Você está na página 1de 35

SECRETARIA DE ESTADO DA SAUDE

COORDENADORIA DE RECURSOS HUMANOS


FUNDAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO – FUNDAP

PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL

JANAINA KLINKO

A RECONSTRUÇÃO DE UMA HIPÓTESE DIAGNÓSTICA:


UM CASO DE PSICOSE NÃO-DECIDIDA DA INFÂNCIA

Monografia apresentada ao Programa de


Aprimoramento Profissional/SES, elaborada no
Serviço de Psicologia do Hospital do Servidor
Público Estadual de São Paulo (HSPE-SP)

Orientadora: Maria Tereza V. Montserrat

Área: Psicologia Clínica

SÃO PAULO
2010
E quando ele chegou aonde vivem os monstros eles rugiram
seus terríveis rugidos e arreganharam seus terríveis dentes e
reviraram seus terríveis olhos e mostraram suas terríveis garras
até que Max disse “quietos!” e amansou todos eles com o
truque mágico de olhar nos olhos amarelos deles sem piscar
nenhuma vez e eles ficaram com medo e disseram que mais
monstruoso do que ele não havia.
Maurice Sendak
RESUMO

KLINKO, J. A reconstrução de uma hipótese diagnóstica: um caso de psicose


não-decidida da infância. 2010. 35f. Monografia - Hospital do Servidor Público
Estadual de São Paulo, São Paulo, 2010.

Este trabalho pretendeu refletir sobre o atendimento de um garoto de dez anos, no


que concerne a construção de uma hipótese diagnóstica e, consequentemente, o
estabelecimento de uma estratégia clínica pautada na relação transferencial. Para
isso, se fez necessária uma breve apresentação do caso a partir de um recorte que
tem em vista uma hipótese psicanalítica do desenvolvimento infantil. E,
posteriormente, foi proposta uma discussão sobre as potências do diagnóstico de
psicose não-decidida da infância.

Palavras-chave: Diagnóstico, Transferência, Psicose não-decidida da infância,


Desenvolvimento infantil.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................5

2 OBJETIVOS.....................................................................................................7

3 METODOLOGIA................................................................................................8

4 APRESENTAÇÃO DO CASO...........................................................................9

4.1 Queixa................................................................................................................9

4.2 Primeiras Impressões........................................................................................9

5 UM GAROTO AMEAÇADO............................................................................13

5.1 Fantasia e Realidade.......................................................................................13

5.2 Ameaça de Aniquilamento...............................................................................15

5.3 Onipotência......................................................................................................16

5.4 O Fantasma Abuso..........................................................................................19

6 A CONSTRUÇÃO DA HIPÓTESE DIAGNÓSTICA........................................21

6.1 Psicose?..........................................................................................................21

6.2 Um caso de psicose não-decidida da infância................................................22

7 MANEJO CLÍNICO..........................................................................................26
7.1 O Outro inexistente..............................................................................................27

7.2 O Outro aterrorizador...........................................................................................28

7.3 O Outro barrado...................................................................................................29

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................32

REFERÊNCIAS..........................................................................................................34
5

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado de uma discussão teórico-clínica realizada a


partir de um atendimento ambulatorial, durante o Programa de Aprimoramento
Profissional em Psicologia Clínica no Hospital do Servidor Público Estadual
Francisco Morato de Oliveira (HSPE).
Tendo como ponto de partida o exercício da clínica em si, e como aporte
teórico o referencial psicanalítico no que concerne a obra de Freud e Lacan,
realizou-se a construção de um pensamento diagnóstico, sobre o qual discorreremos
neste trabalho.
O caso escolhido é o de Douglas1, um garoto de dez anos que chega ao
Serviço de Psicologia por conta de dificuldades no acompanhamento escolar. No
entanto, logo nas entrevistas iniciais, os pais trazem o quando Douglas é um garoto
infantilizado, com poucos amigos, medo de dormir sozinho e o hábito de contar
“histórias absurdas”. Além disso, os pais relatam um episódio de abuso sexual
ocorrido quando Douglas tinha seis anos de idade e a mobilização familiar que se
deu ao redor deste acontecimento.
O primeiro contato com Douglas teve um efeito paralisador. Durante as
primeiras sessões ficava evidente a construção de uma defesa de onipotência pelo
garoto, vivida pela analista como impotência frente a uma criança aterrorizada. A
defesa de onipotência, a ameaça de aniquilamento, a possível vivência traumática
de um abuso, assim como as “histórias absurdas”, eram indícios de que poderíamos
estar diante de uma estruturação psicótica.
Porém, partimos do pressuposto de que a infância é um tempo gerúndio e
seria impossível a utilização de um diagnóstico estrutural definitivo. Desta forma, nos
apoiamos no conceito de psicose não-decidida, levando em conta o tempo lógico no
desenvolvimento infantil e a flexibilidade na estruturação dos pequenos sujeitos. A
partir desta formulação diagnóstica, foi possível pensar o manejo clínico e a posição

1
Foi escolhido um nome fictício para o paciente por uma questão de sigilo.
6

do analista na relação terapêutica como aquele que encarna o grande Outro, e suas
possibilidades de intervenção a partir deste lugar.
Desenvolveremos, nos capítulos a seguir, o percurso teórico acima
mencionado, explorando mais demoradamente os conceitos utilizados durante a
reflexão e ilustrando-os com vinhetas clínicas do referido atendimento.
7

2 OBJETIVOS

Este trabalho tem como objetivo realizar uma reflexão teórica a partir de um
caso clínico que se desenvolveu durante o Aprimoramento Profissional em
Psicologia Clínica no Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE), com o intuito de
ampliar a discussão sobre o estabelecimento de uma hipótese diagnóstica e a
direção do tratamento decorrente desta.
8

3 METODOLOGIA

Temos como disparador da discussão o atendimento realizado no ambulatório


de Psicologia Clínica no Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE). A partir dos
fragmentos selecionados será possível desenvolver uma reflexão teórica, tendo
como parâmetro os princípios da psicanálise freudiana, assim como o referencial
teórico lacaniano.
Optamos por seguir este caminho, pois entendemos que a clínica em si é
fonte de indagações e terreno fértil para a pesquisa desde os seus primórdios,
possibilitando o desdobramento destas questões no próprio fazer analítico.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa, uma discussão de caso que
não pretende esgotar as possibilidades de compreensão do mesmo, e sim, a partir
de um recorte estabelecido na apresentação das vinhetas, destacar alguns pontos
fundamentais para o desenvolvimento do tema escolhido: a psicose não-decidida da
infância.
9

4 APRESENTAÇÃO DO CASO

O caso que irei apresentar é de Douglas, uma criança de 10 anos, estudante


da 4ª série do ensino fundamental e filho único.

4.1 Queixa

Douglas é trazido pelos pais que relatam estar preocupados com seu
desempenho escolar. Dizem que é bom em matemática, porém tem dificuldades
com a disciplina de português. Além desta questão, os pais relatam que o garoto
tem o comportamento infantilizado, medo de dormir sozinho, medo do escuro,
poucos amigos – todos mais novos, além do hábito de “inventar histórias absurdas”.
Os pais contam então que aos seis anos de idade Douglas teria sido abusado
por um garoto de 12. Consideram que todo transtorno posterior ao abuso – o boletim
de ocorrência feito na delegacia, os procedimentos médicos realizado no hospital,
etc. – foi mais traumático do que o fato em si. Relatam que eles próprios ficaram
muito abalados com a situação, orientando o filho a não fazer amizade com garotos
mais velhos, além de “tomar cuidado ao usar o banheiro da escola”. Ambos afirmam
que ainda têm medo de deixar Douglas sozinho, pois “se aconteceu uma vez, pode
acontecer de novo”.

4.2 Primeiras Impressões

Faremos a seguir um breve relato da primeira sessão com Douglas, tendo


como intuito transmitir o clima estabelecido e discutir uma primeira impressão em
termos contratransferenciais. Tomaremos esta sessão como norteadora do nosso
trabalho, pois é possível identificar que, desde o início, o paciente trouxe as
10

questões fundamentais que se desenvolverão ao longo do atendimento, as quais


discutiremos posteriormente.

Após o contato estabelecido, explico para Douglas que nos


encontraremos uma vez por semana para conversar, brincar,
para eu conhecê-lo melhor. Douglas diz que não gosta de
conversar. Diz que seus amigos o chamam para conversar e
brincar, mas ele não vai, e que talvez seja por isso que ele não
tem amigos. “Eles têm medo de mim. Eles queriam bater em
mim, mas eles têm medo de mim. Deve ser porque eu sou
pequeno.”

O primeiro elemento que Douglas traz é o quanto se sente sozinho. Diz que
não tem amigos, repetindo algo trazido na fala dos pais. Desta forma denuncia sua
solidão. Em seguida mostra rapidamente sua fragilidade e a necessidade de
escondê-la, criando uma justificativa onipotente – “Eles têm medo de mim. Eles
queriam bater em mim, mas eles têm medo de mim”. No entanto, Douglas encontra
a seguinte explicação “deve ser porque eu sou pequeno”, escancarando uma
ambiguidade que será trabalhada daqui pra frente – a questão do forte/fraco,
ataque/defesa, grande/pequeno, adolescente/criança.

Em seguida diz que tem um único amigo. E que este canta,


mas só quando Douglas toca violão. Então diz que toca violão,
banjo, guitarra, piano, etc. Mas que quer mais um instrumento,
um violão. E que já tem cinco.
Diz que tem muitos cachorros e começa a contar nos dedos.
Tem 28, vai ganhar mais oito. Só têm machos, deixa a fêmea
na casa da avó para os cachorros não brigarem.

Segue dizendo que toca muitos instrumentos musicais, e que possui muitos
deles (cinco violões), além de possuir muitos cachorros. Aqui podemos identificar o
que os pais chamaram de “hábito de inventar histórias absurdas”. Em outras
11

sessões, Douglas cria histórias em que têm muitas coisas, muito dinheiro, é muito
forte, tem muita habilidade, sabe muito. E essas criações parecem cumprir uma
função compensatória e ser reflexo direto do lugar de fragilidade vivenciado pelo
garoto.

Mais pra frente, nesta mesma sessão, peço pra ele fazer um
desenho. Douglas faz um homem, e diz que “só sabe desenhar
os maus”, diz que é um “menino da escola que enche o saco”.
“Ele vai cair na lava”. Então escreve “Douglas”, com letra de
forma e traçado leve. Depois escreve outra vez, agora com
letra de mão caprichada e me mostra. Em seguida diz que vai
desenhar ele próprio, para bater no menino. Faz uma nova
figura humana de tamanho pequeno e a circula, pintando o
interior do círculo de amarelo.

Mais uma vez Douglas se apresenta fraco, em seguida refaz seu nome, dessa
vez caprichado, sem fragilidades. Então desenha um círculo ao redor da pequena
figura que diz lhe representar. Denunciando assim, o isolamento e a necessidade de
proteção.

Então monta uma brincadeira com o que encontra na caixa


lúdica. Pega os carrinhos, avião e animais selvagens. Coloca
tudo sobre a mesa. Brinca de forma muito calma, porém
desordenada. Murmura coisas para si próprio, não cria história.
Começa a derrubar os animais com o avião, empurrá-los com
os carrinhos. Depois passa a carregá-los. Pergunto o que está
acontecendo. Ele diz que a polícia está levando os animais
para a floresta. Pega os talheres da caixa e começa a enfiá-los
nos carros. Vai até a caixa, pega a família, descarta todas as
mulheres – “precisa ser homem”. Sobra um, é o caçador.
Encaixa os talheres em sua roupa, colocando o garfo no lugar
da mão do boneco, e a espátula no lugar da outra mão. Ele vai
matar os bichos, sem a permissão da polícia. O garfo cai, a
12

força aérea acaba com o caçador. Douglas guarda todos os


brinquedos, inclusive o desenho que havia feito, fecha a caixa
lúdica e se senta à minha frente.

Nesta sequência fica evidente o clima que Douglas vivencia.


Contratransferencialmente a angústia que eu já sentia durante a sessão aumenta ao
passo que a brincadeira se desenvolve, beirando quase o insuportável.
O caçador, figura ameaçadora com suas garras “vai matar os bichos sem a
permissão da polícia”. E não há nada que os animais possam fazer. Sinto que estou
tão aterrorizada quanto Douglas e isso me paralisa. O garoto conclui guardando os
brinquedos dentro da caixa, senta-se à minha frente e me lança um olhar como que
dizendo “É isso. Por isso que vim.”
Essa paralisia, vivida por mim como impotência no lugar de analista, irá
perdurar após esta sessão, e ainda se repetirá inúmeras vezes nas sessões
seguintes, frente a tanto conteúdo trazido pelo paciente.
Nos próximos capítulos retomaremos estas questões mais demoradamente,
relacionando-as com vinhetas de sessões seguintes, a fim de dar continuidade a
discussão aqui iniciada.
13

5 UM GAROTO AMEAÇADO

5.1 Fantasia e Realidade2

Primeiramente iremos discutir a relação de Douglas com a realidade, o apoio


que encontrou na elaboração de fantasias e a possibilidade de transitar entre esses
dois registros.
Foi possível, ao longo dos atendimentos, identificar que seu discurso continha
uma sucessão de (in)formações fantasiosas, um encadeamento de idéias que
parecia, quase sempre, partir de algum elemento real.

Douglas inicia a sessão dizendo que havia ficado doente, com


dor de barriga, vômito, dor de cabeça e outras coisas. E por
isso tinha ido ao médico, ao dentista. Pois seus dentes
estavam crescendo de hora em hora. Diz que foi no veterinário,
dá risada e diz que seu cachorro está com pulga. Diz que foi ao
veterinário mais uma vez, pois tinha pegado pulga do cachorro
e depois passado para todos seus amigos.

Segundo seus pais, Douglas havia de fato adoecido na semana que


antecedeu este atendimento. Assim, identificamos que há uma ligação com a
realidade, na qual Douglas se apóia para realizar suas construções. Neste sentido,
como percebemos no exemplo a seguir, foi possível trabalhar durante as sessões o
trânsito entre estes dois mundos: o externo/compartilhado – a realidade; e o interno
– a fantasia.

Douglas diz que tem jogado muito videogame, e que gosta de


um jogo no qual precisa roubar um carro, atropelar pessoas,

2
Realidade entendida aqui como o registro do compartilhado, referente ao mundo externo ao qual Douglas
pertence.
14

assaltar lugares, etc. Então diz que certa vez, enquanto tentava
realizar uma missão, ele acabou sendo atropelado. Intervenho
dizendo “ainda bem que foi no jogo, né?”. Douglas se
surpreende, reflete um pouco e afirma que também já foi
atropelado “na realidade”, mostrando pequenas cicatrizes e
manchas pelo corpo dizendo que “o carro passou por cima”.

Ou ainda durante uma construção lúdica, em que o próprio garoto insere a


pura realidade na brincadeira.

Douglas decide cozinhar os animais selvagens. Espeta o boi, o


cavalo, a ovelha e o porco com o garfo, diz que estão mortos.
Cozinha o porco e diz que vai experimentar. Coloca o animal
na boca e rapidamente o retira dizendo “nossa! Comi plástico!
Comi de verdade!”. Me espanto como ele e digo que pensei
que ele fosse “comer de mentirinha, não de verdade...”. Então
Douglas diz que “de verdade” ele come vidro. “Aqueles vidros
pontudos”. Pergunto se não machuca, ele diz que não, só a
boca fica cheia de sangue.

Nos dois exemplos há um confronto com a realidade, ora proposto pela


analista, ora trazido pelo próprio paciente – “Comi plástico! Comi de verdade!”, ele
diz. Nestes momentos há uma diferenciação entre realidade e fantasia, sabe-se o
que é “de verdade” e o que é “de mentirinha”. No entanto, logo em seguida, o garoto
volta para a indiscriminação entre estes dois registros, dizendo que já foi atropelado
“na realidade”, ou ainda que “de verdade” come vidro.
Freud, em A perda da realidade na neurose e na psicose (1924), irá discorrer
sobre os mecanismos existentes, tanto na neurose quanto na psicose, no que se
refere ao afastamento da realidade. O autor afirma que existiriam duas etapas: uma
primeira caracterizada pelo afastamento da realidade propriamente dito, e outra
definida pela tentativa de reparação deste contato.
Sobre esta segunda etapa afirma ainda que:
15

O segundo passo da psicose, é verdade, destina-se a reparar a perda da


realidade, contudo, não às expensas de uma restrição com a realidade —
senão de outra maneira, mais autocrática, pela criação de uma nova
realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, que foi
abandonada. O segundo passo, portanto, na neurose como na psicose, é
apoiado pelas mesmas tendências. Em ambos os casos serve ao desejo de
poder do id, que não se deixará ditar pela realidade. Tanto a neurose
quanto a psicose são, pois, expressão de uma rebelião por parte do id
contra o mundo externo, de sua indisposição — ou, caso preferirem, de sua
incapacidade — a adaptar-se às exigências da realidade.
(FREUD, 2006d, p. 206-207)

Neste sentido, podemos afirmar que Douglas constrói outra realidade a fim de
reparar uma lacuna criada a partir do afastamento do mundo externo. Assim como
ocorre na formação delirante que “presumimos ser o produto patológico, é, na
realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”
(FREUD, 2006a, p. 78). Fantasiar a realidade ou “criar histórias absurdas”, neste
caso, é uma forma de ainda manter algum contato com este mundo, de não romper
completamente. E neste jogo fantasia/realidade que encontramos os alicerces para
dar continuidade ao atendimento e trabalhar outras questões.

5.2 Ameaça de Aniquilamento

Uma das fantasias mais recorrentes neste processo analítico, conforme


descrevemos nos itens anteriores, se refere à presença constante de ameaças,
entre as quais figuram ameaças de aniquilamento, de perda do corpo próprio.

Douglas diz que às vezes tira a pele do rosto e fica só uma


caveira, e assim vai descolando a pele do corpo todo. Então
vira a cabeça para trás e tira a cabeça. Então tira os olhos, e os
ossos vão caindo, porque ele é um tipo de múmia que quando
fica nervoso os ossos vão se desprendendo e caindo. Pergunto
como ele se sente. Ele diz que quando fica irritado ele escorre
e vira tipo uma ameba.
16

A fim de pensar a origem desta ameaça, recorremos a Freud quando este


discute o conceito de duplo em sua obra. Segundo o autor, o duplo seria uma
extensão do eu, inicialmente garantindo a sobrevivência enquanto defesa contra a
extinção e, depois, carregando em si algo de assombroso, assustador – o “estranho
familiar”. Dito de outra forma, “depois de haver sido uma garantia de imortalidade, o
duplo transforma-se em estranho anunciador da morte” (FREUD, 2006c, p. 252).
Assim, lançamos luz a este processo do desenvolvimento em que o mais familiar
torna-se estranho e ameaçador. Podemos pensar que as supostas ameaças
externas são na verdade constitutivas e em determinados momentos se voltam com
mais ou menos afinco contra o próprio eu.
É possível identificar este garoto ameaçado em diversos momentos:

Durante uma brincadeira com os animais selvagens, Douglas


reúne porco, ovelha e cavalo e diz que se qualquer coisa
“tocasse” neles, eles iam gritar muito e ia explodir tudo na face
da terra. Pergunto o porquê, ele diz que os animais têm o pelo
muito sensível, então eles gritariam muito.

No entanto, chama a atenção que, por ser tão constante e presente, temos
grande dificuldade em encontrar mais exemplos de elucidação. Nossa hipótese é
que sejam também as construções onde as defesas operam com maior rigor e força.
Douglas mostra-se fragilizado constantemente ao longo das sessões, porém as
fantasias exercem a função de encobrir tais fragilidades, na tentativa de criar a
imagem de um garoto forte e invencível, como veremos no capítulo seguinte.

5.3 Onipotência

Frente ao perigo que o ameaçava constantemente, pude perceber que


Douglas criava histórias nas quais estava presente um engrandecimento e uma
supervalorização de si. Como quando diz que é mais velho, ou está cursando séries
acima.
17

Mostra um ralado no joelho e diz que se machucou andando de


moto, que já tem carta de motorista e tem 17 anos.

Quando mostra seus cadernos, pergunto para Douglas qual a


matéria que mais gosta, ele responde “matemática, português,
história, geografia... e faculdade. Eu já estou estudando para a
faculdade.”

Ou ainda quando diz que é o mais forte, bate em todo mundo:

Douglas diz que vai me contar a história do “Apanhamento”. Diz


que antes ele apanhava de todo mundo, mas agora ele tomou
muito café, ficou forte e inteligente, então todo mundo apanha
dele. Então diz que semana anterior tinha dez anos e agora
tem doze. E que estava na 5ª série, mas ganhou uma bolsa e
passou pra 6ª, 7ª, porque ele é muito inteligente. Pergunto se
às vezes é difícil ser pequeno e ter medo dos outros. Douglas
me olha profundamente com os olhos semicerrados e diz “eu
não tenho medo de ninguém”, me encara assim durante algum
tempo. Em seguida diz que bate em todo mundo, que dá surra
em todo mundo, que é só ele dar um passo que todo mundo
sai correndo. Segue dizendo que todos têm medo dele, menos
eu. Reafirmo dizendo que não tenho medo dele. Diz que vai
pular de série em série até o colegial e vai bater em todo
mundo. Diz que vai trazer o amigo dele sangrando pra eu ver,
quase morto.

A imagem de um garoto forte, poderoso e até mesmo assustador vai sendo


construída a partir de suas fantasias.
18

Diz que possui muitos apelidos “Cuidado com ele”, “Medonho”,


“Rei da cocada”, “Rei da escuridão”. “Rei da morte”. Acha
divertido, pois todos têm medo dele.
Como Freud (2006b) aponta, quando descreve a economia libidinal, a
megalomania é efeito do desligamento de objetos antes catexizados no mundo
externo. Esta energia desligada ficaria sem destino e então retornaria ao próprio
ego, engrandecendo-o. Este processo guarda relações profundas com os primeiros
estágios do desenvolvimento, em que a libido catexiza o ego, a saber, narcisismo
primário. No entanto, é necessário focalizar a diferença justamente no fato de que na
megalomania a energia em questão é fruto de um retorno, configurando um
narcisismo secundário.
Quando analisa a religiosidade dos povos primitivos, Freud também traça
paralelos com a megalomania pelo que se refere à onipotência de pensamentos, ou
seja, pela crença de que se pode controlar o mundo externo, por exemplo, através
de danças e ritos. Sabemos que Freud tem um esforço ao longo de sua obra por
relacionar a ontogênese e a filogênese, deste modo, a megalomania faria parte do
desenvolvimento em seus primórdios – a infância. No entanto, no caso de Douglas
notamos uma perseverança deste mecanismo, uma vez que “é justo presumir que a
megalomania é essencialmente de natureza infantil e que, à medida que o
desenvolvimento progride, ela é sacrificada às considerações sociais” (FREUD,
2006a, p. 73). Sendo assim, é mais coerente pensarmos a megalomania como
possível formação reativa proveniente de uma desestruturação/fragilidade.
Porém, apesar desta imagem engrandecida, em alguns momentos Douglas
permite vir à tona seus medos e fragilidades. Como discutimos anteriormente, é o
garoto ameaçado que aparece.

Douglas conta que já havia sido perseguido por uma onça, mas
que havia conseguido escapar. E que agora é peão, mas não
monta em cavalo, só em touro. Diz que já foi chifrado quatro
vezes. Pergunto como foi, ele diz que doeu, coloca a mão nas
costas. Pergunto como ele faz para se defender da chifrada do
touro, e ele imediatamente responde “eu coloco uma cueca de
ferro. Pego as cordas fortes, o chicote e a cueca de ferro”. Diz
19

que desde os 3 anos de idade monta o “Puro Osso”, o touro


mais bravo do Brasil.

Com este exemplo abrimos possibilidade para pensarmos outro tema


recorrente e em muito relacionado com o que desenvolvemos até aqui: sobre o
abuso e seus fantasmas, que permanentemente rondam o mundo de Douglas.

5.4 O Fantasma Abuso

Uma das primeiras questões que surgiram para justificar a demanda de


atendimento, conforme descrevemos na apresentação do caso, foi a ocorrência de
uma situação em que Douglas teria sido abusado sexualmente por um garoto mais
velho.
Os pais apresentam grande ansiedade perante este fato, pouco se referem a
ele de forma direta, assim como Douglas, no entanto, é algo que atravessa as
relações e compõe um ambiente ameaçador tanto para o garoto, quanto para os
pais, constituindo uma situação traumática – “se aconteceu uma vez, pode
acontecer de novo”.
Segundo Pujó (2000, p.21):

Lo que nos interessa del trauma es, antes que el acontecimiento efectivo, su
valor de experiencia; vale decir, no el hecho em sí, sino la participación del
sujeto em lo vivido, el modo em que se halla concernido por ello, lo que há
hecho a partir de él.)

Neste sentido, podemos afirmar que a “situação traumática” consiste numa


ameaça onipresente na vida desta família, representada pela mãe de forma icônica
como “a família do medo”. No entanto, o abuso não é um tema em que os pais se
detêm para falar, compondo um não-dito carregado de fantasias que interferem
decisivamente no desenvolvimento de Douglas.
Zygouris (1995, p.230) afirma que “a experiência traumática é aquilo que não
se representa, ainda que deixe traços mnêmicos indeléveis”. Deste modo, pensamos
o trauma como uma espécie de fantasma que ronda as fantasias e representações
20

de Douglas e de seus pais, sem nunca poder ser nomeado, uma presença que todos
fingem não ver, mas que anunciam a todo momento.
Assim, podemos supor que este não-dito, ou melhor, esta (im)possibilidade de
lembrar e compartilhar a experiência, afastam Douglas e seus pais, isolando-os e
impedindo-os de elaborar a presença deste fantasma. Cabe dizer que o trabalho
analítico foi principalmente pensado como a possibilidade de representar este não-
dito, de constituir um ambiente seguro onde Douglas poderia não ser tão
amedrontador – “todos têm medo de mim, menos você”.
21

6 A CONSTRUÇÃO DA HIPÓTESE DIAGNÓSTICA

Consideramos que, a partir da apresentação do caso e também dos temas


recorrentes no atendimento, foi possível reunir elementos para subsidiar a
construção de uma hipótese diagnóstica. Importante ressaltar que pensamos em
diagnóstico de acordo com referencial lacaniano, a saber, uma formulação
necessária para a condução das sessões sempre pautadas na relação transferencial
analista-analisando.

Lacan, a partir da importância do inconsciente e da transferência nos


tratamentos, define o diagnóstico, em psicanálise, a partir da relação
transferencial que aí se estabelece, da posição em que o paciente se coloca
e na qual coloca o Outro. (BERNARDINO, 2004, p. 21)

O Outro entendido aqui como representante não só de um semelhante, mas


também da cultura e das leis que a constituem. É a partir da posição que estabelece
com o Outro, nestas diferentes instâncias, que o sujeito se constitui. Portanto,
pensar em construção de diagnóstico é, desde já, pensar as posições que os dois
atores da cena transferencial ocupam, e a dinâmica estabelecida entre eles.

6.1 Psicose?

No processo de construção do diagnóstico para a delimitação da estratégia


analítica, cogitamos a possibilidade de se tratar de uma psicose, devido ao
reconhecimento do que podemos chamar de um “núcleo psicopatológico de
natureza psicótica” (BERNARDINO, 2004). Núcleo este constituído pela ruptura ou
ameaça de ruptura com a realidade, presença da ameaça de aniquilamento e
destruição, mecanismos predominantemente narcísicos e dificuldade na
representação e elaboração de vivências.
Entendemos este núcleo como um emaranhado de defesas decorrentes de
uma fragilidade no processo de estruturação subjetiva. Processo que poderia
22

deflagrar uma psicose, caracterizada pela dificuldade da inscrição de um terceiro


que, ao romper a relação dual antes estabelecida, instaura a pertença a uma cultura
e suas leis. Supomos que este pertencimento é base para a formação do sujeito e
determinante para a forma como este entenderá o outro e se fará outro em suas
relações, ou seja, trata-se da inscrição dos significantes fundamentais que servem
de eixo para a subjetividade, a entrada no simbólico e o reconhecimento de si como
sujeito barrado, regulado por uma Lei que o antecede.
Cabe dizer ainda que, quando se trata de psicose, há uma diferenciação
possível entre as psicoses de adultos e de crianças. Segundo Bernardino (2004) nas
psicoses infantis há polimorfismo, ou seja, simultaneidade de características de
diferentes quadros clínicos, o que dificulta o fechamento de um diagnóstico
estrutural definitivo e ressalta a urgência de uma proposta alternativa e menos
rígida.
Embora apresentando diversos traços que poderiam ser interpretados como
psicóticos, por exemplo, excesso de conteúdo fantasioso, delirante, a megalomania,
onipotência de pensamentos, o paciente também apresentou muitos recursos
intelectuais e emocionais que faziam colocar a prova o diagnóstico de psicose.
Douglas pode estabelecer bom vínculo durante o atendimento, além de certa
flexibilidade na relação que estabelecia com realidade e a produção de suas
fantasias. Isto nos fez pensar na necessidade de outro diagnóstico que levasse em
conta as especificidades com que organizava sua demanda. Assim, tomamos
conhecimento de uma definição que nos pareceu mais coerente neste caso
específico, as psicoses não-decididas da infância, e que nos permitiu construir a
estratégia clínica mais adequada.

6.2 Um caso de psicose não-decidida da infância

Como mencionamos no tópico anterior, é impossível pensarmos a


constituição subjetiva sem nos atermos ao lugar fundamental que o Outro ocupa.
Melhor dizendo, é a existência do Outro, na medida em que representa um espaço-
23

tempo compartilhado na e pela linguagem, que insere o sujeito em um domínio de


leis, regras, costumes e sentidos.
De acordo com Bernardino (2004, p.135):

O sujeito precisa de um outro para introduzi-lo na linguagem e precisa da


linguagem para ter uma representação de seu corpo próprio, para poder
então começar a representar-se a realidade externa e para poder
relacionar-se com os outros.

No entanto, a entrada na estrutura simbólica trata-se de um processo, ou


seja, se dá ao longo do desenvolvimento infantil, e não de forma repentina.
Justamente por isso, não podemos subjugar as influências e determinações do
desenvolvimento orgânico na entrada para linguagem, ao mesmo tempo em que não
podemos descartar que organicidade e linguagem se alicerçam mutuamente. Isto
fica mais claro se usarmos como exemplo os casos de autismo grave, em que é
impossível determinar qual é a origem da patologia, se orgânica ou afetivo-
relacional, uma vez que se trata de uma correlação entre ambos os fatores.
Neste sentido, compreendemos o desenvolvimento infantil como o
entrelaçamento de estados cronológicos na maturação do sujeito, e do tempo lógico
na aquisição da linguagem. O movimento lógico entendido aqui, a partir do
referencial lacaniano, como o instante de olhar, o tempo para compreender e o
momento de concluir. Tempos estes que estariam relacionados à infância da
seguinte maneira:

 O instante de olhar: início do desenvolvimento marcado pela


indiferenciação eu-mundo e construção da imagem corporal.
 O tempo para compreender: entrada do sujeito na linguagem, tempo
marcado pela inscrição do Nome-do-Pai, elaboração do Édipo e
período de latência.
 O momento de concluir: adolescência, conclusão que resulta em uma
asserção subjetiva – o estabelecimento da estrutura psíquica.

A inscrição do Nome-do-Pai insere o sujeito numa ordem significante que o


torna insuficiente por definição (sujeito barrado), fazendo-o vivenciar o desejo como
24

experiência negativa. E, neste momento que podemos considerar como o encontro


com a castração, além do sujeito, o Outro também se torna barrado para este.
Sendo assim, representa a entrada de um terceiro, aquele que instaura a Lei a qual
o sujeito estará submetido a partir de então, permitindo seu ingresso no registro do
Simbólico – linguagem.
No entanto, em consonância com o trabalho de Bernardino (2004),
entendemos que esta inscrição ocorre através do cumprimento de várias operações
psíquicas ao longo do desenvolvimento infantil. Estas operações não acontecem
sem a presença e a relação com outras pessoas que representam para a criança a
lei e a cultura, ou seja, desempenham a função Outro. Segundo a autora:

A estrutura do sujeito não é um dado, a priori, nem produto de um momento


de definição único e cristalizado, mas é o resultado de vários tempos, que
primeiro se instauram e depois são retomados diferentemente.
(BERNARDINO, 2004, p. 78)

São tempos de instauração e de confirmação dessa instauração do Nome-do-


Pai que acontecem na infância, deixando marcas que regulam suas relações e
poderão vir a se consolidar numa estrutura psíquica na adolescência. No caso da
psicose, estaríamos diante da ausência do significante Nome-do-Pai e conseqüente
não-entrada no Simbólico, o que caracterizaria a foraclusão.
Para que a foraclusão se estabeleça, é necessário que ocorram falhas de
inscrição nestas operações psíquicas, e que estas falhas permaneçam até a
adolescência, momento da definição estrutural em nossa cultura. No entanto, é
possível que antes disso a falha em uma das operações não se repita em outra,
evitando que o sujeito se constitua foracluído.
Na medida em que é o Outro responsável pela sustentação e confirmação da
inscrição do Nome-do-Pai para a criança, cabe dizer que, quando o Outro falha
nesta função, existe como que uma suspensão em que a criança continuaria à
espera desse Outro, “através de defesas que podem ter o caráter psicótico, mas não
podem servir para um diagnóstico estrutural” (BERNARDINO, 2004, p. 36).
Sendo assim, consideramos que seria arriscado falar em uma psicose
consolidada na infância, na medida em que a estrutura não está definida e ainda há
possibilidade de inscrição do significante fundamental. Esta compreensão fez com
25

que, no caso de Douglas, reconstruíssemos a hipótese diagnóstica para um caso de


psicose não-decidida. Segundo Bernardino (2004, p. 35)

Pensamos que este diagnóstico de PSICOSES NÃO-DECIDIDAS é um


operador clínico mais condizente com estas características da infância e do
próprio processo de estruturação subjetiva, que implicam a entrada do
pequeno sujeito no campo da linguagem, a partir da relação com um Outro
que sustenta este processo, dentro de um tempo que vai constituir o infantil.

Neste sentido, o diagnóstico de psicose não-decidida estaria de acordo com a


nossa compreensão do desenvolvimento infantil: tempo gerúndio de inscrição e
confirmações sucessivas, processo de entrada no Simbólico, em que a criança
estaria “à espera de um movimento do Outro que pusesse fim a esta suspensão”
(BERNARDINO, 2004, p. 83). Foi a partir do estabelecimento deste diagnóstico que
abrimos possibilidade de intervenção através da definição da estratégia clínica e
manejo transferencial, como veremos no capítulo seguinte.
26

7 MANEJO CLÍNICO

Para discutirmos o manejo clínico que sustentou nosso trabalho, faz-se


necessária uma reflexão sobre a função da análise num caso como o de Douglas. O
que podemos nós analistas? Esta pergunta foi muito recorrente no início do
atendimento, principalmente devido à sensação de impotência vivida pela analista
logo nas primeiras sessões.
De acordo com o que desenvolvemos anteriormente, a infância é tempo de
inscrição e confirmações sustentadas pelo Outro, função exercida pela
linguagem/cultura, ou pelo outro semelhante – inclusive as figuras parentais. Desta
forma, entendemos que o lugar do analista também é pautado por esta função.
Segundo Bernardino (2004, p.138)

Em uma psicanálise, o motor do tratamento é a transferência, o instrumento


de trabalho é a palavra e o condutor do processo o inconsciente, tendo o
analista como representante de todo este dispositivo. Pensamos encontrar
aí os mesmos elementos básicos de intervenção que atuam no processo de
constituição de um sujeito singular: a linguagem, suportada enquanto
estrutura e função por um outro, ao mesmo tempo Outro enquanto
alteridade e outro enquanto semelhante, semblante de objeto – funções do
analista na transferência.

No caso de uma psicose não-decidida da infância, o analista encontraria


possibilidade de intervenção na ‘espera’ em que a criança se coloca a partir da falha
do Outro, como já dissemos anteriormente. A autora afirma ainda que

Na clínica das psicoses na infância, que propomos em sua maioria como


não-decididas, se a criança apresentar alguma abertura à função simbólica
do Outro (indicação de que a foraclusão não está instalada) e se no
tratamento a que se dirigir puder encontrar um analista nesta posição de
bom entendedor e, ainda, se seus pais (ou pelo menos um doa pais)
sustentarem este percurso, deixando-se abalar minimamente pelos efeitos
aí produzidos, então haverá a possibilidade de não instalação da psicose.
(BERNARDINO, 2004, p.144)

“Bom entendedor” sendo aquele que poderá, a partir da escuta e da


construção conjunta de representações para a experiência vivida, reconciliar criança
ao Outro perdido. Vale ressaltar ainda que, no contexto analítico, não é apenas a
27

posição do sujeito frente ao Outro que será trabalhada, mas também a posição dos
pais que fazem a função deste para a criança.
Sendo assim, entendemos que, na análise de Douglas foi possível identificar
três momentos da transferência, nos quais o garoto atribuía ao Outro lugares
distintos: um Outro inexistente, um Outro aterrorizador e, por final, um Outro barrado.
O manejo clínico foi pensando a partir de cada uma dessas situações
transferenciais, como veremos a seguir.

7.1 O Outro inexistente

Nas primeiras sessões com Douglas, foi possível identificar momentos onde
não havia espaço para o Outro exercer a sua função. A sensação de impotência
vivida pela analista também denunciava esta ausência de uma alteridade. O garoto
estava completamente envolvido com suas fantasias e mergulhado em seu mundo
próprio, deixando raras brechas para a intervenção. No entanto, foi a partir dessas
pequenas fissuras que começamos o trabalho analítico.

Em determinada sessão Douglas espalha carros, avião,


xícaras, animais e talheres em cima de mesa e começa a
brincar de forma caótica. Começo a sentir muito sono. Ele
empurra os carros com o avião, transporta animais, enfia
talheres nos carros, tudo isto lenta e continuamente. O clima
que se estabelece na sessão é de um transe. Douglas não me
olha, sinto como se para ele eu não estivesse lá. Deixo o meu
sono ganhar espaço, deito minha cabeça sobre os braços em
cima da mesa e fecho os olhos algumas vezes enquanto
acompanho sua movimentação. De repente Douglas “acorda”
daquele estado hipnótico que se criou na brincadeira, e me
olha. Neste momento sinto que fui incluída na cena, Douglas
passou a me ver. Então me pergunta: “você está com sono?”,
28

ao que respondo “sim, muito”. Sono este que se esvai a partir


do momento em que Douglas me olha.

Sabemos que o sono do analista pode ser interpretado de diversas formas,


pode ser causado por uma posição contratransferencial mais defensiva, uma forma
de resistência na escuta, ou o atravessamento do cansaço físico no contexto
analítico. Mas pode também cumprir outra função, dando vazão àquilo que concerne
à pulsão de morte. Segundo Dolto (2008, p.24)

Se tiver a oportunidade de se entregar momentaneamente ao sono na


presença de crianças esquizofrênicas, constantemente sob o peso de uma
ameaça fóbica, você verá essas crianças reviverem. (...) Há sonos que não
constituem defesa alguma, que são sonos de acolhida e de abertura às
pulsões de morte. É nesse momento, insisto, que os psicóticos despertam
para a vida.

Na cena que relatamos anteriormente, entendemos que o manejo consistiu na


entrega ao sono insuportável, dando lugar a ausência, a impotência e a paralisia
momentânea. Assim foi possível o garoto dar continuidade a sua brincadeira, de
alguma forma expressando e elaborando parte de seu mundo interno. Até que uma
ponte se fez, Douglas me viu e pudemos reconhecer aquele sono. Dolto (2008),
denotando a importância de nomear e interpretar a contratransferência afirma que
“se for o psicanalista a adormecer, o sono pertence ao paciente e isso deve ser dito
a ele” (p. 23).
A partir da construção dessas pontes o Outro passa a existir, tornando
possível algum tipo de relação, ainda que frágil.

7.2 O Outro aterrorizador

Como já mencionamos no capítulo sobre “o garoto ameaçado”, foi o Outro


aterrorizador que marcou presença em grande parte do atendimento. As defesas
onipotentes erguidas sobre a fragilidade e o medo de Douglas mostram o quanto
este Outro se fazia assustador e invasivo, como podemos ver no exemplo a seguir:
29

Enquanto conversa comigo durante a sessão, Douglas senta


no chão, encolhido na parede. Sento a sua frente, buscando
maior proximidade e evidenciando minha disponibilidade para
ouvi-lo. Então o garoto diz que quando chega em casa o
cachorro chamado Morte, o gato Sangue e o rato Escuridão
vêm correndo na sua direção. E ele tem que dar queijo, ração
de gato e ração de cachorro, então tudo fica bem.

Podemos afirmar que a estratégia clínica pensada a partir deste lugar de


Outro aterrorizador, se apoiou em dois pontos fundamentais: inserir aos poucos a
realidade no delírio, para assim flexibilizar o trânsito entre fantasia e realidade,
tornando mais acessível o mundo compartilhado – o Simbólico; e ainda, abrir espaço
para as fragilidades de Douglas, desmontando suas defesas de onipotência e
conjuntamente criando representações para aquilo que havia de mais terrível e
amedrontador.
Foi a partir de então que pude mostrar minhas fragilidades enquanto analista,
às vezes afirmando que não estava entendendo o que ele dizia, que ficava confusa,
ou ainda que eu também considerava tudo aquilo muito assustador. Douglas passa
a ter mais tranquilidade para mostrar suas fragilidades, na medida em que eu
também as possuo. Assim, muda de posição na sua relação com o Outro – o Outro
aterrorizador/todo-poderoso passa a ter fissuras, dando lugar ao Outro barrado pela
falta.

7.3 O Outro barrado

No decorrer do tratamento, foi percebida uma nítida mudança na relação


transferencial. Houve o estabelecimento de uma aliança, e a possibilidade de troca
nos atendimentos.

Douglas traz Cards para a sessão e diz que quer ”bater


figurinha”. Parece bem animado, me ensina como é melhor
30

bater, me ajuda. Ora ele ganha, ora eu. Diz “nunca nenhuma
mulher ganhou de mim antes, e olha que eu já ganhei de um
gigante”. Pontuo que ele está me ensinando e me ajudando
bastante.

O garoto parece eufórico e muito envolvido com a possibilidade de me ensinar


algo. A figura da analista não representava mais aquele que sabe tudo sobre o
sujeito e, por isso, pode destruí-lo – ora ele ganha, ora eu. O Outro é marcado pela
falta, assim como ele, e isso possibilita a existência do compartilhado.

Noutro dia Douglas inventa de fazer bolas de chiclete. “Você


quer um para tentar também?”, me pergunta já me entregando
um chiclete. Pergunto se é difícil e se ele pode me explicar, o
garoto se prontifica a me ensinar, e passamos um bom tempo
da sessão tentando fazer bolas.

Mais um indício de que o Outro havia se tornado barrado para Douglas é


percebido posteriormente, quando este começa a trazer a temática edipiana para as
sessões, confirmando assim a entrada da Lei, com a elaboração de situações
triangulares.

Douglas traz contas de acrílico para a sessão, e diz que são


pedras preciosas da mina do avô. Mais pra frente, naquela
mesma sessão, diz que herdou a ‘mina’ do avô, que agora é
dele. E que seu pai pensa que é o dono, mas ele está errado.
O avô deixou a ‘mina’ para Douglas cuidar, pois ele é mais
cuidadoso.

A partir de um deslizamento significante, Douglas torna evidente a situação


edípica representada em seu discurso - pai e filho disputam a ‘mina’. Esta
triangulação é representada algumas sessões depois, em um desenho.
31

O garoto faz uma representação de si gritando “NÃO!”, para


outras duas figuras (uma menina e um menino). Diz que a
menina que ele gosta está aceitando o anel de outro garoto,
por isso grita tentando impedir.

A temática do namoro e da conquista começa a aparecer com freqüência no


atendimento. Douglas diz que tem muitas namoradas, em outra sessão afirma que
se tornou príncipe e agora precisa de uma princesa. Temos um reflexo direto na
transferência: muito sedutor Douglas passa a me trazer chicletes em todas as
sessões, e me prometer passeios de limusine, doces, pratos elaborados.

Diz que vai reformar a sala, ou melhor, todo o hospital. Vai


ampliar a sala, colocar uma lanchonete que vai ter tudo que eu
gosto e tudo que ele gosta. Muita coisa gostosa para comer e
muito espaço para brincar. Diz ainda que vai contratar muitas
psicólogas, todas “gatas”. E diz que vai contratar uma psicóloga
da idade dele também, pois ele quer namorar. No final da
sessão, antes de sair da sala, Douglas diz “mas não conta para
ninguém que eu vou reformar o hospital, nem para o seu
marido”.

A transferência se fortalece a partir do apaixonamento de Douglas. Agora


temos uma aliança, um espaço-tempo compartilhado e protegido, muito valorizado
pelo garoto. É neste espaço que se intensifica a potência terapêutica.
Até a presente data, Douglas continua em atendimento. O apoio na criação de
fantasias ainda existe, e às vezes as defesas onipotentes tomam lugar nas sessões,
que também têm espaço para os medos e angústias do garoto. No entanto, houve
um significativo avanço no percurso de Douglas, que pode encontrar novos
caminhos simbólicos para sua estruturação subjetiva.
32

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para terminar este trabalho retomemos as idéias centrais do atendimento de


Douglas, que possibilitaram o desenvolvimento de uma hipótese diagnóstica, bem
como progressos clínicos consideráveis. Entendemos a clínica como lócus
privilegiado de reflexão e construção teórica, disparadora de questionamentos e, por
isso, reinventar constante.
O processo analítico, que ainda hoje acontece, passou por alguns momentos
cruciais, tendo se iniciado por uma sensação de paralisia da analista, expresso em
seu sono, e em seguida marcado por uma vinculação cada vez maior que permitiu
que Douglas pudesse viver situações para ele novas em que se deparava com um
interlocutor viável diante do qual pode experimentar novas posições subjetivas.
Vimos que as hipóteses e construções diagnósticas foram importantes
dispositivos para pensarmos o manejo transferencial, sendo que entender o caso de
Douglas como uma psicose não-decidida da infância, pareceu-nos mais coerente
com a nossa forma de entender o desenvolvimento infantil , e trouxe potências para
o atendimento.
Centramos nosso trabalho no entendimento de que as marcas subjetivas
cruciais acontecem como processo ao longo da infância, por meio de inscrições e
confirmações sustentadas pelo Outro. O diagnóstico de psicose-não decidida seria
apoiado justamente na idéia de que podem ocorrer falhas nestas inscrições que, no
entanto, não são definitivas, mas operam uma espécie de suspensão em que a
criança continuaria à espera do restabelecimento de sua relação com o Outro.
A partir desta compreensão definimos o manejo clínico, ou seja, nossa
posição na relação transferencial. Aos poucos Douglas pode nomear suas
fragilidades e deixar de lado as defesas tão exacerbadas. A temática do Édipo foi
inserida no discurso apresentado durante as sessões e Douglas começou a
reconhecer cada vez mais o Outro como barrado, além da importância do espaço
analítico e do vínculo que ali firmou.
A reconstrução de um diagnóstico, um cuidadoso manejo transferencial e a
possibilidade de um outro desfecho – entendemos que o percurso trilhado até aqui é
33

apenas o começo, por isso, consideramos de extrema importância a manutenção e


continuidade deste processo analítico.
34

REFERÊNCIAS

BERNARDINO, L. M. F.. As psicoses não-decididas da infância: um estudo


psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

DOLTO, F.; NASIO, J.D. A criança do espelho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

FREUD, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um


caso de paranóia (Dementia Paranoides). In Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 2006a.

______. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição Standard


Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,
2006b.

______. (1919). O ‘Estranho’. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas


de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 2006c.

______. (1924). A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose. In Edição


Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de
Janeiro: Imago, 2006d.

PUJÓ, M. Trauma y desamparo. Psicoanálisis y el Hospital: Clínica del


desamparo. Buenos Aires: n. 17. p. 20-34. mar. 2000.

SENDAK, M. (1963) Onde vivem os monstros. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

ZYGOURIS, R. Sortilégios da cena traumática. In Ah! As belas lições. São Paulo:


Escuta, 1995.

Você também pode gostar