Você está na página 1de 83

Dr.

Manuel Alfredo Araujo Medeiros

PALEONTOLOGIA
Disciplina na Modalidade a Distância

São Luís
2012
Univerdade Federal do Maranhão

Reitor
Natalino Salgado Filho
Vice-Reitor
Antonio José Silva Oliveira
Pró-Reitor de Ensino
Sônia Maria Corrêa Pereira Mugschl
Diretor do Núcleo de Educação a Distância - NEaD
Othon de Carvalho Bastos Filho
Diretor do Núcleo de Tecnologia da Informação - NTI
Nélio Alves Guilhon
Coordenador do Curso de Ciências Biológicas
Wilma dos Santos Eugênio
Secretaria do Curso
Grazielle Austríaco Teixeira Mendes
Coordenador de Gestão Pedagógica
Reinaldo Portal Domingo
Coordenadora Pedagógica de Hipermídia para Aprendizagem
Rosane de Fátima Antunes Obregon
Coordenador Tecnológico
Leonardo de Castro Mesquita
Coordenador da Universidade Aberta do Brasil na UFMA
Othon de Carvalho Bastos Filho
Coordenador Adjunto da Universidade Aberta do Brasil na UFMA
Reinaldo Portal Domingo
Projeto Gráfico, Capa
Luciana Santos Sousa
Diagramação
Erika Veras de Castro
Revisora Técnica
Silvia Helena Arcanjo

Edição – Livro didático


Copyright @ UFMA/NEaD, 2011
Todos os direitos reservados à Universidade Federal do Maranhão.
Créditos:
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
UFMA – Núcleo de Educação a Distância
Av. dos Portugueses, s/n
Campus Universitário do Bacanga
Telefone: 098 - 3301-8057 e 3301-8055
e-mail: neadufma@ufma.br
site: www.nead.ufma.br

Medeiros, Manuel Alfredo Araujo

Paleontologia / Manuel Alfredo Araujo Medeiros. – São Luís: UFMA/


NEaD, 2012.

f.:79.

Inclui bibliografia.

1. Paleontologia I. Universidade Federal do Maranhão. II. Núcleo


de Educação a Distância. III. Título.

CDU 56
APRESENTAÇÃO
Esta apostila é destinada aos alunos do Curso de Graduação em Ciências
Biológicas da UFMA oferecido pelo NEAD e Depto de Biologia, Campus do Ba-
canga, São Luís.
A apostila possui conteúdo suplementar que complementa, mas não substitui
o livro didático indicado: CARVALHO, I.S. 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Ja-
neiro: Interciência. Os alunos da disciplina Paleontologia devem fazer a leitura dos
capítulos do livro, quando indicados nos capítulos da apostila como Leitura Obriga-
tória ou buscar fontes alternativas, quando sugerido.
O conteúdo aqui apresentado inclui os principais temas abordados em Pale-
ontologia, desenvolvidos em texto e ilustrações, em nível adequado para alunos de
graduação.
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 7

CAPÍTULO 1 | INTRODUÇÃO E HISTÓRICO ..................................................... 11

CAPÍTULO 2 | ROCHAS E BACIAS SEDIMENTARES ......................................... 17


2.1. Tipos de rochas sedimentares ...................................................................... 17

SUMÁRIO
2.2. Bacias sedimentares .................................................................................... 18
2.3. Formações geológicas .................................................................................. 22
2.4. Bacias sedimentares brasileiras .................................................................... 23

CAPÍTULO 3 | ESTRATIGRAFIA .......................................................................... 25


3.1. Litoestratigrafia e Bioestratigrafia......................................................................... 26
3.2. Biozonas ..................................................................................................... 27
3.3. Correlação................................................................................................... 28

CAPÍTULO 4 | DATAÇÃO ..................................................................................... 31


4.1.Datação relativa .......................................................................................... 31
4.2.Datação absoluta .......................................................................................... 34
4.3.Datando os fósseis ....................................................................................... 36

CAPÍTULO 5 | TAFONOMIA ................................................................................ 39


5.1. Bioestratinomia e Fossildiagênese ............................................................... 40
5.2. Soerguimento e erosão ................................................................................ 42
5.3. Interpretação paleoecológica......................................................................... 43

CAPÍTULO 6 | PALEONTOLOGIA E EVOLUÇÃO BIOLÓGICA............................ 45


6.1. A natureza do processo evolutivo.................................................................. 45
6.2. Moldando a diversidade................................................................................. 46
6.3. Especiação.................................................................................................... 49
6.4. Gradualismo versus Pontuísmo..................................................................... 50
6.5. As duas faces da Evolução............................................................................ 51

CAPÍTULO 7 | PALEOBIOGEOGRAFIA ............................................................... 53


7.1. Dispersão ..................................................................................................... 54
7.2. Vicariância.................................................................................................... 56
7.3. Desvendando a história geográfica............................................................... 56
CAPÍTULO 8 | DERIVA DOS CONTINENTES........................................................ 59
8.1. A Teoria de Deriva Continental..................................................................... 60
8.2. Teoria da Tectônica Global............................................................................ 62

CAPÍTULO 9 | TAXONOMIA E SISTEMÁTICA....................................................... 65


9.1. Taxonomia e sistemática lineanas................................................................. 66
9.2. Sistemática Filogenética................................................................................ 68
9.3. Parataxonomia.............................................................................................. 69

CAPÍTULO 10 | PALEOECOLOGIA.................................................... 71
10.1. Assembléia fóssil e Paleocomunidade ........................................................ 71
10.2. Paleoautoecologia e Paleosinecologia......................................................... 72

CAPÍTULO11 | HISTÓRIA DA VIDA NA TERRA................................................... 75


11.1. Fósseis como balizas do tempo geológico.................................................... 75
11.2. Principais subdivisões do tempo geológico.................................................. 76

CAPÍTULO 12 | REGISTROS FÓSSEIS NO BRASIL E NO MARANHÃO.............. 78

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 81
1

CAPÍTULO

PALEONTOLOGIA
1.1 Introdução e histórico

Paleontologia é a ciência que estuda organismos vivos que viveram em épo-


cas passadas. O objeto de análise da Paleontologia são os fósseis, que são os pró-
prios restos de esqueletos de vertebrados, invertebrados, microrganismos, elemen-
tos dissociados como ossos isolados, dentes, escamas, espinhos, apêndices, troncos,
folhas, sementes, pólens etc., ou ainda vestígios de atividades de organismos, como
pegadas, rastros, tocas, excrementos etc. Estes restos preservados, na maioria das
vezes em rochas sedimentares, podem revelar uma gama de informações sobre a
morfologia destes organismos, a maioria já extinta, bem como seus habitats, com-
portamentos, clima a que estavam adaptados, e até mesmo inter-relações ecológicas
com outras formas de vida no seu ambiente de origem. A palavra fóssil vem do ter-
mo grego fossilis, significando extraído da terra.
De forma amadorística, a paleontologia vem sendo praticada há séculos, por
curiosos, colecionadores e entusiastas interessados em fósseis, mas só passou a ser
sistematicamente empregada como abordagem investigativa a partir do século XVII,
tendo sido formalizada no século XIX com o trabalho de Georges Cuvier: “Recher-
che Sur les Ossemens Fossiles de Quadrupèds” (Fig. 1), publicado em 1812. Tem o
mérito de ser a ciência que instigou os cientistas a abandonarem a ideia de criacio-
nismo para adotar uma visão evolucionista como explicação para as mudanças na
flora e fauna registradas no documentário fóssil resgatado e estudado. Estes registros
mostravam que as comunidades biológicas se sucediam ao longo do tempo, num
processo natural que provocava extinção de formas de plantas, animais e micror-
ganismos, e surgimento de outras. Esse fato, claramente revelado pelas sucessões
florísticas e faunísticas nas rochas sedimentares, era incompatível com a visão de
12

uma natureza biológica estática que teria surgido em um evento de criação e não
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

poderia ser modificada. Mas antes que esta mudança marcante acontecesse, muitos
estudiosos de fósseis tentaram conciliar sua existência com o dogma criacionista.
No século XX, a Paleontologia experimentou um notável avanço nas suas
abordagens e metodologias, melhorando substancialmente a capacidade dos pale-
ontólogos de resgatar e interpretar o registro fóssil e de contextualizar estas informa-
ções em sofisticadas teorias evolutivas e biogeográficas que tinham como objetivo
contar a história geológica e biológica do planeta Terra. Grande parte deste aperfei-
çoamento foi motivada pela possibilidade de alguns fósseis, principalmente micros-
cópicos, ajudarem decisivamente na localização de jazidas de combustíveis fósseis
como petróleo, carvão mineral e gás, de alto valor econômico e estratégico, o

Figura 1. Publicação de Georges Cuvier (Tradução: Investigação sobre os ossos fósseis de quadrúpe-
des) de 1812, considerada a que iniciou formalmente a Paleontologia como ciência.
______________________________________________________________________

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


13

que motivou muitas empresas a investir maciçamente em tecnologias de identifica-


ção e datação de assembleias fósseis.
Para compreender satisfatoriamente as informações encerradas no registro
fóssil são necessárias uma análise biológica e outra geológica, integradas, que es-
clareçam efetivamente o conjunto de informações disponíveis no registro fóssil. Isso
porque restos orgânicos fossilizados resultam de uma interação de fatores biológicos
e geológicos dinâmicos que precisam ser desvendados durante a análise. Portanto,
a Paleontologia é uma interface entre Biologia e Geologia, exigindo o emprego de
conhecimento aprofundado destas duas ciências.
Os primeiros curiosos que se dedicavam à busca e tentativa de compreensão
de fósseis, séculos ou mesmo milênios atrás, careciam de teorias científicas para dar
um sentido adequado aos seus achados. Assim, no passado, muitas interpretações
da natureza do registro fossilífero eram permeadas por justificativas sobrenaturais. É
muito provável que várias lendas tenham sido inspiradas em fósseis, porque as es-
truturas biológicas originais são comumente modificadas pelos processos naturais de
fossilização (fossildiagênese), conferindo ao material exumado uma aparência estra-
nha, como se tivesse sido afetado por algum evento inexplicável. Troncos de árvores
fossilizadas, por exemplo, são comumente encontrados completamente petrificados;
ossos de vertebrados podem ser intensamente mineralizados por compostos de ferro,
manganês, silício, entre outros, dando aos restos um peso e uma coloração diferentes
dos de um esqueleto normal. Isso, somado ao fato de muitos fósseis serem de espé-
cies de aparência exótica e desconhecida para seus antigos coletores e avaliadores,
acabava motivando deduções fantásticas, dentro de um universo mitológico. Lendas
como a do dragão chinês, por exemplo, são fáceis de associar ao registro dos fósseis
porque parte do território da China é desértico e repleto de fósseis de dinossauros,
alguns muito bem preservados. O achado de um réptil gigante desconhecido por
antigos moradores de áreas rurais há centenas ou milhares de anos atrás facilmente
motivariam a criação da lenda de um animal mítico que teria vivido em um mundo
lendário. Outra estória fantástica que pode ter sido inspirada ou influenciada por
achados fósseis é a da medusa: criatura mitológica maligna que seria capaz de petri-
ficar instantaneamente quem ousasse olhar diretamente nos seus olhos. Restos petri-
ficados de animais, ou mesmo esqueletos parcialmente alterados de seres humanos
podem ter ajudado a criar ou consolidar a lenda na Grécia antiga.
Um fato de interpretação fantástica de um fóssil que ficou conhecido foi o de
uma turnê nos EUA, em 1845, do Hydrarchos (Fig. 2), propagandeado como uma
grande serpente marinha citada em escrituras, mas que, na verdade, tratava-se de
fósseis de Basilosaurus, uma baleia primitiva.
Foi somente no século XVII que as primeiras interpretações verdadeiramente
científicas começaram a ser empregadas. A partir daí, gerações de notáveis natura-
listas (Fig. 3) conduziriam a Paleontologia e o estudo da Evolução Biológica para
um universo verdadeiramente científico. Estas mudanças de abordagem tanto em
Geologia quanto sobre a natureza dos fósseis, passaram a nortear as metodologias
de investigação, direcionando a análise das camadas sedimentares e de seu conteú-
do fóssil de forma que pudessem fornecer informações verdadeiramente reveladoras
sobre os processos naturais que as teriam produzido. Antes disso, as interpretações

PALEONTOLOGIA
14

dos estudiosos sobre a natureza dos fósseis eram tão imaginativas quanto absur-
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

das. Achava-se, por exemplo, que alguns fósseis tinham caído do céu ou da Lua,
penetrando na rocha sólida. Outra crença que perdurou por séculos foi a de que
eles eram naturalmente esculpidos nas rochas por uma força criativa da natureza.
Robert Hooke, em seus estudos de estruturas microscópicas publicados em 1668,
contradisse essa visão arcaica ao concluir que os tecidos de árvores petrificadas re-
presentavam tecidos de árvores comuns que teriam sido modificadas (mineralizadas)
depois de enterradas e que os fósseis representavam informações importantes para
a compreensão de antigas formas de vida.

Figura 2. Ilustração do Hydrarchos (rei dos mares) exposto em turnê em várias cidades, incluindo
Boston e Nova York (EUA), em 1845, por Albert Koch, e apresentado como uma serpente marinha
mítica citada em escrituras antigas. A criatura tratava-se, na verdade, de restos de uma baleia primiti-
va, incluindo partes de mais de um esqueleto, e erroneamente montado para parecer uma serpente.
Koch era um entusiasta sensacionalista, comerciante de fósseis, e conseguiu vender o Hydrarchos
para um Museu de Berlim. À direita, detalhe do cartaz de propaganda da exposição distribuído na
época.

______________________________________________________________________
O dinamarquês Nicolau Steno, em 1669, interpretou acertadamente que os
fósseis não tinham sido encerrados em rocha sólida, explicando que, na verdade,
estruturas orgânicas, como dentes, ossos e conchas, teriam sido envolvidas por sedi-
mentos em movimento, como areia e lama, que somente depois teriam endurecido
progressivamente, guardando o registro de animais de épocas passadas. Estas in-
terpretações são bastante óbvias hoje, mas na época eram ousadas e encontravam
resistência entre os que preferiam cultuar as antigas interpretações fantásticas.
Nicolau Steno estabeleceu alguns dos fundamentos da geologia sedimentar,
como a Lei da Superposição das Camadas, afirmando que quando um estrato se-
dimentar se formou não existia outro sobre ele e o material que o compunha não
era ainda consolidado, o que significava que as camadas eram progressivamente
mais recentes de baixo para cima em uma sequência, isto é, as camadas mais basais
são as mais antigas. Definiu o Princípio da Horizontalidade Original, argumentando
que os estratos se depositaram originalmente em um plano paralelo ao horizonte e
somente depois de muito tempo algumas sequências teriam sido deformadas. Intro-
duziu também o Princípio da Continuidade Lateral, observando que os sedimentos
formando o estrato tendiam a ser contínuos em uma vasta área da superfície.
As novas interpretações sobre a natureza das rochas sedimentares e dos fós-

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


15

seis avançaram para uma revolucionária teoria publicada pelo naturalista escocês
James Hutton, em 1778, que rejeitava completamente a influência de acontecimen-
tos sobrenaturais na formação das rochas e dos fósseis. Hutton assumiu que as leis
naturais vigentes na atualidade eram uniformes e, portanto, as mesmas que opera-
ram no passado. Assim, para compreender o registro das rochas e dos fósseis, era
necessária uma detalhada compreensão destas leis. Ele introduziu a ideia de que “o
presente é a chave para compreender o passado”, que ficou historicamente conheci-
da como Atualismo ou Uniformitarismo.

Figura 3. Naturalistas pioneiros em abordagens científicas no estudo dos fósseis, que colaboraram
com a criação da Paleontologia, com sua consolidação e/ou aplicação, ou ainda com o estabeleci-
mento das ideias sobre evolução biológica. Ver detalhes no texto.
______________________________________________________________________

A Paleontologia como ciência formal foi praticada primeiramente por Ge-


orges Cuvier, um notável zoólogo e anatomista francês. Ele foi o responsável pela
formalização da ideia de extinção, admitindo que formas de vida encontradas no
registro fóssil tinham desaparecido completamente. Na época, tendia-se a achar,
pela doutrina criacionista, que todas as espécies que foram criadas ainda existiam
e que poderiam ser encontradas vivas em algum lugar do planeta. Cuvier ficou
conhecido pela sua interpretação da sucessão de diferentes tipos de rochas e fósseis
em uma sequência. Em 1796 ele publicou a dedução de que as mudanças bruscas
observadas de uma camada para outra, no registro geológico, eram o testemunho de
catástrofes eventuais, como inundações cataclísmicas, que teriam assolado amplas
regiões da Terra, dizimando as formas de vida existentes. Depois de cada catástrofe,
o novo ambiente formado, muito diferente do anterior, seria colonizado por novas
espécies. O Catastrofismo de Cuvier se contrapunha radicalmente ao Uniformita-

PALEONTOLOGIA
16

rismo de Hutton. Hoje sabe-se que as ideias cataclísmicas de Cuvier são, em sua
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

maioria, interpretações equivocadas de processos geológicos mal compreendidos na


época. Admite-se a existência de catástrofes naturais episódicas, mas elas são raras
no registro das rochas e dos fósseis, e não estavam relacionadas com a maioria das
sequências estudadas por Cuvier. Atualmente, a Geologia e Paleontologia aceitam
o princípio do Uniformitarismo como fundamento válido para a compreensão dos
registros antigos.
Cuvier também teve uma participação destacada no emprego de assembleias
fossilíferas para definir camadas de rochas sedimentares, ordenando-as em relação
ao tempo. Seus trabalhos com o instrutor da Escola de Mineração de Paris, Ale-
xandre Brongniart, publicados em 1808, foram pioneiros no emprego da sucessão
faunística em uma sequência ascendente de rochas sedimentares como meio de
identificar e ordenar diferentes tempos geológicos. Essa abordagem foi aperfeiçoada
e extensivamente empregada como ferramenta prática de mapeamento geológico
pelo naturalista inglês William Smith que, depois de cerca de 20 anos de trabalho de
campo, publicou um detalhado mapa geológico da Inglaterra, em 1815. Destas ini-
ciativas surgiriam posteriormente a Estratigrafia e Bioestratigrafia, importantes ramos
das ciências da Terra que, no século XX, revolucionariam o estudo das sequências
de rochas sedimentares e a prospecção de recursos minerais, como petróleo, carvão
e gás, em bacias sedimentares.
No século XIX tanto a Geologia como a Paleontologia se consolidariam como
ciências irmãs. A aplicação dos novos conhecimentos sobre o registro fóssil teria
marcantes consequências na compreensão da dinâmica dos processos biológicos ao
longo do tempo.
A ampla discussão sobre criacionismo e evolucionismo motivada pela pu-
blicação, em 1809, das ideias evolucionistas do francês Jean Lamarck prepararam
o século XIX para as profundas mudanças que ocorreriam nas concepções sobre
a natureza biológica e a natureza dos fósseis. Dois dos cientistas mais influentes
nesta fase decisiva de aperfeiçoamento tanto da Geologia quanto da Paleontologia
foram o geólogo britânico Charles Lyell e seu sobrinho naturalista, Charles Darwin.
Este último acertadamente empregaria a interpretação do registro dos fósseis como
evidência das transformações promovidas pelo mecanismo natural descrito em sua
nova e revolucionária teoria de evolução biológica publicada em 1859.
A Paleontologia experimentou um notável avanço ao longo do século XX,
com o emprego de equipamentos e tecnologias avançadas e, sobretudo, com o de-
senvolvimento das técnicas de datação absoluta das rochas e dos fósseis, que per-
mitiram ordenar com muito mais acuidade os eventos biológicos importantes regis-
trados no tempo geológico e compreender detalhes da história evolutiva de grupos
de plantas, animais e microrganismos, favorecendo a revelação de um panorama
nítido da história da vida na Terra. A perspectiva para o século XXI é de que, com
o contínuo desenvolvimento de novas técnicas, muito mais informações possam ser
resgatadas dos fósseis e este panorama possa se tornar ainda mais revelador.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


2

CAPÍTULO

ROCHAS E BACIAS SEDIMENTARES


2.1 Tipos de rochas sedimentares

Rochas sedimentares são, em sua maioria, formadas pelo acúmulo de clastos,


ou seja, de partículas geradas a partir da decomposição de rochas pré-existentes. A
erosão do vento e da água, pela chuva ou por correntes; as variações de tempera-
tura; o ataque químico por compostos naturais cáusticos e a ação biológica podem
enfraquecer rochas sólidas, dissociando-as progressivamente. As partículas resultan-
tes desta dissociação (clastos) são transportadas por gravidade, pelo vento, ou por
correntes de rios, lagos, mares e oceanos. Esse transporte, quando continuado por
longo tempo, causa o que se chama de amadurecimento dos clastos, que é a mo-
dificação de sua conformação original grande e angulosa para uma estrutura muito
pequena e arredondada. Dependendo do peso e da forma de um clasto em movi-
mento, a corrente que o transporta promoverá uma seleção, concentrando em um
depósito aqueles com peso e estrutura similares. Diferentes intensidades de corrente
selecionarão clastos de diferentes características. A corrente de um rio, por exemplo,
tem poder de tração para acumular seixos de dimensões centimétricas, enquanto a
fraca corrente de um lago tende a deixar sedimentar os mais finos grãos de argila,
acumulando em seu fundo uma lama fina e plástica.
Outro tipo de rocha sedimentar é formado pelo acúmulo de compostos quí-
micos que estavam dissolvidos na água ao invés de transportados em suspensão.
Estas rochas, diferentes das rochas clásticas, se formam pela precipitação química
quando a água se torna supersaturada daquele composto, ou quando há alguma
mudança química que favoreça a precipitação do composto. Os tipos mais comuns
são o carbonato de cálcio (CaCO3), o gesso (gipsita) e sais como a halita. Ambientes
onde estes processos são comumente observados são corpos d’água restritos, como
lagos e mares confinados, onde a evaporação tem seus efeitos extremados, provo-
18

cando o acúmulo de compostos por supersaturação (evaporitos).


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

Dá-se o nome de fácies a uma determinada camada geológica formada em


uma situação ambiental específica, que se acumulou como consequência de circuns-
tâncias próprias daquele ambiente. Estas circunstâncias incluem, destacadamente, a
maior ou menor força de tração da corrente. Um ambiente como uma planície fluvial
é formado por vários subambientes, como o canal do rio, as margens e pequenos
lagos e charcos que se formam próximos ao canal. Cada um destes subambientes
depositará uma fácies típica. O conjunto destas fácies relacionadas (faciologia) é a
chave para que o geólogo interprete o ambiente que depositou aquela sequência
sedimentar no passado.

2.2. Bacias sedimentares

A Terra não é um planeta totalmente sólido. Grande parte do seu interior é


composto de rochas e minerais em estado fluido, em consequência do calor gerado
pela grande concentração de elementos químicos radioativos no núcleo. A crosta
sólida da Terra está assentada sobre uma espessa camada de rocha chamada manto,
que em determinadas regiões pode apresentar certa plasticidade e/ou estar derretida,
e em outras, tem características de rocha dura (Fig. 4). Esta situação cria certa insta-
bilidade da crosta, que tende a se movimentar constantemente sobre a astenosfera,
que é a camada mais superficial do manto. A plasticidade do manto combinada ao
seu calor intenso produz correntes de rocha fluida que também atuam sobre a cros-
ta sobrejacente, forçando-a a se movimentar. Esse conjunto de fatores estabeleceu
um equilíbrio dinâmico entre a superfície da Terra e as camadas interiores. Certas
zonas da crosta são mais afetadas pelas forças que vêm das profundezas, estando
mais sujeitas a fraturamentos associados a abalos sísmicos e vulcanismo. Como estes
processos estão sempre em operação, acabam por influenciar toda a crosta, rede-
senhando lenta, mas constantemente, a conformação da superfície da Terra. Uma
análise mais aprofundada deste mecanismo será feita mais adiante no texto, quando
forem abordadas as teorias de Deriva Continental e Tectônica Global.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


19

Figura 4. Seção transversal da Terra, exibindo suas várias camadas e a crosta, na superfície. O es-
quema à direita corresponde à área subtriangular delimitada no globo. O núcleo interno é sólido,
enquanto o núcleo externo e o manto são formados por rocha fluida.
______________________________________________________________________

A instabilidade da crosta cria variados padrões de movimentação, incluindo


deslizamentos laterais de placas tectônicas e movimentos verticais, tanto ascendentes
(soerguimento) quanto descendentes (subsidência). Ao longo do tempo, algumas
zonas tectonicamente ativas podem se tornar mais estáveis enquanto a atividade sís-
mica passa a se concentrar em outras regiões da crosta. O conjunto dos efeitos deste
complexo mecanismo deixou profundas marcas na crosta e no relevo da superfície
da Terra, registrando parte importante da história geológica do planeta ao longo dos
seus bilhões de anos de existência.
Outra dinâmica importante que ocorre na superfície da Terra é a mudança de
temperatura. O planeta já passou por vários períodos de aquecimento e resfriamen-
to, com direta consequência no nível dos oceanos. Quando a Terra passa por um
período de resfriamento, as calotas polares se expandem, retendo água nos extremos
latitudinais. Deste modo, a atmosfera perde muito da sua umidade, que fica aprisio-
nada na forma de gelo e concentrada em dois extremos do planeta. O resultado do
esfriamento do planeta é a diminuição de áreas úmidas e o abaixamento do nível
dos mares e oceanos. Inversamente, quando a Terra aquece, as calotas derretem,
devolvendo aos oceanos e mares um enorme volume de água, causando a elevação
do nível dos mares e oceanos. A atmosfera também recebe mais vapor d’água, o que
causa uma expansão das regiões úmidas, como florestas e pântanos.
Estes dois processos: a episódica oscilação do nível dos oceanos e mares
(eustasia) e o remodelamento do relevo em consequência dos movimentos da crosta
criaram uma complexa combinação de situações que fizeram da história geológica e
climática da Terra um quebra-cabeça desafiador. Por exemplo, onde hoje é a parte
mais elevada do relevo terrestre, a cordilheira do Himalaia, há camadas de rochas
com conchas marinhas, mostrando que ali já foi fundo de mar em um passado dis-
tante. O Oceano Atlântico Sul, por sua vez, separa hoje em milhares de quilômetros

PALEONTOLOGIA
20

regiões que já foram contíguas a centenas de milhões de anos atrás, como o litoral
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

do Maranhão e Gana e Costa do Marfim, na África.


Como os mares, oceanos e a superfície dos continentes vêm sendo os princi-
pais cenários para a evolução das formas de vida é obvio que essa dinâmica intera-
tiva de movimentação da crosta terrestre e das grandes massas de água influenciou
fortemente os caminhos evolutivos dos mais variados grupos de seres vivos, como
microrganismos, plantas e animais. Um dos principais tipos de repositório desta lon-
ga história biológica são as bacias sedimentares, que são áreas deprimidas da super-
fície, tanto dos continentes quanto dos mares e oceanos, formadas em consequência
de deformações e fraturamentos da crosta. O constante afundamento sofrido pela
área de uma bacia sedimentar continental faz com que ali se concentrem bacias
hidrográficas e lagos, que naturalmente se localizam em áreas baixas do relevo. Es-
tes corpos d’água carregam grandes volumes de sedimentos (areia, lama, cascalho)
que se concentram na bacia sedimentar, guardando em seu interior os restos destes
microrganismos, animais e plantas mortos, que eventualmente podem se fossilizar
e documentar aquele determinado episódio de tempo em que viveram. Alternati-
vamente, as bacias marinhas e oceânicas concentram nas camadas sedimentares,
depositadas pelas correntes, os sedimentos e os restos de organismos que viveram
tanto no fundo quanto na lâmina d’água e que, ao morrer, se depositaram e foram
aprisionados pelas camadas sedimentares em formação.
O vento também é um importante vetor de deslocamento e concentração de
sedimentos, principalmente em áreas desérticas. Quando um deserto está assentado
sobre uma bacia sedimentar em processo de subsidência, as camadas de areia vão
se empilhando lentamente, umas sobre as outras, e aquele episódio ambiental e cli-
mático vai sendo registrado nas camadas sedimentares que se acumulam.
Os sedimentos, por sua vez, são formados pela ação de vários fatores erosi-
vos que operam tanto nas áreas emersas quanto no fundo de oceanos e mares.
Diferentes ambientes reúnem e organizam diferentes combinações de sedimentos,
deixando neles assinaturas tanto geológicas quanto biológicas que podem ser pre-
servadas nas rochas sedimentares e interpretadas por geólogos e paleontólogos. Um
deserto, por exemplo, limita a organização dos sedimentos a um padrão definido
pela movimentação das dunas que, por sua vez, deixam marcas resultantes dos di-
ferentes planos de inclinação das camadas de areia. Desertos também são pobres
em vida e, portanto, deixam registros escassos de atividade biológica. Por outro
lado, uma planície fluvial em área densamente vegetada deixará assinaturas geo-
lógicas e biológicas bem mais variadas e complexas. Em antigas rochas formadas
em um ambiente assim será possível identificar camadas formadas pelo próprio rio
(depósitos de calha) e outras que testemunham a concentração de areia em suas
margens, nas curvas do rio (barras); será ainda possível identificar as áreas adjacen-
tes ao canal principal, inundadas somente nos episódios de grande cheia (planície
de inundação). O registro fóssil tenderá a ser muito mais numeroso e variado que o
de um deserto, visto que em áreas úmidas há muito mais biomassa e diversidade de
formas de vida. Assim, são estas assinaturas geológicas e biológicas que permitem
aos pesquisadores reconstituir os ambientes antigos onde foram formadas camadas
sedimentares e fósseis aprisionados nelas.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


21

O tamanho das bacias sedimentares varia enormemente (Fig. 5). Algumas


bacias incluem áreas onde caberiam vários países (e.g. Bacia do Paraná; Bacia do
Parnaíba), algumas são pequenas, como Araripe e Almada, enquanto outras são
minúsculas, como a Bacia de Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro.
Os processos que provocam movimentação da crosta, definindo ou influen-
ciando o relevo da superfície dos continentes, dos mares e dos oceanos são comple-
xos e ao longo de muito tempo podem variar em intensidade e podem se deslocar
de um ponto para outro da crosta. Em uma bacia sedimentar grande, pode ser
observado, por exemplo, subsidência mais acentuada em um determinado ponto
(depocentro) onde se concentram camadas sedimentares mais profundas e espessas.
Nas bordas da bacia estas mesmas camadas, depositadas na mesma época, podem
ser menos espessas e mais superficiais porque ali a subsidência foi mais discreta.
Áreas da bacia podem estar sendo soerguidas enquanto outras estão afundando.
Falhas tectônicas podem estar causando desalinhamento das camadas formadas em
alguns pontos da bacia, enquanto em outros, mais estáveis, a arquitetura original das
sequências está preservada. Todos estes fatores interagem para tornar complicada a
interpretação dos acontecimentos geológicos e biológicos em uma bacia sedimentar
suficientemente grande e antiga.

Figura 5. Bacias sedimentares do território brasileiro.


______________________________________________________________________

PALEONTOLOGIA
22

Um dos efeitos que interferem decisivamente no registro sedimentar e fossi-


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

lífero é a interrupção da subsidência e sua posterior retomada muito tempo depois.


Na verdade, frequentemente uma bacia sedimentar passa mais tempo da sua exis-
tência estabilizada sem sofrer subsidência do que propriamente afundando e acu-
mulando registro sedimentar. Somente nos pulsos de subsidência, que podem durar
desde alguns milhões de anos até dezenas a centenas de milhões de anos, é que as
camadas sedimentares se acumularão para preencher o espaço deixado na depres-
são. Quando a bacia para de sofrer afundamento, o que pode perdurar por dezenas
a centenas de milhões de anos, todos os processos de deposição de sedimentos que
ocorrem na superfície serão eventualmente apagados pela erosão porque não foram
afastados da dinâmica da superfície, ou seja, não foram levados para as profundezas
da bacia onde estariam protegidos da erosão.
Quando há uma sequência sedimentar separada de outra sobrejacente com
um destes pulsos de não subsidência entre elas, o efeito é uma mudança brusca na
sequência litológica e no registro fóssil. Isso porque tudo o que aconteceu, tanto na
dinâmica sedimentar quanto biológica, durante o tempo em que não houve afun-
damento da bacia, não ficou registrado porque permaneceu na superfície e acabou
sendo deteriorado e apagado. Chama-se hiato este tempo que transcorreu, mas não
foi registrado na bacia (Fig. 8). Ele é identificado quando se compara o registro com
o de outra bacia que estava subsidindo nesta época e registrou o intervalo. Muito do
que Cuvier interpretou no início do século XIX como mudanças súbitas no registro
fóssil devido a catástrofes de dimensões cataclísmicas são, na verdade, hiatos no re-
gistro sedimentar e fossilífero, que não eram bem entendidos naquela época. Então,
ele interpretou a mudança súbita nas assembleias de fósseis e nos tipos de rocha
como o resultado de ações súbitas e extremas da natureza, principalmente inunda-
ções catastróficas. Na verdade, a mudança de uma sequência para outra foi lenta e
gradual, por muitos milhões de anos, mas a ausência do registro intermediário causa
a impressão de uma mudança brusca entre duas sequências. Por isso o catastrofismo
de Cuvier foi definitivamente abandonado.

2.3. Formações geológicas

De maneira geral, uma formação geológica é um conjunto de rochas que


tem características próprias, em relação à sua composição, idade, origem ou ou-
tras propriedades similares. Em uma bacia sedimentar, a formação geológica é uma
sequência de rochas formadas por um determinado ambiente, ao longo de um de-
terminado intervalo de tempo, podendo incluir milhares a milhões de anos de regis-
tro. A faciologia (conjunto de fácies da sequência) identifica os subambientes (e.g.
praia, duna, laguna, canal, córrego, margem, charco) e o ambiente como um todo
(e.g. deserto, estuário, planície fluvial, sistema lacustre, plataforma continental etc.).
Formações geológicas também podem incluir camadas de rocha não sedimentar

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


23

como, por exemplo, derrames de lava e camadas de cinza vulcânicas, ou mesmo


sequências de rochas metamórficas. Os fósseis associados aos sedimentos revelam
a flora, fauna e os microrganismos que habitavam aquele ambiente. Exemplos de
formação geológica são: Formação Rio Bonito, localizada na Bacia do Paraná e de
idade permiana inferior, foi formada em ambiente costeiro, composto por rios, del-
tas, baías e estuários com planícies de maré (áreas de praia) e plataforma marinha
rasa, numa época em que parte da Bacia do Paraná era um grande golfo do antigo
supercontinente Gondwana; Formação Botucatu (Bacia do Paraná) foi formada por
um deserto jurássico e é composta destacadamente por grandes dunas fossilizadas.
Formação Santana, na Bacia do Araripe (Ceará), que representa um amplo sistema
lacustre do Cretáceo Inferior; e Formação Alcântara, Bacia de São Luís, formada em
ambiente transicional estuarino, incluindo depósitos continentais e marinhos rasos
do Cretáceo médio.

2.4. Bacias sedimentares brasileiras

Pela sua grande extensão territorial, o Brasil inclui várias bacias sedimenta-
res, de diferentes tamanhos. Algumas muito antigas, tendo se diferenciado na Era
Paleozoica, enquanto outras, menores, se individualizaram nas Eras Mesozoica ou
Cenozoica (Fig. 5). As pequenas bacias que ocorrem ao longo da costa diferencia-
ram-se justamente como consequência dos processos de fraturamento e subsidência
relacionados à separação dos continentes sul-americano e africano. Na figura 6 estão
os arcabouços simplificados de duas grandes bacias brasileiras, mostrando as defor-
mações que sofreram ao longo do tempo e os desalinhamentos das suas camadas
sedimentares em diferentes regiões.

PALEONTOLOGIA
24
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

Figura 6. Esquemas ilustrativos mostrando seções transversais de duas das grandes bacias brasileiras.
Note que a profundidade e espessura das sequências de rocha (cada uma das camadas de tonalidade
distinta) variam em diferentes regiões de cada bacia. Estas sequências, que representam intervalos de
tempo específicos, estão deformadas e/ou desalinhadas devido a sucessivos movimentos da crosta,
incluindo subsidência e soerguimento.
Fontes: PETROBRAS e CPRM.

______________________________________________________________________

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


3

CAPÍTULO

ESTRATIGRAFIA
Leitura obrigatória: ROHN, R. 2010. Uso estratigráfico dos fósseis. In: CARVALHO, I.S. (ed.) 2010.
Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Páginas 79 a 91.

Quanto mais antiga é uma bacia sedimentar, mais ela acumulou deformações
e desalinhamentos em suas sequências sedimentares. Bacias tectonicamente muito
ativas podem ter suas sequências muito alteradas em um tempo mais curto. Cama-
das de uma determinada época podem estar expostas na superfície em um ponto
da bacia e a grandes profundidades em outro ponto da mesma bacia. No desenho
esquemático das bacias do Amazonas e Parnaíba (Fig. 6) isso fica evidente quando
observamos as camadas do Siluriano que, dependendo da região da bacia, podem
estar a profundidades muito diferentes. Esta desorganização das camadas resulta do
próprio processo progressivo de subsidência e também dos episódios de soergui-
mento. Uma análise confiável do registro tanto geológico quanto paleontológico de
uma bacia como um todo depende do conhecimento de como os estratos estavam
originalmente dispostos e do grau de desorganização que a bacia sofreu. Para tanto
é necessário um laborioso esforço para correlacionar as sequências de camadas e
organizá-las no tempo. Uma forma de fazer isso é analisar a faciologia detalhada de
cada sequência e usar as características de cada conjunto (formação geológica) para
mapear sua ocorrência em diferentes regiões da bacia. O posicionamento relativo
entre as diferentes formações (qual está acima e qual está abaixo) são também cru-
ciais para a compreensão da organização temporal das sequências. Esta abordagem
é chamada Estratigrafia (estrato = camada) e é fundamental para um mapeamento
detalhado de todas as sequências de uma bacia.
26
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

3.1. Litoestratigrafia e Bioestratigrafia

Quando a análise estratigráfica é centrada nas sequências geológicas, sem


levar em conta o conteúdo fossilífero que eventualmente pode estar encerrado nelas,
a abordagem recebe o nome de Litoestratigrafia.
Desde o início da prática do que viria a ser conhecida como estratigrafia,
viu-se a utilidade que os fósseis encerrados nas sequências poderiam ter para iden-
tificar camadas e inter-relacioná-las no espaço e no tempo. Como relatado acima,
os pioneiros nesta prática foram Georges Cuvier e Alexandre Brongniart, na França,
e William Smith, na Inglaterra. Eles perceberam que as assembleias fossilíferas se
sucediam no tempo e não se repetiam em diferentes sequências. Assim, passaram a
usar os conjuntos fossilíferos para estabelecer limites temporais nas sequências. Es-
ses conjuntos de fósseis poderiam ser mapeados em amplas regiões, servindo como
balizas para delimitar as relações de tempo entre as sequências, o que era a chave
para um mapeamento adequado das camadas. Este uso de fósseis na análise estra-
tigráfica ficaria conhecido como Bioestratigrafia.
No século XX, com o desenvolvimento das técnicas de perfuração prospec-
tiva para busca de combustíveis fósseis, como petróleo, carvão e gás, pôde-se obter
amostras de sequências cada vez mais profundas da crosta. Ficou claro que fós-
seis microscópicos encontrados nessas camadas poderiam ser empregados de forma
muito eficiente para o mapeamento bioestratigráfico. O desenvolvimento de micros-
cópios cada vez mais potentes possibilitou o aprimoramento extensivo das técnicas
de emprego de microrganismos fósseis (Micropaleontologia) no mapeamento de ro-
chas em profundidade.
Os microfósseis apresentam algumas vantagens destacadas que fizeram com
que se tornassem o foco da abordagem bioestratigráfica para as empresas de petró-
leo e outros recursos minerais. Primeiramente, as amostras obtidas por perfuração
(testemunhos de sondagem) são sempre reduzidas, com centímetros de diâmetro,
obtidas por perfuratrizes que descem à profundidade de quilômetros nas camadas
das bacias sedimentares. Isso torna os macrofósseis praticamente inúteis para a de-
finição de horizontes mapeáveis. Os microfósseis, por outro lado, podem ser obtidos
aos milhares em pequenas amostras fossilíferas, com um conteúdo, por exemplo, de
alguns gramas de sedimento. Além disso, muitos microrganismos podem ser obtidos
inteiros e com uma amostra populacional e não simplesmente individual, o que
facilita a identificação de espécies, tornando a análise bioestratigráfica muito mais
acurada. Outra vantagem é a de que muitas espécies de microfósseis são facilmen-
te relacionadas a determinados tipos de ambiente. Deste modo, a capacidade dos
microrganismos identificarem horizontes temporais e condições ambientais tornou-
os imprescindíveis para o mapeamento estratigráfico de áreas de sub-superfície de
bacias sedimentares, inclusive na busca por combustíveis fósseis.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


27

3.2. Biozonas

Algumas espécies de organismos extintos viveram em um período geológico


relativamente curto (alguns poucos milhões de anos), mas, em sua curta existência
lograram colonizar extensas regiões marinhas ou dentro de um continente, em dife-
rentes continentes, ou mesmo em amplas regiões do planeta (espécies cosmopolitas).
Quando uma espécie assim é encontrada no registro fossilífero (Fig. 7), ela indica
precisamente que a camada que a contém foi depositada neste curto intervalo em
que existiu. Esta camada pode ser mapeada em toda a extensão onde a espécie foi
originalmente distribuída e deixou registro fóssil. Fósseis assim são os mais importan-
tes para emprego em bioestratigrafia e são chamados fósseis-guias. O intervalo entre
os limites temporais estabelecidos por fósseis-guias são chamados biozonas. Uma
biozona é, portanto, uma zona temporal em uma sequência de rochas sedimentares,
dentro da qual ocorre uma ou mais espécies fossilizadas que determinam sua idade.
Uma biozona é uma unidade fundamental para o mapeamento bioestratigráfico,
podendo ser identificada em uma ampla extensão de uma bacia ou mesmo entre
bacias diferentes.
Combinações de espécies de microrganismos fósseis são comumente empre-
gadas para definir biozonas (Fig. 7). Quando em um determinado ambiente há a co-
lonização por uma nova espécie (R) alguns poucos milhões de anos antes que outra
espécie (F) que ali já existia se extinga, o achado conjunto destas duas espécies em
uma amostra marca um tempo posterior àquele em que a espécie F é registrada sem
a espécie R e anterior àquele em que a espécie R é registrada sem a espécie F. Muitos
outros tipos de interações de espécies de microrganismos fossilizados em amostras
sedimentares são úteis para a definição de biozonas.

PALEONTOLOGIA
28
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

Figura 7. Biozonas definidas por microfósseis hipotéticos. A espécie O é um fóssil-guia e sua presença
define que as camadas onde ocorre foram depositadas entre 40,4 e 37,2 milhões de anos (Eoceno);
quaisquer outros fósseis presentes nas mesmas camadas deverão ter a mesma idade. As espécies F e
R têm uma ampla distribuição temporal e, por isso, individualmente não são fósseis-guias. Entretanto,
quando ocorrem juntas em uma camada, definem uma biozona situada no Oligoceno, com idade
máxima de 33,9 milhões de anos (época em que a espécie R surgiu no registro fóssil) e idade mínima
de 28,4 milhões de anos (época em que a espécie F foi extinta).
______________________________________________________________________

3.3. Correlação

O conteúdo fossilífero de camadas geológicas geograficamente afastadas en-


tre si pode indicar quais destes estratos foram depositados na mesma época. Isso
porque uma determinada comunidade de espécies extintas viveu somente em um
determinado intervalo de tempo. Deste modo, a identificação destas espécies em
estratos de diferentes regiões ou mesmo continentes, vincula aquele estrato a um
intervalo específico de tempo. Estas camadas fossilíferas servem como balizas de
tempo no empilhamento vertical das camadas em uma sequência geológica, ajudan-
do a mapear a sequência como um todo nas várias regiões onde ocorre. O termo
correlação se refere justamente à identificação dos mesmos horizontes de tempo em
estratos distantes dentro de uma mesma bacia sedimentar ou entre diferentes bacias.
Correlacionando estratos, correlaciona-se também sequências sedimentares e, deste
modo, compreende-se a organização temporal das formações sedimentares em di-
ferentes bacias.
Quando uma sequência de estratos de um determinado intervalo de tempo
está presente em uma bacia, mas ausente em outra, deduz-se que há um hiato nesta
última (Fig.8). O hiato pode ser resultado da não subsidência da bacia em determi-
nado intervalo de tempo, ocasionando um período de não deposição, mas também
pode ocorrer por erosão posterior de camadas que ali existiam. Erosão em grande
escala pode se dar, por exemplo, em eventos transgressivos, com a elevação do nível
do oceano e avanço deste sobre amplas regiões de um continente, apagando sequ-
ências inteiras que ali existiam.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


29

Figura 8. Hiato no registro sedimentar. A camada intermediária da sequência à esquerda, identifica-


da pela fauna fóssil nela encontrada, não está registrada na sequência da direita, que ocorre em outra
bacia sedimentar. A ausência do registro desta sequência mediana representa um hiato e indica que
não houve subsidência, nesta época, na bacia da direita ou que a camada poderia ter sido erodida
antes da deposição da camada superior.

______________________________________________________________________

PALEONTOLOGIA
4

CAPÍTULO

DATAÇÃO
Leitura obrigatória: ALMEIDA, J.A.C. de & BARRETO, A.M.F. 2010. O tempo geológico e evolução
da vida. In: CARVALHO, I.S. (ed.) 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Ler pá-
ginas 93 a 104.

Um dos problemas mais antigos com que os geólogos e paleontólogos tive-


ram que lidar desde que passaram a tentar compreender racionalmente o registro
das rochas antigas foi a questão da idade dos eventos que lhes originaram. Como o
tempo não deixa um registro que possa ser mensurado pela simples observação da
natureza e das coisas afetadas por ele, esta foi uma das tarefas mais difíceis de ser
alcançada.

4.1. Datação Relativa

Enquanto não se descobria uma maneira de pôr número absolutos no tempo


dos eventos gravados no registro geológico, descobriu-se uma forma de organizá-los
uns em relação aos outros. Isso foi possível a partir da Lei da Superposição das Ca-
madas, estabelecida pelo dinamarquês Nicolau Esteno (Fig. 3). Se a ordem cronoló-
gica de deposição era de baixo para cima, nas sequências de rochas, isso significava
que o tempo estava ordenado verticalmente e progressivamente mais recente quan-
do se subia em qualquer coluna estratigráfica. Quanto mais profunda era a camada,
mais antiga seria. Então, as sucessivas mudanças florísticas e faunísticas observadas
por Cuvier, Brongniart e Smith (Fig. 3) definiriam sucessivos intervalos na história
da vida na Terra. Cada um destes episódios poderia ser definido pelas características
dos animais e plantas que compunham o cenário biológico da época e que tinham
ficado preservados nas rochas como fósseis. Desta forma, poderia se diferenciar
intervalos de tempo distintos e relacioná-los entre si, definindo, pela sua posição na
32

coluna vertical de rochas sedimentares, quais teriam sido mais antigos e quais seriam
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

mais recentes. Assim, mesmo que não se conseguisse definir qual o volume te tem-
po envolvido nos eventos registrados, seria possível definir se cada um era mais ou
menos antigo em relação a outro; essa metodologia ficaria posteriormente conhecida
como datação relativa.
Um conjunto de camadas que encerravam um registro de fósseis onde ha-
via um predomínio evidente de mamíferos poderia ser subdividido em diferentes
intervalos, distinguíveis pelas diferentes formas de mamíferos que apareciam suces-
sivamente ao longo das sequências, de baixo para cima. Este grande intervalo ficou
conhecido no século XIX como Período Terciário, porque imediatamente abaixo dele
havia o registro de uma época anterior dominada por répteis (Período Secundário)
e, ainda abaixo, outra época mais antiga, em que predominaram invertebrados, an-
fíbios e répteis menores (Período Primário).
Era nítida a sequência temporal destes intervalos de tempo; então foram feitas
as primeiras tabelas que organizavam a história da vida na Terra, mas não se sabia
como definir o tempo de duração de cada uma destas divisões. Posteriormente, estes
intervalos ficariam conhecidos como Era Paleozoica (Período Primário), Era Meso-
zoica (Período Secundário) e Era Cenozoica (Período Terciário) (Fig. 9). O aprofun-
damento desta abordagem levou à subdivisão dos grandes intervalos de tempo em
subintervalos menores. Por exemplo, o tempo Jurássico, encerrava uma fauna de
grandes répteis que era distinguível de outra fauna de grandes répteis mais antiga
(Triássico) e de outra fauna de répteis gigantes posterior (Cretáceo). É importante
destacar que outros organismos, como invertebrados e vegetais, diferenciavam estas
subdivisões. Os nomes utilizados para definir estes intervalos fazem alusões a regi-
ões ou circunstâncias relacionadas ao intervalo. O nome Jurássico refere-se às mon-
tanhas de Jura, no sul da França, onde foram primeiramente mapeadas camadas de
rocha deste intervalo. Triássico se refere à organização das camadas deste intervalo
em três sequências, na Alemanha, onde foram primeiramente descritas. Cretáceo
faz alusão a sequências sedimentares da Europa ocidental, dominadas por rochas
calcárias (Creta em Grego), onde foram descritas as associações faunísticas que dife-
renciariam este intervalo temporal. Outros exemplos são: Siluriano, que homenageia
o povo Silures, tribo celta que viveu na Grã-Bretanha, na região do País de Gales,
onde foram primeiramente mapeadas as camadas deste intervalo do Paleozoico;
Carbonífero, que se refere à grande concentração de carbono nos depósitos de car-
vão típicos desta subdivisão da Era Paleozoica; Paleoceno, que significa “época mais
antiga da nova era”, referindo-se à sua posição no início da Era Cenozoica.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


33

Figura 9. Intervalos de tempo já conhecidos no final do século XIX e delimitados pelo conjunto de
fósseis próprio de cada um deles. As mudanças sucessivas, principalmente na fauna e flora, permi-
tiram que os naturalistas definissem estes intervalos, organizando-os no tempo, uns em relação aos
outros (datação relativa). Porém, na época ainda não se sabia a idade real de nenhum deles.
______________________________________________________________________

A metodologia de organização das sequências geológicas pelo seu conteúdo


fossilífero foi aperfeiçoada e amplamente empregada primeiramente na Europa e
depois em outras partes do mundo, refinando a documentação da história da vida
em todo o planeta. No final do século XIX já havia tabelas detalhadas incluindo acu-
radas subdivisões das eras geológicas (Fig. 9), empilhadas em uma ordem cronológi-
ca coerente, de baixo para cima na sequência. Porém, ainda era frustrante o fato de
não se poder colocar números nos intervalos de tempo e, sobretudo, era frustrante
não se ter uma ideia de qual seria a idade da Terra, podendo-se somente especular
que ela era muito mais velha do que se supunha séculos antes.

PALEONTOLOGIA
34
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

4.2. Datação absoluta

No final do século XIX, com as várias tentativas de definir tempos absolutos


se mostrando infrutíferas, parecia impossível, por qualquer princípio ou mecanismo
natural conhecido na época, descobrir-se o volume de tempo envolvido nos vários
intervalos já conhecidos e organizados uns em relação aos outros (Fig. 9). Foi então
que, em 1896, o cientista francês Henri Becquerel descobriu e descreveu um proces-
so natural intrigante observado em compostos contendo o elemento químico Urânio.
Tratava-se de emissões de energia capazes de atravessar corpos sólidos. Seu estudo
foi continuado pelo casal Marie Currie (polonesa) e Pierre Currie (francês). Marie
cunhou o termo Radioatividade para se referir a esse fenômeno e descobriu que
ele emanava dos átomos e não das moléculas dos compostos testados (daí o termo
energia atômica). Os dois pesquisadores descobriram outros elementos químicos
capazes de gerar essa energia. Rapidamente se propôs várias utilidades práticas para
a radioatividade.
Em 1905, o físico neozelandês Ernest Rutherford propôs o uso da radioa-
tividade para calcular a idade absoluta das rochas antigas. Ele compreendeu que
a massa original de elementos radioativos (instáveis) como o Urânio, em uma ro-
cha, progressivamente se transformava em elementos estáveis, como o Chumbo.
Essa mudança (chamada decaimento radioativo) podia ser calculada em intervalos
chamados meia-vida, que é o tempo necessário para que metade da massa de um
elemento instável (pai) se transforme em outro elemento (filho). A chave para cal-
cular a idade de uma rocha seria comparar as proporções entre elementos pai e
filho envolvidos no processo. Isso daria uma estimativa de quanto tempo teria se
passado desde que a rocha se formou. Essa metodologia viria a ser conhecida como
datação radiométrica. Desde então, vários trabalhos se dedicaram a datar as muitas
sequências já conhecidas e nomeadas, tendo-se sempre em mente o objetivo mais
ambicioso que seria a determinação da idade do planeta Terra. Quase meio século
seria ainda necessário para que se compreendesse suficientemente os intrincados
detalhes envolvidos com o decaimento radioativo e se aperfeiçoasse equipamentos,
metodologias e equações para se conseguir finalmente uma medição confiável da
idade da Terra. Em 1953, obteve-se um valor estimado em torno de 4,5 bilhões de
anos para a formação do nosso planeta. De lá pra cá, técnicas cada vez mais aperfei-
çoadas e análises mais confiáveis que as da época vêm repetidamente confirmando
este valor. Com as técnicas de datação suficientemente aperfeiçoadas, foi possível
então finalmente colocar números (Fig. 10) nas já existentes tabelas de tempo relati-
vo, definindo a duração de cada era, período e até de subintervalos muito menores,
da ordem de poucos milhões de anos ou mesmo de milhares de anos.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


35

Figura 10. Tabela de tempo geológico. As idades absolutas, definidas por radiometria no século
XX, são mensuradas em milhões de anos. Compare com a figura 9 e veja que as principais subdivi-
sões são as mesmas que já estavam definidas por datação relativa desde o século XIX.

* Recentemente o termo Terciário caiu em desuso.


______________________________________________________________________

PALEONTOLOGIA
36
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

4.3. Datando os fósseis

Para entender como datar rochas sedimentares através da datação de rochas


ígneas, imagine uma bacia sedimentar grande, que, ao longo de sua história expe-
rimentou, em algumas regiões, a formação de vulcões e o espalhamento de cinzas
sobre camadas sedimentares já assentadas (Fig. 11). Para um exemplo facilmente
compreensível, imagine alguns vulcões em momentos diferentes da história da ba-
cia, cobrindo de cinzas, durante as erupções, as sequências sedimentares contendo
organismos fossilizados. Como é possível datar os níveis de rocha ígnea por datação
radiométrica, é possível estabelecer uma idade mínima e uma idade máxima para as
camadas sedimentares, e para os fósseis nelas encontrados, que estejam entre dois
níveis de rocha ígnea. Ao se distinguir determinadas espécies que só viveram naque-
le intervalo, elas se tornam então capazes de definir a idade de outras sequências,
quando nelas forem encontradas, sem mais necessidade de se ter rochas ígneas na
sequência.

Figura 11. Definição da idade absoluta de fósseis. As várias camadas de cinzas vulcânicas (nume-
radas) foram depositadas por diferentes vulcões, a maioria extinta (camadas 1, 2 e 3). Elementos
radioativos presentes nas cinzas permitem a datação de cada uma das camadas por radiometria. Os
fósseis que ocorrem entre duas camadas têm então uma idade máxima e uma idade mínima estabe-
lecida pela datação das cinzas. A camada 1 tem idade absoluta de 26,2 milhões de anos (m.a.) e a
camada 2 foi datada em 22, 3 m.a.. Note que o fóssil A (espécie de braquiópode) ocorre em camadas
acima e abaixo destes marcadores de tempo e, por isso, não serve como fóssil-guia porque existiu
por um intervalo de tempo muito longo. O fóssil B (determinado pólen de angiosperma) só ocorre
entre as camadas 1 e 2 e, portanto, é um fóssil-guia porque sua presença em outras camadas sempre
determinará uma idade máxima de 26,2 m.a e uma idade mínima de 22,3 m.a. (Oligoceno/Mioceno)
para a camada e eventuais outros fósseis que ocorram nela. A camada 3 foi datada em 17,6 m.a.. Isso
significa que as três espécies da assembleia fóssil C (mamífero, anfíbio e vegetal) entre as camadas 2
e 3 têm idade entre 17,6 m.a. e 22,3 m.a. (Mioceno). A camada 4 tem idade atual.
______________________________________________________________________

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


37

Como já discutido anteriormente, estes são fósseis-guias e, em muitos casos,


são microrganismos ou microestruturas orgânicas fossilizadas (e.g. pólens e esporos),
fáceis de obter em pequenas amostras de rocha sedimentar, tanto em rochas super-
ficiais quanto em testemunhos de sondagem, coletados em perfurações a grandes
profundidades. Um fóssil-guia encontrado em uma camada sedimentar data aquela
camada e os fósseis que se encontram nela.

ATIVIDADES

1. Por que o estudo dos fósseis compeliu os naturalistas do século XIX à busca
de uma explicação para a biodiversidade que envolvesse evolução biológica?

2. Dê razões para que o Uniformitarismo tenha prevalecido sobre o Catastrofis-


mo na interpretação dos registros geológico e paleontológico.

3. Explique a íntima relação que existe entre fósseis e rochas sedimentares.

4. Que tipo de informações o estudo de formações geológicas pode fornecer e o


que a análise de várias formações geológicas sobrepostas em uma bacia sedimentar
pode revelar sobre o tempo geológico, a dinâmica ambiental e climática, e as dife-
rentes composições florísticas e faunísticas registradas?

5. Qual o fundamento empregado no uso de fósseis para esclarecer a organiza-


ção original das camadas sedimentares de uma bacia, visto que estas normalmente
estão deformadas e/ou desalinhadas?

6. Explique como a idade absoluta de um fóssil encerrado em rocha sedimentar


pode ser definida por camadas de rocha ígnea.

PALEONTOLOGIA
5

CAPÍTULO

TAFONOMIA
Leitura obrigatória 1: SIMÕES, M.G.; RODRIGUES, S.C.; BERTONI-MACHADO, C. & HOLZ, M.
Tafonomia: Processos e ambientes de fossilização. 2010. In: CARVALHO, I.S. (ed.) 2010. Paleonto-
logia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Páginas 19 a 51.

Leitura obrigatória 2: MEDEIROS, M.A. Fossildiagênese. 2010. In: CARVALHO, I.S. (ed.) 2010.
Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Páginas 65 a 77.

Tafonomia é uma das abordagens mais fundamentais dentro da Paleontolo-


gia. Foi desenvolvida pelo pesquisador russo Ivan Antonovich Yefremov (conheci-
do no ocidente como Efremov), em 1940. A Tafonomia trata do levantamento de
informações, muitas obtidas in situ, sobre os acontecimentos naturais que teriam
provocado a morte de um organismo e os que teriam se seguido a ela: soterramento
imediato, desarticulação e/ou transporte da carcaça ou dos seus componentes em
separado, processo de soterramento e ainda os mecanismos físico-químicos que atu-
aram nos restos orgânicos depois de serem soterrados, até sua fossilização e exuma-
ção final. Muitas destas informações ajudarão a esclarecer, inclusive, aspectos da for-
ma de vida (paleoecologia) do organismo fossilizado. Assim, a Tafonomia incorpora
grande parte do universo estudado pela Paleontologia e tornou-se uma abordagem
essencial no resgate de informações de um fóssil em particular ou de uma assembleia
fossilífera. Desde sua criação por Efremov, passou por extensivo aperfeiçoamento e
inovação, tanto de conceitos quanto de metodologias.
40
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

5.1. Bioestratinomia e Fossildiagênese

Duas das grandes divisões da Tafonomia hoje reconhecidas são Bioestratino-


mia e Fossildiagênese. A primeira trata de todo e qualquer mecanismo natural que
atue sobre os restos de um organismo desde o momento de sua morte até quando
ele for definitivamente soterrado. Trata, portanto, de todas as circunstâncias que po-
dem atuar enquanto estes restos estiverem na superfície. Investiga, por exemplo, se
um animal foi morto e soterrado por um evento súbito, ou seja, morte catastrófica
(e.g. inundação, desmoronamento, precipitação de cinzas vulcânicas), o que poderia
garantir que o esqueleto ficasse completamente preservado, ou se depois de morto
sua carcaça teria sido disputada por predadores e carniceiros que a desmembrariam
e espalhariam os ossos em uma ampla área, diminuindo a qualidade do registro
fóssil. A forma como os fósseis se apresentam na rocha matriz (biofábrica) pode dar
indicações decisivas para esclarecer o conjunto de circunstâncias envolvidas com a
deposição da assembleia. A granulometria dos sedimentos informa sobre presença
ou ausência de correntes e sobre a capacidade de tração destas correntes.
A abordagem bioestratinômica é algo semelhante à de uma ciência forense,
que tenta reconstituir um quadro complexo de ações a partir de evidências deixadas
in situ e no cadáver.
A fossildiagênese, por sua vez, trata do conjunto de situações a que esteve
submetido um fóssil depois de soterrado. Na maioria das vezes ele sofre a ação de
processos físicos e químicos que alteram em algum grau sua composição original. A
fossildiagênese inclui uma minuciosa investigação das transformações mineralógicas
experimentadas pelos fósseis, com implicações no entendimento dos paleoclimas a
que estiveram submetidos os depósitos ao longo de sua história pós-deposicional.
Isso porque o clima de uma região interfere diretamente nos mecanismos físico-
químicos que ocorrem nas camadas sedimentares subjacentes, pelo menos até certa
profundidade. A presença e quantidade de água percolando na sub-superfície de-
pende do clima local e vai interferir nos processos mineralógicos que atuarão nas
rochas e nos bioclastos nelas encerrados.
A bioestratinomia emprega informações de campo obtidas da observação de
sistemas deposicionais atuais para esclarecer detalhes observados em assembleias
fossilíferas. Esse emprego da abordagem atualista (o presente é a chave para o pas-
sado) muito tem ajudado no esclarecimento de situações verdadeiramente misterio-
sas observadas em depósitos fossilíferos e de difícil explicação antes de se observar o
mesmo ocorrendo no cenário atual. Por exemplo, é comum em depósitos fossilíferos
de vertebrados concentrações de determinados ossos do esqueleto e exclusão de
outros. Isso não era bem compreendido até que se observou a ação seletiva das
correntes, principalmente de rios. Durante a cheia e transbordamento, a corrente
recolhe carcaças próximas da margem e, ao transportá-las, vai distribuindo os ossos
em pontos diferentes do curso do rio, em função da sua forma, tamanho e peso. Al-
guns dinossauros, por exemplo, que eram animais muito grandes (Fig. 12), uma vez

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


41

tendo seu esqueleto desarticulado podiam ter seus restos espalhados seletivamente
em um sistema fluvial. A força de tração da corrente não consegue levar muito longe
partes como as cinturas pélvica e escapular e ossos grandes como fêmures e tíbias
que acabam encalhando depois de sofrer um breve transporte. Outros ossos, mesmo
não sendo grandes e pesados, como vértebras cervicais e partes do crânio, também
são logo soterradas pela corrente porque não têm um formato que facilite seu trans-
porte; sua morfologia achatada, alongada ou com protuberâncias atua como uma
âncora no fundo do rio, dificultando o transporte e facilitando o soterramento pelo
sedimento em deposição. Por outro lado, ossos e outros elementos esqueletais me-
nores e/ou mais arredondados, como vértebras caudais, elementos tarsais e carpais,
falanges e dentes, tendem a ser transportados e concentrados rio abaixo, distantes
dos outros ossos do esqueleto. Esse processo, chamado seleção tafonômica (Fig.
12), cria um viés amostral nas assembleias fossilíferas, dificultando a reconstituição
da morfologia completa do animal por não reunir todos os elementos esqueletais em
um mesmo depósito. Este efeito é claramente observado nos sistemas fluviais atuais,
o que ajudou a entender a dinâmica deposicional das partes de carcaças de espécies
extintas.
A fossildiagênese combina tanto investigações in loco como reproduções em
laboratório para esclarecer determinadas transformações químicas observadas nos
fósseis e distinguir todos os passos ocorridos ao longo do tempo que teriam levado
restos orgânicos a se modificar mineralogicamente, como é o caso da maioria dos
fósseis. Mudanças climáticas na superfície interferem nas condições de sub-superfície
e podem provocar mudanças significativas na geoquímica de materiais já previa-
mente fossilizados, tornando a história fossildiagenética deles mais complexa.

PALEONTOLOGIA
42

Figura 12. Seleção tafonômica. Acima, o esqueleto de um dinossauro saurópode mostrando os di-
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

ferentes tipos de ossos, variando em forma, tamanho e peso. Ao serem transportados pela corrente
de um rio (abaixo), estes ossos, desarticulados, vão se concentrar em locais diferentes, dependendo
da força de tração da corrente, que flui da esquerda para a direita. A assembleia A reúne ossos mais
pesados ou com mais protuberâncias que facilitam sua ancoragem, dificultando transporte prolon-
gado. A assembleia B reúne ossos menores, mais leves ou de facetas arredondadas, que são trans-
portáveis por maiores distâncias. O fóssil C (esqueleto completo de dinossauro terópode) estava
assentado mais longe do canal e foi soterrado por um fluxo de lama depositado sob fraca corrente,
durante uma lenta cheia do rio. Por isso não sofreu desarticulação nem transporte.
______________________________________________________________________

É importante ter em mente que a grande maioria dos restos de organismos


mortos que são naturalmente soterrados não se preservam. A maioria dos processos
que ocorrem nos sedimentos é destrutiva e frequentemente elimina todos os bio-
clastos de uma camada em alguns anos ou algumas décadas. Apenas uma parcela
pequena de tudo o que é incorporado em um sistema deposicional tem a oportu-
nidade de se transformar em fóssil por experimentar os fenômenos, mais raros, que
aumentam a capacidade de preservação ao invés de destruir os bioclastos.

5.2. Soerguimento e erosão

A fossildiagênese está diretamente relacionada ao processo de subsidência,


que leva as camadas sedimentares progressivamente mais para baixo, afastando os
fósseis ali contidos das condições destrutivas do intemperismo de superfície. Deste
modo, enquanto um nível fossilífero permanecer em profundidade, na bacia, ele es-
tará tanto protegido quanto inacessível aos processos naturais de exposição. A gran-
de maioria dos sítios fossilíferos naturalmente expostos precisaram passar, depois
dos mecanismos fossildiagenéticos, por outro processo geológico: o soerguimento.
A dinâmica da crosta em uma bacia pode causar subsidência em uma região
e soerguimento em outra e isso pode mudar de região para região ao longo de um
intervalo muito longo de tempo. Assim, áreas que experimentaram subsidência e
consequente fossildiagênese podem eventualmente ser empurradas lentamente para
cima, expondo na superfície suas camadas ricas em fósseis. Uma vez na superfí-
cie, estas camadas passarão inevitavelmente pelos processos de erosão, quer sejam
provocados pelo vento, pela água, em ambientes marinhos, fluviais ou lacustres,
ou ainda pela própria gravidade, na forma de desmoronamentos em áreas escarpa-
das. Pode haver também a ação de variação de temperatura (intemperismo físico),
de substâncias químicas cáusticas dissolvidas na água (intemperismo químico) e de
organismos no solo e subsolo (intemperismo biológico), enfraquecendo a rocha e
facilitando sua dissociação. O próprio oxigênio da atmosfera pode oxidar compos-
tos das rochas ou dos fósseis, facilitando sua decomposição. A Tafonomia inclui em
seu objeto de estudo estes processos que provocam a exposição natural dos níveis
fossilíferos.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


43

5.3. Interpretação paleoecológica

Uma vez os fósseis expostos, coletados, analisados in situ e em laboratório,


segue-se a interpretação do registro e sua contextualização dentro do universo já
conhecido ao qual aquela camada específica com fósseis estaria relacionada. Por
exemplo, se a análise geológica indica que a sequência sedimentar é lacustre, é pre-
ciso saber se as plantas e animais fossilizados são mesmo típicos de um lago (isso
contextualizaria adequadamente as informações geológicas e biológicas) ou se são
típicos de outro ambiente e, depois de mortos, teriam sido transportados para ali.
É preciso tentar esclarecer se os organismos encontrados juntos realmente viveram
juntos ou se o conjunto foi reunido por processos de transporte que misturaram ele-
mentos de diferentes ambientes em um mesmo depósito. Assim como as correntes
fluviais e marinhas podem promover a seleção tafonômica, elas também podem
transportar restos orgânicos de ambientes diferentes e misturá-los em um mesmo
evento de soterramento. Isso daria uma ideia errada ao paleontólogo que procuraria
relações ecológicas diretas entre as espécies quando, de fato, elas não existiriam.
Uma vez constatado que uma determinada assembleia fóssil representa sim
uma comunidade biológica integrada, a Tafonomia prevê, como abordagem final e
mais desafiadora, a interpretação de como seriam as interações entre as várias espé-
cies registradas. Como uma assembleia fóssil sempre representa apenas uma parcela
das espécies que efetivamente viveram naquele ambiente antigo, é praticamente
impossível identificar todas as inter-relações ecológicas entre as espécies. No entan-
to, muitas vezes é possível se obter informações suficientes para configurar o tipo de
ambiente e o clima, e relacionar estas informações por analogia com algum exemplo
atual que apresente similaridades.

PALEONTOLOGIA
6

CAPÍTULO

PALEONTOLOGIA E EVOLUÇÃO
BIOLÓGICA
Leitura obrigatória: IANNUZZI, R. & SOARES, M.B. Teorias evolutivas. 2010. In: CARVALHO, I.S.
(ed.) 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Ler páginas 139 a 156.

Os fósseis vêm registrando a história da vida na Terra desde que esta surgiu,
há cerca de três bilhões e quinhentos milhões de anos. Apesar de rochas tão antigas
serem raras, porque o ciclo natural de renovação da litosfera vem apagando lenta-
mente os registros mais antigos, foi possível encontrar sequências remanescentes em
vários continentes. Estas rochas documentam formas de vida muito primitivas, como
cianobactérias, que viveram em um planeta Terra muito diferente do que habitamos
hoje. À medida que rochas progressivamente mais recentes eram estudadas, um
panorama dinâmico se revelava. Isso já era compreendido mesmo antes de ser pos-
sível datar as rochas de forma absoluta. Cada sequência mostra fauna e flora com
mudanças em relação às sequências imediatamente anteriores e imediatamente pos-
teriores. Com o advento da datação absoluta foi possível avaliar a velocidade com
que as mudanças se processaram. O ritmo de mudanças biológicas é geralmente
muito lento e pode variar enormemente entre diferentes grupos.

6.1. A natureza do processo evolutivo

Em grupos bem documentados no registro fóssil como, por exemplo, muitas


formas marinhas, é possível perceber que as mudanças ocorrem geralmente de for-
ma muito gradual, mas com o passar de milhões de anos, as diferenças sutis, que
distinguem variedades, subespécies e espécies, quando acumuladas tornam-se bas-
tante significativas, passando a distinguir gêneros, famílias, ordens, classes e níveis
superiores na hierarquia biológica, como filos (ou divisões, no universo botânico) e
46

reinos. A crescente documentação desta realidade do registro fóssil na primeira me-


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

tade do século XIX foi um dos principais fatores que levaram os naturalistas da época
a começar a pensar em um processo natural de transformação biológica, ao invés
de tentar explicar a diversidade biológica pelo dogma criacionista que imperava na
época. As tentativas de explicar o processo evolutivo culminaram com a teoria da
seleção natural de Charles Darwin, publicada em 1859, que concebia o processo de
transformação biológica como um constante ajuste das espécies a novos desafios de
sobrevivência. Darwin compreendeu a essência do processo de evolução, mas na
sua época não era possível esclarecer como o mecanismo se processava dentro das
células dos organismos. Deste modo, ele nunca soube como se dava o surgimento
de diferenças hereditárias que seriam a matéria prima para as mudanças graduais se
processarem nas espécies.
Apesar de o trabalho de Gregor Mendel, apresentado em 1865, ser o pionei-
ro na compreensão da natureza da hereditariedade, ele foi praticamente ignorado
pela comunidade científica e ficou esquecido até a virada para o século XX. Com a
formalização da Genética, em 1905, finalmente houve um amplo envolvimento dos
cientistas com a investigação da natureza da hereditariedade, inclusive com o desen-
volvimento de engenhosos experimentos, executados ao longo da primeira metade
do século XX, que visavam compreender o processo nos níveis celular e molecular.
Algumas das grandes descobertas realizadas pela genética ao longo do sé-
culo XX foram: a constatação do envolvimento dos cromossomos na transmissão
de caracteres hereditários, as mutações, o reconhecimento do processo evolutivo
como operando no nível populacional (de onde surgiu a genética de populações), a
constatação de que o DNA era a molécula responsável pelos caracteres hereditários,
e a descoberta da estrutura do DNA e da linguagem química dos genes (o código
genético). Estas inovações viriam a explicar muitos dos mais intrincados processos
de evolução biológica e os mecanismos envolvidos com o surgimento de novas es-
pécies. A genética de populações fundamentaria e aperfeiçoaria as ideias de Darwin,
agora conhecidas como gradualismo filético, desenvolvendo uma nova teoria cha-
mada Teoria Sintética de Evolução ou Neodarwinismo.

6.2. Moldando a diversidade

Uma das mais importantes pistas que Charles Darwin teve na sua busca pela
compreensão do processo de transformação gradual das espécies selvagens foi o
conjunto de peculiaridades observadas nos criatórios de animais domésticos. Da-
rwin ficou intrigado com a capacidade que os criadores tinham de produzir, em
cativeiro, variedades exóticas não existentes na natureza. Ele mesmo criou pombos
com essa intenção.
Depois de consolidada a Teoria de Evolução ao longo do século XX e da
compreensão dos mecanismos genéticos envolvidos com o processo, pudemos ana-

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


47

lisar as diferenças fundamentais entre animais selvagens e animais domésticos, de-


lineando um quadro bastante didático acerca do processo de modificação gradual
por que passam as espécies selvagens ao longo do tempo e sobre o que acontece
quando alguns dos fatores operantes na natureza selvagem são amenizados ou ex-
tremados, fato que comumente ocorre nas populações domesticadas.
Espécies domesticadas deixam de viver sob o rigor implacável das leis da
natureza selvagem e passam a ter seu destino genético conduzido pelos interesses do
Homem. O primeiro efeito que pode ser observado ao longo de algumas gerações
é a eliminação sumária das variedades que, de algum modo, não se enquadram no
interesse do seu proprietário. O segundo efeito é a proliferação, em grande número,
das variedades que possuam algum traço genético que se enquadre nos interesses
do domesticador. Esses dois processos combinados determinam o que chamamos
de seleção artificial. Neste caso se enquadram todas as espécies de animais e plantas
domesticadas para fins comerciais e o resultado, depois de séculos ou milênios de
domesticação, é o surgimento de variedades (ou raças) que são configurações ge-
néticas e morfológicas que se adequam a algum interesse humano (e.g. cavalos de
corrida, vacas leiteiras, plantas resistentes a pragas). As várias raças de uma espécie
domesticada são conjunções genéticas artificiais que admitem pouca variabilidade.
Cada raça em si representa um sistema genético pouco diversificado, mas o conjunto
das várias raças de uma espécie domesticada faz com que esta espécie seja extre-
mamente variada, embora esta variação não esteja se recombinando por panmixia
(acasalamentos aleatórios).
No caso de animais domesticados que não representam interesse comercial,
como as conhecidas formas “vira-latas”, não há uma seleção direcionada para um
determinado fim, nem tampouco intolerância radical com formas menos apreciadas.
Aí a seleção artificial perde intensidade. Por outro lado, a interferência do Homem
nestas variedades se mantém, uma vez que ele cria e protege muitos destes animais,
diminuindo assim as chances de mortandade por predação, doenças, competição
ou falta de alimento. Mesmo indivíduos abandonados nas ruas contam com as van-
tagens de viver em um ambiente urbano, muito menos rigoroso que o selvagem,
podendo sobreviver à custa de sobras de alimento e reproduzir em grande número
em terrenos baldios ou locais abandonados, longe dos olhos dos predadores que
vivem na natureza selvagem. Em consequência, as formas vira-latas mostram uma
enorme variedade genética, que deriva do acúmulo de variantes em uma dimensão
numérica muito mais expressiva do que poderiam se manter sob as leis de um am-
biente selvagem.
Quer sejam raças selecionadas artificialmente, quer sejam vira-latas, o fato é
que espécies domesticadas têm um destino evolutivo diferente do que teriam viven-
do em ambiente selvagem. Na natureza, as leis rigorosas que regem a sobrevivência
e reprodução dos organismos eliminam a maior parte dos indivíduos produzidos a
cada geração. Por isso, formas com baixa fecundidade ou fertilidade têm poucas
chances de se manter em uma população. Os critérios empregados pelas leis natu-
rais baseiam-se em poucos fundamentos: sobrevivência e reprodução. Na verdade,
a reprodução tem um peso diferenciado, muitas vezes “submetendo a sobrevivência
a seu serviço”. Em muitas espécies, cada geração mantém-se viva apenas até com-

PALEONTOLOGIA
48

pletar o ciclo reprodutivo. Um caso bem documentado é o do salmão que, intrigan-


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

temente, degenera-se e morre imediatamente após subir os rios e desovar.


A seleção sexual é um caso à parte que vem intrigando os cientistas pela
dificuldade de contextualizá-la dentro da lógica do processo de adaptação. Neste
tipo de seleção, o critério capacidade reprodutiva está ligado a curiosidades compor-
tamentais dos indivíduos que escolhem seus parceiros de cópula com base em estí-
mulos muitas vezes aparentemente destituídos de qualquer valor adaptativo. Muitas
espécies de aves escolhem o parceiro para acasalar depois de analisar determinados
detalhes estéticos (caudas longas e coloridas, penachos, performances de canto ou
exibições coreográficas etc.). Estes critérios são intrigantes desde a época de Darwin.
Até hoje não foi possível entender a utilidade prática da maioria desses rituais. Em
alguns casos pode-se admitir que uma performance coreográfica de um macho para
conquistar uma fêmea seja tão boa quanto seu porte for mais atlético ou funcio-
nal. Nesse caso é possível vislumbrar, mesmo de forma especulativa, uma vantagem
adaptativa: machos atléticos ou mecanicamente mais funcionais poderiam garantir,
por exemplo, maior capacidade de conseguir alimento e proteção para a prole. Por
outro lado, muitas vezes a seleção sexual leva à exacerbação de caracteres que po-
dem, inclusive, comprometer a capacidade de sobrevivência do indivíduo. Machos
que se valem de estruturas de exibição muito chamativas podem atrair tanto as
fêmeas de sua espécie quanto os predadores, aumentando suas chances de repro-
dução ao mesmo tempo em que aumentam o risco de serem predados. A seleção
sexual ainda está longe de ser adequadamente compreendida e vem sendo um de-
safio persistente aos cientistas.
Todos esses fatores evolutivos discutidos acima interferem no destino de uma
população selvagem quando ela tenta se estabelecer em um novo ambiente ou man-
ter-se no seu ambiente de origem enquanto ele se modifica com o tempo. Qualquer
que seja o conjunto de rigores de um determinado bioma (floresta, savana, deserto
etc.) a ser explorado, a lógica adaptativa é sempre a mesma: sobreviver para conse-
guir reproduzir. Nos dias de hoje é possível observar que a luta pela sobrevivência
leva ao sucesso adaptativo de alguns grupos e provoca a extinção parcial ou total
de outros. Esse resultado é amplamente documentado pelo registro fóssil em épocas
passadas, desde os tempos mais remotos, mostrando que o processo evolutivo sem-
pre operou pelo mesmo princípio: uma incessante luta pela sobrevivência e repro-
dução com o sucesso de uns e o fracasso de outros. O sucesso de um grupo em um
dado período de tempo não é garantia de que ele se manterá no futuro. As principais
causas de extinções são sempre as mesmas: mudanças ambientais e climáticas que
comprometem a adaptabilidade de espécies já estabelecidas em uma região; surgi-
mento de espécies predadoras ou mais competitivas e, mais raramente, catástrofes
ambientais em grande escala.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


49

6.3. Especiação

O processo evolutivo é um processo natural de modificação morfológica e,


frequentemente, fisiológica que opera geração após geração, ajustando uma espécie
a mudanças ambientais e climáticas que ocorrem ao longo do tempo ou dando a ela
capacidade de colonizar novos ambientes, diferentes daquele onde se originou. As
modificações vantajosas, apesar de aparecerem mais raramente numa população,
acabam crescendo em número, geração após geração, visto que favorecem a adap-
tação da espécie, aumentando as chances de sobrevivência e reprodução dos seus
portadores. Deste modo, os ajustes adaptativos que uma população experimenta
ao longo do tempo estão relacionados com modificações morfológicas e fisiológicas
adaptativas que normalmente só são notadas numa escala de milhares a dezenas de
milhares de anos (em alguns casos somente em uma escala de milhões de anos). Por
isso, o registro dos fósseis é crucial para a documentação destas mudanças.
Quando as modificações morfológicas ocorrem dentro de uma espécie ao
longo do tempo, elas constituem a anagênese. Este processo evolutivo é responsável
pelas lentas mudanças experimentadas por uma determinada espécie, normalmen-
te em resposta a mudanças ambientais ou como forma de colonizar um ambiente
diferente do seu de origem. Por exemplo, uma população que habitava uma região
originalmente úmida, que depois, com as mudanças climáticas de longo prazo, vai
se tornando predominantemente seca, obrigará os indivíduos de uma espécie que
ali vive a serem capazes de tolerar a desidratação ou criar meios de armazenar água
no organismo; essas são mudanças anagenéticas. Caso as mudanças anagenéticas
não consigam ajustar a população às novas condições, ela acabará se extinguindo
naquela região.
Como uma espécie pode se fragmentar em várias populações disjuntas (ge-
ograficamente isoladas), processos anagenéticos ocorrendo nestas diferentes popu-
lações as conduzem a destinos diferentes porque a falta de contato entre estas po-
pulações, a longo prazo (milhares a milhões de anos), acaba acumulando diferenças
significativas entre elas, o que pode dificultar o acasalamento de indivíduos caso
venham a se reunir novamente depois de muito tempo de separação. Uma vez que
indivíduos de populações que passaram muito tempo separadas não consigam mais
acasalar entre si, ou se mesmo que acasalem produzam descendentes inférteis em
função de diferenças genéticas acumuladas durante o longo período de isolamento,
consideraremos que as populações representam agora espécies diferentes, embora
proximamente aparentadas. Este processo de separação de espécies a partir de uma
mesma espécie ancestral é chamado cladogênese. O resultado dos dois processos
combinados (anagênese e cladogênese) é a diversificação de formas, com várias
espécies surgindo a partir de um ancestral comum, o que é representado em uma
árvore filogenética (Fig. 13).

PALEONTOLOGIA
50
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

6.4. Gradualismo versus Pontuísmo

Em 1972, dois cientistas, Niles Eldredge e Stephen Jay Gould, propuseram


uma nova teoria que explicava as mudanças evolutivas de forma diferente do gradu-
alismo filético. Eles acreditavam que as mudanças de grande porte (macroevolução)
não ocorriam lenta e gradualmente como as pequenas mudanças (microevolução),
mas rapidamente, depois de um longo período de estabilidade morfológica (estase).
Logo depois de publicada, a chamada Teoria do Equilíbrio Pontuado, como ficou
conhecida, ganhou adeptos e parecia que se tornaria uma substituta para o Neoda-
rwinismo, mas logo viu-se que ela não se adequava à grande maioria dos casos bem
documentados de evolução e, sobretudo, os processos genéticos já bem conhecidos
não sustentavam esta nova teoria como principal mecanismo de evolução. Mesmo
assim, a Teoria do Equilíbrio Pontuado (ou Pontuísmo) se manteve como um meca-
nismo alternativo, possivelmente operante em alguns casos específicos, mas muito
menos frequente que o gradualismo filético. Atualmente, o Neodarwinismo continua
sendo a teoria de evolução mais aceita pela comunidade científica, mas o Pontuísmo
é admitido como mecanismo possível, embora mais raro.

Figura 13. Árvore filogenética hipotética representando a diversificação de um grupo. As linhas


representam as modificações anagenéticas e as ramificações, os episódios cladogenéticos. A espécie
ancestral (A) dá origem a dois ramos que se diversificam. O ramo esquerdo da árvore experimenta
uma radiação adaptativa mais significativa, originando um número maior de espécies. Neste esque-
ma, as espécies R, P, G e T sofreram extinção.
______________________________________________________________________

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


51

6.5. As duas faces da Evolução

O processo de evolução biológica se resolve na intimidade do núcleo celu-


lar, no DNA que compõe os genes e nos cromossomos que reúnem e organizam
os genes. No universo de uma população biológica ocorrem processos que geram
e combinam diferentes genes ao longo das gerações, produzindo o efeito da lenta
transformação biológica ao longo do tempo e do surgimento de novas espécies. Por-
tanto, o estudo dos mecanismos evolutivos precisa incluir, fundamentalmente, uma
abordagem genética. Por outro lado, o registro dos fósseis documenta o resultado
deste processo ao longo do imenso tempo geológico, desde os primórdios, quando
surgiram as primeiras formas de vida microbiana, até uns poucos milhares de anos
atrás, no Período Pleistoceno (ver Fig. 10), que antecede a nossa época, chamada de
Holoceno (ou Recente). Assim, a Genética e a Paleontologia são como duas faces de
uma moeda que representaria o processo evolutivo.
O registro dos fósseis mostra que os mesmos processos genéticos em atuação
atualmente estiveram operando initerruptamente, desde que surgiu a vida no plane-
ta Terra, e que o resultado deste processo é um lento, mas contínuo, aprimoramento
de formas biológicas, umas dando origem a outras. Por exemplo, os peixes surgiram
a partir de cordados, e estes de invertebrados. Dos peixes, evoluíram os anfíbios e
estes deram origem aos répteis. A partir dos répteis, duas linhagens se desenvolve-
ram: mamíferos e aves. O registro fóssil mostra também que enquanto alguns gru-
pos se diversificam e se transformam radicalmente em algumas dezenas de milhões
de anos (e.g. primatas), outros se mantêm muito conservados na sua morfologia e
fisiologia por centenas de milhões de anos (e.g. crocodilídeos). Um ambiente ecoló-
gico normalmente reúne tanto formas avançadas como formas conservadas, em um
equilíbrio ecológico que está sempre se redefinindo, à medida que novas espécies
surgem e outras se extinguem. É assim hoje e foi assim em todos os períodos regis-
trados pelos fósseis. Essa dinâmica sofre a ação direta das mudanças ambientais e
climáticas que estão sempre modificando a paisagem dos continentes e dos mares
e oceanos. Assim como hoje a Terra encontra-se em um período interglacial, com
tendência geral ao aquecimento e subida do nível do mar, no passado outros epi-
sódios como esse foram registrados, mas também houve períodos de resfriamento
do planeta e abaixamento do nível dos oceanos, com efeitos dramáticos no clima,
na flora e na fauna de todos os ambientes da Terra. O registro das rochas antigas e
dos fósseis, portanto, nos mostra que a Terra é um planeta dinâmico tanto geológica
quanto biologicamente.

PALEONTOLOGIA
7

CAPÍTULO

PALEOBIOGEOGRAFIA
Leitura obrigatória 1: IANNUZZI, R. & SOARES, M.B. Teorias evolutivas. 2010. In: CARVALHO, I.S.
(ed.) 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Ler páginas 156 a 162.
Leitura obrigatória 2: GALLO, V. & FIGUEIREDO, F. 2010. Paleobiogeografia. In: CARVALHO, I.S.
(ed.) 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Ler páginas 351 a 357.

Biogeografia é o estudo da distribuição das formas biológicas (subespécies,


espécies, gêneros, famílias etc.) nos vários ambientes da Terra e das razões históricas
que levaram a isso. Paleobiogeografia é a mesma abordagem em relação a formas
fósseis, a maioria extinta. A Paleobiogeografia pode explicar distribuições atuais de
organismos que não fazem sentido a não ser quando você reconstitui a história ge-
ográfica dos seus ancestrais. Um exemplo comumente usado para ilustrar essa situ-
ação é a distribuição dos camelídeos na América do Sul, África e Ásia. As enormes
distâncias entre as espécies viventes relacionadas só puderam ser compreendidas
quando foram encontradas espécies ancestrais fossilizadas em regiões intermediá-
rias, mostrando que foi um grupo com extensa distribuição geográfica e, com a extin-
ção progressiva de espécies destas regiões intermediárias, as formas atuais acabaram
ficando isoladas em diferentes continentes (sul-americano, asiático e africano).
A biogeografia também tem um papel crucial no esclarecimento das
origens evolutivas de formas biológicas. O processo evolutivo se desenrola em popu-
lações que estão distribuídas no espaço geográfico e o próprio espaço geográfico tem
um papel decisivo, facilitando ou dificultando a distribuição de espécies e também
54

eventualmente causando isolamento, que é um fator decisivo para o surgimento de


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

novas espécies. Sob essa ótica, a paleobiogeografia é também o estudo da evolução


no espaço e no tempo.
Todas as distribuições de organismos na face na Terra, em áreas continentais,
insulares, marinhas ou oceânicas, foram resultado de dispersão ou vicariância. Tanto
as populações são dinâmicas no tempo e no espaço como o próprio ambiente e a
litosfera são também dinâmicos. Os dois processos estão sempre envolvidos na de-
terminação da história biogeográfica de qualquer grupo de organismos.

7.1. Dispersão

Várias são as causas que têm como efeito o espalhamento de organismos


por uma área tão extensa quanto possível. A principal delas é a tendência que as
populações têm de proliferar em grande quantidade. Superpopulações levam à im-
possibilidade de o ambiente dar suporte a todos os indivíduos que necessitam de re-
cursos alimentares que são limitados. A territorialidade apresentada por uma grande
parcela de espécies também exerce uma pressão relevante sobre os organismos de
uma mesma área, levando à competição acirrada que funciona como um fator de
seleção. No caso de espécies animais, os organismos perdedores, se não perecerem
na competição, são obrigados a emigrar do território, estabelecendo-se em outro
que poderá ter ou não as mesmas peculiaridades da sua região de origem. Uma vez
ocupados todos os habitats semelhantes ao seu de origem, pequenas populações
expulsas ou desgarradas acabam por tentar colonizar regiões diferentes daquelas
em que seus ancestrais adaptaram-se. Uma grande parcela destas populações ex-
tingue-se por não conseguir oferecer uma resposta adaptativa satisfatória às novas
condições ambientais. Eventualmente, no entanto, a diversidade genética que os
indivíduos levam consigo consegue oferecer alternativas satisfatórias, mantendo a
população precariamente ajustada ao novo ambiente. Se esta população conseguir
crescer suficientemente, a seleção natural poderá, em longo prazo, redesenhar seu
modelo adaptativo a partir de novas combinações gênicas ou cromossômicas mais
satisfatórias às exigências do ambiente. Esse processo de evolução normalmente
inclui transformações morfológicas e fisiológicas.
Conceitualmente, a dispersão é a transposição, por populações emigrantes,
de barreiras geográficas em um cenário já estabelecido. A barreira transposta passa a
funcionar como um obstáculo reprodutivo, isolando a população original da recém-
fundada que, na maioria das vezes, leva consigo apenas uma parcela da diversidade
que está presente na população de origem. Isso significa que o próprio ato de emi-
grar, em si, já provoca modificação nas frequências gênicas da população migrante.
Quanto menor for a onda migratória, menor será a diversidade genética da nova
população. Se ela for muito pequena ocorrerá o que é conhecido como “efeito do
fundador”, que é uma diminuição radical da diversidade genética da população. O

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


55

efeito do fundador pode condicionar a população a um regime prolongado de endo-


gamia, que acaba por expor genes detrimentais pouco manifestados na população
original que era suficientemente grande para minimizar a possibilidade de acasala-
mentos consanguíneos. A baixa diversidade e a alta taxa de consanguinidade pode
facilmente condenar um população desgarrada à extinção. Mesmo assim, os registros
biogeográficos dão conta de que muitas pequenas populações dispersas acabaram
por se estabelecer com sucesso em ambientes muito diferentes dos seus de origem.
As ilhas Galápagos reúnem alguns dos mais notáveis exemplos destas ocorrências.
Outros fatores podem obrigar populações a abandonar sua região de origem.
Podem ser citadas mudanças climáticas progressivas em grande escala ou crises am-
bientais episódicas e localizadas, como secas e invernos rigorosos.
Nos casos em que o habitat de uma espécie é amplamente distribuído, como
na floresta amazônica, por exemplo, as populações podem se dispersar por uma
área enorme, mas que mantém basicamente as mesmas condições ambientais. Nes-
te caso, mesmo que as pressões seletivas não sejam significativamente diferentes nos
extremos da distribuição da espécie, o processo de isolamento reprodutivo pode dar-
se pela distância. Populações distribuídas ao longo de muitas centenas ou mesmo
milhares de quilômetros, mesmo que em um ambiente relativamente homogêneo,
terão dificuldade de intercambiar genes entre seus extremos devido à distância. A
continuidade da população em toda esta extensa área não consegue efetivamente
produzir um fluxo gênico de ponta a ponta na mesma velocidade em que as diferen-
ças se acumulam nestes extremos. Aí pode ocorrer diferenciação e eventual especia-
ção devido ao isolamento pela distância.
Quando uma espécie espalha-se extensivamente, ocupando uma expressiva
diversidade de habitats, e muitas de suas populações emigrantes logram colonizar
e se adaptar eficazmente a estes diferentes ambientes, temos um processo que se
encaixa no conceito de radiação adaptativa. A maioria senão todos os grupos bem
sucedidos e bem representados de organismos experimentaram radiação adaptativa
uma ou mais de uma vez. À radiação adaptativa seguem-se os mecanismos de iso-
lamento reprodutivo e diferenciação genética e morfológica já anteriormente discu-
tidos. Cada uma das novas populações eventualmente se tornará uma nova espécie
de um grupo que agora ocupa o status de gênero. Novas ondas migratórias podem
partir de qualquer uma destas novas espécies e pode ocorrer de uma destas popu-
lações emigrantes retornar e ocupar exatamente a área original da espécie ancestral
que deu origem a toda a história do grupo. Caso a população original ainda esteja na
área, ainda conservando a maioria dos caracteres originais ou modificada pelo pro-
cesso anagenético que pode ter experimentado com o tempo, agora duas espécies
diferentes, oriundas de um mesmo ancestral, ocupam a mesma região. Dependendo
do nicho ecológico que ocupam elas vão coexistir pacificamente ou competir pela
área. Acredita-se que esse processo natural de migração, especiação e nova migra-
ção para a região de origem, responde por uma expressiva parcela de espécies irmãs
que coexistem em um mesmo habitat.
A continuidade repetida deste processo de migração e especiação e de todos
os outros envolvidos com evolução biológica, numa escala de dezenas de milhares
a milhões de anos, vai distanciando morfológica e fisiologicamente as novas espé-

PALEONTOLOGIA
56

cies do modelo original (espécie ancestral), e é justamente esse processo, operando


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

nestes longos períodos de tempo, que estabelece a hierarquia natural observada em


todos os grupos de organismos.

7.2. Vicariância

Os efeitos do processo de vicariância são virtualmente os mesmos que os


resultantes da dispersão. A diferença está nos mecanismos envolvidos com o isola-
mento de populações. Na vicariância, a população, já estabelecida, tem um papel
passivo na sua própria subdivisão, que ocorre pelo aparecimento de algum obstá-
culo efetivo ao fluxo gênico entre as subpopulações criadas. Normalmente é um
processo tão lento quanto o mecanismo anagenético que pode estar acontecendo na
população afetada. Uma vez completada a separação, o resultado, depois de algum
tempo, é um evento cladogenético, produzindo duas espécies diferentes.
Uma série de fatores pode provocar um efeito vicariante: mudanças climáti-
cas e ambientais que levem à extinção de populações intermediárias, surgimento ou
alargamento de rios e lagos, variações no nível dos oceanos (eustasia), surgimento
de montanhas, vales ou istmos por perturbações tectônicas (isostasia), deriva con-
tinental etc. Estes processos têm a capacidade de isolar populações antes contínuas
por dificultar ou impossibilitar a migração entre elas, desencadeando os mecanismos
naturais de diferenciação genética já discutidos, que levarão as populações isoladas
a destinos evolutivos diferentes.

7.3. Desvendando a história geográfica

Uma vez que se conheçam os processos envolvidos com a distribuição, iso-


lamento de populações e suas consequências no processo evolutivo, o desafio é
buscar evidências de que estes processos ocorreram no passado em relação a um
determinado grupo de animais, plantas ou microrganismos. Para reconstituir a histó-
ria biogeográfica de um grupo são necessárias informações como:
- Todas as ocorrências registradas de espécies relacionadas. Estas informa-
ções são cruciais para que se possa ter uma ideia da radiação adaptativa experimen-
tada pelo grupo;
- Diferentes idades dos registros de cada uma das espécies fósseis conhecidas.
As idades são importantes para determinar quais formas são ancestrais e quais são
derivadas (descendentes);
- Detalhes da anatomia das formas conhecidas. As modificações anatômicas

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


57

observadas no espaço geográfico e ao longo do tempo são a chave para distinguir as


linhagens que se individualizaram ao longo da evolução de um determinado grupo;
- História geológica, ambiental e climática das regiões onde há registros de
espécies fósseis. O conhecimento da dinâmica geológica (por exemplo, conexão ou
isolamento de massas de terra por deriva continental), das mudanças ambientais
(existência de ambientes aos quais as espécies em estudo poderiam se adaptar ou
mudanças ambientais que poderiam extinguir espécies pré-existentes) e de mudan-
ças significativas no clima, que também poderiam facilitar ou dificultar a colonização
ou permanência de populações em uma região. Em áreas costeiras é importante o
conhecimento da variação eustática (subida e descida do nível dos oceanos) que
pode interferir sensivelmente na definição de ambientes e provocar conexão ou iso-
lamento de áreas continentais ou ilhas, facilitando o contato entre populações ou de-
terminando seu isolamento. Alguns episódios passados de elevação do nível global
dos oceanos foram tão extremos que tiveram estes efeitos estendidos a regiões bem
interiores dos continentes.
Todos esses fatores devem ser levados em conta na tentativa de reconstituir
um cenário coerente que possa explicar a distribuição original de um grupo, suas
ondas migratórias que promoveram radiação adaptativa, e as causas da extinção de
algumas linhagens ou do grupo como um todo, se for o caso.

PALEONTOLOGIA
8

CAPÍTULO

DERIVA DOS CONTINENTES


Pesquisa sugerida: Faça uma pesquisa mais aprofundada na literatura geológica impressa e online
sobre os mecanismos geológicos envolvidos com a movimentação dos continentes e as implicações
biogeográficas deste processo.

A dinâmica incessante da crosta terrestre (explicada no início desta apostila)


provocou remodelamentos extremos no relevo da superfície, tanto dos continentes
quanto dos oceanos, bem como redefiniu várias vezes a posição das massas de terra,
criando continentes e depois os fragmentando, remobilizando as partes, às vezes as
contatando com outro continente, diferente do seu de origem (caso do território da
Índia, que já foi conectado à região oriental da África e hoje faz parte da Ásia) ou
isolando-as no meio do oceano (caso da Austrália, que já foi contígua à Antártida).
Estes movimentos da crosta terrestre envolvidos com a deriva são muito lentos, da
ordem de alguns centímetros por ano, mas o acúmulo desta movimentação cons-
tante por centenas de milhões de anos provoca uma radical modificação no cenário
geográfico da Terra.
60
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

8.1. A Teoria de Deriva Continental

Já se discutia a movimentação dos continentes séculos atrás, mas a maioria


dos cientistas não aceitava essa ideia que parecia totalmente absurda. Uma teoria
que ousou explicar o processo de deriva, fundamentando-o em várias evidências
do registro geológico e fóssil foi apresentada em 1912 e publicada em detalhes em
1915, pelo cientista (geofísico e meteorologista) alemão Alfred Wegener. A chamada
Teoria da Deriva Continental, como ficou conhecida, argumentava que vários aspec-
tos do registro das rochas e dos fósseis não poderiam ser explicados a não ser que se
admitisse que os continentes estivessem ligados no passado. As argumentações de
Wegener eram as seguintes:
- Continuidade lateral de estruturas geológicas e sequências geológicas em
diferentes continentes: Correspondência na formação de antigas cadeias de monta-
nhas na América do Norte e Europa e de sequências sedimentares antigas na Amé-
rica do Sul e África, evidenciando que tinham sido contíguas no passado e somente
depois se separado.
- Distribuição de espécies extintas (Fig. 14): Várias formas de animais e ve-
getais encontradas fossilizadas na América do Sul, África, Antártida e Austrália só
poderiam ter se distribuído se não houvesse, na época (final da Era Paleozoica), as
barreiras oceânicas existentes hoje. Estas formas não teriam capacidade de atraves-
sar os oceanos Atlântico ou Índico, na extensão em que se encontram hoje. Algumas
destas formas são: Mesosaurus (lagarto marinho), Lystrosaurus e Cynognathus (rép-
teis mamaliformes) e Glossopteris (planta do grupo das pteridospermas). Além disso,
registros de fósseis indicavam, em determinadas regiões, climas incompatíveis com
a latitude ocupada hoje.

Figura 14. Evidências paleoclimáticas e do registro paleobiogeográfico, apresentadas por Alfred


Wegener, indicando que os continentes já estiveram unidos no passado. As áreas em branco nos
territórios (América do Sul, África, Índia, Madagascar, Austrália e Antártida) indicam regiões com
evidência de glaciação do final do Carbonífero ao início do Permiano (ver Fig. 10). As espécies extin-

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


61

tas representadas são comumente registradas depois do intervalo glacial, no final do Paleozoico e/ou
início do Mesozoico, e ocorrem em diferentes continentes. Estas informações são difíceis de justificar
quando observamos a distribuição atual dos continentes (detalhe na porção superior direita). Quando
admite-se a existência de um supercontinente reunindo todas estas porções emersas, tanto os dados
paleoclimáticos quanto os paleobiogeográficos fazem sentido.
______________________________________________________________________

- Paleoclima (Fig.14): Há registros de existência de geleiras em regiões da


África, da América do Sul e Índia, que não poderiam ter se formado considerando-
se a posição destas regiões nos dias de hoje. Somente quando admite-se que estas
massas de terra estavam localizadas mais para o sul, em latitudes mais elevadas, é
que pode-se desenhar um cenário geográfico e climático que explique a presença de
glaciares antigos nessas regiões.
Mesmo com todos esses argumentos, Wegener não conseguiu con-
vencer a maioria dos geólogos de sua época e morreu em 1930, sem o devido reco-
nhecimento por sua teoria. Na verdade, ele foi muito criticado e até desacreditado
por advogar uma ideia que, no início do século XX, era considerada pela maioria
como um grande absurdo.
Depois da segunda guerra mundial, com os novos equipamentos criados du-
rante o conflito para mapeamento do fundo oceânico (originalmente para facilitar
a navegação de submarinos) e durante a guerra fria, com o desenvolvimento de
instrumentos para monitorar o efeito de testes de explosões atômicas, foi possível
levantar informações sobre a geologia das profundezas dos oceanos que indicavam
a presença de cadeias de montanhas e enormes fendas, indicando muita atividade
sísmica. Os sismógrafos permitiram o registro regular desta atividade sísmica, e aí
percebeu-se que a litosfera era muito mais constantemente perturbada do que se
supunha.
O avanço no estudo sobre Paleomagnetismo e os novos conhecimentos pro-
duzidos até a década de 50 neste ramo das geociências traria nova luz sobre a in-
terpretação da história da crosta terrestre. Estas informações, como compreendidas
hoje, são basicamente as seguintes: Quando alguns minerais sensíveis ao magne-
tismo da Terra esfriam e cristalizam, depois de serem assentados por um derrame
de rocha ígnea, eles assumem uma organização cristalina que aponta para o polo
magnético da Terra naquele momento. Amostras destes minerais de rochas muito
antigas não mostram seus cristais orientados para o que seria o polo magnético
possível da Terra (norte ou sul, como sabe-se que ele alterna em diferentes épocas).
Este fato indica que as regiões mudaram de posição com o tempo e por isso os mi-
nerais cristalizados não apontam mais para o polo original que apontavam quando
foram formados. O padrão alternado (ora apontando para norte, ora para sul) de
paleomagnetismo das rochas do fundo oceânico também indica que vem havendo
movimentação progressiva da crosta por milhões de anos.

PALEONTOLOGIA
62
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

8.2. Teoria da Tectônica Global

A compreensão de todos esses novos fatos levou os geólogos a reconsiderar


a teoria de Alfred Wegener e no final dos anos 60 suas ideias tinham sido finalmente
aceitas, agora na forma de uma teoria mais completa e detalhada, a chamada Teo-
ria da Tectônica Global. Esta teoria explica que a crosta terrestre (tanto continental
quanto no fundo oceânico) está assentada sobre rocha fluida da Astenosfera, que é
a parte mais superficial do Manto (Fig. 15). A fluidez do manto é resultado da cons-
tante atividade radioativa de substâncias concentradas nas regiões mais profundas
do planeta, liberando muito calor capaz de derreter as rochas em seu interior. A
pressão resultante do calor e da movimentação destas camadas fluidas (correntes
de convecção) fratura a crosta e derrama rocha ígnea (vulcânica) constantemente,
provocando uma lenta e gradual expansão do fundo oceânico, ao se solidificar em
contato com as águas frias. A expansão da crosta no extremo de uma placa tectônica
faz com que ela pressione o outro extremo, o que causa seu afundamento (zona de
subducção) ao mergulhar sob camadas de rochas menos densas, como as da crosta
continental. Esses mecanismos geológicos explicariam os incessantes movimentos da
crosta terrestre e o constante reposicionamento dos continentes.

Figura 15. Esquema mostrando a dinâmica da crosta terrestre envolvida com a movi-
mentação dos continentes, segundo a Teoria da Tectônica Global. Quando duas correntes
de convecção do manto convergem (1), a força somada (seta vertical) rompe a crosta do
fundo oceânico (2) produzindo derrames de rocha ígnea que, ao solidificarem, expandem
progressivamente a crosta nas duas direções, causando lenta movimentação das placas tec-
tônicas (setas horizontais). A movimentação lateral força a placa oceânica contra uma placa
continental, fazendo com que ela se dobre (seta recurvada) e mergulhe (subducção) sob as
camadas continentais menos densas, sofrendo lento derretimento (3) pelo contato com o
manto. Este processo provoca enrugamento na borda da crosta continental (4) ao mesmo
tempo em que provoca atividade vulcânica por compelir lava para a superfície (5). Estes
dois processos combinados produzem cadeias de montanhas (6) na placa continental.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


63

Obviamente que este processo tem implicações diretas na distribuição dos


organismos vivos nas regiões continentais, insulares, marinhas e oceânicas. Na ver-
dade, a deriva continental é o mais espetacular dos processos envolvidos com a dis-
tribuição de formas de vida em todos os ambientes da Terra. Depois de sua aceita-
ção, praticamente todas as teorias e hipóteses de distribuições históricas de animais
e plantas tiveram que ser revistas, agora levando-se em consideração o fato de a
superfície da Terra ser um cenário dinâmico. Essa dinâmica está sempre redefinindo
rotas de dispersão e eventos vicariantes, influindo decisivamente na forma como os
grupos de animais, plantas e microrganismos se distribuíram nos vários ambientes
da Terra, nos diferentes períodos de tempo da história da vida no planeta.

ATIVIDADES

1. Justifique o levantamento de informações in situ e o emprego de infor-


mações de ambientes deposicionais atuais no esclarecimento das circunstân-
cias de morte e deposição de fósseis.

2. Por que as assembleias fósseis sempre incluem menos espécies que as


biocenoses originais que lhe deram origem?

3. Que fatores estão envolvidos com a seleção tafonômica e como ela se


processa?

4. O que o registro dos fósseis revela sobre o processo de evolução biológi-


ca ao longo do tempo geológico?

5. Explique como integrar informações sobre as idades dos registros e a


anatomia das espécies, história geológica, ambiental e climática das regiões, e
conhecimento da dinâmica geológica e eustasia para esclarecer a história bio-
geográfica e radiação adaptativa de um grupo de organismos.

6. Discuta a afirmação de que “a deriva continental é o mais espetacular


dos processos envolvidos com a distribuição de formas de vida em todos os
ambientes da Terra”.

PALEONTOLOGIA
9

CAPÍTULO

TAXONOMIA E SISTEMÁTICA
Leitura obrigatória: RIOS-NETTO, A. de M. 2010. Taxonomia e Sistemática. In: CARVALHO, I.S.
(ed.). 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Páginas 181 a 194.

A diversidade biológica é resultado do processo de evolução biológica e este


opera segundo princípios naturais sempre atuantes. Como o processo de evolução
privilegia a variabilidade mais que a conservação, acaba produzindo formas diferen-
tes a partir de um mesmo modelo ancestral, ou seja: uma espécie dá origem a outras
espécies parecidas, mas com algumas diferenças diagnósticas. A muito longo prazo
o acúmulo dessa diversificação produz formas cada vez mais diferentes dos ances-
trais, chegando ao ponto de espécies contemporâneas que têm seu ancestral comum
muito distante no tempo serem insuspeitas de possuir parentesco admissível. É o
caso, por exemplo, do cavalo e do rinoceronte, que têm seu ancestral comum extinto
há dezenas de milhões de anos e, com o acúmulo de modificações anagenéticas e
de eventos cladogenéticos nas duas linhagens separadas, incluindo várias formas
intermediárias extintas, hoje são completamente diferentes na anatomia geral, no
comportamento e nos hábitos. Algumas pessoas menos familiarizadas à ideia de
dinâmica evolutiva duvidariam convictamente de que o cavalo e o rinoceronte são
“primos”, mesmo que distantes.
A enorme diversidade de formas de vida é o resultado das mesmas leis na-
turais de evolução atuando mais ou menos intensamente em diferentes grupos, em
diferentes momentos de sua história. Quando levamos em conta as formas já extin-
tas, esta diversidade se multiplica enormemente, produzindo um desafio intimidador
66

a quem tentar organizá-la em algum esquema racional de parentesco. No entanto, o


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

processo evolutivo opera segundo leis que naturalmente organizam a biodiversidade


resultante, tornando possível sistematizar esta diversidade em categorias relaciona-
das segundo uma hierarquia biológica.
Desde a antiguidade os humanos se interessam pela diversidade de seres
vivos e de fósseis. Os gregos, na antiguidade clássica, já praticavam a hierarquização
da diversidade biológica. Alguns colecionadores pioneiros certamente aventuraram-
se na tarefa de tentar organizar a diversidade, pelo menos dentro da amplitude de
suas coleções. Porém, ao se tentar organizar a biodiversidade, mesmo que parcial-
mente (alguns grupos de maior interesse de um colecionador, por exemplo), depara-
se com uma questão filosófica inevitável que irá influenciar a forma como se define
os critérios de classificação. As classificações de coleções de organismos feitas antes
do século XVIII obedeciam a critérios de organização subjetivos ou mesmo lúdicos,
levando ao agrupamento de formas de vida em função de uma aparência superfi-
cialmente similar, mas que não necessariamente informava qualquer aspecto sobre
o processo natural envolvido com as semelhanças e diferenças observadas entre os
espécimes.

9.1. Taxonomia e sistemática lineanas

Foi o naturalista sueco Carolus Von Linnaeus (ou simplesmente Carl Lineu) quem
primeiramente formalizou, em 1735, uma sólida organização hierárquica capaz de ser desdo-
brada em categorias grandes e pequenas, organizáveis no que ele chamou de Systema Naturae
(Fig. 16), referindo-se ao sistema natural de organização das formas de vida. Lineu observou
acertadamente que a distância morfológica (diferenças perceptíveis) entre as espécies, como
eram reconhecidas na época, podia ser maior ou menor, mas numa escala muitas vezes pro-
gressiva que permitia criar categorias pequenas (gêneros) que, por sua vez poderiam ser rela-
cionadas entre si pelo maior ou menor grau de afinidade, definindo categorias superiores cada
vez maiores e que incluíam as inferiores. Lineu usou então uma terminologia que já era pelo
menos parcialmente utilizada para definir categorias, embora sem o caráter formal que ele
agora empregava. Deste modo, ele definiu seu sistema obedecendo à seguinte ordem de hie-
rarquização: espécie, gênero, ordem, classe e reino. A categoria família foi primeiramente usada
por Lineu para plantas e depois passou a ser empregada para animais pelos seus seguidores. A
categoria filo foi criada posteriormente por Georges Cuvier para reunir classes. Cuvier também
estendeu o emprego do sistema lineano para a classificação das espécies extintas.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


67

Figura 16. Uma das edições, em Latim, do livro Systema Naturae, de Carl Lineu, onde são apre-
sentados os fundamentos e critérios para nomear grupos biológicos e organizá-los em um esquema
hierárquico. A primeira edição foi publicada em 1735. Na décima edição, de 1758, ele introduziu o
sistema binomial de nomenclatura de espécies.
______________________________________________________________________

Desde sua criação por Lineu, o sistema incorporou um progressivo refinamen-


to nos séculos seguintes. Na prática, a aplicação deste sistema levou à necessidade
de se criar subcategorias quando os grupos a serem classificados apresentavam uma
diversidade exacerbada ou mais complexa em algum nível hierárquico. Por exem-
plo, uma família que apresentasse um grande número de gêneros ou um conjunto
de características complexo demais para definir facilmente estes gêneros poderia ser
subdividida em subfamílias que incluiriam, cada uma, um conjunto mais coeso de
gêneros. Isso acabou se aplicando a ordens, na forma de subordens, a classes, na
forma de subclasses, e a praticamente todas as grandes categorias, aparecendo en-
tão subcategorias como infraclasses, infraordens, superfamílias, tribos etc.
Uma curiosidade histórica sobre o sistema lineano é que ele foi concebido
como um mecanismo hierárquico que traduzia o vasto resultado da criação. Lineu
era doutrinado na filosofia criacionista e acreditava que a diversidade, como ela se
apresenta, reflete a vontade divina do criador, mas que era passível de ter sua ordem
compreendida e desmembrada em critérios objetivos observáveis, que foi o que ele
fez na sua obra Systema Naturae.
A doutrina criacionista viria a ser abandonada pela maioria dos naturalistas

PALEONTOLOGIA
68

no final do século XIX e substituída pela filosofia evolucionista que se consolidou no


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

século XX. Esta mudança na definição da concepção a ser levada em conta ao se


organizar uma classificação biológica levaria a profundas modificações nos critérios
de julgamento utilizados para definir grupos de animais, plantas e microrganismos.
O critério fundamental de classificação teria agora que ser centrado no parentesco
evolutivo e as classificações teriam que refletir, em seus esquemas ilustrativos, o pró-
prio desdobramento do mecanismo de evolução biológica. Surpreendentemente,
o esquema taxonômico de Lineu mostrou-se tão bom para definir categorias hie-
rárquicas da diversidade biológica sob uma ótica evolutiva quanto o era sob uma
filosofia criacionista. O resultado disso é que mudou-se a filosofia de classificação, e
com ela os critérios de organização, mas manteve-se o sistema lineano de taxonomia
que, essencialmente, define uma espécie com dois nomes – o genérico e o especí-
fico (Homo sapiens, por exemplo), onde o nome genérico dá uma informação de
afinidade com as outras espécies do mesmo gênero (Homo erectus e Homo habilis,
por exemplo). As outras categorias e subcategorias também seriam empregadas na
hierarquização da diversidade, mas agora traduzindo uma concepção evolutiva, ao
invés de criacionista.

9.2. Sistemática Filogenética

Do século XVIII a meados do século XX a metodologia taxonômica lineana


foi empregada praticamente com exclusividade para organizar as formas de vida,
incluindo as novas formas conhecidas que se multiplicavam à medida que novos
ambientes eram explorados. Foi somente nos anos 60 do século XX que uma nova
forma de organizar e hierarquizar as categorias biológicas viria a surgir, passando
a rapidamente se popularizar entre os biólogos. Esta nova forma de classificar foi
concebida por um entomologista alemão chamado Willi Hennig e formalizada em
1966. Hennig observou que os vários caracteres existentes em um organismo (for-
ma da cabeça e do abdome, olhos, antenas, apêndices etc.) poderiam ser tipifica-
dos individualmente e transformados em caracteres que variavam entre espécies
e categorias superiores. Por exemplo, um inseto poderia ter antenas curtas e outra
espécie, mesmo próxima, poderia apresentar antena mais longa. Comparando-se
formas mais evoluídas com formas mais primitivas, poderia-se descobrir qual carac-
ter apareceu primeiro na evolução do grupo (plesiomorfia) e qual apareceu depois
(apomorfia), por evolução, sendo compartilhado por espécies próximas, servindo
para reuni-las em um grupo. Um vasto mapeamento de caracteres alternativos em-
pregados em uma matriz de computador poderia ser submetido a um programa que
agruparia formas mais afins (que compartilhavam mais caracteres), distinguindo-as
de formas evolutivamente mais afastadas (que compartilhavam menos caracteres).
Hennig abandonou a nomenclatura lineana clássica (ordem, classe, filo, reino) e pas-
sou a empregar um revolucionário conceito de categoria taxonômica, o clado. Um

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


69

clado inclui um ancestral comum e suas formas diretamente derivadas. Um clado


pode pertencer a outro clado maior, que o reúne em um agrupamento com outro
clado irmão e o ancestral direto de ambos. Esse clado maior pode ser incorporado
por outro mais inclusivo, utilizando-se o mesmo critério de hierarquização. Desta
forma, não há necessidade de nomear diferentes tipos de categorias como Lineu
convencionara, mas apenas uma, o clado, com um conceito que lhe dá versatilidade
para incorporar outros clados e/ou ser incluído em um clado mais abrangente. Uma
organização hierárquica baseada em clados é um cladograma (Fig. 17). Esta nova
escola de classificação foi nomeada Filogeneticista por adotar a ancestralidade direta
como o critério mais fundamental de classificação. A escola clássica lineana passou
a ser chamada de Evolucionista ou tradicional. Ao longo dos anos 70 e 80, mem-
bros destas duas escolas travaram uma acirrada disputa, expondo suas justificativas
filosóficas e metodológicas e criticando, cada uma, os argumentos da escola rival.
Atualmente, a escola filogeneticista (também chamada cladista) é a mais adotada
porque seus critérios mostraram-se mais objetivos e sua operacionalização mais fácil
pelo uso de computadores que se popularizaram. Porém, a escola Evolucionista ain-
da persiste como alternativa válida de classificação e, na verdade, não se pode dizer
que uma esteja necessariamente mais correta que a outra; a escolha de uma escola
ou de outra é, sobretudo, feita segundo um critério filosófico.

9.3. Parataxonomia

O fato de o registro fóssil ser frequentemente fragmentário e incompleto faz


com que seja difícil encontrar, no material preservado, caracteres que sejam sufi-
cientemente diagnósticos para a identificação segura de um táxon biológico, prin-
cipalmente quando o que ficou preservado foi alguma estrutura produzida por um
organismo e não o organismo em si. O conceito biológico de espécie, que diz que
“uma espécie é uma população ou grupo de populações cujos indivíduos são ca-
pazes de se intercruzar e produzir descendência fértil”, é muitas vezes difícil, se não
impossível, de aplicar em certos tipos de fósseis. Bons exemplos são: estruturas re-
produtivas de algas e plantas (esporos e pólens) que ocorrem em grande quantida-
de no registro fóssil, mas na grande maioria das vezes dissociados dos indivíduos
que os produziram; ovos de vertebrados (mais comumente de répteis) que também
ocorrem isolados ou em ninhos, na maioria dos casos sem evidência direta de quais
espécies biológicas pertenceriam; marcas de atividades de animais (tocas, tubos e
rastros) difíceis de relacionar a espécies em particular.

PALEONTOLOGIA
70
Núcleo de Educação a Distância - UFMA

Figura 17. Cladograma simplificado do grupo dos dinossauros. Cada gênero (representado por uma
silhueta) pode ser um clado incluindo mais de uma espécie e o ancestral comum próximo. Clados
maiores incluem mais de um gênero e o seu ancestral comum (cada um dos pontos de bifurcação das
linhas). O clado Dinosauria inclui todos os outros clados que derivam de um mesmo ancestral que é
o dinossauro mais antigo e primitivo de todo o grupo.
______________________________________________________________________

Essa realidade levou à necessidade de se desenvolver um sistema paralelo


de identificação com base em caracteres comumente preservados, sem necessaria-
mente conseguir identificar a que espécie biológica pertenceria aquele padrão. As-
sim, desenvolveu-se o conceito de paratáxon, base de um sistema nomenclatural
que permite a organização e hierarquização de informações comuns no registro fós-
sil e difíceis de relacionar a táxons biológicos específicos. Este método taxonômico
obedece às mesmas regras básicas do sistema lineano e tornou-se tão sólido que,
mesmo que posteriormente se identifique a origem específica de um paratáxon, ou
seja, o nome da espécie biológica a que pertencia, não necessariamente precisa-se
abandonar o nome específico parataxonômico da estrutura. Por exemplo, um deter-
minado pólen que é comumente encontrado entre os palinomorfos recebeu o nome
genérico de Classopollis, um paratáxon com várias espécies que representam varia-
ções morfológicas do mesmo (e.g. Classopollis major, C. torosus, C. meyeriana, C.
intrareticulatus). Hoje sabe-se que Classopollis é relacionado a árvores coníferas de
espécies extintas, mas mesmo que se identifique qual espécie biológica de conífera
um destes paratáxons está associado, não há a necessidade de abandonar o nome
parataxonômico.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


10

CAPÍTULO

PALEOECOLOGIA
Leitura obrigatória 2: DUTRA, T.L. Paleoecologia. 2010. In: CARVALHO, I.S. (ed.). 2010. Paleonto-
logia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Páginas 339 a 349.

A Paleoecologia é a ecologia aplicada a ambientes antigos e espécies extin-


tas em sua maioria. É uma abordagem integrativa dentro da Paleontologia porque
reúne informações de todas as sub-áreas desta ciência (e muito de Geologia) para
tentar compreender, pelo menos parcialmente, as inter-relações que ocorriam entre
as espécies que habitavam os ambientes registrados pelas rochas sedimentares e
pelos fósseis.

10.1. Assembleia fóssil e Paleocomunidade

Uma assembleia fóssil, que é simplesmente um conjunto de fósseis encontra-


dos em um mesmo depósito, nem sempre representa uma paleocomunidade, que
é um conjunto de fósseis que verdadeiramente tiveram relações ecológicas entre
si, vivendo em um mesmo ambiente. Porém, muitas vezes a assembleia representa
exatamente uma paleocomunidade. A chave para esclarecer esta questão inclui a co-
erência ecológica das espécies entre si. Por exemplo, se todas são reconhecidamente
de ambiente marinho raso e os sedimentos são típicos deste tipo de ambiente, não
há nenhuma incoerência ecológica na assembleia. A repetição de uma assembleia
em regiões diferentes reforça, por amostragem estatística, que aquelas espécies ver-
72

dadeiramente ocorriam juntas e se relacionavam ecologicamente e, por isso, sempre


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

são encontradas juntas.


Diferentes eventos podem produzir assembleias fósseis com características
bem distintas. Eventos catastróficos, que ocorrem de forma instantânea, dão uma
ideia do ambiente em um determinado momento, como uma “fotografia” fossiliza-
da. Dois exemplos bem conhecidos são:
1) Os depósitos paleozoicos do Folhelho Burgess, no Canadá, produzi-
dos pelo desmoronamento e deslizamento de encostas de lama sobre uma variada
comunidade de invertebrados. Vários desmoronamentos ocorreram em diferentes
momentos. Os depósitos fossilíferos registram uma biocenose do Cambriano (início
da Era Paleozoica) que habitava o antigo fundo marinho.
2) Os níveis de cinzas vulcânicas precipitadas (Período Mioceno, em
Ashfall, Nebraska, EUA) que mataram e soterraram uma comunidade continental
dominada por grandes vertebrados, principalmente rinocerontes, que tiveram seus
esqueletos preservados por inteiro.
Depósitos atricionais, por outro lado, se formam pelo acúmulo progressivo
de restos de organismos, cobrindo um determinado intervalo de tempo e agregando
informações daquele período transcorrido.

10.2. Paleoautoecologia e Paleosinecologia

Depois de uma detalhada análise tafonômica (capítulo 5) do depósito em


questão, segue-se a etapa de coleta de fósseis que deve recolher exemplares do
maior número possível de espécies que compõem a assembleia. Cada espécie co-
letada deve ser analisada morfologicamente e corretamente identificada, sempre
que possível. Depois de bem compreendida a anatomia de uma espécie fossilizada,
precisa-se tentar entender o papel individual que ela desempenhava no seu am-
biente (autoecologia), ou seja, reconhecer se se tratava de uma espécie herbívora,
carnívora, carniceira ou onívora; como se locomovia (no caso de animais e alguns
microrganismos), se vivia em ambiente mais seco ou mais úmido; no caso de for-
mas aquáticas, tentar reconhecer se habitava ambiente raso ou profundo, límpido
ou turvo, qual grau de salinidade podia tolerar etc. Para tanto, é útil a distinção de
ecótipos, que são padrões morfológicos que indicam adaptações a condições eco-
lógicas específicas. Frequentemente é possível também determinar se uma espécie
era generalista ou especialista em sua dieta, analisando seu padrão de dentição.
Algumas espécies poderiam ser capazes de sobreviver em uma gama de diferentes
nichos (eurioicas) enquanto outras não toleravam condições diferentes do seu nicho
restrito (estenoicas).
Outra fase da abordagem paleoecológica é tentar-se inter-relacionar infor-
mações de diferentes espécies que pertenciam a um mesmo ambiente, objetivando

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


73

reconhecer algumas relações ecológicas entre elas (sinecologia). Por exemplo, qual
espécie era predadora ou parasita de qual outra; que tipo de itens vegetais de uma
determinada planta eram consumidos por um determinado herbívoro; quais micror-
ganismos poderiam provocar envenenamento no ambiente pela produção de toxi-
nas e quais espécies estariam suscetíveis a isso.
As reconstituições ecológicas precisam incluir também um detalhado estudo
geológico das fácies sedimentares, da granulometria dos sedimentos, das estruturas
sedimentares, da geoquímica das camadas, e da formação geológica como um todo.
É preciso haver uma coerência entre os dados geológicos e paleontológicos para que
uma reconstituição paleoecológica seja consistente.

PALEONTOLOGIA
11

CAPÍTULO

HISTÓRIA DA VIDA NA TERRA


Leitura obrigatória 1: ALMEIDA, J.A.C. de & BARRETO, A.M.F. 2010. O tempo geológico e evolu-
ção da vida. In: CARVALHO, I.S. (ed.) 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência. Ler
páginas 104 a 109.
Leitura obrigatória 2: FAIRCHILD, T.R. & BOGGIANI, P.C. 2010. A vida primitiva: do Criptozoico
(Pré-Cambriano) ao início do Fanerozoico. In: CARVALHO, I.S. (ed.) 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio
de Janeiro: Interciência. Ler páginas 325 a 337.

O objetivo final da Paleontologia é documentar o mais detalhadamente pos-


sível toda a história da vida na Terra. Isso é uma tarefa tanto pretenciosa quanto esti-
mulante. Mesmo com a limitada capacidade de o registro dos fósseis nos fornecer in-
formações pormenorizadas sobre muitos grupos de organismos e ambientes antigos,
a multiplicação do número de pesquisadores deste empolgante ramo das ciências
naturais, o desenvolvimento de tecnologias mais capazes de tirar informações dos
fósseis e das rochas que os contêm, e os achados de novos sítios fossilíferos revela-
dores vêm aumentando vertiginosamente o nosso conhecimento sobre a história da
biodiversidade no nosso planeta, desde seu surgimento até as espécies extintas que
precederam diretamente as atuais.

11.1. Fósseis como balizas do tempo geológico

O conhecimento que já temos sobre os principais grupos de organismos que


se multiplicaram nos oceanos, nos mares e nos continentes desde que o registro fóssil
se tornou mais numeroso já é suficiente para entendermos muito do que aconteceu
ao longo da história evolutiva. O registro fóssil tornou-se mais comum como conse-
quência do surgimento de formas com estrutura física mais resistente (conchas e es-
queletos nos animais invertebrados). Isso foi há cerca de 540 milhões de anos e este
76

acontecimento, documentado em ambientes marinhos de quase todo o planeta e


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

conhecido como Período Cambriano, foi escolhido como marco para o início da Era
Paleozoica. Muitos outros acontecimentos biológicos e geológicos deixaram evidên-
cias no âmbito continental, oceânico e, às vezes, global. Estes episódios de mudanças
climáticas, do posicionamento das massas continentais, de variações significativas
no nível dos oceanos e, particularmente, de mudanças na flora e fauna dominantes
é que servem como balizas para organizar o tempo geológico. Essa maneira de orde-
nar os eventos da história da Terra começou com as primeiras iniciativas de datação
relativa, na passagem do final do século XVIII para o início do século XIX, com base
nas sucessões faunísticas, e se aperfeiçoou muito. Atualmente, em cada intervalo de
tempo da história geológica e biológica da Terra incluem-se informações muito mais
detalhadas como, por exemplo: presença de cadeias de montanhas em certas regi-
ões onde hoje o relevo é muito menos acidentado; invasão de águas oceânicas em
grandes lagos de água doce; isolamento de imensas regiões continentais pela subida
extrema do nível do mar, e até mesmo o estabelecimento de correntes oceânicas a
partir de determinada época.

11.2. Principais subdivisões do tempo geológico

O desenvolvimento dos métodos de datação levou à distinção de intervalos


de tempo com nível de acuidade cada vez maior, ou seja, com distinção de subdivi-
sões de apenas centenas de milhares de anos. Tudo isso vem permitindo um cons-
tante incremento de informações dentro dos grandes intervalos de tempo já bem
consolidados, como os éons, as eras e os períodos.
A seguir está exposto um resumo bastante simplificado do conheci-
mento que se tem dos principais eventos biológicos que marcaram os maiores inter-
valos de tempo da história da Terra.
Éon Arqueano (3,9 a 2,5 bilhões de anos antes do presente): Durante o Ar-
queano, a Terra teve sua superfície suficientemente esfriada para que as rochas se
solidificassem formando a crosta e o vapor d´água se condensasse na atmosfera,
precipitando e formando os oceanos. No éon anterior (Hadeano), o planeta era
muito quente e formado por rocha fluida.
A vida surgiu provavelmente nos oceanos, há cerca de 3,5 bilhões de anos,
na forma de microrganismos anucleados que, em algum momento, adquiriram a
estrutura das cianobactérias conhecidas até hoje. A multiplicação destes microrga-
nismos, que produzem oxigênio como subproduto metabólico, lentamente foi trans-
formando a atmosfera, antes rica em amônia, metano e gás carbônico, nesta rica em
oxigênio que respiramos.
Éon Proterozoico (2.5 bilhões a 542 m.a. – milhões de anos): Surgimento dos
Eucariotos há cerca de 2 bilhões de anos e de organismos multicelulares entre 700 e

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


77

640 m. a.. No final do Proterozoico (por volta de 550 milhões de anos) há registro de
uma fauna de invertebrados relativamente complexa (Fauna de Ediacara), mas sem
esqueletos duros ou conchas, em mares rasos ainda pouco oxigenados.
Éon Fanerozoico (542 m.a. até a atualidade) dividido em três grandes eras:
Era Paleozoica (542 a 251 m.a.): Começa com uma rápida diversificação
dos invertebrados marinhos com conchas ou esqueletos resistentes, no início do
Cambriano. As primeiras plantas terrestres que evoluíram de algas aparecem por
volta de 420 m.a., acompanhadas por invertebrados como milípedes, gastrópodes
e aracnídeos. Os primeiros peixes aparecem na primeira metade da Era Paleozoica
e rapidamente passam a dominar o ambiente marinho, com uma sucessão de dife-
rentes grupos progressivamente mais avançados e uma notável radiação adaptativa
no Período Devoniano. Os anfíbios descendem de um grupo específico de peixes
(Sarcopterígios) e surgem no registro neste mesmo período, há cerca de 370 m.a.;
também no Devoniano surgem os insetos. Os répteis evoluíram de anfíbios por volta
de 340 m.a. (Carbonífero) e se diversificaram rapidamente. No final do Paleozoico
há um domínio de répteis Therapsida (mamaliformes), mas muitos outros subgru-
pos de répteis estão bem registrados. Nos últimos períodos desta era, as plantas
desenvolveram formas lenhosas de grande porte, culminando com o aparecimento
das coníferas que passaram a dominar as paisagens continentais, seguidas de ou-
tras formas também expressivas em quantidade, destacadamente as samambaias
arborescentes. O marco que finaliza a Era Paleozoica é um declínio considerável na
biodiversidade, tanto marinha quanto terrestre, interpretado como o maior evento
de extinção em massa já ocorrido, encerrando esta era e iniciando a seguinte (Me-
sozoica) há 251 m.a..
Era Mesozoica (251 a 65 m.a.): Os dinossauros e mamíferos surgem no Triás-
sico, por volta de 230 m.a. Os primeiros a partir de répteis tecodontes e os segundos
pela progressiva evolução de uma linhagem de répteis mamaliformes (Therapsida).
As aves aparecem no Jurássico, há cerca de 195 m.a.; desenvolveram-se de pe-
quenos dinossauros emplumados. As plantas com flores (angiospermas) fazem sua
aparição no registro por volta de 141 m.a.. Os grandes répteis dominaram a maior
parte do mesozoico, tanto nos mares e oceanos quanto nos continentes; os mamí-
feros eram representados por formas pequenas, variando desde o tamanho inferior
ao de um camundongo ao tamanho de uma ratazana, mas os subgrupos eram dife-
rentes dos conhecidos hoje. O final da Era Mesozoica é marcado por um evento de
extinção súbita que dizimou principalmente as espécies de grande porte, que incluiu
os dinossauros, répteis voadores e formas reptilianas aquáticas. A interpretação mais
aceita é que o desastre teria sido consequência da queda de um meteoro, levantando
poeira na atmosfera e escurecendo a superfície do planeta por semanas, o que teria
provocado um colapso na cadeia alimentar.
Era Cenozoica (65 m.a. até a atualidade): Com a extinção dos répteis gi-
gantes, os pequenos mamíferos passaram a ocupar a maioria dos nichos deixados
vagos e em algumas dezenas de milhões de anos experimentaram uma espetacular
radiação adaptativa que garantiu o domínio em terra e também adaptação à vida
nos rios, lagos e oceanos. As angiospermas consolidaram seu domínio nas regiões
tropicais e equatoriais e as coníferas mantiveram-se como vegetação dominante em

PALEONTOLOGIA
78

latitudes mais elevadas. Ao longo do cenozoico, observa-se uma sucessão de distin-


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

tas ondas adaptativas de formas de mamíferos, seguindo-se à extinção ou declínio


de outros subgrupos. As aves também experimentaram uma notável diversificação.
Mudanças climáticas extremas ocorreram de forma cíclica nos dois últimos períodos
(Plioceno e Pleistoceno) antes do Holoceno (época atual), com rigorosos eventos
glaciais intercalados por intervalos interglaciais mais amenos. Essas mudanças re-
petidas provocaram muitas extinções e as espécies que lograram sobreviver a este
cenário climático dinâmico colonizam o mundo como nós o conhecemos.

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


12

CAPÍTULO

REGISTROS FÓSSEIS NO BRASIL


E NO MARANHÃO
Como já comentado acima, o vasto território brasileiro guarda um privilegia-
do registro em um grande número de bacias sedimentares que variam enormemente
em tamanho. Alguns dos registros geológicos e paleontológicos que se destacam no
Brasil são:
Ocorrência de estromatólitos (marcas deixadas por colônias de cianobacté-
rias) em calcário marinho do Proterozoico Superior, em Minas Gerais. Estes são
fósseis muito antigos e documentam uma época em que a vida na Terra era ainda
muito primitiva e confinada aos ambientes aquáticos.
Uma grande floresta petrificada está soterrada logo abaixo da superfície, es-
tendendo-se por uma ampla área do Tocantins, Maranhão e Piauí. Ela data do final
da Era Paleozoica e inclui formas de samambaias gigantes e coníferas.
Registro do domínio dos répteis exóticos que precederam os dinossauros,
no Triássico. A região de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, guarda camadas que
vêm fornecendo um ótimo registro desta época, inclusive com algumas espécies de
dinossauros que estão entre as mais antigas conhecidas em todo o mundo.
Várias bacias brasileiras documentam o Cretáceo (último período da Era Me-
sozoica) e os fantásticos animais que habitaram a América do Sul, particularmente a
fauna dinossauriana, entre outros répteis exóticos. Os registros mais bem preserva-
dos vêm de Minas Gerais e São Paulo, mas ocorrências importantes são registradas
também no Ceará, Maranhão e Mato Grosso.
As bacias costeiras brasileiras documentam detalhadamente o processo de
separação dos continentes sul-americano e africano, na Era Mesozoica, tendo se
formado justamente em consequência dos processos de rompimento e subsidência
da crosta envolvidos com este megaevento geológico.
A Era Cenozoica também está bem representada no Brasil, notavelmente na
minúscula Bacia de Itaboraí, no Rio de Janeiro, onde ocorrem esqueletos de mamí-
feros primitivos que colonizaram a América do Sul no início desta era. O Mioceno
e Plioceno são representados no Acre, com mamíferos e crocodilos gigantes que
viviam em regiões de savana onde hoje é floresta amazônica. Mamíferos gigantes do
Pleistoceno são encontrados nas cavernas de Minas Gerais e Bahia, e em depósitos
sedimentares do Rio Grande do Norte, Ceará e alguns estados da Amazônia (princi-
palmente Acre e Pará).
80

O território maranhense é quase todo incluído na bacia sedimentar paleozoica


Núcleo de Educação a Distância - UFMA

do Parnaíba e várias formações sedimentares registram diferentes épocas da história


geológica e biológica do estado. Além da floresta petrificada citada acima (Formação
Pedra de Fogo), que vai do sul do estado até o baixo vale do rio Parnaíba, ocorrem
outras formações paleozoicas fossilíferas, notavelmente as formações Poti e Piauí.
O Cretáceo está bem representado tanto na Bacia do Parnaíba quanto na Ba-
cia de São Luís, na região norte-noroeste do Maranhão. A Formação Codó (Bacia do
Parnaíba), que ocorre em uma ampla área no estado, documenta a existência de um
sistema lacustre que posteriormente foi invadido pelo Oceano Atlântico Equatorial
em expansão, há mais de 110 m. a.. No vale do rio Itapecuru há o registro geológico
de uma grande planície fluvial que desembocava no Atlântico há pouco mais de cem
milhões de anos. Ali ocorrem fósseis de dinossauros, crocodilos e peixes. Na região
de Alcântara, um grande estuário deixou um conjunto de camadas (Formação Al-
cântara) de idade entre 95 e 99 milhões de anos, com um fragmentário, mas variado,
registro de dinossauros, crocodilos, pterossauros e peixes associados a coníferas e
samambaias gigantes petrificadas, representando a fauna e flora que habitou o Ma-
ranhão em meados do Período Cretáceo.

ATIVIDADES
1. Quais as diferenças fundamentais entre os sistemas de classificação
lineano e cladista?

2. Quais as justificativas para os paleontólogos empregarem o sistema


parataxonômico para nomear e classificar alguns tipos de fósseis?

3. Qual a justificativa para os paleontólogos considerarem como crucial


o esclarecimento da questão de uma assembleia fóssil representar ou não uma pale-
ocomunidade?

4. Que informações resgatáveis do registro fóssil você acha que seriam


úteis para definir o perfil autoecológico de uma espécie e como você poderia inves-
tigar a sinecologia de uma comunidade biológica extinta?

5. Interprete e justifique a afirmação de que “é preciso haver uma co-


erência entre os dados geológicos e paleontológicos para que uma reconstituição
paleoecológica seja consistente”.

6. Que critérios são empregados para definir intervalos do tempo geoló-


gico e que tipos de registro são utilizados como balizas para estabelecer as divisões?

Dr. Manuel Alfredo Araujo Medeiros


81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, D.S. 1994. Elementos Básicos de Sistemática Filogenética. São Paulo:


Sociedade Brasileira de Entomologia.

CARVALHO, I.S. (ed.). 2010. Paleontologia, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Interciência.

FUTUYMA, D. 2002. Biologia Evolutiva, 3ª ed.. Ribeirão Preto: FUNPEC.

MENDES, J.C. 1977. Paleontologia Geral. São Paulo: LTC Editora S.A. EDUSP.

MENDES, J.C. 1984. Elementos de Estratigrafia. São Paulo: T.A. Queiroz.

PETRI, S. & FÚLFARO, V.J. 1983. Geologia do Brasil. São Paulo: T.A Queiroz/Edi-
tora da USP.

RIDLEY, M. 2006. Evolução, 3ª ed.. Porto Alegre: Artmed.

ROSSATO, M.S.; BELLANCA, E.T., FACHINELLO, A. CÂNDIDO, L.A.; SILVA, C.R.


da & SUERTEGARAY, D.M.A. 2008. Terra: Feições Ilustradas, 3ª ed.. Porto Alegre:
Editora da UFRGS.

ROSSETTI, D.F.; GÓES, A.M. & TRUCKENBRODT, W. 2001. (eds.). O Cretáceo na


Bacia de São Luís-Grajaú. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.

SALGADO-LABOURIAU, M.L. 1994. História Ecológica da Terra. São Paulo: Ed-


gard-Blücher LTDA.

SANTOS, M.E.C.M. & CARVALHO, M.S.S. 2009. Paleontologia das Bacias do Par-
naíba, Grajaú e São Luís. Rio de Janeiro: CPRM.

TEIXEIRA, W.; TOLEDO, M.C.M. de; FAIRCHILD, T.R. & TAIOLI, F. 2000. Decifran-
do a Terra. São Paulo: USP, Oficina de Textos.

Informações sobre bacias sedimentares brasileiras também incluem dados publica-


dos pela PETROBRAS e Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM)
disponibilizados na Internet por vários autores. As fotos de satélite foram obtidas no
Google Earth.

PALEONTOLOGIA

Você também pode gostar