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A MULHER NO MAGISTÉRIO BRASILEIRO: UM HISTÓRICO


SOBRE A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO

Amanda Oliveira Rabelo1


António Maria Martins
Universidade de Aveiro

RESUMO

Este artigo tem como objetivo principal realizar um histórico de como o magistério se tornou um
“gueto” profissional feminino. Vale a pena lembrar que o mesmo foi inicialmente uma profissão
masculina, onde somente os homens estudavam e ensinavam. Portanto, estudaremos como a mulher
passou a se dedicar a esta área e como esta passou a ser vista como uma profissão feminina por
excelência, inclusive associando-a à necessidade de qualidades “femininas” como, por exemplo, a
maternidade e sensibilidade. Analisaremos também como esta área passou a se desvalorizar a partir da
inserção feminina e como as separações e discriminações efetuadas com base nas relações de gênero
se arraigaram na instituição escolar (baseadas nas condições sociais que a mulher tinha na sociedade).
Quando a mulher entra no mercado de trabalho, a noção de que ela deve ser controlada está implícita
nas atividades que ela exerce e que sempre exerceu na sociedade (as tarefas domésticas e sua
submissão ao homem), assim, mudar as relações excludentes de gênero não dependia somente da
aceitação da mulher como docente. É importante destacar que é através do magistério (hoje
considerado um trabalho feminino, por excelência) que a mulher brasileira pôde abrir caminho ao
exercício profissional, pois esta passou a ser uma das primeiras atividades profissionais dignas à
mulher e que possibilitavam conciliar com as atividades domésticas. Mas o controle e a administração
do ensino continuava sob gerência masculina. Por mais que a educação tenha passado por algumas
mudanças na prática escolar, a feminização do magistério continua se perpetuando mais e mais,
desvalorizando o papel da mulher docente ano após ano. E o homem continuou se distanciando das
salas de aulas infantis. Percebe-se como a escolha profissional acaba sendo influenciada pelas
representações existentes na sociedade, que têm suas bases na história da feminização do magistério,
que divulga que as profissões consideradas movidas pela “emoção” seriam próprias das mulheres e as
ligadas à “inteligência” seriam patrimônio exclusivo dos homens. Por fim, percebe-se como as
mulheres acabam sendo influenciadas por receber essas representações e agem de acordo com elas. Os
meandros da escolha profissional docente, as influências que as mesmas sofreram, a visão dos
atributos que a mulher teria para o magistério, são questões que devem ser pesquisadas para que haja
uma tentativa de escolha profissional por uma “paixão”, mas que esteja atrelada à luta por uma
educação melhor e não à simples aceitação de uma condição imposta socialmente. A mulher não deve
deixar de ter amor pela profissão, porém um amor que não seja “cego”, quer dizer, que não a impeça
de ver as imposições sociais para que ela se submeta, que não lute. Investir na educação é lutar pelo
possível, pela mudança dessa educação que cada vez mais quer cada um no seu “devido lugar”,
estagnado e obediente. É necessário que a subjetivação que a sociedade exerce sobre a mulher não seja
maior do que seus impulsos pessoais e a vontade de lutar por ideais. Afinal, não há coisa melhor do
que fazer do seu ofício um prazer e um modo de batalhar pelo que se deseja.

1
Doutoranda da Universidade de Aveiro – Projecto de Investigação Financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia – FCT - Portugal
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TRABALHO COMPLETO

A escola, como um espaço social que foi se tornando, historicamente, nas


sociedades urbanas ocidentais, um locus privilegiado para a formação de
meninos e meninas, homens e mulheres é, ela própria, um espaço
generificado, isto é, um espaço atravessado pelas representações de gênero.
Em nosso país, como em vários outros, esse espaço foi, à princípio,
marcadamente masculino (LOURO, 1997, p. 77).

Este artigo visa fazer um breve histórico bibliográfico do papel da mulher na educação,
esclarecendo que a feminização no magistério não se resume ao aspecto quantitativo das mulheres que
aumentou nos âmbitos educacionais, mas também à concepção da profissão docente na sociedade que
está sempre associada às características femininas e, por isso, está sendo cada vez mais desvalorizada.
Por isto torna-se importante refletir sobre desde quando a feminização do magistério tem acontecido,
além entender hoje os fatos que levam a essa condição e quais suas conseqüências.
Ressaltamos, de acordo com a epígrafe inicial, que a educação, durante longo tempo, era
função estritamente masculina: os alunos eram do sexo masculino e o ensino era exercido
principalmente por religiosos (por padres, como os jesuítas) e por homens que estudavam e eram
contratados como tutores pelas pessoas com melhores condições financeiras2.
Mas, após a Revolução Francesa, com a ascensão da burguesia, a mulher é chamada a
assumir o seu “papel social” na educação dos filhos (FREITAS, 2000). Porém, não é a sua entrada no
magistério que permitiu que as separações e discriminações efetuadas com base nas relações de gênero
não estivessem presentes na escola. Elas já estavam arraigadas na instituição escolar e mudar as
relações excludentes de gênero não dependia somente da aceitação da mulher como docente.
Como conseqüência da abertura do magistério às mulheres, desqualifica-se e desvaloriza-
se a mulher através do discurso da falsa igualdade dos gêneros, limitando suas qualidades
profissionais, invocando um papel feminino, um suposto “dom” de um comportamento emocional e
moral. Esse dom era considerado inadequado para outras funções do âmbito público. A mulher, assim,
fica restrita à esfera privada, pelo simples fato de ter nascido mulher e poder gerar a vida (ARCE,
2001).
A associação da atividade de magistério a um “dom” ou a uma “vocação” feminina
baseia-se em explicações que relacionam o fato de a mulher gerar em seu ventre um bebê com a
“conseqüente função materna” de cuidar de crianças; função esta que seria ligada à feminilidade, à
tarefa de educar e socializar os indivíduos durante a infância. Dessa forma, a mulher deveria seguir seu
“dom” ou “vocação” para a docência.
No Brasil, essa caracterização da mulher como educadora dos filhos não se deu de forma
imediata. Na colonização, os portugueses vieram para o Brasil trazendo seus modelos de
comportamento e dominação. Esse domínio era patriarcal, típico na cultura ocidental judaico-cristã, e
foi aperfeiçoado durante anos pelo sistema capitalista em ascensão. A sociedade patriarcal
determinava que as mulheres fossem subjugadas pelos homens: pelo pai, pelo marido e pelas regras
elaboradas por estes (FREITAS, 2000).
O paternalismo fazia com que a mulher restringisse sua atuação à esfera privada de sua
casa, e sua ação pública se limitava a participar das atividades da igreja. O impacto dessa restrição
levou a mulher a se recolher ao âmbito doméstico, à condição de mera reprodutora, tornando-se
apenas um objeto de domínio masculino.
A mulher não precisava ter boa formação, bastava-lhe aprender as primeiras letras e os
cálculos aritméticos básicos para assegurar as tarefas do lar. Numa visão muito peculiar a mulher era

2
Ver CATANI, 1997 e FREITAS, 2000.
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apresentada como tentação permanente que deveria ser “domada” para tornar-se uma boa mãe e para
que não desviasse o homem do caminho correto (FREITAS, 2000). Esse pensamento era baseado na
explicação bíblica da primeira mulher, Eva, ter incentivado o primeiro homem, Adão, ao pecado e, por
isso, os dois teriam sido expulsos do paraíso. Mello e Leite (2000, p. 38-39) nos mostram como houve
uma tentativa de controlar essa mulher “pecadora”:

Assim, alicerçada nos postulados científicos aristotélicos de “incompletude


feminina”, a Igreja Católica estabeleceu um “modelo de cristandade
ocidental” permanente, no qual consolidou uma postura valorativa da mãe,
ou seja, da mulher enquanto elemento procriador em constante analogia com
Maria que aceitou “docilmente” sua missão. Em um pólo oposto estaria Eva,
cuja criação oriunda da costela de Adão já denotava uma relação de
inferioridade intrínseca — era “a pecadora” — cuja sedução maligna
desviou o homem do caminho correto e extirpou do paraíso o destino de toda
a humanidade

A concepção de que a mulher é motivo de “tentação” estava presente na memória das


mulheres de outrora. Memória que tenta se recriar nos objetos, nos vestígios, nas lembranças que essas
mulheres guardavam para rememoração de prazeres e bem querenças que ficaram em algum lugar do
passado (CATANI, 1997, p. 43). Elas realizavam várias tentativas de registrar, e de divulgar em
diários, agendas etc., essa memória, no decorrer de suas vidas.
Aqui é possível inquirir: mas os homens não tentam também registrar suas lembranças?
Sim, mas no decorrer da história os registros masculinos eram feitos muito mais para marcar as datas
de guerras, acontecimentos, descobertas, do que para falar de seus prazeres e angústias. Isso pôde ter
acontecido porque a memória está atrelada às vivências de cada indivíduo e os homens, no passado,
estavam muito mais direcionados para seus trabalhos do que para uma auto-análise ou reflexão de sua
vida sentimental.
De acordo com Catani (1997, p. 44) a mulher apresenta uma memória diferente da dos
homens e isso se dá não por ela pertencer a um dos gêneros: não é o fator biológico que especifica o
tipo de memória, mas as experiências e trajetórias de vida de cada sexo. Ou seja, o fato de a mulher ser
subjugada ao âmbito doméstico acaba fazendo com ela tenha mais tempo para refletir sobre suas
vivências e, assim, possa tentar registrar, com detalhes, seus momentos de prazer, ativando sua
memória.
Linhares (1997, p. 125-126) assinala que a memória é um “tesouro” disputado há tempos
pelo poder e, por isso, a mulher muitas vezes era penalizada e controlada, pois se considerava que ela
tinha uma intensa capacidade de lembrar, devido a influências “demoníacas”:

A memória sempre constitui um tesouro. [...] pela sua importância foi


disputada e controlada politicamente, tanto em sua forma oral como sob a
forma escrita, monumental e ritual. [...] Não é por outra razão que vamos
encontrar ainda na Idade Média tentativas de controle da memória e de suas
expressões. Encontramos, por exemplo, medidas administrativas de algumas
municipalidades, que vincularam a si os jograis e jogralesas, para controlar a
comunicação e a difusão de seus relatos. Quantos deles foram punidos — até
com a morte — pelo exercício de uma memória convincente que era
percebida como mais ameaçadora, pelas possíveis conexões com o prazer
sexual [...] A velha suspeita já, registrada na Grécia, no diálogo a que é
exposto Tirésias quando indagado sobre a ordem superior de prazer que as
mulheres poderiam ter. Parece voltar ao medievo a suspeita de que a
memória potente das mulheres se explicaria por pactos secretos com o
demônio que só a fogueira poderia aplacar...

A fogueira era o castigo aplicado às mulheres (principalmente) porque teriam uma


memória potente, e convincente, ligada muitas vezes com o prazer que era considerado perigoso. O
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prazer, que era associado com a memória das mulheres, deveria ser controlado. Neste sentido,
Foucault nos mostra que, desde a antiguidade, várias práticas foram desenvolvidas em torno do ato
sexual “No final das contas, vimos que o ato sexual parece ter sido considerado desde há muito tempo
como perigoso, difícil de ser dominado e custoso; a medida exata de sua prática possível e sua
inserção num regime atento foram exigidas desde há muito tempo” (2001, p. 233).
A memória era perigosa e mais ainda se viesse da mulher que era submissa ao homem. A
memória era perseguida, pois pressentia-se nela um perigo, nela se manifestava a liberdade de
pensamento tão temida pela igreja e pelo poder:

A Inquisição farejava os pontos nodais da liberdade do pensamento e,


certamente, ainda que isto não fosse assim formulado, já a memória era
pressentida como essa argamassa organizativa que vai configurando
experiências e aprendizagens, absorvendo e se apropriando do patrimônio
cultural, construído coletivamente e sempre em negociação com as
memórias individuais. Memória que se fortalece à medida que é
compartilhada, narrada (LINHARES, 1997, p. 126).

Não se poderia deixar que a memória fosse compartilhada, pois assim ela seria construída
coletivamente e teria ainda mais força contra as instituições estabelecidas. Então, deveria ser extirpada
antes de se difundir. A memória seria perigosa e, dessa forma, quem a tivesse possuiria um grande
trunfo em suas “mãos”, pois a memória é um instrumento de poder.
Assim, deixar que a mulher recriasse sua memória “solta”, ou mesmo trabalhando, era
considerado um perigo para sua integridade e para a integridade de sua família, e do homem que sobre
ela detinha o poder, pois a traição era temida. E, portanto, a mulher era subjugada à superioridade
ativa do homem, que devia controlá-la, afastando essa tentação.
Desde a Antigüidade, a mulher deveria ser controlada e submetida à moral dos homens.
Para essa moral, ela era posse de um homem, tornando-se apenas um objeto no domínio masculino,
conforme nos diz Foucault: “Trata-se de uma moral dos homens [...]. Conseqüentemente, moral viril,
onde as mulheres só aparecem a título de objetos ou no máximo como parceiras às quais convém
formar, educar e vigiar, quando as têm sob seu poder [...]” (2001, p. 24). É essa moral que perpassa a
Antigüidade e que molda a moral Moderna, tendo importantes influências na memória social.
Mesmo quando a mulher entra no mercado de trabalho, essa noção de controle está
implícita nas atividades que ela exerce. Podemos perceber isso na afirmação de Bruschini e Amado
(1988, p. 6): “De uma forma velada, o controle da sexualidade feminina justificaria, daí por diante,
que mulheres trabalhassem com crianças, num ambiente não exposto aos perigos do mundo e
protegido do contato com estranhos — especialmente os do sexo oposto.”
Assim, é através do magistério, considerado um trabalho feminino, por excelência, que a
mulher brasileira pôde abrir caminho ao exercício profissional.
Até a independência do Brasil não existia educação popular, mas depois dela o ensino,
pelo menos nos termos da lei, se tornou gratuito e público, inclusive para mulheres. Isso aconteceu a
partir da primeira lei do ensino (datada de 1827) que deu direito à mulher de se instruir (porém com
conteúdos diferenciados dos ministrados aos homens) e que admitiu o ingresso de meninas na escola
primária (BRUSCHINI e AMADO, 1988).
A partir daí a formação de professoras do sexo feminino se fez necessária, pois os tutores
deveriam ser do mesmo sexo que seus alunos. O primeiro curso de ensino normal das Américas
surgiu, então, na cidade de Niterói (RJ), em 1835, e tinha no seu estatuto alguns pré-requisitos para
quem quisesse cursá-lo: a “boa morigeração [idoneidade moral] e ter idade superior a 18 anos”
(MARTINS, 1996, p. 70).
Nessa época, o currículo do estudo feminino era diferenciado do masculino: as moças se
dedicavam à costura, ao bordado e à cozinha, enquanto os homens estudavam geometria. As mulheres
professoras eram isentas de ensinar geometria, mas essa matéria era critério para estabelecer níveis de
salário, portanto, reforçava-se com isso a diferença salarial. Assim, as mulheres tinham direito à
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instrução, mas essa instrução acentuava também a discriminação sexual (FREITAS, 2000). Contudo,
apesar do estudo passar a ser um direito garantido por lei, a maioria das mulheres não tinha acesso à
instrução, com exceção daquelas que pertenciam às elites e às classes ascendentes, pois a segregação
da mulher continuava presente na sociedade.
Além de tudo, às mulheres eram requisitadas condições diferenciadas que atestassem
ainda mais a sua ética e seus bons costumes, como: certidão de casamento, se casada; certidão de óbito
do cônjuge, se viúva; sentença de separação, para se avaliar o motivo que gerou a separação, no caso
da mulher separada; vestuário “decente”. A mulher só poderia exercer o magistério publico com 25
anos, salvo se ensinasse na casa dos pais e estes forem de reconhecida moralidade. Ou seja, todos
poderiam realizar o curso de formação a partir dos 18 anos, mas havia uma diferenciação na hora de
entrar no mercado de trabalho.
Essa valorização da moral tinha como objetivo tornar o ensino das mulheres voltado não
à instrução, entendida como formação intelectual, mas como uma tentativa adicional de disciplinar sua
conduta. Isso fica claro na análise de Catani (1997, p. 28):

[...] a ênfase do ensino feminino [era] nas boas maneiras, nas técnicas, na
aceitação da vigilância, na aparência, na formação moralista. Coisa
adequada quando o ensino fundamental se destinava às classes populares,
pois o que estava em jogo não era difundir as perigosas luzes do saber, mas
disciplinar as condutas e refrear a curiosidade.

A profissionalização feminina foi incentivada pelo processo de industrialização, pela


abolição do trabalho escravo (em 1888) e pelo surgimento de uma nova forma de mão-de-obra: os
assalariados. O progresso se evidenciava nas cidades, nas classes dominantes e médias, e também nos
centros urbanos que começavam a se industrializar: as repercussões sociais do capitalismo atingiam o
Brasil nos últimos decênios do século XIX
A educação aliava-se ao desejo de modernização das classes dominantes, pela
necessidade que a produção tinha de contar com trabalhadores especializados. Deste modo, cresceram
as pressões exigindo educação, e, com elas, primeiramente começou a expandir-se o número de
professores masculinos, simultaneamente acentuou-se a admissão de mulheres na Escola Normal, que
era o único lugar em que elas podiam prosseguir os estudos de uma forma aprovada pela sociedade.
Porém, houve também um objetivo político na ampliação da participação feminina no
magistério: as mulheres ganhavam menos e, para que se pudesse expandir o ensino para todos, era
necessário que o governo gastasse menos com os professores. Os homens não aceitariam um salário
menor, então era necessário que a mulher assumisse esse posto, não pelo salário, mas por sua suposta
“vocação” natural para essa profissão. Catani (1997, p. 28-29) mostra como esse pensamento era
justificado:

Para que a escolarização se democratizasse era preciso que o professor


custasse pouco: o homem, que procura ter reconhecido o investimento na
formação, tem consciência de seu preço e se vê com direito à autonomia —
procura espaços ainda não desvalorizados pelo feminino. Por outro lado,
não se podia exortar as professoras a serem ignorantes, mas se podia dizer
que o saber não era tudo nem o principal. Exaltar qualidades como
abnegação, dedicação, altruísmo e espírito de sacrifício e pagar pouco: não
foi por coincidência que este discurso foi dirigido às mulheres.

Com a República (em 1889), essas pressões impulsionaram ainda mais a necessidade de
ampliação das oportunidades educacionais. Os líderes republicanos consideravam o magistério uma
profissão feminina por excelência, pois estavam influenciados pelas teorias positivistas e burguesas,
que julgavam que a mulher estava “naturalmente” dotada da capacidade para cuidar das crianças.
Esse pensamento estava aliado à necessidade de formação de professores, tendo em vista
que os homens tentavam buscar vantagens financeiras em outras áreas. Dessa forma, as mulheres,
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sobretudo a partir da segunda década do século XX, começaram a abraçar o magistério,


principalmente as que provinham de uma situação financeira precária (como as órfãs que tinham que
trabalhar) e as de classe média. Almeida (1996, p. 74) esclarece como isso aconteceu em São Paulo,
mostrando também as justificativas dessa inserção da mulher no magistério:

Quando inaugurou-se em São Paulo a seção feminina da Escola Normal,


segundo alguns historiadores, esta foi primeiramente destinada às jovens de
poucos recursos e às órfãs sem dote, às quais era interdito os sonhos de um
bom casamento, dado que este apoiava-se necessariamente em bases
econômicas. Sendo difícil casar-se, precisavam essas moças, para não ser
um peso para a sociedade, conseguir um meio de subsistência
proporcionado por uma profissão digna, de acordo com o ideal feminino e
que não atentasse contra os costumes herdados dos portugueses de
aprisionar a mulher no lar e só valorizá-la como esposa e mãe. Portanto, ser
professora representava um prolongamento das funções domésticas e
instruir e educar crianças, sob o mascaramento da missão e da vocação
inerentes às mulheres, significava uma maneira aceitável de sobrevivência,
na qual a conotação negativa com o trabalho remunerado feminino esvaía-se
perante a nobreza do magistério.

No entanto, mesmo no início do século XX, permanecia a distinção na formação de


homens e mulheres. A mulher ainda não era educada para um desempenho profissional, só era
preparada para as atividades domésticas. Porém, aos poucos foi acontecendo a transição da educação
doméstica para uma formação profissional, pois surgiu a necessidade de incorporar a mulher ao
projeto educacional da nação.
O magistério era o caminho possível para a maioria das mulheres brasileiras,
principalmente para aquelas das camadas médias da população, pois, até os anos de 1930, era o único
trabalho considerado digno para elas, e que podia ser atrelado às tarefas domésticas. A sua instrução
deveria ser “aproveitada” pelo marido e pelos filhos, portanto, teria que estar atrelada às atividades do
lar, conforme assinala Almeida (1996, p. 73), dizendo que a mulher deveria ser instruída:

[...] de forma que o lar e o bem-estar do marido e dos filhos fossem


beneficiados por essa instrução.[...] Assim as mulheres poderiam e deveriam
ser educadas e instruídas, era importante que exercessem uma profissão — o
magistério — e colaborassem na formação de diretrizes básicas da
escolarização manter-se-iam sob a liderança masculina.

Todavia, a condução da educação não era exercida pelas mulheres3, elas apenas
lecionavam. A estruturação da mesma, os cargos administrativos e de liderança, eram geridos pelos
homens. Dessa forma, havia um grande controle sobre a atuação das professoras, inclusive sobre sua
sexualidade. A escola continuava relegando a mulher a um plano secundário, perpetuando a submissão
existente na sociedade patriarcal.
Os homens que se dedicavam à educação, no decorrer do século XX, apresentavam
facilidades de promoção na carreira do magistério e no sistema educacional em geral. Já as mulheres
tinham uma ascensão profissional muito difícil, o que as fazia continuar na carreira de professora
primária por longo tempo.
Isso acontecia também porque quem cursava o normal até a década de 1940 não podia ter
acesso aos cursos superiores. Dessa forma, as mulheres (que já eram maioria nessa área) dos institutos
normais não podiam aumentar seu estudo e, assim, tinham que continuar no magistério primário. Após
essa década abriu-se caminho para cursar alguns cursos de Filosofia, e, a partir de 1953, passou a se
estender a ascensão aos demais cursos superiores.

3
Até os dias atuais há muitos homens nos setores administrativos da educação, principalmente nos cargos mais
altos como, por exemplo, os ministros de educação.
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Mas, como já estava consolidada a tendência de as mulheres se dedicarem à docência,


houve um prolongamento dessa tradição ao magistério secundário. As mulheres acabavam por optar
por cursos de licenciatura não apenas menos rigorosos na sua admissão mas também mais baratos, o
que as levava a procurar as faculdades particulares, cujo custo reduzido de instalação lhes permitia se
expandir de forma maior do que os outros cursos superiores (BRUSCHINI e AMADO, 1988).
Os homens tinham privilégios na área educacional, pois eram considerados como
melhores “líderes” e freqüentemente ascendiam a outros cargos (como direção, inspeção, funções
técnicas e administrativas, professores da Escola Normal), abandonando o “espaço feminino” da sala
de aula (DEMARTINI e ANTUNES, 1993).
Os sistemas de gerenciamento e os procedimentos controladores (como programa
curricular e outros) iam se aperfeiçoando, e as professoras absorviam a ideologia do profissionalismo,
que as tornava cada vez menos responsáveis por métodos e técnicas, limitando-se a serem simples
aplicadoras do que lhes era imposto através de livros didáticos, programas etc.
A concepção tradicionalista de educação vigente na escola4 almejava tanto instaurar um
processo pedagógico modernizador quanto criar mentes dóceis, disciplinadas para possibilitar a
aceitação da ideologia capitalista. Os professores, em suas práticas, veiculavam esses valores,
distanciando a educação da realidade dos alunos.
Demartini e Antunes (1993) lembram que as circunstâncias que determinaram o processo
de feminização do magistério foram marcadas por atitudes preconceituosas como diferenças salariais,
curriculares e o conceito de “vocação”, induzindo as mulheres à escolha de profissões menos
valorizadas socialmente frente às profissões masculinas.
Esse processo que começou na colonização, com a desvalorização e subjugação feminina,
continuou na Independência, frisando a diferenciação da educação por gênero, e se perpetuou na
República com a inserção das mulheres nas salas de aulas infantis sob o comando dos homens, e
permaneceu dessa forma durante o restante do século XX.
Após a entrada maciça da mulher no magistério, o homem foi, até mesmo, impedido de
ingressar nos cursos normais. Confirma-se esse fato com o decreto 7941, promulgado em 1943 no
Distrito Federal (que na época era a cidade do Rio de Janeiro), que criou uma nova organização para o
Curso Normal, proibindo o ingresso de pessoas do sexo masculino no Curso Normal do Instituto de
Educação do Rio de Janeiro (MARTINS, 1996).
Com isso, a desvalorização da profissão foi aumentando, junto com a justificativa de que
a mulher deveria ter o “dom” para o magistério e, assim, seu salário (que já era pequeno) poderia ser
menor, até porque esse dinheiro não seria para sustentar a família, pois caberia ao homem essa função.
Entretanto, por mais que a educação tenha passado por algumas mudanças na prática
escolar, a feminização do magistério continua se perpetuando mais e mais, desvalorizando o papel da
mulher docente ano após ano. E o homem continuou se distanciando das salas de aulas infantis e
optando por trabalhar em outras áreas mais rentáveis, como as disciplinas específicas (Matemática,
História, Geografia, Biologia etc.) ou os cargos de comando na educação.
Além disso, o paternalismo ainda condiciona essa profissão. Podemos perceber isso no
comentário de Costa (1999), quando assinala que o professor é visto, na leitura dos artigos da revista
educacional “Nova Escola”, como o cientista, detentor do saber, e a professora como a carinhosa,
dedicada aos seus alunos e às atividades escolares.
Assim, essa revista e outros textos que circulam na nossa sociedade acabam por promover
a representação de que a mulher estaria sempre associada à afetividade, com um déficit no raciocínio.
Já o homem teria o domínio do saber técnico-científico, saber este tão valorizado em nossa sociedade.
As profissões também seriam escolhidas de acordo com essa diferenciação: as profissões consideradas
movidas pela emoção seriam próprias das mulheres e as ligadas à inteligência seriam patrimônio
exclusivo dos homens.

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Concepção vigente de forma exclusiva até meados do século XX.
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As mulheres acabam sendo influenciadas por receber essas representações e agem de


acordo com elas. Os meandros da escolha profissional docente, as influências que as mesmas
sofreram, a visão dos atributos que a mulher teria para o magistério e da diferenciação com o homem
que escolheria a profissão mais tarde (na faculdade), são questões que devem ser pesquisadas nas falas
das professoras para que haja uma tentativa de escolha profissional por uma “paixão”, mas que esteja
atrelada à luta por uma educação melhor e não à simples aceitação de uma condição imposta
socialmente.
Vale ressaltar aqui que não questionamos a opção profissional por “gosto”, porém isso
difere de achar que há uma vocação para essa profissão ou um dom inato. É preciso ter a consciência
de que não são os fatores biológicos, muito menos, exclusivamente pessoais, que levam uma pessoa a
fazer escolhas na sua vida, principalmente a opção profissional.
A memória coletiva interfere nas preferências individuais. A família pode influenciar na
escolha de uma profissão, uma pessoa que sirva de modelo pode servir de incentivo para a opção
profissional. Porém, destaca-se e questiona-se aqui o fato das alternativas que se apresentam para as
mulheres serem poucas, conforme Yannoulas (2001, p. 75) aponta:

É necessário destacar a legitimidade da escolha das mulheres que,


conscientemente, preferem ser donas de casa ou profissionais em áreas
femininas por tradição, no caso em que a escolha é verdadeira. Dito de outra
forma, quando se baseia no conhecimento de toda a gama de oportunidades
e possibilidades de desenvolvimento pessoal inerentes a uma profissão ou
ocupação. O que se discute é a restrição das possibilidades
oferecidas/percebidas pelas mulheres e não as escolhas baseadas na
liberdade pessoal (grifos da autora).

A autora afirma que não é o estimulo às mulheres para ingressarem em ocupações


tradicionalmente masculinas e de homens em profissões tradicionalmente femininas que levarão a
condições de igualdade no mercado de trabalho. Pois, esse estímulo não consideraria “as necessidades,
saberes e habilidades de cada pessoa, ou os obstáculos culturais que deverão enfrentar,
individualmente [...]” (2001, p. 82).
Almeida também considera que a profissão, apesar de ter sido desvalorizada com a
entrada das mulheres no magistério, continua a ser escolhida por mulheres que, apesar de tudo, gostam
da profissão, têm amor por ela. E não é esse fato que interfere nos preconceitos sobre o magistério,
pois gostar da profissão não impede de lutar para melhorar as condições de exercê-la:

[...] se por um lado educar e ensinar é uma profissão, por outro lado, não há
melhor meio de ensino e aprendizagem do que aquele que é exercido de um
ser humano para outro, isso também é um ato de amor. E indo mais além,
gostar desse trabalho, acreditar na educação e nela investir como indivíduo
também se configura como um ato de paixão, a paixão pelo possível [...]
Talvez resida aí a extrema ambigüidade do ato de ensinar e da presença das
mulheres no magistério (1998, p. 76).

A “extrema ambigüidade do ato de ensinar” está presente na continuidade da mulher no


magistério e no seu gosto pela profissão, a mulher não deve deixar de ter amor pela profissão, porém
um amor que não seja “cego”, quer dizer, que não a impeça de ver as imposições sociais para que ela
se submeta, que não lute. Investir na educação é lutar pelo possível, pela mudança dessa educação que
cada vez mais quer cada um no seu “devido lugar”, estagnado e obediente.
É necessário que a subjetivação que a sociedade exerce sobre a mulher não seja maior do
que seus impulsos pessoais e a vontade de lutar por ideais. Afinal, não há coisa melhor do que fazer do
seu ofício um prazer e um modo de batalhar pelo que se deseja.
É bom destacar que a memória coletiva não nos lembra que a docência foi profissão
masculina, e isso faz com que se ache natural a feminização do magistério. Assim, a memória forma
6175

uma escolha inerente nas mulheres pelo magistério. A memória coletiva deve ser vista não só pelo
vínculo com o poder, com seus processos de subjetivação que tentam constituir o indivíduo para
controlá-lo, e pela manutenção da tradição que quer conservar cada um “no seu local”. Se a memória
leva a esquecer as opções que não foram efetuadas e a demarcar as eleitas, é preciso que as alternativas
segregadas da memória sejam lembradas ou que as escolhidas sejam objeto de uma maior reflexão,
baseada na luta pela formação de uma memória não subjetivada ou singularizada.

Referências Bibliográficas

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