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Migrantes: o que resta para contar história


Uma leitura de Georges Perec
 

Yolanda Vilela 

Rumo a Ellis Island Rumo à Europa, 2015

Ellis Island, de Georges Perec, publicado em 1995 pela editora P.O.L, é um texto que pode operar como
chave de leitura para certas questões que se encontram hoje na mídia por fazerem parte de uma atualidade
que, sob vários aspectos, nos constrange e terrifica. Refiro-me especificamente ao fluxo migratório que tem
se intensificado no continente europeu nos últimos tempos. Esse pequeno-grande livro de G. Perec permite
refletir sobre uma situação ampla, complexa, que se presta a análises baseadas em pontos de vista diversos:
social, econômico, geopolítico e religioso, para enumerar apenas alguns.

Em 1978, o Institut National de l’Audiovisuel, o INA, confiou a G. Perec e a Robert Bober a realização de um
filme sobre Ellis Island, a pequena ilha situada na foz do rio Hudson, na entrada de Nova York, que o governo
americano havia transformado, ainda no século XIX, em centro de imigração. A filmagem teve início em 1979
e resultou no documentário Récits d’Ellis Island. Histoires d’errance et d’espérance, constituído de duas
partes: L’Île des larmes e Mémoires.

Em 1980, o INA e as éditions du Sorbier publicaram o texto que Perec havia escrito, bem como aquele das
entrevistas que constituíam a segunda parte do filme; esse volume continha igualmente fotografias da época
e fotos da filmagem.

Em 1994, as edições P.O.L e o INA reeditaram os textos publicados em 1980 pelas éditions du Sorbier;
muitos documentos e fotografias, alguns dos quais haviam sido reunidos por G. Perec e Bober em seu
“diário de filmagem”, assim como a reprodução do manuscrito original, foram acrescentados a essa edição.

A edição em que me apoio, publicada em 1995 pela P.O.L, privilegia o texto de Perec a fim de destacar a
importância de seu encontro com este lugar: Ellis Island.

Ellis Island: um lugar emblemático da história americana

Em Ellis Island, Perec evoca a esperança que os EUA representaram para os povos do velho continente na
segunda metade do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX: populações oprimidas e
miseráveis, classes exploradas, famintas, vítimas de epidemias. Os EUA encarnavam, como se sabe, uma
espécie de “terra prometida” para irlandeses, alemães, poloneses, armênios, gregos, turcos, judeus russos,
austro-húngaros e italianos do Sul. Todos esses povos embarcavam para uma viagem que gostariam que
fosse sem volta. Vale lembrar que a estátua da liberdade era recente: ela fora oferecida pela França aos EUA,
em 1886, para comemorar o centenário da assinatura da “Declaração da independência dos EUA”,
representando igualmente um sinal da amizade que unia os dois países.

Em 1892, o centro de acolhimento de Ellis Island [EI] marcava o fim de uma imigração desorganizada e o
início de uma imigração “oficializada”, institucionalizada, como diria Perec: “industrial”. Entre 1892 e 1924, 16
milhões de pessoas passaram por EI, em média de 5 a 10 mil indivíduos por dia. A permanência na ilha
durava algumas horas. Cerca de 2% a 3% dos emigrantes foram rechaçados. A partir de 1914 a imigração
começou a diminuir, pois, além da Guerra, o governo americano passou a impor medidas restritivas, ou seja,
discriminativas. Em 1924 as formalidades de emigração passaram a ficar sob a responsabilidade dos
consulados americanos na Europa. Ellis Island tornou-se, então, um centro de detenção para emigrantes em
situação irregular. Durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, Ellis Island transformou-se em
prisão para indivíduos suspeitos de atividades antiamericanas: fascistas, nazistas, comunistas, e em 1954, o
centro de acolhimento foi fechado.

Em Ellis Island

Nem todos os emigrantes eram obrigados a passar pelo centro de acolhimento de EI. Os que tinham
dinheiro suficiente para viajar de primeira ou segunda classe, lembra Perec, eram inspecionados
rapidamente a bordo e desembarcavam em solo americano sem grandes problemas. Os que deviam passar
por Ellis Island eram os que viajavam de terceira classe, amontoados e esfomeados nos porões dos navios.
Um inspetor dispunha de aproximadamente dois minutos para decidir se o emigrante tinha, ou não, o
direito de entrar nos EUA. O emigrante era submetido a um questionário de 29 perguntas, por exemplo:
Como você se chama?; De onde você vem?; Por que veio para os EUA?; Qual a sua idade?; Quanto dinheiro
você possui?; Qual a sua profissão?; Você é anarquista?; etc. Se as repostas fossem consideradas
satisfatórias, a pessoa era saudada com o famoso “Welcome to America” e se tornava um imigrante. Caso
houvesse o menor problema, escrevia-se em sua ficha: SI (Special Inquiry), inspeção especial, e o indivíduo
era submetido, em seguida, a um questionário bem mais detalhado.

Em 1917, com base na aprovação de uma lei pelo Congresso, passou-se a exigir dos candidatos a emigrantes
que soubessem ler e escrever em sua língua de origem e que fossem submetidos a testes de inteligência, o
que foi tornando as formalidades de admissão cada vez mais difíceis.

Em Ellis Island, Georges Perec enumera os povos que deixavam tudo para trás, a fim de “fazer a América”:
italianos, irlandeses, alemães, ucranianos, russos, ingleses, noruegueses, gregos, turcos, holandeses,
franceses, dinamarqueses. Ele lista os navios que traziam os emigrantes assim como os portos dos quais
partiam essas embarcações. Partiam de Roterdã, Istambul, Palermo, Marselha, Nápoles, Bristol, Antuérpia,
etc. Em todas as línguas da Europa, Ellis Island era chamada “Ilha das Lágrimas”. Lembramos que a
emigração para os EUA é bem anterior a Ellis Island e que ela não cessou com o fechamento do centro:
mexicanos, porto-riquenhos, coreanos, vietnamitas, cambojanos deram continuidade à onda imigratória.

O centro de acolhimento de Ellis Island não era ainda a América tão sonhada. Aquele lugar, melhor seria
dizer aquele ‘não lugar’ era tão somente um prolongamento do navio, um fragmento da velha Europa, onde
nada ainda havia sido adquirido, “[...] onde aqueles que haviam partido não haviam ainda chegado e aqueles
que haviam tudo deixado nada haviam ainda obtido”.[i] Não havia nada a fazer a não ser esperar. Esperar
que tudo corresse bem, que as bagagens e o dinheiro não fossem roubados, que os médicos liberassem a
entrada, que as famílias não fossem separadas.

Com a expressão ‘não lugar’ refiro-me a uma suspensão temporal, a um tempo de espera feito de
indeterminações, a um exílio durante o qual se vai da esperança ao mais profundo desalento, a um intervalo
improvável entre um antes, que não mais se resgata, e um depois, ao qual não se chega. Essa reflexão
encontra alguma ressonância com o conceito de “não-lugar” amplamente discutido por Marc Augé em Non-
lieux. Introduction à une anthropologie de la surmodernité, de 1992. Nesse livro, o etnólogo e antropólogo
francês apresenta os “não-lugares” como o contrário dos lugares antropológicos − estes correspondem a
uma relação estreita entre o espaço e o social, sendo portadores de três dimensões: identitária, histórica e
relacional. Contrariamente aos lugares antropológicos, portanto, os “não-lugares” estão intimamente
associados ao que Augé define como supermodernidade. Em Le sens des autres, de 1994, por exemplo, o
autor compara as novas formas de espaço com a dissolução dos laços sociais; os “não-lugares” são
considerados por ele a materialização dessa dissolução dos laços e aparecem relacionados com duas
imagens: a sociedade enquanto espetáculo e o surgimento dos espaços residuais. Essa segunda imagem, a
dos espaços residuais, diz respeito a situações em que os indivíduos perdem, de certa forma, seu lugar no
espaço e no social. Nesse sentido, deixa-se de pertencer a um espaço físico e a um espaço social. É o caso,
por exemplo, dos campos de refugiados, dos lugares onde se encontram os sem-abrigo, os desempregados,
os refugiados de guerra, lugares onde se concentram os abandonados desse mundo, todos aqueles que não
têm lugar.

Falar em ‘não lugar’ remete igualmente ao que chamamos no man’s land (terra de ninguém), expressão
criada durante a Primeira Guerra Mundial, quando as batalhas se davam nas trincheiras. No man’s land era,
então, a zona delimitada por arames farpados, frequentemente minada, entre duas fronteiras opostas, um
lugar neutro no campo de batalha. Toda presença humana nesse espaço era considerada uma agressão e
todo intruso devia ser abatido por um dos dois lados em guerra. Num sentido figurado, no man’s land
significa espaço infernal, região hostil, devastada ou abandonada.

À espera, em Ellis Island À espera, na Europa (2015)

 De que resgate se trata?

Segundo Perec, nunca é por acaso que se visita hoje Ellis Island:

[...] os que por lá passaram não desejam voltar, os seus filhos e netos voltam por eles: vão à procura de
um traço, de uma marca, de vestígios. O que foi, para uns, lugar de provação e incertezas, tornou-se, para
outros, lugar de memória, um dos lugares em torno do qual se articula a relação que os une a sua
história.[ii]

Georges Perec se pergunta: como contar, como descrever, como olhar? Sob a escassez das estatísticas
oficiais, sob o burburinho das anedotas mil vezes contadas, da ‘disposição oficial’ dos objetos cotidianos
tornados objetos de museu, raros vestígios sob a tranquilidade factícia dessas fotografias petrificadas: como
reconhecer esse lugar? Como apreender o que não é mostrado? O que não foi fotografado, arquivado,
restaurado? Como reencontrar o que era banal, cotidiano, ordinário, que acontecia todos os dias?

Um lugar de ruínas

Ao se confrontar com Ellis Island, Perec descreve um lugar arruinado, um lugar feito de ruínas. O que se diz,
ou melhor, o que se escreve e se mostra, tem como ponto de partida um lugar de escombros. A ruína, como
se sabe, é sempre algo muito antigo, é um resíduo, uma marca, um produto do tempo, um vestígio da
passagem do tempo. A ruína é um objeto, uma produção material composta de densa carga simbólica.
Trata-se não de um objeto simples, mas de um objeto que já sofreu uma transformação, por isso é um
objeto petrificado, desincorporado, quase um símbolo de si mesmo; ao mesmo tempo é um objeto alijado e
carregado de sentido. A ruína, como lembra Gérard Wajcman, é o objeto mais a memória do objeto, é o
objeto consumido por sua própria memória.

Em L’objet du siècle, Wajcman fala da ruína como um objeto “mortificado”, o que não nos impede de dizer
que ela apresenta uma “positividade”, visto que traz consigo um “resto de objeto”, um quase nada. Nas
cavidades desse objeto, em suas fendas, em suas gretas e fissuras a memória se infiltra. Fendas e memórias
se atraem. Nesse sentido, o valor do objeto se vincula não ao seu valor de mercadoria, mas à memória.

A obra de Perec, de modo geral, trata da memória como um grande campo de ruínas, porém, ao se
confrontar com esses vestígios que resistiram ao tempo, Georges Perec não se propõe a restaurar uma
história ou um destino tal qual um quebra-cabeças cujas peças estariam apenas embaralhas à espera de
alguém que propusesse um formato acabado, uma narrativa harmônica e completa. A meu ver, o escritor
considera cada fragmento descoberto em sua singularidade de fragmento, isto é, Perec os considera um a
um e, com esse gesto, os dignifica.

No centro de acolhimento de Ellis Island, Perec e Bober vislumbraram imagens de corredores, salas,
cômodos de todas as dimensões, quartinhos de despejo, banheiros, etc., sempre se perguntando: como
representar isso? Como as coisas aconteciam ali? Com o que se pareciam? Como se passavam aquelas horas,
aqueles dias? Como faziam aquelas pessoas para se alimentar, lavar, dormir, se vestir? Como fazer falar
essas imagens, como forçá-las a dizer o que elas não saberiam dizer?

No início, pode-se apenas tentar nomear as coisas, uma por uma, prosaicamente, enumerá-las,
listá-las da maneira mais banal possível, da maneira mais precisa possível, tentando nada esquecer.
Por exemplo: duas grandes pias duplas de louça branca, das quais uma era provida de uma
evaporadeira à mão; quatro cadeiras; três máquinas de costura, [...] duas longas pranchas
parafusadas no lajeamento das paredes e que conservam ainda lembranças de varais de corda. É o
que se vê hoje, sabemos apenas que não eram assim no início do século [passado]. Mas é isso que
se pode ver e é somente isso que podemos mostrar.[iii]

Ao dizer que se pode apenas nomear, enumerar, listar, descrever o que se vê, e somente o que se vê, Perec
dá dignidade ao residual, àquilo que resta, afirmando: “O resto, podemos apenas tentar imaginar, deduzir do
que resta, do que foi conservado, do que foi preservado da destruição e do esquecimento”.[iv] Mais adiante:
“O que se vê hoje é um acúmulo informe, vestígios de transformações, de demolições, de restaurações
sucessivas. Amontoados heteróclitos: [...] mesas, cadeiras, panelas, livro de cânticos, uma cafeteira”.[v] O
dejeto é informe, é o que sobrou para contar história.

Esse acúmulo informe, esses amontoados heteróclitos de restos evocados, descritos, por Perec, não seria
esse o objeto próprio da literatura? A literatura enobrece o que restou, conferindo dignidade às sobras, tal
como o objeto sordidíssimo do escritor Pascal Quignard. A figura do sordidíssimo encontra-se em várias
obras desse escritor francês e está intimamente associada aos fundamentos da literatura quignardiana,
principalmente à sua concepção de romance. O sordidíssimo refere-se também aos artistas e às obras que
Quignard considera marginais; no caso específico da literatura, essa figura articula-se a uma linhagem
considerada não canônica. Considerado seja sob o prisma do gênero, seja segundo uma perspectiva
temática, o sórdido é, para esse autor, um objeto a-social, privado consequentemente de valor de troca. A
nosso ver, esse elemento expõe as diversas figuras que o dejeto pode assumir; todavia, a particularidade do
sordidíssimo reside no estatuto agalmático que Quignard lhe atribui enquanto elemento residual.

A salvação pelos dejetos: a contribuição da arte

Paul Valéry se referiu ao surrealismo com a seguinte proposição: “A salvação pelos dejetos”. É assim que ele
define o surrealismo, a via, o caminho escolhido pelo surrealismo.[vi] Na verdade, essa fórmula irônica de
Valéry ia ao encontro das críticas que ele fazia à poesia contemporânea. Valéry criticava igualmente Freud e
o freudismo. Para ele, “o sonho é uma degenerescência do pensamento”, pois, feito de lacunas e imagens
fragmentárias, o sonho se opõe à forma. De fato, Valéry tinha razão ao dizer que André Breton prometera a
salvação pelos dejetos. O que isso quer dizer? O que resplandece tem uma forma, e, de certo modo, o ideal é
a glória da forma, ao passo que o dejeto é informe: ele é extraído de uma totalidade, da qual é somente uma
peça solta, avulsa. O surrealismo propõe uma estetização do dejeto. Ele inclui o dejeto no registro da estética
e, com isso, modifica a definição do belo, mas não coloca o belo em questão. Desde então, desde Duchamp,
a arte chamada “contemporânea”, passou a nos oferecer o dejeto como objeto de arte; mas foi o
surrealismo que desvelou a essência da arte, na medida em que esta consiste em estetizar o dejeto, sublimá-
lo.

A psicanálise também confere lugar privilegiado ao dejeto. Primeiramente por considerar que uma operação
sempre produz um resto, algo que não se pode assimilar em sua integralidade. Esse resto de operação pode
ser tomado numa vertente agalmática, ou seja, ele pode ser dignificado em sua própria opacidade. É o que
lembra Jacques-Alain Miller, na sequência de Freud e Lacan: uma “salvação pelos dejetos” só tem sentido
quando constatamos que, até então, só se havia procurado a salvação pelos ideais. O que é o dejeto? É o
que é rejeitado, e especialmente rejeitado ao final de uma operação em que se retém somente o ouro, a
substância preciosa. O dejeto é o que os alquimistas chamavam de caput mortuum. É o que cai ao mesmo
tempo em que, por outro lado, algo se eleva. É o que se evacua, ou que desaparece, enquanto o ideal
resplandece. Quando se dá dignidade ao dejeto, quando ele não permanece no estado de indignidade, ele é
“sublimado”, ou seja, pode ser socializado ao entrar no circuito das trocas.

Duchamp e o dejeto dignificado

Com Duchamp e seus ready-made, objetos prontos para o uso [rdm], o objeto é elevado à dignidade da obra
de arte. Duchamp define as características de um verdadeiro rdm: “nem beleza, nem feiura, nada nele que
seja particularmente estético”.[vii]

Declarar que um objeto comum, um objeto qualquer “é arte” tem como efeito esvaziá-lo de sua substância. É
um simbólico que introduz algo da ordem do vazio no objeto, esse ato evacua seu ser de objeto comum e
qualquer. O objeto que é então produzido não é mais comum nem qualquer. O que distingue o “objeto
inicial” de sua transformação, de seu estatuto de rdm? Nada ou quase nada, a não ser isto: o rdm é o mesmo
objeto, mas que não serve mais para nada. Como lembra Wajcman, uma roda de bicicleta pregada num
tamborete não leva ninguém a lugar algum.

Retirar um objeto de seu uso é uma maneira de retirá-lo de sua significação. Numa série de objetos comuns,
idênticos, definidos pelo seu uso, isolar um e chamá-lo obra de arte, é fazê-lo surgir com um efeito de
sentido, inesperado, surpreendente, que rompe com todas as significações comuns, estabelecidas desse
objeto.

O rdm de Duchamp se insurge contra o despotismo do útil, a arte como o que não serve para nada. Objeto
“despovoado”, desprovido de sua utilidade não equivale a dizer que ele seja inútil para a arte. Nessa
perspectiva, é por um certo esvaziamento que um objeto se eleva ao estatuto de arte. Pelo vazio, um objeto
ganha valor. O que pode parecer estranho, curioso, é que o rdm define um processo de produção de objeto
de arte que se sobrepõe muito exatamente, que coincide com aquele de um dejeto. Objeto esvaziado de
toda utilidade e de todo valor de troca, isso descreve tanto uma escultura de Picasso quanto uma panela
furada jogada no lixo elevada ao estatuto de arte.

Ellis Island é, a um só tempo, um campo de ruínas, um grande “marché aux puces”, um brechó de
proporções gigantescas, que nos lembra que um dejeto pode sempre suscitar o desejo; um passante, ao se
abaixar para pegar um daqueles objetos, o traz novamente à existência. Esse gesto, que muitos artistas
repetiram, traz uma verdadeira questão: a ambiguidade que existe entre obra e dejeto não pode ser extinta.
O objeto residual é, nesse sentido, o que dignifica tudo aquilo que não se inscreve sob a égide do ideal.

Europa de hoje, América de ontem

Em Ellis Island, após uma breve reflexão sobre o que significa para ele ser judeu, Georges Perec diz que
aquele não é um lugar reservado aos judeus: é um lugar que pertence, ao contrário, a todos aqueles que a
intolerância e miséria expulsaram e ainda expulsam da terra onde nasceram e cresceram. “O que vim
questionar aqui”, afirma Perec, é “a errância, a dispersão, a diáspora. Ellis Island é para mim o lugar mesmo
do exílio, o lugar da ausência de lugar, o não lugar, o lugar nenhum”.[viii] Perec faz ressoar as duas palavras
que estiveram o tempo todo no cerne de sua aventura, essas duas palavras “inapreensíveis, instáveis,
fugidias” e suas luzes tremulantes: errância e esperança.

Essas questões apontam novamente para o impasse inerente à própria literatura, ou seja, não se trata, para
Perec, de dar significados, compreender, ficcionalizar, mas, ao contrário, de manter esse estatuto onde as
palavras “estão mais próximas” das imagens. É o impasse e o limite da literatura, essa fronteira sempre
oscilante entre aquilo que se mostra e aquilo que se pode narrar.

Entre migração, ‘não lugar’ e escombros, histórias de errância e esperanças se comprimem. A migração
coincide com esse ‘não lugar’ que vai da espera ao que dela resta. Nenhuma narrativa o preenche, diz Perec.
Basta um olhar para a nossa atualidade para constatar que as novas versões desses ‘não lugares’ ainda
conservam o calor dos corpos que ali estiveram; no entanto, deles só restarão, diante dos nossos olhos,
alguns dejetos. Caberá à arte, à literatura e à psicanálise dignificá-los.

O que me parece importante ressaltar é que a leitura de Ellis Island ajuda a refletir sobre o impasse que se
apresenta à contemporaneidade. Se o complexo processo de globalização econômica, amplamente
impulsionado nos últimos 30 anos, previa uma aliança dos mercados e a consequente dissolução de suas
fronteiras, ele produz, agora, novas versões dos arames farpados de outrora. Por um lado, aceita-se de bom
grado a globalização econômica e todas as suas benesses; por outro, porém, defende-se, aqui e ali, a
construção de muros (simbólicos ou reais) que, no fundo, revelam uma nova forma de eugenismo. O desejo
de muitos parece se concentrar num só esforço: como evitar a contaminação representada pela
miscigenação, como impedir que uma espécie de “retorno do recalcado histórico” emerja, trazendo à tona o
próprio homem como resto de uma operação que se queria sem restos. Estamos atualmente neste impasse:
aceitar, ou não, o destino de miscigenação da raça humana; aceitar, ou não, que raças não existem. 

Vestígios dos migrantes, Ellis Island Vestígios dos migrantes, Europa (2015)

Yolanda Vilela é psicanalista da EBP-AMP e doutora em estudos literários (literatura francesa) pela FALE-
UFMG, com tese sobre o escritor francês Pascal Quignard.

Notas

[i] PEREC, 1995, p. 47.

[ii] PEREC, 1995, p. 39.

[iii] PEREC, 1995, p. 43-44.

[iv] PEREC, 1995, p. 51.

[v] PEREC, 1995, p. 54.

[vi] VALÉRY, 1974.

[vii] DUCHAMP, 1994.

[viii] PEREC, 1995, p. 57.

Referências

AUGÉ, M. Le sens des autres. Paris: Fayard, 1994.

AUGÉ, M. Non-lieux. Introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Seuil, 1992.

DUCHAMP, M. À propos de moi-même”. In: ______. Duchamp du signe. Paris: Flammarion, 1994.

MILLER, J.-A. A salvação pelos dejetos. Correio. São Paulo, EBP, n. 67, 2010.

PEREC, G. Ellis Island. Paris: POL, 1995.

QUIGNARD, P. Sordidissimes. Paris: Grasset, 2005.

VALÉRY, P. Cahiers 2 (Pléiade). Paris: Gallimard, 1974. p. 1208.

VILELA, Y. Ler, traduzir, escrever: um percurso pela obra de Pascal Quignard. 2009. 277 f. Tese (Doutorado
em estudos literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ECAP-7Y3GJD>.

WAJCMAN, G. L’objet du siècle. Paris: Verdier, 1998.

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