornaria um líder na
Igreja. Nesse ponto, reconheci que não havia deixado meios de voltar atrás e, por
isso, decidi continuar e concluir da melhor maneira possível.

Para piorar minha preocupação, ainda na bênção, prometi‐lhe que ela não
teria dores significativas no parto (embora o próprio médico temesse por sua vida)
e que devido à fé que tinha, ela criaria uma grande família (o que também era
impossível, de acordo com o médico, que se admirava que ela pudesse levar
avante uma gravidez na idade dela).

Ao terminar a bênção, ela sorriu e disse que sabia que tudo ficaria bem,
que o filho nasceria e que o Senhor a abençoaria e ampararia. Sim, eu me
lembrava da bênção muito bem!

Quando voltei para casa depois de dar‐lhe aquela bênção, mesmo com o
consolo do presidente da missão, a quem contei o episódio, não fiquei tranquilo. O
presidente então me disse: “Você tem cinquenta porcento de chance de estar
certo!”
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Agora, já haviam se passado quase sete anos. Depois da vívida lembrança


do episódio em uma fração de segundos, a irmã Franzel disse: “Gostaria que você
conhecesse o resto da família.” Então, ela fez desfilar à minha frente seus
pequeninos ‐‐ quatro ou cinco, se me lembro bem ‐‐ e os apresentou. O
primogênito, Frederick William, recebera esse nome em minha homenagem!

Pouco depois, um jovem se aproximou e perguntou‐me: “Lembra‐se das


promessas que me fez ao dar‐me uma bênção quando entrei para o exército
alemão?” De novo, revivi as circunstâncias nitidamente e respondi: “Acho que sim.
Por que pergunta?”

“Porque conheci uma jovem com quem gostaria de me casar. Você acha
que ainda é possível para mim casar com ela no templo, como você prometeu na
bênção?”

Nas Asas de Fé 55
(Eu havia‐lhe prometido, de acordo com o seu desejo, que se ele vivesse
uma vida limpa e pura, o Pai Celestial lhe daria o privilégio de casar‐se na Casa do
Senhor ‐‐ algo que parecia impossível e impensável na época em que a guerra era
iminente e ele estava entrando para a infantaria alemã).

Olhando para aquela figura esquálida — pesava uns cinquenta quilos em


vez dos oitenta de quando o conhecera — e pensando nas circunstâncias difíceis
sob as quais ele e muitos outros viveram, fiquei um tanto apreensivo. “Hans”,
perguntei‐lhe, “você se manteve moralmente limpo desde aquele dia?”

“Sim”, respondeu. “Fui gravemente ferido e dado como morto no campo


de batalha mais de uma vez, mas me mantive moralmente limpo.”

Então, senti‐me compelido a dizer‐lhe: “Hans, se você se manteve puro e


deseja tornar realidade aquela promessa, reivindique essa bênção ao Senhor.
Neste momento, não consigo imaginar como isso será possível, mas de algum
modo o Senhor abrirá um caminho.”

(Depois que voltei a Salt Lake City, estava um dia trabalhando nos
escritórios da Igreja e eis que me aparecem ninguém menos que Hans e sua
amada. Eles estavam indo ao Templo para se casar. Tinham obtido vistos de
turistas e iam voltar a sua terra natal após o casamento e um período nos Estados
Unidos. Como conseguiram recursos para fazerem juntos aquela viagem de dois
mil e quinhentos quilômetros era algo extraordinário e não sei como o fizeram.
Não pude deixar de admirar a fé daqueles jovens).

Eu teria adorado permanecer com aqueles santos alemães a noite toda e


compartilhar com eles um leito comum de cimento frio e desnudo, mas não era
possível. Tínhamos que continuar nossa jornada.

Nas Asas de Fé 56
CAPÍTULO 5

Fé Como a dos Antigos

Ao entrarmos na Checoslováquia, observamos com alegria uma mudança


brusca. Vimos cidades quase totalmente intactas, com lojas e vitrines repletas de
mercadorias (que muitos não podiam comprar por causa da falta de dinheiro e devido
ao racionamento), além de fazendas, cavalos e máquinas agrícolas em funcionamento.
Parecia que tínhamos entrado em um mundo novo e melhor.

Achei Praga uma cidade adorável. Seus muitos letreiros em neon davam‐lhe um
aspecto de uma metrópole norte‐americana, exceto pelas ruas que eram mais
estreitas e tortuosas e pelas luzes, que eram em menor número.

Descobrimos que todos os 115 membros da Missão Checoslováquia tinham


permanecido ativos na Igreja e fiéis ao evangelho durante a guerra. Apesar de seu
pequeno número, por meio de seus esforços coordenados, tinham conseguido apoiar‐
se mutuamente como missão. Eles estavam levando avante um vigoroso programa
missionário.

Durante a guerra, os santos daquele país haviam contribuído para erguer um


monumento modesto no local onde, em 1929, o Élder John A. Widtsoe, do Conselho
dos Doze Apóstolos, havia dedicado seu país para a pregação do evangelho. O
monumento foi inaugurado em 24 de julho de 1945, apenas dezesseis anos após
aquele acontecimento.

Ao tentarmos tomar o desjejum em um bar, nos disseram que não podiam


servir alimentos sem as cartelas de racionamento, mas não tínhamos nenhuma. Com a
ajuda de um pacote de cigarros americanos (que tínhamos conosco, por sugestão de
alguns militares SUD, para tais emergências), conseguimos obter uma farta refeição,
que consistia de chá Linden, pão, manteiga, caviar, peixe, mortadela e um pedacinho
de bolo – um desjejum bem incomum, mas muito bem‐vindo.

Outro maço de cigarros nos ajudou a resolver outra emergência pouco depois,
quando dois pneus furaram quase simultaneamente. Quando ofereci uma generosa
quantidade de dólares americanos, minha solicitação de serviço ao borracheiro foi
simplesmente ignorada, mas logo que mostrei o maço de cigarros, os homens
largaram tudo o que estavam fazendo e consertaram nossos pneus com rapidez.

Nossos pneus continuaram a nos causar problemas. Quando o pneu seguinte


furou, já era muito tarde para encontrar um posto de serviços, por isso pernoitamos

Nas Asas de Fé 57
em Pilsen, onde ficava a sede da enorme fábrica de munição Skoda e também a da
Pilsen, famosa cervejaria europeia.

Dessa vez, o irmão Zimmer assumiu as funções de negociador. Ele teve de dar
ao recepcionista do hotel alguns cigarros para que ele conseguisse alguém para
consertar o pneu logo cedo no dia seguinte a fim de não nos atrasarmos. O homem
que consertou o pneu também teve de receber um “incentivo”, assim como o
recepcionista do hotel para que nos trocasse alguns cheques de viagem. Parecia que
sem cigarros, esses serviços não estavam disponíveis. Disseram‐nos extraoficialmente
que um pacote de cigarros americanos valia cerca de quatro mil dólares americanos, o
que era incrível!

Contei à minha mulher em uma carta sobre as condições que enfrentávamos:

Nosso dia começava entre 5 e 5h50 da manhã e continuava até à meia‐noite


aproximadamente. Às vezes, fico totalmente esgotado. O carro é pequeno, as estradas são
horríveis e a comida nas zonas ocupadas é muito escassa. No geral, a coisa toda está bem
difícil. No entanto, se tudo isso nos ajudar a levar os recursos do bem‐estar àquelas pessoas um
dia, uma semana ou um mês mais cedo, para dar‐lhes fé até que os suprimentos cheguem da
América, sinto que muitas vidas serão poupadas.

É vergonhoso ver pessoas – membros da nossa Igreja – nos mais avançados estágios de
inanição, com olhos esbugalhados, articulações protuberantes e tão desanimados que
simplesmente falar é um esforço extraordinário. Até o momento, ainda não perdemos muitos
membros por causa da fome. Extraoficialmente uns 100 morreram até agora, mas a menos que
algo seja feito logo, as doenças e o desajuste permanente, devido à desnutrição e outros
fatores, sem dúvida cobrarão um alto preço.

Algumas famílias de três ou quatro pessoas estão sobrevivendo com a quantidade de alimentos
que uma pessoa nos Estados Unidos desperdiça. Caso a pessoa não tenha meios de pagar
preços exorbitantes no mercado negro, ela acaba correndo o risco de morrer de fome. E se
alguém negocia no mercado negro, é considerado um traidor e fica sujeito a multas, à prisão ou
a ambas as penalidades.

O ritmo que estamos mantendo é fantástico. Espero que de vez em quando possamos relaxar
um pouco, mas quando vemos a fome e o sofrimento destas pessoas, sentimos a compulsão de
trabalhar dia e noite.

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Em uma reunião em Viena, ficamos felizes em encontrar o irmão Alois Cziep e o


irmão Franz Rosner, este, presidente do ramo em Haag am Hausruck, na Áustria. O
irmão Rosener estava muito magro, mas estava bem animado e disse que estava indo
bem, desde quando fora curado por uma bênção em 1938.
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Foi em 6 de dezembro de 1938 que tive o privilégio de visitar a cidade de Haag


am Hausruck em companhia de meu presidente da missão, M. Douglas Wood e sua

Nas Asas de Fé 58
esposa, Evelyn. Quando chegamos à casa do irmão Rosner, ele estava de cama
recuperando‐se de um sério acidente.

Pelo que me lembro, ele estava trabalhando em uma cisterna quando uma das
paredes dela desmoronou e caiu sobre ele, esmagando‐o contra o fundo. Ao ser
removido, mais morto do que vivo, descobriram que ele havia fraturado a coluna e
quebrado várias costelas. Na visita que o médico lhe fizera pouco antes da nossa
chegada, ele advertiu ao irmão Rosner: “Talvez você sobreviva, mas nunca poderá
andar de novo.”

Havíamos planejado nos reunir com os santos naquela noite. O irmão Rosner
insistia em participar da reunião e dizia: “Tenho fé que se eu for, ficarei curado.”

Não podíamos ir contra sua fé. Depois de dar‐lhe uma bênção, improvisamos
uma padiola à moda escoteira, deitamo‐lo sobre ela tão cuidadosamente quanto
possível e o levamos até o local da reunião. Para que ele assistisse à reunião,
colocamos uma das extremidades da padiola sobre uma cadeira, fazendo‐o ficar
parcialmente erguido.

O irmão Johann Thaller, de Munique, foi o segundo orador da noite. Durante


seu discurso, ele fez uma pausa, olhou para o irmão Rosner e disse: “Irmão Rosner,
sinto que por causa da sua fé, você será curado.” Foi uma experiência eletrizante.

Ao final da reunião, o irmão Rosner anunciou que agora podia andar, mas que
não se levantaria por não estar usando calças. Então o levamos para casa. Ao
entrarmos na cozinha, ele se levantou da padiola e caminhou sozinho até a cama.

Durante a guerra, o irmão Rosner tinha viajado de bicicleta várias vezes até a
Áustria a fim de manter‐se em contato com os santos e levar‐lhes ajuda quando se
encontravam abatidos.
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Ao final da nossa reunião em Viena, um jovem de uns 19 anos, usando um


surrado uniforme militar aproximou‐se de mim e me perguntou seu eu me lembrava
dele. Quando me disse seu nome, tive de confessar que não me lembrava. Por acaso
me lembrava de um menino de Haag am Haursuck que havíamos abençoado em 1938
durante nossa visita àquela cidade, perguntou‐me.

Quando respondi que me lembrava, ele disse: “Bom, eu sou aquele menino.”

Na noite que se seguiu à bênção que demos ao irmão Rosner, depois de termos
testemunhado sua surpreendente recuperação, eu não conseguia conciliar o sono.
Minha mente continuava a se maravilhar com o que acabáramos de testemunhar.

Nas Asas de Fé 59
Cedo na manhã seguinte, uma garota de uns 8 anos de idade, bateu à porta. Ela
perguntou: “Vocês são os missionários?”

Quando lhe dissemos que sim, ela explicou: “Tenho um irmão que está muito
doente. Ele gostaria que vocês fossem até a nossa casa para dar‐lhe uma bênção antes
de partirem. Mas não somos membros da sua igreja.”

Nós a acompanhamos com alegria. A mãe dela era viúva e a família vivia em um
cubículo no segundo andar de uma das casas do vilarejo. Ao entrarmos na casa,
encontramos uma mãe que, em lágrimas, aquecia panelas de água em seu pequeno
fogareiro a carvão. Ela nos explicou que seu filho contraíra um tipo de doença que lhe
tomara a perna e avançava para o quadril. Parecia um tipo de envenenamento e eles
estavam esperando por um médico que vinha de uma vila próxima para amputar a
perna do rapaz a fim de salvar‐lhe a vida. A água quente ia ser necessária porque o
médico ia ter de fazer a cirurgia sobre a mesa da cozinha.

Com que nitidez me lembro daquela cena! O rapazinho — de cerca de 11 anos


— estava com a perna tão inchada que não podia vestir calças. As marcas do veneno
estavam bem visíveis. Ele parou de chorar, embora tivesse dores horríveis, e disse:
“Não sou membro da sua igreja, mas tenho ido à Escola Dominical e a professora nos
disse que vocês podem abençoar as pessoas e curá‐las como Jesus fez. Quero que
vocês me curem!”

Era um pedido grave e solene, mas o abençoamos e dissemos que, de acordo


com a fé que ele tinha, ele seria poupado.

Agora, sete anos mais tarde, lá estava ele, um sacerdote, saudável e feliz. Ele
tinha servido por um breve período no exército alemão. Reencontrar o irmão Rosner e
aquele jovem naquela noite foi um clímax maravilhoso para a reunião que tivemos
com os santos vienenses.
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Embora Viena fosse o que se denominava cidade “livre” — dividida em quatro


setores tal qual Berlim — as pessoas viviam em constante temor de serem molestados
por soldados russos. Viena, a cidade da “Gemuetlichkeit”, música e alegria, dava a
impressão de ser uma cidade quase morta. Tudo parecia austero e sem cor. Era como
se nada tivesse sido pintado havia muitos anos.

A cidade ainda estava bem danificada em virtude dos bombardeios e incêndios.


Viam‐se vários soldados russos perambulando pelas ruas. As pessoas pareciam
desfiguradas e cansadas. Um boletim daquela época emitido pela Cruz Vermelha
Internacional declarava:

Nas Asas de Fé 60
A Áustria é um dos países que foram mais seriamente afetados pelo conflito recente…
praticamente não se encontra leite ou derivados no mercado… Sem ajuda de fora, a inanição é
praticamente inevitável… A fome já existe na Baixa Áustria, onde a população recebe rações de
no máximo 800 calorias por dia. Informações recentes dão conta de que as rações em breve
serão reduzidas em Viena por causa da falta de alimentos…

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Em Dachau, perto de Munique, Alemanha, visitamos o campo de concentração


com seus fornos crematórios e vimos os cadafalsos e valas em que vítimas inocentes,
de joelhos, foram impiedosamente metralhadas. Vimos os canis em que os prisioneiros
tinham sido atirados para serem despedaçados por cães ferozes que ali eram
mantidos.

Somente nesse campo de Dachau, 238.000 pessoas foram exterminadas.


Durante os anos de terror, as cinzas de algumas vítimas eram enviadas a seus parentes
próximos que deviam pagar por elas uma quantia estipulada se não quisessem eles
mesmos ser submetidos aos horrores do campo. Cartazes espalhados por todos os
lados diziam que cerca de 20 milhões de pessoas haviam sido assim sistemática e
brutalmente mortas naquele e em cerca de trezentos outros campos de concentração
nazistas.

As narrativas de brutalidade demoníaca que nos foram passadas nos deixaram


estarrecidos. Entre outros “souvenirs” criados pelos carrascos estavam abajures feitos
de pele humana e instrumentos especiais de tortura que lembravam o período da
Inquisição medieval. Quando da nossa visita a Dachau, cerca de 20 mil membros das

Nas Asas de Fé 61
SS, os Camisas Pretas, estavam confinados aos alojamentos da prisão aguardando
julgamento por acusações de crimes de guerra.

O Presidente Max Zimmer nos contou mais tarde que, após cessarem as
hostilidades, foram descobertos planos na embaixada alemã na Suíça para a
construção pelos nazistas de cinco campos de concentração naquele país logo após a
planejada invasão. Também se sabia que tropas alemãs tinham ficado na fronteira
para levar à frente a invasão, mas as pesadas perdas e os inesperados reveses que os
alemães sofreram em Estalingrado10 exigiram que essas forças fossem deslocadas para
a frente russa. Assim, a invasão não pôde ocorrer.

Stuttgart, contrariamente a outras grandes cidades que havíamos visitado, não


dava a impressão de ter sofrido grandes danos com a guerra. Nessa cidade, o
Presidente Benson fez um poderoso sermão sobre a atitude da Igreja em relação às
leis e aos poderes estabelecidos. “É somente naquelas terras em que se goza de
liberdade e autonomia que se pode efetivamente levar avante o programa da Igreja”,
disse ele. “Ao ajudarem a estabelecer nesta terra um governo tal, vocês estarão
ajudando a estabelecer a obra de Deus. Se esta nação ou qualquer outra deseja ser
feliz e evitar futuras guerras de aniquilação, elas devem aceitar e administrar leis que
se baseiam na liberdade e na autonomia, tais como endossadas por Jesus Cristo na
Seção 101 de Doutrina e Convênios.”

Nessa reunião, o “Quarteto Ração K” cantou “Let the Lower Lights Be Burning”,
para a alegria de todos os presentes.
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Ao chegarmos a Basileia, na Suíça, no dia seguinte, o Presidente Benson ficou


sabendo que sua filha mais nova, Beth, estava muito doente. Ficou também sabendo
mais tarde que o Presidente George Albert Smith, o Presidente J. Reuben Clark, Jr., e o
Élder Harold B. Lee tinham feito várias visitas a sua família e abençoado Beth, rogando
ao Senhor que poupasse sua vida.

O Presidente Benson mais tarde escreveu sobre essa comovente experiência


dando o título de “O Poder da Oração” ao texto. Como o texto reflete muito bem os
sentimentos dele naquela ocasião, é mais adequado citar literalmente o que ele
escreveu:

Prosseguindo em nossa primeira viagem após a Segunda Guerra Mundial às áreas ocupadas da
Alemanha e da Áustria, chegamos à Suíça. Uma carta urgente de minha mulher me aguardava,
tendo sido escrita quase duas semanas antes e enviada por via aérea. Na carta, ela me
informava que nossa filha mais nova, estava seriamente enferma e que, como de costume,
evitara comunicar‐me a respeito a fim de não atrapalhar meu trabalho. Tendo sido avisada
pelos médicos de que nossa filha corria perigo de vida e que não tinham mais o que fazer por

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Hoje, São Petersburgo, na Rússia.

Nas Asas de Fé 62
ela, minha mulher me pediu que me unisse a ela em fé e orações. Contou‐me que tinha
tentado me contatar antes, mas não conseguira. Compreendendo que na ocasião em que
recebi a carta a crise já tinha sido enfrentada sem a participação de minha fé e orações, vi‐me
limitado à esperança de que as orações daqueles a quem amava tivessem sido atendidas.
Fiquei extremamente abatido por sentir‐me impotente para fazer algo.

Dali a duas horas, eu deveria ser o orador principal na reunião em nossa nova e bela capela de
Basileia. Centenas de pessoas se congregariam ali para saber o que tínhamos realizado em
nossa recém‐completada viagem.

Tomado pela ansiedade, sentia‐me incapaz de participar, a menos que conseguisse saber
notícias de minha filha. No entanto, obter notícias naquela hora avançada era praticamente
impossível. Um telefonema para os Estados Unidos requeria um ou dois dias para ser
completado e em geral a ligação era muito ruim. Eu não sabia o que fazer.

Diante desse problema, compreendi que deveria buscar orientação e tranquilidade em meu Pai
Celestial. Ajoelhado ao lado de minha cama em oração, recebi a impressão avassaladora de que
deveria ligar para casa imediatamente. Para a minha alegria e grande surpresa, a ligação foi
completada em menos de dez minutos. A voz de minha mulher soava tão clara como se ela
estivesse na sala ao lado.

Que sentimento de gratidão e de alívio senti ao saber que a crise havia terminado! Nossa
amada filhinha sobrevivera. Como foi doce ouvir minha mulher me assegurar que a fé e as
orações tinham suplantado a provação!

Ao ouvir aquelas palavras de consolo, minha alma se encheu de tal alegria e gratidão que
nunca esquecerei aquela memorável tarde de domingo.

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Naquela noite, o Presidente Benson fez um sermão inspirador, porém as


manifestações de gratidão e apreço foram ainda maiores devido a essa experiência.
Durante a reunião, um grupo de crianças nos presenteou com buquês de flores e
cantou “Welcome to All”, em inglês. Ficamos profundamente comovidos por aquela
generosa afeição e decidimos corresponder fazendo o Quarteto Ração K cantar um
número, o que foi de agrado dos presentes. Aquela seria nossa última apresentação
como quarteto.

Após a reunião, o Presidente Benson mencionou o quanto havia apreciado as


breves cartas pessoais que recebia do Presidente George Albert Smith de vez em
quando. Muitas vezes, o Presidente Smith dizia coisas como: “Assisti à reunião
sacramental em nossa ala (Ala Yale) esta tarde e fiquei feliz em ver a irmã Benson e
seus adoráveis filhos sentados juntos no banco da frente. Tudo vai bem!” O Presidente
Benson considerava essa atenção do Presidente Smith um atributo do amor genuíno e
de sincera preocupação que eram uma das mais evidentes marcas da grandeza
daquele amado profeta.
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Nas Asas de Fé 63
Dias mais tarde, a caminho de Londres, visitamos alguns dos líderes da Igreja na
Bélgica. Embora fosse evidente que aquela nação havia sido pesadamente atingida
pela guerra, sua economia agora se desenvolvia a um ritmo fortíssimo. O governo
decidira usar parte dos recursos fornecidos pelos americanos para adquirir produtos
que os belgas desejavam e que eram adquiridos por aqueles que tinham dinheiro,
movimentando assim o mercado. Havia nas vitrines produtos que nem mesmo nos
Estados Unidos se encontraria naquela época. Embora seus maquinários tivessem sido
destruídos, os belgas trabalhavam longas horas com ferramentas manuais a fim de
obter o dinheiro para comprar o que desejavam e que encontravam nas lojas. Isso fez
a economia dar um salto e prosseguir a um ritmo surpreendente, comprovando a
validade do sistema de incentivos e recompensas.

No dia seguinte, domingo, realizamos quatro reuniões com os santos em


Amsterdã, na Holanda. Fiquei muito impressionado pela forma entusiástica que eles
cantavam. Creio que não havia ninguém nas nossas reuniões que não cantasse com
todo empenho. Para essa ocasião, organizaram um coral denominado “As Mães
Cantoras”. E — que maravilha — as cantoras estavam todas usando as tradicionais
saias pretas e blusas brancas que são uma característica desse coral conhecido no
mundo inteiro. Quase todas as saias e blusas tinham sido recebidas da América nos
pacotes de bem‐estar. Algumas delas realmente não serviam bem — algumas saias
eram dobradas na cintura, por exemplo — mas as irmãs estavam adoráveis e cantaram
com tão grande poder e harmonia como eu jamais vira um coral feminino cantar. Foi
inspirador.

Em uma reunião especial com o Presidente Zappey, presidente da missão


holandesa, o Presidente Benson incentivou‐o a procurar terras nas quais os santos
holandeses pudessem talvez plantar batatas a fim de prover parte de seu próprio
sustento. Foi‐nos dito que o preço dos terrenos estavam exorbitantes, mas o
Presidente Benson sugeriu que talvez fosse possível obter permissão para usar a faixa
de terra que dividia as pistas da autoestrada que ligava Amsterdã a Haia. As
negociações que se seguiram mostraram‐se frutíferas e assim foi iniciado o primeiro
projeto de bem‐estar da Holanda. Ao final do primeiro ano, os santos holandeses
colheram 66 toneladas de batatas — o que era suficiente para satisfazer grande parte
de suas próprias necessidades.

Foi então que um pedido incomum foi feito àquele povo. Quando estavam
reunidos em uma grande conferência da missão em Roterdã para dar graças pela
abundante colheita, o presidente da missão, Cornelius Zappey, disse: “Um dos mais
terríveis inimigos que vocês conheceram durante a guerra foi o povo alemão. Sabemos
como são intensos os sentimentos de raiva que vocês têm por eles. Porém, eles estão
agora em uma situação muito pior do que a de vocês e por isso estamos pedindo a

Nas Asas de Fé 64
vocês que enviem toda a sua colheita de batatas para os santos alemães. Vocês farão
isso?”

E eles o fizeram.

Esse foi um exemplo esplêndido do evangelho de Jesus Cristo em ação. Os


membros da Igreja na Holanda foram as primeiras pessoas a receber permissão de seu
governo para enviar alimentos para fora do país. Os ministros governamentais a
princípio exclamaram que tal solicitação era inédita. “Nós próprios estamos morrendo
de fome e vocês vêm aqui pedir para enviar alimentos para aqueles que eram nossos
inimigos”, era mais ou menos a resposta natural que davam. Mesmo assim, eles
obtiveram a permissão.

No ano seguinte, os membros holandeses colheram 150 toneladas de batatas.


Além disso, com sua atividade pesqueira, conseguiram encher vários barris com
arenques. De fato, eles disseram o seguinte: “Foi tão bom doar aquelas batatas para os
membros alemães no ano passado que queremos enviar‐lhes a colheita total deste
ano juntamente com esses arenques em conserva!” A licença para isso também foi
concedida.

Durante nossa estada na Holanda, visitamos um casal holandês que solicitou ao


Presidente Benson que lhes desse uma bênção para que pudessem ter filhos. Apesar
de serem relativamente avançados em anos e de não terem tido filhos até então,
acreditavam que para o Senhor todas as coisas eram possíveis. Por causa de sua fé
implícita, o Presidente Benson deu‐lhes uma bênção maravilhosa e fez‐lhes a
promessa de que seu desejo implorado em oração seria concretizado.

Em 1947 e pouco antes do final dessa nossa missão, enquanto eu trabalhava


nos escritórios da Igreja em Salt Lake City, fui convidado pelo Presidente Benson para
ir a seu escritório.

“Você se lembra daquele casal em Roterdã que abençoamos para que


pudessem ter filhos?”, ele me perguntou.

“Sim”, respondi, “lembro‐me bem daquela ocasião”.

“Bom”, continuou ele, “recebi uma carta deles esta manhã com uma foto do
primeiro filho deles”.

Nossos olhos ficaram marejados com lágrimas de gratidão pela bênção especial
que se concretizou em benefício daqueles santos fiéis.
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Nas Asas de Fé 65
Antes de sairmos da Holanda em direção a Londres, passei um dia inteiro na
casa do Presidente Schipaanboord, em Utrecht. Ele e seus familiares relataram alguns
dos problemas que enfrentaram durante a guerra. Eles me mostraram os pisos falsos
que tinham em casa nos quais haviam escondido máquinas de escrever, de calcular,
registros e outros itens para evitar que fossem confiscados.

Certa ocasião, soldados alemães apareceram à procura desse tipo de coisas e


também de homens que pudessem estar se escondendo para evitar serem enviados
para trabalhos forçados. Mais de uma vez os soldados haviam disparado tiros contra o
piso. Muitas dessas vezes, o Presidente Schipaanboord e outros membros estavam
amontoados sob o assoalho com o equipamento ao seu redor, mas nunca ninguém foi
atingido. Eles me mostraram vários dos buracos no assoalho como evidência dessas
experiências angustiantes.
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Antes de partirmos da Holanda, todos os registros da missão haviam sido


concluídos e foi preparada uma transferência oficial de contas. Os documentos foram
assinados pelo presidente que concluía a missão e pelo que iniciava.

Dessa forma, foi concluído nosso primeiro giro pela Europa. Nosso tempo havia
sido tão exíguo nessas viagens devido à intensa agenda, que nem eu nem o Presidente
Benson tínhamos tido tempo para assuntos pessoais, exceto para escrever uma ou
outra breve carta pessoal para nossos entes queridos na América. O Presidente
Benson disse o seguinte com respeito a esse período: “Estávamos tão ocupados
fazendo a história acontecer, que não conseguimos encontrar tempo para escrevê‐la.”

Como resultado dessa viagem, o caminho foi aberto para que os missionários
fossem readmitidos em vários países europeus e foi obtida total cooperação das
autoridades civis e militares para com o programa de bem‐estar e de assistência
espiritual da Igreja. Recebemos permissão para enviar itens extremamente necessários
e urgentes e distribuí‐los entre os membros da Igreja na maior parte dos países da
Europa e as negociações com outros países pareciam promissoras. Pode‐se até sentir
tentado a plagiar uma famosa citação do tempo da guerra e dizer: “Nunca tanto foi
realizado tão rapidamente por tão poucos”11 — mas éramos apenas instrumentos e
testemunhas do poder e dos propósitos do Senhor, que estava à frente de tudo.

11
Frase atribuída ao Primeiro‐Ministro britânico, Sir Winston Churchill, em 1942, durante a Batalha da
Grã‐Bretanha, na Segunda Guerra Mundial.

Nas Asas de Fé 66
CAPÍTULO 6

Os Britânicos Avançam

Ao retornarmos ao nosso escritório em Londres, o Presidente Benson


encontrou pelo menos um barril cheio de correspondências e de pacotes. Entre as
cartas, havia uma enviada por um médico do exército com quem ele havia conversado
longamente em nossa recente viagem. Ele falava sobre as preocupantes condições
morais existentes entre as forças armadas na Zona de ocupação americana na
Alemanha.

Depois de lê‐la e refletir sobre suas implicações de longo alcance, o Presidente


Benson disse, em resumo: “Irmão Babbel, diante dos fatos aqui descritos e daqueles
que o Capelão Badger nos relatou, vamos ver dentro de vinte ou vinte e cinco anos
surgir uma geração adulta na América tal qual a nossa nação nunca viu antes. Será
uma geração destituída de limites morais de todo tipo, sem respeito pela lei ou pela
ordem, pela vida ou pela decência. A América terá de pagar um alto preço pelas
indiscrições que estão sendo cometidas e pela doença que está se espalhando como
uma praga. Você e eu vamos viver para ver isso.”

No dia seguinte, ele enviou uma cópia da carta do médico, juntamente com
seus comentários, para a Primeira Presidência, para que os irmãos pudessem, por sua
vez, estar plenamente a par desses maus presságios. Em seguida, preparamos nosso
itinerário para o resto de abril, maio e junho. A agenda refletia o ritmo que estávamos
mantendo, que era o normal durante todo o período que passamos juntos na Europa.
Esta era a nossa agenda:

19 de abril Viagem para Basileia, Suiça

20‐21 de abril Conferência da Missão Suiça

22 de abril Retorno ao escritório de Londres

23‐26 de abril Escritório de Londres

27 de abril Viagem para Newcastle‐on‐Tyne, Inglaterra

28 de abril Conferência do distrito de Newcastle, em Sunderland

29 de abril Viagem de Newcastle para Bergen, Noruega

30 de abril a 7 de maio Tour da Missão Norueguesa

5 de maio Conferência em Bergen, Noruega

Nas Asas de Fé 67
7 de maio Conferência em Oslo, Noruega

8 de maio Viagem para Gotenburgo, Suécia

9‐13 de maio Tour da Missão Sueca

14 de maio Viagem para Copenhague, Dinamarca

15‐16 de maio Tour da Missão Dinamarquesa

17 de maio Viagem de avião para Roterdã, Holanda

18‐19 de maio Conferência em Roterdã

20 de maio Viagem de avião para Londres

21‐30 de maio Conferência Internacional de Agricultura

31 de maio‐a 7 de junho Escritório em Londres

8‐10 de junho Conferência da Missão Britânica

11 de junho Viagem de avião para Copenhague, Dinamarca

13 de junho Viagem de carro para a Alemanha

14 de junho Reunião como os membros em Kiel, Alemanha

15 de junho Reunião com os membros em Bremen, Alemanha

16 de junho Reunião com os membros em Hamburgo, Alemanha

17 de junho Reunião com os membros em Hanover, Alemanha

18 de junho Viagem para Berlim, Alemanha

19‐20 de junho Reuniões com os membros e miltares em Berlim

21 de junho Viagem para Colônia, Alemanha

22‐24 de junho Reuniões no Distrito de Ruhr, Alemanha

25 de junho Resolver assuntos de bem‐estar em Frankfurt, Alemanha

E em seguida, viagem para Londres, via Paris, Bruxelas e Haia.


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O volume total de correspondência representou uma tarefa quase infindável.


Às vezes, apesar de trabalharmos 18 horas por dia, tudo parecia inútil diante da
montanha de trabalho. No entanto, consegui enviar 104 cartas e relatórios — alguns

Nas Asas de Fé 68
contendo de 4 a 10 páginas, datilografados em espaço simples — em um período de
25 horas diretas de trabalho, das 4 horas da manhã de um dia até às 5 horas da manhã
do dia seguinte. Esse esforço parece ter reduzido o atraso, porém o que estávamos
fazendo parecia insignificante em comparação com o que ainda precisava ser feito.

No fim de semana da Páscoa, enquanto o Presidente Benson assistia a uma


conferência da missão em Zurique, Suíça, eu assisti às reuniões no Ramo Londres Sul.
Quando entrei na pequena capela em Ravenslea, o presidente do ramo me
cumprimentou e perguntou‐me se eu poderia falar na reunião.

Logo após o sacramento, o filme mudo “O Rei dos Reis” foi exibido enquanto o
coro murmurava vários hinos apropriados. Depois de assistir ao filme, meu coração
transbordava de alegria e gratidão. Fui inspirado a falar sobre a realidade da
ressurreição em relação à restauração do evangelho em nossos dias por meio do
Profeta Joseph Smith. Senti fortemente o Espírito do Senhor enquanto eu falava.

Após a reunião, uma certa irmã Downs, membro fiel havia mais de 46 anos,
veio falar comigo. Ela me disse que, durante meu discurso, ela vira com seus olhos
espirituais um belo personagem pouco atrás de mim, à direita. Ela havia tirado os
óculos por pensar que estava imaginando coisas, mas a visão continuou vívida. Como
ela era praticamente cega sem os óculos, compreendeu que o que vira não era fruto
de sua imaginação. Aquela experiência fortalecera muito sua fé, disse ela.

Sem contar ao presidente do ramo o que me fora dito pela irmã, indaguei ao
presidente do ramo sobre ela. Ele a considerava não somente racional por completo,
mas também altamente espiritual. Concluí que ela tinha enxergado com seus olhos
espirituais naquela ocasião e que eu não estava enganado a respeito da força do
Espírito presente à reunião.

Certo dia, naquele período, o Presidente Hugh B. Brown e sua esposa viajaram
conosco em nosso carro para Birmingham, Inglaterra, para assistirmos a uma reunião
especial com os presidentes de distrito da Missão Britânica. Foi um prazer genuíno
desfrutar do rico intercâmbio de experiências e comentários que ouvi pelo caminho.
Impressionou‐me particularmente a insistência do Presidente Brown em viajar no mais
desconfortável assento traseiro ao lado da esposa em vez de ficar sentado longe dela.
Esse amor e terna preocupação com sua companheira eterna ampliaram a estatura do
Presidente Brown diante dos meus olhos e em meu coração.

A caminho de Birmingham, passamos por Coventry. O Presidente Brown nos


mostrou a catedral em ruínas e outros estragos causados pelo bombardeio. Ele
explicou que a moderna cidade de Coventry tinha sido conhecida, antes da guerra,
como um dos grandes centros da indústria britânica de automóveis e motocicletas. Ela
tinha agora de tornado um símbolo da “blitz” de 1940‐41 que os alemães

Nas Asas de Fé 69
desencadearam na tentativa vã de esmagar a população britânica e seus centros de
produção bélica.

O famoso ataque a Coventry tinha causado mais danos permanentes aos belos
prédios medievais da cidade do que às grandes fábricas de material bélico que ficavam
na periferia. As antigas casas em estilo Tudor, decoradas em madeira, no centro da
cidade, haviam sofrido uma destruição considerável. E a catedral — um dos melhores
exemplares de arquitetura perpendicular da Europa — estava em ruínas.

O espírito indômito da Grã‐Bretanha, como foi‐nos explicado, foi demonstrado


na reação de Coventry ao famoso bombardeio de 14 de novembro de 1940. Das 80 mil
pessoas que trabalhavam lá, 77 mil, ou 96 porcento, estavam de volta ao trabalho em
quatorze dias.

Birmingham é essencialmente uma grande cidade industrial. Costumava‐se


dizer que em Birmingham “fabrica‐se de tudo, do alfinete ao motor a vapor”. Em todo
o mundo, antes da guerra, “os produtos de Birmingham” eram os artigos de metal de
tradicionais preços baixos e jóias que tiveram um papel tão importante no comércio
externo britânico. Além disso, Birmingham é o centro de uma vasta indústria de
engenharia.

Birmingham fica no coração da Inglaterra, a apenas 38 quilômetros da região


de Stratford‐on‐Avon, onde nasceu Shakespeare. A cidade é um importante centro não
apenas do movimentado sistema de ferrovias, mas também do altamente
desenvolvido sistema de canais fluviais que interligam os quatro grandes portos de
Londres, Liverpool, Hull e Bristol. Na ocasião em que a visitamos, a população da
cidade havia atingido mais de um milhão, tornando‐a a segunda maior cidade
britânica.
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No dia seguinte à nossa bem‐sucedida reunião em Birmingham com os


presidentes dos distritos, chegamos a Sunderland. Nesse lugar, o Presidente Benson
havia sido presidente da conferência missionária quando serviu como missionário no
início da década de 1920. Ele recebeu uma calorosa recepção dos membros que se
lembravam dele naquela época.

Durante a reunião de sábado à noite, o Presidente Benson relatou uma


experiência inspiradora da vida de sua sogra, a irmã Amussen. A irmã Gladys Quayle,
que registrou as palavras dele em taquigrafia, deu‐me uma cópia, que contém o
seguinte:

Essa boa senhora, [a irmã Amussen], faleceu há cerca de um ano e meio. Morávamos em
Washington, D.C. na época. Minha esposa, quando ficou sabendo que ela estava enferma,

Nas Asas de Fé 70
tomou um avião com nossas duas filhas, mas só conseguiu chegar a Logan, Utah, algumas horas
depois que ela falecera. Todavia, algo interessante ocorrera na semana anterior.

Parece que esse acontecimento causou grande impressão na pequena Logan, maior do que
qualquer outra coisa que lá já tivesse ocorrido. Foi também um reforço ao testemunho de
muitas pessoas, inclusive de não membros.

No sábado pela manhã, segundo me lembro, ela chegou à casa de sua filha mais velha, que
ainda mora em Logan. A irmã Amussen vivia sozinha e era viúva havia quarenta anos. Depois de
estar no centro da cidade e trabalhado um pouco, ela foi à casa da filha mais velha e disse:
“Mabel, o Senhor me fez saber por meio do meu marido que a minha hora havia chegado e que
na quinta‐feira tudo terminará e eu morrerei.”

Vocês podem bem imaginar o choque que foi para a filha dela, porque aparentemente sua mãe
gozava de perfeita saúde. A irmã Amussen continuou: “Seu pai me apareceu ontem à noite — e
essa não foi a primeira vez — mas apareceu‐me na noite passada e disse‐me que tinha vindo
me avisar que chegara minha hora, que eu deveria estar pronta para partir na quinta‐feira da
próxima semana e que eu deveria colocar meus negócios em ordem.”

Para concluir, ela disse: “Não há nada com que se preocupar. A morte é tão natural quanto o
nascimento. Não estou preocupada, nem pesarosa. Sinto‐me cansada.”

A filha tentou convencê‐la que ela estava imaginando coisas, ao que a irmã Amussen replicou:
“Não, não estou imaginando coisas. De fato aconteceu e o que estou dizendo é verdade.”

O fato não causou grande impacto na filha por algum tempo — pelo menos não a ponto de
fazê‐la contar o ocorrido para o resto da família.

Saindo de lá, a mãe foi ao banco, de onde sacou suas parcas economias, pagou suas contas, foi
e escolheu seu próprio caixão e fez os arranjos para pagá‐lo. Depois voltou para casa e
continuou com seus afazeres, sem dizer nada a mais ninguém. Mais tarde ela chegou a ligar
para o eletricista para que ele fosse lá desligar a energia — as luzes — e instruiu o encanador
para desligar a água. Tudo isso aconteceu na terça‐feira, se me lembro bem.

Segundo me contou o bispo depois, no domingo ela tinha comparecido à reunião de jejum e
testemunhos. “Ela prestou o testemunho, o que sempre fazia no domingo de jejum, mas
naquele domingo em particular seu testemunho foi muito marcante, como se ela estivesse se
despedindo e falou com um fervor maior do que eu já a ouvira demonstrar. Depois que ela se
sentou, ninguém mais se levantou para prestar testemunho. Ficamos lá sentados até que
finalmente me levantei e anunciei o hino de encerramento.

Na noite de terça‐feira, ela começou a sentir‐se mais ou menos fraca e ligou para a filha
perguntando se o marido dela poderia buscá‐la, pois ela queria passar os dois próximos dias
com eles. Ela informou á filha até mesmo a cama em que queria se deitar. Ela disse: “Só vou
estar por aqui por mais dois dias e eu gostaria de ficar no quarto do Dick”. (Dick era um
sobrinho de quem ela gostava muito). Chegando lá, deitou‐se e ficou cada vez mais fraca.

O filho dela foi lá e conversou com ela um pouco e ela lhe disse que na quinta‐feira tudo
terminaria, mas ele tentou dissuadi‐la. Na quinta‐feira, sua filha chegou perto da cama e a irmã
Amussen disse: “Mabel, vou dormir agora. Estou fraca e cansada, mas meu coração está feliz.
Não me acorde, mesmo que durma até de noite.” Então, ela adormeceu para sempre.

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Nas Asas de Fé 71
Frederick W. Babbel, June A. Babbel, Flora Amusen Benson, Ezra Taft Benson, 26 de janeiro de 1946

Em uma das reuniões dominicais, o Presidente Benson falou a respeito de


algumas das mais amargas perseguições que enfrentara em Sunderland, contrastando
aquelas condições com a presente aceitação dos élderes, onde quer que pregassem.
Embora eu tenha feito anotações completas do relato dessa vez, não vou reproduzi‐las
aqui, porque anos mais tarde, quando o Presidente Benson era Secretário12 da
Agricultura no gabinete do Presidente Eisenhower, ele relatou esse incidente a um
repórter da revista Seleções do Reader’s Digest em termos tão belos que decidi incluí‐
lo no lugar das minhas limitadas anotações.

Criar onze filhos vigorosos até chegarem à honrosa hombridade ou feminilidade adulta em uma
pequena fazenda não é tarefa fácil. No entanto, como meu pai e minha mãe se devotaram
totalmente a essa tarefa, eles nunca pareciam temer o futuro. A razão era a fé que tinham — a
confiança de que sempre podiam achegar‐se ao Senhor e que Ele os ajudaria.

“Lembrem‐se de que o que quer que façam ou onde quer que estejam, vocês nunca estarão
sós,” era o conselho costumeiro de meu pai. “Nosso Pai Celestial está sempre perto. Vocês
podem pedir e receberão Sua ajuda por meio da oração.”

Em toda a minha vida esse conselho de depender da oração tem sido valorizado acima de
todos os outros conselhos que já recebi. Ele se tornou parte de mim, uma âncora, uma fonte
perene de força.

A oração foi o meu socorro durante a experiência mais aterradora da minha juventude. Eu era
missionário da Igreja Mórmon em Sunderland, Inglaterra. Meu companheiro, William Harris, e
eu estávamos de costas um para o outro, frente à frente com uma multidão hostil que havia

12
N do T: O cargo de Secretário no gabinete presidencial americano equivale ao de Ministro, no Brasil.

Nas Asas de Fé 72
13
sido engrossada por uma ruidosa malta que saía dos pubs , estava ansiosa diversão e que não
era aversa à violência.

O que começara como uma reunião de rua comum, logo tomou proporções de um motim
raivoso e descontrolado. Muitos rumores falsos e maliciosos sobre a nossa Igreja haviam sido
espalhados pela cidade.

A multidão começou a agitar‐se e alguém lá atrás gritou: “O que está havendo?” Várias vozes
gritaram em uníssono: “É aqueles mórmons danados!” Essa frase fez explodir um clamor
terrível: “Vamo pisotear eles!” “Joga eles no rio!”

A turba avançou e tentou nos jogar no chão para que pudessem nos pisotear. Em minha
ansiedade, orei silenciosamente ao Senhor pedindo orientação e proteção. Quando parecia
que eu não ia aguentar mais, um jovem corpulento avançou até chegar ao meu lado e disse em
voz alta e clara: “Acredito em cada palavra que disseram esta noite. Sou seu amigo.”

Quando a voz dele foi ouvida, abriu‐se um pequeno círculo ao meu redor. Para mim, era uma
resposta direta à minha fervorosa oração. O que percebi em seguida foi um robusto policial
inglês nos conduzindo em segurança por entre a multidão até chegarmos a nossa casa.

Recorrer à oração em tais momentos de crise não era algo nascido do desespero. Era
simplesmente o fruto de um adorável hábito de oração familiar que eu tinha absorvido desde a
mais tenra infância. Lembro‐me muito bem de quando a família era pequena, todos nos
ajoelhando juntos na cozinha. Depois, com o crescimento da família em número e tamanho,
passamos a orar na sala de jantar, que havia sido adicionada à casa. Cada um de nós, ainda
crianças, revezávamo‐nos para oferecer orações simples e sinceras. Como sou grato por ter
continuado essa prática em meu próprio lar, e por minha devotada esposa e filhos
considerarem isso uma fonte infalível de força e contentamento…

É tão bom para a alma saber que Deus nos conhece e que está pronto para atender quando
colocamos Nele nossa confiança e fazemos o que é certo. Não há lugar para medo entre
homens e mulheres que colocam sua confiança no Todo‐Poderoso, que não hesitam em
humilhar‐se em busca de orientação divina por meio da oração. Embora perseguições se
levantem, apesar dos reveses que acontecem, na oração podemos encontrar segurança, pois
Deus dará paz à alma. Essa paz, esse espírito de serenidade, é uma grande bênção.

Se eu pudesse conceder a alguém um presente de valor inestimável, não daria riqueza,


profunda sabedoria ou as honras dos homens. Dar‐lhe‐ia a chave da força e da segurança
interior que meu pai me deu, quando me aconselhou: “Receba ajuda Dele por meio da
14
oração.”

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Para mostrar a mudança de atitude da população, o Presidente Benson


mencionou o comentário do repórter do jornal People, que o tinha entrevistado pouco
antes de sairmos em nossa viagem. O repórter disse: “Esta foi a hora mais
reconfortante que já tive na vida. Sou grato por saber que há um povo na Terra que

13
N do T: Pub, bar típico da Grã‐Bretanha.
14
Extraído de “The Best Advice I Ever Had” [O Melhor Conselho Que Já Recebi], de Ezra Taft Benson,
Reader’s Digest, novembro de 1954. Copyright 1954 de The Reader’s Digest Assn., Inc.

Nas Asas de Fé 73
sabe para onde vai e que tem um programa tão extraordinário para seguir. Juro que
desejaria que todo o mundo pudesse conhecer esse programa.”
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Ao dirigir nosso carro em Sunderland, percebi uma interessante prática


daqueles dias. À noite, os carros em algumas das principais cidades britânicas,
rodavam apenas com as lanternas acesas. Ao aproximar‐se de um cruzamento, o
motorista piscava os faróis. O carro cujos faróis iluminassem primeiro o cruzamento
aparentemente tinha a preferência. Felizmente constatamos que os motoristas
britânicos eram corteses e amáveis. Durante a guerra, eles haviam colocado pequenos
refletores à margem de muitas ruas, o que tornava as luzes das lanternas o suficiente
para se dirigir à noite, tornando confortável a experiência de dirigir à noite em muitas
cidades.

Após tomarmos o desjejum bem cedo, partimos para Carlisle. Nossa rota nos
levou através da região dos lagos da Inglaterra — provavelmente uma das mais
adoráveis daquele país. Ficamos fascinados com sua beleza exuberante. O Presidente
Benson nos contou que tinha passado por aquela região com o Presidente David O.
McKay quando este era Presidente da Missão Europeia durante a década de 1920. Ele
disse que o Presidente McKay ficava tão embevecido com a paisagem que começava a
citar Shakespeare, Keats, Shelley, Burns ou algum dos outros grandes poetas, quase se
esquecendo da direção, ao olhar para o céu. Às vezes ele chegava a largar o volante
para enfatizar alguns trechos de prosa com os gestos apropriados. Mais de uma vez,
disse o Presidente Benson, seu carrinho chegava a sair da estrada, obrigando o
Presidente McKay a trazê‐lo de volta ao rumo. Tive certeza de que mesmo naquela
época o Senhor mostrou Seu amor e cuidados por aquele grande homem, preservando
sua vida muitas vezes, resguardando‐o de acidentes ou ferimentos.

Durante a viagem, o Presidente Benson contou também uma piada de um


turista americano que contratou um guia inglês para mostrar‐lhe o país. Onde quer
que fossem, o americano fazia odiosas comparações entre o que via e algo muito mais
sensacional ou mais extraordinário na América.

Quando finalmente chegaram àquela bela região de lagos, a paciência do guia


já estava no limite, mas o americano reconheceu que aquela paisagem era
incomparável. “Entretanto”, acrescentou, “se esta região estivesse na América, nós a
teríamos transformado em vitrine!”

Essa foi a gota d’água. O guia respondeu logo: “Bem, o senhor bem que poderia
ter esses lagos em seu país, se realmente quisesse.”

O americano se interessou logo em saber como tal coisa poderia ser realizada.
Então o guia replicou: “Vou lhe dizer como. Tudo o que você precisa é de um tubo

Nas Asas de Fé 74
longo. Coloque uma ponta dele aqui nos nossos lagos e a outra na América. Se você
tiver tanto fôlego para sugar a água quanto você tem para contar lorotas, os lagos irão
para lá facilmente!”

Logo chegamos à pitoresca Carlisle, com seu famoso castelo ligado à história de
Mary, Rainha da Escócia. Depois de visitarmos alguns membros da Igreja que o Élder
Benson conhecera durante sua missão, dirigimo‐nos até a vizinha Gretna Green,
Escócia, onde visitamos a famosa loja do ferreiro, cenário de milhares de casamentos
secretos nos últimos 150 anos. Ali os casais se casavam unindo as mãos sobre uma
bigorna. Na lei escocesa, não havia a exigência do envolvimento de Deus ou da igreja
na cerimônia. Assim, casais ansiosos (geralmente um dos dois ou ambos eram
menores cujos pais haviam negado consentimento) eram casados simplesmente pela
declaração diante das testemunhas de que desejavam ser unidos em matrimônio.

Muitas iniciais estavam rabiscadas nas paredes da velha loja de ferreiro. Fomos
informados de que a última “cerimônia” oficial havia sido realizada em 1940. O último
“sacerdote‐ferreiro” oficial, que nos servia de guia, assegurou‐nos que centenas de
milhares de casamentos haviam sido realizados lá ao longo de muitos anos. A bigorna,
diziam, trazia boa sorte, e todos os desejos formulados enquanto se punha a mão
sobre ela eram realizados.

Na manhã seguinte, partimos cedo para Newcastle e vislumbramos a famosa


muralha romana, que se estende ao longo de quase toda a estrada entre Carlisle e
Newcastle. Antigamente fora usada como fortificação e meio de defesa contra os
escoceses. A maior parte da viagem foi feita sobre a antiga estrada romana que, agora
recuperada, era considerada uma maravilha em termos de engenharia, embora tivesse
quase mil e quinhentos anos.

Newcastle tem esse nome por causa do “new castle” (castelo novo) construído
na época dos normandos15, provavelmente sobre o local onde existira uma antiga
fortaleza romana. Embora a região ao longo do Rio Tyne seja altamente
industrializada, ainda existem mais castelos por quilômetro ali do que em qualquer
outra parte da Grã‐Bretanha. Um catálogo do ano de 1541 listava nada menos que 120
castelos nessa região. Até mesmo hoje ainda existem sessenta ou setenta castelos,
alguns ainda habitados, mas a maioria não passa de ruínas.

Ao embarcarmos sob garoa no S.S. Jupiter, em Newcastle, observamos nosso carro ser
colocado na proa do navio e começamos nossa viagem sobre o agitado Mar do Norte.
Fomos alertados de que haveria uma forte tempestade no trajeto, o que poderia nos
atrasar um dia, mas as bênçãos do Senhor continuavam conosco; desfrutamos de uma
bela viagem em toda sua extensão e chegamos no horário previsto na Noruega.

15
N do T: Período da história da Inglaterra que vai de 1066 até aproximadamente o final da Idade
Média.

Nas Asas de Fé 75
CAPÍTULO 7

Esplêndida Escandinávia

Ao nos aproximarmos de Stavanger, Noruega, fomos saudados por um sol


radiante e pela bela paisagem de um litoral recortado por inúmeras reentrâncias e
salpicado de pequenas ilhas, cada uma pontilhada esparsamente com casinhas brancas
de telhados vermelhos. O Presidente e a Síster A. Richard Peterson estavam nos
esperando juntamente com alguns dos membros locais quando chegamos pouco antes
das 9 da noite.

A história do Presidente Peterson e de seus missionários é outro exemplo do


poder do Senhor se manifestando para ampliar Sua obra. Incluo essa história neste
ponto, apesar de o final dela ter acontecido algum tempo depois dessa ocasião.

Quando o Presidente Peterson e os missionários chegaram à Noruega,


receberam permissão de permanecer por apenas sessenta dias. Depois de solicitarem
extensão desse prazo, conseguiram uma e, por fim, foram notificados de que não
seriam concedidas outras. Só lhes restou então orar e jejuar.

Na véspera da data marcada para a partida deles, o funcionário que era tão
inflexível e ácido com eles teve um derrame e faleceu. Quando os outros funcionários
que cuidavam do caso foram consultados na manhã seguinte, demonstraram boa
vontade e estavam até desejosos de que os missionários permanecessem
indefinidamente.
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Devido ao avançado da hora em que chegamos a Stavanger, o comandante do


navio nos convidou a passar a noite a bordo, convite esse que ficamos felizes em
aceitar.

Ainda estava claro e fomos informados que naquela terra do “sol da meia‐
noite” praticamente não havia escuridão naquela época do ano. Estávamos em maio.
Um jovem repórter do maior jornal diário de Stavanger apareceu para entrevistar o
Presidente Benson. Duas outras entrevistas foram agendadas para a manhã seguinte.
Essas entrevistas foram amigáveis e foram uma excelente publicidade.

Na manhã seguinte, encontrei os seguintes itens em um agradável folheto


turístico que descrevia a Noruega em termos cativantes.

Nas Asas de Fé 76
A Noruega fascina os meteorologistas, por causa de seu clima surpreendente e inacreditável.
Para começar, os fiordes, reentrâncias profundas do mar por entre as montanhas, estão
sempre livres de gelo, apesar de as temperaturas chegarem às vezes abaixo de 40º centígrados.

A Noruega é o país mais estreito da Europa, sendo que na média tem uma largura de cerca de
100 quilômetros. É também o que tem a população mais esparsa, o que tem o maior número
de ilhas e de montanhas e também o primeiro em que as mulheres tiveram direito a voto.
Possui cento e cinquenta mil ilhas, sem contar as pequenininhas, e três quintos de seu
território é montanhoso, o que representa 191 mil quilômetros quadrados de território
escarpado. Seu litoral, se fosse linear, se estenderia do Polo Norte ao Polo Sul... Alguns lagos
têm uma profundidade de 300 metros abaixo do nível do mar.

Talvez mais fascinantes que os próprios noruegueses são os lemíngues. Essas criaturas, da
família dos roedores, são incansáveis, tenazes e destemidas. Provavelmente você já ouviu falar
da migração dos lemíngues das montanhas para o mar, que é feita sob o manto da noite,
enquanto os dias, presume‐se, são reservados ao sono. Em sua marcha, esses roedores, que
são vegetarianos, comem toda a vegetação que encontram. Por sua vez, eles são devorados
por doninhas, lobos, corujas e renas, que, em outras circunstâncias, também são vegetarianos.
Quando o bando de lemíngues, cujas baixas são substituídas na marcha pelos que nascem no
trajeto, chega ao mar, todos saltam nágua e lançam‐se a nadar em direção à Inglaterra, mas
apesar de serem excelentes nadadores, ninguém nunca viu um lemíngue na Inglaterra...

Foram os noruegueses que descobriram os benefícios do óleo de fígado de bacalhau. Antes da


invasão pelos alemães, a indústria desse óleo era uma das mais pujantes da Noruega. Outra era
a exportação de penas do pato eider (Somateria mollissima), muito apreciadas para se fazer
travesseiros. Elas são tão macias e finas, que três quilos delas, quantidade suficiente para
encher um acolchoado, podem ser comprimidas em uma bola do tamanho do punho de um
homem. O ócio é visto com desconfiança no país; os noruegueses se gabam de que os únicos
vagabundos são as gaivotas. Os fazendeiros mantêm as crianças amarradas, como cabras, por
causa dos precipícios.

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Um carregamento de bem‐estar com alimentos e outro com roupas,


totalizando mais de trezentos fardos de carne enlatada tinham chegado havia pouco.
Esses produtos foram suficientes para atender às necessidades extremas dos membros
da Igreja naquela área.

O irmão Gustav Wersland, presidente do ramo, acompanhou‐nos em um giro


para conhecermos as redondezas e o Presidente Peterson foi o intérprete. Eu nunca
havia visto um lugar como aquele. Aqui e ali viam‐se pilhas de pedras que os
fazendeiros haviam removido uma a uma para tornar a terra arável. Cada lote tinha
fileiras e fileiras de pedras empilhadas formando quilômetros e quilômetros de muros.
Muitos lotes de cerca de 30 metros quadrados eram cercados nos quatro lados por
muros da altura de um homem, com uma passagem aberta entre um lote e outro.
Parecia um labirinto. Fiquei exausto só de pensar nas centenas de anos de trabalho
árduo que deve ter sido necessário para limpar aquela terra. Não é de se estranhar
que os frutos do mar há muito compõem a base da dieta norueguesa!

Nas Asas de Fé 77
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Ficamos sabendo que o irmão Wersland tinha sido um líder da resistência


norueguesa durante a Segunda Guerra Mundial. Como resultado de sua coragem e
façanhas, ele tornou‐se um dos heróis e patriotas mais condecorados da nação.
Quando ele nos mostrou um cemitério de aviões alemães, todos os destroços
empilhados num só lugar durante a liberação da Noruega, ficou evidente que ele
preferia apagar de sua mente quaisquer lembranças dos nazistas.

Contaram‐nos que várias vezes durante a guerra, soldados alemães que eram
membros da Igreja haviam assistido às reuniões, administrado o sacramento e até
abençoado os enfermos. Às vezes eles obtinham rações extras de seu exército
(alemão) e as traziam para alguns dos membros noruegueses, para os quais a comida
estava muito racionada. O irmão Wersland só tinha elogios para os soldados alemães
que eram membros da Igreja e demonstrava admiração por eles e pelo amor que
manifestaram durante a guerra. Ficamos felizes em ouvir isso, porque só confirmava o
que já nos haviam dito em outros países que tínhamos visitado até então.

Na casa do irmão Wersland ficamos sabendo de mais detalhes sobre a vida


daquele homem excepcional durante os anos da guerra. O Presidente Benson
mencionou inesperadamente a palavra nazista e o irmão Wersland ficou visivelmente
perturbado. Sem dizer uma palavra, ele pegou uma jarra de leite que estava sobre a
mesa e a esmagou entre as mãos como se fosse um brinquedo de plástico.

O Élder Benson e eu quase não podíamos acreditar no que tínhamos acabado


de ver. O Presidente Benson estendeu a mão, pegou outra jarra de leite e apertou‐a
com força, como fizera o irmão Wersland. Primeiro apertou‐a com uma das mãos,
depois com as duas, mas não conseguiu repetir o feito. Quando a colocou de volta na
mesa, o irmão Wersland pegou‐a e esmagou‐a como havia feito com a outra jarra! Ao
apertar‐lhe a mão para cumprimentá‐lo percebi que sua pele era tão resistente quanto
couro de boa qualidade. Ele poderia ter esmagado minha mão, se quisesse.

Disseram‐nos que depois de muitas experiências angustiantes como líder da


resistência norueguesa clandestina, o irmão Wersland acabou sendo capturado e
mandado para um campo de concentração na Alemanha. Foi transferido de campo
para campo até chegar à Polônia.

Onde quer que o mandassem, ele sempre era vigiado por guardas fortemente
armados. Várias vezes o ameaçaram de extermínio. No entanto, ele ensinava o
evangelho aos guardas sempre que tinha uma chance. Por fim, ele e outros dezesseis
companheiros foram condenados à morte por fuzilamento.

Embora seus companheiros tivessem sido mortos, ele sobreviveu. Mais tarde,
com a ajuda de um oficial alemão que aceitou a mensagem do evangelho, ele

Nas Asas de Fé 78
conseguiu escapar e acabou chegando à Dinamarca, onde entrou em contato com os
trabalhadores clandestinos. Com a ajuda deles, conseguiu voltar para a Noruega e
reassumiu seu papel de líder do movimento de resistência.

Certo dia, ele e seu corajoso grupo de combatentes foram cercados por três
divisões alemãs. Estavam com pouca munição e os suprimentos estavam quase no fim.
Pelo que consegui entender do seu relato, ele orou ao Senhor para saber o que fazer.
Na manhã seguinte, ele disse a seus companheiros que iria de motocicleta até o
vilarejo mais próximo para procurar ajuda e suprimentos. Seus companheiros disseram
que isso significava suicídio, mas ele já havia decidido. Ao entrar na cidade em sua
motocicleta, dispararam contra ele várias vezes, mas ele escapou milagrosamente sem
qualquer ferimento. Pouco depois ele estava de volta a seu grupo.

Na mesma noite, ele e seus amigos conseguiram capturar vários caminhões


alemães carregados de alimentos e munição. Depois conseguiram passar com os
caminhões pelas linhas alemãs sem qualquer incidente sério. Esses suprimentos foram
essenciais para poderem manter suas atividades de fustigação das tropas alemãs e
resistir até a liberação por parte dos soldados americanos.
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Depois de sairmos da casa do irmão Wersland, desfrutamos de uma viagem


noturna em barco a vapor até Bergen, outra cidade norueguesa. Foi ali que vimos
evidências de todo tipo da eficácia do Programa de Bem‐Estar da Igreja. A maioria dos
membros naquele lugar vestia roupas que vieram da América e todos estavam
robustos e saudáveis.

Visitamos o mercado de pescados, onde a maioria dos peixes ficava nadando


em tanques especiais embutidos no porão dos barcos. Certas espécies só podiam ser
vendidas vivas. Observamos uma família escolher um belo peixe, que foi apanhado
com uma rede e trazido à superfície pela dona da barraca. Depois, colocou‐o sobre o
balcão, cobriu‐o com um pedaço de pano grosso e, enquanto ele ainda se debatia,
dissecou‐o em nossa presença. Ele ainda se mexia quando ela o embrulhou num jornal
e o entregou à freguesa. Aquilo é que era peixe fresco!

Depois de visitarmos dois terrenos onde poderíamos construir uma capela, o


Presidente Peterson levou‐nos até o pico de um rochedo conhecido como “Fløi
Fjellet”. Daquele ponto elevado, ele queria nos mostrar a conveniência dos terrenos
que havíamos visitado — uma vez que de lá podíamos literalmente contemplar a
cidade inteira, quase como se estivéssemos em um avião que voasse baixo. Chegamos
ao topo em um teleférico que subia uma inclinação de quarenta graus. O Presidente
Peterson nos disse que o Presidente David O. McKay tinha visitado aquele local
durante uma de suas viagens pelo mundo e tinha declarado ser aquele um dos
panoramas mais magníficos que já vira.

Nas Asas de Fé 79
Nossa visão alcançava quilômetros em todas as direções. Aninhada no sopé do
rochedo estava a pitoresca cidade de Bergen, com seus parques e lagos multicores,
casas de telhados vermelhos e atracadouros. Era possível enxergar um fiorde inteiro se
estendendo por vários quilômetros terra adentro. Dois outros fiordes de estonteante
beleza eram visíveis recortando e penetrando o litoral. Montanhas e rochedos
escarpados nos cercavam por todos os lados. Dezenas de navios avançavam para baixo
e para cima no Fiorde Bergen, muitos dos quais parecendo casquinhas de noz
flutuando nas águas que avançavam continente adentro. O ar estava tão puro que
enxergávamos bem longe e víamos uma miríade de ilhas grandes e pequenas que
salpicavam o Mar do Norte e se aninhavam ao longo da acidentada costa.

Mais tarde naquele dia, mencionei a um dos membros que falava um inglês
razoável sobre o que ouvira falar das crianças ficarem amarradas como cabras no alto
dos rochedos que se erguem acima dos fiordes. Ele então me disse que em algumas
áreas rurais do norte do país ainda existia o costume incomum de, durante o outono
de cada ano, as mães costurarem as roupas de baixo, de flanela, no próprio corpo das
crianças de modo a que elas não as trocassem durante todo o inverno. Isso permitia
que os óleos corporais se acumulassem, formando assim um escudo que os protegia
do frio rigoroso. Por isso — foi o que me disseram — eles conseguiam evitar quase
completamente os resfriados, a pneumonia e outras doenças desse tipo. Na
primavera, as mães reuniam de novo os filhos e faziam uma brincadeira enquanto
descosturavam as roupas para que as crianças tomassem banho.

Conhecemos vários irmãos, entre os quais um que se chamava Art Wilford, que
acabara de voltar de um longo período de convalescença na Suécia. Ele contou sua
fascinante história de como havia sido capturado enquanto lutava como membro da
resistência em Bergen, tendo depois sido enviado de um campo de concentração atrás
do outro na Alemanha, onde sofreu todo tipo de humilhação e doença. Quando
finalmente conseguiu escapar, mais morto do que vivo, acabou chegando à Suécia.
Estava tão fraco, que ninguém esperava que ele sobrevivesse. As semanas se
transformaram em meses até que finalmente se recuperou o bastante, graças às
orações, para poder andar de muletas, que ele ainda usava quando o conheci. Depois
daquele encontro, ele mudou‐se para os Estados Unidos e está servindo como
patriarca e suas experiências da guerra emocionaram muitas plateias em todo o país.

No trajeto de Stavanger até Oslo alguns dias mais tarde, viajamos de carro e
circulamos pelo contorno de vários fiordes que nos deixaram encantados. Um vale em
particular era emoldurado por colinas verdejantes cobertas por renques de árvores
das mais frondosas que já tinha visto. Abaixo, havia um regato prateado que descia
das montanhas cascateando desde as escarpadas elevações para atravessar a
sonolenta aldeia em seu caminho, até desaguar no fiorde. Além de sua foz, estavam as
brilhantes águas do sempre surpreendente Mar do Norte. O cenário parecia combinar

Nas Asas de Fé 80
em uma só imagem praticamente todos os elementos de beleza que se poderia
imaginar. Esse lugar, conhecido como Kvinnesdahl, é considerado um dos mais belos
da Noruega.

Já era bem tarde quando chegamos a Fevik, no estuário de outro maravilhoso


fiorde. O sol ainda brilhava forte, por isso decidimos passear por ali até o sol se pôr.
Finalmente, às duas da manhã, contemplamos o pôr do sol e fomos dormir — apenas
para sermos despertados pelo brilhante sol matinal uma hora mais tarde! Tínhamos
tido um longo dia e como eu ainda estava cansado, fechei as persianas do quarto e
dormi até às 5h30 da manhã. Logo em seguida, retomamos nossa viagem em direção a
Oslo.

Nesse trecho da viagem passamos por belos cenários de bosques salpicados de


centenas de lagos e pitorescas ilhas. Grande parte da estrada estava sendo escavada
nos rochedos de pedra ou granito. O mais surpreendente era ver que praticamente
cada detalhe da construção era executado com ferramentas manuais em vez de
martelos pneumáticos ou britadeiras, como eu estava acostumado a ver na América.

A estrada parecia ter milhares de curvas fechadas, voltas em forma de


ferradura e trechos muito sinuosos, o que tornava o ato de dirigir algo que exigia
muita atenção, mas que também nos proporcionou tempo suficiente para desfrutar da
magnífica paisagem.
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Depois de uma série de frutíferas reuniões em Oslo, partimos em direção à


Suécia. O Presidente Benson estava dirigindo quando chegamos à fronteira sueca.
Depois de passarmos pela alfândega, ele continuou a dirigir, sempre na pista da
direita, como é o costume na maioria dos países europeus. De repente, percebemos
que um carro que vinha na direção contrária estava em linha de colisão conosco.
Visivelmente irritado, o Presidente Benson exclamou: “Será que ele não sabe ficar do
lado certo da estrada?”

Foi então que eu lembrei a ele de que na Suécia a mão de direção é invertida,
como na Inglaterra. Com um sorriso sem graça ele rapidamente fez o nosso carro
voltar à pista da esquerda e evitou o que poderia ter sido um grave acidente.

Uma das irmãs que solicitou uma bênção em Gotemburgo era uma deficiente
que usava uma cadeira de rodas. Parecia que ela sofria de artrite aguda. Nos disseram
que os pais dela haviam feito tantas objeções a ela batizar‐se na Igreja que, apesar de
sua condição de dependência, chegaram a deserdá‐la legalmente, obrigando‐a a cuidar
da própria vida como pudesse. Os membros da Igreja a haviam ajudado muito, mas ela
própria queria servir ao próximo. Ao pedir ao Presidente Benson que lhe desse uma
bênção, ela expressou esperança de que um dia pudesse pregar o evangelho às

Nas Asas de Fé 81
pessoas que ela amava e ao povo sueco. O Presidente Benson, na bênção, prometeu‐
lhe que de acordo com a fé que ela tinha, seus desejos seriam realizados.

Meses mais tarde, ficamos sabendo que aquela irmã havia sido chamada para
servir em uma missão. Devido à fé que tinha, ela abandonou a cadeira de rodas e
cumpriu uma missão extraordinária. Mais tarde ainda, ela emigrou para os Estados
Unidos e realizou ordenanças sagradas no Templo de Salt Lake.

Dois dos jornais de Gotemburgo publicaram excelentes artigos sobre o


Presidente Benson e sobre sua visita. Essa publicidade favorável causou uma mudança
marcante nas condições que existiram até alguns anos antes. O mesmo tratamento
cordial nos foi concedido pela imprensa em Joenkoeping, Oerebro, Gaevle, Estocolmo,
Norrkoeping e Malmö.

Nossa viagem de Joenkoeping a Oerebro foi feita ao longo de 135 quilômetros


às margens do segundo maior lago da Suécia. O cenário era maravilhoso. Em Oerebro,
fomos saudados por um pitoresco castelo antigo circundado por um fosso — e esse
castelo parecia estar em excelentes condições, apesar da idade. Fiquei profundamente
impressionado com a luxuriante beleza daquela terra abençoada. Talvez paisagens
assim sejam responsáveis pela decepção que muitos dos membros escandinavos
demonstram quando contemplam a árida desolação da região montanhosa do Oeste
americano.

Aparentemente a Suécia tinha bastante fartura alimentar. Certo dia, em


viagem, almoçamos em um “Consum”, um restaurante operado em sistema de
cooperativa. O Presidente Benson falou eloquentemente em louvor das cooperativas,
com as quais ele já trabalhara vários anos nos Estados Unidos, até o momento em que
ele viu uma mulher entrar e comer com o cachorro debaixo do braço. Então ele
exclamou: “Parece que as cooperativas são boas pra cachorro!”

Durante nossa breve visita a Gaevle, visitamos a casa onde Peter A. Forsgren
vivia quando foi batizado em 19 de junho de 1850, por seu irmão, o Élder John E.
Forsgren. Esse foi o primeiro batismo na Suécia realizado com autoridade divina nesta
dispensação. A casa é simples, fica em uma das estreitas vielas e, na ocasião em que a
visitamos, estava pintada de vermelho vivo.

Durante os sete dias que ficamos na Suécia, conseguimos visitar até mesmo os
ramos da missão e participar de reuniões com os membros e amigos. Em cada cidade,
recebemos entusiásticas boas‐vindas, e as capelas ficavam superlotadas. As
perspectivas para a obra missionária pareciam muito favoráveis.

Durante algum tempo, ficara cada vez mais evidente que o peso das
responsabilidades sobre o Presidente Benson estavam lhe causando constante insônia.
Onde quer que nos hospedávamos, ele pedia um pouco de privacidade, com um

Nas Asas de Fé 82
quarto só para si. Pelo que observei, ele não somente arrazoava com o Senhor, mas
também o Senhor lhe dava atenção e tinha prazer em revelar‐lhe coisas que estavam
além da compreensão do homem. Depois de cada uma dessas ocasiões, parecia que
ele obtinha novas forças e renovada inspiração.
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Da Suécia, fomos para a Dinamarca.

Embora nossa estada na Dinamarca nessa viagem tenha sido breve,


conseguimos participar de reuniões em Copenhague, Aarhus e Aalborg, três das
principais cidades daquele país. Em nossas viagens, sempre me impressionava a
fertilidade de suas planícies. A maior elevação da Dinamarca, chamada de “Montanha
Celeste”, tem apenas 170 metros de altura. O país é formado por numerosas ilhas,
algumas das quais são interligadas por pontes e outras, por barcaças. Uma das
curiosidades nacionais era a maneira como as vacas eram alimentadas. Elas eram
amarradas em fileiras bem retas com cordas bem curtas, de modo que podiam comer
somente o capim que ficava bem próximo. Depois, elas eram transferidas para outro
ponto em que repetiam o processo. Esse método tornava desnecessárias as cercas e
garantia que não se desperdiçasse nem um pedacinho de pastagem. A Dinamarca
havia perdido grande parte de seu rebanho leiteiro durante a guerra, mas ainda assim
era muito rica em tais recursos.

Em nossa reunião em Aalborg, o Presidente Benson discursou com um poder


que eu nunca antes havia visto em seus sermões — exatamente como imagino que um
dos grandes profetas da antiguidade deve ter falado. Fiquei tão embevecido, que nem
consegui fazer anotações completas.

Ele alertou o povo de que o Senhor havia decretado guerras e desolação entre
os habitantes deste planeta, que as conferências de paz seriam inúteis e que as nações
continuariam a sofrer inquietação e tumultos até que os líderes das nações e seus
povos se arrependessem, se humilhassem diante de Deus e rogassem a Ele em
poderosa oração e fé. Ele disse ainda que a chamada paz da atualidade seria apenas
temporária, que logo viriam tempos em que o coração dos homens se enfraqueceria e
eles amaldiçoariam a Deus e morreriam, que as pragas e pestilências decretadas
seriam derramadas sem medida sobre os iníquos. Mas acrescentou as palavras ditas
pelo Senhor: “É meu propósito suprir a meus santos.”
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A parada seguinte foi Amsterdã, onde o Presidente e a Síster Zappey nos


esperavam no aeroporto. Eles estavam felizes em nos relatar que, graças aos contatos
anteriores do Presidente Benson com líderes governamentais, eles conseguiram
adquirir um automóvel Citroën para a missão — um modelo idêntico ao nosso, porém

Nas Asas de Fé 83
com um acabamento melhor e muito mais conforto. Esse foi o primeiro carro novo a
ser vendido na Holanda após a guerra e o Presidente Zappey relatou que mesmo os
homens do governo ficaram espantados com o fato de a missão ter conseguido
comprá‐lo, apesar da existência das listas de prioridades que continham nomes de
líderes governamentais à espera.

Nossas reuniões na Holanda foram muito agradáveis e bem‐sucedidas. O


espírito dos santos holandeses ajudou‐nos a compreender o entusiasmo do Presidente
Zappey quando ele exultou com propriedade: “Os holandeses são invencíveis!”

Em Haia tomamos o desjejum no restaurante de um hotel onde três garçons


formalíssimos, vestidos de fraques, serviram nossa mesa. Tudo o que conseguimos
obter deles para nossa refeição foi uma xícara de água quente sem leite, creme ou
açúcar, além de uma tigela de mingau de aveia sem leite ou açúcar. Se tivéssemos
pedido chá ou café, eles teriam nos servido com açúcar, leite e um pão doce, mas não
havia meios de convencê‐los a nos fornecer leite e açúcar para nossa água quente.
Quando pedimos leite, ovos, pão e manteiga, eles simplesmente riram na nossa cara.
Mesmo assim, nos cobraram preços absurdos pelo desjejum, simplesmente porque os
três, elegantes como estavam, nos serviram com exclusividade.
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Depois de três dias de reuniões na Holanda, retornamos ao nosso escritório em


Londres. Mais uma vez fomos recepcionados por uma quantidade incrível de
correspondência. Nem bem havíamos chegado e o Presidente Benson foi informado de
que teria uma reunião às cinco horas do mesmo dia com membros da delegação
americana à Conferência Internacional de Organizações Agrárias que seria realizada
em Londres nos dez dias seguintes.

Após essa reunião preliminar, ele foi recebido em uma suntuosa recepção e
banquete no Savoy Hotel, ocasião em que os delegados foram apresentados ao rei e à
rainha, bem como a outras pessoas importantes da Inglaterra. Ernest Bevin, então
Ministro de Relações Exteriores foi o orador do encontro. Enquanto isso, fiquei no
escritório tentando colocar em ordem a caótica pilha de cartas que esperavam para
ser respondidas. Antes de ir dormir, fiz um relatório atualizado de nossas recentes
atividades para a Primeira Presidência e para o jornal Deseret News.

No intervalo das sessões da conferência internacional, o Presidente Benson


conseguiu telefonar para Genebra e fazer os arranjos com a Cruz Vermelha
Internacional para o processamento e envio de nosso carregamento de suprimentos
de bem‐estar via porto de Bremen, na Alemanha. Dois outros carregamentos estavam
chegando e ele mostrava‐se muito preocupado com a segurança do transporte desses
itens até nosso povo. Os saques aos trens de suprimento tinham se tornado quase um
passatempo nacional. As composições ferroviárias estavam sendo paradas por

Nas Asas de Fé 84
ousados bandos de pessoas desesperadas em busca de comida. Foram feitos esforços
para evitar que a notícia desses trens vazasse, mas os despachantes na Europa
continental nos disseram que os saques ocorriam apesar das mais severas precauções.
Durante toda a nossa estada na Europa, no entanto, nossos carregamentos sofreram
apenas perdas mínimas de alimentos e roupas. Como resultado, esses suprimentos
conseguiram manter vivas talvez centenas de pessoas durante aquele terrível período
do pós‐guerra.

A Inglaterra obviamente não sofrera a escassez que a maior parte da Europa


continental experimentou, mas as condições na Grã‐Bretanha ainda estavam longe de
ser boas. Lembro‐me, quando lá cheguei, de não estar preparado para o forte
contraste que percebi nas condições de vida entre aquela nação e os Estados Unidos.
O racionamento ainda estava em vigor e era bastante severo. Cada indivíduo recebia
28 cupons de racionamento para trocar por roupas durante seis meses. Eram
necessários 35 cupons para se obter um terno e 20 para um par de sapatos — isso
além do custo do item, claro. Era evidente que as pessoas só conseguiam comprar
muito pouco, mesmo quando havia artigos disponíveis.

A quantidade de comida era suficiente para suster razoavelmente a vida, mas


os preços eram altos e a dieta era monótona. Em bares, podia‐se comprar quase tudo
que se desejasse, mas as porções eram pequenas, caras e quase invariavelmente
cozidas em pedaços (o que era estranho para o paladar americano).

Um breve trecho de uma carta que escrevi à minha esposa no início do verão
de 1946 demonstra a disponibilidade e os preços de alguns itens de “luxo”.

Ao voltar para o escritório (…) passei por uma mercearia. Agora podia dizer que já tinha visto
de tudo! Pêssegos a 1 dólar e 75 cada, damascos a 1 dólar e 30 a unidade e pequenas cenouras
do tamanho do dedo mínimo a 25 centavos cada. (…) É praticamente impossível encontrar
frutas e vegetais na Europa ou então são tão absurdamente caros que ninguém pode se dar a
esses luxos.

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Outra coisa que a guerra fizera retornar à Inglaterra foram as filas para a
obtenção de produtos escassos ou serviços difíceis. Um trecho de outra carta que
enviei para casa registra minha reação naquela época:

Dia após dia, por toda a cidade, o que se vê são filas. Às vezes as pessoas têm de esperar por
quatro ou cinco horas em uma fila para, no final, ficarem frustradas por não conseguirem o que
pretendiam. Essas filas são terríveis. O tempo que se perde nelas, se fosse usado para algo útil,
poderia reconstruir toda a Grã‐Bretanha em um ano, sem gastar um centavo em mão de obra.
Fico pensando quando é que vão compreender que ‘tempo é dinheiro’. Chego a duvidar que o
empréstimo americano à Grã‐Bretanha possa cobrir duas semanas do tempo gasto em filas.
Elas são a maior perda de tempo que já vi, mas as pessoas, humilde e submissamente, esperam
sua vez com paciência, alguns deles até trazendo cadeiras dobráveis para aguardar sentados.

Nas Asas de Fé 85
Apesar de todo o meu instinto americano contrário a tal perda de tempo, tive
de admitir que essa prática tinha seu mérito. Ela refletia o sentimento britânico de
igualdade — cada um na sua vez. A alternativa para enfrentar a escassez seria a
abordagem ‘grátis para todos’, com as mulheres e crianças por último.

Quando terminou a conferência internacional em Londres, voltamos à


Dinamarca para pegar nosso carro e iniciar nossa segunda e longa viagem pela
Alemanha. Enquanto procurávamos obter as necessárias autorizações militares e
liberações diplomáticas (que não se concretizaram antes de entramos na Alemanha),
encontrei um delicioso folheto turístico sobre a Dinamarca que seria capaz de inflamar
a imaginação de qualquer viajante que para lá se dirigisse. Eis alguns trechos desse
folheto:

A Dinamarca, o mais antigo reino do mundo, é um país notavelmente aprazível — que tem
cerca de duas vezes o tamanho de Nova Jérsey e é habitado por quatro milhões de
dinamarqueses e três milhões de vacas. As vacas são tratadas com respeito, chamadas pelos
seus próprios nomes, que são escritos nas suas baias. Durante o inverno, elas vestem
sobretudos e de vez em quando são levadas para uma caminhada. A produção de laticínios,
como se pode imaginar, é enorme.

Os dinamarqueses têm também o cuidado de se tratar mutuamente com respeito, usando


sempre o sobrenome. Porém, uma vez que esses nomes quase invariavelmente são Hansen,
Petersen, Jensen, etc. e os pré‐nomes são Hans, Peter, Jens, etc., para facilitar a identificação
eles mencionam a profissão ou ocupação da pessoa: Sr Açougueiro Hans Hansen, Sr. Advogado
Hans Hansen, etc. Uma viúva chegou ao extremo de escrever na lápide do marido que ele era o
Hansen que tinha telefone, para poder caracterizá‐lo.

Essa dificuldade com nomes tem melhorado ultimamente porque o governo permite que um
homem mude de sobrenome desde que pague quatro coroas (uma coroa vale 21 centavos de
dólar). Por um pouco mais, trinta e três coroas, uma pessoa pode obter direitos autorais sobre
seu nome e depois gozar da distinção de ser o único a possuí‐lo, pelo menos na Dinamarca.

O ponto mais elevado do país (Montanha Celeste) tem 170 metros de altitude. Sob a égide da
atual (na época) reconstrução, a cerveja jorra de torneiras de máquinas automáticas; os
carteiros usam alegres paletós vermelhos; as pessoas têm espelhos fixados no lado externo de
suas janelas para que possam observar a rua nos dois sentidos sem serem vistas; os filhos
cumprimentam os pais após o jantar com um aperto de mão; quase todo mundo anda de
bicicleta; as mulheres fumam em público longos charutos negros, finos e retorcidos; a planta
ornamental mais popular é o cacto (porque combina com o estilo escandinavo moderno de
decoração de interiores); homens e mulheres são habilidosos e vigorosos na arte de tricotar; e
o café é forte, embora a cerveja (segundo me disseram) seja fraca.

Praticamente todo dinamarquês se encontra vez por outra com o Rei cavalgando e ele sempre
os saúda polidamente com um “alô”.

Apesar desses detalhes curiosos, os dinamarqueses são um povo culto e progressista. As


cooperativas de consumo tiveram início na Dinamarca no Século XIX. Os dinamarqueses
compram proporcionalmente quinze vezes mais livros do que os americanos. Em Copenhage
existe uma versão humanista da instituição que na América chamamos de Lar dos Idosos. Os

Nas Asas de Fé 86
dinamarqueses a chamam de Cidade dos Idosos. Ela tem apartamentos, parques e jardins
modernos, uma igreja, um hospital e um cinema. Os idosos recebem até mesmo dinheiro para
pequenos gastos e existem 300 atendentes para mil e quinhentos internos.

Existem vários dinamarqueses famosos no exterior, na história e na lenda. Hamlet, por


exemplo, e Canuto, o rei que fez a maré recuar. (…) O maior escritor dinamarquês foi Hans
Christian Andersen. Thorvaldsen é sem dúvida um dos maiores escultores do mundo, sendo
que muitas de suas obras são inigualáveis.

Os dinamarqueses são praticamente todos luteranos zelosos, mas também são criaturas de
hábitos arraigados. Em certa aldeia, por exemplo, era costume, ninguém sabia porque,
curvarem‐se ao passar por uma certa parede caiada de uma igreja. Um antiquário raspou a
tinta da parede e descobriu uma imagem da Virgem Maria nela que tinha sido coberta com
camadas de caiação havia mais de quatrocentos anos.

Os dinamarqueses comem aveia quente com doses de leite frio e as camponesas usam
máscaras de pano para proteger a pele do vento. Na Dinamarca, os tijolos voam, porque são
feitos de uma argila vulcânica leve. O Jonas Bronck, em cuja homenagem o Bronx de Nova York
recebeu o nome, era dinamarquês.

Nas Asas de Fé 87
CAPÍTULO 8

Reerguendo‐se das Cinzas

O Presidente Benson estava incomodado por uma tosse seca, por isso dirigi de
Esbjerg, na Dinamarca, até a fronteira com a Alemanha. Essa parte da Alemanha
estava sobre controle militar da Inglaterra. Quando chegamos ao posto de controle da
fronteira, percebemos que havia uma grossa cancela bloqueando a estrada.

Entramos no posto e apresentamos nossas credenciais ao soldado britânico


encarregado, mas fomos informados de que, como não tínhamos documentos
militares nos autorizando a entrar na Alemanha, não poderíamos passar. O Presidente
Benson explicou que tínhamos tentado fazer contatos com as autoridades militares
tanto em Copenhage quanto em Esbjerg, mas não tínhamos obtido sucesso. Ele
assegurou aos soldados, no entanto, que obteria os documentos rapidamente tão logo
chegássemos ao quartel‐general na Alemanha, que estava conectado a Berlim por
telefone e teletipo.

Foi aí que a experiência que o Presidente Benson ganhara em Washington D.C.


foi de grande ajuda. O guarda com relutância consentiu em nos deixar passar.

Como estávamos ficando atrasados, o Presidente Benson assumiu o volante.


Ele costumava dirigir mais rápido que eu e devo admitir que ele era excelente
motorista. Quando os soldados estavam se preparando para levantar a cancela que
bloqueava a estrada, o oficial encarregado do posto chegou. Parece que ao saber o
que acabara de ocorrer, ele ordenou que a cancela fosse baixada e os guardas
tomaram posição de combate com suas armas. O Presidente Benson sugeriu que eu
voltasse ao posto e descobrisse o que havia ocorrido. Ele disse que ia manter o motor
ligado e pediu que eu me apressasse.

Quando entrei no pequeno posto, vi‐me frente a frente com um major


britânico muito exaltado. Ele disse que devido à nossa tentativa de entrar ilegalmente
na Alemanha, não tinha alternativa a não ser nos prender até que uma investigação
completa fosse feita.

Tentei arrazoar com ele, mas quanto mais eu falava, mais zangado ele ficava.
Enquanto isso, eu escutava o motor do carro ronronar lá fora. Eu orava em desespero
para decidir o que fazer ou dizer. De repente, tive uma inspiração.

Exibi uma cópia do meu documento de baixa do Exército e perguntei‐lhe


quanto tempo ele estava no exército britânico.”Seis anos”, respondeu ele. Em seguida,
ele comparou as anotações das nossas experiências militares.

Nas Asas de Fé 88
Em seguida, perguntei se por acaso ele era casado e ele disse que sim. Tinha
filhos? Sim. A esposa, que morava em Londres, tinha ganhado um menino cerca de um
mês antes e ele estava ansioso para vê‐la e o bebê durante sua próxima licença.

Nesse ponto, mostrei‐lhe uma foto da minha esposa com minha filha Bonnie.
Expliquei que tinha vindo à Europa poucas semanas depois de minha filha nascer, que
eu viajava à minha própria custa na tentativa de encontrar meios para ajudar as
pessoas a sobreviver e a se reabilitarem. Informei que já tínhamos feito viagens
anteriores à Alemanha e que conhecíamos os regulamentos e as dificuldades. Disse‐lhe
também que faríamos contato com o escritório do Dr. Olsen para obter os
documentos militares necessários logo que chegássemos a um posto militar na
Alemanha, de onde poderíamos telefonar.

Mostrei‐lhe meu passaporte e permissão militar e garanti‐lhe que nossa


programação já estava estabelecida, que já havíamos enviado cartas para providenciar
os documentos militares e que tudo seria legalizado tão logo chegássemos a um posto
do qual pudéssemos fazer contato com a OMGUS em Berlim.

Quando terminei, o major confessou‐se convencido. “Bom, se vocês são


pessoas desse tipo e vão fazer o que você diz”, admitiu ele, “vou dar‐lhes permissão
para entrar na Alemanha. E desejo‐lhes boa sorte em sua missão!”

Quando entrei no carro, a primeira pergunta do Presidente Benson foi: “E aí?


Por que demorou tanto?”

Parecia que já nos acostumáramos tanto a ter nosso caminho aberto diante de
nós rapidamente que qualquer atraso extra parecia indesculpável. Minha experiência
com o major foi um lembrete de que não era tão fácil. De minha parte, eu estava grato
por ter o Senhor mais uma vez manifestado Sua promessa em nosso favor de que “eles
irão e ninguém os deterá, porque eu, o Senhor, os mandei ir.” Como estávamos gratos
por aquele passaporte divino!


As cidades alemãs próximas à fronteira dinamarquesa pareciam quase intactas,


embora a fome rondasse as suas ruas. Logo que entramos em Kiel, vimos uma cidade
quase totalmente arrasada e pessoas à beira da inanição.

Eu havia comprado alguns produtos alimentícios em Esbjerg para levar para


uma família em Hamburgo, mas ao entrar na casa do presidente do distrito de Kiel, o
irmão Kurt Mueller, vi sua esposa acamada (ela tinha quase morrido dois dias antes,
depois de um longo período de inanição seguido de um consequente ataque cardíaco),
deixei com eles uma grande fatia de bacon, uma dúzia de ovos, queijo, maçãs,
tomates, etc., o que os deixou emocionados. Eles tinham um filho de seis anos e uma

Nas Asas de Fé 89
filha de treze, ambos extraordinariamente inteligentes, que estavam muito
enfraquecidos.

Três dias mais tarde, quando voltamos a Kiel para nos reunirmos com os
membros da Igreja, a irmã Mueller caminhou três milhas com a família para assistir à
reunião e planejava caminhar de volta para casa depois. Devido a sua recente
enfermidade, insistimos em levá‐la de carro de volta à casa, o que a deixou muito feliz.

Depois de uma reunião profundamente espiritual com os membros em


Bremem, consegui obter algumas rações militares com um sargento do exército para
podermos comer na viagem. Ele não tinha rações K, por isso me arranjou quatro pães
franceses, frutas enlatadas, sucos, suco de tomate, passas, damascos secos, margarina,
laranjas, manteiga de amendoim, além de vários outros itens. Depois demos quase
todos esses itens para os membros. A alegria e a gratidão deles em recebê‐los parecia
de alguma forma compensar as refeições que deixamos de fazer.

Na reunião das dez horas da manhã em Hamburgo, fomos recepcionados por


312 alegres membros. Quase sem exceção, eles pareciam estar a ponto de desmaiar
de fome. Após o término da reunião, o Presidente Benson convidou a todas as crianças
com menos de oito anos para virem ao púlpito para que ele lhes desse alguns
chocolates e gomas de mascar. Mais de sessenta crianças se aproximaram e cada uma
recebeu algumas guloseimas. Muitos deles, ao voltarem para seus lugares,
perguntavam: “Mutti (mãezinha), o que é isto?” Imagine! Crianças de cinco e seis anos
de idade que não sabiam o que era chocolate e goma de mascar! A cada mãe que
tinha fillhos pequenos, demos uma barra de sabão.

Enquanto o Presidente Benson distribuía belas laranjas californianas às irmãs


grávidas e às lactantes, quase todas elas estavam em lágrimas. Uma delas, ao se
aproximar, viu um carretel de linha e uma agulha que havíamos tirado da pasta junto
com as guloseimas. (Sempre levávamos essas coisas conosco para costurar rasgos,
pregar botões e outras emergências semelhantes). Essa irmã se aproximou e pediu
que eu perguntasse ao Presidente Benson se ela podia ficar com a agulha e a linha em
vez da laranja, por que, disse ela: “Preciso muito dessas coisas.” Transmiti a pergunta
ao Presidente Benson e ele, com lágrimas nos olhos, entregou a ela o pequeno tesouro
junto com a laranja.

Quando ela caminhou pelo corredor de volta a sua cadeira, uma das irmãs das
primeiras filas — a presidente da Sociedade de Socorro — puxou levemente o vestido
dela e disse mais ou menos o seguinte: “Espero que você compartilhe essa agulha e
linha com o resto de nós. Precisamos tanto dessas coisas.”

(A irmã Benson vinha nos enviando alguns pacotes com alimentos. De vez em
quando, se os pacotes estivessem ligeiramente abaixo do peso, ela incluía agulhas,
linhas e outros pequenos itens semelhantes que eram praticamente impossíveis de

Nas Asas de Fé 90
obter em algumas das áreas pelas quais viajávamos. A agulha e a linha do relato acima
foram presentes dela).

Nunca imaginei que vivesse para ver coisas tão simples, que na América nem
pensamos a respeito, assumirem tão grande importância!

Apesar de muitos dos que estavam presentes estarem magros, fracos e


famintos, com as roupas surradas e pendendo frouxas sobre seus corpos esquálidos,
em seus olhos brilhava a luz da verdade e de seus lábios emanava um testemunho de
fé e devoção. Não havia expressões de desânimo ou de amargura. Percebíamos em
todos eles amor, esperança e gratidão.

Um dos relatos emocionantes que ouvimos naquela reunião demonstra o


espírito genuíno que existe por trás do programa de Bem‐Estar da Igreja e que está
registrado nos anais históricos da Missão Europeia.

Sirenes estridentes de alerta de ataque aéreo e o fogo contínuo e incomum das baterias
antiaéreas anunciavam o início do milésimo bombardeio aniquilador sobre Hamburgo,
Alemanha. Antes de terminar a noite, a cidade se transformara em uma massa ardente de
ruínas e destroços derretidos. Entre as milhares de vítimas resultantes desse primeiro
bombardeio concentrado estavam 28 santos dos últimos dias mortos e um número maior de
feridos graves. Nas duas semanas seguintes, os bombardeiros continuaram a despejar suas
bombas arrasa‐quarteirão sobre aquela cidade que já fora bela e altaneira.

Quando os incêndios finalmente apagaram e a fumaça desapareceu, Hamburgo estava


literalmente arrasada. Quase nenhum prédio na área ficou de pé. Entre os destroços havia
milhares de mortos e muitos outros milhares de feridos recebendo tratamento de emergência
no subsolo ou em hospitais superlotados nas proximidades, para onde estavam sendo
evacuados.

O irmão Otto Berndt, presidente do distrito de Hamburgo, embora tivesse sido pela segunda
vez vítima do bombardeio, ficando sem seu lar, reuniu os membros da Igreja que conseguiu
contatar para poderem avaliar as perdas e determinar as necessidades de socorro e
reabilitação dos membros dos cinco ramos de Hamburgo.

Constataram que dos 300 membros do Ramo Saint George, 60 haviam morrido e um número
grande deles estava recebendo cuidados médicos. Os outros quatro ramos, embora
proporcionalmente menores, haviam sofrido perdas equivalentes. Quase todos os membros
estavam sem lugar para morar e muitos tinham perdido praticamente todas as suas roupas,
provisões e móveis.

Todos, nessa reunião, concordaram que, na medida do possível, compartilhariam


equitativamente tudo o que restava nas mãos dos santos. Cada família trouxe tudo o que lhes
restava em termos de roupas, alimentos e utensílios domésticos e os compartilharam com seus
irmãos e irmãs que nada tinham. Muitas peças de roupa eram impossíveis de ser obtidas dessa
fonte, então um fundo de assistência foi criado para o qual todos contribuíam de acordo com
sua capacidade, fundo esse que foi entregue à Sociedade de Socorro para a compra de material
com o qual remendariam e reformariam roupas velhas e também fariam novas. As

Nas Asas de Fé 91
necessidades de todos foram satisfeitas de acordo com a solicitação de cada um, sem que se
cobrasse um só centavo de ninguém.

Das cinco capelas da área, somente restava a do Ramo Altona e ela foi usada como abrigo
temporário de várias famílias sem‐teto, enquanto os restantes foram alojados nas casas que
ainda podiam ser ocupadas e que pertenciam a membros.

Grupos de irmãos percorriam os subúrbios e adquiriam pequenos lotes nos quais construíam,
com o material que conseguiam recolher entre as ruínas, residências temporárias para os
membros. Em um período notavelmente curto, o gigantesco trabalho de bem‐estar e
reabilitação tinha sido realizado, graças à aplicação dos princípios básicos de bem‐estar com os
quais os membros não estavam bem familiarizados, mas aos quais atenderam com altruísmo,
16
como verdadeiros irmãos e irmãs, no espírito de amor e consideração pelos outros.



Em Hanôver , no dia seguinte, reunimo‐nos com outros duzentos membros e


amigos. Não havia luz elétrica, pois o local havia sido seriamente danificado pelos
bombardeios. Não havia vidraças e, em lugar delas, haviam sido colocados panos
pretos ou grossos papelões de construção. Quando começou a chover, as janelas
tiveram de ser fechadas, o que nos lembrou de uma reunião que havíamos realizado
ali em circunstâncias semelhantes. O Presidente Benson baseou seu discurso em
Doutrina e Convênios 134. A mensagem foi muito oportuna e bem recebida.

Antes de sairmos de Hanôver, pintamos a sigla “USA” em letras grandes em


várias partes de nosso carro como parte das providências para percorrermos o
corredor russo até Berlim no dia seguinte. Dessa vez, não estávamos acompanhados
por soldados americanos.

Quando chegamos ao posto de controle russo, o oficial encarregado examinou


nossos documentos, inspecionou nosso carro de cor cáqui e com marcas peculiares e
desconfiou de nós. Então ele deu ordens em russo e dois soldados russos sacaram as
pistolas e apontaram‐nas para nós.

O Presidente Benson pareceu não se perturbar, mas apenas me disse: “Irmão


Babbel, continue sorrindo!”

Sorri da melhor maneira que podia nas circunstâncias e devo dizer que não
senti nenhum medo, porque eu estava com um apóstolo do Senhor. Após alguns
momentos que pareceram horas, o oficial russo sorriu também e disse “Dobra” (ou
algo parecido), e logo estávamos a caminho de nosso objetivo.


Em Berlim, recebemos informações detalhadas sobre a recente conferência missionária


realizada na cidade de Leipzig entre 5 e 12 de junho. (…) As autoridades russas permitiram que

16
European Mission History [História da Missão Europeia], pp. 36–37).

Nas Asas de Fé 92
se fizesse ampla divulgação. A estação de rádio transmitiu chamadas três vezes por dia nas
duas semanas anteriores e todos os outdoors da cidade e todos os bondes estampavam
convites, de modo que praticamente todo mundo na área sabia da conferência quando ela
começou. É interessante lembrar também que os funcionários da ferrovia colocaram dois trens
extras naqueles dias, que passavam de cidade em cidade recolhendo os membros para levá‐los
à conferência.

(…) A frequência total foi de 11981 pessoas. Somente a sessão de domingo à noite teve 2082
17
pessoas presentes — de longe o maior público até hoje a participar de uma reunião dos
santos dos últimos dias na Europa. No concerto especial com a apresentação de um coro de
toda a missão, com 250 vozes e uma orquestra de 85 componentes, realizada na segunda‐feira
à noite, compareceram 1021 pessoas. No baile Auriverde realizado naquela noite, havia 1261
pessoas. O belo teatro do zoológico de Leipizig, que estava sendo reconstruído, ofereceu
excelente acomodação, levando centenas de pessoas a interessar‐se sinceramente pelo
programa da Igreja. (…)

(…) Eventos como esse são um testemunho mais poderoso do que palavras da fé e devoção de
nossos santos nestas áreas devastadas pela guerra. Sem dúvida, esse foi um dos eventos de
destaque que jamais teve similar entre o nosso povo naquelas terras. O espírito de fé e
coragem que essa conferência despertou fará muito pelo fortalecimento dos membros durante
este período tão crítico que agora enfrentam.

Cento e quarenta membros da Igreja da área de Berlim participaram desse grande evento e foi
uma alegria ver e ouvir seu entusiasmo e louvores na reunião realizada na noite de quarta‐
18
feira, 19 de junho.



Em Berlim, 460 membros da Igreja se reuniram em um local muito melhor do


que o que usáramos antes. O prédio já tinha sido reformado pelos militares
americanos e era confortável. Havia um maravilhoso espírito presente.

Aqui também, mais uma vez, como tinha acontecido antes em Hanôver, fomos
saudados por umas vinte criancinhas que ficaram de pé sobre cadeiras ao longo do
corredor central. Cada uma delas tinha um belo arranjo de flores nos braços, que
derramavam à frente do Presidente Benson e do restante de nós em todo o nosso
trajeto até o púlpito, criando assim um lindo e amplo tapete de flores frescas. Quando
nos sentamos, havia lágrimas correndo pelos nossos rostos e estávamos tão
engasgados com a emoção que tínhamos até dificuldade de falar.

Eis o relato que escrevi para a História da Missão Europeia:

Obtivemos um progresso significativo em nossas reuniões com as principais autoridades


militares e governamentais em Bremem, Hanôver e Berlim. Foi‐nos assegurada cooperação
contínua e foram debatidos muitos problemas relacionados ao bem‐estar, à reabilitação, à
manutenção de capelas, compras de propriedades, publicações, viagens nossas à Polônia,

17
Na data em que o relato foi escrito.
18
Ibidem., p. 32.

Nas Asas de Fé 93
comunicações, prisioneiros de guerra, aumento do nosso programa da juventude e outros
itens.

Embora constantemente tenham surgido novas dificuldades, estamos radiantes com a


esplêndida cooperação que temos recebido e com a comovedora fé e coragem dos santos onde
quer que os encontremos. Sentimo‐nos gratos a Deus pelo privilégio que temos de nos reunir
com esses devotados santos e de observar a beleza e a força do evangelho na vida de nosso
19
povo nesta parte da Igreja.

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Em uma reunião com os presidentes de distrito e missionários, um dos irmãos


relatou o seguinte incidente:

Três desses irmãos estavam embarcando em um trem de transporte de gado a


fim de chegar a Berlim para a nossa reunião. Quase não existiam vagões de
passageiros naquela época. Quando os vagões ficavam lotados, outras pessoas tinham
de viajar penduradas nas laterais do trem ou em cima dele. Ao que parece esses três
irmãos tiveram de subir para o teto de um dos vagões cobertos que já estava lotado.

Ao tentarem se ajeitar ali, um deles caiu lá de cima na plataforma da estação,


em frente a um caminhão com rodas de aço20 que passava ali. Antes que ele pudesse
sair da frente do caminhão, uma de suas mãos foi esmagada até o pulso.

Enquanto ele gritava pedindo ajuda, seus companheiros desceram do trem,


pegaram‐no e começaram a indagar onde conseguiriam encontrar um hospital militar
de campo para obter socorro médico. Porém, o irmão que fora acidentado disse‐lhes:
“Irmãos, estamos aqui porque queremos ir à nossa reunião em Berlim e quero que
vocês me deem uma bênção para que eu possa ir.”

Seus companheiros impuseram‐lhes as mãos sobre a cabeça e lhe deram uma


bênção. Quando concluíram a bênção, a mão estava íntegra e então eles subiram no
teto do trem para fazer a viagem para Berlim. Algumas horas mais tarde, eles
expressaram gratidão na nossa reunião por essa maravilhosa bênção.


Quando o Presidente Benson e eu saímos de Berlim e voltamos à Zona de


Ocupação Britânica, procuramos encontrar um alojamento adequado para
pernoitarmos em Bielefeld. Mas não havia nenhum disponível, devido à chegada de
quarenta mil refugiados que vieram dos territórios entregues à Polônia. Disseram‐nos
para procurar em Detmond, cerca de 30 quilômetros ao sul. Tivemos sucesso lá e
passamos uma noite tranquila depois de uma reunião inspiradora com os santos de

19
Ibidem, p. 38.
20
N do T: Naquela época de pós‐guerra, devido à grande escassez, veículos civis costumavam rodar sem
pneus.

Nas Asas de Fé 94
Bielefeld, onde os arranjos florais eram os mais bonitos que já tínhamos visto em
nossas viagens até então.

No caminho para Ruhr para participar de uma conferência de distrito em Herne


na manhã seguinte, passamos pelas silenciosas ruínas de grandes cidades e indústrias
do vale do Ruhr. Alguns dos oficiais britânicos com quem conversamos estimavam que
a destruição infligida às principais cidades, tais como Dortmund, Essen e Colônia era
muitíssimo maior do que todos os danos sofridos por todas as Ilhas Britânicas durante
a guerra inteira. Multiplicando esses danos por 100, podemos ter uma ideia
aproximada dos danos infligidos apenas à zona britânica da Alemanha. As outras
quatro zonas, inclusive os territórios agora cedidos à Polônia, também sofreram danos
tão sérios quanto essa área, se não maiores.

A destruição era simplesmente estarrecedora. Eu sempre sentia uma tristeza


avassaladora quando via aquilo e pensava nas crianças maltrapilhas e nas pessoas
inocentes que tiveram de sofrer tamanhas dificuldades e injustiças físicas, mentais e
espirituais. Como eu ansiava pelo dia em que poderíamos introduzir a retidão na vida
das nações e sobrepujar a guerra com a paz!
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Na seção da manhã de domingo de nossa conferência em Herne, manifestou‐se


um dos mais sublimes espíritos que já experimentáramos. Quando o coro infantil
estava cantando, o Presidente Benson olhou para as crianças várias vezes com uma
expressão de intensa atenção.

Logo que as crianças terminaram sua apresentação, ouvimos o Coro do


Tabernáculo Mórmon e o órgão do tabernáculo entrarem vigorosa e gloriosamente
com sua música maravilhosa. Sem o sabermos, alguns irmãos haviam escondido alto‐
falantes nos candelabros e tinham sintonizado a retransmissão semanal do programa
do Coro pela Rádio Stuttgart, que estava sob a responsabilidade do Capitão Fred G.
Taylor, um dos nossos melhores oficiais mórmons. Ele havia servido como missionário
na Alemanha e, como tinha excelente domínio do idioma, apresentou em alemão o
texto do Élder Richard L. Evans que continha a mensagem semanal daquele
programa.21

Muitos choravam de alegria ao ouvirem a música e o coro, pois aquele era o


símbolo de Sião e de tudo o que ela significava para os santos dos últimos dias. O
espírito presente na ocasião era doce e suave, mas também poderoso, e nos envolveu
completamente.

21
N do T: Music and the Spoken Word era o programa que hoje se chama Música e Palavras de
Inspiração e é transmitido todos os domingos pela manhã, ininterruptamente desde 1929, diretamente
da Praça do Templo, em Salt Lake City.

Nas Asas de Fé 95
Quando a música terminou, o Presidente Benson segurou‐me o braço e me
conduziu até o púlpito para que eu fosse seu intérprete. Eis o que ele falou: “Espero
que vocês tenham escutado as crianças cantarem. Asseguro‐lhes que elas não estavam
cantando sozinhas. Anjos cantavam com elas. E se o Senhor tocasse os olhos espirituais
de vocês e sua compreensão, vocês veriam que muitos dos seus entes queridos que
vocês perderam durante a guerra estão reunidos conosco hoje aqui.”

Esse incidente teve um impacto tão profundo em mim, que escrevi para minha
mulher sobre ele alguns dias depois, dizendo:

(…) O Presidente Benson acrescentou: “Nunca senti o Espírito do Senhor de maneira tão forte
quanto esta manhã. (…) O véu entre nós e o mundo espiritual é muito tênue. Sinto de forma
poderosa que há outros aqui além dos que podemos enxergar — alguns de seus entes queridos
estão aqui, assim como alguns líderes da Igreja que já se foram. Eles amaram os que aqui estão
mais do que tudo. Aqueles que têm autoridade nos céus estão satisfeitos e felizes porque os
espíritos de nossos entes queridos estão aqui entre nós.

Enquanto as crianças cantavam, olhei para elas diversas vezes, porque ouvi mais vozes que
cantavam além daquelas que faziam parte do coro infantil. Verdadeiramente, as vozes delas
estavam mescladas com vozes celestiais. Hoje de fato experimentamos um gostinho do céu.”

Ele disse muito mais, mas aquele foi um dos momentos mais inspiradores que eu já vivera. Só
em pensar, meu coração se enche de gratidão e louvor e minha alma fica plena de humildade e
amor pela abençoada certeza que nos é dada por meio da mensagem do evangelho. (…)



No dia seguinte, em Langen (perto de Frankfurt), nos reunimos com 120


membros da Igreja refugiados que vieram das áreas que estavam então sob controle
da Polônia. Em Langen, onde não havia unidade da Igreja por não haver membros no
local, foi organizado um ramo. Na História Oficial da Missão Europeia, anotamos o
seguinte:

Era inspirador ver aquelas pobres criaturas com os rostos erguidos, literalmente absorvendo
cada palavra nossa. Era uma alegria ouvi‐los cantar os hinos de Sião, sentir seu cálido espírito e
sua fé profunda e perseverante no evangelho. Depois de uma hora e meia de reunião, que para
eles não parecia ser suficiente, juntamo‐nos a eles para tirar uma fotografia do grupo. Durante
todo o tempo em que estivemos juntos ali, não foi proferida uma só palavra de crítica ou de
amargura por qualquer deles, embora tivessem perdido todas as suas posses terrenas, e alguns
tivessem perdido a família inteira.

O momento mais triste aconteceu mais tarde quando, em companhia do Presidente Zimmer e
do presidente do ramo local, visitamos os toscos abrigos onde aqueles irmãos estavam
vivendo. Ali, nas condições mais desumanas, sem quaisquer instalações sanitárias,
amontoavam‐se de uma a quatro famílias em cada cômodo.

O primeiro abrigo tinha quatro famílias, num total de 22 pessoas, vivendo em um único
cômodo onde comiam, dormiam e viviam. Dois beliches ficavam ao longo de três das paredes
do cômodo, a fim de acomodar várias pessoas. Um pequeno fogão‐estufa no centro do chão de

Nas Asas de Fé 96
madeira era a única fonte de calor para o cômodo, além de servir para cozinhar. Os mais jovens
dormiam no chão em camas que eram improvisadas todas as noites. Havia ali pessoas de todas
as idades, desde um bebê de colo até uma senhora de mais de 80 anos, além de vários
adolescentes.

Todas essas pessoas foram perseguidas e expulsas da Alemanha Oriental, de uma área que hoje
pertence à Polônia. São indesejados em sua antiga terra natal e fugiram para a Zona Americana
em busca de refúgio, embora tecnicamente fossem considerados ilegais, pois deveriam ir para
a Zona Britânica, enquanto que aqueles que viessem da Checoslováquia deveriam ir para a
Zona Americana. Ficamos satisfeitos, entretanto, em receber permissão para que ficassem,
desde que plantassem hortas e mostrassem real intenção de ajudar‐se a si mesmos.

O espírito que os movia era bom. Era emocionante ouvir um dos membros desse grupo de 22
pessoas contar como todos se ajoelhavam em oração juntos de manhã e à noite naquele abrigo
tosco.

Antes de partirmos, conseguimos deixar com eles algumas provisões que tínhamos obtido
graças à generosidade de alguns dos nossos bons soldados… e conseguimos fazer os
preparativos para outros envios de provisões, que estão agora a caminho. Obtivemos
22
permissão também para enviar‐lhes algumas barracas que compramos na Suíça. (…)



Enquanto estávamos em Frankfurt, realizamos uma reunião vespertina com os


membros às 18h30. Como não consegui sair da casa da missão com o Presidente Max
Zimmer e o irmão Ludwig Weiss (presidente do distrito de Nuremberg) antes das
18h45, o Presidente Benson teve de dirigir a reunião e dirigir a música, entre outras
coisas. Bem não acabara de falar aos membros ali reunidos, ele teve de sair com o
Presidente Zimmer para comparecer a um compromisso com os oficiais militares dos
Estados Unidos encarregados de Assuntos Religiosos. Assim, fiquei encarregado de
concluir a reunião.

Fui guiado pelo Espírito a falar de forma ousada e contundente contra pessoas,
membros da Igreja, que trabalhavam por subterfúgios contra os Presidentes Benson e
Zimmer, causando dificuldades que poderiam facilmente levar a Igreja a ter má
reputação e a deixar de realizar muitas das coisas boas que estavam sendo feitas pelos
membros. Os membros que assim agiam eram, na maior parte, aqueles que tinham
sido ativos no regime nazista ou que eram simpáticos aos seus propósitos. Para se
protegerem, eles estavam procurando os líderes da missão para que estes não só
simpatizassem com eles, mas também os levassem a ocultar‐se sob o disfarce de
missionários ou trabalhadores na Igreja.

Fiquei surpreso por ter falado sobre esses assuntos sem ter pensado neles ou
cogitado a seu respeito. Muitos dos presentes sentiram que a minha mensagem foi
extremamente necessária.

22
Ibidem, pp. 40‐41.

Nas Asas de Fé 97
Em nosso trajeto de carro de Frankfurt à cidade suíça de Basileia no dia
seguinte, surpreendeu‐nos a quase completa ausência de vacas, cavalos, cabras e
outros animais que tinham sido comuns e abundantes naquela rica região. Nos
informaram que milhares e milhares desses animais haviam sido mortos nos ataques
aéreos, enquanto muitos outros haviam sido abatidos para servir de alimento.

Ao chegarmos a Basileia, fomos recebidos pelo Presidente Scott L. Taggart,


novo presidente da missão Suíça‐Áustria, e seus três filhos. A irmã Taggart estava
hospitalizada naquela cidade. O Presidente Benson pediu‐me que organizasse os
registros e contas da missão para que pudesse transferir oficialmente as
responsabilidades ao Presidente Taggart.

Ficamos sabendo também nessa ocasião que o Presidente Wallace F. Toronto e


sua esposa tinham partido da casa da missão em Salt Lake City para se dirigirem a
Praga, Checoslováquia, a fim de reassumir a missão que ele presidia antes da guerra.

As reuniões realizadas em Genebra com funcionários da Cruz Vermelha


Internacional determinaram que daquele momento em diante todos os carregamentos
de auxílio humanitário para a Alemanha e a Áustria passando por Genebra ficariam sob
a responsabilidade do Presidente Benson,. Levou‐se em consideração que os riscos de
perdas desses carregamentos, caso continuassem a ser enviados para os portos
alemães e belgas, eram muito altos. Até segunda ordem, o Presidente Benson
determinaria a forma de distribuição a ser feita à medida que os carregamentos
chegassem a Genebra.


Fui mandado de volta à Alemanha visando continuar a trabalhar nos assuntos


da missão para depois retornar a Londres de carro, via Bélgica, com o objetivo de
visitar os membros da Igreja naquele país.

Na fronteira da Suíça com a Alemanha, conversei animadamente com os


funcionários da alfândega e consegui entrar na Alemanha com uma considerável
quantidade de envelopes e papéis de carta, bem como um pneu e uma câmara de ar
para o carro da missão em Frankfurt, sem pagar taxas aduaneiras. O Presidente
Zimmer mostrou‐se supreso: “Parece que você conseguiu se dar bem com os
funcionários suiços”, disse ele, “mas espere só até enfrentar os funcionários franceses
quando entrarmos na sua zona de ocupação.”

Decidi que lidaria com esses funcionários da mesma maneira, conversando


sobre coisas irrelevantes sempre que eles mencionassem a alfândega. O resultado foi a
nossa liberação mesmo sem eles terem carimbado nossos passaportes ou examinado
nossa bagagem. O Presidente Zimmer ficou ainda mais surpreso do que eu.

Nas Asas de Fé 98
Quando chegamos a uma autobahn, uma autoestrada, o Presidente Zimmer
ficou com vontade de dirigir. Deduzi das conversas anteriores que, embora ele não
fosse um motorista exímio, já tinha dirigido antes. Como eu estava enganado!

Mostrei a ele como ligar e desligar o carro. Depois lhe expliquei os rudimentos
da teoria de direção, mudança de marchas, olhar para a estrada, etc. Uma vez que a
autobahn não tinha contra‐tráfego (as pistas eram separadas por uma mureta de
segurança), nada poderia acontecer — pelo menos era o que eu pensava.

Que experiência terrível! Depois de assumir a direção, ele finalmente arrancou


de primeira depois de deixar o motor morrer várias vezes. Depois, ele “enfiou o pé na
tábua”. Eu tinha de ficar de olho nele para mantê‐lo na estrada. Finalmente consegui
que ele passasse uma segunda, depois do que, mais uma vez, ele pisou fundo no
acelerador. Depois de momentos de ansiedade, consegui fazer com que ele engatasse
uma marcha mais livre. Feito isso, ele passou a dirigir como se a vida dele dependesse
da rapidez com que viajávamos. Eu nem imaginava que aquele carro pudesse chegar
aos 160 quilômetros por hora — geralmente não passávamos de 80 — mas ele
literalmente se agarrou ao volante e mantinha o carro a 160 km/h, até que consegui
que ele aliviasse o pé de chumbo e dirigisse mais devagar.

Aconselhei‐o a dirigir mais devagar, pois o limite de velocidade era de 80 km/h


e, além disso, ele serpenteava pela estrada inteira e, toda vez que apertava o
acelerador, não tirava o pé até que estivéssemos literalmente voando.

Logo avistamos um comboio militar ao longe. Em vez de reduzir a velocidade,


ele afundou o pé ainda mais. Por duas vezes tive de agarrar o volante bruscamente,
chutar o pé dele para que aliviasse o acelerador, e apertar o freio para evitar um
acidente certo.

Quando chegamos a um trecho da estrada em que pudemos parar no


acostamento, reassumi a direção. Ele ficou me observando e pediu para tentar de
novo, para me mostrar que havia aprendido. A segunda tentativa foi ainda pior que a
primeira. Nunca tive uma experiência tão dolorosa em um carro quanto aquela!


No dia seguinte, a caminho de Liege, na Bélgica, passamos por várias cidades


que haviam sofrido tremenda destruição devido aos bombardeios aéreos e ao fogo
intenso de artilharia dos Aliados em seu avanço. Colônia, outra cidade alemã, estava
arrasada. Durren, uma cidade que havia tido 350 mil habitantes, era agora uma cidade
fantasma na qual não vi sequer uma parede em pé. Provavelmente essa destruição

Nas Asas de Fé 99
tinha sido causada pela Batalha do Bulge23. Aachen estava igualmente em escombros.
As estradas estavam em tão mal estado em alguns trechos que era quase impossível
passar de carro. A desumanidade do homem contra o próprio homem era algo
apavorante de se contemplar.

Ao chegarmos a Liege, fiquei sabendo que os católicos estavam comemorando


o seu famoso festival “O Amor de Cristo”, que é celebrado uma vez a cada século.
Bandeiras esvoaçavam, as ruas estavam tomadas por longas procissões e muitos dos
nossos membros não conseguiram passar para chegar à reunião que tínhamos
programado. Eu mesmo só cheguei ao local com muita dificuldade.

Essa celebração dura quatro semanas. Cheguei lá na terceira semana. Nunca vi


tanta pompa, tantos sacerdotes católicos, bispos, genuflexões, tantos paramentos
riquíssimos e coisas assim. Por acaso, essa experiência aconteceu na véspera da
primeira explosão atômica no atol de Bikini24, realizada pelos Estados Unidos. O
Presidente Devignez, da Missão Belga, relatou que muitas pessoas na Bélgica temiam
que essa experiência resultasse em uma reação em cadeia que destruiria o mundo
todo, mas fui deitar sem qualquer preocupação ou medo e dormi profundamente.

23
A Batalha do Bulge foi uma das mais ferozes do final da Segunda Guerra, na qual os alemães lançaram
um ataque desesperado com várias divisões de tanques Panzers, tendo causado grandes perdas aos
Aliados.
24
O Atol de Bikini, no Pacífico, foi utilizado pelos Estados Unidos como campo de testes de bombas
nucleares no pós‐guerra.

Nas Asas de Fé 100


CAPÍTULO 9

“A Alva Rompe”

Quando parti da Suíça com destino a Londres, o Presidente Benson decidiu


visitar o Presidente Toronto em Praga, Checoslováquia, para ajudá‐lo a reassumir suas
responsabilidades naquele país. O Presidente Toronto tinha conseguido reservas de
avião para o Élder Benson ir para Londres depois dessa visita, na segunda‐feira à noite.
Porém, como o Presidente Benson tinha terminado o que fora fazer em Praga e vários
assuntos urgentes o aguardavam em Londres, ele decidiu tentar conseguir um voo no
domingo à tarde.

Os funcionários da empresa aérea britânica, que era a única linha aérea que
fazia o trajeto Praga‐Londres naquela época, avisaram‐no de que seria impossível, uma
vez que eles já tinham mais passageiros com voos marcados do que podiam acomodar.
Quando o Presidente Benson informou‐lhes sobre a urgência de sua solicitação, o
encarregado disse: “Sr. Benson, mesmo que o

O Presidente Benson respondeu: “Não sou o rei da Inglaterra, mas tenho de


chegar a Londres hoje à noite.” (Sabendo como os ingleses respeitam seu rei, a
conversa revelava que parecia impossível tomar aquele avião).

Depois de embarcar os passageiros, quando o avião preparava‐se para taxiar e


decolar, o funcionário inglês percebeu que o Presidente Benson ainda estava ali
aguardando.

“Por que o senhor ainda está esperando? Já lhe disse que não há como
embarcá‐lo naquele avião”, disse o funcionário.

“Eu continuo precisando chegar a Londres hoje à noite,” foi a resposta.

Com uma expressão estranha no olhar, o funcionário pegou o microfone e


disse: “Tirem duas malas de correspondência do avião e embarquem o Sr. Benson.”

Logo, duas malas diplomáticas foram removidas do avião e o Presidente


Benson embarcou. Mais uma vez o Senhor tinha cumprido a promessa em que disse:
“Ninguém os deterá.”

Enquanto estava em Praga, o Élder Benson inaugurou um monumento erguido


pelos santos em 1945 para marcar o local onde o Presidente John A. Widtsoe estivera
para dedicar aquela nação à pregação do evangelho, em 24 de julho de 1929.

Nas Asas de Fé 101


Pouco depois dessa inauguração, o Presidente Alma Sonne, que sucedera ao
Élder Benson na presidência da Missão Europeia, organizou uma série de reuniões com
os membros da Igreja na Checoslováquia. Os líderes do segundo maior ramo do país,
Brno, insistiram com o Élder Benson para que comparecesse.

Perguntados onde planejavam se reunir, eles disseram que haviam alugado o


teatro da ópera, que cabia 1600 pessoas. O Presidente Sonne ficou surpreso, porque o
ramo tinha apenas cerca de trinta membros, incluindo as crianças. Ele sugeriu que
encontrassem um local mais modesto, mas eles insistiram em manter tudo conforme
planejado.

Alguns dias depois, ao entrar no teatro da ópera de Brno, o Presidente Sonne


ficou maravilhado ao encontrar ali quase duas mil pessoas presentes. Mesmo os
degraus e corredores estavam lotados. Ao término de sua mensagem, outra surpresa o
aguardava. O público todo o aplaudiu de pé por vários minutos.


Nessa mesma época, recebemos a visita do Dr. LeRoy E. Cowles, Reitor Emérito
da Universidade de Utah. Ele nos acompanhou a uma reunião sacramental no Ramo
Londres Sul, na qual ele discursou sobre como podemos melhor desenvolver nossas
facetas temporal e espiritual. Ele mencionou que de uma maneira indescritível, todos
irradiamos um espírito bom ou mau, de fraqueza ou de força, àqueles com quem nos
relacionamos. Aconselhou que devemos sempre orar pedindo a habilidade e a força
para edificar os outros. Ele testificou que durante todos os anos em que estava na
Universidade de Utah como membro do corpo docente daquela instituição e depois
como Reitor, sempre que precisava resolver quaisquer problemas, ele recorria à
oração. Durante todos aqueles anos, nem uma só vez tinha deixado de receber a ajuda
necessária pedida em oração. O Presidente Benson foi o orador seguinte e falou sobre
o lar. “O lar”, disse ele, “requer amor, devoção, humildade, gratidão, espírito de
serviço e espírito de adoração. Esse espírito não pode ser comprado, por mais rico que
alguém seja. Ele só pode ser obtido por meio do viver digno. O lar que tem o
sentimento de ser aprovado pelo Senhor é, de verdade, um lar rico, por mais pobre
que seja ou por mais que esteja desprovido dos luxos da aparência exterior.”

Esse tipo de comentário nunca deixava de fazer vibrar uma corda de enorme
gratidão em meu peito. À minha doce esposa, que estava em meu longínquo lar,
escrevi:

(… ) Não temos carro nem casa, nem quase nada a não ser aquelas coisas que fazem de nossa
vida o melhor possível — temos um ao outro e nossos preciosos, filhos que o céu nos confiou.
Não é curioso que aquilo que amamos mais profundamente e mais valorizamos são
exatamente as que são eternas, tanto em sua natureza quanto em seu desfrute, as que o
dinheiro não consegue comprar, coisas que na realidade não podem ser obtidas, mas que

Nas Asas de Fé 102


podem ser apreciadas, amadas e lembradas com carinho! Este mundo é mesmo extraordinário.
(…)



Meu universo pessoal tinha se engrandecido pela proximidade de um grande


homem. Um dos momentos mais emocionantes de minha vida foi no dia em que
recebi meu chamado oficial para esta missão. Não tenho palavras para expressar os
sentimentos que tive ao desligar o telefone depois da conversa com o Élder Benson. Eu
fora chamado para servir a um Apóstolo do Senhor Jesus Cristo! Aquele sentimento
inicial de alegria e surpresa por tudo que acontecia havia persistido durante todo
aquele período de convivência próxima que me permitiu conhecer melhor o Élder
Benson. Muitas vezes expressei esses pensamentos nas cartas que escrevia para casa,
em termos semelhantes a estes:

Preciso repetir constantemente que o Senhor sabia o que fazia quando enviou o Presidente
Benson [à Europa]. Ele é um apóstolo do Senhor em todos os sentidos. (…) Continuo a
maravilhar‐me com sua fé inabalável, sua coragem indômita, sua resoluta determinação e seu
espírito ousado. … Ele não só fala com Deus, mas também O ouve. Tenho certeza de que Deus
fala com ele da mesma maneira que falava aos apóstolos antigos. Ele é de fato um grande
servo de Deus — um dos homens mais humildes e mais devotados que já conheci, possui um
espírito bondoso e tem maneiras gentis, não tem dolo, e tem um caráter maior do que todos os
homens que já conheci… em seu profundo e sincero amor pelos santos de Deus. É realmente
inspirador estar perto dele e ver como ele trabalha.

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Continuávamos a cada dia a sentir profunda preocupação por muitos de nossos


santos europeus. A situação na Alemanha e na Áustria, para nem mencionar o que
ocorria na Polônia, parecia atingir proporções catastróficas. Raro era o dia em que não
recebíamos cartas e relatórios informando‐nos de mortes em massa por causa da
fome, das doenças e da perseguição. A imoralidade e o estupro, que tinham se
tornado comuns na Europa, estavam agora atingindo meninas que nem tinham
chegado à adolescência. O terrível surto de doenças venéreas, especialmente da sífilis,
mesmo entre crianças e adolescentes, atingia proporções catastróficas. Os
desabrigados, os órfãos e as crianças abandonadas sofriam dificuldades indescritíveis.
A taxa de mortalidade infantil, mesmo entre os membros da Igreja, era questão de
profunda preocupação. Apesar de tudo isso, havia propostas para maior redução das
rações alimentícias naqueles países que haviam sido mais seriamente atingidos.

Os boletins da Cruz Vermelha Internacional informavam que os refugiados que


vieram da Polônia foram obrigados a subsistir nos dois últimos meses a pão e água e
mesmo esse pão estava se tornando mais escasso. Muitos desfaleciam pelo caminho e
muitos outros provavelmente morreriam antes de chegar a seu refúgio na Alemanha
Ocidental, pois todos os alemães tinham de deixar as regiões que foram devolvidas à

Nas Asas de Fé 103


Checoslováquia e à Polônia. Para tornar o quadro ainda mais caótico, as perspectivas
de uma colheita muito pequena eram manchetes diárias nos jornais.

Tudo isso nos fez compreender ainda mais a importância de procurarmos


estabelecer o reino de Deus e sua justiça a fim de gerar poder divino que aliviasse
aquelas condições e abrisse novos caminhos e novas soluções.
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Durante esse período, a Finlândia foi dedicada para a pregação do evangelho.


Como não acompanhei o Presidente Benson na viagem para essa dedicação, incluo
aqui o seguinte relato transcrito da História oficial da Missão Europeia.

Quase todos os membros da Igreja na Finlândia moram em Larsmo, uma família em Obo e um
membro em Helsinque (Helsingfors). O Presidente Benson, ao examinar os relatórios do ramo
de Larsmo, constatou que havia nos últimos dez anos 100 por cento de frequência em todas as
reuniões, de cumprimento da Palavra de Sabedoria e de pagamento de dízimos e ofertas. Esses
recordes pareciam incríveis.

Quando ele perguntou como isso era possível, uma vez que era muito improvável que ninguém
tivesse ficado doente ou tivesse tido outros problemas, eles disseram: “De fato, às vezes
alguém fica doente, mas nós os trazemos às reuniões assim mesmo, porque é aqui que o
Senhor quer que estejam.” Essa maravilhosa atitude confirma a inspiração que o Presidente
Benson teve de enviar os missionários àquele maravilhoso país para iniciar a obra.

Na segunda‐feira, 15 de julho, o Presidente Benson reuniu‐se com um considerável número de


membros e missionários e juntos viajaram de barco até uma pequena ilha chamada Lovskar
onde, durante os meses de verão, as pessoas levam o gado para pastar em conjunto. Em geral,
os fazendeiros locais vão até a ilha ao cair da tarde, ordenham as vacas, pernoitam na ilha em
pequenas cabanas construídas para esse propósito, ordenham as vacas de novo pela manhã e
depois retornam a suas fazendas.

Em uma dessas cabanas, de propriedade de um dos membros, foi realizada uma breve reunião
na qual se falou a respeito da história da obra missionária na Finlândia. Foram lidos alguns
trechos da sua história que revelaram que, desde 1861, apenas alguns esforços esporádicos
haviam sido empreendidos entre a população de língua sueca naquele país.

Ficou constatado que nenhuma Autoridade Geral havia visitado o país ainda e então foi
decidido que deveriam encontrar um local adequado no qual realizar a dedicação da nação à
pregação do evangelho restaurado. O local escolhido foi uma elevação que fica a cerca de um
quilômetro ao sul da Escola Grev, próximo à estrada que liga Larsmo a Jakobstad.

Bem cedo pela manhã, na terça‐feira, 16 de julho, o Presidente Benson, seu grupo de auxiliares
e mais uns 16 membros, foram até o local escolhido e realizaram a reunião de dedicação.
Iniciando a reunião, cantaram “Tal Como um Facho”. O Élder Ezra Taft Benson, do Conselho dos
Doze, na ocasião servindo como Presidente da Missão Europeia, ofereceu a oração dedicatória.

A manhã estava bela e ensolarada, com pássaros cantando ao redor. A oração foi tão
inspiradora que os presentes sentiram que os anjos e os finlandeses que já haviam partido para
o mundo espiritual se regozijaram com aquele evento memorável. As lágrimas de alegria
expressaram a gratidão dos que ali se achavam pelo acontecimento do qual nunca se

Nas Asas de Fé 104


esqueceriam. Foi sugerido que o local fosse devidamente assinalado para que, dali a algum
tempo, um pequeno monumento pudesse ser ali erigido a fim de celebrar aquele evento. (…)

Na quarta‐feira, dia 17 de julho, às 4 horas da manhã, o grupo partiu para Helsinque ao som de
“América” e “Deus Vos Guarde” cantados em inglês pelo coro do ramo de Larsmo, que se
reunira para aquela ocasião.

Mais tarde, no mesmo dia, o irmão Urho Karppa, único membro em Helsinque, se reuniu ao
grupo e os acompanhou até o Helsinki Hotel, onde foram recepcionados com entusiasmo por
Juho Himalainen, presidente do Clube Finlandês‐Americano, além de um grupo de repórteres e
fotógrafos. O Sr. Himalainen expressou esperança de que uma obra missionária de grande
alcance viesse a ser realizada naquele país. Todas as reportagens foram generosas e favoráveis.

Na reunião pública que foi realizada no Balders Hall – localizado no centro da cidade, próximo
ao mercado – compareceram 245 pessoas que demonstraram interesse religioso incomum
além de grande receptividade à mensagem do evangelho, o que foi muito encorajador. Os
presentes ouviram com interesse o relato da restauração do evangelho e, depois da reunião,
adquiriram todos os folhetos disponíveis e solicitaram mais. Havia vários cidadãos
preeminentes entre os convidados.

A reunião foi realizada em inglês e sueco e ficamos sabendo posteriormente que uma grande
delegação presente permaneceu durante todo o evento apesar de não entenderem uma só
palavra de qualquer um dos dois idiomas. Eles expressaram a esperança e o desejo de
participar de outra reunião que seria realizada em finlandês para que pudessem entender e
desfrutar mais plenamente o espírito que sentiram.

Após a reunião, o Presidente Benson foi entrevistado por jornalistas de uma publicação
25
nacional da área da agricultura. (…)



Essa reunião pública em Helsinque foi uma grata surpresa. Nosso único
membro naquela cidade, o irmão Urho Karppa, converso havia apenas oito meses,
tinha escrito para nós em Londres solicitando permissão para encontrar‐se com o
Presidente Benson durante a visita dele a seu país. Presumimos, devido ao óbvio
desconhecimento dele em relação à Igreja, que ele não compreendia que era muito
bem‐vindo para encontrar‐se com o Presidente Benson no Helsinki Hotel, pois ele
insistia que havia reservado o Balders Hall para esse encontro.

A grande surpresa foi que o Presidente Benson e seus auxiliares foram


saudados por uma platéia de 245 pessoas, alguns dos quais não entendiam sueco ou
inglês, idiomas em que seria realizada a reunião. Tal fato pode muito bem ser
registrado como um dos maiores esforços de proselitismo realizado por uma única
pessoa em toda a história da Missão Europeia.

25
História da Missão Europeia, pp. 89‐92.

Nas Asas de Fé 105


Devido a ingentes solicitações dos líderes finlandeses, ao retornar a Londres, o
Presidente Benson escreveu a seguinte carta ao Presidente dos Estados Unidos, Harry
S. Truman:

Excelentíssimo Senhor Presidente:

Desde fevereiro último, estou representando a minha Igreja em uma missão religiosa e
assistencial em vários países da Europa. Acabei de retornar da minha primeira viagem à
Finlândia, onde realizei várias concorridas reuniões públicas nas principais cidades do país. Em
todos os lugares, fui recebido com grande amabilidade. Nunca antes encontrei qualquer outro
lugar que tenha atitudes mais favoráveis aos Estados Unidos.

Devido à urgente solicitação desses mesmos líderes finlandeses, prometi‐lhes que escreveria a
Vossa Excelência, em nome do povo finlandês, para expressar a profunda gratidão deles e de
seus mandatários pela magnânima assistência que os Estados Unidos têm prestado ao povo
finlandês ao longo dos anos. Sinto‐me à vontade para admitir que aquele povo esplêndido,
íntegro e sóbrio conquistou meu coração.

Tenho observado que durante minha ausência de meu lar nos Estados Unidos muitos
problemas assoberbantes têm se apresentado a Vossa Excelência. Que a bondosa Providência
Divina lhe dê sabedoria e inspiração para conduzir as grandes responsabilidades de seu
importantíssimo cargo.

Atenciosamente,

Ezra Taft Benson



Na primavera seguinte, após o término de sua missão na Europa, o Élder


Benson e esposa estavam viajando de trem de Salt Lake City para o Leste dos Estados
Unidos em uma missão oficial da Igreja. Uma grave questão que estava na mente do
Élder Benson era encontrar um membro da Igreja que falasse finlandês para servir
como presidente de missão na Finlândia.

Em uma breve parada do trem em Kansas City, o Élder Benson e sua esposa se
dirigiram rapidamente a uma banca a fim de comprar um jornal vespertino. Embora o
condutor tivesse anunciado que a parada seria de dez minutos, o trem partiu em cinco
minutos, deixando o casal Benson para trás.

O Élder Benson logo telefonou para o aeroporto e fez reservas imediatas para
voar de Kansas City para Chicago. Em seguida, ligou para o Presidente John K.
Edmunds, da Estaca Chicago, pedindo‐lhe que alguém os esperasse de carro no
aeroporto para levá‐los à estação a tempo de pegar o trem e continuar a viagem.

O Élder Henry A. Matis, conselheiro do Presidente Edmunds, recebeu‐os no


aeroporto. Enquanto “voavam” em direção à estação ferroviária, o Élder Matis
perguntou com grande interesse sobre as condições de vida na Finlândia. Ele estava
preocupado com alguns parentes seus que moravam lá. Então o Élder Benson

Nas Asas de Fé 106


perguntou‐lhe sobre suas origens e ficou sabendo que o Élder Matis era converso, que
seus pais eram finlandeses e que ele falava finlandês com certa facilidade. Aquele era
o homem que ele estava procurando! Quando o Élder Benson relatou o fato à Primeira
Presidência, eles concordaram e chamaram o Élder Matis para presidir a Missão
Finlandesa, uma designação que ele exerceu com distinção por sete anos.

Assim, a promessa que o Élder Benson havia feito a um grupo de importantes


empresários em Helsinque de que “o evangelho logo [seria] pregado [naquela] terra
abençoada (Finlândia) em seu próprio idioma” foi literalmente cumprida!

Outro capítulo inspirador se seguiu a esse. A Finlândia se tornou o primeiro país


europeu a ter seus registros genealógicos completamente microfilmados para a
Sociedade Genealógica da Igreja. Conseguiu‐se esse feito graças à eficiente
manutenção de registros da igreja luterana finlandesa, e o Presidente Matis foi
importantíssimo nas negociações que tornaram isso possível. Mais tarde, ele descobriu
que era descendente do Bispo Isaac Rothovius, o preeminente líder da igreja luterana
que muitos anos antes tinha iniciado o sistema de preservação de registros na
Finlândia.

A Finlândia é hoje uma florescente missão que rivaliza com as de seus vizinhos
escandinavos. Ela é também uma testemunha da inspiração do Presidente George
Albert Smith que prometera ao Presidente Benson em sua designação que ele seria um
instrumento na abertura de novas terras para a pregação do evangelho. Sem dúvida,
“A Alva Rompe, Trevas e Erro Fugirão...”26

26
Palavras da segunda estrofe do hino 1, “A Alva Rompe” (Hinos, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
Últimos Dias).

Nas Asas de Fé 107


CAPÍTULO 10

No Olho do Furacão

Depois da Segunda Guerra Mundial, parte dos territórios que compunham a


maior porção da Alemanha Oriental foi entregue à Rússia e à Polônia. A fim de evitar
dificuldades futuras com grupos étnicos minoritários, cerca de 15 milhões de alemães
que moravam nesses territórios tiveram de abandonar a região e estabelecer‐se em
outros locais, primordialmente na nova nação, a Alemanha Oriental27.

Devido à escassez de alimentos, roupas, transportes e dinheiro, as condições


dos refugiados oriundos dessa região representavam um dos piores problemas do pós‐
guerra. Para piorar, o espírito de vingança e retaliação que prevalecia ainda era um
empecilho para que essas pessoas conseguissem sair dos territórios nos primeiros
meses depois do encerramento das hostilidades.

Entre os que ficaram retidos na região incorporada à Polônia havia grupos de


membros da Igreja. Todas as informações que conseguíamos obter nos davam conta
de que a situação deles era desesperadora e que muitos tinham a vida por um fio. Não
havia tempo a perder na tarefa de alcançá‐los e assisti‐los a fim de mantê‐los vivos
enquanto reuníamos os meios para ajudá‐los na imensa tarefa de reassentamento e
reabilitação. Fazia‐se extremamente necessário que fôssemos à Polônia para iniciar
essa tarefa. Como tínhamos de entrar na Polônia pelo corredor aéreo que os russos
criaram entre Berlim e Varsóvia, precisávamos obter vistos de entrada naquele país
antes que os militares nos fornecessem um salvo‐conduto para entrar em Berlim.

Eu já estivera várias vezes na embaixada polonesa em Londres, mas apesar da


esperança e das promessas feitas, nada de concreto havia ocorrido. Como o dia de
nosso voo se aproximava, foi necessário que eu passasse quase um dia inteiro com o
primeiro secretário e com o cônsul geral da Polônia. Não havia contato telefônico com
Varsóvia na ocasião, portanto os funcionários da embaixada em Londres tinham de
contatar seus superiores por meio de um rádio de ondas curtas. Devido a dificuldades
técnicas, eles só conseguiram fazer contato muitas horas depois do encerramento do
expediente. Apesar disso, permitiram que eu permanecesse na embaixada até
conseguirem o contato.

27
N do T: O mapa da Europa foi redesenhado após a guerra. Entre as principais modificações, estava a
divisão da Alemanha em dois países: a Alemanha Ocidental, chamada República Federal da Alemanha, e
a Alemanha Oriental, denominada República Democrática Alemã. Além dessa divisão forçada pelas
forças de ocupação, vários territórios foram desmembrados da Alemanha e anexados a países vizinhos.

Nas Asas de Fé 108


Depois dessa longa espera, o cônsul geral emergiu do escritório e anunciou que
não conseguira persuadir os funcionários de Varsóvia a nos conceder os vistos
necessários. Então perguntei‐lhes se eu poderia contatar a embaixada polonesa em
Berlim para fazer nova tentativa, mas fui informado que ainda não havia
representação diplomática da Polônia naquela cidade. Em Berlim, havia apenas uma
missão militar que não estava autorizada a emitir vistos. Retornei ao nosso escritório
visivelmente abatido por não ter obtido aqueles documentos vitais.

O Presidente Benson me recebeu à porta e perguntou com evidente ansiedade


se eu havia tido sucesso. Diante da negativa, ele também ficou decepcionado. Parecia‐
nos que estávamos diante de um obstáculo intransponível. Depois de alguns
momentos de profunda reflexão, durante os quais nenhum de nós quebrou o silêncio,
ele disse de forma serena, porém firme: “Vou orar a respeito.”

Cerca de duas ou três horas depois de o Presidente Benson ter se recolhido a


seus aposentos para orar, ele apareceu na porta do meu quarto e, com um largo
sorriso, disse: “Arrume as malas. Vamos embarcar para a Polônia hoje de manhã!”

A princípio, eu mal podia crer nos meus ouvidos. Lá estava ele, cercado de uma
luz bela e radiante, com o rosto brilhando. Eu imaginava que sua aparência devia ser
semelhante à do Profeta Joseph quando sua fisionomia brilhava pela presença do
Espírito do Senhor.


A falta do devido salvo‐conduto militar naturalmente representava um


obstáculo intransponível, mas depois de explicarmos aos funcionários do transporte
aéreo a nossa situação, eles se dispuseram a nos ajudar a obter o documento quando
chegássemos a Berlim, uma vez que já havíamos estado lá antes. Embarcamos às 11
horas da manhã em um C‐47 do Exército, que contava com poltronas individuais.

Ao chegarmos a Berlim, houve certa apreensão por não termos os documentos


necessários, mas conseguimos obtê‐los bem rapidamente. O irmão Francis R. Gasser,
que tinha contatos com o Governo Militar Americano de Berlim, levou‐nos até uma
adorável residência onde moravam Eugene Merril e sua esposa. O pai do irmão Merril,
o Élder Joseph F. Merril, do Conselho dos Doze, era um grande amigo do Presidente
Benson. Os Merril moravam no agradável palacete que pertencera a um antigo
magnata da indústria de chocolates da Alemanha. Além dos empregados, que
moravam em confortáveis instalações nas proximidades, eles tinham um carro
particular com motorista cedido pelo Quartel General do Exército dos Estados Unidos.
O irmão Merril explicou que tinham muitos empregados (quatro, além do jardineiro)
porque isso lhes permitia fornecer, dentro da legalidade, o emprego extremamente
necessário, além de alimentação, àquelas pessoas.

Nas Asas de Fé 109


O palacete ficava em uma pequena e pitoresca ilha à margem de um dos belos
lagos berlinenses. Após o jantar, demos uma breve caminhada até o local onde antes
se erguia uma magnífica mansão, que agora não passava de uma montanha de
entulho, e que pertencera a Josef Goebels, Ministro da Propaganda de Hitler.
Visitamos também outro belo palacete ocupado por um general americano e outra
mansão à margem do lago que agora era o Cassino dos Oficiais.

A família Merril nos ofereceu belos quartos individuais para pernoitarmos.


Cada um dos quartos do pavimento superior tinha belas sacadas com portas francesas
que se abriam de frente para o lago. Porém, tal luxo não duraria muito.

Na manhã seguinte, um sábado, ficamos sabendo que havia apenas um voo


semanal para Varsóvia — um C47 militar que levava a mala diplomática para a
embaixada americana na capital polonesa. O regulamento exigia que se fizesse a
viagem de ida e volta no mesmo dia, não sendo permitida a estada no país por mais
tempo. Fizemos reservas na expectativa de pegar o avião da terça‐feira seguinte.

Apesar das informações desanimadoras que nos deram antes de sairmos de


Londres, fomos até o Quartel General da Missão Militar polonesa em Berlim a fim de
obtermos permissão para ir até Varsóvia. O irmão Gasser, que havíamos convidado a
nos acompanhar à Polônia, foi conosco. Por ser sábado, o escritório já estava fechado,
mas depois de batermos à porta insistentemente e de explicarmos nosso dilema,
fomos atendidos.

O secretário da missão polonesa foi muito educado, mas foi enfático em


afirmar que os vistos tinham de ser aprovados por Varsóvia e que seriam necessários
uns quatorze dias para esse processo, uma vez que a comunicação só era possível por
malote. O Presidente Benson explicou que já havíamos reservado lugares no voo de
terça‐feira e que uma espera de duas semanas estava fora de questão devido a
compromissos inadiáveis.

Algum tempo depois, o general encarregado da missão polonesa saiu de uma


reunião e o secretário explicou‐lhe nossa solicitação e dificuldade. Também ele
afirmou que não tinha como nos ajudar. Porém, quando o Presidente Benson
perguntou‐lhe se poderíamos voltar a vê‐lo na segunda feira pela manhã, ele
concordou graciosamente. Na segunda‐feira de manhã, enquanto íamos de jipe em
direção à missão militar polonesa, perguntei ao Presidente Benson se ainda iríamos à
Polônia, e ele respondeu sem hesitar que sim.

Dez minutos depois de chegarmos à missão polonesa, o Presidente Benson já


tinha obtido as necessárias autorizações para nós três. Apesar de todas as adver‐
tências que havíamos ouvido em Londres e Berlim de que tal seria absolutamente

Nas Asas de Fé 110


impossível, esse impossível aconteceu. Mais uma vez a promessa do Senhor havia se
cumprido: “E irão e ninguém os deterá, porque eu, o Senhor, os mandei ir.” 28

Em nosso voo para Varsóvia na manhã seguinte, tínhamos de permanecer


dentro dos limites do estreito corredor aéreo de oito quilômetros que nos permitia
sobrevoar o território ocupado pelos soviéticos. Devido a essa limitação, o piloto teve
de nos conduzir diretamente através de uma escura tempestade que estava no curso
de nosso voo. No meio dessa tormenta, fomos atingidos por um raio de violenta
intensidade. Uma esfera de fogo do tamanho de uma bola de basquete ricocheteou
nas partes metálicas entre a cabine do piloto e nossos assentos. O ar se encheu de um
cheiro ozônio e as laterais da aeronave, por um breve momento, foram sugadas para
dentro e voltaram ao normal com um estrondo quando a bola de fogo desapareceu.

Por alguns instantes, a aeronave ficou totalmente descontrolada e parecia que


iria cair. Enquanto o avião mergulhava, pensamos ouvir tiros de baterias antiaéreas.
Felizmente, o piloto conseguiu estabilizar o avião pouco antes de chegarmos à altura
do topo das árvores e por fim chegamos ao nosso destino sem mais incidentes.

Do ar, a paisagem era linda e parecia uma colcha de retalhos formada por
campos, florestas e pradarias amarelos, cinzentos e verdes, riscados por rios e
estradas. Vilarejos e lagos apareciam e sumiam. Aqui e ali se viam as linhas em zigue‐
zague das trincheiras, crateras de bombas e algumas cidades devastadas. As cicatrizes
da guerra estavam muito evidentes e vivas. Mais tarde, ficamos sabendo que os
campos verdes não eram nada mais do que simples mato.

Não havia pistas de pouso à vista quando nossa estropiada aeronave se


aproximava de Varsóvia para aterrissar e por isso deveríamos pousar em um pasto. O
piloto sobrevoou o que tinha sido uma base aérea, o que fez várias pessoas em terra
correrem para espantar vacas e cavalos a fim de abrir caminho para nosso pouso. A
pista improvisada não tinha nada de lisa. O próprio edifício da base era agora um
monte de entulho, embora estivessem em construção novas pistas de pouso.

Ao desembarcar, vimos que a lateral da aeronave tinha uma grande área


chamuscada como se tivesse sido queimada por um grande maçarico. Fiquei muito
grato por termos sido poupados do que poderia ter sido uma tragédia.

O vice‐cônsul da Embaixada Americana, o Sr. Gist, estava nos aguardando. Ele


nos levou para o centro de Varsóvia e nos hospedamos no Hotel Polônia —
virtualmente o único edifício razoavelmente habitável no coração daquela outrora bela
cidade. Nossas acomodações consistiam de um único quarto pequeno cheio de camas
de campanha. Compartilhamos esse quarto com sete outras pessoas, sentindo‐nos

28
Doutrina & Convênios 1:5

Nas Asas de Fé 111


afortunados de ter esse lugar para nos abrigar. Nas ruas da cidade, havia dezenas de
milhares de poloneses que não tinham qualquer tipo de abrigo.

No hotel, ficamos conhecendo um cavalheiro da Igreja Adventista do Sétimo


Dia que estava lá em uma missão humanitária semelhante à nossa. Ele perguntou ao
Presidente Benson o que ele planejava fazer durante sua viagem e por quanto tempo
esperava ficar por ali. O Presidente Benson explicou que tinha somente mais uma
semana para se reunir com altos funcionários poloneses e para visitar nossos membros
que estavam espalhados de norte a sul do país.

Diante dessa explanação, o cavalheiro disse: “Sr. Benson, você não entende
que uma guerra violenta acabou há pouco por aqui? Quase não existem transportes na
Polônia. Já estou aqui há mais de um mês e até agora não consegui nem mesmo um
jipe para me levar às vizinhanças de Varsóvia.”
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Em pouco tempo na cidade, já era fácil compreender porque Varsóvia era


considerada a cidade europeia mais castigada pela guerra. Ela havia sido sistemática e
completamente arrasada e a maioria da população vivia em porões.

Quando os alemães chegaram, em 1939, a cidade já tinha sido bem danificada


pelos bombardeios aéreos e a resistência local lhes havia causado mais dificuldades do
que em qualquer outra cidade polonesa, o que fez os alemães ficarem cada vez mais
enraivecidos. Depois, quando a insurreição explodiu, encorajada pelo avanço das
tropas russas, os alemães sistematicamente saquearam a cidade e queimaram todas as
casas, quarteirão por quarteirão, pulverizando muitas delas com dinamite. Muitos dos
moradores que foram pegos foram fuzilados em frente a suas casas. A insurreição foi
inoportuna e custou um preço muito alto, tendo causado cerca de 70 por cento de
todas as baixas polonesas, mas os habitantes de Varsóvia resistiram até a chegada dos
russos.

À exceção de uma igreja arruinada, não havia uma só parede ou chaminé em


pé na área do gueto judaico. A população, na sua maioria, estava maltrapilha, faminta
e desgrenhada. Paradoxalmente, era possível adquirir todo tipo de alimento — fresco
ou enlatado — assim como todo tipo de roupa, peles, prataria, etc — nas ruas de
Varsóvia. Tudo isso existia em abundância, desde que se tivesse dinheiro. Os preços
iam de 6 dólares americanos por uma refeição, até 700 dólares — ou 18 mil unidades
de moeda polonesa — por um par de botas de cavalgar.

Muitas pessoas ocupavam as ruas com enormes quantidades de cigarros


americanos, sucos, vegetais e carnes enlatadas, procurando vender esses produtos a
preços de mercado negro, enquanto a miséria estava por todo lado. Apesar disso, as
poucas boates e bares que tinham sido reconstruídos e reabertos estavam sempre

Nas Asas de Fé 112


iluminados e fervilhantes, com a música e o vozerio de seus frequentadores enchendo
o ar.

O Presidente Benson reuniu‐se com o embaixador americano, Arthur Bliss


Lane, que era amigo pessoal do Presidente J. Reuben Clark, Jr. e foi recebido com toda
cordialidade. Ele também concordou em fazer contato com funcionários do governo
polonês com quem precisávamos nos reunir a fim de prepararmos os meios de
executarmos nossas tarefas.

Naquela noite, demos umas voltas pela cidade. Eu nunca tinha visto tamanha
sujeira, tantos mendigos, nem tantas pessoas em estado tão decrépito. Considerando
as condições de vida vigentes, era possível compreender em parte a razão disso. As
pessoas pareciam estar totalmente desamparadas e sem recursos para comprar
qualquer coisa. Assim, procuravam vender os artigos que lhes eram doados pelos
americanos pelo preço mais alto possível para que pudessem comprar alguns itens de
primeira necessidade, tais como pão e batatas. Havia todo tipo possível de mercado‐
rias nas vitrines e nas ruas. Crianças pequenas vendiam cigarros americanos por dois
dólares e cinquenta o maço, a que chamavam de “Papyroczy”. Muitas dessas crianças
tinham partes de caixas de papelão que antes embalavam esses itens pendurados por
barbante nos ombros para servir‐lhes de roupa. Várias estavam mutiladas, sem um pé
ou mão, e usavam muletas,. Em alguns casos, tinham o rosto deformado. Caminhamos
vários quarteirões entre pilhas das ruinas mais abjetas que eu já tinha visto. Quanto
mais longe íamos, mais nos subjugavam os sentimentos de depressão e tristeza.
Finalmente, demos meia volta e retornamos ao nosso apinhado quarto de hotel.

Havia soldados russos por todo lado. Também havia militares poloneses — pelo
menos eram jovens poloneses em uniformes militares. Todos estavam sujos,
desgrenhados e armados até os dentes.
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Ao procurarmos transporte para a viagem até Wroclaw (Breslau) e Zelbak


(Selbongen), conseguimos por empréstimo um jipe da UNRRA (United Nations Relief
and Rehabilitation Agency – Agência das Nações Unidas para Assistência e Reabili‐
tação) para irmos no final da semana até esta última, mas não havia transporte aéreo
para chegarmos a Wroclaw. No entanto, com a ajuda do Ministro dos Transportes
conseguimos duas passagens no trem para aquela mesma noite. O Presidente Benson
ainda estava esperançoso de conseguir viajar de avião para nos encontrar em
Wroclaw, e ele acabou conseguindo.

A estação ferroviária estava lotada de pessoas imundas, esquálidas e fracas.


Quando nosso trem chegou, eu e o irmão Gasser estávamos muito abatidos e
precisamos pedir a ajuda de dois policiais poloneses para chegar ao nosso vagão. À
exceção de um vagão de passageiros bem danificado, os outros carros eram vagões de

Nas Asas de Fé 113


carga e de transporte de gado que tinham um cheiro horrível. As pessoas brigavam
ferozmente para obter lugar nesses vagões, mesmo mães com bebês, jovens e velhos,
mulheres e crianças. Eles acabavam por pendurar‐se nas laterais e no teto do trem e
até mesmo nos espaços entre os vagões. Além do mais, choveu quase ininterrupta‐
mente durante a viagem de treze horas até Wroclaw (Breslau). A maioria dos passa‐
geiros parecia estar arrastando consigo tudo o que lhes restava neste mundo. Muitos
provavelmente eram refugiados, algo bastante comum nas áreas ocupadas da Europa.
Não havia recato ou privacidade possível, nem mesmo instalações sanitárias.

Tínhamos pelo menos um vagão de terceira classe imundo e com assentos de


madeira para nosso uso. Não havia janelas nem ventilação. Estávamos sentados ao
lado dos fétidos toaletes, o que só contribuía para aumentar o desconforto da viagem.
Nosso compartimento estava completamente lotado, mas comparativamente ao
restante dos passageiros, estávamos viajando como reis. Ao longo da viagem, notamos
a ausência absoluta de gado, cavalos ou outros rebanhos nos campos, como na
Alemanha. Ficamos sabendo que os russos haviam levado a maior parte dos animais
para seu próprio país. Não existiam tampouco, segundo nos contaram, maquinário
agrícola, animais de tração ou fertilizantes. Por isso, milhares de acres de terra
agricultável estavam abandonados e cobertos de mato.

Em contraste com Varsóvia e algumas outras cidades polonesas, a maioria dos


vilarejos sofrera apenas danos leves, diferente do que ocorrera na Alemanha. As
fábricas polonesas pareciam também não ter sido muito afetadas, mas apesar disso,
fomos informados de que os russos haviam se apoderado da maioria das máquinas, o
que tornava as fábricas inoperantes.
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Wroclav (Breslau), como Varsóvia, estava arrasada. A estação ferroviária estava


apinhada de pessoas, algumas dormindo, mães trocando fraldas dos bebês, e refugia‐
dos exaustos sentados desalentadoramente entre seus pertences. É impossível des‐
crever com precisão as condições deploráveis daquele povo. Em meu coração, orei:
“Que Deus ajude estes refugiados e esses desabrigados!”

Eu e o irmão Gasser conseguimos chegar à esquálida casa do presidente do


ramo. Mal tínhamos entrado, chegou um soldado russo que queria entrar a todo
custo. O presidente do ramo não estava e sua esposa recusou‐se a abrir a porta para
ele. Ela chegou a colocar contra a porta quase toda a mobília que tinha a fim de
impedir que ele forçasse a entrada. Pelo que depreendemos da conversa na hora e de
informações posteriores, o soldado tinha vindo buscá‐la para afastá‐la dos quatro
filhos e colocá‐la em um campo de trabalhos forçados, onde não receberia pagamento
e nem mesmo comida. O soldado desistiu logo, mas avisou‐a de que voltaria de manhã
com outros companheiros para levá‐la para o trabalho, quisesse ela ou não.

Nas Asas de Fé 114


Naquela época, os membros da Igreja poloneses não tinham virtualmente
nenhuma segurança. Para subsistir, eles tinham de vender o que tinham para comprar
alimentos no mercado negro por preços exorbitantes. Simultaneamente, seus lares
estavam continuamente sofrendo saques. Os conquistadores russos e poloneses
pilhavam e tomavam posse de tudo o que desejavam. As mulheres estavam sendo
estupradas e seus maridos sendo torturados, aprisionados e mortos. Os santos
estavam em situação desesperadora. Tinham sido forçados a vender toda a roupa,
exceto os andrajos que tinham sobre o corpo, assim como tudo o que tinham em casa
e que escapara das pilhagens ou que haviam conseguido esconder. Tinham sido
despojados de todas as suas posses materiais.
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O Presidente Benson chegou de avião pouco antes do meio‐dia e encontrou‐se


no aeroporto com o vice‐prefeito da cidade de Wroclaw (Breslau) e com o diretor do
jornal Publicity. Este último fez a gentileza de levar o Presidente Benson de carro até a
cidade.

Antes, no avião — que parecia necessitar de grandes consertos — o Presidente


Benson tinha se sentado em um tamborete de três pernas que havia sido colocado no
corredor. Durante o taxiamento, o tamborete e seu passageiro deslizaram para o
fundo do avião, mas quando aterrizou, o Presidente Benson se encontrava quase
dentro da cabine do piloto.

Eu e o irmão Gasser tínhamos conseguido quartos em um hotel para aquela


noite e estávamos tentando conseguir transporte para o dia seguinte. Por isso, só
encontramos o Presidente Benson às 18 horas, durante a reunião que fizemos com os
santos. Enquanto isso, tivemos reuniões frutíferas com o vice‐prefeito e com o
jornalista, tendo ambos prometido cooperar ao máximo. Eles concordaram em ajudar
nossos membros a se mudarem para a zona de ocupação britânica na Alemanha e
garantiram que fariam todo o possível para isso. Além disso, concordaram em avisar
nos jornais para que nossos membros se alistassem com esse fim em Wroclaw ou
conosco em Londres a fim de que pudéssemos encontrar o mais rapidamente possível
todos os que estavam espalhados.

Havia quarenta e seis pessoas na reunião naquela noite e nos reunimos na


mesma capela que usavam antes da guerra. Ela estava muito danificada, mas ainda
servia. Tivemos uma reunião muito emotiva e ficamos de anunciar na manhã seguinte
ao presidente do ramo se nossos membros poderiam partir ou se poderiam permane‐
cer como cidadãos poloneses. A cidadania polonesa era considerada apenas um expe‐
diente temporário, pois tinha grande potencial para sofrer discriminações.

Depois da reunião, visitamos uma horta que os santos receberam permissão de


plantar entre as ruínas e dela colher o que conseguissem. Disseram‐nos que a maioria

Nas Asas de Fé 115


dos nossos 134 membros que lá viviam na época estavam recebendo uma quantidade
muito útil de legumes e verduras oriundos daquela horta incomum. A essa fonte de
alimentos agregamos nosso pequeno mas bem‐vindo suprimento que trouxemos de
Berlim e de Varsóvia, na esperança de que pudéssemos ajudá‐los um pouco até que
eles pudessem mudar‐se para a Alemanha. Ao nos recolhermos naquela noite, tínha‐
mos o coração cortado.
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Reunimo‐nos com o presidente do ramo e três outros irmãos na manhã


seguinte. O Presidente Benson tinha orado sobre a questão da remoção deles e agora
especificava os passos a serem tomados. Deixamos cem dólares com o presidente do
ramo para que ele tivesse recursos que permitissem atender aos mais necessitados.

Saímos mais cedo para tomar o ônibus para Katowice e precisamos persuadir o
motorista a esperar pela chegada do Presidente Benson. Enquanto isso, ele, o irmão
Gasser e o presidente do ramo fizeram uma última visita ao vice‐prefeito de Wroclaw.
Nesse encontro, decidiram que o irmão Gasser deveria ficar mais um dia para acom‐
panhar os diversos assuntos relacionados à remoção definitiva de nossos membros
daquela área.

Durante nossa viagem de ônibus até Katowice observamos centenas de


mulheres trabalhando ao longo da estrada na construção de ferrovias, de rodovias,
como madeireiras e em várias outras ocupações pesadas. Muitas delas eram, a julgar
pela aparência, alemãs. Percebemos que a maior parcela de trabalhos realmente
pesados era executado por mulheres.

Era evidente que nenhum vilarejo de toda a Silésia (que tinha sido parte da
Alemanha) tinha sido poupado da desolação da guerra. No entanto, imediatamente
após cruzarmos a fronteira e entrarmos no território da antiga Polônia, as cidades
pareciam intocadas, com as fábricas e alto‐fornos a todo vapor. Que contraste só por
cruzarmos a fronteira! O cenário ali me lembrava a Checoslováquia. Mais uma vez,
durante a viagem, vimos centenas de soldados russos, todos imundos e pesadamente
armados.

Chegamos a Katowice, uma cidade de 350 mil habitantes, no final da tarde. O


terminal rodoviário apresentava o mesmo cenário repugnante que víramos em
Varsóvia e Wroclaw. Logo percebemos que não havia ônibus ou trens para Varsóvia e
então eu e o Presidente Benson saímos em direções diversas para providenciar algum
tipo de transporte. Combinamos de nos encontrar em uma esquina determinada
dentro de meia hora. Ele iria procurar um escritório da Cruz Vermelha Internacional e
eu procuraria outras alternativas.

Nas Asas de Fé 116


Eu tinha caminhado não mais que três quarteirões — e escurecia rapidamente
— quando duas adolescentes se aproximaram de mim. Uma delas falou comigo timi‐
damente em polonês mas, sem entender, apenas dei de ombros e sorri. Em seguida, a
outra falou em alemão, idioma que eu falava, e perguntou‐me: “Você não é ameri‐
cano?”

“Sou”, respondi. Ela olhou para a companheira e me perguntou: “Você não é


missionário mórmon?”

Fiquei muito feliz em dizer a ela que sim. A pergunta dela foi muito surpreen‐
dente, porque tanto quanto sabíamos não havia membros da Igreja na Polônia, exceto
por aqueles alemães que ainda não tinham sido removidos para a Alemanha. Descobri
que as duas garotas eram membros da Igreja refugiadas que tinham sido deixadas para
trás, sem saber se suas famílias estavam vivas ou não. Em nossa conversa, elas confir‐
maram que não havia transporte público disponível naquela ocasião entre Katowice e
Varsóvia.

Então a mais jovem delas disse: “Eu vi um caminhão britânico há alguns


minutos parado em um restaurante a quatro quarteirões daqui.” E indicou a direção.
“Dois oficiais britânicos desceram para comer alguma coisa”, continuou. “Por que você
não pergunta a eles se estão indo para Varsóvia.”

Agradeci‐lhe a sugestão e apressei‐me a encontrar os oficiais. Nunca mais vi as


duas jovens. Por que elas haviam se dirigido justo a mim em meio à multidão que
havia naquela grande cidade? Como elas tinham a resposta que eu precisava? Para
mim, essa foi outra evidência de cumprimento da promessa do Senhor de que “irão e
ninguém os deterá, porque eu, o Senhor, os mandei ir.”

Os oficiais britânicos estavam sentados a uma mesa próxima à janela do


restaurante e estavam terminando sua frugal refeição. Quando me apresentei e
expliquei‐lhes nossas dificuldades, eles disseram que estavam indo para Varsóvia, mas
que não tinham permissão para levar passageiros. Ambos estavam à disposição da
UNRRA e deveriam atravessar um território onde muitos caminhões tinham sido
sequestrados por pessoas desesperadas e, segundo disseram, não queriam aceitar a
responsabilidade de colocar a vida de outros em risco. Assegurei‐lhes que não
tínhamos medo e que estávamos totalmente dispostos a assumir os riscos e descon‐
fortos em questão. Por fim, eles concordaram não só em nos dar uma carona até
Varsóvia, mas também a nos levar a outras cidades onde, segundo os registros da
missão, poderia haver, isoladas, uma ou duas famílias da Igreja.

Logo o Presidente Benson e eu estávamos a caminho de Gliwice (Gleiwitz). Não


conseguimos contatar nenhum membro da Igreja nessa cidade, nem em Beuthen ou
Hindenburg, mas um amigo, cuja filha era membro da Igreja, deu‐nos boas infor‐
mações sobre os membros que ainda estavam na área. Deixamos com ela alguns

Nas Asas de Fé 117


alimentos e dinheiro que ela concordou em entregar a uma das autoridades
presidentes e partimos para Varsóvia.

Apesar dos avisos que nos tinham sido dados sobre bandos que pilhavam e
sequestravam, viajamos à noite até quase as três da manhã e chegamos sem
incidentes. Embora nosso espaço na carroceria do caminhão fosse bastante restrito,
ficamos muito gratos pela bondade daqueles que tornaram possível aquela viagem
memorável.
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Tínhamos feito preparativos para sairmos para a Prússia Oriental por volta do
meio‐dia, de jipe, mas como chovia muito e não tínhamos dormido quase nada, o
Presidente Benson decidiu que deveríamos esperar até o dia seguinte, domingo,
quando o irmão Gasser voltaria e poderia ir conosco. Assim, pedimos ao motorista do
jipe da UNRRA que voltasse às 9 horas da manhã seguinte.

Como tínhamos tempo que podia ser gasto produtivamente, visitamos alguns
altos funcionários poloneses. Agradou‐nos especialmente a visita a Stanislaw
Mikolajcyk, Primeiro Vice‐Presidente e Ministro da Agricultura. Durante a guerra, ele
havia sido o Primeiro Ministro em exercício da Polônia no exterior, com seu gabinete
sediado em Londres. Como líder do partido político que se opunha ao governo fanto‐
che apoiado pela Rússia, ele nos disse que provavelmente ficaria pouco tempo na
Polônia.

Visitamos à tarde o famoso gueto de Varsóvia. Foi uma visão terrível. Antes da
guerra, Varsóvia tinha cerca de 1.250.000 habitantes, dos quais 350.000 eram judeus
que viviam no mencionado gueto. Quando os alemães chegaram, eles forçaram os
judeus a construir um sólido muro em torno do gueto, inclusive com fortificações. Em
seguida, isolaram os judeus do mundo exterior e os forçaram a sobreviver como
pudessem e com o que pudessem produzir em seu interior, um espaço muito peque‐
no. Para aumentar as dificuldades, os alemães forçaram outros 200.000 judeus a
entrar e viver no mesmo espaço.

Algumas pessoas com quem conversamos nos garantiram que muitos polo‐
neses eram favoráveis a essa política. Qualquer judeu que tentasse fugir dessa prisão
virtual era fuzilado. Mais tarde, o gueto passou a ser usado como campo de provas
para todos os tipos de armas — aviões, tanques, lança‐chamas, etc. Alguns dos
habitantes escaparam pelo esgoto, mas os restantes foram mortos. Em 19 de abril de
1943, o gueto de Varsóvia começou uma revolta armada que só foi debelada em 16 de
maio. Essa rebelião marcou uma das mais heróicas e trágicas batalhas de toda a luta
contra o hitlerismo. Ela foi travada por um punhado de homens e mulheres que,
isolados do mundo pelo muro do gueto, sabiam que estavam condenados a perecer.

Nas Asas de Fé 118


Então pegaram em armas para mostrar ao mundo como pessoas livres eram capazes
de lutar e morrer.

A revolta do gueto de Varsóvia não foi um evento isolado na guerra total que a
Polônia travou contra a invasão nazista. Ela foi preparada durante meses e armas e
munições oriundas de grupos democráticos do movimento clandestino polonês
chegavam durante esse período aos judeus que lá habitavam. Quando a revolta
eclodiu, a Organização Militar de Resistência Judaica lançou um apelo aos poloneses,
referindo‐se a sua ação como “uma luta por nossa honra humana, social e nacional”,
sob o slogan de “Irmandade de armas e sangue de luta da Polônia” pela “nossa
liberdade e a de vocês”. O conhecido autor polonês, Stanislaw Ryszard Dobrowolski,
denominou a revolta de “Termópilas da luta de Varsóvia”.29

Ao final da insurreição, o gueto havia sido completamente arrasado pelos


nazistas, uma área de cerca de 1.600 metros quadrados na qual o único objeto que
ficou de pé bem no meio foi uma igreja queimada. Não só não havia uma parede
sequer em pé, mas até mesmo os tijolos haviam sido esfacelados, tão completa fora a
destruição. O condutor da “droshka” (charrete) que nos levava arriscou a opinião de
que haveria ainda cerca de 200.000 corpos sob os escombros. O mal cheiro de carne
humana podre era nauseante. Era a visão mais desoladora que já tínhamos presen‐
ciado — um testemunho da crueldade e da desumanidade infligidas a um povo
indefeso.

Ao lusco‐fusco do entardecer, vimos uma enorme quantidade de ratos


percorrendo as ruínas em terríveis ondas. Disseram‐nos que eles estavam se
banqueteando com os corpos que ali jaziam. O condutor disse também que cerca de
7.000 famílias ainda se escondiam nos porões das ruínas, algo totalmente inacredi‐
tável. A área estava sendo pulverizada com DDT lançado por aviões para procurar
evitar uma recorrência da peste bubônica, também conhecida como Peste Negra, que
ceifara a vida de um terço da população da Europa vários séculos antes.
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Quando chegou pela manhã, o irmão Gasser relatou que havia atraído
considerável atenção em Katowice, pois as pessoas ficavam surpresas de ver alguém
em um uniforme militar dos Estados Unidos. Ele então brincou dizendo que aparente‐
mente as pessoas não tinham sido informadas que nem todos os americanos tinham
sido mortos na guerra! O irmão Gasser e o motorista do jipe recomendaram que
comêssemos o desjejum antes de partir para Zelbak (Selbongen), mas o Presidente
Benson nos lembrou que era domingo de jejum e que, portanto, deveríamos adiar a
refeição. O motorista ficou muito chateado com essa decisão, mas ele e o irmão

29
Referência à famosa batalha de Termópilas da mitologia grega, na qual 300 espartanos detiveram o
avanço de Xerxes, o persa.

Nas Asas de Fé 119


Gasser não perceberam que eu e o Presidente Benson não havíamos comido nada
desde quarta‐feira.

Logo estávamos a caminho de Zelbak, que ficava a 376 quilômetros de


distância. Sacudíamos de um lado para o outro a 70 ou 80 quilômetros por hora,
voando sobre os paralelepípedos, através dos vilarejos destruídos, naquela velocidade
arriscada, tanto para os seus habitantes quanto para os passageiros do jipe. Não
conseguíamos fazer nosso motorista (que tinha vivido oito anos na Inglaterra e
entendia inglês perfeitamente, quando queria) entender que deveria ser mais
cuidadoso e menos apressado.

O dia estava bonito, mas havia um forte vento oeste que não nos permitia
esquecer que estávamos em um jipe. A capota ficava esvoaçando e batendo tanto que
finalmente o motorista a abaixou. Aí é que o vento realmente nos fustigou. De
repente, começou a chover a cântaros e por isso levantamos a capota de novo. Como
eu estava do lado do vento, minha capa de chuva logo ficou encharcada. Além disso, o
vento era demais para a capota encharcada e logo um dos suportes se quebrou,
rasgando a lona de fora a fora. O resto da viagem foi feita com a capota arriada —
fizesse sol ou chuva.

O motorista continuava a buzinar sem a mínima necessidade e também tentava


passar o mais próximo que podia das pessoas, cavalos e outros carros. Nos disseram
que ele era o típico motorista polonês. Algumas vezes ele assustou tanto os cavalos
que pensávamos que eles iam saltar para dentro do veículo. Não importava o lado da
estrada em que estivessem as pessoas ou veículos — ele abria o caminho com a buzina
e ia em frente. Ele mirava nas pessoas e se elas não saíssem do caminho a tempo, as
atropelaria. Tudo isso nos fez ficar um pouco nervosos e chateados com ele.

Por volta do meio‐dia, o motorista começou a procurar um lugar para


comermos, porém o Presidente Benson sugeriu que não parássemos, pois tínhamos
ainda uma grande distância a percorrer. Vi então como o motorista ficou bravo pela
(como ele pensava) falta de consideração com seu bem‐estar. Comecei então a
compreender porque ele guiava com tanta raiva e descuido.

Exceto por esses problemas, a viagem foi tranquila. Passamos por vários postos
de sentinelas e muitas vezes tivemos de sair da estrada por causa da falta de placas de
sinalização adequada. Por onde quer que passávamos, as pessoas nos saudavam. As
estradas eram margeadas por árvores e pedras pintadas de branco. Os campos tinham
belas cores, agora que havíamos entrado na Prússia Oriental.

Em alguns lugares, nós vimos obstáculos na estrada. Havia homens e mulheres


– mais mulheres do que homens – nos campos. Eles estavam cortando, colhendo e
amarrando os molhos dos grãos. Durante nossa viagem inteira vimos apenas duas

Nas Asas de Fé 120


máquinas que fazem este trabalho – dois tratores velhos e uma máquina de debulhar
grãos.
Quando chegamos à região previamente conhecida como Prússia Oriental,
vimos que cada aldeia, grande ou pequena, tinha sido bombardeada ou queimada. No
caminho, vimos vários tanques, caminhões, aviões e outros equipamentos – todos
destruidos. Este lugar deveria ter sido um verdadeiro campo de batalha. Duas vezes
perdemos a rua principal e tínhamos que usar outras ruas secundárias para voltar. Só
um jipe poderia passar por algumas daquelas ruas.
Não havia sinal de vida ao entrarmos com nosso fiel jipe na pequena vila de
Zelbak (Selbongen), na Prússia Oriental. Achamos esse fato estranho, pois o dia estava
tão bonito que convidava para uma caminhada ao sabor da fresca brisa de verão.
Atravessamos toda a vila e avistamos no final dela a capela do ramo — o único edifício
da Igreja em toda a área que havia sido antes da Alemanha. Avistamos uma mulher, a
única pessoa que encontramos, que se escondia atrás de uma grande árvore. Ela
demonstrava medo ao lhe perguntamos se aquela era a capela mórmon e onde
podíamos encontrar o presidente do ramo. Porém, ao saber quem éramos, ela nos
cumprimentou com lágrimas de gratidão e alegria. Ela era um dos membros da Igreja
vindos de Colônia, Alemanha e que se refugiaram ali. Ela e outros fugiram para o leste
quando as tropas aliadas invadiram a França e a Alemanha, mas viram‐se impedidos de
regressar quando o exército russo avançou para oeste, tomando toda aquela área.

O silêncio era absoluto ao nos aproximarmos da casa do presidente do ramo, o


irmão Adolf Kruska. A casa ficava ao lado da capela e, de fato, a capela tinha sido
construída na sua propriedade. A irmã que encontráramos bateu à porta, mas nin‐
guém respondeu. Então ela gritou: “Esta tudo bem. Os élderes de Sião chegaram!”

Ouvimos então uma tranca se abrindo e, um momento depois, apareceram


quase como por milagre mulheres, moças e crianças gritando e rindo de alegria, cada
uma procurando expressar sua alegria e felicidade infinitas. Em minutos, a notícia
correu de casa em casa: “Os irmãos estão aqui!” Logo estávamos cercados por umas
cinquenta pessoas, as mais felizes que já tínhamos visto.

Todos haviam se escondido rapidamente ao verem nosso estranho veículo se


aproximar, pois temiam tratar‐se de soldados russos ou poloneses. Da mesma
maneira, quando ficaram sabendo quem éramos e qual era a nossa missão, a vila
passou a fervilhar com mulheres e crianças felizes — mulheres e crianças porque
restavam somente dois dos vinte e nove portadores do sacerdócio que ali viviam.

Naquela manhã de domingo, na reunião de jejum e testemunhos, mais de cem


membros se reuniram a fim de prestar testemunhos e rogar ao Pai Celestial em
cânticos, jejum e oração, que fosse misericordioso com eles e permitisse que os
élderes voltassem a visitá‐los. Nossa chegada súbita e não anunciada, depois de um

Nas Asas de Fé 121


isolamento quase completo em relação à Igreja e à sede da missão desde o início de
1943, fora a resposta pela qual ansiavam, uma resposta tão maravilhosa que eles mal
podiam acreditar. Nunca tínhamos visto uma expressão de amor e gratidão tão
profunda. Nada os satisfaria mais do que ter outra reunião!

Nosso motorista polonês estava estupefato. Como tínhamos chegado ao nosso


destino, ele esperava que por fim pudesse comer algo, mas o Presidente Benson
sugeriu que esperássemos até terminar a reunião com os santos!

Enquanto membros vindos de todos os cantos aproximavam‐se para reunir‐se


conosco, o irmão Gasser foi com o motorista até Olszytn (Allenstein) para encher o
tanque de combustível e buscar um membro da presidência do ramo que morava a
cerca de nove quilômetros da capela. Ficamos sabendo que esse irmão tivera todos
seus bens e roupas confiscados e que uma das irmãs lhe emprestara uma anágua para
que ele pudesse vir à reunião.

Em cerca de uma hora, cento e quatro membros e amigos haviam se amon‐


toado na capela simples mas atraente para desfrutar do Espírito do Senhor que Se
manifestou de maneira extraordinária. Durante a reunião, dois oficiais poloneses
entraram com ares de arrogância, o que causou muita inquietação entre os presentes.
O Presidente Benson já havia começado a falar. A princípio, os dois oficiais mostraram‐
se muito mal‐educados, mas antes do final do discurso do Presidente Benson a atitude
deles parecia ter mudado profundamente e eles ficaram até o hino final. Depois de
traduzir para o Élder Benson, tive o privilégio de falar aos irmãos. Depois da oração de
encerramento, tendo os oficiais poloneses partido, os santos gritaram a uma só voz:
“Vamos fazer outra reunião!” Que espírito maravilhoso.

Após a reunião, o irmão Kruska nos levou a sua casa e nos ofereceu comida e
camas de penas para passarmos a noite. Tínhamos perguntado se havia uma hospe‐
daria e, de fato, havia uma parcialmente preservada, mas como estava fechada, nos
vimos forçados a aceitar a hospitalidade dos santos, apesar de nos sentirmos
incomodados em tirá‐los de suas camas.
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Na casa do irmão Kruska ficamos sabendo dos acontecimentos que nos


precederam. Desde o fim das hostilidades, os membros da Igreja que estavam nos
territórios cedidos à Polônia haviam se tornado um povo desprezado, perseguido e
indesejado devido à sua nacionalidade alemã. Eles haviam sofrido as mais chocantes
crueldades e bestialidades.

Um de nossos fiéis santos tinha sido fuzilado a sangue frio pelos invasores
russos simplesmente porque não fora capaz de dar‐lhes os cigarros que exigiram. A
mãe correu para erguer o corpo sem vida do filho da poça de sangue em que estava e

Nas Asas de Fé 122


foi afastada a pontas de baionetas e ameaçada de morte. Enquanto essa pobre mãe
consolava a nora, mãe de duas adoráveis crianças, ambas as mulheres foram
furiosamente chicoteadas pelos soldados, a ponto de não conseguirem se deitar por
duas semanas.

Desde esse acontecimento, as mulheres e garotas — algumas ainda pré‐


adolescentes — haviam sido continuamente violentadas. Uma mãe tinha sido forçada,
sob ameaça de armas, a ficar na sala e presenciar a filha ser violentada por dez
soldados. Outra menina, com menos de doze anos, tinha sido violentada várias vezes.
Uma das irmãs casadas tinha também sido violentada três vezes em uma única noite.
Ao mesmo tempo, o marido dela, que andava de muletas havia algum tempo, sendo
quase inválido, foi arrancado da cama e deportado para a Sibéria, para nunca mais
voltar. A esposa, como consequência, agora tinha um filho russo para criar, além das
duas crianças que já tinha com seu marido.

Nos últimos dois meses, os santos tinham vivido com medo. Seus lares tinham
sido continuamente invadidos à noite e saqueados. Tudo o que os invasores queriam
tinha sido confiscado. A cobiça deles era insaciável. Homens, mulheres e crianças
tinham sido levados de casa e nunca mais foram vistos.

O irmão Kruska nos mostrou, ao lado da capela, a sepultura recente onde seu
filho jazia por não ter cigarros para dar aos soldados invasores. Ainda havia flores
frescas sobre o túmulo como para nos lembrar de quão recentes tinham sido aqueles
episódios que a pequena capela presenciara.

Como o exército russo em sua retirada para dar lugar ao exército polonês havia
levado praticamente todos os cavalos, gado, ovelhas e porcos, pouquíssimos animais
podiam ser encontrados. Algumas famílias haviam conseguido esconder uma ou duas
galinhas, mas a maioria das aves tinha sido confiscada. Quase toda a produção de ovos
havia sido requisitada pelas tropas de ocupação e, dada a falta de alimentos,
questionava‐se se as aves remanescentes poderiam sobreviver.

Uma vez nossos membros esconderam as galinhas em grandes caixas de metal,


à prova dágua, parcialmente cheias de pedras para que afundassem. Eles as abaixavam
com cordas no lago próximo e à noite os recolhiam à superfície para renovar o ar e
alimentar as galinhas. Ocasionalmente encontravam ali um ou outro ovo. Durante o
inverno, fizeram buracos no gelo para preservar as aves da mesma maneira.

As roupas e objetos de valor tinham também sido confiscados sem piedade.


Muitas pessoas enterraram seus pertences em caixas rasas sob a vegetação rasteira e
os soldados passaram de propriedade em propriedade com varas de sondagem
procurando encontrá‐los. As pessoas frequentemente mudavam a localização das
caixas. O que quer que fosse encontrado, era enviado para a Rússia.

Nas Asas de Fé 123


A maioria dos homens e mulheres alemães eram forçados a trabalhar de oito a
doze horas por dia, a maioria sem receber nada em troca — nem alimento, nem
pagamento. Os que serviam como capatazes recebiam o equivalente a 40 centavos por
dia. Os cartões de racionamento que permitiriam às pessoas comprar alimentos a
preços normais não eram aceitos, obrigando‐as a adquirir comida e outros artigos
pelos preços exorbitantes do mercado negro.

Nossos membros enfrentavam um período crítico. Um irmão, depois de ter


sido roubado várias vezes, foi novamente acossado pelos invasores. Quando estes
ficaram sabendo que o paletó e as calças que ele estava usando lhe tinham sido dados
por outra pessoa depois do último saque, para que não ficasse nu, e que além disso ele
estava usando uma combinação feminina como camisa, ficaram tão envergonhados
que deixaram de acossá‐lo.

Essas pessoas foram apenas algumas das muitas vítimas inocentes da guerra.
Os exércitos vitoriosos, sempre se lembrando das atrocidades infligidas pelo inimigo a
seus compatriotas, com o coração cheio de ódio e desejo de vingança, haviam se
transformado em verdadeiros demônios. Eles procuravam justificar sua própria vilania
e covardia com o desumano tratamento previamente imposto a si por seus inimigos.
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Tínhamos trazido conosco algum alimento obtido com o comissário de nossa


embaixada em Varsóvia que, junto com dois ovos que a família Kruska tinha e um
pedaço de pão de centeio foram a nossa refeição. O centeio tinha sido moido com
pedras comuns e parecia haver uma generosa quantidade de pó de pedra misturada a
ele. O motorista polonês disse que aquele tinha sido o período mais longo que já tinha
passado sem comer em toda a sua vida.

A maioria de nossos membros naquela pequena comunidade tinham sido


proprietários de suas próprias terras e casas. Suas terras já tinham sido doadas aos
poloneses que se mudariam para aquela área, e suas casas seriam posteriormente
confiscadas, tão logo seus ocupantes alemães pudessem ser repatriados — tudo isso
sem qualquer compensação. Alguns dos nossos membros ainda tinham pequenos lotes
que não haviam sido confiscados e neles plantavam batatas e centeio. Eles plantavam,
colhiam, debulhavam e moíam o centeio, que finalmente transformavam em pão.

O pequeno ramo tinha mantido suas reuniões regulares durante todos os anos
da guerra, com apenas uma ou outra breve interrupção. Vinte e sete irmãos estavam
desaparecidos, tendo sido mortos, feitos prisioneiros de guerra ou deportados para a
Rússia ou Sibéria como mão‐de‐obra escrava. Os dois irmãos que sobraram consegui‐
ram milagrosamente manter o espírito de unidade e amor entre os santos. A sua fé e
devoção foram um testemunho para mim do poder do evangelho de Jesus Cristo na
vida de uma pessoa. Os membros do ramo não tinham ressentimentos ou amargura

Nas Asas de Fé 124


em relação àqueles que lhes infligiram tantas injustiças. Continuavam a manifestar
apenas amor e compaixão.

Pernoitamos com razóavel conforto na casa do irmão Kruska. Não sei onde ele
e sua família dormiram, mas posso dizer que nosso conforto foi a única preocupação
que tiveram. Antes de partirmos de volta a Varsóvia na manhã seguinte, o Presidente
Benson dedicou a sepultura do irmão que fora recentemente enterrado ao lado da
capela. Deu também instruções úteis para o futuro e deixou com os membros 215
dólares para ajudá‐los nas necessidades imediatas. Em seguida, convidou o irmão
Kruska a nos acompanhar até Olsztyn onde nos reunimos com outros funcionários
poloneses apenas para ouvirmos a mesma coisa: ninguém ainda tinha permissão para
partir. Eles no entanto concordaram em prover proteção para os santos em seus lares.
De nossa parte, prometemos ajudar financeiramente para o reassentamento quando a
decisão de deslocamento fosse dada.

Quando chegamos a Zelbak, estávamos quase sem combustível. O irmão


Gasser conseguiu então comprar 20 litros de gasolina (mas no mercado negro, pois
não havia postos de combustível funcionando) a cerca de 65 centavos de dólar o litro,
um preço exorbitante. Foi o suficiente para nos fazer chegar a Olsztyn, mas não para
levar o presidente do ramo de volta a Selbongen. Ele então se viu obrigado a andar
cerca de 20 quilômetros até sua casa. Ficamos muito aborrecidos por não poder levá‐
lo de volta em nosso jipe.
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Quando chegamos ao aeroporto de Varsóvia, encontramos o homem que nos


dissera, quando chegamos, que seria impossível viajar pela Polônia. Perguntou‐nos
onde tínhamos andado e dissemos que tínhamos usado trens, ônibus, aviões e jipes,
além da “droshka”, veículo semelhante às charretes do Central Park de Nova York. O
Presidente Benson explicou‐lhe que havíamos visitado nossos vários grupos de mem‐
bros, contatado funcionários do governo polonês em todos os lugares em que esti‐
véramos, e que estávamos agora prontos para voltar para Berlim e Londres.

Nunca vou me esquecer do espanto e da expressão de incredulidade que ele


demonstrou ao exclamar: “Não acredito! Isso é impossível!”

Mas nós sabemos que para o Senhor “todas as coisas são possíveis.”

Nas Asas de Fé 125


CAPÍTULO 11

Mudança de Cenário

Quando o Presidente Benson voltou a Londres, recebeu a notícia de que o Élder


Alma Sonne tinha sido indicado para substituí‐lo na presidência. Devido a essa
mudança e aos profundos ajustes que ela preconizava, a maior parte do tempo que
restava em Londres foi dedicado a atividades administrativas.

Além disso, a carga de trabalho resultante não deixava muito tempo para
amenidades. Certa tarde, no entanto, fomos de carro até a casa da Missão Britânica
para entregar alguns pacotes com roupas usadas que tinham sido enviadas do Canadá
e dos Estados Unidos para os santos britânicos. Depois de um belo jantar, fomos até o
“common”, um amplo gramado sem muros que nas maiores cidades britânicas se
destina à recreação pública. Lá participamos de um final de um jogo de beisebol. O
Presidente Benson logo entrou no clima do jogo, rebatendo a bola, correndo pelas
bases, jogando como apanhador e em outras posições do time. Todos os presentes
ficaram profundamente impressionados em ver um apóstolo moderno ser tão bom em
um esporte quanto o Profeta Joseph Smith tinha sido em sua época. Eu joguei um
pouco em cada um dos times. Essa foi a primeira recreação que tivemos em muito
tempo.
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O Presidente Benson recebeu um telegrama da Primeira Presidência pedindo‐


nos para adiar sine die nossa planejada viagem à Palestina e à África do Sul, pelo
menos até a chegada do Presidente Sonne, ocasião em que poderíamos pensar mais
nessa viagem.

Tínhamos passado muito tempo, nos quatro meses anteriores, obtendo


permissões, vistos, passagens de avião, reservas de hotel, etc., nos vários países que
pretendíamos visitar, mas parecia que agora teríamos que desfazer todos os arranjos.
Era muito complicado lidar com os cancelamentos e reembolsos, mas procurei
enfrentar isso como parte do trabalho.

O destino dos membros da Igreja que se encontravam na Síria e no Líbano era


agora motivo de grande preocupação para nós, devido à grande pressão que se exercia
para fazê‐los retornar à pátria de origem, a Armênia, que fazia agora parte da União
Soviética. Poucos meses depois, esses membros aceitaram o convite de retornarem
àquele país, onde receberam direitos de cidadania plena.

Nas Asas de Fé 126


Quando recebemos o exemplar mais recente do Cumorah’s Southern
Messenger, publicação da Missão Sul Africana, vimos que a capa exibia uma grande
foto do Presidente Benson, comigo ao lado, sob a manchete: “Presidente Benson a
Caminho”. A leitura do artigo fez com que o Presidente Benson ficasse muito abatido,
pois ele sentia que a mudança de planos seria uma grande frustração para os
membros na Missão Sul Africana que ansiavam tanto por seus conselhos diante da
iminente crise do Oriente Próximo. Creio que esse cancelamento foi a única grande
insatisfação que tivemos durante toda a nossa estada na Europa.
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Nessa ocasião, chegou as nossas mãos o artigo de Louis Hagen, do Sunday


Express, jornal britânico, intitulado “Como o Cigarro Reina na Alemanha”, em que o
autor registrava suas observações durante recente viagem a Berlim. Por experiência
própria, sabíamos que era uma descrição precisa da situação vigente naquele país.
Devido à Palavra de Sabedoria, mandamento importante na Igreja, e também por
causa dos fatos que vinham se tornando mais evidentes em relação aos males do vício
de fumar, cito a seguir alguns trechos desse artigo.

A Alemanha é um país regido pelo cigarro. Setenta e cinco por cento dos crimes
cometidos diariamente nessa nação estão, de alguma forma, ligados aos
cigarros. (…)

As pessoas literalmente mergulham nas ruas para pegar qualquer toco de


cigarro que ali é lançado pelos fumantes. Quase todas as pessoas fazem isso,
independente de sua posição social. Isso me tocou profundamente quando
meu próprio sobrinho, que tem uma família rica e muito bem estruturada,
disse‐me que em geral caminha vários quilômetros todos os dias na expectativa
de pegar algumas bitucas.

Até as mulheres fazem isso. Elas caminham pelas principais ruas na expectativa
de que algum toco seja jogado de um jipe. Algumas pessoas, andam de metrô o
dia inteiro para pegar as bitucas lançadas pelos americanos. Muitas mulheres,
mesmo as que têm filhos, vendem seus cartões de racionamento para comprar
cigarros.

Todos os serviços e produtos têm de ser pagos com cigarros – de meias‐solas


nos sapatos a roupas passadas. Manteiga, presunto, sapatos, bebidas, tudo
enfim pode ser adquirido com cigarros. Nem o dinheiro tem tanto poder.

Um cigarro tem valor maior do que o salário de um dia de um trabalhador. Um


grande percentual dos que compram cigarros é de mulheres. Elas se tornam às
vezes até maníacas, vendendo a comida dos filhos, os próprios bens e até o

Nas Asas de Fé 127


próprio corpo para obter cigarros. É difícil imaginar a que ponto chega uma
pessoa para suprir o vício do tabaco. Ele é mais forte que a própria fome.

Quem está com fome e fuma não se sente tão faminto. Mas a fome intensifica
dez vezes mais o desejo de fumar. E a maioria dos alemães está em geral
faminta. No momento, os homens em Berlim recebem 12 cigarros por mês, de
qualidade inferior, feitos com uma palha mista cultivada na Alemanha, e as
mulheres recebem seis.

Se alguém acha que a Alemanha não foi ainda suficientemente punida, pode
sugerir que se retire dos alemães todos os cigarros. Esse seria o pior castigo
que se poderia dar a eles.

Juntamente com um exemplar do artigo mencionado, o Presidente Benson


enviou à Primeira Presidência seus comentários e uma narrativa impressionante. Ele
estava parado em uma esquina em Frankfurt e observou dois ou três soldados
americanos esperando um ônibus. Quando o ônibus chegou, um dos soldados atirou o
toco do cigarro na sarjeta. Antes que a guimba caísse no chão, dois alemães que
estavam por perto já tinham saltado para pegá‐la. Quando um colocou a mão sobre a
guimba para pegá‐la, o outro pisou‐lhe a mão com tal violência que o obrigou a soltá‐
la. O outro então se abaixou e pegou o toco do cigarro.
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Recebi uma carta da Primeira Presidência que me informava em termos gerais


qual seria a provável duração da minha missão. A carta dizia:

Recebemos, com grande prazer, a sua carta de 21 de agosto que falava da


alegria e da edificação espiritual que você tem experimentado por trabalhar
com o Presidente Ezra Taft Benson. Como você, também sentimos que o
Senhor está ao lado dele e o tem abençoado abundantemente em seus
labores. Dá‐nos grande alegria o amor que tem sido demonstrado a ele pelos
santos e sabemos que esse amor é merecido. Somos imensamente gratos a
nosso Pai Celestial pelo que [o Élder Benson] tem conseguido e pelos bons
sentimentos que tem suscitado entre aqueles em posição de autoridade que
ele tem contatado, o que tem sido uma grande ajuda em seu trabalho.
Sentimos que em tudo isso, você tem sido de grande ajuda.

Em relação à sua pessoa, como já comunicamos ao Presidente Benson, seria


uma grande bênção se você permanecesse com ele e o irmão Sonne pelo
menos até que este esteja familiarizado com o trabalho e com as dificuldades
encontradas. Assim, pediremos ao irmão Sonne para conversar com você e
com o Presidente Benson com respeito ao tempo que você precisa ficar após o
retorno do Presidente Benson aos Estados Unidos. Sentimos que não seria

Nas Asas de Fé 128


justo nem sábio pedir que você continuasse indefinidamente na missão, nem
por um período muito prolongado, em função do serviço que você já prestou à
Igreja e também em consideração à sua jovem família.

Nosso coração está pleno de gratidão a você por seu serviço leal e dedicado,
não somente à causa, mas também ao Presidente Benson. Percebemos pelos
relatórios, como também pelos comentários dele que ele tem extrema estima
por seu serviço e que você tem sido uma grande ajuda. Reiteramos que somos
gratos ao Pai Celestial por esse trabalho.

Atenciosamente,

George Albert Smith


J. Reuben Clark, Jr.
David O. McKay
A Primeira Presidência

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Nessa ocasião, fui convidado a falar em uma reunião sacramental do Ramo


Londres Sul. Eu tinha planejado falar sobre Oração, mas as coisas saíram de maneira
diversa. Quando cheguei ao púlpito, desfrutei de uma experiência incomum. Senti que
estava fora de mim, como se estivesse a uns três metros de distância, observando a
mim mesmo em pé no púlpito, imaginando sobre o que falar.

À medida que o primeiro pensamento começou a ser expresso, fiquei extasiado


e surpreso, porque nunca ouvira tais ideias serem explicadas com tanta clareza antes.
Era como se eu fosse o mais interessado de todos os ouvintes. Por outro lado, não
tinha percepção de qualquer esforço para falar. Ao término da explicação do primeiro
conceito, lembro‐me de ter dito a mim mesmo: “Bom, foi interessante. Mas e daí para
a frente?”

Então, os pensamentos se sucederam, concatenados, até o final do discurso,


respondeu a muitas perguntas sobre as quais eu tinha estado pensando e pesquisando
havia anos. A experiência também abriu novas perspectivas espirituais.

Ao retornar ao meu lugar, não tive mais nenhum outro sentimento incomum.
Era suficiente sentir que agora eu e meu corpo estávamos unidos. Meu coração se
alegrava imensamente ao compreender que não era eu que havia falado, mas que, de
algum modo que não compreendo, o poder do Espírito Santo havia falado por meu
intermédio e que luz, conhecimento e compreensão fluíam à minha alma.

Enquanto eu falava, tinha a exata percepção de que um poder ilimitado fluía


através do meu ser e me fazia sentir como um engenheiro ferroviário diante da
potência exercida por uma grande locomotiva, como se bastasse acionar a alavanca

Nas Asas de Fé 129


para que um poder divino ilimitado se manifestasse. Não era de estranhar, portanto,
que pouco depois, quando me pediram para abençoar dois dos membros presentes,
eu sentisse que não havia limites para as bênçãos que cada um deles podia receber.

A primeira pessoa a receber a bênção foi uma irmã que estava no sétimo mês
de gestação e tinha um grande sangramento. Ela e o marido temiam que ela perdesse
o bebê. Ao selar a unção, senti novamente um tremendo fluxo de poder e soube que
ela seria curada naquele momento. Mais tarde, ela confirmou que ficou sã
imediatamente.

A segunda, era um menininho escocês de três anos de idade que era surdo‐
mudo desde o nascimento. Os pais o haviam trazido a Londres para receber uma
bênção especial. Um dos irmãos presentes ungiu‐o e então, quando impus as mãos
sobre a cabeça dele para pronunciar a bênção, senti que o poder do Senhor estava
presente em tal profusão que não havia dúvidas de que ele seria curado instantanea‐
mente. No entanto, antes que eu dissesse uma palavra, o Espírito me disse: “Este
menino pode ser curado agora mesmo, se seus pais removerem do coração o ódio que
sentem.” Fiquei muito chocado e preocupado, porque eu nunca vira a família antes e
não queria questionar suas atitudes. De qualquer forma, vi‐me constrangido e não
pude selar a unção.

Depois de uma breve pausa, retirei as mãos da cabeça da criança e disse a seus
pais: “O que é que vocês odeiam tanto?” Eles pareceram surpresos e em seguida o
marido disse: “Não podemos dizer.”

Expliquei‐lhes que eu não precisava saber, mas acrescentei: “Ao colocar as


mãos sobre a cabeça de seu filho, senti com firmeza que ele poderá ser curado agora
mesmo e ficar são, se simplesmente vocês removerem esse ódio de seu coração.”

O casal se entreolhou com preocupação e em seguida o marido falou: “Bem, se


esse é o caso, nosso filho terá que passar a vida como está agora, porque não vamos
remover esse ódio!” Senti que eu fora impedido de pronunciar uma bênção que
poderia resultar na salvação de toda aquela família. Essa experiência me ensinou uma
profunda lição.

Alguns dos membros ainda estavam na capela depois da administração dessas


bênçãos e uma irmã se aproximou e disse: “Enquanto você pronunciava seu discurso,
eu o vi envolvido por uma linda luz branca e um espírito estava de pé à sua direita.
Você realmente falou com inspiração esta noite.” Agradeci‐lhe por seu comentário,
que muito me comoveu, porque descrevia com propriedade a experiência que eu tinha
tido mais cedo, durante a reunião.

Nas Asas de Fé 130


Três semanas mais tarde, no mesmo ramo, participei da bênção de uma irmã
que se preparava para fazer uma cirurgia da mastóide. Senti que o espírito de cura
estava fortemente presente, mas que havia falta de receptividade por parte da irmã.
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Nessa época, foi realizada uma conferência de toda a Missão Britânica em


Birmingham. O Élder Benson e eu assistimos a duas sessões à tarde e em ambas havia
uma profusão do Espírito do Senhor. Os presentes pareciam sentir o Espírito da
mesma maneira que eu senti durante meu breve discurso. O Presidente Benson falou
na última sessão e deu aos membros muitos conselhos seguros.

Algumas pessoas tinham estimado que haveria apenas umas duzentas pessoas
presentes, porque duas conferências de toda a missão não poderiam ser feitas com
sucesso em um mesmo ano. Enquanto na primeira conferência missionária do pós‐
guerra, em Rochdale, meses antes, haviam comparecido entre quatrocentas e quin‐
hentas pessoas, em Birmingham estiveram presentes entre quinhentas e seiscentas. A
Igreja estava de vento em popa na Grã‐Bretanha!

Certa noite, o Presidente Benson e eu tivemos a rara oportunidade de assistir a


um filme chamado “The Magic Bow” (O Arco Mágico), filme britânico sobre a vida de
Paganini — que fora talvez o maior violinista de todos os tempos. Todos os solos de
violino no filme foram tocados por Yehudi Menuhin. A música e a bela história eleva‐
ram nosso humor consideravelmente. Caminhamos de volta à casa em silêncio. Mais
tarde, antes de nos recolhermos, o Presidente Benson disse: “Espero que você me
perdoe por ter vindo até aqui sem conversar. Há tanta conversa no mundo hoje e tão
pouco tempo para a meditação.” Em meu coração, eu concordava totalmente com o
que ele disse.
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Certa manhã, o Presidente Benson sugeriu que tirássemos algum tempo para
conhecer Londres e então saímos de carro pelas ruas afora, subindo uma rua, descen‐
do outra, até chegarmos a Petticoat Lane. O local era notório como ponto de atuação
de “trombadinhas” que aproveitavam‐se das multidões que se reuniam em frente às
barracas e mercados. Os ambulantes vendiam todo tipo de mercadoria ao longo das
ruas estreitas — vendiam de tudo, desde peixe até roupas, jóias, belas peças de
porcelana e outras bugigangas baratas. Mesmo em plena quarta‐feira, havia um
movimento considerável e ficamos ali, ora apreciando o movimento, ora suportando
os odores. Foi uma diversão muito agradável.

Em seguida, fomos ao Museu Britânico, que tinha ficado fechado durante a


guerra, sendo que seu acervo tinha sido retirado para lugar protegido dos bombar‐
deios aéreos. Apenas uma ala estava agora aberta ao público. As famosas “placas de

Nas Asas de Fé 131


ouro” unidas por três aros — de descrição semelhante à das placas do Livro de
Mórmon — não estavam ainda em exibição, mas o vigia do museu as descreveu para
nós em detalhes. Ele explicou que séculos antes de Cristo, o ouro era um dos metais
mais usados para o registro de assuntos de importância duradoura.

Cinco ou seis semanas antes da esperada volta do Presidente Benson a Salt


Lake City, ele escreveu uma mensagem especial de despedida para ser publicada nos
vários periódicos da missão. Enquanto eu a digitava, percebia nela uma das mensagens
mais comoventes e inspiradoras que eu já lera. Ele falava de vários antigos líderes da
Igreja de espírito indômito, coragem e um amor e humildade ilimitados. Ela provinha
de um coração transbordante do puro amor de Deus e que tinha um testemunho
testado e que se provara valente.
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Certa noite, fui convidado para jantar com a nossa anfitriã, a Senhorita Heather
Price, Sir Frederick e Lady James. Conversamos, eu e a Senhorita Price, por quase uma
hora até a chegada dos outros convidados. Ela se mostrava muito interessada no
motivo de eu e o Élder Benson estarmos na Inglaterra e no que fazíamos. Por meia
hora contei‐lhe a história da restauração do evangelho e expliquei‐lhe porque a
cristandade em geral estava fracassando na tentativa de imbuir os cidadãos britânicos
com o poder de mudar sua vida suficientemente para garantir liberdade e paz
verdadeiras.

Após a chegada dos outros convidados, enquanto a Senhorita Price terminava


os preparativos para o jantar, passei uns vinte minutos respondendo à pergunta direta
de Sir Frederick sobre as diferenças entre as crenças de nossa Igreja e as demais. Expus
essas diferenças de modo tão direto quanto fora sua pergunta, sem tentar explicar ou
elaborar. Tanto ele quanto Lady James pareceram surpresos.

Ao final do nosso jantar, a Senhorita Price pediu que nossa conversa prosse‐
guisse em breve. Ela disse: “Espero que o Sr. Babbel volte logo a fim de podermos
concluir nossa conversa sobre a religião dele.” A isso, Sir Frederick acrescentou: “A
força da religião dele pode ser observada na vida limpa e vigorosa que ela o inspira a
viver.” Fiquei feliz com o tom dado ao término de nosso jantar.
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O Presidente Alma Sonne, recém‐indicado Presidente da Missão Europeia


como sucessor do Presidente Benson, do Conselho dos Doze, desembarcou em
Southampton no sábado, dia 16 de novembro de 1946, pela manhã. Com ele estavam
sua esposa, Leona B. Sonne e o Élder Wallace Grant Bennett, missionário designado a
servir na Missão Britânica. O Presidente Benson e o Presidente Selvoy J. Boyer, da
Missão Britânica, os receberam no porto.

Nas Asas de Fé 132


Enquanto os passageiros que se destinavam à Inglaterra desembarcavam, o
Presidente Benson obteve permissão para ir a bordo e se reunir brevemente com o
Presidente Walter Stover, que fora designado Presidente da Missão Alemanha
Oriental, sediada em Berlim. O casal Stover estava acompanhado de dezoito missio‐
nários, alguns designados para a Missão Francesa e outros para a Missão Suíço‐
Austríaca.

Na terça‐feira, meu dia começou às 4h30 da manhã a fim de terminar os


preparativos para a visita dos Presidentes Benson e Sonne às missões da Europa
continental. Às 11 horas da manhã, ambos os presidentes estavam a bordo do ônibus
da KLM, empresa aérea holandesa, encaminhando‐se ao terminal onde pegariam o
avião para a Holanda. Uma das últimas recomendações do Presidente Sonne a mim foi
a de manter a Sister Sonne alegre, o que não foi tarefa difícil, porque Leona B. Sonne,
neta de Richard Ballantyne, que criara o movimento da Escola Dominical no Vale do
Lago Salgado, era muito agradável e muito talentosa.

Todas as providências para a viagem dos presidentes ao continente tinham sido


tomadas, exceto por autorizações militares especiais para entrarem nas áreas ocu‐
padas. Eu deveria encontrar‐me com os presidentes em Paris para obter essas auto‐
rizações lá e depois acompanhá‐los a Frankfurt, onde eu deveria obter outra permissão
militar para eles chegarem até Berlim.

No sábado pela manhã, eu estava com os presidentes em Paris. Eles chegaram


no trem das 7h25, proveniente de Genebra, Suíça. Apesar dos esforços do pessoal
militar na cidade para obter informações sobre a autorização para viajarmos para
Frankfurt e Berlim, nada conseguiram apurar. Quando conseguiram contatar o capitão
da Seção de Liberação de Viagens em Frankfurt via teletipo, por volta de 12h15,
apenas 15 minutos antes do fechamento, a resposta definitiva era de que tal per‐
missão não podia ser dada. Fomos então ao Quartel General da Base Ocidental onde
encontramos o coronel encarregado já pegando a túnica para sair. Nós o persuadimos
a ligar para o Dr. Olsen, em Berlim, pela hot line, para que o Dr. Olsen, por sua vez,
ligasse para o Escritório de Liberação. Com isso, consegui a permissão de Frankfurt,
por teletipo, em torno de 1 hora da tarde.

No início da tarde do dia anterior à nossa programada partida, o Presidente


Benson convidou os missionários que serviam na França a virem a Paris e se reunirem
conosco e com os presidentes dos distritos da Missão Francesa. Foi muito interessante
ouvir as experiências deles. As atividades foram realizadas em três idiomas: inglês para
que os americanos entendessem; alemão para os irmãos de Estrasburgo, e francês
para os que falavam esse idioma.
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Nas Asas de Fé 133


Em Frankfurt, realizamos uma reunião com os presidentes de todos os distritos,
exceto o de Bielefeld. O relato deles sobre a condição dos membros da Igreja e das
rações que eles recebiam era desanimador e causou grande preocupação. Cada um
tinha direito a apenas 1500 calorias em alimentos por dia, porém na prática só
conseguiam obter de 400 a 500 calorias, porque em algumas regiões não conseguiam
adquirir qualquer dos itens permitidos com os cartões de racionamento. Por isso,
estavam se alimentando com um tipo de beterraba chamada mangel‐wurzels,
geralmente cultivada para alimentar o gado.

Os alemães haviam passado por seis anos de severo racionamento, entre 1933
e 1939, e tinham sofrido com uma dieta ainda mais restrita durante os sete anos de
guerra. Eles sobreviveram com uma alimentação que ficava abaixo dos níveis de
subnutrição durante os últimos anos da guerra. Toda essa restrição estava cobrando
terrível preço em termo de vidas.

Na reunião daquela noite na Handwerker Haus, a frequência foi boa, apesar da


forte chuva. As fisionomias das pessoas eram um testemunho óbvio de que os relatos
sobre as condições ali não haviam sido exagerados. Os rostos emaciados eram visivel‐
mente mais sofridos do que havíamos visto nas visitas anteriores; a maioria era literal‐
mente pele e ossos e apertar‐lhes as mãos era como cumprimentar um esqueleto.

Eu havia enviado de Paris cinco pacotes CARE30 de alimentos para os santos da


Polônia — os primeiros suprimentos de emergência que conseguimos enviar‐lhes. Eu
tinha também enviado cinco desses pacotes para famílias que eu conhecera na
Alemanha antes da guerra. Seria uma grande alegria enviar centenas desses pacotes,
mas meus recursos pessoais não seriam suficientes. Os que consegui enviar foram
meus presentes de Natal para eles.

Os militares britânicos, franceses e americanos que contatamos admitiam que


o inverno que se aproximava seria um verdadeiro teste. Se o inverno europeu fosse
ameno, a situação na Alemanha seria suportável. Porém, se fosse severo, conforme
previam todos os indícios, as autoridades deviam preparar‐se para o pior. Havia
previsões de que uma só semana de temperaturas próximas de zero grau causaria a
morte de 20 por cento da população mais idosa, que já estava fragilizada pela
insuficiência de alimentos e pela inadequação das vestimentas. Outra preocupação
premente era a de que os desconfortos do mau tempo poderiam causar um êxodo de
técnicos alemães das zonas americana e britânica para a zona soviética, onde lhes
eram oferecidas rações extras e outros atrativos.

30
CARE é uma sigla que significa Cooperative for Assistance and Relief Everywhere (Cooperativa de
Assistência e Bem‐Estar em Qualquer Lugar) e era uma marca registrada desse tipo de cesta básica.
Como a palavra CARE, em inglês, significa cuidado, cuidar, etc., a palavra tornou‐se uma metonímia.

Nas Asas de Fé 134


O relato seguinte, transcrito da História da Missão Europeia, descreve a última
visita do Presidente Benson às missões da Europa:

Uma visita bem‐sucedida e agradável às dez missões europeias foi realizada nas últimas três
semanas pelo Presidente Ezra Taft Benson, Presidente da Missão Europeia, acompanhado por
seu sucessor, o Presidente Alma Sonne. Foram realizadas reuniões com os membros,
missionários e presidentes das missões, bem como com líderes governamentais e oficiais
militares.

Em Berlim, os Presidentes Benson e Sonne foram convidados para um jantar na residência do


Dr. C. Arild Olsen, Chefe do Escritório de Assuntos Religiosos do Governo Militar Americano da
Alemanha. Após o jantar, os convidados se reuniram e desfrutaram de uma conversa de duas
horas sobre a Igreja, sua doutrina e suas características singulares, tais como o bem‐estar, o
dízimo, a Palavra de Sabedoria, o sistema missionário, etc.

O grupo, formado por mais de 20 pessoas, era composto por representantes luteranos,
menonitas, episcopalianos, metodistas, católicos, quakers e de outras religiões, além dos
membros da equipe do Dr. Olsen.

Com as bênçãos do Senhor, as informações compartilhadas foram bem recebidas. Mais tarde,
em uma conversa particular com o Dr. Olsen, o Presidente Benson relatou‐lhe a história da
restauração do evangelho por meio do Profeta Joseph Smith. O Dr. Olsen não somente
mostrou‐se muito interessado, mas também lamentou que o tempo não tivesse permitido que
os outros participantes ouvissem o relato. Ele solicitou o privilégio de convidar o mesmo grupo
novamente em outra visita do Presidente Sonne para que ele compartilhasse a emocionante
história da restauração do evangelho nesta dispensação.

Provavelmente não se poderia oferecer ao Presidente Benson um tributo mais adequado no


momento em que ele retorna ao lar, do que as sinceras palavras de despedida ditas pelo Dr.
Olsen em Berlim, quando disse: “Deus o abençoe e também à grande obra que você está
31
realizando — o que desejo do fundo do coração!”

Ao retornarmos a Londres, o Presidente Benson convidou aos casais Sonne e


Boyers e a mim para desfrutarmos da música da Orquestra Internacional de Londres,
sob a direção de Alfred Care, no Royal Albert Hall, onde presenciamos um episódio
divertido.

Enquanto a orquestra tocava a Abertura de Guilherme Tell, de Rossini, notei


que os olhos do Presidente Benson brilharam quando ele reconheceu a canção tema
de “The Lone Ranger”. O que sucedeu a seguir foi uma grande surpresa. Quando o
maestro baixou a batuta na conclusão da emocionante execução, no breve momento
entre o último compasso e o estrondoso aplauso que se seguiu, o Presidente Benson
inclinou‐se em direção a seus convidados e disse em um tom que pôde ser ouvido bem
distintamente: “Eia, Silver. Avante”.32

31
European Mission History, p. 103.
32
N do T: A expressão “Eia, Silver. Avante” era o mote do herói mascarado Lone Ranger, conhecido no
Brasil nos seriados de cinema e nas histórias em quadrinhos como Zorro, que tinha como fiel
companheiro o índio chamado Tonto.

Nas Asas de Fé 135


Chegara a hora de o Presidente Benson voltar para casa. O conforto da viagem
seria agora um contraste gritante com o da maioria das viagens que ele fizera nos onze
meses anteriores. Eis o resumo das viagens dele como Presidente da Missão Europeia,
desde o momento em que saiu de Salt Lake City em 29 de janeiro de 1946 até sua
volta em 13 de dezembro do mesmo ano:
Quilômetros
De avião 51.523

De barco ou navio 2.328


Diversos* 5.448
De trem 15.869

De automóvel 22.970
Total 98.138

*Em jipes da UNRRA, caminhonetes, ônibus, bondes, táxis, drashcas, trólebus, etc.



Essa missão emergencial do Presidente Benson resultou em realizações


significativas. Presidentes de missão agora dirigiam a obra em todas as missões da
Europa, exceto na Missão Alemanha Ocidental, para a qual um novo presidente fora
designado e logo chegaria. Os suprimentos de bem‐estar estavam sendo enviados de
maneira organizada e tinham chegado aos santos em quase todos os destroçados
países da Europa. Missionários estavam engajados no afã de ensinar o evangelho
restaurado em todas as missões que já existiam na Europa antes da guerra. E nas áreas
em que havia restrições militares à entrada de missionários oriundos da América,
missionários locais foram chamados para missões de tempo integral e estavam
fazendo uma obra digna de elogios. Além disso, o evangelho estava sendo pregado na
Finlândia, que se tornara um dos campos mais frutíferos para o evangelho em toda a
Europa.

Por volta do final do primeiro ano, tínhamos recebido 92 vagões repletos de


suprimentos de bem‐estar (cerca de 2 mil toneladas), das quais já havíamos distribuído
a maior parte. Essa ajuda era composta de alimentos, roupas, utensílios, suprimentos
médicos, além de vários outros itens. Um programa intensivo de envio de pacotes
individuais de suprimentos, principalmente pelos membros da Igreja dos Estados
Unidos, acrescentou dezenas de milhares de outros itens necessários, tais como
alimentos e roupas, que eram absolutamente essenciais. Alguns itens foram roubados
no trajeto, porém a perda foi relativamente pequena. Além de prover pelos membros
da Igreja necessitados, foram também fornecidas grandes quantidades de gêneros e
roupas para programas locais de nutrição infantil em vários países. Conseguimos
também obter uma boa quantidade de barracas militares suíças para abrigarem

Nas Asas de Fé 136


temporariamente os membros refugiados originários principalmente daquelas áreas
que pertenciam à Alemanha antes da guerra e que foram cedidas à Polônia e à Rússia
depois do conflito.

Os suprimentos de bem‐estar eram originários principalmente dos Estados


Unidos e do Canadá e destinavam‐se à Grã‐Bretanha, França, Holanda, Dinamarca,
Noruega, Finlândia, Polônia, Checoslováquia, Áustria e Alemanha. Quantidades
menores foram também enviadas aos nossos membros da Missão Sírio‐Palestina.

Por volta do final de março do ano seguinte (1947), a maior parte das necessi‐
dades mais prementes havia sido satisfeita em quase todos os países, exceto na
Alemanha, Áustria e Polônia, o que possibilitou‐nos dirigir os suprimentos de nossas
outras missões europeias para os locais onde eram mais necessários. Como registrado
no Capítulo 12, pouco antes de eu retornar para casa, recebemos permissão para fazer
uma distribuição mais abrangente na Alemanha Oriental, onde a situação ainda era
muito crítica.


Na quarta‐feira, 11 de dezembro de 1946, eu e o casal Sonne levamos o


Presidente Benson ao Aeroporto de Heathrow para nos despedirmos dele. Ele
embarcou em um Constellation da Pan American pouco depois das 4 horas da tarde.
Compreendi que fora sábio eu permanecer ainda por algum tempo, mas ao ver seus
acenos de adeus e seu avião decolar, senti um vazio na alma que me fez desejar estar
partindo com ele.

Ao voltarmos para a cidade, a neblina começou a encobrir tudo.

Nas Asas de Fé 137


CAPÍTULO 12

A Forma das Coisas Que Estão Por Vir

Quando retornamos à sede da Missão após o primeiro tour do Presidente


Sonne pela Europa, ele se estendeu sobre a cama e disse: “Irmão Babbel, meu corpo
está pedindo para descansar por uma semana. Quando minha cabeça parar de rodar,
você me conta o que aconteceu!” Depois ele admitiu que nunca tinha viajado tão
longe, visto tanta gente e participado de tantas reuniões em um período de tempo tão
curto.

É digno de nota que um dos voos partiu de Estocolmo, na Suécia, cedo pela
manhã, fez uma escala em Amsterdã, na Holanda para finalmente chegar a Praga, na
Checoslováquia por volta de cinco da tarde do mesmo dia. Os funcionários das linhas
aéreas disseram que essa programação de voos era totalmente impossível de ser
elaborada, mas eu tinha pessoalmente verificado várias vezes todas as empresas
aéreas disponíveis até conseguir um ajuste entre os diferentes horários de voo que
tornasse viável essas conexões, desde que todos os voos estivessem absolutamente no
horário. Realmente deu certo, mas não era de admirar que o Presidente Sonne se
sentisse em meio a um redemoinho!

Após o jantar no restaurante do Hotel Embassy, passamos algumas horas


debatendo os planos para a Missão. Fui consultado quanto a minha opinião sobre eu
ser substituído pelo Élder Wallace Grant Bennet. Meus contatos com ele até então
davam‐me a certeza de que ele era muito competente. No dia seguinte, o Presidente
Sonne comunicou a ele que ele seria o meu sucessor, se tudo corresse normalmente e
que, portanto, ele deveria aprender comigo tudo o que pudesse sobre o meu trabalho.

Ainda durante a nossa reunião de planejamento, o Presidente Sonne expressou


admiração por tudo o que havia sido realizado pelo Élder Benson. Assegurou‐me que a
Primeira Presidência apreciara muito o cuidadoso detalhamento apresentado em
nossos frequentes relatórios e cartas enviados a Salt Lake City.

Agora que tinham sido concretizados o trabalho básico do restabelecimento


das missões, da colocação de seus registros em dia e da organização dos procedi‐
mentos para tornar a distribuição de suprimentos de bem‐estar, o Élder Sonne sugeriu
que era o momento para uma mudança de ênfase. Ele tinha a percepção clara da
necessidade de aliviar tanto quanto possível o envolvimento da Primeira Presidência
em nossas atividades administrativas cotidianas.

Nas Asas de Fé 138


Tendo sido presidente de um banco por muitos anos, o Presidente Sonne
delineou para mim procedimentos de redação de correspondência que se mostrariam
muito efetivos durante o restante do tempo em que eu trabalhasse com ele. Esses
procedimentos foram os seguintes:

• “Não quero assinar nenhuma carta oficial que não caiba em uma única
página. Está claro?”
• “Cada carta deve ser clara e precisamente centralizada em um único
assunto. Se for necessário abordar três ou mais assuntos, você redigirá uma carta para
cada um deles.”
• “Não assinarei nenhuma carta que tenha mais de três parágrafos. Você
vai em geral perceber que um ou dois parágrafos é o suficiente.”

Nas semanas seguintes, iniciei a implementação desse processo. Caso eu lhe


trouxesse uma carta com três parágrafos, ele dizia: “Você é capaz de melhorar isso.”
Então, eu conseguia reduzir o número de parágrafos e os resultados eram surpreen‐
dentes. Nunca deixamos de obter uma única resposta imediata a nossas solicitações e
nunca tivemos de escrever uma segunda carta para explicar o mesmo assunto. Esses
procedimentos, em minha opinião, foram a ideia administrativa mais eficiente que já
tinha visto.
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Certa noite, o Presidente e a Síster Sonne, o Élder Bennet e eu fomos ao King’s


Theater para desfrutar da espirituosa peça de George Bernard Shaw, Pigmalião.
Quando saímos do teatro, a neblina estava tão espessa que parecia possível cortá‐la
com uma faca. Depois de certa dificuldade, consegui encontrar nosso carro, que estava
estacionado ali perto. Peguei meus passageiros e comecei a arriscada tarefa de encon‐
trar o quase invisível caminho através do Hyde Park para chegarmos à Bayswater Road
— a única rua reta que leva à Oxford Street, rua que fica perto de casa.

Estávamos literalmente rodando à velocidade de uma lesma. Os motoristas de


taxi e de ônibus já tinham abandonado seus veículos havia muito tempo, por causa da
pouca visibilidade. Os pedestres não sabiam onde iam, nem conseguiam identificar as
ruas por onde passavam. Parei o carro e tentei caminhar uns 10 metros, mas não
conseguia ver nada e tive de voltar arrastando o pé ao lado do meio‐fio a fim de
manter meu rumo. Apesar de tudo, decidi ir em frente até chegar o mais perto possí‐
vel da casa da missão. Como a mão de tráfego inglesa é à esquerda e o volante ficava
também à esquerda, eu abri um pouco a porta e ia arrastando o pé no meio‐fio
enquanto dirigia bem lentamente.

Quando esticava o pescoço para fora, eu conseguia às vezes distinguir a difusa


linha do meio‐fio. Não conseguíamos ver as lanternas traseiras dos outros carros ou
ônibus até estarmos praticamente colados a seus parachoques. Muitas vezes, ao

Nas Asas de Fé 139


passar por um desses veículos, eu tinha que correr a mão pelo lado deles para saber
onde ele começava e onde terminava. Depois de passar por um veículo, eu voltava a
me orientar pelo meio‐fio.

Quando finalmente chegamos ao Marble Arch (o lugar onde os missionários


costumam subir em caixotes para pregar, como o fazem muitas outras pessoas em
reuniões de rua), os prédios eram bastante altos e as ruas muito estreitas, de modo
que consegui seguir até a casa com relativa facilidade.

Ao entrarmos em casa, o Presidente Sonne disse em tom de brincadeira: “Não


posso deixar você ir embora. Não depois dessa magnífica demonstração ao volante.
Com certeza nunca mais acharei um motorista que o substitua em igual proeza!” No
dia seguinte, motoristas e pedestres relataram aos jornais que aquele tinha sido a
neblina mais densa de que podiam se lembrar.
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Como eu era o único do grupo que tinha permissões militares válidas para
todas as quatro zonas de ocupação na Áustria e na Alemanha, o Presidente Sonne
sugeriu que eu me preparasse para ir à Suíça a fim de resolver questões de bem‐estar
com a Cruz Vermelha Internacional em Genebra. Eu deveria também contatar um ou
mais dos principais líderes da Igreja na Áustria.

Essa determinação me deixou com apenas um dia para me preparar. Levantei‐


me antes das seis da manhã e às oito eu já estava a bordo do avião que me levaria a
Genebra. Já próximos daquela cidade, estávamos a uma altitude de mais de 1.200
metros acima das nuvens. A visão dos Alpes altaneiros e escarpados com o sol
brilhando contra a branca neve era magnífica. O piloto da Swissair comentou pelo
sistema de alto‐falantes que nunca contemplara aquela paisagem com tanta emoção
antes. Por isso, voou em círculos e inclinou o avião para um lado e depois para o outro,
de forma a que todos os passageiros pudessem também apreciar a paisagem.

Por entre as nuvens que pareciam de algodão, podíamos vislumbrar as


pitorescas fazendas e aldeias suíças aninhadas nos belos vales, muitos dos quais
pontilhados de lagos de todos os tamanhos e de um azul profundo. À distância, pude
contemplar os Alpes de Berna e mesmo ainda além as montanhas do Tirol, na Áustria.
Nunca esquecerei aquela visão e os sentimentos de gratidão que brotaram em mim
enquanto eu sussurrava uma oração de agradecimento ao Senhor por suas
extraordinárias criações.

Em Genebra, cuidei dos assuntos de bem‐estar com rapidez e, em seguida,


tomei o trem da manhã para a cidade da Basileia, onde cheguei dois dias antes do
Natal. Fomos então notificados de que o irmão Alois Cziep, presidente do distrito em
Viena, nos encontraria dois dias depois do Natal na fronteira suíço‐austríaca.

Nas Asas de Fé 140


Concordei em usar minhas credenciais a fim de trazê‐lo à Suíça para passar a noite
para que o Presidente Taggart e outros líderes pudessem encontrar‐se com ele e
discutir assuntos da missão e do bem‐estar.

Tive um agradável encontro com o Presidente e a Síster Max Zimmer, que


estavam planejando ir logo para os Estados Unidos com sua filha, Susie, a fim de
aceitar o chamado da Primeira Presidência de auxiliar nas traduções da Igreja para o
alemão. Esse trabalho deveria ser dirigido de Salt Lake City. Eu não poderia imaginar
alguém mais adequado ou mais capaz para uma tarefa dessas.

O Presidente Zimmer tem sido, ao longo dos anos, um dos melhores tradutores
que já conheci. Sempre que o Presidente Benson achava que tínhamos tempo
suficiente, ele pedia ao irmão Zimmer para traduzir para ele, consciente de que o
produto final seria uma obra‐prima literária. Porém, quando o tempo era escasso, ele
pedia a mim para traduzir, sabendo que na melhor das hipóteses eu produziria um
resumo preciso do que ele queria dizer. De fato, minha experiência como tradutor era
muito limitada em comparação com a de homens como o Presidente Zimmer.

Ao comentar esse assunto, não pude deixar de me lembrar de uma situação


particular de tradução que fiz para o Élder Richard R. Lyman quando ele era Presidente
da Missão Europeia antes da guerra. Eu estava servindo como intérprete dele em
Leipzig, Alemanha, na primavera de 1937. Era um dia frio e ele começou dizendo:
“Muitos estão com frio, mas poucos estão congelados”, um dito jocoso calcado na
escritura “Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos”.33 Essa frase arrancou
boas gargalhadas dos americanos na plateia.

Percebendo que o dito divertido não poderia ter o mesmo efeito na tradução,
eu disse em alemão aos membros: “O Presidente Lyman disse uma frase engraçada em
inglês e ele espera que vocês riam.” E eles riram. O Presidente Lyman então pôs o
braço em meu ombro e disse: “Você é o melhor tradutor que já tive!”
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Dois dias depois do Natal, o Presidente e a Síster Taggart, juntamente com o


irmão Niederhauser (presidente do distrito da Basileia) se encontraram comigo para
nos reunirmos com o irmão Cziep na fronteira com a Áustria. O Presidente Taggart
tinha alugado para a ocasião um carro usado bem robusto.

Embora o dia estivesse nublado, o cenário era indescritivelmente majestoso.


Entramos em um vale em que a neblina azulada e brilhante que repousava nas
encostas das montanhas se misturava com a folhagem e nos proporcionava uma
paisagem quase irreal. Nosso trajeto ao longo do Wallensee foi absolutamente

33
N do T: A sonoridade que proporciona o chiste nessa frase em inglês não se reproduz na tradução:
“Many are called/cold, but few are chosen/frozen”.

Nas Asas de Fé 141


inigualável. As nuvens desapareceram e as montanhas Sieben Kurfuersten se
revelaram em todo seu magnífico esplendor. Que paisagem gloriosa!”

Logo estávamos nas proximidades da fronteira com o Liechtenstein, um dos


menores principados do mundo. Por estarmos tão perto, decidimos fazer uma visita a
esse lugar incomum. Ele fica encravado entre a Suíça e a Áustria — o rio Reno o separa
da Suíça, e os altaneiros Alpes do Tirol o separam da Áustria. A população é de cerca
de 11 mil pessoas. Os guardas que nos receberam na fronteira eram venerandos
senhores que usavam uniformes que lembravam o período da Guerra da Indepen‐
dência dos Estados Unidos. Seus mosquetes pareciam ser também daquela mesma
época.

Após uma visita agradável ao principado, dirigimo‐nos a Buchs, a cidade


fronteiriça pela qual deviam passar os visitantes austríacos. Fui à polícia do Cantão34
que ficava na estação ferroviária e, com a ajuda do meu passaporte, das permissões
militares e de um visto suíço permanente, consegui receber permissão para que o
irmão Cziep, que vinha da Áustria, pudesse permanecer conosco até o dia seguinte na
Suíça, sob a condição de meus documentos ficarem retidos pela polícia para garantir o
retorno seguro dele a seu país na manhã seguinte. Concordei alegremente com as
condições.

O irmão Cziep chegou na hora marcada e ficou felicíssimo com nossas


providências. Reservamos acomodações confortáveis em um hotel limpo, comemos
uma deliciosa refeição — a primeira que o irmão Cziep comia havia anos — e
passamos cerca de cinco horas discutindo os assuntos e problemas da missão, além
das necessidades de bem‐estar do lado austríaco da missão.

Depois de colocarmos o irmão Cziep no trem na manhã seguinte, voltamos


tranquilamente para Basileia, passando por íngremes desfiladeiros e montanhas,
extasiados com a beleza dos cenários que se renovavam diante de nós. Por fim, o
Presidente Taggart comentou: “Irmão Babbel, apesar do orgulho que podemos sentir
das paisagens da América e do quanto nos vangloriamos delas, este cenário excede em
beleza a tudo o que podemos oferecer em termos de charme, tranquilidade e puro
encantamento.”

No dia seguinte, após uma noite de sono reparador no trem, cheguei a Paris e
encontrei o Presidente e a Síster Barker enrolados em um cobertor dentro da casa da
missão, que mais parecia uma geladeira. O casal e todos os missionários estavam
muito resfriados. Somente três cômodos tinham aquecimento funcionando — e isso
graças a pequenos fornos a lenha. Devido ao tamanho dos cômodos e da altura do
teto, mesmo os cômodos menores estavam muito frios.

34
N do T: Países como a Suíça e o Luxemburgo, entre outros, são divididos em cantões, suas unidades
geopolíticas. A polícia do cantão seria equivalente a uma polícia estadual.

Nas Asas de Fé 142


Passei a maior parte do dia conversando com o Presidente Barker sobre os
vários problemas da missão, muitos dos quais eu deveria discutir com o Presidente
Sonne tão logo eu chegasse a Londres.
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Cheguei a Londres no dia do Ano Novo. O Presidente Sonne me saudou com


um comentário de pretensa insatisfação: “Que beleza de carro esse que você deixou
conosco!”

“Qual o problema com o carro?” perguntei.

“Ele não funciona”, foi sua resposta.

Então perguntei porque ele não tinha chamado o mecânico para consertá‐lo.

“Chamei, mas ele trabalhou nele por duas horas e não conseguiu fazê‐lo
funcionar.”

“Onde estão as chaves?” perguntei. “Talvez eu consiga fazê‐lo funcionar.”

“Não me diga que acha que pode consertá‐lo depois de o mecânico tentar por
tanto tempo”, emendou ele.

“Só vou saber depois de tentar.”

Ele me deu as chaves e desci até o jardim onde o carro estava estacionado.
Tentei ligá‐lo, mas o motor não respondia. Tirei então do bolso meu canivete suíço,
abri a chave de fenda dele e fiz um pequeno ajuste no carburador. Quando girei a
chave na ignição dessa vez, o motor pegou imediatamente e funcionou tão bem como
sempre.

Deixei o motor ligado para que esquentasse e voltei ao escritório. Então


perguntei ao Presidente Sonne onde ele queria ir com o carro.

“Não me diga que você conseguiu ligá‐lo!”, ele disse, fingindo‐se de bravo.

“Sim, está funcionando bem.”

“Você não vai sair da Europa antes de treinar o Élder Bennet a fazer o que você
acabou de fazer.”

“Oh, não. Não insista nisso”, respondi. “O Élder Bennet já me disse que não
tem jeito para essas coisas. Mas se você permitir, a Síster Sonne pode aprender rápido.
Posso mostrar a ela o que fazer. Ela é uma verdadeira faz‐tudo.”

E assim começou outro dia. E foi um dia bem cheio. Após o jantar, o Élder
Bennet e eu nos reunimos com o Presidente Sonne em seu escritório e desfrutamos de

Nas Asas de Fé 143


momentos de alegre aprendizado a seus pés. Conhecê‐lo é compreender o que
significa ser um verdadeiro e dedicado servo de Deus.
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O inverno terrivelmente frio se estendeu por todo o mês de janeiro. Em uma


carta que escrevi à minha esposa, eu disse:

Esta onda de frio na Europa tem sido muito difícil para muitas pessoas. Alguns morreram
congelados e, a menos que o frio diminua logo, os resultados poderão ser muito trágicos. Os
noticiários evitam cuidadosamente falar das condições existentes na Alemanha, mas se o frio
continuar, essas condições se tornarão tão dramáticas que as autoridades militares vão ter de
romper o silêncio. Estou interessado, em nossa próxima visita àquele país com o Élder Bennet,
em saber a verdadeira extensão da situação durante este período.

A Síster Sonne tem usado as pesadas meias de lã que eu trouxe para ela da Basileia em minha
última viagem. Ela está muito grata por esse presente.

É estranho, não é, que quando uma pessoa passa tanto tempo viajando daqui para lá, como a
rotina do escritório se torna curiosa. É uma tarefa e tanto escrever um emocionante episódio,
quando na verdade tudo o que se fez foi passar de 14 a 16 horas por dia sem que nada de
incomum acontecesse. No entanto, às vezes pode‐se sentir a orientação do Espírito do Senhor
tão fortemente!

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Na quarta‐feira, 15 de janeiro, o Presidente e a Síster Sonne, o Élder Bennet e


eu partimos de Londres, passamos por Dover e nos dirigimos a Ostend, na Bélgica. Em
nosso trajeto de carro pela Bélgica em direção a Paris, o Élder Bennet nos conduziu por
Dunquerque, que fora o cenário de um “milagre” durante a Segunda Guerra Mundial.
Contemplando a paisagem, vimos o local onde o exército alemão estivera entrinchei‐
rado para aniquilar as forças britânicas que estavam encurraladas entre os inimigos e o
mar, sem uma rota de escape evidente, exceto pelo mar. Entre os dois exércitos, não
havia nada além das suaves dunas de areia. Passamos a apreciar a verdadeira natureza
desse “milagre”, um fato que normalmente não é mencionado nos relatos oficiais
dessa ação heróica, porque isso diminuiria a admiração pela estratégia militar
empregada.

A coragem sem paralelo mostrada em Dunquerque foi dramaticamente


exposta em The Complete History of World War II (A História Completa da Segunda
Guerra Mundial). A seguir, transcrevo trechos da narrativa do historiador sobre o que
aconteceu.

Sete dias e noites formaram um contínuo de escuridão causada pelos incontáveis incêndios que
assolavam não somente aquela cidade condenada, mas também toda a costa; nas noites lívidas
com o clarão das explosões e os feixes luminosos dos holofotes militares, milhares de homens
mostraram‐se capazes de um heroísmo que as palavras não poderiam descrever com
propriedade e justiça, e viveram um dos momentos épicos mais valorosos da história.

Nas Asas de Fé 144


Os soldados mantiveram suas posições nas ruas e nos portos em chamas, marchando sem
parar até os navios que os aguardavam, sempre que as ordens eram dadas. Outros esperavam
pacientemente, sem lamentos, na fria areia — alvos fáceis para as bombas e balas alemãs, isso
se elas pudessem penetrar a blindagem que os pilotos britânicos mantinham hermeticamente
fechada sob aquela ampla expansão dos céus — à espera de poder passar a vau uma extensão
de mar e embarcar em um dos incontáveis barquinhos de todos os tipos e tamanhos que
tinham vindo desde a Inglaterra para resgatá‐los. Iates, navios de cruzeiro, lanchas, traineiras,
lanchas de combate e banheiras, cujos proprietários vieram em socorro de seus compatriotas
para salvá‐los de um desastre iminente — mil e duzentas embarcações faziam o trajeto de ida e
volta através do Canal da Mancha, entre a Inglaterra e a França. Os britânicos enviaram
novecentas embarcações e a França apoiou com nobreza seus aliados; trezentos barcos
franceses, da marinha de guerra e da marinha mercante, faziam continuamente o trajeto de ida
e volta à Inglaterra. Cada um desses mil e duzentos barcos só levantava âncora quando estava
tão lotado que fariam seus construtores morrerem de medo.

Acima deles, rugiam incessantemente os motores dos aviões que os protegiam.


Ocasionalmente uma aeronave alemã furava o bloqueio e disparava suas metralhadoras e se
apressava em descarregar seus mísseis. Mas quase nenhum desses aviões negros chegou a
voltar para a base; os que conseguiam desferir um golpe não representavam mais que uma
proporção ínfima entre os muitos que tentaram e fracassaram, esmagados e enxotados pela
35
RAF. A eficácia da proteção que davam pode ser medida pelo fato de que de todas as
novecentas embarcações britânicas que se empenharam no resgate durante toda a semana,
somente seis destróieres e vinte e três outros barcos de diversos tipos foram perdidos e dos
trezentos barcos franceses, somente oito foram afundados.

Nas redondezas de Dunquerque, as estradas ainda estavam apinhadas de soldados a caminho


do porto. Mais além, os alemães ainda lutavam sem trégua para tomar a cidade e capturar os
milhares de soldados aliados que tinham como único objetivo chegar ao porto e depois renovar
suas armas e suas forças a fim de retornar e esmagar os invasores. Para manter o porto livre
para esse fim, para manter as estradas transitáveis de forma que os soldados pudessem chegar
36
ao mar, outros milhares deram propositalmente suas vidas.



Parece que no momento em que a esperança estava se extinguindo, uma


neblina impenetrável (como aquela que tínhamos havia pouco visto em Londres)
desceu entre as tropas alemãs e britânicas. Era tão denso e opressivo que as tropas
alemãs não puderam mover seus equipamentos por três dias, durante os quais todas
as embarcações disponíveis continuaram a cruzar o Canal da Mancha incessante‐
mente, até que virtualmente cada soldado britânico conseguiu escapar para a pátria
antes que a neblina desaparecesse. Assim, os alemães viram sua presa escapar.

O Presidente Sonne assegurou‐nos que esse fora outro sinal da evidência de


que a mão do Senhor dirige o destino das nações e da história e que tal fato devia ser
visto como o fator chave no “milagre de Dunquerque”.

35
N do T: RAF – Royal Air Force, a força aérea britânica.
36
Francis Trevelyan Miller, The Complete History of World War II (Chicago: Progress Research
Corporation, 1948), pp. 211‐212. Transcrito com permissão.

Nas Asas de Fé 145


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Entre 16 e 31 de janeiro, viajei pela Bélgica, França, Alemanha e Suíça com o


Presidente Sonne. Durante essa viagem, o Presidente Sonne deu‐me instruções
estritas de utilizar o tempo que fosse necessário para apresentá‐lo a quatro ou cinco
pessoas‐chave a cada dia, informando a ele a importância que cada uma delas tinha,
além de passar‐lhe todas as informações possíveis que pudessem ser‐lhe úteis nos
contatos futuros, quando eu já não estivesse com ele.

Como consequência, nossa viagem tornou‐se bem agradável, tomando um


ritmo ao qual eu não estava acostumado, mas nem por isso foi menos prazerosa.
Reunimo‐nos com autoridades civis e militares, presidentes de missão, missionários,
membros locais e soldados membros da Igreja. Todos irradiavam um espírito de boa
vontade e genuína compreensão, mas nessa viagem não fizemos nenhum esforço para
iniciar quaisquer novos projetos ou planos. A viagem foi primordialmente uma
oportunidade de consolidar os ganhos obtidos e obter uma orientação global sobre as
condições e situações, o que permitiria levar a obra avante.

Durante o mês de fevereiro, por solicitação do Presidente Sonne, eu e o Élder


Bennett fomos à Paris e de lá à Alemanha. O Élder Sonne estava ansioso para que o
Élder Bennett conhecesse algumas pessoas‐chave, especialmente na Alemanha, e
também para que ele aprendesse a lidar com as rotinas, liberações, transportes, etc.

Em Berlim, ficamos sabendo que finalmente as autoridades russas tinham dado


permissão para que nossos suprimentos de bem‐estar estocados naquela cidade
fossem liberados. Esses suprimentos foram distribuídos apenas entre os membros que
viviam no setor russo de Berlim, o que resultou em uma extraordinária demonstração
de gratidão por parte daqueles que foram beneficiados. Porém, ainda não tínhamos
obtido permissão para enviar suprimentos ao resto da Alemanha Oriental.

O clima na Alemanha estava extremamente frio e recebemos informações de


que continuavam a chegar do Leste trens lotados de refugiados amontoados em
vagões de carga e de transporte de gado. Várias vezes, centenas de passageiros foram
encontrados mortos, congelados. Seus corpos foram empilhados ao longo dos trilhos
como se fossem pilhas de madeira, para serem removidos e enterrados mais tarde.
Doenças de todos os tipos aumentavam constantemente. Nossos suprimentos de
bem‐estar eram um presente dos céus e estavam sem dúvida salvando muitas vidas.

Perto de terminarmos nossa viagem pela Alemanha, eu e o Élder Bennett


paramos em Frankfurt. Lá tive a nítida e forte impressão de que não haviam sido dadas
instruções a nossos contatos em Genebra para enviarem os suprimentos à Alemanha,
apesar de nos terem assegurado que estava tudo certo. Quando chegamos a Paris,
liguei para o Presidente Sonne e informei‐o sobre essa impressão. Por solicitação dele,
segui para Genebra para verificar, enquanto o Élder Bennett retornava a Londres.

Nas Asas de Fé 146


Ao reunir‐me com os funcionários da Cruz Vermelha Internacional no dia
seguinte, minhas fortes impressões se confirmaram. Eles não tinham recebido
instruções do nosso pessoal em Frankfurt sobre o envio dos suprimentos de bem‐
estar. Autorizei‐os a enviar esses suprimentos sem demora para várias localidades,
inclusive Berlim. Em vista do frio intenso e contínuo, essa providência era questão de
extrema urgência.

Depois de retornar a Paris e resolver outros assuntos lá, segui para Liege, na
Bélgica, para pegar nosso carro e levá‐lo de volta a Londres. Porém, quando verifiquei
as condições de travessia entre Ostend e Dover, descobri que o serviço de barcaças
estava paralisado por período indeterminado, devido ao aparecimento de grandes
icebergs que flutuaram do Mar do Norte até o Canal da Mancha. Um desses icebergs
tinha quase quatro quilômetros de comprimento, uma altura de oito metros e sabe‐se
lá que profundidade. Lembrando‐me do destino do Titanic, fiquei grato pela
preocupação dos marujos e, portanto, fiz preparativos para voar de Bruxelas para
Londres na tarde seguinte.
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O frio entrou pelo mês de março adentro. Em alguns pontos da Europa,


relatou‐se que aquele era o inverno mais rigoroso dos últimos cem anos. Continuamos
a trabalhar febrilmente para prover com rapidez toda a ajuda necessária e com a
maior abundância possível. Às vezes defrontávamo‐nos com algum desconforto,
porém nada que se comparasse ao que passavam os depauperados membros da Igreja
na Europa. Essas ocasiões provocaram comentários como este, que escrevi para minha
mulher em uma carta:

Meu nariz não para de escorrer, mas como poderia, se passo horas a fio sentado neste
escritório frio, sem aquecimento e sem luz, usando galochas para manter os pés aquecidos,
uma boina para agasalhar a cabeça e o casaco de pele de cabra do Presidente Sonne para
manter meu corpo menos frio. Algum dia vou rir dos rigores dessa falta de eletricidade que nos
foi imposta...

Na mesma carta, dei uma dica útil:

Você disse em sua carta que fica muito cansada. O Presidente Sonne tem a solução. Ele
aconselha à pessoa cansada que tire uma soneca de uma hora no meio do dia. Ele faz isso
sempre que pode, conseguindo depois fazer muito mais coisas enquanto está acordado…

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Em 6 de março, a BBC, British Broadcasting Corporation, anunciou que


finalmente o frio intenso estava diminuindo e que se iniciaria então o chamado
“Grande Degelo”. Na manhã seguinte, a emissora noticiou que caíra sobre a Grã‐
Bretanha uma das maiores nevascas dos últimos cinquenta anos e que centenas de
estradas estavam totalmente intransitáveis. Também o serviço ferroviário entre o

Nas Asas de Fé 147


norte e o sul da Inglaterra estava interrompido. Ventos fortes sopravam sobre o país e
o mar estava muito agitado. Consequentemente, o transporte marítimo era muito
arriscado e muitos navios se viam forçados a permanecer nos portos.

Foi assim a nossa apresentação ao chamado “Grade Degelo” na Grã‐Bretanha.


Apesar do rigor do clima, para nós havia um toque de humor na situação, como
sempre costuma haver para o leigo quando os especialistas falham. As circunstâncias,
no entanto, nos forçaram a cancelar a pretendida viagem a Bruxelas.

A escassez de alimento continuava, até mesmo na Grã‐Bretanha. Devo


mencionar que por mais de duas semanas a Síster Sonne não conseguiu comprar
batatas. Então, certo dia, ela enfrentou uma fila de quarenta e cinco minutos para
comprar alguns vegetais e acabou conseguindo três batatas e duas cenouras.
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Em 14 de março de 1947, o Presidente Sonne ditou o seguinte comunicado ao


Élder Bennet para ser incluído oficialmente na História da Missão Europeia:

O Élder Frederick W. Babbel, secretário da Missão Europeia desde 29 de janeiro de 1946, data
em que o Élder Ezra Taft Benson, do Conselho dos Doze Apóstolos, partiu de Salt Lake City com
destino a Londres, retornará ao lar em um voo da Pan American levando consigo os bons
augúrios dos inúmeros amigos que granjeou em toda a Grã‐Bretanha e no resto da Europa,
graças à sua alegre e inabalável devoção à Igreja.

Grande parte do sucesso que coroou os esforços do Élder Benson durante o período em que
presidiu a Missão Europeia deve‐se à ajuda do Élder Babbel. Ele foi chamado para ser o
secretário do Presidente Benson quando ainda vestia o uniforme do Exército Americano. Suas
atividades foram orientadas por uma regra básica em sua filosofia pessoal: servir à Igreja, pois
ela é o Reino de Deus na Terra.

O Élder Babbel adquiriu um elevado conhecimento da Alemanha, da língua alemã, do povo, da


geografia e dos costumes daquele país quando serviu na Missão Austro‐Germânica entre 1936
e 1939. Com esse conhecimento, ele conseguiu dar uma enorme contribuição ao Presidente
Benson na obra de restabelecimento da Missão Europeia e no envio de suprimentos de bem‐
estar a milhares de santos carentes que estavam nas áreas ocupadas.

Ele ajudou o Presidente Benson a reabrir as missões na França, Suíça, Holanda, Checoslováquia,
Dinamarca, Noruega e Suécia. Viu‐se obrigado a vencer as dificuldades dos procedimentos de
viagem em meio às caóticas condições existentes em vários lugares. O Presidente Benson
viajou 96000 quilômetros em dez meses, de avião, trem, automóvel, barco, jipe, caminhão,
ônibus, a cavalo e de charrete. A maior parte do tempo, o Élder Babbel estava ao lado dele —
muitas vezes datilografando um relatório para a Primeira Presidência ou um artigo para o
Church News, durante o trajeto. Ele disse que talvez a pior viagem que tenha feito foi à Polônia.
Desde a partida do Presidente Benson, em 12 de dezembro, o Élder Babbel ainda foi duas vezes
à Alemanha e uma vez à Áustria, Suíça, França e Bélgica.

Nas Asas de Fé 148


Embora um pouco prematuro, esse relato resumiu minhas atividades na
Europa, exceto pela última semana, justamente aquela que, em minha opinião, foi o
coroamento de toda a missão.
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Antes de eu partir para voltar para casa, o Presidente Sonne disse que tivera
uma impressão de que devia dar‐me uma bênção especial. Nessa bênção, ele
prometeu‐me que eu não sentiria nenhum efeito negativo sério de minhas
experiências na Europa e que o Senhor me faria prosperar com saúde e grande vigor.

O Presidente Sonne já havia expressado alguma preocupação, porque sabia


que eu tinha viajado entre muitas pessoas doentes e havia convivido com elas. Em
várias ocasiões, eu estivera em áreas em que a incidência da tuberculose era de cerca
de 95 por cento. Muitas outras doenças também grassavam naquelas regiões, mas eu
na realidade só tinha ficado doente uma vez, com um forte ataque de envenenamento
por ptomaína37 após nossa viagem à Polônia.

Exceto por esse revés, não tive nem mesmo um forte resfriado que poderia ter
facilmente evoluído do corrimento nasal que me acometeu por causa do frio. Eu sentia
que a minha perda de peso (dos meus normais 75 quilos para 53 quilos, peso que eu
tinha quando o casal Sonne chegou) devia‐se principalmente aos longos dias de
trabalho, em geral de 18 a 20 horas por dia e, de vez em quando, uma esticada de 45
horas sem intervalo de descanso, além de muitos dias em que deixava de comer uma
ou mais refeições. Nosso jejum de quatro dias na Polônia foi o período mais longo que
passei sem alimento ou água.

Nem me ocorreu fazer um check up médico depois de voltar para casa.


Passaram‐se quase três anos desde o meu retorno quando meu bom amigo, o Dr.
George Taylor, insistiu em me submeter a uma bateria de exames. Ele achava
inconcebível que tivesse passado por todas aquelas experiências exaustivas na Europa
sem ter sofrido algum efeito adverso.

Ao examinar os raios‐X do tórax, as preocupações dele se confirmaram. Ele


descobriu manchas de calcificação em meus dois pulmões, um indício de que eu
contraíra tuberculose. Expliquei‐lhe então que antes que ele prescrevesse algum
tratamento que eu necessitava de alguns dias a fim de reivindicar o cumprimento da
bênção que o Presidente Sonne me dera antes de eu partir da Europa.

Nas três semanas seguintes, estive em Rochester, no Estado de Nova York.


Enquanto estive lá, visitei o Bosque Sagrado próximo a Palmyra em um domingo pela
manhã. Uma camada de neve de vários centímetros cobria o chão quando me ajoelhei

37
N do T: Ptomaína, também conhecida como putrefação cadavérica, causada pela proximidade com
corpos em decomposição.

Nas Asas de Fé 149


ali para reivindicar minha bênção. Senti um maravilhoso espírito de paz e segurança
apoderar‐se de mim.

Antes de sair de Rochester, pedi a um bom irmão, chamado Anderson, técnico


em raios‐X no Hospital Geral de Rochester, para fazer algumas chapas de meu tórax.
Ao voltar ao Oregon, eu mostrei esses exames ao Dr. Taylor. Ele ficou agradavelmente
surpreso ao ver que as manchas haviam desaparecido completamente, não restando
nenhuma evidência de infecção por tuberculose. Até o momento em que escrevo este
relato, gozo de excelente saúde.
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Ao aproximar‐se o final de minha missão, eu tinha muito sobre o que refletir,


particularmente com respeito aos magníficos exemplos de fé e de coragem que eu
tinha observado entre os santos europeus. Um dos testemunhos mais doces que
foram fruto total da experiência foi aquele expresso pelos homens devotados que
presidiram as missões durante os anos da guerra. Ao serem honrosamente desobri‐
gados e passarem suas responsabilidades a presidentes de missão oriundos dos
Estados Unidos, seus testemunhos centralizavam‐se em um tema comum. Diziam eles:
“Irmão Benson, ninguém poderá nos convencer de que esta não é a Igreja de Jesus
Cristo, porque durante os anos da guerra, Ele foi a única Pessoa a quem podíamos
recorrer, e nem uma vez sequer ele nos decepcionou!”

O mesmo pode ser dito dos testemunhos de outros líderes e membros locais.
Quando me dou conta de que eles tinham que improvisar materiais para as aulas, sem
orientação ativa ou estímulo da sede da Igreja e que, em alguns ramos grandes, eles
não tinham nem mesmo uma Bíblia, o significado profundo de seus testemunhos era
emocionante.

Quando a guerra estourou na Europa em 3 de setembro de 1939, numa


questão de horas em alguns países e de dias em outros, todos os missionários e
presidentes de missão foram retirados e mandados para casa. Em muitos casos, os
ramos e distritos locais eram presididos por missionários, e não pelos membros do
lugar, como também as presidências das auxiliares na missão eram exercidas por
missionários de fora. Portanto, praticamente da noite para o dia, a maioria das
missões perdeu a totalidade de sua liderança.

Na maioria das missões, irmãos locais que estavam por perto foram chamados
e designados para servir como presidentes de missão interinos. Eles selecionaram
conselheiros locais e depois assumiram o trabalho gigantesco de preencher os
chamados em todos os escritórios de missão e em cada ramo e distrito. A simples
tarefa de treinar esses membros sem contar com o benefício de ter instruções escritas
em seu idioma nativo já seria uma tarefa hercúlea. No entanto, não havia tempo para

Nas Asas de Fé 150


despedidas, exceto para dizer‐lhes: “Deus os abençoe e ajude até que possamos
retornar.”

Na Missão Alemanha Ocidental, os dois primeiros presidentes de missão


interinos foram mortos. Na Missão Alemanha Oriental, com sede em Berlim, o irmão
Herbert Klopfer — um dos assistentes mais competentes na missão — foi escolhido
para presidir a missão interinamente. Durante a segunda metade da guerra, ele foi
dado como desaparecido na frente russa e só mais tarde foi comprovado que tinha
morrido. Como não havia em Paris irmãos disponíveis para atuarem como interinos,
uma irmã chamada Kleinert ficou encarregada de zelar pelos negócios da Igreja na
França.

Nessas circunstâncias, é possível compreender como aqueles líderes ficaram


totalmente dependentes da orientação do Senhor e porque eles eram capazes de
prestar o fervoroso testemunho: “Ele não nos decepcionou, nem mesmo uma vez!”

Em quase todas as missões da Europa, houve mais batismos durante a guerra


do que em período de igual extensão antes do conflito. Algumas missões tinham até
85 por cento dos membros ativos e na Finlândia o nível era de 100 por cento. Os
dízimos cresceram 300 por cento e as ofertas de jejum, 600 por cento. No entanto,
muitas dessas áreas não tinham nem mesmo uma só capela onde realizar as reuniões.

Enquanto muitas das principais denominações se encontravam em um estado


de desorganização e confusão, além de estarem impregnadas de dúvidas, nossos
santos estavam cheios de fé, devoção e gratidão. Que testemunho vivo da divindade
da obra dos últimos dias e do poder de Deus na vida do povo!

Meu próprio testemunho, já forte em virtude da missão anterior e de outras


atividades na Igreja, foi fortalecido ainda mais pela missão especial que é o objeto
deste livro. Após meu retorno aos Estados Unidos, tive muitas vezes a oportunidade de
expressar esse testemunho em reuniões nas quais falei sobre as manifestações do
poder de Deus durante a minha missão de um ano na Europa. Cito a seguir alguns
trechos desse testemunho:

“Às vezes sinto que nós, santos dos últimos dias, não nos damos conta do
tremendo poder que nos foi dado como filhos de Deus... Esse não é apenas o poder
pelo qual os mundos foram criados, mas o que é ainda mais importante, ele é o poder
que transforma homens e mulheres em deuses e deusas! Isso não é blasfêmia. É a
pura verdade. E não existe poder maior em toda a terra que esse de transformar
homens e mulheres para que se tornem literalmente a imagem de seu Divino Pai.” (…)

“Quando o Senhor disse que Seus servos ‘irão e ninguém os deterá’, ele estava
dizendo isso literalmente. O que é importante é você ter certeza de que é um de Seus
servos e de que está fazendo as coisas que o Senhor quer que faça.” (…)

Nas Asas de Fé 151


“Milagres? … Esses pareciam ocorrer a cada hora. Praticamente não existe uma
só coisa descrita no Velho e no Novo Testamentos que não tenha um paralelo de que
eu não tenha participado. Vi os cegos serem curados, os coxos andarem e as estéreis
serem abençoadas e gerarem filhos. Vi pessoas à beira da morte terem a vida restau‐
rada. Vi o poder da fé na vida de homens, mulheres e crianças em algumas das mais
difíceis circunstâncias imagináveis, mas o poder de Deus estava lá. (…)”

Testifico a vocês que Deus vive! Sei disso como sei que eu próprio vivo. Sei que
Jesus é o Cristo e não o saberei com mais segurança do que agora quando estiver em
Sua presença para ser julgado… Sei que Deus, o Pai Eterno e Jesus Cristo apareceram
ao menino‐profeta, Joseph Smith, porque esse testemunho me foi concedido e sinto a
necessidade de compartilhá‐lo com vocês. Cada vez que tenho o privilégio de prestar
meu testemunho, meu coração canta, porque eu sei que é a verdade.

Presto‐lhes este humilde testemunho em nome de Jesus Cristo. Amém.”

Prestei esse tipo de testemunho há um quarto de século e o reafirmo hoje.


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Na manhã da quinta‐feira, 20 de março de 1947, bem cedo, o Presidente Sonne


entrou no meu quarto e disse: “Irmão Babbel, quero que você vá imediatamente a
Berlim e obtenha permissão dos russos para enviarmos nossos suprimentos de bem‐
estar à Alemanha Oriental. Quando completar essa missão, você poderá voltar para
casa.”

Essa solicitação foi um choque para mim, pois era a designação mais difícil de
todas. O Presidente Sonne sabia que já havíamos feito cerca de uma dúzia de visitas
com esse fim sem o menor sucesso. Nessa ocasião, ele já deveria ter entendido que
uma coisa dessas exigiria várias semanas só para obter os salvo‐condutos e prioridades
militares, além do transporte aéreo. No entanto, havia algo em seus modos e na
solicitação, que não pude negar‐me.

Sem tentar dar uma longa explicação ou apresentar quaisquer desculpas, decidi
que, como o Senhor havia‐me abençoado tão amplamente até aquele momento,
certamente Ele não me falharia. Arrumei minha bagagem o mais rapidamente possível
e saí para o aeroporto — sem documentos militares, prioridades ou sequer uma
passagem. Aquela viagem deveria ser feita exclusivamente com o passaporte do
Senhor, que dizia “eles irão e ninguém os deterá, porque eu, o Senhor, os mandei ir.”

No aeroporto, expliquei a urgência da minha missão e mostrei aos funcionários


minhas surradas permissões militares e meu estofado passaporte. Praticamente sem
opor qualquer resistência, eles aceitaram minhas credenciais e me deram uma passa‐
gem de ida e volta. E assim, lá estava eu a caminho de Berlim.

Nas Asas de Fé 152


O voo foi agradável e sem incidentes. Em Berlim, tive de dar algumas
explicações, mas os oficiais militares aceitaram‐nas sem questionamento. Dali,
apressei‐me em ir ao quartel‐general para obter os salvo‐condutos necessários, os
quais me foram concedidos rapidamente.

Já pela tarde, telefonei ao QG russo e solicitei uma audiência com o fim de


obter permissão para enviar os suprimentos à Alemanha Oriental. Eles me convidaram
a ir lá imediatamente. Ao entrar no gabinete do general, fiquei surpreso em vê‐lo ali
cercado de assistentes. Como o general falava alemão pelo menos tão bem quanto eu,
começamos nossa conversa imediatamente.

Após cerca de uma hora que pareceu ser muitas, na qual expliquei nossos
objetivos e o programa que iria fornecer alimentos, roupas e suprimentos médicos aos
membros da Igreja na Alemanha Oriental, chegamos ao ponto em que, com a
respiração suspensa, esperei pela decisão do general. Não foi preciso esperar muito.
Sua resposta foi “nyet” — Não.

Eu orava tão fervorosamente quanto possível. Por algum motivo eu sabia que
aquela não era a resposta final. O Presidente Sonne não tinha me enviado ali para
fracassar. E, além disso, eu não
sentira o Espírito do Senhor me
inspirando ricamente enquanto
eu explicava os detalhes àquele
grupo de militares? Por instantes,
eu não sabia o que dizer. Depois,
porém, recebi um lampejo de
inspiração e conduzi a conversa
da forma como me era inspirada.
Em essência, o que eu disse foi:

“General Zhukoff,
agradeço‐lhe pelo privilégio de
me receber e discutir essa
questão vital comigo. Sincera‐
mente o respeito e compreendo
que o senhor deve ter boas e
válidas razões para dar‐me a
resposta que acabei de receber.
Mas se o senhor puder ser franco
e transparente comigo como fui
com o senhor, vai pelo menos
reconhecer que lhe disse a
verdade. Não temos motivos escusos; só estamos interessados em ajudar a manter

Nas Asas de Fé 153


vivas pessoas que estão extremamente carentes; para nós não importa quem receba o
reconhecimento pelo que fizermos.”

Fez‐se uma pausa pesada. O general olhou‐me intensamente e depois disse,


sorrindo: “Devo admitir que você foi extremamente franco e honesto conosco… e por
isso, teremos o prazer de dar‐lhe a permissão solicitada!”

Meu coração transbordava de gratidão após testemunhar o poder de Deus


transformar um não em um sim. Agradeci ao general com um aperto de mão caloroso.
Não me parecia sábio demonstrar minha gratidão muito efusivamente. Ao deixar o
gabinete, minha alma estava plena de gratidão ao Pai Celestial. Nesse ponto senti
verdadeiramente que a minha missão na Europa estava cumprida.
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No dia seguinte, voltei ao escritório da Missão Europeia. Depois de


cumprimentar‐me, o Presidente Sonne perguntou: “Obteve a permissão com os
russos?”

“Sim”, respondi.

Ele abriu um sorriso radiante do qual nunca me esquecerei, e acrescentou: “Eu


sabia que você desfrutaria do poder do Senhor e obteria a permissão. A sua missão
está agora concluída. Pode voltar para casa, conforme planejado.”

Então, nos sentamos e relatei a ele o ocorrido desde a minha partida.


Discutimos as várias questões que eu resolvera e, em particular, a permissão russa. Ele
ficou satisfeito, porém, mais que tudo, parecia que ele se sentia como se um grande
peso lhe fora tirado do coração. Com os olhos marejados, ambos expressamos nossa
compreensão de que aquele era o testemunho culminante que o Senhor nos dera de
que os servos que Ele chama e que colocam sua confiança Nele ao procurarem
fervorosamente fazer Sua vontade têm Sua promessa:

E irão e ninguém os deterá

Porque eu, o Senhor, os mandei ir.

Nas Asas de Fé 154

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