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RENATA PETRI

Leitura Psicanalítica do Desenvolvimento e suas Implicações para o


Tratamento de Crianças

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia


da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em Psicologia

Área de concentração: Psicologia Escolar


e do Desenvolvimento Humano

Orientadora:
Profa. Dra. Maria Cristina Machado Kupfer

São Paulo
2006
Livros Grátis
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2

FOLHA DE APROVACÃO

Renata Petri
Leitura Psicanalítica do Desenvolvimento e
suas Implicações para o Tratamento de Crianças

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia


da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em Psicologia

Área de concentração: Psicologia Escolar e


do Desenvolvimento Humano

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Angela Maria Resende Vorcaro


Instituição: Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade de Minas Gerais –
PUC/MG
Assinatura: ______________________________

Profa. Dra. Leda Mariza Ficher Bernardino


Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR
Assinatura: ______________________________

Profa. Dra. Walkíria Helena Grant


Instituição: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP
Assinatura: ______________________________

Prof. Dr. Rinaldo Voltolini


Instituição: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP
Assinatura: ______________________________
3

AGRADECIMENTOS

A Cristina Kupfer, pela oportunidade de realizar esta pesquisa e a confiança no


meu trabalho.

A Angela Vorcaro e Leda Bernardino, pelas contribuições fundamentais.

A Jean-Jacques Rassial, pela interlocução generosa.

A Ilana Katz, parceira constante, pelas preciosas sugestões.

A Heloísa Prado, pela visão perspicaz.

A Durval Mazzei, pela presença intangível.

A minha família, pelo suporte, colaboração e incentivo constantes.

A Cesar Volpe, pela leitura crítica, a convivência criativa e a revisão do texto.

A CAPES, pela viabilização desta pesquisa.

E sobretudo às crianças, que me ensinam a [re]inventar o Mundo.


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RESUMO

PETRI, R. Leitura psicanalítica do desenvolvimento e suas implicações para


o tratamento de crianças. São Paulo, 2006, 195 páginas. Tese de doutorado
apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Este trabalho visa a uma sistematização dos princípios gerais para o


estabelecimento das condições e da direção do tratamento psicanalítico com
crianças. Fez-se, portanto, necessária uma reavaliação das noções de
desenvolvimento e de constituição do sujeito, buscando assim delimitar quais
seriam as especificidades da criança como analisante. Nesse sentido, propôs-se
uma escanção da infância em três tempos, cada qual apresentando uma lógica de
funcionamento própria. Tornou-se inevitável a discussão sobre técnica em
psicanálise para apresentar a contribuição aqui pretendida como justamente um
‘anti-manual’ de procedimentos, lembrando ao profissional da clínica a renovada
necessidade de considerar problemáticas específicas em seu ofício. Procedeu-se
então ao estudo propriamente dito das condições e da direção do tratamento com
crianças, abordando as entrevistas preliminares, ocasião da leitura do sintoma e
formulação da hipótese diagnóstica; as particularidades da transferência, da
interpretação e do ato analítico; e o final de análise, levando-se sempre em conta
a importância e o lugar dos pais. O percurso deste trabalho é perpassado pelo
que se revelou um eixo integrador, a noção desejo de analista, definindo o lugar-
função do analista no tratamento como reserva e guardião do elemento central
que articula todos os demais em sua prática: a ética psicanalítica.

Palavras chaves: infância, desenvolvimento, psicanálise, clínica, ética.


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RÉSUMÉ

PETRI, R. Lecture psychanalytique du développement e des implications


pour le traitement des enfants. São Paulo, 2006, 195 pages. Thèse de doctorat
présentée a l’Institut de Psychologie de l’Université de São Paulo.

Ce travail vise à une systématisation des principes généraux pour l’établissement


des conditions et de la direction du traitement psychanalytique avec des enfants. Il
fût, donc, nécessaire une réévaluation des notions de développement et de la
constitution du sujet cherchant aussi de délimiter quels seraient les spécificités de
l’enfant comme analysant. Dans ce sens il fut proposé une répartition de l’enfance
en trois temps, dont chaque temps présentant une logique de fonctionnement
propre. Il s’est avéré inévitable la discussion sur la technique en psychanalyse
pour présenter la contribution ici proposée comme, justement, un ‘anti-manuel’ de
procédés, rappelant les professionnels cliniques le besoin de considérer les
problématiques spécifiques dans leurs profession. Il s’en suivit, alors, l’étude
proprement dit, des conditions et de la direction du traitement avec des enfants,
en abordant les entretiens préliminaires, occasion de la lecture du symptôme et
formulation d’une hypothèse diagnostique; les particularités du transfert, de
l’interprétation et de l’acte analytique; et la fin de l’analyse, sans perdre de vue
l’importance et la place des parents. Le parcours de ce travail est passé le long de
ce qui fut révélé comme un axe d’intégration, la notion désir de l’analyste dans le
traitement comme réserve et gardien de l’élément central qui articule tous les
autres dans la pratique : l’éthique psychanalytique.

Mots clefs : enfance, développement, psychanalyse, clinique, éthique.


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ABSTRACT

PETRI, R. Psychoanalytical reading of the development and its implications


for children treatment. São Paulo, 2006, 195 pages. Doctorate Thesis presented
to São Paulo University Psychology Institute.

This work aims to systemize the general principles to establish conditions and the
direction for the psychoanalytical treatment for children. Therefore, a re-valuation
of the developing notions and of the subjected characteristics was necessary, in
order to determine the child specific conditions as susceptible of analysis. For that
matter, a cupbearer childhood in three phases was proposed, each of them
showing a particular logical performance. The discussion about psychoanalysis
technics became inevitable as to present the contribution here aimed as a
procedure ‘anti-manual’, highlighting for the clinic professional the necessity of
considering specific problems regarding his job. Then, a specific study of the
conditions and of the direction for children treatment was conducted, addressing
the preliminary interviews, in the occasion of the reading of the symptom and
formulation of the diagnostic hypothesis; the transference interpretation and
analytical act specifications; and the conclusion of the analysis. The importance of
the roles of parents must be always considered. The route of this work is passed
beyond by what was revealed an integrator axle, the analyst desire notion,
defining the role-function of the analyst in the treatment as reserve and guardian of
the central component that articulates all the others in its practice: the
psychoanalytical ethics.

Key words: childhood, development, psychoanalysis, clinic, ethics.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………. 8

1 DELINEAMENTO DO CAMPO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA.……….12

1.1 CONDIÇÕES DA ANÁLISE ...............................................................................16

1.2 PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS .........................................22

1.3 A DIREÇÃO DO TRATAMENTO........................................................................35

2 A CRIANÇA COMO ANALISANTE............................................................................40

2.1 DESENVOLVIMENTO E ESTRUTURA .............................................................40

2.2 O SUJEITO ENTRA A LINGUAGEM E O GOZO ...............................................48

2.3 ‘NÃO HÁ RELAÇÃO SEXUAL’...........................................................................55

2.4 UMA PROPOSTA DE ESCANÇÃO ...................................................................71

3 ENTREVISTAS PRELIMINARES E O LUGAR DOS PAIS NO TRATAMENTO .......85

4 DIAGNÓSTICO E SINTOMA ...................................................................................104

5 TRANSFERÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E ATO ......................................................122

5.1 TRANSFERÊNCIA...........................................................................................122

5.2 O BRINCAR SOB TRANSFERÊNCIA..............................................................136

5.3 INTERPRETAÇÃO E ATO ...............................................................................142

6 O FIM DA ANÁLISE.................................................................................................151

7 ÉTICA COMO MANDAMENTO TÉCNICO ..............................................................168

7.1 O DESEJO DO ANALISTA...............................................................................173

REFERÊNCIAS................................................................................................................183

ANEXO............................................................................................................................ 195
8

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é apresentar uma sistematização das condições

para a análise de crianças, bem como princípios gerais para a direção do

tratamento, levando em conta os últimos avanços teóricos do ensino de Lacan,

sobretudo no que se refere à noção de gozo e ao nó borromeano, como figura

topológica para a apreensão da estrutura do sujeito do inconsciente.

De modo geral, observam-se três momentos no ensino de Lacan. O

primeiro destaca o registro do imaginário, fundamental na constituição do eu,

como a dimensão principal da experiência analítica, textos como Agressividade

em Psicanálise, 1948, e Estádio do Espelho, 1949, são representativos deste

momento. Em 1953, inicia-se um outro período, longo e de suma importância na

delimitação do campo lacaniano, no qual o registro simbólico é o privilegiado; a

tese sobre o inconsciente estruturado como linguagem marca o início deste

momento com o texto Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise,

seguido por outros como a Instância da Letra no Inconsciente, 1957, e a

Subversão do Sujeito e a Dialética do Desejo, 1960; é na década de sessenta que

alguns conceitos fundamentais da teoria começam a ganhar terreno, como o

objeto a, considerado pelo próprio autor como sua grande contribuição teórica à

psicanálise. Finalmente, na década de 70, o real é tomado como registro

essencial para se pensar a experiência analítica, nesse momento relevam-se os

seminários RSI, 1974/75, e O Sinthoma, 1975/76. Nessas duas décadas finais, a

noção de gozo se tornou absolutamente indispensável, ocupando lugar central na


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reflexão analítica, em contraposição à noção de desejo. (HARARI, 2002; MILLER,

2002; ZBRUN, 1999).

O interesse de Lacan pela ‘logificação’ do tratamento psicanalítico o

acompanha durante todo o seu percurso, fazendo-o utilizar cada vez mais a

mediação da topologia para a apreensão e articulação dos registros no sentido de

se escrever o sujeito da psicanálise, tornando portanto possível de modo

correspondente dividir também sua obra em três fases ’topológicas’: a gráfica, dos

grafos; a das superfícies, a exemplo da banda de moebius; e a nodal, retomando

as duas anteriores para integrá-las em uma nova perspectiva. (KRUTZEN, 2004).

A topologia auxilia Lacan a pensar questões do tratamento e do lugar do

analista na medida em que permite estabelecer jogos de ligação entre os

elementos que compõem uma figura: “Os objetos topológicos têm esta

particularidade de necessitar a ocupação de um certo número de lugares ou de

vagas por elementos que, logo, vão se encontrar em relações lógicas, produzidas

pela construção desses mesmos objetos. Isso é a estrutura.” (KRUTZEN, 2004,

p.136).

Em cada um dos momentos da obra de Lacan, o arsenal conceitual se

renova, trazendo conseqüências para a leitura e direção do tratamento. Importa

ressaltar que a novidade do terceiro tempo do ensino não é a topologia, que já o

acompanhava, mas o lugar de destaque do real na apreensão da constituição

psíquica. Os desenvolvimentos topológicos dessa fase final servem à inclusão do

real e seu “principal correlato clínico que é o gozo” (DUNKER, 2002, p.26), e é

com a tentativa de apreender esse irrepresentável que a figura do nó borromeano

torna-se essencial nessa etapa.


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O presente trabalho pretende articular justamente essa última

reorganização teórica em função de uma leitura das condições da análise, assim

como da direção do tratamento, na psicanálise com crianças. Para tanto, fez-se

necessária uma reavaliação das noções de desenvolvimento e de constituição do

sujeito, destacando-se a seguinte questão: como articular o lugar-função do

analista na psicanálise com crianças, levando-se em conta as especificidades

dessa clínica?

A prática analítica não deixa de corresponder a um percurso infinito de

indagações, exigindo constante reflexão teórica em resposta a nossa complexa

condição de sujeitos desejantes, de modo a resguardar a condição de clínica do

singular. Nesse sentido, o tratamento de crianças parece requerer uma

delicadeza especial, que deve atentar para uma estrutura não totalmente

efetuada, um sujeito ainda em constituição.

No primeiro capítulo, procede-se, então, à inevitável discussão sobre

técnica em psicanálise, partindo do que foi originalmente formulado sobre o

tratamento-padrão e seus desdobramentos iniciais, com as primeiras tentativas de

formalização das particularidades da psicanálise com crianças, para propor,

justamente, um ‘anti-manual’ de procedimentos que lembre ao analista a

necessidade de considerar as problemáticas específicas desse trabalho clínico.

O segundo capítulo visa a uma releitura psicanalítica do processo de

formação do sujeito do inconsciente, abordando temas referentes a

desenvolvimento e estrutura, tempos lógicos da constituição subjetiva e

diferenças de posição da criança com relação ao adulto, buscando, enfim,

configurar ‘quem’ é o analisante, quando se trata de uma criança.


11

No terceiro capítulo, argumenta-se sobre as condições propriamente ditas

para a psicanálise com crianças, principalmente no que se refere às entrevistas

preliminares e ao lugar dos pais no tratamento: como, por que e quanto incluir os

pais no tratamento da criança é questão bastante polêmica e de fundamental

importância para a configuração desse campo de trabalho.

No quarto capítulo, aprecia-se a importância crucial do diagnóstico e do

sintoma na infância, como leituras inaugurais realizadas nas entrevistas

preliminares que acompanharão de modo determinante todo o desenrolar do

tratamento. Ainda uma vez, faz-se, então, indispensável, discutir a inclusão dos

pais para precisar a leitura do analista, já que toda criança, ao nascer, é um

objeto para o Outro, e a construção de sua neurose infantil é o que lhe permite

separar-se desse Outro.

O quinto capítulo enfoca a direção do tratamento. A transferência, ponto

nodal da estratégia clínica, é abordada a partir das noções de sujeito suposto

saber e do lugar do analista como suporte do objeto a, causa do desejo e

articulador central de todo o processo. A necessidade da transferência como

condição básica para o fazer do analista, que se sustenta na interpretação e no

ato analítico, impõe, assim, determinados questionamentos: como se estabelece

e se maneja a transferência com uma criança? Pode-se falar em sujeito suposto

saber? È possível a ela engajar-se no ato analítico? Como conceber a

interpretação nesse contexto?

O sexto capítulo dirige-se à questão do fim de análise com a criança, seja

como finalização ou finalidade, procurando uma articulação entre o tempo da

constituição do sujeito e o tempo do tratamento.


12

No sétimo capítulo, apresentam-se considerações finais, mais diretamente

voltadas ao lugar-função do analista como reserva e guardião do elemento central

que integra todos os demais em sua prática: a ética psicanalítica.


13

1 DELINEAMENTO DO CAMPO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA

Para realizar uma sistematização das condições para a psicanálise com

crianças, assim como levantar princípios gerais para a direção do tratamento, é

inevitável que se proceda a um mapeamento do campo a partir do que já foi

formulado sobre as condições da análise como tratamento inicialmente oferecido

a adultos neuróticos: nesse âmbito, a psicanálise foi inventada e, embora cada

vez mais analistas venham aceitando o desafio de intervir em outras

configurações subjetivas, segundo outros enquadres e demandas, procurando

construir as condições necessárias para o exercício da psicanálise em cada caso,

o tratamento-padrão se mantém como ponto de partida e principal referência.

Tratar das condições necessárias à psicanálise remete ao controverso

campo da técnica, compreensivelmente, quase um tabu entre analistas de

orientação lacaniana.

A origem da palavra técnica é grega e significa o conjunto de processos de

uma arte; maneira, jeito ou habilidade especial de se fazer algo.

A arte é uma produção; logo supõe trabalho. Movimento que


arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o
cosmos do caos. Techné chamavam-na os gregos: modo exato
de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas dos
nossos dias. (BOSI, 1989, p.13).

Na música, por exemplo, a técnica chamada clássica determina o modo

correto de tocar um instrumento, tendo como princípio a economia de movimento.

É óbvio que, numa perspectiva puramente mecânica, poupar esforços

corresponde indiscutivelmente à melhor maneira de otimizar o desempenho de

um instrumentista. Contudo há músicos reconhecidamente geniais desenvolvendo


14

técnicas próprias, diferentes da clássica, diferentes entre si, mas, para cada um

deles, a melhor maneira de realizar sua tarefa: boa música.

A psicanálise difere deste e de outros ofícios com o objeto de seu fazer

intrinsecamente vinculado ao sujeito do inconsciente, imprimindo uma espécie de

torsão no próprio conceito de técnica. Diferentemente do músico com seu

instrumento, ou do artesão com o barro às mãos, o analista dedica-se a criar as

condições para que um determinado sujeito possa realizar sua análise. Freud já

advertia (1919, p.207) 1 : “Não tratamos de edificar sua sina [do analisante] nem de

inculcar-lhe nossos ideais, nem de modelá-lo segundo a nossa imagem, com o

orgulho dos criadores, o que nos seria muito agradável.” Depois, no artigo Esboço

de Psicanálise, no capítulo sobre a técnica, reafirma:

Por mais que o analista possa ficar tentado a transformar-se num


professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à
sua imagem, não deve esquecer que essa não é a sua tarefa no
relacionamento analítico, e que, na verdade, será desleal a essa
tarefa se permitir-se ser levado por suas inclinações.
(FREUD,1938, p.202).

Freud desenvolveu o procedimento padrão para a realização de uma

psicanálise, o que no contexto deste trabalho pode ser chamado de ‘técnica

clássica'. Partindo de sua experiência clínica e construções teóricas

correspondentes, estabeleceu o que julgou como as melhores condições para se

atingir o objetivo desejado no tratamento psicanalítico. A própria regra

fundamental da associação-livre foi elaborada a partir de um achado clínico,

quando uma paciente pede a ele que se cale e a deixe falar, levando-o assim a se

1
Embora essa citação esteja referenciada às obras completas, optou-se por apresentar a tradução do trecho
correspondente conforme proposta no livro de Millot, Freud Anti-Pedagogo (1987, p.89), por ser mais clara.
15

[re]posicionar na forma de uma atenção igualmente flutuante 2 , “elemento central

na constituição de uma ética da escuta e do falar ao outro em sua alteridade [...] É

aqui que a técnica psicanalítica encontra sua ética.” 3 (COELHO Jr., 2000, p. 78).

“O fazer do camponês não desafia o solo do campo. Ao semear, ele

entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu desenvolvimento”

(HEIDEGGER, apud FIGUEIREDO, 2000, p.50), assim como o fazer do analista

não deve tampouco desafiar o analisante, pois não apenas a semente dele

provém, na singularidade do encontro com a mão do semeador, como o seu

crescer, quase sempre inesperado e enigmático, tem seu próprio caminho.

Além dessa regra fundamental, Freud faz algumas recomendações 4 ,

sugere o tratamento de ensaio como etapa preliminar à análise propriamente dita

e o uso do divã, discute questões relativas ao tempo e ao dinheiro na análise,

destacando ainda a importância de o analista também ter, ele mesmo, realizado

uma análise, como o melhor meio para apreender a tarefa de analisar.

A preocupação maior de Freud não era tanto dizer como fazer, mas o quê

não-fazer, de modo a evitar equívocos de procedimento entre analistas

inexperientes e afoitos, buscando explicitamente impedir uma banalização

tecnicista da prática psicanalítica. “Nesta medida, seriam sempre de natureza

negativa tanto as suas recomendações como a falta delas na forma de um código

definitivo.” (FIGUEIREDO, 2000, p.15). As recomendações de natureza negativa

referem-se principalmente ao uso abusivo da sugestão, ao furor interpretativo,


2
Coelho Jr. (2000, p.82) lembra que na tradução usual de gleichschwebende Aufmerksamkeit para o
português o igualmente é desconsiderado, sugerindo portanto a tradução literal atenção igualmente flutuante,
que preserva a ênfase original dada à essência da escuta analítica.
3
Essa conexão fundamental entre técnica e ética é recorrente neste trabalho, servindo de substrato para a
discussão sobre a posição do analista, sobretudo no que se refere ao estabelecimento das condições da
análise e a direção do tratamento com crianças, e será especialmente abordada no capítulo sete.
4
Figueiredo (2000, p.14) chama a atenção para o fato de que a expressão alemã Ratschlage usada por
Freud nos trabalhos sobre técnica e geralmente transcrita para o português como ‘recomendações’
corresponde, numa tradução mais acurada, à idéia de ‘pequenos conselhos’, ‘dicas’, desvelando assim um
tom ainda mais leve para as indicações contidas no texto original.
16

curativo e pesquisante, ou seja, a tudo o que está “em franca oposição ao que

seria desejável: uma capacidade de insistir, suportar e sustentar um processo de

cura ao longo de seu percurso e das turbulências deste percurso.” (FIGUEIREDO,

2000, p.19).

Há portanto uma ligação indissolúvel entre aspectos técnicos e teóricos,

sem a qual a técnica estaria reduzida a um simples manual de procedimentos. “As

técnicas, as experiências de cura analítica, a pesquisa e a construção teórica se

entrelaçam dialeticamente, mantendo sempre em aberto as definições tanto dos

procedimentos como das próprias metas da análise.” (FIGUEIREDO, 2000, p.10).

É comum na história da psicanálise, a partir da organização de analistas

em instituições, que ao dispositivo freudiano da associação-livre se acrescente

não mais conselhos ou recomendações, mas o chamado contrato ou setting que,

numa tentativa de criar as condições ideais para que um tratamento se desenrole,

acaba por engessar a situação analítica. Essa burocratização da psicanálise

promove um fechamento do inconsciente, tomando das mãos do analista a única

ferramenta capaz de conferir existência a uma análise, o ato analítico. Quinet

(2002, p.8) afirma que, ao introduzir esse conceito, Lacan retira a psicanálise do

âmbito das regras para situá-la na esfera da ética: “O conceito de ato analítico

desvela que o dito ‘contrato’ do início da análise exime o analista da

responsabilidade de seu ato – trata-se de um contra-ato”.

O esforço de definir um conjunto fechado de regras a serem aplicadas

redunda inócuo, pois justamente devido a todas as razões que restringem ou

modulam a consideração das técnicas em psicanálise, torna-se fundamental que

“se conceda um maior relevo à posição que o analista precisa sustentar para que
17

uma psicanálise ocorra. Assim, somos deslocados das questões das técnicas

para as questões da ética.” (FIGUEIREDO, 2000, p.11).

Delineia-se aos poucos a importância da posição do analista em seu fazer.

A experiência clínica impôs a Freud um modelo de procedimento, requerendo-lhe

uma sustentação teórica compatível, contudo a posição do analista, ali onde a

ética da psicanálise se desvela, é o que de fato opera a interface entre teoria e

técnica. “A técnica ao invés de se sustentar em um código se sustentará na

manutenção de uma posição, de um lugar, vale dizer, se sustentará em uma

ética.” (FIGUEIREDO, 2000, p.38). Neste sentido, não apenas é possível, como

talvez recomendável, que haja variantes técnicas conforme o par

analista/analisante, justamente para que a ética da análise, em sua integridade,

permaneça uma só. 5

1.1 Condições da análise

Sobre o Início do Tratamento, 1913, e Recomendações aos Médicos que

Exercem a Psicanálise, 1912, são textos freudianos que trazem elementos

importantes à procura por uma definição sobre quais seriam as condições

necessárias para a análise do adulto neurótico, enquanto a Conferência 34, das

Novas Conferências Introdutórias em Psicanálise, 1932, traz preciosas indicações

de como Freud pensava as diferenças que se impõem no caso das crianças.

No texto Sobre o Início do Tratamento, Freud parte de sua célebre

metáfora:

5
A discussão sobre a ética psicanalítica, noção central e bastante particular, será realizada na conclusão
deste trabalho, ocasião em que estarão presentes todos os elementos necessários para tal.
18

Todo aquele que espere aprender o nobre jogo de xadrez nos


livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de
jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a
infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a
abertura desafia qualquer descrição deste tipo. Esta lacuna na
instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos
jogos travados pelos mestres. As regras que podem ser
estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico
acham-se sujeitas a limitações semelhantes. (FREUD, 1913,
p.164).

Nesse artigo, apesar da limitação admitida por Freud, há o esforço em

sistematizar princípios, organizando algumas ‘regras’ para o início do tratamento

psicanalítico, claramente apresentadas para não serem tomadas de modo

invariável, mas revistas frente às singularidades de cada caso, para que possa se

estabelecer um procedimento que “em media, é eficaz”. (FREUD, 1913, p.164).

A primeira recomendação é de que o analista realize uma sondagem “a fim

de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise.” (FREUD,

1913, p.165). É nesse momento que uma hipótese diagnóstica se configura.

Freud chama a atenção para os riscos e a responsabilidade do analista nessa

tarefa, ressaltando a dificuldade que existe no estabelecimento do diagnóstico

diferencial, tendo considerado esse momento inicial já como o próprio começo do

tratamento psicanalítico, requerendo, portanto, o mesmo modo de condução.

Em seguida aborda a questão do tempo. Freud conta que cedia uma hora

por dia a cada paciente, reconhece a existência de uma série de situações em

que esse esquema pode ser alterado e aponta que o mais delicado nessa

questão se refere à duração provável do tratamento. Pergunta considerada tão

inevitável quanto sem resposta. As próprias características da neurose tornam tal

questão especialmente espinhosa. Freud argumenta que a neurose tem o caráter

de um organismo, no sentido de que suas manifestações são interdependentes, o


19

que impossibilita a realização de um tratamento com um foco definido a priori,

recomendando prevenir os pacientes de que se trata de um trabalho longo,

porque ainda que o desejo de abreviar o tratamento analítico seja justificável,

“opõe-se [a esse desejo] um fator muito importante, a saber, a lentidão com que

se realizam as mudanças profundas na mente – em última instância, fora de

dúvida, a ‘atemporalidade’ de nossos processos inconscientes”. (FREUD, 1913,

p.172).

Mais adiante, toca na problemática do dinheiro: um meio de

autopreservação e obtenção de poder, envolvendo certamente poderosos fatores

sexuais. Se os pacientes tendem a lidar com o dinheiro com a mesma

ambigüidade com que lidam com questões propriamente sexuais, cabe ao

analista o dever da coerência, respondendo sempre de modo honesto e franco.

Freud atenta para o fato de a psicanálise, mais do que outras especialidades,

correr o perigo de ser bastante prejudicada caso o analista venha a ocupar o lugar

do filantropo desinteressado, uma vez que tal posição certamente emergirá no

tratamento, afetando-o de modo nocivo se estiver associada ao sentimento de

estar sendo explorado, desconsiderado. Recomenda fortemente que os analistas

não aceitem conduzir um tratamento gratuitamente, porque isso “aumenta

enormemente algumas resistências do neurótico [...]”, pois “a ausência do efeito

regulador oferecido pelo pagamento dos honorários ao médico torna-se, ela

própria, muito penosamente sentida; todo relacionamento é afastado do mundo

real [...]”. (FREUD, 1913, p.175). Como em qualquer das recomendações,

preserva a possibilidade de exceções, mas frente à crítica de que as despesas

com o tratamento seriam altas, Freud só faz reafirmar a importância da análise:

”Nada na vida é tão caro quanto a doença – e a estupidez” (1913, p.176),


20

arrematando que uma análise bem sucedida potencializa as capacidades do

sujeito, incluindo a de ser melhor remunerado em sua esfera profissional.

A derradeira recomendação de Freud é sobre a utilização do divã. Defende

tal disposição espacial não só pelo conforto que propicia ao analista ao preservá-

lo de um acareamento ostensivo durante as sessões, mas também por minimizar

o risco de influenciar o discurso do paciente através de reações da pessoa do

analista, como gestos e expressões, facilitando com isso o que nomeou de

isolamento da transferência.

Uma vez definidas as condições para o tratamento, Freud se refere à regra

fundamental da técnica analítica, a associação-livre, na qual o paciente deve dizer

tudo que vem a sua mente, sem qualquer censura ou restrição, ressaltando que

uma vez iniciado o tratamento, qualquer dificuldade em seguir essa regra já se

situa no campo da transferência e sua resistência correspondente.

A transferência, cujo estabelecimento é a primeira meta a ser atingida na

direção de ligar o paciente ao seu tratamento por meio da pessoa do analista, tem

importância capital. Uma construção que requer tempo e uma certa postura por

parte do analista. É preciso demonstrar-se seriamente interessado no que o

paciente tem a dizer, recusando-se a tomar um enfoque moralizador ou qualquer

partido entre as figuras com as quais o paciente possa estar empenhado em

conflito. Para Freud, somente a partir da transferência estabelecida é que o

analista pode fazer as comunicações que julgar pertinentes.

Finalizando o artigo Sobre o início do tratamento, Freud refere-se à

oposição entre duas forças presentes no tratamento: de um lado, a força

motivadora primária que leva o paciente a buscar análise, o sofrimento gerando o

desejo de ser curado; e de outro, o que chamou de benefício secundário da


21

doença, uma satisfação paradoxal que neutraliza parte daquela motivação inicial.

Freud elucida que a força motivadora não é capaz de operar as mudanças

necessárias, pois se encontra desorientada diante do rumo a seguir e desprovida

de energia suficiente para vencer as resistências, apresentando o tratamento

analítico como uma proposta para lidar com essas dificuldades por meio da

mobilização da energia através da transferência e do apontamento de caminhos.

E para o analista, qual seria a condição para a condução de uma análise,

sua contrapartida nas regras a que o analisante deve obedecer? Em

Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise, 1912, Freud destaca a

atenção flutuante do analista, comandada pela neutralidade de sua presença,

como a capacidade fundamental de dirigir a escuta não necessariamente à

compreensão ou memorização de conteúdos, mas aos tropeços da linguagem,

reveladores do inconsciente.

Procurando delimitar o lugar e a função do analista, Freud depara-se com o

que chamou de “uma condição psicológica em alto grau”. Tal condição poderia

ser alcançada através de uma “purificação psicanalítica”: o analista submetendo-

se a uma análise, em busca de condições para exercer seu ofício. Entende-se

aqui esta curiosa expressão freudiana não como a afirmação de que o analista

poderia vir a ser puro no sentido moral, liberto dos flagelos da alma, mas que

deve ‘trabalhar a si mesmo enquanto instrumento de trabalho’, procurando tornar

sua escuta cada vez mais desembaraçada dos próprios complexos. 6

Ainda que simplesmente elencadas, as condições inicialmente propostas

por Freud para o estabelecimento da situação analítica com adultos neuróticos já


6
A esse propósito: “a arte de escutar equivale quase à de bem dizer” - frase de autoria desconhecida citada
por Lacan na aula de 15/04/1964, 11o. Seminário.
22

tornam evidente que tomar a criança como analisante requer a revisão de cada

ponto.

Na Conferência 34, 1932, Freud faz algumas considerações sobre as

condições para o exercício da psicanálise com crianças:

Verificou-se que a criança é muito propícia para tratamento


analítico; os resultados são seguros e duradouros. A técnica de
tratamento usada com adultos deve, naturalmente, ser muito
modificada para sua aplicação em crianças. Uma criança é um
objeto psicologicamente diferente do adulto. De vez que não
possui superego, o método da associação livre não tem muita
razão de ser, a transferência (porquanto os pais reais ainda estão
em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências
internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua
maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades
externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem
em veículo de resistência, o objetivo da análise – e a análise
como tal – muitas vezes corre perigo. Aí se deduz que muitas
vezes é necessária determinada dose de influência analítica junto
aos pais. (FREUD, 1932, p.181).

Essa citação condensa muitos elementos a serem desdobrados no

decorrer deste trabalho. Freud afirma a eficácia da psicanálise com crianças, mas

alerta para diferenças importantes quanto à transferência, à presença dos pais, ao

superego, o que permite inferir que em sua leitura sobre a questão do tempo na

constituição do sujeito, a infância corresponderia a um aparato psíquico ainda em

construção, inacabado, dependente do Outro. Embora reafirme em vários

momentos a analisabilidade da pessoa nessa fase primordial, o próprio Freud não

desenvolveu as condições para a psicanálise com crianças, delegando a sua filha

Anna Freud tal tarefa.

Autores notáveis na história da psicanálise pós-freudiana, trouxeram

experiências clínicas distintas e novos aportes conceituais com relação à técnica.

Contribuições, maiores ou menores, que compõem essencialmente o testemunho

da implicação do analista em seu fazer, assim como um músico que, na graça de


23

sua habilidade, descobre uma nova maneira de chegar à determinada solução

sonora. Essas inevitáveis e progressivas alterações na conformação da técnica

psicanalítica encontram-se diretamente associadas ao que pode ser chamado de

o sintoma de cada analista, trazendo ao mesmo tempo uma relatividade bastante

confortável para que o profissional possa empreender sua tarefa e uma enorme

responsabilidade frente à ética psicanalítica, revalorizando ainda, profundamente,

a importância do chamado tripé que sustenta o fazer do analista: a realização da

própria análise - proporcionando uma relação singular com seu sintoma; o estudo

dos textos psicanalíticos - garantindo a constante reflexão teórica; e a supervisão

- demarcando um espaço privilegiado de depuração de seu ‘saber-fazer’.

O presente trabalho parte do padrão inicialmente estabelecido por Freud à

procura de indicadores pertinentes ao tratamento de um “objeto psicologicamente

diferente do adulto”. Não se pretende aqui a formulação de um novo conjunto de

regras para uma ‘psicanálise infantil’, mas uma articulação entre i) os últimos

avanços da teoria lacaniana, ii) as condições da análise e a direção do tratamento

com crianças, enfatizando o caráter central da ética da psicanálise como único

mandamento técnico, e iii) a conseqüente e crucial responsabilidade do analista

por seu ato.

1.2 Primórdios da psicanálise com crianças

A discussão sobre psicanálise com crianças é iniciada por Freud em 1909,

com a publicação de Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, o

‘Pequeno Hans’, caso clínico construído em grande parte por intermédio do pai do
24

paciente. O texto mostra a possibilidade de realização da psicanálise com

crianças, permanecendo ainda hoje como um paradigma. Embora o próprio Freud

em sua obra nunca tenha aprofundado essa discussão, tê-la simplesmente

inaugurado deflagrou de modo irreversível o debate, muitas vezes acalorado,

entre outros psicanalistas.

A primeira importante problematização da psicanálise com crianças

acontece com a oposição teórica entre Melanie Klein e Anna Freud, duas

pioneiras dessa área com leituras bastante distintas do texto freudiano. Além de

manterem divergências quanto a questões propriamente técnicas - o que define

as condições para a análise com crianças, o que é análise, qual o lugar do

analista, o fim da análise, como a transferência se apresenta nesse contexto

específico, qual o lugar e a importância dos pais - diferem fundamentalmente

quanto à possível aproximação entre as relações analítica e educativa nessa

prática clínica.

Anna Freud propôs uma conjunção entre educação e psicanálise como

condição para tal trabalho, não acreditando ser possível nem desejável o

estabelecimento de uma relação puramente analítica com uma criança. Partindo

da diferença com os adultos, chega à conclusão de que é parte integrante da

análise com crianças o exercício de uma função educativa.

No livro O Tratamento Psicanalítico de Crianças, 1926, apresenta suas

razões e o método de trabalho desenvolvido. Um primeiro ponto destacado é o

fato de a criança não apresentar “consciência – insight – da enfermidade, a

decisão voluntária e a vontade de curar-se” (ANNA FREUD, 1926, p.22) 7 , o que

seria indispensável para o início de um tratamento, criando-se assim a

7
Para evitar confusões entre Freud pai e filha, utilizou-se a forma completa Anna Freud nas devidas citações.
25

necessidade de estabelecer, em primeiro lugar, um relacionamento emocional

definido com a criança. Propõe então essa tarefa prévia à análise, portanto não

analítica ainda, para que se obtenha uma situação mais vantajosa para o início do

tratamento propriamente. Esse trabalho prévio, que inclui uma relação de

sedução, visaria a permitir e promover na criança uma boa disposição e

espontaneidade para com o tratamento, levando o analista a ganhar sua

confiança, estabelecendo finalmente um poder de autoridade sobre ela. Essa

‘aliança terapêutica’ teria um caráter pedagógico, no sentido de conduzir a criança

ao aprendizado da importância e dos fundamentos da análise a ser empreendida.

É a partir dessa empreitada pedagógico-educativa que Anna Freud tenta driblar

as dificuldades iniciais no estabelecimento das condições para a análise de uma

criança.

Outro ponto por ela destacado como complicador para a psicanálise com

crianças está ligado a sua crença na inviabilidade da instalação da neurose de

transferência 8 :

A criança não se vê, como o adulto, pronta a produzir uma nova


edição de suas relações amorosas porquanto, como se poderia
dizer, a antiga edição não se encontra ainda esgotada. Os seus
objetos originais, os pais, são ainda reais e presentes como objetos
de amor – não apenas na fantasia, como acontece com os
neuróticos adultos; entre eles e a criança todas as relações da vida
cotidiana existem, e todas as suas gratificações e desapontamentos
dependem, na realidade, desses pais. (ANNA FREUD, 1926, p.60).

Coerentemente, Anna Freud dá importância central à colaboração dos pais

na análise, responsabilizando-os muitas vezes pela possibilidade ou impedimento

do tratamento. Concebe a criança como dependente do outro de tal modo que

deixa de lhe conferir o estatuto de sujeito desejante, retirando-se do campo da

8
Refere-se a ‘manifestações de transferência’ apenas.
26

psicanálise na medida em que toma o objeto do tratamento como objeto de

educação. Sua escuta dos pais está voltada à descrição e observação do

comportamento da criança, ao que se passa em sua realidade cotidiana, uma vez

que “no caso ideal, compartilhamos o nosso trabalho com as pessoas que se

encarregam, na realidade, de educar a criança”. (ANNA FREUD,1926, p.62). O

analista então não deveria se colocar como ‘tela branca’ para que a criança ali

inscrevesse as próprias fantasias, ao contrário, deveria realizar uma ‘ação

dirigida’. Essa posição diretiva é justificada também por sua idéia de que a

associação-livre da criança seria bastante limitada e, se aceita como regra

fundamental, poderia levar o tratamento a um impasse.

Finalmente, Anna Freud articula o que considera como a diferença

fundamental entre a análise da criança e a do adulto, confirmando seu viés

pedagógico: as pulsões da criança não podem ser regidas por um superego

infantil, extremamente frágil, incompleto e dependente dos adultos que o

sustentam, assim como também não podem ser deixadas a cargo dos pais, já que

eles mesmos participam do engendramento da neurose, tornando-se então uma

tarefa para o analista.

Parece-me, assim, que resta apenas uma única solução para


enfrentar esta situação difícil. O analista deve reivindicar a liberdade
de dirigir a criança neste importante ponto, a fim de poder assegurar,
em certa medida, o resultado da análise. Sob a sua influência a
criança deve saber como se conduzir perante a sua vida instintiva e
os seus pontos de vista devem, afinal, determinar que parte dos
impulsos sexuais infantis precisa ser suprimida ou rejeitada como
não-utilizável no seio do mundo cultural; em que medida, maior ou
menor, pode permitir-se uma gratificação direta e o que é que deve
ser encaminhado na direção da sublimação, para cujo processo todos
os recursos disponíveis da educação precisam, então, ser usados.
Resumidamente podemos dizer que o analista deve esforçar-se por
27

se colocar no lugar do Ego-ideal da criança por toda a duração da


análise [...]. 9
O analista, em conseqüência, combina em sua própria pessoa duas
funções difíceis e diametralmente opostas: tem de analisar e de
educar. (ANNA FREUD, 1926, p.75-81).

A conseqüência básica dessa posição é fazer com que a busca do final do

tratamento coincida com a procura de uma identificação da criança com o ideal de

eu, lugar esse ocupado pelo analista. Cabe a indagação: como pode a psicanálise

assim concebida sustentar-se eticamente?

Uma leitura da construção teórica de Anna Freud, a partir do instrumental

conceitual atualmente disponível, concluiria que sua prática clínica se confunde

com uma atividade pedagógica de cunho imaginário, por se deter principalmente

na realidade, exercendo uma função normativa de adaptação. Ao estabelecer a

diferença entre adultos e crianças segundo atributos do eu, como maturidade ou

dependência, acaba por tomá-lo ingenuamente como objeto privilegiado de

escuta. Nesse sentido, o trabalho da autora poderia ser situado no âmbito da

pedagogia, já que desconsideraria princípios básicos da psicanálise, sobretudo no

que diz respeito à ética analítica.

Ainda que o testemunho de Anna Freud tenha sem dúvida grande valor, a

conjunção entre psicanálise e pedagogia como única alternativa no tratamento

com crianças é o sintoma com o qual inscreveu seu nome na história da

psicanálise, ou seja, o lugar de onde é possível ler sua filiação, confirmando a

idéia de que é a partir do próprio sintoma que cada analista realiza sua

contribuição. (FENDRIK, 1998, p.61).

9
Importa ressaltar que, nesse momento do desenvolvimento da teoria freudiana, ideal de ego e ego ideal
ainda se confundem. Na tradução espanhola da obra de Anna Freud, por exemplo, tem-se aquele no lugar
deste.
28

No entanto, Atal (1998) em sua leitura do caso a menina do demônio, que

perpassa todo o livro O Tratamento Psicanalítico de Crianças, de Anna Freud,

aponta um detalhe fundamental: a ‘vontade’ da autora de considerar o que lhe

parece inelutável na dimensão educativa da análise com uma criança, interdita-

lhe a percepção do quanto essa análise já transcorre dentro dos parâmetros

analíticos, a partir da neurose de transferência, o que demonstra que as questões

levantadas por Anna Freud, embora pertinentes, encontram soluções teóricas

mais comprometidas com o debate da época do que propriamente com sua

experiência clínica.

Contudo é preciso lembrar que as formulações teórico-clínicas de Anna

Freud representam uma das primeiras tentativas de se pensar a psicanálise com

crianças, o que talvez valide a suposição de que ela, na verdade, tenha de

alguma maneira tomado a criança como um sujeito em constituição, algo que

ainda não se realizou completamente, requerendo, portanto, do analista uma

posição diferente daquela ocupada quando o sujeito já se encontra constituído.

Nesse sentido, deve-se também relativizar sua contribuição no que se

refere ao papel conferido à escuta dos pais, pois se de um lado Anna Freud

atentou principalmente para a coleta de dados sobre a vida e o comportamento da

criança, de outro, não deixou assim de fundar um dos principais pilares do

tratamento, atualmente mais voltado ao recolhimento de significantes importantes

para a criança, bem como o levantamento do lugar que ocupa na estrutura

discursiva familiar.

É provável que o maior equívoco de Anna Freud tenha sido legar ao

analista, o que vale dizer, a si mesma, a posição de ideal do eu, forjando a noção

de uma ‘identificação saudável’ que acaba por impor à criança ideais alheios,
29

contradizendo, enfim, os próprios fundamentos da psicanálise numa

inconsistência ética flagrante.

Melanie Klein, por sua vez, apresenta uma elaboração teórica radicalmente

oposta à de Anna Freud. Mobilizada pelo debate, esforçou-se em ressaltar que a

análise de crianças em nada difere da realizada com adultos, observando que não

apenas as crianças podem ser equiparadas aos adultos no que se refere à

instância do inconsciente, como estão ainda mais susceptíveis à mesma, o que

permitiria a instalação imediata da situação analítica, sem a necessidade de um

tratamento de ensaio. Pressuposto básico que a levou a procurar em toda

expressão da criança um conteúdo simbólico que, através da interpretação, daria

acesso direto ao inconsciente, acreditando ainda que tais expressões na cena

analítica já revelavam em si mesmas uma estrutura associativa, o que culminou

na chamada ‘terapia do brinquedo’.

Não estabelecendo uma diferenciação entre a posição ocupada pelo

analista, seja na análise de crianças ou de adultos, afirma que o complexo de

Édipo deve ser explorado profundamente, sendo desnecessário e mesmo

incompatível o exercício de qualquer influência educativa. Ao postular que a

criança pequena já vivenciou o Édipo e, mesmo que ainda não fale, reatualiza-o

na sessão, Klein volta-se à realização de interpretações no aqui e agora da

transferência, outra divergência com Anna Freud, pois sustenta, assim, não

apenas a existência como também a importância crucial da neurose de

transferência na análise de crianças, seja em sua versão positiva ou negativa.

A partir de suas formulações teóricas sobre o aparelho psíquico precoce,

Klein encara o papel dos pais de maneira muito diferente da colega. Não vincula o
30

supereu da criança aos pais reais, ao contrário, descreve-o como precoce, severo

e autônomo, acessível somente por meios analíticos, acreditando que, na

realidade, o que importa são os pais internalizados pela criança:

A análise de crianças muito novas me demonstrou que mesmo um


menino de três anos já deixou atrás de si a parte mais importante da
evolução do complexo de Édipo. Por conseguinte, ele já está muito
afastado, devido à repressão e aos sentimentos de culpa, dos objetos
que ele originalmente cobiçava. As suas relações com ele têm sofrido
distorções e transformações, de modo que os atuais objetos de amor
são agora imagos dos objetos originais. (KLEIN, 1927, p.209).

Ainda em debate, Melanie Klein compreende educação e psicanálise como

processos absolutamente distintos que só podem coexistir se orientados por

profissionais diferentes. No artigo Simpósio sobre a Análise Infantil, 1927,

comenta e critica passagens do já citado livro de Anna Freud, defendendo que:

[...] o analista de crianças deve ter a mesma atitude inconsciente que


exigimos do analista de adultos, se desejamos que a análise tenha
êxito. Esta atitude deve capacitá-lo a querer realmente só analisar, e
não desejar moldar e dirigir a mente de seus pacientes. (KLEIN, 1927,
p.230).

É categórica quanto à impossibilidade de combinar na pessoa do analista

as funções educativa e analítica, apontando tal inconsistência no próprio

posicionamento de Anna Freud, que já as tinha descrito como duas tarefas

difíceis e contraditórias.

Posso resumir os meus argumentos, dizendo que uma dessas


atividades anula, com efeito, a outra. Se o analista, ainda que só
temporariamente, torna-se representante de agentes educativos, se
assume o papel do superego, bloqueia neste ponto o caminho dos
impulsos instintivos que se dirigiam à consciência: torna-se um
representante dos poderes repressores. (KLEIN, 1927, p.229-230).

Finalmente, um outro ponto importante para iluminar as diferenças entre

essas duas pioneiras da psicanálise com crianças refere-se ao questionável poder

de tais pacientes para associar livremente. Mais uma vez em desacordo com
31

Anna Freud, Melanie Klein acredita que, de forma simples e espontânea, através

da própria atividade lúdica, a criança na verdade só faz associar, a partir do que

desenvolveu a chamada técnica através do brinquedo - play technique -

considerando o brincar da criança na cena analítica como uma forma de

expressão correspondente à fala adulta.

A importância da contribuição de Melanie Klein está ligada à tentativa de se

manter estritamente dentro do campo da psicanálise, apesar das dificuldades que

o tratamento de crianças impunha, sendo marcante, decisiva, inegável para o

desenvolvimento da psicanálise. Contudo, assim como Anna Freud, deixa

depreender das próprias entrelinhas que se está de fato lidando com os

primórdios de um entendimento sobre a criança como um sujeito ainda em

constituição.

Há uma crítica surpreendente dirigida a Melanie Klein, referente ao seu

próprio julgamento de ser radicalmente diferente de sua opositora, Anna Freud.

Segundo Dinerstein (1987), Klein, compreendendo a transferência com respeito

sobretudo aos afetos, vê então o inconsciente como uma estrutura de fantasias, e

a relação do analista com a criança como uma relação dual na qual o primeiro

‘sabe’ - e quem sabe, ensina - concluindo, portanto, que Klein recusa a posição

pedagógica assumida por Anna Freud, sem se perceber incorrendo na mesma.

Fendrik (1988), em sua pesquisa sobre as origens da psicanálise com

crianças, lança luz sobre alguns detalhes muito sugestivos do percurso kleiniano.

No início de sua formação, Melanie Klein dedicava-se a questões relativas à

educação, segundo uma orientação psicanalítica. Não somente seu primeiro

paciente foi o próprio filho – fato aliás deliberadamente ocultado por muito tempo

e cujo relato do tratamento rendeu-lhe a entrada no seio institucional analítico –


32

como a grande maioria das outras crianças que analisou nesse começo de

carreira eram os filhos justamente dos colegas analistas que a acolheram na

Inglaterra: esses fatos somados, embora não invalidem a indiscutível contribuição

kleiniana, não deixam, por outro lado, de fundamentar a suspeita de que a

radicalidade de seu posicionamento teórico quanto ao lugar dos pais no

tratamento, com quem realizava normalmente uma única entrevista inicial, poderia

estar servindo também à própria necessidade de marcar sua diferença e

conquistar um lugar. Certamente foi uma condição necessária para seu trabalho

clínico manter os pais de seus pacientes, a saber, psicanalistas também, no

isolamento de uma distância segura, tanto para o tratamento, quanto para si

mesma, entretanto, não se pode tomar tal procedimento, imposto por um contexto

determinado, como regra invariável. Novamente, o que se destaca é a evidência

de que as contribuições de um analista acontecem vinculadas ao próprio sintoma,

o que deve servir de advertência às instituições que concebem a técnica

meramente como um conjunto de normas.

Uma vez composto esse referencial inicial pelo debate entre Melanie Klein

e Anna Freud, outros autores vêm procurando escapar à mera consonância ou

divergência para trazer contribuições originais.

Com o surgimento das formulações teóricas de Lacan, algumas questões

se recolocam. Rosine e Robert Lefort, por exemplo, defendem que a psicanálise é

uma só, e não haveria portanto uma especificidade na psicanálise com crianças.

Já Françoise Dolto e Maud Mannoni dedicam-se ao estabelecimento de uma nova

visão sobre a criança a partir do ensino de Lacan, a qual


33

[...] propõe em primeira instância, inserir a criança na estrutura


desejante da família, como efeito dessa estrutura. Ou seja, a
criança não seria a criança annafreudiana, aquela que escolhe ou
não se tratar, produto das vicissitudes de seu Ego e de seu
desenvolvimento libidinal. Também não seria a criança kleiniana,
determinada pela quantidade de instinto de morte que se faz
presente no ciúmes e na inveja. A criança na visão lacaniana é
essencialmente inserida na estrutura, efeito da família, ‘desejo do
Outro’. (VOLNOVICH, 1991, p.24).

Na direção do tratamento conforme proposta por Françoise Dolto, por

exemplo, podem-se perceber influências variadas. A autora afirma (1971, p.131)

que o método da associação livre não seria possível com a criança, razão pela

qual emprega o método do brinquedo, do desenho espontâneo e da conversação,

entendida como uma provocação de discursos diversos da criança. Afirma ainda

que, contrariamente à leitura kleiniana, não considera os símbolos que emergem

no encontro com a criança como chaves de enigmas invariavelmente, sendo

portanto essencial considerar o contexto, as descrições verbais, e o lugar que

determinado símbolo ocupa numa série quando aparece no jogo, no desenho, no

sonho ou em estórias. A base da ação terapêutica, que permite à criança ligar-se

ao analista confiando-lhe seus segredos, seria então a transferência, definida

como uma “situação de adesão afetiva ao psicanalista, que se converte num

personagem, e dos mais importantes, do mundo interior da criança, durante o

período de tratamento”. (DOLTO, 1971, p.133). A autora estabelece uma

diferença entre a atitude do psicanalista para com os pais, a quem dá conselhos e

sugestões, e para com a criança, diante da qual assume uma atitude mais

propriamente analítica. A partir de seu conceito de imagem inconsciente do corpo,

propõe, além do desenho, a modelagem, como meio para transposições dessa

imagem, o que faz parte de sua técnica com maior incidência do que o brinquedo,

considerando-a matéria prima mais apropriada à legítima expressão da criança.


34

Com relação ao final de análise, considera a cura assegurada quando do

desaparecimento duradouro do sintoma e uma sensação de “viver interiormente

em paz”, reagindo às dificuldades da vida sem angústia exacerbada, mas afirma

que a cura definitiva só se efetivará na fase adulta, e que a possibilidade de o

analista conduzir a realização de tal tarefa reside no tratamento analítico que ele

mesmo empreendeu.

Outro elemento interessante na abordagem técnica desenvolvida por Dolto

é o pagamento simbólico que instaura no tratamento das crianças. Propõe a

firmação de um contrato com a criança, que deve trazer à sessão, por exemplo,

um selo, uma pedrinha, ou mesmo uma moeda, como um pagamento simbólico,

que não se constitui em um presente nem em um objeto parcial, mas em uma

prova do desejo da criança de se tratar. Trata-se de uma tentativa de incluir toda

a riqueza das questões relativas à troca simbólica que com os adultos aparece

ligada ao dinheiro na análise. No aspecto prático, entretanto, essa proposição traz

uma série de dificuldades e, como recomendação, acabou não sendo assimilada

pela comunidade psicanalítica. Na verdade, a posição da criança no discurso

ainda parece ser a de quem toma emprestado do Outro, ‘engordando’ sua dívida

simbólica, que só posteriormente poderá ser resgatada.

Maud Mannoni, outra figura central no cenário da psicanálise com crianças,

dedicou-se mais especificamente às crianças com questões psíquicas bastante

graves, tendo inclusive construído uma instituição para acolhê-las, local onde “a

escuta analítica [...] produto da transformação produzida pela psicanálise nos

membros do grupo, é uma subversão do discurso médico-pedagógico”.

(LAJONQUIÈRE & SCAGLIOLA, 1998, p.22). A psicanalista destaca a

importância da escuta do desejo do sujeito como ponto central para auxiliar a


35

criança a construir seu lugar no mundo, sobretudo para aquelas que viveram seja

uma institucionalização hospitalar ou uma educação ‘especializada’, defendendo

com afinco o espaço de enunciação da criança.

Com relação à prática clínica propriamente dita, ressalta a existência das

muitas transferências – do analista, dos pais, da criança – o que exige então uma

habilidade especial do analista para manejá-las. Para ela, as reações dos pais

são parte integrante do sintoma da criança e, portanto, da direção do tratamento,

uma vez que a criança doente participa de uma doença coletiva, servindo de

suporte para a angústia dos pais. Conseqüentemente, não se pode tratar de uma

criança sem tocar em problemas fundamentais dos pais, como suas posições em

relação à morte, ao sexo, à metáfora paterna, já que estão profundamente

implicados no sintoma do filho. Mannoni entende que a criança com seu sintoma

ocupa então um lugar na fantasmática parental, o que requer, muitas vezes, a

presença dos pais, ou, especificamente, da mãe, no tratamento.

Com os desenvolvimentos teóricos posteriores da teoria lacaniana, como,

por exemplo, os conceitos de gozo e objeto a, novos avanços foram feitos no

campo da psicanálise com crianças.

No fundo, o que a psicanálise depois de Lacan introduz com a


criança, [...] nada mais é que a categoria de gozo, um outro nome
para o ‘inútil’. Calcular seu ato pelo gozo introduz a questão da
ética: isso supõe, certamente, o desejo do analista, isto é, por em
funcionamento um lugar onde o analista possa colher a criança
sem gozar às suas custas, mesmo quando esta última se oferece
a esse gozo. (SAURET, 1997, p.42).

Tais avanços serão tratados ao longo deste trabalho, mas já se torna

evidente que o tratamento psicanalítico de crianças não é um campo à parte do

referencial teórico da psicanálise, uma ‘especialidade’ no sentido médico do

termo, mas sim um campo no qual a ‘especificidade’ concernente ao sujeito no


36

tempo de sua constituição está incluída, apresentando, portanto, algumas

particularidades para o dispositivo analítico, o que, contudo, não impede que se

conduza a análise de uma criança segundo os princípios da ética psicanalítica.

Importa ressaltar que tais particularidades variam conforme o momento da

efetuação da estrutura no qual a criança se encontra. Os elementos presentes

nos tratamentos de crianças de dois e onze anos de idade, por exemplo, não são

equivalentes.

1.3 A direção do tratamento

Lacan declara no texto A Direção do Tratamento e os Princípios de seu

Poder 10 , 1958, que “o analista é ainda menos livre naquilo que domina a

estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se

em sua falta-a-ser do que em seu ser.” (p.596).

Com essa formulação, Lacan procura delimitar o campo analítico e suas

variáveis, num esforço análogo ao de Freud com a metáfora do jogo de xadrez.

Nesse sentido, ‘política’ equivaleria à própria lógica do jogo, às regras que

possibilitam, na medida em que regulam, o embate dos jogadores; o termo

‘estratégia’ evoca a definição do melhor caminho para que um confronto possa se

desenrolar, correspondendo às diferentes aberturas e possíveis finalizações para

esse específico confronto; e a ‘tática’ se refere ao [re]arranjo de execução dos

movimentos na situação fluida do tabuleiro, à ação direta que serve a uma

estratégia determinada.

10
Todas as citações não nomeadas contidas neste item referem-se a esse específico texto de Lacan.
37

Percebe-se, assim, uma cadeia de subordinações sucessivas na qual a

política requer uma estratégia que por sua vez implica soluções táticas. O analista

seria então praticamente não-livre em relação aos princípios do campo analítico,

sobretudo quanto à posição do analista, na sua falta-em-ser 11 , que remete ao

operador desejo de analista. A estratégia pode ser construída com certa liberdade

através do reconhecimento dos caminhos possíveis em cada caso, mais ainda

quando não se trata do tratamento padrão; a transferência, eixo que sustenta o

tratamento, situa-se nesse âmbito. A tática, definida a partir da estratégia, remete

aos manejos clínicos escolhidos pelo analista para realizar sua empreitada,

campo em que tem maior liberdade; localiza-se aqui a interpretação. Já o estilo,

irredutível, perpassa todos os campos, apontando para o que está ‘além do

tabuleiro’.

Este trabalho situa-se prevalentemente no âmbito da estratégia, ainda que

de fato essas categorias se imbriquem, quer no jogo de xadrez, no campo de

batalha, ou na clínica. Entende-se que uma definição das condições da

psicanálise com crianças seria uma delimitação estratégica, que leva em conta a

especificidade de seu objeto – o sujeito em constituição no tempo da infância.

Será necessário tocar na questão tática, como escolha da ação em campo que

corresponde a uma opção estratégica. Contudo, o âmbito da política, como o que

define o jogo próprio da psicanálise, é de onde se parte para a construção desta

tese: a política é que estabelece a direção do tratamento, a partir do que se define

uma estratégia e suas necessidades táticas.

Lacan apresenta o analista como servindo de esteio, de âncora,


no decorrer da análise, para a fantasia. O analista, que introduz
no começo da análise a associação-livre, o jogo do significante, a

11
Apesar da tradução dos Escritos de Lacan propor a expressão falta-a-ser, optou-se neste trabalho pela
forma falta-em-ser por parecer mais apropriada à língua portuguesa.
38

liberdade do sonho, encarrega-se da fantasia e até se determina


por ela – no sentido mais forte, como dizemos que uma variável é
determinada. Por isso, o analista deve saber para onde está indo;
não basta que seja entorpecido pela fantasia do paciente, que é o
desenvolvimento da neurose de transferência; ele deve saber
para onde está indo, e é essa a sua política. (LAURENT, 1995,
p.17).

A política é pautada pela falta-em-ser do analista, aquele que sabe, desde

a porta de entrada da análise, que o destino final da transferência é o des-ser do

analista, e é isso que deve orientá-lo em tal percurso.

A preocupação de Lacan, no referido texto, é justamente reafirmar essa

posição do analista de acordo com os ensinamentos freudianos, apontando a

impostura de certos grupos de profissionais que se distanciavam largamente da

essência da psicanálise. Denuncia e demonstra como a leitura equivocada de

conceitos freudianos fundamentais onera o labor prático para além de deslizes

meramente técnicos, uma vez que “a impotência em sustentar autenticamente

uma práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um

poder.” Nesse sentido, enuncia um primeiro princípio: “O psicanalista certamente

dirige o tratamento [...] não deve de modo algum dirigir o paciente.” (LACAN,

1958a, p.592).

Lacan elucida que, na grande empreitada de uma psicanálise, não apenas

o paciente, mas também o próprio analista tem um engajamento pelo qual ‘paga’:

com palavras, na interpretação; com sua pessoa, na transferência; com o seu ser,

ou melhor, seu des-ser, remetendo-se ao lugar que [des]ocupa para que seja

possível o ato analítico, enfim.

A direção do tratamento se ordena segundo um processo que vai da

retificação das relações do sujeito com o real, operação realizada nas entrevistas
39

preliminares, ao desenvolvimento da transferência e o uso da interpretação,

objetivando sempre o ‘fim da análise’.

O lugar central atribuído ao desejo é o que define a psicanálise.

O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela


demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito,
articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o
apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da
fala, é também o lugar dessa falta. (LACAN, 1958a, p.633).

O desejo é, portanto, a conseqüência vivida pelo sujeito do fato de ser

submetido à linguagem e, nesse sentido, falar representa a tentativa de declarar

plenamente esse desejo a despeito da inexorável e essencial “incompatibilidade

do desejo com a fala”. (LACAN, 1958a, p.647). Contudo é justamente desse modo

que o sujeito se apresenta na análise, sendo, portanto, crucial que o analista não

responda à demanda, para que a frustração prevaleça à gratificação, garantindo

que o desejo permaneça na relação transferencial, iluminando assim a direção da

análise.

Noutros termos, a ‘direção do tratamento’ corresponde à ‘direção do

desejo’ e compreende levar o analisante à experiência da falta, da castração, por

meio de sua própria fala com “poderes especiais do tratamento” expressa na

associação-livre e da não-resposta do analista à demanda apresentada, deixando

desimpedida ao sujeito a via de acesso a si mesmo, a qual se abre com as

sucessivas e progressivas reatualizações do desejo, através das tentativas,

sempre frustradas, de dizê-lo definitivamente.

Em pesquisa anterior, 12 foram abordadas as estratégias clínicas que

possibilitam o trabalho analítico com crianças psicóticas. No presente trabalho, o

12
Petri, R. O lugar do profissional no tratamento institucional da criança psicótica: analista ou educador?
Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2000.
40

foco é dirigido para a clínica psicanalítica com crianças neuróticas. Cabe a

pergunta sobre quais as condições necessárias à realização da análise com cada

sujeito, no entanto, com aqueles ainda em tempo de constituição, as crianças, a

amplitude dessas variáveis sem dúvida aumenta. As crianças, assim como os

sujeitos psicóticos, reclamam uma originalidade maior para seus quadros. Estes,

por não estarem submetidos à normatização produzida pelo atravessamento

edípico, e pela conseqüente significação fálica; aquelas, por sua condição de

sujeito em constituição, em plena construção de sua fantasia, sem uma estrutura

estável.

Tomar-se-á, então, a criança como um sujeito analisável, procurando

inicialmente definir suas especificidades como “objeto psicologicamente diferente

do adulto”, para depois abordar-se as diferenças técnicas, as condições

necessárias para que uma análise possa acontecer, procurando estabelecer a

particularidade da direção do tratamento na infância.

Na prática clínica lacaniana não existem padrões, pois embora se

reconheça a existência de princípios referenciais, a integridade mesma do

tratamento corresponde a uma experiência ética, envolvendo o par

analista/analisante. O entendimento e, em certa medida, a transmissão desses

princípios se efetiva prevalentemente na análise do analista e nas supervisões.

Contudo, como este trabalho está inserido no âmbito acadêmico, torna-se aqui

então necessário sistematizá-los, com todo o cuidado para que não sejam

confundidos com um manual de procedimentos. Miller (1997, p.222) nomeia de

“discurso do método” essa tentativa de formalização dos princípios da prática

clínica, assinalando, ao mesmo tempo, a importância de não se pretender esgotar

tais questões.
41

2 A CRIANÇA COMO ANALISANTE

2.1 Desenvolvimento e estrutura

Com os avanços da teoria e da clínica psicanalítica, encontram-se cada

vez mais articulações que apontam para especificidades da clínica com bebês,

crianças, adolescentes, adultos e idosos. Cada um desses ‘tempos’ da

experiência humana leva a clínicas diferenciadas que impõem certas condições

para sua realização. O presente trabalho é uma pesquisa teórica com o objetivo

de sistematizar questões relevantes ao estabelecimento das condições para a

análise e a direção do tratamento na psicanálise com crianças. A psicanálise com

bebês e com adolescentes são campos clínicos que fazem a borda e, de certa

forma, delimitam a psicanálise com crianças, tocados aqui apenas

superficialmente.

Como a criança se apresenta na clínica psicanalítica? Como a psicanálise

pode ler esse sujeito? Por que recortar o ‘tempo criança’? Quais as implicações

desse tempo para o sujeito inconsciente?

Toda escanção da experiência humana em fases distintas remete à

articulação entre a noção de estrutura, da qual o sujeito do inconsciente é efeito, e

de desenvolvimento, que inclui a passagem do tempo e as interações do

organismo com o meio: como pensar então a articulação entre desenvolvimento e

estrutura na infância?

O próprio Freud parece apresentar em sua obra uma perspectiva que

acentua a idéia de desenvolvimento, bem ilustrada no desenvolvimento libidinal


42

infantil proposto com os três estádios - oral, anal e fálico - a qual, antes de tudo, já

revela uma preocupação com os efeitos da passagem do tempo na subjetividade.

Karl Abraham deu seqüência e destaque a essa perspectiva que, posteriormente,

abriu margem, a partir de leituras reducionistas, a equívocos desconcertantes

sobre a teoria psicanalítica. Lacan dedicou boa parte de seus seminários à crítica

dessa psicanálise distanciada dos enunciados freudianos fundamentais, a qual

ingenuamente pregava a possibilidade de um desenvolvimento harmonioso levar

a um estado libidinal genital propiciador do encontro com o objeto ideal.

Em seus avanços teóricos, o próprio Freud percebe a inadequação dos

esquemas de desenvolvimento para a apreensão do universo psíquico,

recorrendo então à abordagem do dualismo pulsional.

Esse desfecho exprime bem o que há de problemático na própria


perspectiva de desenvolvimento, na medida em que ela aparece
não poder ser congruente com aquilo de que se trata no psíquico,
pelo menos a partir do momento em que se reconhece aí, com a
libido, o desejo em ação. (GUILLERAUT, 1996, p.121).

Nota-se que a referência ao tempo se mantém, porém elevando-o “à

dignidade de uma memória, de uma historicidade memorial”. (GUILLERAUT,

1996, p.121-124).

Em Lacan, encontra-se um eco dessa formulação:

O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é


sua história – ou seja, nós o ajudamos a perfazer a historização
atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo
número de “reviravoltas” históricas. [...] Assim, toda fixação numa
pretensa fase instintual é, antes de mais nada, um estigma
histórico. [...] Dito de maneira sucinta, os estádios instintuais já
estão, ao serem vividos, organizados como subjetividade.
(LACAN, 1953, p.263).

Um ponto chave para o interesse central deste trabalho é a reflexão sobre

a constituição do universo psíquico a partir da própria dimensão inconsciente, e


43

não da sua exclusão, como é comum nas teorias desenvolvimentistas. Para tanto,

é preciso articular sujeito e estrutura.

Miller, no texto Ação da estrutura (1996, p.11), afirma que:

O estruturalismo psicanalítico realiza, a nosso ver, a


exportação legítima delas [estruturas lingüísticas], porque
seus objetos são experiências: uma subjetividade
ineliminável está situada aí e elas se desenvolvem segundo
seu tempo interior, indiscerníveis do progresso de sua
constituição. A topologia da estrutura não contradiz desde
então sua dinâmica, que escande o deslocamento de seus
elementos.
Estrutura, portanto, é o que localiza uma experiência para o
sujeito que ela inclui.

A estrutura da qual fala a psicanálise antecede o sujeito por se tratar de

uma estrutura lingüística originária, ao mesmo tempo em que o inclui. No campo

da linguagem, portanto, o desenvolvimento cede seu lugar à história, de certo

modo já presente nas elaborações freudianas. O processo de aquisição da

linguagem não é objetivo, nem tampouco é garantida com a simples maturação

do indivíduo: é o processo através do qual cada sujeito vivencia a própria

subjetivação, conferindo sentido[s] a cada fato no ‘só-depois’, tempo de retroação

de um significante sobre outro, tempo subjetivo que Lacan destaca em sua leitura

da obra freudiana.

Cirino, também nesse esforço de clarear os impasses da articulação entre

estrutura e sujeito, afirma:

O estruturalismo considera que a estrutura é constituída por um


sistema de relações cujos elementos não são entidades
positivas, fixas e preexistentes, mas unidades diacríticas, isto é,
negativas, relativas, opositivas. [...] as partes se inserem na
totalidade de acordo com critérios de ordem e valor definidos
pela lei que constitui o conjunto: cada elemento depende dos
outros e só pode ser o que é na e pela relação com eles. Enfim,
diferentemente da idéia de organização, o conceito de estrutura
em psicanálise implica não só em um formalismo lógico-
matemático, mas também na sua inscrição inconsciente. (2001,
p.111-112).
44

É portanto a relação entre os elementos que compõem a estrutura que vai

caracterizá-la. O lugar que determinado elemento ocupa nos diferentes tempos da

estruturação confere a cada um desses mesmos elementos propriedades

singulares, e o sujeito, em sua constituição, também sofre os efeitos de tais

mudanças. Como então pode ser levado em conta o tempo nesse contexto?

Sabe-se que os ordenamentos lacanianos propostos com relação às

encruzilhadas psíquicas de um sujeito no percurso de sua própria constituição

estão fundamentados em instâncias lógicas e não cronológicas. Lacan, ao

introduzir a questão do tempo lógico para se pensar o sujeito do inconsciente e

uma clínica que de fato o inclua, formulou uma contribuição de capital

importância, levando aqueles que se encontram com crianças nos seus

consultórios a interrogarem sobre como tal tempo se articula dialeticamente com o

tempo cronológico. Terreno controverso, minado com posições bastante distintas,

mesmo no interior do campo lacaniano.

Rosine e Robert Lefort afirmam, por exemplo, que o sujeito do inconsciente

é sempre o mesmo. “Não há especificidade na psicanálise de crianças. A

estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de maneira

diferente à criança e ao adulto. É isto que faz a unidade da psicanálise.” (1991,

p.13). A tentativa de evitar os equívocos desenvolvimentistas de alguns

psicanalistas levou esses autores a defenderem a essência da psicanálise de

modo talvez excessivo, incorrendo, por sua vez, também em equívoco. Apesar da

posição dos Lefort ter sido muito importante para a legitimação da psicanálise

com crianças, acabou desconsiderando inteiramente a articulação entre o tempo

do desenvolvimento e o tempo lógico, nódulo teórico essencial para a psicanálise

com crianças. Se, por um lado, é fundamental contemplar a temporalidade lógica


45

na constituição do sujeito, por outro, não se pode deixar de atentar para uma

certa cronologia em jogo.

A crítica a essa perspectiva lacaniana estruturalista, representada aqui

pelos Lefort, aponta para uma implícita dissolução da noção de criança, a qual,

reduzida meramente a uma denominação cronológica, acaba, assim, tornando-se

logicamente incompatível com a concepção lacaniana de sujeito. Miller (1992,

p.10) destaca a importância de se evitar esse radicalismo e preservar a amplitude

do conceito de criança:

Creio que o fato de nos separarmos do ponto de vista do


desenvolvimento, não significa que o fator tempo não seja
tomado em conta. E o fato de que os elementos já estejam
solidários na estrutura, não impede que o encontro do sujeito
com esses elementos tenha uma variável, contingência ou pelo
menos uma indeterminação neste encontro. Sabemos que o
encontro do sujeito com a sexualidade, será um mau encontro;
há algo de estrutural nisso; mas a forma, o momento, etc., isso
não se pode deduzir, isso tem uma indeterminação. Creio que o
tempo lógico que pertence à dimensão significante da estrutura,
deve ser complementado com o tempo lógico ao nível do objeto
pequeno a. Há um fator temporal na libido, para tomar a palavra
freudiana, porque há deslocamento da libido, e isso é o que
podemos apreender de Abraham, e podemos seguir no tempo
como se desloca essa libido. E há uma definição de criança: é o
sujeito cuja libido não se deslocou dos objetos primários. Não
vou dizer que é uma excelente definição, mas na libido não é
indiferente o fator temporal. É por isso que a perspectiva do
desenvolvimento se introduziu a propósito da libido mesma.

Tal formulação é valiosa por apresentar uma definição psicanalítica de

criança que leva em conta o fator temporal na constituição do sujeito. Nessa

mesma vertente, da criança como um sujeito cuja libido não se deslocou dos

objetos primários, Laurent (1994, p.32) ainda acrescenta que os objetos não têm

a mesma incidência dependendo da idade da criança, o que caracteriza “uma

espécie de desenvolvimento lacaniano do sujeito, desenvolvimento tomado na

estrutura”.
46

Ao comentar o jogo do Fort-da descrito por Freud a propósito da

estruturação do campo simbólico para a criança, Lacan reconhece claramente

algo de inacabado na infância, localizando assim o “ponto de inseminação de uma

ordem simbólica que preexiste ao sujeito infantil e segundo a qual será preciso

que ele se estruture.” (LACAN, 1958a, p.601).

Partindo dessa formulação, Elsa Coriat, denuncia duramente a

incompatibilidade entre as teses de Lacan e os autores que afirmam

categoricamente que o sujeito está estruturado do mesmo modo desde o início.

A estrutura, desta vez a do sujeito, não pode ser considerada por


nós como constante nos diferentes tempos lógicos de sua
constituição. Desde o tempo zero em que, pela primeira vez,
surge o sujeito no real, passando pelos tempos em que
‘necessita estruturar-se’, até chegar ao tempo em que o sujeito
já está estruturado, a estrutura (mesmo se, de modo geral,
tivermos a preferência de considerá-la sempre a mesma) vai se
estruturando em um caminho que consiste em ir passando por
configurações onde os mesmos elementos não guardam as
mesmas relações entre si. (CORIAT, 1997, p.294).

Elucida que a estrutura do sujeito pertinente à clínica não é composta

somente de significantes e, levando em conta as dimensões real, simbólica e

imaginária, aponta não somente alguns dos elementos que estão em jogo - a, S1,

S2, Outro, outros, s(A), falo - como também o fato de que a relação do sujeito

com cada um desses elementos não é a mesma ao longo dos diferentes tempos

da constituição.

Ressalta, ainda, a evidência de que os tempos lógicos apenas se

desdobram como tais com a passagem do tempo, medido cronologicamente. Os

tempos lógicos são equivalentes para a constituição de qualquer sujeito, enquanto

os tempos cronológicos variam “dentro de certa margem temporal. Por exemplo:


47

não é arbitrário nem casual, não é um deslize de Lacan, que ele situe o estádio do

espelho entre os seis e os dezoito meses.” (CORIAT, 1997, p.278).

Outra autora importante nessa discussão é Bernardino, com a noção de

‘psicose não-decidida’ da infância 13 , a qual só faz sentido a partir da leitura de

que há nesse período da vida algo de inacabado em relação à estruturação,

sugerindo que a prontidão de uma intervenção clínica poderia talvez viabilizar a

ordenação da estrutura na direção da possibilidade da emergência do sujeito do

desejo. A autora compreende estrutura do sujeito como

[...] a resultante de um processo de construção, composta por


diversas operações psíquicas essenciais – aí compreendendo o
entrecruzamento dos tempos lógico e cronológico – que
pressupõe a relação com um outro da espécie, agente que
desempenha a função de Outro. (BERNARDINO, 2004a, p.36).

Retoma assim a articulação entre tempo e inconsciente, no sentido de

sustentar um entrecruzamento das noções de desenvolvimento e estrutura,

propondo uma definição de desenvolvimento compatível com a abordagem

psicanalítica, na qual o atravessamento das diferentes intersecções de tempos

lógicos e momentos cronológicos permite “o processo simbólico de inscrição e de

passagem de um sujeito do tempo infantil ao tempo de apropriação da estrutura,

em retroação constante [...]”. (BERNARDINO, 2004a, p.57).

Soler (1994, p.9) também contribui para esse debate, propondo uma

diferença entre a criança-objeto e a criança-sujeito, uma vez que, inicialmente, a

criança não é um sujeito, tanto quanto é um objeto para o Outro: “Não podemos

falar de psicanálise com crianças no sentido próprio sem questionar para cada

criança o estado de efetuação da estrutura que ela apresenta.”

13
Cf. Bernardino (2004) As psicoses não decididas da infância : um estudo psicanalítico. Casa do Psicólogo,
São Paulo.
48

Pode-se, então, afirmar que o sujeito do inconsciente, embora atemporal,

sofre as conseqüências das operações lógicas que atravessa ao longo de sua

constituição. Noutros termos, o sujeito do inconsciente não ter ‘idade’ não implica

que o sujeito na infância seja sempre igual, quer a criança tenha dois ou dez

anos, por exemplo. No decorrer do tempo, o sujeito vai enfrentando certos

impasses subjetivos que acarretam transformações na sua leitura e ação no

mundo, e na organização dos elementos essenciais à estruturação psíquica. Não

se está afirmando com isso que exista um sujeito do inconsciente de 2 anos, 3

anos, e assim sucessivamente, mas que as encruzilhadas psíquicas que

atravessa no decorrer de sua estruturação, implicam em transformações nesse

mesmo sujeito, sendo somente na adolescência que os elementos adquirirão uma

maior estabilidade na estrutura.

Portanto, a psicanálise com crianças não é nem uma especialidade, o que

demandaria do analista uma formação técnica determinada, tampouco uma

clínica equivalente à realizada com adultos, sem qualquer atenção às

singularidades da infância. A criança é, sim, um analisante de pleno direito e,

justamente por isso, impõe certas especificidades à clínica que, norteada pelos

mesmos eixos teóricos, difere apenas quanto às condições para sua realização.

O que determina tais especificidades é simplesmente o fato de a criança

ainda estar armando sua estrutura, e o engendramento do sujeito, que dela

emergirá, sofrer os efeitos desse percurso. Para estruturar-se como sujeito, a

criança depende irremediavelmente de um Outro sustentado por um agente de

linguagem, personagem que lhe nutrirá um desejo, dirigindo-lhe demandas, o que

propiciará o seu desenvolvimento. Essa perspectiva é bastante diferente de uma

suposta evolução natural em estádios e parece claramente ir ao encontro da


49

afirmação de que “é na dialética da demanda de amor e da experiência do desejo

que se ordena o desenvolvimento”. (LACAN, 1958b, p.700).

Essa particularidade da infância ser o tempo da constituição do sujeito,

finalizada apenas na adolescência, traz conseqüências fundamentais,

determinantes de todas as outras assim chamadas especificidades na clínica

psicanalítica com crianças.

2.2 O sujeito entre a linguagem e o gozo

Na Conferência 34, 1932, Freud afirma que o fato de a criança ainda não

ter constituído um supereu é o que determina a sua principal particularidade,

apresentando-o, assim, como o divisor de águas que permite caracterizar o

funcionamento da criança em contraposição ao do adulto.

A instância do supereu se inscreve a partir da estruturação do sujeito no

campo do Outro, realizada na infância. “O supereu é o herdeiro da operação de

tomar o significante do Outro, de apreendê-lo, formando-se dos restos das

mensagens de autoridade dos pais” e demais adultos que exercem uma notória

influência sobre a criança. (VIDAL, 2001, p.76). É, portanto, a instância que

articula a transmissão dos antepassados, realizada pelo Outro primordial,

decorrendo do atravessamento do Édipo e do encontro com a falta no Outro.

“Determinado pela castração, que instaura a cisão definitiva do sujeito, o supereu

presentifica o paradoxo em relação ao gozo, exigindo, por um lado, a satisfação

imperativa da pulsão e, por outro, encarnando a mais severa proibição ao gozo.”

(VIDAL, 2001, p.79).


50

O supereu, marcando o sujeito com um imperativo inalcançável de gozo

absoluto, condensa, assim, o paradoxo da existência humana e do próprio

funcionamento psíquico, caracterizados pela busca da satisfação plena e pela

impossibilidade dessa realização, interditada, revestida de proibição. Braunstein

(1999, p.37) chama a atenção para o fato de esse imperativo ser também uma

espécie de chamado, no sentido da dívida que o sujeito tem com algo que lhe é

superior, sua causa e origem. Dessa forma, ainda que o sujeito não tenha pedido

para existir, deve assim mesmo prestar contas a seu criador, “oferecer sua libra

de carne a um Deus inclemente [...] o gozo é consubstancial ao sacrifício”.

A constituição do supereu é, então, uma conseqüência da estruturação do

sujeito, da instalação da lei simbólica, tendo como ponto de amarração a

operação definida por Lacan como metáfora paterna, que introduz o significante

primordial nome-do-pai, centro a partir do qual a subjetividade se organiza. Lacan

confere especial destaque à castração, não como a ameaça aterrorizante

postulada por Freud, mas como interdição salvadora que separa a criança do

gozo da mãe, caracterizando a transmissão necessária realizada pela função

paterna de modo a abrir o caminho para a instalação do desejo.

Pretende-se aqui articular como o sujeito se constitui na infância, entre a

linguagem e o gozo, pela operação da castração. No item anterior discutiu-se o

lugar da linguagem como condição do sujeito inconsciente, passa-se agora a

abordar o papel do gozo e a operação de castração.

Lacan afirma que o complexo de castração tem uma função de nó,

definindo uma posição inconsciente.

1º. na estruturação dinâmica dos sintomas, no sentido analítico


do termo, quer dizer, daquilo que é analisável nas neuroses, nas
perversões e nas psicoses;
51

2º. numa regulação do desenvolvimento que dá a esse primeiro


papel sua ratio, ou seja, a instalação, no sujeito, de uma posição
inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo
ideal do seu sexo, nem tampouco responder, sem graves
incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual,
ou até mesmo acolher com justeza as da criança daí procriada.
(LACAN, 1958b, p.692).

Com relação ao gozo, complementa: “A castração significa que é preciso

que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei

do desejo.” (LACAN, 1960, p.841). Essa oposição fundamental entre gozo e

castração, ou ainda, gozo e desejo, é o que ilumina o eixo a partir do qual se

articula a direção do tratamento na psicanálise.

Braunstein, autor considerado o mais importante intérprete da noção de

gozo em Lacan, cujas formulações apresentadas no livro Goce, 1999, são

referências importantes na presente discussão, afirma que o inconsciente,

estruturado como uma linguagem, depende do gozo, enquanto substância que

habita o ser antes da linguagem, sendo assim um aparato que serve à conversão

desse gozo em discurso, operação possível a partir da castração. 14

Ao aparecer no mundo, a carne humana estaria inundada pelo gozo do

ser, 15 ao qual deve renunciar para adentrar o universo propriamente humano de

intercâmbios orientados pela significação fálica. Nesse sentido, a experiência

recorrente da castração do Outro, seu inevitável [des]encontro com a criança

tomada como o objeto que lhe serviria para alcançar uma completude que

redunda impossível, impõe à criança sucessivas renúncias ao gozo do corpo, fora

14
As articulações a respeito do gozo que aparecerão nos próximos parágrafos estão referidas a esta obra de
Braunstein.
15
Braunstein reconhece uma tendência dentro do campo lacaniano em identificar gozo do ser e gozo do
Outro, mas preserva tal distinção na tentativa de contemplar a diferença clínica existente entre o gozo do ser
- vinculado à Coisa, atribuído imaginariamente como gozo do Outro, um Outro devorador/devastador - e o
gozo do Outro - o outro sexo, feminino. Este trabalho apresenta gozo Outro, quando se refere ao gozo do
outro sexo, e mantém as duas denominações, gozo do ser e gozo do Outro, para se referir a esse gozo do
corpo anterior à simbolização, fazendo a diferença quando se toma o ponto de vista da criança - gozo do ser,
ou do Outro - gozo do Outro.
52

da linguagem, para então irromper como sujeito nessa trama já constituída pela

própria linguagem. É o tempo da castração que permite ler, retroativamente, o

tempo anterior como dominado pelo gozo do ser. A partir da chamada invocante

do Outro, apelação subjetivante, o gozo do ser é interditado pela castração,

obrigando a passagem do gozo pela linguagem.

A criança, sofrendo essa traumatizante experiência de ser desde o

nascimento tomada como objeto do gozo do Outro, tenta defender-se, enquanto

um ‘proto-sujeito’, encapsulando tal gozo em seu íntimo, tornando-o o ‘obscuro

objeto do ser’, saber não-sabido, inscrito no inconsciente. Realiza, assim, uma

fixação de gozo que, desde então, passa a comandar o engendramento do

sujeito. É a partir desse núcleo, letra escrita pelo Outro, que a fantasia se

articulará e o inconsciente realizará deciframentos em suas manifestações.

Desse modo, compreende-se a infância como o tempo do assujeitamento

do gozo à castração e, conseqüentemente, da construção do dispositivo

discursivo como a possibilidade de um sujeito se dizer a partir de sua apropriação

da língua. A palavra/fala como um canalizador, abrindo o acesso ao gozo fálico,

faz-se possível, assim, com a submissão do sujeito às leis da linguagem.

Braunstein (1999, p.34) descreve esse processo: “A palavra se grava na

carne e faz desta carne um corpo que é simbolizado nos intercâmbios com o

Outro. Falar, pensar, passar pelos significantes da Lei: tais são os efeitos da falta

do objeto que toma assim o lugar da Causa (Ding).” Dessa passagem do gozo do

ser, localizado no corpo, para o gozo fálico, linguageiro, destaca-se o objeto a.

Da coisa ao falo: este é o sentido da rota freudiana que acaba


dando o lugar central na psicopatologia ao complexo de
castração e suas vicissitudes, reorganizador por retroação
daquilo que ocorreu antes de ter se estabelecido a primazia
fálica. Este processo pode ser entendido como uma sucessão de
migrações, exílios e esvaziamentos do gozo. A sexualidade
53

passa por ‘fases’ que vão demarcando esta longa jornada que
leva do real anterior e exterior à simbolização, à Coisa do
começo, ao real que sobra como saldo impossível depois da
simbolização e que se pretende apreender com as pinças da
palavra mas escorre, e ainda, se produz como efeito de discurso
pela palavra mesma, o objeto a, o fugidio plus de gozo.
(BRAUNSTEIN, 1999, p.34).

Nesse jogo de intercâmbios com o Outro entrega-se algo de real, esse

gozo fora da linguagem, em troca de uma recompensa simbólica, o amor do

Outro, reconhecimento do desejo. O saldo do jogo é o objeto a, manifestação da

falta-em-ser, causa do desejo. É, portanto, fundamental que esse jogo possa se

estabelecer na infância, ou as conseqüências para o sujeito podem ser fatais,

deixando-o confinado ao lugar de objeto a na fantasia do Outro.

A origem do conceito de objeto a remonta à noção de das Ding - a Coisa -

apresentada por Freud como um objeto perdido que o sujeito busca reencontrar:

puro real, anterior a toda simbolização, núcleo de impossibilidade encerrando o

mais íntimo e inacessível ao sujeito. Uma vez que o real só pode ser abordado

pelo significante, a Coisa pode ser suposta somente a partir da incidência da

linguagem, que introduz a falta. Assim, a lei da linguagem é o que [re]cria a Coisa

e a define como perdida. Nesse sentido, o trabalho do significante supõe um real

prévio - a Coisa - e produz um saldo inassimilável e incomensurável - o gozo

perdido, causa do desejo, objeto a, real ulterior. O objeto a é, então, um produto

da incidência da linguagem no ser. É porque a Coisa falta que os objetos do

mundo aparecem e se multiplicam, que os seres falantes entram no mercado do

gozo com o Outro e são constituídos como sujeitos. Os objetos, portanto, são

derivados da perda, representantes fantasmáticos.

Do gozo do ser, pela intromissão necessária do Outro e de sua Lei que

exigem a entrega desse gozo ao mercado de intercâmbios, resta uma falta-em–


54

ser, o desejo. Ocupa-se a vida com a tentativa de dizê-lo, embora tal missão já se

apresente impossível em princípio, pela própria incompatibilidade entre o desejo e

a fala.

Na infância, o sujeito experimenta renúncias sucessivas ao gozo que serão

ressignificadas a partir da castração. Ao sucumbir à castração, o gozo do corpo

tem que passar pelo significante, sendo, assim, redimensionado em gozo fálico.

Esse esvaziamento de gozo ressignifica todas as perdas anteriores em relação ao

falo, significante da falta como universal a todos os seres falantes, o qual divide o

campo da sexuação em duas metades não complementares, a do homem e a das

mulheres. Entre o homem e a mulher há, então, o muro da linguagem.

O falo é um significante ímpar, inarticulável, ao qual vem responder o

significante nome-do-pai, esse sim articulável, que substitui o falo como desejo da

mãe, tornando-se o significante primordial que produzirá a significação fálica.

A castração tem uma função de “habilitação para o gozo, doadora de uma

relativa e precária imunidade contra esse maligno gozo do Outro que deixa o

sujeito fora do simbólico”. (BRAUNSTEIN, 1999, p.82). Como lei do desejo,

transforma a carne em corpo, desaloja o gozo ilícito, interdita-o, desloca-o,

prometendo em seu lugar um gozo legítimo, o gozo fálico. O sujeito através da

castração renuncia ao gozo do Outro, fora da lei, em nome de um outro gozo,

dentro da lei, garantindo-se assim de uma só vez a dimensão possível do gozo e

a viabilidade do laço social.

Braunstein (1999, p.53-61), numa analogia feliz, afirma que, assim como

um diafragma fotográfico regula a passagem da luz ideal, a palavra regula a

passagem do gozo permitido. Desse modo, o diafragma que se fecha diante do

excesso de luz corresponderia ao bloqueio defensivo do sintoma, represando o


55

excesso de um gozo intolerável, experimentado então como sofrimento. Assim,

sugere a palavra como o diafragma do gozo. A análise cria condições para que o

diafragma possa voltar a se abrir, liberando assim a passagem do gozo por esse

dosador constituído pelo atravessamento da castração e a conseqüente

incidência do nome-do-pai como significante fálico. O discurso é o que permite ao

ser falante acesso ao gozo na escala invertida da Lei do desejo.

Antes da estabilidade que pode ser alcançada com a instalação da

castração, dá-se um progressivo esvaziamento do gozo através da canalização

das pulsões, na medida em que o sujeito vai construindo seu dispositivo

discursivo, levando à emergência não de um gozo que se poderia chamar de

sintomático, mas de um gozo apalavrado.

A castração proporciona, então, uma ressignificação das perdas anteriores

atualizadas em relação ao falo, constituindo-se na operação lógica fundamental a

partir da qual se pode falar propriamente em sujeito do desejo inconsciente. “A

divisão primordial, que põe em movimento a sexualidade em seu sentido

psicanalítico é a divisão do sujeito em relação ao gozo induzida pela castração, e

é esta que leva à constituição do objeto como suplência do gozo que falta.”

(BRAUNSTEIN, 1999, p.101).

A castração, como operação simbólica fundante da ordenação do real,

inaugura, assim, o espaço para a passagem do gozo ao desejo: eis o percurso a

ser realizado pelo sujeito na infância.


56

2.3 ‘Não há relação sexual’

Prosseguindo a discussão, tome-se a resposta de Lacan, no seminário Os

quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao questionamento de Dolto sobre

a necessidade de se referir a estágios para pensar a criança pequena:

A descrição dos estágios, formadores da libido, não deve ser


referida a uma pseudo-maturação natural, que permanece
sempre opaca. Os estágios se organizam em torno da angústia
de castração. O fato copulatório da introdução à sexualidade é
traumatizante – aí está um fisgamento de vulto – e tem uma
função organizadora para o desenvolvimento.
A angústia de castração é como um fio que perfura todas as
etapas do desenvolvimento. Ela ordena as relações que são
anteriores à sua aparição propriamente dita – desmame,
disciplina anal etc. Ela cristaliza cada um desses momentos
numa dialética que tem por centro um mau encontro. Se os
estágios são consistentes, é em função de seu registro possível
em termos de mau encontro.
O mau encontro central está no nível do sexual. Isto não quer
dizer que os estágios tomam uma coloração sexual que se
difundiria a partir da angústia de castração. É, ao contrário,
porque essa empatia não se produz, que se fala de trauma e de
cena primitiva. (LACAN, 1964, p.65).

Lacan afirma que a angústia de castração, provocada pelo mau encontro –

sexual e traumático – é o motor da própria constituição psíquica presente desde

os primórdios da constituição do sujeito. É fundamental pensar como esse mau

encontro se apresenta em cada estágio, pois o registro possível que se pode

fazer do mesmo em cada momento é diferente, ainda que esteja sempre

tensionado pelo fio da castração.

O supereu, aqui na concepção recortada em Freud, seria o herdeiro da

transmissão desse mau encontro como o ponto de virada na estruturação do

sujeito.

Dependente de uma tiqué, trata-se de uma marca que não é da


ordem de uma identificação que coletiviza, mas que, ao contrário,
se define como a marca do que faz a singularidade de cada
57

sujeito. Venha ele das primeiras excitações provenientes do


próprio corpo ou do encontro com um gozo que vem do Outro,
esse primeiro encontro com o sexual contém uma verdade
profunda. Nele, o sujeito se depara, pela primeira vez, com um
desamparo estrutural, com a angústia traumática que traduz o
encontro com um impossível, com uma falta no Outro: S(A/).
[...]
O trauma maior do ser humano é o complexo de castração,
estrutura pela qual todo sujeito se confronta a uma falta
irredutível que marca o sujeito na sua constituição de sujeito. O
confronto primeiro desta com essa falta excede as possibilidades
iniciais de resposta do sujeito e lhe exige a invenção de uma
resposta particular como saída deste complexo. Nesse sentido,
nós podemos dizer que ‘o trauma é o nome freudiano do não há
relação sexual de Lacan’, cujo preço é a divisão subjetiva.
(OLIVEIRA, 2004, p.17-18).

Assim, o aforismo lacaniano ‘não há relação sexual’ é central na chamada

última clínica de Lacan. Essa formulação remete ao traumatismo desse mau

encontro, essencialmente sexual, tomado como a forma primeira pela qual se

apresenta a função da tiquê, ou seja, do real como encontro faltoso. Lacan (1964,

p.57) exclama: “Não é notável que, na origem da experiência analítica, o real seja

apresentado na forma do que nele há de inassimilável – na forma do trauma,

determinando toda a sua seqüência e lhe impondo uma origem na aparência

acidental?”

Essa transmissão realizada pelo Outro via trauma dá-se, assim, segundo

um real inassimilável, encerrando, portanto, um paradoxo: a transmissão do

intransmissível. Desse modo, a criança é impelida a construir sua fantasia a partir

do trauma para contornar esse real inconfrontável. A fantasia como uma estrutura

mínima, matriz de significação, é o substrato a partir do qual o sujeito se organiza

em sua relação intangível com o objeto [causa] de seu desejo, objeto a, extraído

desse encontro inaugural e faltoso da criança com o Outro. A fantasia é a

resposta do sujeito à falta-em-ser. Contudo essa passagem do trauma à fantasia

ainda não manifesta na infância todas as conseqüências que tal articulação entre
58

o sujeito e o impossível do encontro com o objeto de seu desejo vai trazer no

adulto. A infância é o tempo de construção dessa fantasia, que assumirá uma

forma mais estável e bem-acabada somente na adolescência. 16

A prerrogativa da inexistência da relação sexual é o que fundamentalmente

orienta a prática clínica do campo lacaniano. “A única verdade da psicanálise, de

acordo com Lacan, é que não há relação sexual, a questão é induzir o sujeito a

encontrar-se com essa verdade”. (FINK, 1998, p.151). Tal questão também se

coloca na psicanálise com crianças: como induzir a criança a esse [mau]encontro

e qual o registro então possível a ela dessa verdade?

A não-relação sexual nunca se escreve. Ela resta sempre como


uma regra que falta a ser inventada, mas que sempre faz falta. É
o que faz com que Lacan tenha dito que o traumatismo é, em
última instância, o traumatismo sexual [...] O que é comum a toda
relação intersubjetiva é a não existência da relação sexual, falha
na qual virão se inscrever os objetos fragmentados do gozo.
(LAURENT, 2004, p.26-27).

No decorrer da constituição subjetiva, a inexistência da relação sexual vai

sendo registrada na medida do encontro da criança com os impasses advindos do

real e segundo os instrumentos que tiver à sua disposição para contorná-los.

Como afirma Braunstein (1999, p.42), a história de cada um é a história dos

modos de faltar o objeto impossível, são os resultados vivenciais da inexistência

da relação sexual. Trata-se da transmissão da falta nos seus diferentes registros,

com a castração como articulador central.

A inexistência da relação sexual desvela a ausência de complementaridade

e simetria entre os dois sexos, decorrentes de posições distintas em relação à

castração e à função fálica, através do processo que Lacan chama de sexuação.

S ◊ a, fórmula da fantasia na álgebra lacaniana, que pode ser lida como o sujeito do desejo em sua
16

relação de conjunção/disjunção com o objeto de gozo.


59

O falo é um significante sem par, ordenando posições assimétricas e gozos não

conciliáveis entre homem e mulher. A impossibilidade real da relação sexual se

deve à heterogeneidade dos gozos: do lado masculino, fálico e linguageiro e do

lado feminino, passando pelo corpo para além do falo. Esse gozo feminino, gozo

Outro, do Outro sexo, só pode ser alcançado, entretanto, uma vez aceito o gozo

fálico. O falo, de uma forma ou de outra, impõe sua inegável presença, como

limite, para o gozo masculino, ou como borda a ser ultrapassada, para o gozo

feminino. O gozo da mulher, portanto, não é complementar ao do homem, sendo-

lhe, antes e fundamentalmente, suplementar, o que revela entre os sexos uma

desproporção intrínseca que encarna o próprio impedimento para a realização do

ideal de completude implícito na proposta do amor genital.

Melman (2004, p.26) refere-se à inexistência da relação sexual como uma

patologia central que organiza os discursos. O homem na relação com uma

mulher, relaciona-se, em verdade, com o objeto de sua fantasia que uma mulher

pode vir a representar. A mulher, por sua vez, não mantém uma relação com o

homem, mas com o instrumento que lhe interessa e acontece de ser encontrado

no homem. Em ambos os casos, a relação não é com o parceiro sexual, mas com

o próprio objeto.

“Do gozo ao desejo, do desejo ao amor, e o amor, por sua parte, recaindo

sobre um deslocamento da imagem de si mesmo. Não, não há nada que se possa

fazer, a relação sexual não existe.” (BRAUNSTEIN, 1999, p.28). O amor é, assim,

suplência para o fato de não haver relação sexual, dá forma ao desejo e faz

recuperar fragmentos de gozo.

Os pais, enquanto personagens centrais da trama familiar, cumprindo com

as primeiras e fundamentais transmissões necessárias ao engendramento de um


60

sujeito na infância, referem-se a essa impossibilidade da relação entre os sexos

segundo uma orientação própria que influencia diretamente o modo de transmiti-la

à criança, a qual se vê cercada pela questão desde o início. A entrada no mundo

humano, ou seja, o mundo falado, é realizada por um agente de linguagem, um

Outro primordial perfazendo a transmissão da própria linguagem, leito a partir do

qual um sujeito pode nascer. Essa entrada na linguagem é, então, flagrantemente

traumática por comportar em seu cerne uma não-relação afinal.

A verdade do par familiar é, certamente, que ele não funciona


bem, que ele claudica, como diz Lacan. A claudicação do sexo é
conseqüência do fato de que 'não há relação sexual'. Como a
criança se arranja com essa verdade? Ela constrói um romance,
o romance familiar, assim ela se arranja para que os significantes
copulem. O sintoma da criança é um modo de ajustar-se com
essa impossibilidade da relação sexual. (NOMINÉ). 17

A diferença essencial entre adulto e criança acerca dessa verdade da não-

relação sexual refere-se, portanto, à possibilidade do ato sexual propriamente

dito.

Embora a sexualidade seja organizada através de um ‘infantil’ ao


qual o sujeito se reporta – seja qual for sua idade – quando se
trata de seu desejo, seu gozo, suas pulsões parciais, a
possibilidade de exercício desta sexualidade muda sua posição.
Não há equivalência entre um sujeito em posição de criança, para
quem vigora uma promessa de gozo postergada e o enigma do
desejo do Outro sustentado pelas figuras parentais, e o adulto
que se torna – pelo menos potencialmente – capaz do ato sexual,
e é chamado a ser responsável por este, bem como encontrar
uma forma de lidar com o enigma do Outro sexo. (BERNARDINO,
2004b, p.59).

Torna-se assim claro que, embora a inexistência da relação sexual seja

uma questão crucial para todo e qualquer sujeito, desde sua entrada no campo da

linguagem, a criança, especificamente, por ainda não se confrontar de fato com o

real do Outro sexo no encontro sexual, mantém uma posição diferente diante da

17
Citação sem referência utilizada como divulgação de seminário ministrado em São Paulo, 2005.
61

inexistência de tal encontro. A impossibilidade do ato sexual parece postergar o

encontro ‘olho no olho’ com a inexistência da relação sexual, a qual, para a

criança, aparece então revestida da prevalência do falo. Isso não significa,

entretanto, que a criança não sofra os efeitos do que possa registrar do real dessa

impossibilidade. Freud (1923, p.180) já chamava a atenção para a primazia fálica

como o que caracteriza a organização sexual infantil.

A característica principal dessa organização genital infantil é sua


diferença da organização final do adulto. Ela consiste no fato de,
para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão
genital, qual seja, o masculino. O que está presente, portanto,
não é a primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo.

Como então o real do sexo chega às crianças?

O real não varia, no sentido de que não existe mais ou menos impossível,

mas se apresenta de maneiras diferentes à criança, enquanto sujeito em

constituição, ainda construindo sua fantasia, instituindo seus reguladores de gozo

e seus instrumentos lógicos para fazer frente às irrupções desse mesmo real.

São, portanto, os modos de apreensão que diferem, promovendo nuances

diferentes nas implicações do impossível. O que faz a diferença entre o adulto e a

criança é, então, o real em jogo que, embora sempre sexual, deixa ainda

inacessível à criança todas as conseqüências do encontro com o real do sexo

vivido de fato pelo adulto. O sujeito na infância, como resposta do real ao

significante, aponta, portanto, para uma inconsistência, a qual leva Soler (1994,

p.11) a afirmar que a criança tem uma posição incompletamente decidida em

relação ao gozo.

É verdade que nem a experiência da castração, nem o gozo das


pulsões parciais, não esperam os anos, mas deixam, contudo,
em parte aberta a questão da sexualidade propriamente dita.
Entendo por isso o encontro com o outro sexo, no qual a falta da
castração não é somente determinante, no qual está em jogo o
62

encontro real de uma resposta de gozo que, para a criança, ainda


virá, impossível antecipar. (SOLER, 1994, p.11).

Tal concepção é consonante com a de Laurent na afirmação de que:

Existe algo que separa a criança da pessoa grande; certamente


não é a idade, nem tampouco o desenvolvimento, tampouco a
puberdade. No fundo, o que separa a criança da pessoa grande é
a ética que cada um faz de seu gozo. A ‘grande personne’ é
aquela que se faz responsável por seu gozo. (LAURENT, 1994,
p. 32).

Portanto, o que caracterizaria a criança é o fato de ainda não ser

completamente responsável por seu modo de gozo. A criança, às voltas com a

pergunta sobre o desejo da mãe, tem a primeira versão do impacto do real pela

via da castração materna. A interdição do incesto seria, assim, a modalidade

princeps inscrita na cultura para contornar esse impossível, apaziguando a

angústia de castração.

Michel Silvestre (1982) afirma que o real diante do qual a criança recua é

justamente a constatação de que o sujeito é constituído por dois conjuntos

diferentes, homens e mulheres, e que entre eles não há relação possível,

exatamente por causa do sexual. O complexo de Édipo vem mascarar essa

alteridade entre os sexos, ocultada pelo preço da castração, elegendo o falo como

objeto privilegiado. São esses os elementos disponíveis para contornar a questão.

O falo permite aos seres falantes de ambos os sexos se unirem imaginariamente,

aparentando-se simbolicamente. O real dessa alteridade é colocado em latência e

apenas ressurgirá quando o sujeito se reencontrar com o outro sexo, não mais

como evocador da ameaça de castração – como no primeiro encontro no qual

percebeu a diferença dos sexos – mas como revelador da impossibilidade real de

união e da exclusão irreversível que marca cada sujeito com relação ao sexo a
63

que ele não pertence. Esse segundo encontro marca a adolescência, quando, ao

reler a promessa edípica de completude, o ato sexual inaugura definitivamente a

real impossibilidade de o sujeito saber sobre o sexo e o gozo.

Esse encontro definitivo com o impossível na adolescência provoca uma

instabilidade na estrutura, impondo a necessidade lógica de reordenação dos

elementos em jogo para confrontar a inexistência da relação sexual. É a partir

desse rearranjo que a estrutura alcançará uma estabilidade até então ausente.

Lacan (1969), no texto Nota sobre a criança, trata da transmissão

irredutível necessária para a constituição subjetiva, a qual está relacionada a um

desejo não anônimo, que conjugue as funções de mãe e pai. Mãe, na medida em

que seus cuidados levam a marca de um interesse particularizado, ainda que pela

via de suas próprias faltas, e pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma

encarnação da Lei do desejo. Noutros termos, são necessários o desejo da mãe,

por meio do qual a criança se aliena como objeto, e o nome-do-pai, significante

que barra o desejo da mãe, abrindo a possibilidade efetiva para o surgimento de

um sujeito, na operação nomeada de metáfora paterna. Essa operação inscreve

na criança a relação entre o pai e a mãe, numa primeira articulação entre os

elementos do casal parental.

Já na última etapa de seu ensino, no seminário RSI, Lacan traz

contribuições fundamentais para o avanço dessa questão, as quais implicam a

sexualidade feminina de maneira contundente.

Um pai só tem direito ao respeito, senão ao amor, se o-dito amor,


o-dito respeito, estiver, vocês não vão acreditar em suas orelhas,
père-vertidamente orientado, isto é, feito de uma mulher, objeto
pequeno a que causa seu desejo, mas que o que esta mulher em
pequeno acolhe, se posso me exprimir assim, nada tem a ver na
questão. Do que ela se ocupa são outros objetos pequeno a que
64

são as crianças junto a quem o pai então intervém,


excepcionalmente, no bom caso, para manter a repressão, dentro
do justo mi-dieu, se me permitem, a versão que lhe é própria da
pai-versão. Única garantia de sua função de pai; que é a função,
a função de sintoma tal como a descrevi ali. Para isto, basta aí
que ele seja um modelo da função. Aí está o que deve ser um
pai, na medida em que só pode ser exceção. Ele só pode ser
modelo da função realizando o tipo. Pouco importa que ele tenha
sintomas, se acrescenta aí o da perversão paternal, isto é, que a
causa seja uma mulher que ele adquiriu para lhe fazer filhos e
que com estes, queira ou não, ele tem cuidado paternal. (LACAN,
1974/75, p.23).

O avanço aqui está em definir a função do pai a partir do fato de

reconhecer como causa do seu desejo uma mulher, renunciando, assim, a ser

meramente o chefe de uma horda. O que o cuidado do pai transmite a um filho é

o gozo irredutível que advém disso. A pai-versão como única garantia de sua

função como pai é o que singulariza o sujeito, realizando uma escritura articulada

a essa transmissão de gozo.

Quanto à mãe, afirma-se uma importância até então inédita da sexualidade

feminina. Miller (1998) formula, a partir dessas colocações de Lacan, que, para a

mãe ser suficientemente boa, não basta veicular a autoridade do nome-do-pai,

mas cuidar para que a criança, por outro lado, não sature a falta da mãe. É,

portanto, fundamental que a mãe não se desvie de desejar enquanto mulher. O

que requer do pai manifestar-se também enquanto homem. Percebe-se, então,

que para constituir-se o sujeito do desejo na criança são necessários não apenas

um pai e uma mãe, como se poderia supor, mas também, e fundamentalmente,

um homem e uma mulher. Um pai que se apresente unicamente como pai,

faltando enquanto homem que goza de uma mulher, abandonaria a criança ao

gozo do Outro, e a mãe, por sua vez, caso não concedesse em ser, enquanto
65

mulher, a causa do desejo de um homem, gozaria de seus filhos ao invés de se

ocupar deles.

Não há transmissão sem conjugalidade fundadora da


parentalidade. É esta a condição: a família de origem não deve
ser fundada sobre a parentalidade, mas, ao inverso, é a
conjugalidade de um homem e de uma mulher que funda a
parentalidade. (JULIEN, 2004, p.46).

É a partir da conjugalidade entre o desejo da mãe enquanto mulher e do

pai enquanto homem “que se transmite a lei que permite ao sujeito abandonar pai

e mãe e fazer aliança com um(a) desconhecido(a); abandonar a origem torna-se

possível graças a esta borda que o inconsciente inscreve: a marca de uma

perda.” (JULIEN, 2004, p.86).

Tomando uma mulher como causa de seu desejo, o pai, em seu lugar de

homem, transmite à criança o enigma do gozo feminino. Sauret afirma que é a

partir disso que a neurose infantil se organiza. “É precisamente este significante

em falta – que faz enigma – que a criança solicita quando interroga os pais sobre

o que ela é.” (SAURET, 1997, p.41). É a falta de um significante que responda à

pergunta o que o Outro quer de mim? que leva o sujeito a construir uma resposta

fantasmática, orientada pela pai-versão. Versão que remete ao não-saber sobre a

morte, o gozo feminino, a relação sexual, remete, enfim, à incerteza transmitida

pelo pai, a qual nada mais é do que uma maneira singular de se transmitir o

intransmissível. Incerteza já seria um nome para esse inominável, mas guarda,

assim, a marca singular de um sujeito/homem/pai. Tudo em função da tentativa

sempre vã de presentificar de modo tangível o mesmo impossível, então

transmitido sob a forma impalpável da não-existência da relação sexual.

O pai é esse justo meio-deus na medida em que é tanto


representante do Pai simbólico, capaz de presidir à mais elevada
66

das modificações, pois que sustenta a substituição da coisa pela


palavra, e ocupante do lugar de pai real, quer dizer, também
capaz de sustentar a praticabilidade da incompetência em
assumir essa posição, de estar sempre em falta em relação a ela.
(LEBRUN, 2004, p.47).

Essa preciosa e singular transmissão que serve ao engendramento de um

sujeito é a própria transmissão da castração, feita pelo pai real, que pode

transmitir para a criança a relação com a lei do desejo justamente porque ele

próprio não é a lei. Noutros termos, o pai testemunha para a criança uma versão

possível de relação com a causa do desejo, qual seja, a sua própria versão. É a

transmissão de um saber sobre a falta, ou ainda, um saber-fazer com a falta.

Tem-se aqui reunidas as principais questões da psicanálise com relação à

transmissão da castração, levantadas por Freud e bastante trabalhadas por

Lacan: o que é um pai? o que o Outro quer de mim? o que quer uma mulher? É a

partir de uma articulação entre essas perguntas e as tentativas de respondê-las

que o legado se efetiva: o pai transmite o enigma do gozo feminino ao tomar,

enquanto homem, uma mulher como causa de seu desejo, apresentando, assim,

uma trama básica segundo a qual irá se conjugar o desejo do Outro para a

criança.

Abordar a sexualidade feminina seria, então, uma outra maneira de falar

desse impossível ao qual todos somos confrontados. A pergunta o que quer uma

mulher? está implícita para a criança, às voltas com uma questão anterior: o que

é uma mãe?

Assim, Lacan, diferentemente de Freud, localiza a via da maternidade

como oposta à posição feminina, mantendo, porém, uma articulação entre ambas,

na medida em que lembra à mãe o dever de preservar-se mulher, caso queira

propiciar à criança a escolha de uma posição sexuada na vida.


67

Ao se ressaltar a operação de transmissão necessária à constituição de um

sujeito, não se pode esquecer do trabalho da própria criança em tomar para si o

que lhe foi passado, apropriando-se de forma singular da herança que lhe foi

legada. Na psicanálise com crianças é de suma importância a constatação de

que, apesar da indispensabilidade do Outro para que se constitua, um sujeito

apenas se efetiva por meio das respostas que a criança produz a partir daquilo

que recebeu. Num primeiro momento, conta somente com o real de seu

organismo e a estrutura simbólica oferecida pelo Outro primordial, mas,

rapidamente, partindo dessas primeiras marcas, passa a fazer uma leitura desse

Outro e a responder conforme as próprias possibilidades.

Cada momento da estruturação do sujeito implica em impasses específicos

que levam a criança a recorrer a uma fomentação mítica de modo a estruturar um

sistema simbólico que organize seu mundo.

Um mito é sempre uma tentativa de articular a solução de um


problema. Trata-se de passar de um certo modo de explicação da
relação-com-o-mundo do sujeito ou da sociedade em questão
para outro modo – sendo esta transformação requerida pela
aparição de elementos diferentes, novos, que vêm contradizer a
primeira formulação. Eles exigem, de certo modo, uma passagem
que é, como tal, impossível, que é um impasse. Isso é o que dá
sua estrutura ao mito. (LACAN, 1956/57, p.300).

O mito como sistema simbólico visa a integrar o impossível, contornando-o

segundo uma articulação própria, tornando-o, assim, possível.

A criança vai construindo instrumentos que têm uma função lógica para dar

conta do real ao qual está confrontada ao longo de sua constituição. As teorias

sexuais elaboradas pela criança como resultado de sua atividade de pesquisa

com relação à realidade sexual, por exemplo, são mitos que constrói, em

determinado momento, para dar conta da questão da origem, caracterizados por


68

uma leitura do Outro como completo. A operação da metáfora paterna, como

momento de virada na estruturação do sujeito, é o que vai possibilitar a passagem

das onipotentes teorias sexuais infantis para a construção da fantasia na criança,

no qual a falta no Outro já está de alguma maneira incluída, qual seja, a castração

materna, e, assim, na mesma qualidade de mito, continua dando sustentamento

ao desejo, mas segundo uma nova ficção.

Desse modo, com a constante necessidade de rearticulação subjetiva,

devido às renovadas irrupções de real, a organização estrutural vigente mostra-se

insuficiente, requerendo novos e também constantes reordenamentos dos

elementos da estrutura. A criança é, portanto, obrigada a construir um novo mito

para contornar um novo impossível e dar conta desse real então renovado,

realizando assim uma transformação de seu modo de explicar o mundo. A

estrutura se reorganiza para responder a uma questão até se desestabilizar

novamente requerendo outra reorganização. O Outro tem importância

fundamental em cada um desses tempos de reorganização da estrutura, pois é

nele que a criança encontrará ou não os ‘termos’ 18 necessários para sua nova

construção. A expressão cunhada por Rassial (1997), Psicogênese do Outro, é

aqui pertinente, por assinalar a importância do Outro na constituição psíquica,

desde o Outro primordial, da alienação, tesouro do significante, passando por

todas as roupagens imaginárias encontradas, chegando à S(A/).

No presente trabalho, a caracterização dos tempos da constituição

psíquica, além da castração como referência central da estruturação do

18
Tais ‘termos’ são, de fato, da ordem simbólica, acessíveis para a criança enquanto elementos da estrutura
do(s) sujeito(s) que sustenta(m) para ela o lugar de Outro, dos quais se serve para reordenar os elementos
intrínsecos à sua própria estrutura.
69

psiquismo, considera a articulação entre real, simbólico e imaginário a partir da

figura topológica do nó borromeano, visando a ampliar o entendimento e a

operatividade clínica.

Parte-se da hipótese de que os três registros vão se entrelaçar no tempo

da infância na direção da construção do nó borromeano, em um movimento de

armação da estrutura psíquica. Desde a chegada do bebê humano, os três

registros estão presentes, sobrepondo-se sucessivamente até constituírem o nó

borromeano. Como afirma Vorcaro (1997), a criança é o lugar onde se amarram:

(i) um organismo irredutível, presença inequívoca do real; (ii) uma articulação

significante que sustenta o discurso, pré-existência do simbólico, atualizado pela

alternância inicial do agente de linguagem entre presença e ausência; (iii) uma

consistência ideal, o imaginário materno, que remete às expectativas e

antecipações realizadas pelo Outro primordial da criança. A autora trabalha seis

momentos de incidência de um registro sobre o outro para chegar à formação

final do nó, mostrando a constituição subjetiva a partir desse enodamento. Sua

leitura fundamenta-se sobretudo no primeiro momento em que Lacan discute o nó

borromeano de três aros, ocupando um lugar central como responsável pela

estrutura psíquica.

Considerando as sucessivas sobreposições que resultarão no nó, torna-se

possível não somente articular as relações entre os três registros, mas também

delimitar lugares e funções. Pode-se localizar tanto os gozos definidos por Lacan -

gozo do Outro, gozo fálico e gozo do sentido (jouis-sens) - como o assim

chamado objeto a. Cada um desses gozos caracterizará o funcionamento

psíquico em tempos distintos da estruturação, o que permite discutir questões

relativas ao sintoma, ao lugar do analista, à transferência e ao final de análise. O


70

objeto a se localiza na prensagem central dos três aros, buraco que designa para

o sujeito o vazio de sua existência. É o objeto a que unifica RSI fazendo com que

os aros referentes aos registros não se escapem.

Como já dito, a topologia é um recurso ao qual Lacan recorre com cada vez

mais freqüência, ao longo de seu percurso teórico, para apreender a indizível

dimensão do real. O nó borromeano mostrou-se especialmente conveniente a tal

tarefa por apresentar propriedades bastante interessantes. A principal, que o

caracteriza, é ser composto pelo enlace concomitante de, no mínimo, três aros,

que se desfaz imediatamente quando qualquer deles se desenlaça. Outra

propriedade importante, decorrente dessa primeira, é cada um dos aros ‘ex-sistir’

em relação aos demais, ou seja, realizar a nodulação, na medida em que,

situando-se alhures, mantém unidos os outros elos. A figura topológica do nó

borromeano relevando, assim, a relação de interdependência existente entre as

argolas que o compõem, tem a qualidade de permitir abordar os registros

correspondentes sem prevalência de um sobre o outro.

Em seus avanços teóricos, Lacan acrescenta um quarto aro ao nó, o qual,

em seminário homônimo, 1975/76, nomeou sinthoma. 19 Tal proposição traz

conseqüências fundamentais para a clínica. Há divergências no campo lacaniano

com relação às colocações de Lacan nesse seminário, uma vez que muitas

questões estão ali assinaladas sem, contudo, serem desenvolvidas. O presente

trabalho compartilha do entendimento de que o quarto aro não é simplesmente

um reparador que apenas surge quando uma falha específica se apresenta, mas

um elemento essencial presente em qualquer estruturação do psiquismo. Afinal,

se os erros na amarração dos três registros remetem à falha do pai, importa


19
Cf. em anexo o nó do sinthoma, nó borromeano de quatro aros, composto pelos três registros, RSI, que
delimitam lugares e funções como já mencionado, e pelo quarto anel do sinthoma.
71

reconhecer que ele, em alguma medida, sempre falha. Nesse sentido, a

introdução da noção de quarto aro permite deduzir que o nó borromeano de três

aros formado na infância nunca se forma ‘perfeitamente’.

Embora o nó borromeu de três aros, R, S, I, persista como


estrutura ideal do objeto e dos gozos, Lacan nos indica que ‘não
é um privilégio ser louco’ e que, para cada um, o enodamento
tem pouca chance de se constituir segundo este modelo, já que,
bem pelo contrário, tal tipo de costura, tal falha, seja de um dos
aros ou do próprio enodamento, torna necessário um quarto aro,
o do sinthoma [...]. (RASSIAL,1997, p.31).

A construção do sinthoma se dá na adolescência 20 , como um segundo

tempo lógico em relação ao nó anterior de três aros, servindo a partir de então de

base à analise da problemática sexual. Lacan afirma: “é na medida em que há

sinthoma que não há equivalência sexual [...] lá onde é relação, é na medida em

que há sinthoma. Ou seja, onde é do sinthoma que se suporta o outro sexo.”

(1975/76). É somente a partir de então que o encontro com o outro sexo pode se

dar - antes desse momento, certamente, são outras as questões.

O sinthoma é inventado pelo sujeito para fazer frente às inscrições que

recebeu do Outro para sua constituição. Remete a um ‘saber-fazer’ com aquilo

que foi herdado, os fatores da ordem da causa, correspondendo a uma terceira

categoria de saber que não é o saber textual - inconsciente - nem o saber

consciente referencial - conhecimento. Tal saber remete ao poder de se

desembaraçar daquilo que pesa e ata, implicando, portanto, em um certo

desnudamento. A construção do sinthoma remonta assim ao modo pelo qual o

sujeito alivia o peso do Outro que se lhe recai, ou seja, ao modo pelo qual se

desembaraça desse Outro. (HARARI, 2002).

20
Cf. O sinthoma adolescente. In: Estilos da Clínica: Revista sobre a infância com problemas, no. 6, IPUSP,
São Paulo, 1999.
72

Por que então abordar aqui a questão do sinthoma se ele remete a um

momento lógico posterior? Simplesmente porque é na infância que se formam os

pilares sobre os quais o sinthoma será posteriormente construído. Esses pilares

são exatamente os pontos de falha nos enodamentos do nó de três aros. Na

infância, é o sintoma que vem num primeiro momento cerzir a falha de

enodamento, mais tarde tal costura se desfará para ser refeita no sinthoma.

Nesse sentido, a hipótese defendida neste trabalho é a de que uma

intervenção analítica na infância pode contribuir para o desenho posterior do

sinthoma, propiciando mudanças reais, com conseqüências, por exemplo, sobre a

própria escolha do parceiro sexual. Não se confunda aqui a psicanálise com

crianças com uma pretensa profilaxia do que quer que seja: alterar uma escrita é

bem diferente de prevenir seja o que for, pois nunca se sabe exatamente a que

direção uma mudança levará. O que interessa aqui ressaltar é a delicadeza e a

importância da intervenção na infância.

2.4 Uma proposta de escanção

Cada um dos ‘tempos’ da experiência humana tem relações particulares

entre os elementos que compõem a estrutura, requerendo portanto clínicas

também diferenciadas. É vital, para a proposta deste trabalho, que não se

confunda a consideração de diferenças na abordagem clínica com um atentado à

integridade da psicanálise. Não se pretende aqui, portanto, formular um esquema

de desenvolvimento que pudesse talvez servir à idéia de uma especialidade

psicanalítica infantil, mas escandir o ‘tempo criança’, localizando lógicas distintas


73

entre os elementos de modo a fundamentar uma prática clínica que não

desconsidere as especificidades do sujeito na infância: trata-se simplesmente de

‘incluir o que já faz parte’.

É durante a infância que se dá a castração, núcleo organizador de toda a

experiência subjetiva, caracterizando um tempo de fundamental importância, tanto

pelas significações que, partindo dessas bases, serão realizadas a posteriori,

quanto pelo estabelecimento de uma determinada relação com os objetos, de um

modo particular de gozar, que definirão a posição do sujeito no mundo, afinal. As

crianças que chegam para tratamento na clínica psicanalítica encontram-se em

momentos distintos com relação a esse centro organizador, demandando portanto

condições também distintas para a realização do trabalho analítico.

Nesse sentido, enquanto analisante, tem-se (i) a ‘criança pequena’,

caracterizada pelo jogo do engodo e das frustrações que vive com a mãe como

Outro primordial; (ii) a ‘criança edípica’, já inserida na dialética da castração como

encruzilhada estrutural do sujeito; e (iii) a ‘criança na latência’, ocupada em

compreender e assimilar a castração à qual foi submetida. Propõem-se, assim, a

existência de três tempos referenciados pela castração: um tempo preparatório,

anterior ao Édipo; o atravessamento edípico propriamente dito, implicando a

operação da castração; e um pós-édipo, tomado pela tentativa do sujeito de

compreender o que se passou. Considerar a criança a partir de sua experiência

de gozo leva a essa mesma escanção, pois o advento da castração não deixa de

ser uma referência central também nesse âmbito: antes da castração, a criança

está às voltas com o gozo do Outro; a partir de sua incidência, alcança o gozo

fálico possibilitado pela linguagem; e na latência tem-se como alternativa o gozo

do sentido.
74

O que torna possível considerar o período de latência, aqui posteriormente

detalhado, como não meramente uma fase do desenvolvimento, mas como um

tempo lógico com implicações para as condições da análise e a direção do

tratamento? Sobretudo, a recorrente procura pela psicanálise de pais de crianças

atravessando esse momento. Poder-se-ia argumentar que, se existem sintomas

não se trata portanto do período de latência, mas de uma impossibilidade de

enfrentar a castração. No entanto, entende-se aqui que os sintomas desse

período revelam o difícil trabalho psíquico da criança de assimilação e

compreensão da castração e não necessariamente um evitamento da mesma.

Teoricamente, essa hipótese é sustentada por Alberti (2003) que,

orientando-se pelo texto de Freud (1925) Inibições, sintomas e ansiedade,

considera a latência como um momento a ser recortado na estruturação do

sujeito.

A cada momento, o sujeito estruturado conforme a neurose se


depara com diferentes formas de perigo que lhe provocarão
angústia, identificada por Freud como sendo sempre angústia de
castração. [...] o perigo do desamparo fundamental corresponde
ao período inicial da imaturidade do eu [aqui associado ao bebê];
o perigo da perda do objeto de amor corresponde à impossível
autonomia dos primeiros anos de vida [aqui associado à criança
pequena]; o perigo da castração, à fase fálica [criança edípica]; e,
finalmente, na latência, o perigo vem do supereu. (ALBERTI,
2003, p.13).

A autora, aliás, também propõe uma escanção que vem ao encontro da

proposta neste trabalho. Procede-se, então, a uma retomada de cada um dos

tempos já citados. O ‘tempo bebê’ é abordado apenas de passagem, como

introdução ao tempo ‘criança pequena’, uma vez que a psicanálise com bebês

apresenta uma série de diferenças com relação às condições e a direção do

tratamento, as quais escapam ao âmbito do presente trabalho.


75

A criança pequena

No momento inaugural, temos a mãe, Outro primordial, e o bebê, sujeito à

necessidade. Ao nascer, realiza para a mãe a presença do objeto a na fantasia,

saturando sua falta.

O bebê grita diante da tensão orgânica causada pela fome. A mãe

interpreta o grito como apelo e oferece o objeto alimento, o qual é acompanhado

de uma tessitura desejante. A mãe se oferece então como uma matriz simbólica

para a criança, alternando-se entre ausência e presença. A criança vive uma

primeira experiência de satisfação nesse momento mítico do encontro com o

leite/seio materno, numa relação ilusoriamente homeostática com a mãe. Tem

assim a experiência da possibilidade da relação sexual, do fazer-se um com a

mãe, como se o encontro com o Outro pudesse ser bem sucedido, no sentido de

uma plenitude.

A primeira irrupção de real advém do fato de a mãe falhar na sua matriz

inicial presença/ausência, ou seja, não comparecer junto à criança no exato

momento em que era esperada, mas antes, ou depois. Sobre esse inevitável

[des]encontro inaugural, Lacan afirma:

Pois, depois de tudo, por que a cena primitiva é tão traumática?


Por que ela é sempre muito cedo ou muito tarde? […] Trata-se,
na experiência analítica, de partir do fato de que, se a cena
primitiva é traumática, não é a empatia sexual que sustenta as
modulações do analisável, mas um fato factício. (1964, p.71).

A partir desse momento, a mãe que se apresentava apenas como uma

matriz simbólica, passa a se apresentar também como real. Os objetos que

oferece - ou não - à criança também sofrem uma mudança de estatuto: além de

objetos reais, como o leite, a mãe passa a ser a possuidora de objetos de dom,
76

simbólicos. A mãe aparece então munida de grande potência à qual a criança se

submete, numa dependência aterrorizante. Essa onipotência da mãe tende a se

traduzir numa voracidade de seu desejo, situação periclitante à qual Lacan se

refere pela figura da mãe insaciável.

Tal situação se reorganiza a partir do falo, elemento que ganha destaque

na equação, instaurando o que Lacan (1956/57) chama de dialética da frustração

ou do engodo. A criança, devido a sua dependência dos objetos que a mãe

oferece ou não, passa então a se fazer falo da mãe, na tentativa de resolver o

impasse que se impõe, obturando assim essa primeira brecha através da qual o

real é vislumbrado. A criança presta-se ao jogo do engodo por uma questão de

sobrevivência: identificando-se ao falo, reconstitui o Outro, mantendo-o completo,

ainda que ao preço de, com tal manobra, manter-se alienada a ele.

A partir do ingresso da criança na dialética da frustração, Lacan ressalta

que, embora o objeto real não seja indiferente, não há necessidade alguma de ser

específico.

Mesmo que não seja o seio da mãe, nem por isso ele perderá
algo do valor de seu lugar na dialética sexual, de onde se origina
a erotização da zona oral. Não é o objeto que desempenha, em
seu interior, o papel essencial, mas o fato de que a atividade
assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se
ordena na ordem simbólica. (1956/57, p.188).

A mãe, como Outro primordial, só pode propiciar as condições necessárias

para a criança realizar essa nova organização, se estiver marcada ela mesma

pela castração. Se esse Outro falha nesse momento, deixa a criança sem

elementos para lidar com o impasse colocado. É aqui que entra o pai nesse

tempo da constituição, um pai simbólico, um nome, tributário do desejo da mãe. A

função paterna é assim veiculada pela palavra da mãe: o pai, sendo o que dá
77

referência à mãe, não precisa ser necessariamente o genitor, nem mesmo um

homem concretamente presente, mas uma instância que leva a mãe a desviar

seu desejo em outra direção.

Com relação ao trabalho psíquico de confecção do nó borromeano, pode-

se dizer que, nesse tempo, o enodamento entre o real do corpo e o imaginário

como ideal materno se dá prevalentemente, sustentado pela ‘ex-istência’ do

simbólico, pré-existente ao surgimento do sujeito no mundo. É nesse cruzamento

que se delimita o gozo do Outro, ao qual o sintoma da criança pequena está

relacionado, gozo que se caracteriza por se localizar no corpo. A criança ocupa

um lugar no gozo do Outro ao nascer, o gozo que ela então experimenta como

objeto desse Outro. 21

Braunstein (1999, p.83) afirma que o gozo do Outro, fora do simbólico, é

uma atribuição imaginária ao gozo de um Outro devastador, o qual, anterior à

inscrição do nome-do-pai, reaparece no real. É o gozo característico desse

encontro inicial entre a mãe e a criança, a mãe em sua condição de desejante e a

criança oferecendo o próprio corpo para saciar o insaciável.

A carne do infans é desde o princípio um objeto para o gozo, para


o desejo e para o fantasma do Outro e seu lugar no Outro deve
chegar a ser representado, isto é, constituir-se como sujeito,
passando, imprescindivelmente, pelos significantes que
procedem deste Outro sedutor e gozante e, ao mesmo tempo,
interditor do gozo, de um gozo que é confinado por esta
intervenção da palavra em um corpo silenciado, o corpo das
pulsões, da busca compulsiva de um reencontro sempre
fracassado com o objeto. (BRAUNSTEIN, 1999, p.20).

Até esse momento, a criança vive a mais completa imersão no campo do

Outro, tempo de alienação aos significantes desse Outro. Contudo a mãe, se

21
É interessante notar, como destaca Braunstein (1999), que a produção cultural consagrada ao gozo do
Outro corresponde à religião, a qual prega um assujeitamento radical a um Outro todo poderoso como via de
acesso à experiência da completude. Nesse sentido é que Lacan, no seminário sobre o sinthoma, afirma: “A
mulher da qual se trata é um outro nome de Deus, e é nisso que ela não existe”. (1974/76)
78

atravessada pela castração, passa a renunciar pouco a pouco a esse gozo que

obtém através do filho, iniciando um movimento de separação. Nesse sentido,

tanto mãe quanto criança fazem um movimento de renúncia ao gozo do Outro,

preparando assim o terreno para conseguinte castração.

Noutros termos, ainda que a criança pequena viva um tempo inicialmente

harmonioso, no qual a dialética da frustração parece dar conta das primeiras

irrupções do real, essa pretensa harmonia em algum momento se desestabiliza,

revelando a insuficiência da criança como falo da mãe. A criança começa a se

deparar com a inevitável emergência de algumas questões: quem é o falo, afinal?;

o que a mãe deseja, quando deseja além de mim? A partir de então, a

precariedade de sua primeira construção imaginária para lidar com o mundo é

desvelada de modo irreversível, requerendo assim uma reorganização estrutural,

possibilitada pela entrada do pai real no jogo, inaugurando o próximo tempo.

A criança edípica

A passagem do tempo ‘criança pequena’ para o ‘criança edípica’ se dá pela

transição da dialética imaginária do jogo intersubjetivo com a mãe em torno do

falo para o jogo da castração na relação com o pai. A partir de um impasse, qual

seja, a constatação da insuficiência da criança enquanto falo da mãe, a situação

exige uma reordenação dos elementos, com a entrada significativa do pai real,

instaurando uma nova ordem chamada dialética da castração.

Tal passagem ocorre quando o engodo da dialética da frustração se revela:

a criança, deixando de ter sucesso como objeto enganador da falta materna,

percebe que a falta se presentifica. A criança, diante de uma situação que expõe
79

a voracidade ameaçadora do desejo materno, busca no campo do Outro algum

novo ‘termo’ para enfrentar esse impasse. O pai real então aparece como aquele

que pode operar a castração materna, liberando a criança do desejo insaciável da

mãe. “Aqui, é como ser vivo de carne e osso que ele intervirá e sua intervenção

só se sustentará por seu desejo”. (LEBRUN, 2004, p.41). Sendo assim, a palavra

da mãe não é mais suficiente, se ela não desejar como mulher, se não for objeto

para o gozo de um homem, isso poderá trazer conseqüências, por exemplo, para

o futuro posicionamento sexual do filho. Dito de outro modo, além de pai e mãe, é

necessário, agora, homem e mulher.

A dialética da castração apazigua então o conflito deflagrado pela

obsolescência do jogo do engodo e fornece uma estrutura simbólica através da

instauração da lei que regulamenta as trocas humanas - a interdição do incesto -

legitimando a incompletude em oposição a uma plenitude imaginada, que é da

ordem do impossível por estrutura. A falta ganha, definitivamente, estatuto de

motor psíquico e não simplesmente de vazio a ser preenchido. De falta imaginária

na dialética da frustração, a falta muda de categoria, tornando-se uma falta

simbólica.

A partir desse momento de virada, o objeto não é mais o objeto


imaginário com o qual um Outro é sempre capaz de mostrar que
o sujeito não o tem, ou o tem de forma insuficiente. Se a
castração exerce esse papel essencial para toda a continuidade
do desenvolvimento, é porque ela é necessária à assunção do
falo materno como um objeto simbólico. Somente a partir do fato
de que, na experiência edipiana essencial, ela está privada do
objeto por aquele que o tem, que sabe que o tem, que o tem em
todas as ocasiões, é que a criança pode conceber que este
mesmo objeto simbólico lhe será dado um dia. (LACAN, 1956/57,
p.213).

Com a incidência da operação simbólica da função paterna, o falo, objeto

imaginário da dialética da frustração, é elevado ao estatuto de objeto simbólico, e


80

pode, então, ser buscado, de modo próprio, tanto pelo menino como pela menina.

Após a castração, a criança sai marcada em relação ao falo com um sinal de mais

ou de menos, pois numa dialética simbólica “o que não se tem é tão existente

quanto o resto” (LACAN,1956/57, p.125) e o que importa é a marca que irá

vetorizar suas buscas ulteriores. O falo é a moeda principal que possibilitará as

futuras trocas da criança com o Outro. Com a função paterna se estabelece o que

Lacan chama de o ‘jogo de quem perde ganha’: a criança, perdendo a ilusão da

completude materna, ganha pertinência social, ampliando assim seu circuito de

trocas.

A operação da castração aponta para a falta de um significante no Outro

que represente o Outro sexo, encontrando no falo seu único valor.

Uma angústia fundamental, angústia de castração, assedia todo


sujeito, localizando-o, do lado masculino, como ameaça, e, do
lado feminino, como nostalgia. A constelação edípica pai-mãe-
criança-falo inscreve no inconsciente o par pai-mãe como
significante da geração sexuada, ou seja, inscreve os laços de
desejo e amor que os unem, mas nada revela sobre o gozo que
circula entre o par homem-mulher. Sobre o que se passa no
corpo a corpo entre esses dois, o Outro não diz nada.
(OLIVEIRA, 2004, p.17).

Eis o momento crucial da estruturação do sujeito neurótico. É a partir do

confronto com a castração que a criança construirá sua fantasia, definindo então

a relação do sujeito, barrado, com o objeto a, causa de seu desejo. É nesse

momento que os caminhos possíveis da neurose se apresentam. Contudo, a

magnitude da tarefa supera as possibilidades que a criança tem nesse momento

de realizá-la, uma vez que a castração aponta para a inexistência da relação

sexual, mas a criança não tem ainda a possibilidade do ato sexual propriamente

dito, sendo então obrigada a recalcar todo esse material, com o qual se
81

reencontrará apenas na adolescência. Essa espécie de intervalo para ruminar e

digerir a castração é o que vai caracterizar o tempo da ‘criança na latência’.

Com relação à confecção do nó, localiza-se nesse tempo da ‘criança

edípica’, prevalentemente, o enodamento do real, como castração materna, com o

simbólico, como Lei da interdição do incesto, ambos sustentados pela ‘ex-

sistência’ do imaginário, o qual pode aqui ser representado pelas histórias de

rivalidade edípica. O gozo delimitado por esse enodamento é o gozo fálico, já

atravessado pela linguagem. Braunstein (1999, p.83) afirma que o gozo fálico se

inscreve na articulação do real que resta da Coisa, uma vez descolado o desejo, e

o simbólico, que se compõe por meio do apalavramento do gozo ordenado pelo

significante. 22

Do gozo do ser terá se passado para o gozo fálico. Da Coisa


absoluta do ponto de partida, absoluta porque não sabia de
obstáculos nem de mercados de renúncia, apenas ficam objetos
fantasmáticos que causam o desejo desviando para outra coisa,
as coisas do Outro, as que só se marcam quando se as
alcançam, pela diferença decepcionante, com a perda em relação
à Coisa pretendida. O objeto a, oferecido como mais de gozo, é a
medida do gozo faltante e por isso, por ser a manifestação da
falta em ser, é causa do desejo. Pois o gozo do objeto a é
residual, é compensatório, indicador do gozo que falta por ter que
negociá-lo com o Outro que só dá tirando. (BRAUNSTEIN, 1999,
p.46).

Nessa passagem do gozo do Outro para o gozo fálico, resta o objeto a,

saldo impossível da simbolização, efeito do discurso, razão da busca de uma

vida, destinada a nunca apreendê-lo completamente.

A criança na latência

22
Para Braunstein, a produção cultural correspondente à estrutura desse tempo da constituição é a ciência,
como atividade que se propõe apropriar-se do real por intermédio do simbólico, repudiando o imaginário.
Nesse sentido, tanto as teorias sexuais infantis típicas desse tempo, quanto o pensamento científico,
remetem ao gozo fálico.
82

Nesse tempo da constituição do sujeito, o pai é identificado como possuidor

do falo, para onde 23 a mãe, já castrada, dirige seu desejo. A criança terá de

escolher seus próprios caminhos em direção ao falo, variando caso menina ou

menino, enquanto o campo social oferece indicações do caminho, apontando

outros lugares de circulação do falo. Uma vez inscrita a castração, o desejo

sexual sofre a ação do recalque, e a pulsão, então desligada, passa a buscar

outros objetos. É assim que a criança inclui o social.

O supereu é considerado por Freud como o herdeiro do complexo de

Édipo, sendo portanto na latência que ganhará consistência. Alberti sustenta-se

em textos freudianos para defender a tese, com a qual aqui se concorda, de que o

período da latência é o momento durante o qual o eu, recebendo um maior

investimento, irá desenvolver seu jeito próprio de servir simultaneamente ao isso,

ao mundo externo e ao supereu.

Se focarmos o período de latência a partir dessa suposição, esse


período deixa de ser de relativa inatividade e pouco trabalho
psíquico para se tornar um grande período de elaboração, de que
o sujeito precisa para dar conta das impossibilidades com que se
deparou até o fim da infância. Seria, então, o período em que o
sujeito procura se posicionar em sua relação com a castração.
(ALBERTI, 2003. p.16).

Esse trabalho psíquico compreende elaborar a distinção entre pai

imaginário, pai simbólico e pai real. Alberti afirma que se até então estava em jogo

para a criança o pai da exceção, possuidor do falo, representando a função

paterna, o período de latência traz consigo a vacilação do pai imaginário, aquele

que encarna para a criança o pai que barra o desejo da mãe, e graças a essa

vacilação é que a criança pode se deparar com as três versões do pai. “Não que

23
Aqui, como em outras partes do texto, a desobediência à regra gramatical que convenciona o uso do
pronome relativo nesses casos é proposital, visando a relevar a conotação de ‘lugar’ simbólico.
83

elas não estejam aí desde sempre, mas a criança precisará poder distinguir o pai

ao qual agora ‘dessuporá’ o falo e o pai que o mantém”. (ALBERTI, 2003, p.17).

Na latência, a criança faz a constatação de que o saber atribuído ao pai, a

partir da operação da castração, não permite apreender o gozo da mãe. Depara-

se, assim, com a insuficiência desse saber para a apreensão do real,

abandonando, portanto, as investigações propriamente sexuais às quais se

dedicava. Partindo dessa constatação, a criança segue então buscando outros

saberes, pronta a incluir o saber disseminado no social como alternativa ao saber

paterno.

É possível que, eventualmente, essa constatação se generalize, apontando

para os limites da própria linguagem, provocando, portanto, o aparecimento de

sintomas como, por exemplo, a depressão, advinda do reconhecimento lúcido da

nossa irremediável incompletude humana, da insuperável impossibilidade de se

fazer um no encontro com o outro, enfim, da essencial inexistência da relação

sexual. Contudo tal constatação normalmente abre um espaço produtivo para

novas investigações, voltadas à cultura e à civilização. Uma vez que o pai

imaginário é quem sustenta o Outro para a criança nesse momento, torna-se

então possível para ela uma deflação dessa figura que lhe permita a busca por

novos representantes do Outro, como a figura do professor, por exemplo.

A demanda por análise no período de latência não é incomum, sendo,

geralmente, relacionada a dificuldades escolares, na aprendizagem ou no

estabelecimento dos laços sociais. Devido não apenas a esse fato, defende-se

neste trabalho, como já dito, a idéia de que é legítimo destacar esse período

como fundamental para se pensar as condições da análise e a direção do

tratamento. A tarefa que se impõe à criança nesse tempo é bastante específica e


84

aparece articulada à esfera social: espera-se que seja bem sucedida nos estudos

e se relacione bem com o pares. Conseqüentemente, a transferência que se

instala é “baseada na suposição de saber e contribui para a deflação da

onipotência suposta ao Outro, abrindo caminho para os desafios da

adolescência.” (RIBEIRO, 2003, p.53). O período de latência “objetiva o que

Lacan chama de divisão do sujeito: o sujeito se divide entre o gozo e o saber. O

período de latência representa uma lacuna entre o gozo já existente na infância e

o saber da vida sexual do adulto.” (MARTINHO, 2003, p.57).

A criança esbarra aí por não poder tirar as conseqüências do


encontro com a falta não mais do Outro materno, mas da mulher.
[...] à falta da mãe, o pai pode sempre oferecer um princípio de
resposta, de inestimável e indispensável valor na infância, mas
para a falta da mulher não há resposta nenhuma a ser dada, só
resta mudar de posição. Esta mudança de posição é
conseqüência desta barra colocada sobre a mulher, a mulher
toda não existe, diz Lacan, como também a verdade. A verdade
só se pode dizê-la pela metade. E a mulher só se pode tomá-la
uma a uma. [...] entretanto até este ponto ainda é a lógica fálica
que prevalece, e que portanto, ainda deixa o sujeito frente a este
resto inassimilável em uma posição de impotência, ou de
adiamento. Para sair desta posição de ‘impotência’, como
também para mudar sua escolha de objeto sexual e não apenas
substituí-la, é preciso dar mais um passo, não na direção de uma
explicação a mais, mas de uma mudança de causa: sair de uma
posição de acreditar ter seu desejo causado pela busca de ser o
desejo do desejo da mãe, para ser causado pela falta
impreenchível da mulher. (BARROS, 1991, s/p).

É na adolescência que tal passagem se finaliza: pode então haver o

encontro sexual, do qual o sujeito retira alguma satisfação, sem que no entanto

haja a relação sexual, para a qual o sujeito continuará, sempre, por estrutura,

impossibilitado.

Segundo a lógica aqui proposta para o enodamento de RSI na infância, no

tempo da latência dá-se, prevalentemente, a amarração entre o simbólico e o

imaginário, sustentada pela ‘ex-sistência’ do real. O espaço que se cria a partir


85

dessa sobreposição remete ao campo do sentido (juis-sens, gozo do sentido), 24

lugar da

[...] instituição dos objetos da realidade, do consenso


compartilhado, do acordo garantido pela palavra [...] do
reconhecimento do mundo no qual o artífice em nosso tempo é o
comunicador, o Grande Outro da mídia [...] o que uniformiza no
planeta os modos de manter o gozo à distância e configura os
eus que se reconhecem reciprocamente em um ideal comum [...].
(BRAUNSTEIN, 1999, p.83).

O percurso realizado pela criança, na direção de sua estruturação, será

concluído na adolescência, com a descoberta da inexistência do Outro, momento

no qual o adolescente se confrontará de modo renovado com os fracassos

característicos de cada momento anteriormente vivido: o fracasso do amor, que

se refere primeiramente à relação com a mãe; o fracasso da organização fálica,

que não diz nada sobre o genital; e o fracasso do discurso social, que não

produzindo qualquer ideal deflagra o próprio fracasso do sentido. O encontro do

sujeito com o Outro sexo lhe apresentará então ‘cara a cara’ a inexistência da

relação sexual, e a construção do sinthoma, como o quarto aro do nó, virá como

uma tentativa de reparação.

Uma vez caracterizados esses tempos lógicos da constituição do sujeito,

os capítulos seguintes tratarão das condições da psicanálise com crianças,

levando em conta as diferenças de cada momento para a modulação dos eixos da

operação analítica, sem, contudo, desconsiderar as formulações existentes sobre

o tratamento padrão, sempre tomado como referência inicial.

24
Segundo Braunstein, a produção da cultura correspondente são as ideologias, que remetem ao sentido e
se caracterizam por um horror ao real. Nesse sentido, as ideologias podem ser compreendidas como
tentativas de recobrimento dos buracos do real que, embora exibam o apelo de uma coerência interna,
sustentam-se em falsos pilares. A psicanálise, segundo o autor, diferentemente da religião, da ciência e da
ideologia, tendo um saber sobre a estrutura, encontra seu lugar em torno do objeto a, “objeto fugidio inclusive
para o saber, localiza-se ao mesmo tempo nos três registros que marcam a necessária incompletude que
afeta todas as tentativas de dizer a verdade plena, de lograr este Saber Absoluto com o qual sonha o amo”
(1999, p.84).
86

3 ENTREVISTAS PRELIMINARES E O LUGAR DOS PAIS NO TRATAMENTO

As entrevistas preliminares têm a função de realizar a sondagem proposta

por Freud para verificar a pertinência do tratamento psicanalítico. Durante esse

‘ensaio’ é feito o diagnóstico diferencial, porta de entrada para o discurso

analítico, anterior portanto à análise propriamente dita. Período crucial em que o

sofrimento psíquico pode ou não se transformar em uma demanda, sem a qual o

tratamento redundaria inócuo.

Embora análise e entrevistas mantenham a mesma estrutura,

compartilhando a regra fundamental da associação livre, diferem essencialmente

com relação ao diagnóstico e seu tempo. Cabe ao analista decidir se há

condições para transformar o ensaio em tratamento, apoiado em sua leitura das

três funções que basicamente compõem esse momento inicial: a diagnóstica, a

sintomal e a transferencial (QUINET, 2002, p.11), posteriormente abordadas

neste trabalho.

Como caracterizar as entrevistas preliminares no tratamento de crianças?

São as entrevistas iniciais com os pais, os pais e a criança juntos, ou somente se

iniciam quando se passa a encontrar apenas com a criança?

No capítulo anterior, procurou-se esclarecer o que particulariza a criança

como analisante para neste iniciar-se a discussão das condições para que a

análise com uma criança possa se realizar. Se uma criança só chega para

tratamento quando trazida por seus pais ou responsáveis é de se esperar que

sejam portanto eles a trazerem também as primeiras questões ao

estabelecimento das condições para a análise da criança. Onde então alocá-los,


87

como responder a suas demandas, como ajudar na criação de um espaço para

que o tratamento analítico possa se realizar com a criança?

Para responder a tais questões, faz-se, antes, necessário esclarecer quem

são afinal os ‘pais’. A criança constitui sua neurose na relação com o Outro

simbólico, mas, como formula Melman (1997), é com os pais como Outros reais

que a criança se relaciona na vida cotidiana: qual então a relação entre o Outro

simbólico e os Outros reais?

À medida que a criança vai sendo inserida na linguagem, o Outro simbólico

vai se manifestando. “Significa que podemos ver neste registro as funções

paternas e maternas se isolarem em sua dimensão simbólica, eu diria de modo

destacável da aplicação real que lhe dão os pais”. (MELMAN, 1997, p.19).

Contudo o Outro na infância tem ainda uma consistência tal que lhe

demanda estar encarnado em um outro real, presentificado num primeiro

momento pela mãe, enquanto Outro primordial, lugar de linguagem; tão logo a

mãe consinta em ser faltante, desejante, abre-se então o espaço para a

intervenção de um terceiro elemento, presentificado pelo pai. A possibilidade de

independência simbólica do Outro, porém, só virá com a adolescência.

Eles [os pais da realidade] encarnam não somente as três


funções paternas – real, imaginária e simbólica -, como também,
além disso, protegem a criança das potencialidades destrutivas
que estas funções podem conter para um sujeito, quando é
confrontado a elas sem a mediação destes pais da realidade.
(NEUTER, 1997, p.43).

Os pais da realidade estão sempre numa posição de relativa carência

quanto a essas funções, introduzindo para a criança a categoria do impossível:

“impossível se igualar à onipotência do pai simbólico, impossível se igualar à


88

perfeição do pai imaginário, impossível enfim possuir e satisfazer completamente

a mãe.” (NEUTER, 1997, p.44).

Os pais, em seu lugar de suporte do Outro, sobretudo com relação à

função paterna indispensável ao engendramento de um sujeito, imprimem

nuances diferentes na transmissão que realizam, segundo suas próprias posições

diante do impossível - a essencial falta do Outro - tornando, portanto, muito

importante escutá-los no tratamento da criança. 25

Lebrun (2004) chama a atenção para a necessidade de que o social venha

homologar a função de pai, legitimando a pertinência de sua intervenção.

Entretanto é notável que o lugar ali ocupado atualmente pelo saber paterno vem

sendo acometido por uma deflação inversamente proporcional à inflação do saber

conferido à ciência, trazendo efeitos desastrosos não somente ao exercício da

função paterna, com também, e sobretudo, à própria subjetividade da criança.

A figura do pai está hoje ocultada sob a forma de um ‘ajudante de mãe’,

eximido de exercer o contrapeso necessário ao estabelecimento das funções

materna e paterna, as quais passam então a serem supridas por especialistas

representantes de ‘um saber maior’. Diferentemente da função paterna,

sustentada pela enunciação, a ciência se apóia em enunciados, tomados como

verdadeiros, tendo como instância de filiação a própria ciência. Essa lógica

interpõe obstáculos à transmissão da falta, segundo Melman (1994), o bem maior

que os pais podem dar a um filho, dom supremo, alcançado por um traumatismo.

A exigência dos pais enquanto Outros reais com relação à criança sofre o

atravessamento do discurso social vigente, o qual, em nossa contemporaneidade,

remete-se à realização de um ideal negador da castração, enquanto o não


25
Cf. capítulo dois, item dois, discussão sobre a transmissão realizada pelos pais para o engendramento do
sujeito na infância.
89

cumprimento desse ideal é justamente “o que vem manter a criança nesse pouco

de liberdade subjetiva, nessa pequena margem que a protege de uma alienação

realizada.” (MELMAN, 1997, p.20).

Noutros termos, é no sintoma que a criança pode alojar sua subjetividade,

escapando ao cerco social mortificante reproduzido pelos pais. Uma vez o

sintoma instalado, a demanda inicial dos pais aos especialistas, incluindo o

próprio psicanalista, pode em geral ser resumida como um pedido para que se

conserte a criança de alguma falha de funcionamento, através da supressão do

sintoma, ou seja, tornar a criança feliz, preservando-a das vicissitudes da

castração, em uma tentativa de realizar uma exceção à lei dos homens. Os pais

pedem assim ao analista “a garantia de cumprimento de seu ideal.”

(JERUSALINSKY, 1991, p.17).

Embora venha normalmente revestido de muita angústia e sofrimento, esse

pedido para se curar a criança, deixando intocada a mesma verdade familiar que

o sintoma está justamente desvelando, encerra uma contradição ética

fundamental para a psicanálise. É preciso advertir que se o analista corresponder

a essa demanda parental, não haverá análise da criança. Inicialmente, a melhor

resposta é pedir aos pais que falem sobre o filho, através do que falarão também

de si mesmos, permitindo ao analista situar-se quanto aos prováveis

determinantes discursivos dos pais em relação à criança, ao mesmo tempo em

que lhes propicia a abertura de um campo transferencial no qual seja possível

formularem uma demanda própria, descolada do discurso social, com relação à

análise do filho. O encontro com o analista, cuja posição é radialmente diferente

daquela do Outro social hegemônico, o mesmo que os levou até ali, é decisivo

para provocar essa subjetivação dos pais.


90

A depuração da demanda parental aponta para uma questão teórica vital, a

qual, sobretudo na prática clínica, não deixa de se colocar: se a demanda dos

pais é tão inevitável quanto insuficiente, tanto para o estabelecimento das

condições, quanto para o direcionamento do tratamento analítico com crianças,

em que medida então incluí-la?

Freud (1920a, p.188-189), em suas considerações sobre a jovem

homossexual para quem o pai demanda análise, afirma que “não é indiferente que

alguém venha à psicanálise por sua própria vontade ou seja levado a ela”. O pai

da jovem pede a Freud para resolver o problema da filha, o que, para ele,

implicava em ajudá-la a renunciar à homossexualidade. A jovem por sua vez não

apresentava queixa alguma, mas consente no tratamento. No desenrolar da

análise, uma lacuna fatal torna-se então evidente: a carência de uma demanda do

próprio analisante é simplesmente insuperável.

Diante de um processo emperrado, Freud se reconhece capturado pela

demanda paterna, pois confinado à tentativa de curar a moça, havia perdido sua

capacidade de leitura do caso e, com isso, a possibilidade de um engajamento

efetivo por parte da analisante. Esse equívoco primordial no manejo do caso

acabou por submeter o tratamento a uma vertente imaginária da transferência,

impossibilitando ultrapassar a resistência em direção ao campo propriamente

analítico.

Obviamente, as condições para a análise de uma adolescente, a jovem

homossexual em questão, são distintas daquelas para a análise de uma criança,

uma vez que, como já afirmado neste trabalho, trata-se de posições muito

diferentes frente ao Outro. Contudo o caso descrito por Freud serve mais

amplamente a reflexões importantes sobre o lugar dos pais no tratamento.


91

É absolutamente improvável que uma criança chegue à análise “por sua

própria vontade”. A condição de extrema dependência do Outro parental parece

determinar que seja praticamente sempre “levada a ela”. Não equivale dizer que a

criança não venha a demandar a análise, mas para que tais condições se façam

presentes torna-se necessário uma manobra a mais do analista junto aos pais. É

somente a partir da oferta do analista no encontro direto com a criança que será

possível a ela formular, ou não, uma demanda de análise.

O que é necessário para que esse encontro se dê? Como no caso da

jovem homossexual, no qual a captura do analista pela demanda parental impediu

a criação das condições adequadas para que uma demanda do próprio analisante

pudesse talvez se formular, é função do analista não se deixar enredar pela trama

tecida na demanda dos pais, manejando-a no sentido da criação de um espaço

verdadeiramente analítico para a criança.

Bernardino (1997, p.61-62) propõe, como tarefa fundamental das

entrevistas preliminares na psicanálise com crianças, realizar a diferenciação

entre a fantasia dos pais com relação ao filho, que nomeia de ‘filho imaginário’, e

a leitura que a própria criança faz disso. Para tanto, é necessário que, num

primeiro momento, algo da enunciação do adulto tenha lugar, possibilitando que,

num segundo momento, a criança se aproprie do sintoma para transformá-lo num

sintoma analítico, inaugurando assim a análise.

Apesar de se construir a partir de uma extrema dependência do Outro, a

criança carrega uma questão própria. Para que o analista possa atender a essa

sua singularidade faz-se necessário uma escuta dos pais que possibilite

acompanhar a criança em sua caminhada de leitura e interpretação do seu lugar

no mundo, como assevera Bernardino (1997). A escuta dos pais, porém, não
92

pode impedir que o analista tome as produções da criança como formações do

inconsciente de um sujeito em particular, sem o que não haveria escuta da

criança. Essa criança carrega um real, mas que é do Outro, e sua singularidade

se manifesta em como se constrói segundo essa referência, como responde a

essa questão. São justamente as entrevistas preliminares que devem isolar aquilo

que seria da interpretação singular da criança, a partir do que pode-se falar

propriamente de sintoma da criança.

Há, portanto, entrevistas com os pais e também com a criança. A

proposta deste capítulo é organizar o procedimento dessas entrevistas

preliminares ao tratamento da criança em duas etapas: (i) as entrevistas

preliminares com os pais, enquanto aqueles que inicialmente demandaram o

tratamento para a criança, compreendidas como uma condição para esse

tratamento, ainda que não garantam o estabelecimento da situação analítica com

a criança; (ii) as entrevistas preliminares com a criança, anteriores a sua possível

entrada em análise, compreendidas também como uma condição para o

tratamento, na medida em que oferecem o espaço para que sua demanda possa

ser formulada, sendo para tanto necessário que seu sofrimento esteja configurado

em um sintoma que possa ser dirigido ao analista para ser transformado em

questão.

Nas entrevistas com os pais, trata-se de verificar quem é o ‘filho imaginário’

do casal, pois a demanda com relação à criança corresponde a uma leitura que

os pais fazem sobre ela, uma vez que encontram-se absolutamente

comprometidos fantasmaticamente com o filho. Nesse sentido, a função dessa

primeira inclusão do pais é fornecer material significante para que o analista faça

uma leitura da resposta que a criança formula a essa determinada estrutura


93

discursiva, assim como precisar qual o lugar que a criança ocupa na fantasmática

parental, ou seja, produto de qual ‘não relação sexual’ ela é. Nas entrevistas com

a criança, pode-se averiguar qual a sua leitura sobre a demanda parental, abrindo

espaço para a construção de sua demanda, aquela que só ela pode formular,

imprimindo assim sua linha própria na análise que poderá então se realizar.

Portanto, ambos os procedimentos fazem parte da prática analítica com

crianças para que se possa fazer a leitura do sintoma, bem como do diagnóstico,

e estabelecer a transferência, indispensável para a realização do tratamento.

O diagnóstico implica a identificação do tempo lógico que a criança

atravessa, esclarecendo não apenas como o Outro está, ou não, oferecendo

condições para a criança revolver os impasses próprios a tal lógica, mas também

como o sintoma se articula à estrutura familiar. A indicação de análise para a

criança e a possibilidade de sua entrada em análise propriamente dita dependem

portanto desse momento inicial de entrevistas com os pais, bem como,

evidentemente, das entrevistas com a própria criança.

Porge (2003a, p.14) situa a problemática da criança em dois eixos: o eixo

vertical dos laços de gerações, hierárquico, e o eixo horizontal, da relação do

casal de pais com a sexualidade. Tais eixos reforçam o que o autor destacou

como dois pólos, quando tomamos cada sujeito em particular: no pólo vertical

estariam as relações edípicas com as gerações passadas e futuras, e no pólo

horizontal, a questão da diferença sexual e da não relação sexual. Nas

entrevistas preliminares à análise de uma criança é fundamental que o analista

esteja atento a esses dois pólos, nos quais certamente encontrará elementos

significativos para uma leitura do sintoma da criança como um produto da relação

desses pais.
94

No trabalho de escuta e investigação junto ao casal parental, haveria

alguma operação que pode ser propriamente chamada de analítica? Poder-se-ia

pensar numa espécie de ‘retificação subjetiva dos pais’, na qual exista a

possibilidade de mudarem de posição com relação à queixa que trazem do filho,

implicando-se no sintoma o suficiente para se questionarem ao quê da

fantasmática familiar a criança poderia estar respondendo? E ainda, se alguma

operação analítica pode de fato realizar-se, como abordar uma continuidade para

isso?

Importa lembrar que, embora não haja ‘direção de tratamento dos pais’, há

transferência entre eles e o analista do filho, como uma condição para a análise

da criança, e, nesse sentido, ainda que o analista não esteja empenhado em

interpretá-los, faz intervenções que podem trazer efeitos analíticos.

A própria mudança de posição que a criança de alguma maneira realiza,

pode ter um efeito interpretativo para os pais, renovando a questão do lugar que

ocupam, para além das entrevistas iniciais, no decorrer da análise da criança. Tal

problemática é crucial.

O encontro com o analista remete os pais à pergunta pelo desejo


que modelou a criança enquanto sujeito. No curso da análise
terão que se deparar – não sem custo – com a possibilidade
lógica de a criança não mais tamponar, como objeto, a falta do
Outro. São estas algumas das dificuldades externas que podem
tornar-se, em alguns casos, insolúveis, levando o tratamento a
uma interrupção. (VIDAL, 2001, p.85).

Como, então, incluir, ou não, os pais durante o tratamento?

Jerusalinsky (1991, p.16) responde, de maneira categórica, que o lugar dos

pais se define por sua posição na demanda, ou seja, “se demandam a garantia do

cumprimento de seu ideal, seu lugar é fora do tratamento. Se demandam que o

analista se encarregue do desejo ao qual renunciaram, seu lugar é dentro.”


95

De qualquer modo, os pais estão sempre inevitavelmente incluídos no

tratamento, uma vez que seu discurso produz efeitos sobre a criança, e é

sobretudo a partir desse discurso - ou em suas lacunas, mas sempre referido à

ele - que a criança formulará sua resposta, fazendo trabalhar os significantes para

[re]construir sua versão desse lugar discursivo que lhe foi atribuído. Não se deve

esquecer que os pais podem modificar sua demanda ao longo do processo

analítico com a criança, possibilitando então mudar também o lugar que ocupam

no tratamento.

Ademais, o analista pode ainda fazer um trabalho junto aos pais, no sentido

de propiciar que possam dar acolhimento às mudanças que a criança está

realizando, procurando, assim, preservar a continuidade do tratamento, o que

pode ser feito a partir de entrevistas ocasionais, decisão a ser tomada em cada

caso. Contudo, embora tal cuidado seja recomendável, não se constitui em

garantia, havendo casos em que o tratamento da criança é simplesmente

interrompido.

Segundo Boudard (2000), nas entrevistas com os pais não é o discurso

analítico que prevalece, não se pretende tocar-lhes o objeto da fantasia ou

interpretá-los. Entretanto, os efeitos analíticos podem advir como conseqüência

da própria escuta na forma do que autora qualificou de “confrontação do sujeito

com seu próprio dizer”, o que se aproxima do objetivo proposto por Lacan para as

entrevistas preliminares com adultos, qual seja, uma retificação das relações do

sujeito com o real, embora o ‘entrevistante’ nesse caso, pai ou mãe da criança,

não seja um candidato à análise, pelo menos não inicialmente. Desse modo,

pode-se afirmar que as entrevistas preliminares ao tratamento da criança

realizadas com os pais têm a mesma estrutura das realizadas para o tratamento
96

padrão, embora não tenham o mesmo objetivo, uma vez que os pais estão ali

reunidos com o analista para falarem de seu filho. Contudo tal semelhança pode

ser suficiente para que uma demanda de análise venha a ser formulada por parte

dos pais, agora não mais como pais, mas como sujeitos que dirigem uma questão

própria ao analista, a quem cabe a decisão de tomá-los em análise ou privilegiar o

encontro com a criança. Não é raro acontecer de o adulto não conseguir

apresentar uma questão em nome próprio, apresentando-a por meio da criança,

situação que se for esclarecida nas entrevistas pode levar o adulto à análise em

vez da criança.

Em todo caso, a escuta dos pais não serve como chave de leitura para a

escuta do filho, podendo mesmo enviesá-la, o que contribui para a resistência na

própria escuta analítica, impossibilitando a análise da criança. Durante o

tratamento, o manejo transferencial dos pais é, portanto, muito delicado. Não raro,

pais tomados de ansiedade requerem notícias do tratamento com alguma

freqüência, ou ainda, querem contar ao analista episódios cotidianos que julgam

importantes, compartilhando assim suas angústias com relação à criança. O

analista deve ter cautela ao decidir acolher tais demandas, para não obstaculizar

sua escuta da criança. Muitas vezes os pais precisam ser interditados nesse

assédio ao analista para que a análise possa prosseguir. A regulagem ótima da

participação dos pais entre uma certa implicação que permita a continuidade da

análise e o barramento de uma invasão nociva à direção do tratamento, só pode

ser decidida na singularidade de cada caso. De qualquer modo, os pais, como

referência de Outro para a criança, estarão sempre presentes na análise, e o

distanciamento dos pais da realidade, às vezes, se revela necessário para a

criança fazer sua própria interpretação dos pais.


97

Uma outra modalidade de entrevista com os pais é a entrevista conjunta

com a criança. Tal composição traz novos elementos a serem abordados. A

presença da criança interfere no discurso dos pais, que então tendem a amenizar

determinadas questões ou omitir pensamentos e fatos, ou, pelo contrário, falam

como se a criança não tivesse presente ou não pudesse escutar o que está sendo

dito sobre ela. A criança, por sua vez, dorme num determinado ponto da

entrevista, comenta algo que se articula à fala dos pais, pega algum objeto, faz

uma brincadeira, enfim, dá sinais de sua afetação pela fala dos pais. Tais

elementos são certamente valiosos para a escuta do analista sobretudo no que se

refere inicialmente à elaboração do diagnóstico.

Durante o tratamento, após o período inicial das entrevistas preliminares,

portanto, podem acabar ocorrendo entrevistas conjuntas não marcadas

formalmente, ou mesmo imprevistas, pois os pais passam a também freqüentar o

consultório para trazer o filho em atendimento, exigindo do analista um constante

manejo da situação. De modo geral, a experiência clínica ensina que as

entrevistas conjuntas devem ser evitadas tão logo a análise tenha início,

preservando, assim, o tratamento da criança. Contudo, em alguns momentos, ela

pode ser realizada a partir de um pedido da própria criança.

Em outros momentos, a criança pede ao analista que converse

determinado assunto com os pais, mas não deseja estar presente. 26 M., às voltas

com a homossexualidade recém assumida pela mãe, elabora uma série de

perguntas a esse respeito, pedindo ao analista para encaminhá-las à mãe, a qual,

em entrevista marcada, responde com uma carta, entregue ao analista para ser,

26
A patir deste ponto, introduz-se vinhetas clínicas apresentadas de modo ilustrativo apenas, num exercício
de ‘mostração’ das questões teóricas implicadas, sem contudo a intenção de articular elementos para uma
discussão aprofundada do caso voltada a efetivamente interrogar a teoria.
98

por sua vez, encaminhada à criança. Dependendo do assunto a ser tratado com

os pais, é mesmo melhor que a criança não esteja presente, pois existem

questões, por mais que impliquem a criança e seu sintoma, que são dos adultos,

como, por exemplo, a própria sexualidade. Nesse caso, pode-se afirmar que a

criança contou com a função do analista para abordar um elemento de sua

formação sintomática de um modo que preservou seu espaço analítico.

Os pais são os representantes, embora não a encarnação, do Outro para a

criança, responsáveis por proporcionar a ela condições favoráveis para lidar com

cada novo impasse subjetivo. Em todo tratamento de crianças é necessário esse

primeiro passo realizado com os pais, no qual são escutados como os

representantes do Outro da criança.

É a partir da composição das entrevistas com os pais e com a criança que

se torna possível a identificação do tempo lógico da constituição subjetiva que ela

está atravessando. Só então pode-se afinar os demais eixos da operação

analítica. Além da indicação de Jerusalinsky (1991) referente à posição dos pais

na demanda como bússola para incluí-los ou não no tratamento, propõe-se aqui

que quanto menos dispositivos a criança tiver para organizar seu mundo, ou seja,

quanto mais dependente psiquicamente de seus Outros, maior a necessidade da

presença dos pais no tratamento, sobretudo nas entrevistas preliminares. Noutros

termos, quanto mais a criança estiver submetida ao fantasma parental, ocupando,

portanto, o lugar de objeto do gozo do Outro, maior a importância da presença

dos pais, no sentido de potencializar a possibilidade de que favoreçam um

deslocamento do espaço destinado à criança, viabilizando, assim, sua ocupação

de um outro lugar.
99

Considerando-se cada um dos tempos da escanção proposta no capítulo

anterior – ‘criança pequena’, ‘criança edípica’ e ‘criança na latência’ – haveria

alguma caracterização específica das entrevistas preliminares com os pais?

No tratamento da ‘criança pequena’ que ainda não se confrontou com a

castração materna, o agente da função materna tem em geral um lugar

privilegiado na escuta do analista, afinal, é segundo essa referência que a criança

se organiza inicialmente. O pai, como representante do pai simbólico, vetor da

função simbólica, também é convocado, embora não seja necessária sua

presença concreta para que tal função venha a operar. A importância do pai

nesse momento é o lugar que ocupa no discurso da mãe, como terceiro à relação

mãe/criança. Contudo, não é raro nesse tempo da constituição encontrarem-se

pai e mãe na posição de agentes da função materna. Quando isso acontece, é

importante que o pai também compareça às entrevistas.

R. chega para tratamento com dois anos, apresentando uma anorexia

grave, instalada muito precocemente, causa de atraso em seu desenvolvimento.

Durante as entrevistas preliminares, a grande maioria com a mãe, foi possível

verificar em seu discurso uma posição de refém de um ideal desproporcional em

relação a esse filho, entrando portanto em depressão, impossibilitando assim que

a atividade de alimentação, desde o início, apresentasse uma tessitura desejante.

A demanda de completude dirigida à criança parece tornar-se excessivamente

enigmática, vetando o estabelecimento do jogo do engodo entre mãe e filho.

Através da anorexia, a criança inverte a relação de dependência com a mãe,

apontando para o fracasso na dialética da frustração. Noutros termos, a criança

mal-sucedida em identificar-se ao falo passou a acusar a exigência de um ideal

ao qual não tem poderes para corresponder, enquanto a mãe, culpando-se pela
100

falência precoce de seus ideais, permanece incapaz de realizar a operação

fundamental de transformação do objeto real em objeto de dom. Essa leitura da

posição da mãe construída nas entrevistas preliminares mostrou-se muito

importante para a escuta da criança, que logo na sua primeira entrevista, procura

meios para formular sua demanda ao propor uma brincadeira de ‘fazer

comidinha’, endereçando assim seu sintoma ao analista.

No tratamento da ‘criança edípica’ é freqüentemente necessária a presença

também da alteridade paterna nas entrevistas preliminares, como aquele que de

fato sustenta a função paterna nesse tempo da constituição, sendo o agente real

da castração. Nesse sentido, é bastante significativo o caso do pequeno Hans

que, embora seja o relato de um tratamento muito peculiar, serve para

problematizar as implicações da figura paterna nos impasses característicos

desse tempo vivido pela criança. O pai procura através de correspondências

fornecer a Freud o material necessário para uma leitura do caso e o conseqüente

estabelecimento de uma direção apropriada para o tratamento que ele mesmo

pretendia empreender com o próprio filho. Desse modo, a função básica das

entrevistas preliminares realizada com os pais foi desempenhada por cartas entre

o pai-analista e seu mestre-consultor. Na primeira vez em que apresenta

explicitamente essa intenção, declara: “estou-lhe enviando mais algumas notícias

a respeito de Hans, só que desta vez, lamento dizê-lo, se trata de material para

um caso clínico.” (FREUD, 1909, p.33). Passa então a relatar acontecimentos que

julga marcantes nesse período da vida da criança, incluindo sonhos e fantasias,

que teriam culminado no aparecimento de uma fobia. Deixa assim entrever não

somente a importância da participação do pai no momento inicial de configuração

do tratamento de uma criança nesse tempo da constituição, como também


101

elementos relevantes da complexa trama familiar em torno de Hans, mostrando-

se atrapalhado quanto à sustentação da função paterna, notadamente incapaz de

operar a castração materna. É o próprio Freud que, em sua interlocução com o

pai, tenta configurar, numa espécie de tratamento ‘por tabela’, as condições

necessárias tanto para o exercício da função paterna como para a condução da

análise.

Na latência, pai e mãe são escutados no sentido de se propiciar um

afastamento de suas figuras, para favorecer o desvio dos investimentos pulsionais

da criança para outros objetos. Logo na primeira entrevista na qual a mãe de M.

compareceu acompanhada da parceira, ela conta que a criança tinha feito o

pedido para conversar com ‘alguém neutro’, termo aprendido por ocasião da

audiência sobre a guarda dos filhos no processo de separação do casal parental.

Ainda que os pais tenham sido escutados outras vezes, ficou claro logo nessa

entrevista inicial com a mãe que havia um pedido da criança. Embora não

soubesse muito bem a quem dirigi-lo, manifestava-o em um comportamento, que

chamava a atenção dos pais, de apego excessivo a adultos que acabava de

conhecer – dentista, monitor de acampamento e outros – sofrendo então com o

inevitável afastamento. Ao ser levada ao encontro do analista, uma demanda de

análise aos poucos se formulou e as entrevistas com os pais passaram a ser

esporádicas.

Importa ressaltar que, embora essas referências teóricas sejam tomadas

para balizar a clínica, a teoria em si mesma é insuficiente para responder às

questões e impasses que o caso clínico apresenta. É somente a leitura da

transferência e a discussão do caso em sua singularidade que podem iluminar a

cena permitindo ao analista uma decisão acertada.


102

As entrevistas preliminares com a própria criança, por sua vez, têm como

objetivo, através de uma leitura diagnóstica e do estabelecimento da

transferência, criar as condições para a entrada da criança em análise a partir de

sua formulação de uma demanda por meio da qual possa dirigir suas questões ao

analista.

As demandas das crianças, segundo Porge (2002a), podem ser divididas

em três categorias: as demandas formuladas diretamente pela criança, mas que

precisam ser ratificadas pelos pais para chegar ao consultório do analista, mais

comuns em crianças na latência, como M.; as demandas das crianças que se

ligam indiretamente aos pais, como R., com sua anorexia, ou mesmo Hans, com

sua fobia; e a ausência de demanda da criança ligada diretamente ao fantasma

dos pais, como no autismo ou na psicose, em que, pela própria posição subjetiva,

a criança não tem inicialmente como formular questão alguma ao analista 27 .

A partir da formulação de uma demanda, a entrada em análise corresponde

a um primeiro momento de distanciamento entre o desejo do Outro, veiculado

pelos pais, e a ‘resposta-criança’. O operador desejo de analista é então de vital

importância, fazendo para a criança a diferença entre a posição dos pais, que ela

carrega em seu sintoma, e a do analista, que não lhe dirige demandas, não a

toma em sua fantasia, e mostra-se claramente disposto a receber o

endereçamento de suas questões.

Se a demanda da criança não se formular e suas questões permanecerem

endereçadas aos pais, a transferência com o analista não se estabelecerá,

impossibilitando, portanto, o tratamento da criança. Se, ainda, o analista for

capturado pela demanda dos pais, tomando a criança a partir desse lugar,

27
Esse último caso, como já mencionado, não é objeto da atenção deste estudo.
103

também não será possível uma análise. Contudo vale lembrar que às vezes a

criança leva tempo para formular sua demanda e endereçar ao analista sua

questão, através da fala, do desenho e da atividade lúdica. Cabe assim ao

analista criar pacientemente as condições para essa possível formulação a partir

da qual poderá então dirigir o tratamento.

Existem ainda outros tipos de entrevistas as quais o analista é convocado a

realizar que, embora periféricas à análise, não deixam de compor a direção do

tratamento: são as entrevistas com outros profissionais que também se ocupam

da criança, como fonoaudiólogos, psicopedagogos, pediatras, neurologistas, entre

tantos. Se, por um lado, pode ser interessante compartilhar os impasses da

clínica com outros profissionais, por outro, as diferenças conceituais próprias a

cada especialidade tornam um encontro desse tipo muito improvável. Em geral é

de escuta que se trata, afinal são discursos que estão sendo tecidos sobre a

criança e que também têm algum efeito sobre ela. O discurso dos especialistas

têm forte ascendência sobre os pais, colaborando enormemente, como já

mencionado, para a deflação do saber paterno. No âmbito educacional

contemporâneo essa situação se potencializa. Segundo Balbo (1992), o desejo

dos pais atualmente é de sucesso social a partir do reforçamento do eu até a

paranóia. As regras dessa luta do salve-se quem puder “são regras constitutivas

do saber, do acesso ao saber e do sucesso no saber”. A criança deve então ser

bem sucedida para o gozo do Outro social. Nesse contexto, as escolas

desempenham um papel considerável, pois recebem diariamente essa demanda

dos pais, aos quais oferecem suas vagas em nome de realizar a tarefa com

perfeição, valendo-se de tantos especialistas quanto se fizerem necessários.


104

Nesse sentido, pode-se imaginar a inevitável complexidade de uma interlocução

entre os representantes da instituição escolar da criança e o analista de quem se

espera recolocá-la rapidamente nos trilhos previstos pela demanda social.

Possivelmente, a única resposta do analista seja simplesmente não responder à

demanda, esperando através do diálogo sensibilizar talvez a escola para a

existência da singularidade revelada no sintoma da criança. Para realizar tal

façanha, além da escuta, faz-se necessário, às vezes, orientar a escola na

criação de um espaço mais propício à subjetividade da criança. Nesse ponto, não

se trata do exercício de uma função estritamente analítica, mas de uma extensão

do campo psicanalítico. Desse modo, o analista pode representar na escola a

possibilidade de alocar subjetividades, proteger diferenças, alimentar

singularidades. Sua intervenção pode não apenas favorecer a criança em

questão, como também provocar algum rearranjo estrutural na instituição escolar.

O analista teria assim a função de resguardar a integridade do sujeito, ou seja, o

lugar do singular no universal da instituição. Obviamente, a análise de uma

criança não implica necessariamente nessa tarefa, mas criar melhores condições

para a vida das crianças vem ao encontro de um posicionamento ético do

psicanalista diante da tendência atual à massificação. Vale lembrar que essa

tarefa é possível ao analista não porque a psicanálise é detentora de um saber

‘melhor’, mas porque o discurso analítico tem como característica justamente a

possibilidade de apontar a resistência implícita nos demais discursos de modo

desobstacularizá-los.

Tem-se aqui registrado um testemunho das muitas questões que cercam o

início do tratamento com crianças. Nos capítulos seguintes, serão abordados os

desdobramentos de tais questões em relação aos demais operadores clínicos.


105

4 DIAGNÓSTICO E SINTOMA

O estabelecimento de uma hipótese diagnóstica se dá primeiramente no

âmbito das entrevistas preliminares, tarefa nada fácil e de grande

responsabilidade, uma vez que fornece os parâmetros iniciais para orientar a

condução do tratamento, ao longo do qual será constantemente [re]ajustada em

um diagnóstico mais acurado.

A psicanálise propõe três estruturas clínicas constituídas a partir de três

modos distintos de negar a castração do Outro: a neurose, pelo ocultamento; a

perversão, pelo artifício; a psicose, pela recusa. Cada um desses modos de

negação corresponde a uma manifestação fenomênica distinta como retorno do

que foi negado: na neurose, o sintoma; na perversão, o fetiche; na psicose, a

alucinação.

Tais estruturas podem também ser compreendidas como modos distintos

de se posicionar diante do gozo: na neurose, fundada no recalque, a castração

conduz ao gozo fálico, o qual pode ser retido no sintoma, bloqueando a

insistência de um desejo ostensivo fruto da castração mal-concebida como

ameaça, ou pode passar pela palavra, regulado pela castração simbólica; na

perversão, o gozo, tão assustador quanto insondável, exige uma defesa

compatível, levando à invenção de um fantasma de ‘sabergozar’; na psicose, o

gozo invasor do Outro, ignorando a castração, excluindo portanto qualquer

possibilidade de algum registro da inscrição paterna, simplesmente não é

regulado pelo significante, permanecendo assim fora da Lei do desejo 28 .

28
Referência às considerações de Braunstein (1999) com relação ao gozo, aqui abordadas no capítulo dois.
106

Uma vez que as questões fundamentais do sujeito, de um modo ou de

outro, encontram-se articuladas à castração, o diagnóstico deve então ser

buscado no registro simbólico. Para tanto, o instrumento do analista é a

transferência, que permitirá formular o diagnóstico a partir da modalidade de

relação do sujeito com o Outro.

O dispositivo freudiano surge da experiência da neurose, com o sujeito

neurótico a demandar análise em função do sintoma, vivido como sofrimento pelo

excesso insuportável de gozo que comporta. O sintoma foi assim concebido

inicialmente como uma formação de compromisso por meio da qual o sujeito

permite ao material recalcado uma expressão possível, revelando-se então como

uma formação do inconsciente, posição assumida, embora disfarçada, pelo

sujeito diante do desejo, sendo tarefa da análise criar condições para o

deciframento desse enigma, procurando restabelecer o paciente do sofrimento

causado pelo conflito inconsciente que deu origem ao sintoma.

A primeira definição de sintoma na obra lacaniana se sustenta nessas

proposições freudianas, o sintoma como uma metáfora, uma mensagem que

detém um sentido e é dirigida a um Outro para ser decifrada. O sintoma fornece

significado ao sujeito, contendo sua verdade, sendo, portanto, uma construção na

qual o sujeito se reconhece e através da qual pede o reconhecimento do Outro.

A demanda de análise é um pedido para desvencilhar-se desse sintoma,

que uma vez endereçado ao analista, muda de estatuto para o sujeito: de

resposta passa a ser uma questão. Essa elaboração do sintoma como sintoma

analítico já é um efeito da estrutura da situação analítica, sustentada na

transferência. Assiste-se, nesse momento, à histerização do sujeito que, a partir


107

de seu desejo, vai endereçar perguntas ao analista, que questionará o sintoma,

para saber a que está respondendo, qual gozo vem delimitar.

Essas referências são gerais e concernem sobretudo à clínica com adultos.

Na clínica com crianças as delimitações diagnósticas são menos claras para

apontar ao analista os caminhos a seguir. A psicopatologia psicanalítica da

criança propõe, em geral, os quadros de autismo, psicose, debilidade, perversão

e neurose. Contudo um diagnóstico diferencial é difícil de ser realizado, pois é

muito freqüente que esses quadros não se apresentem de forma ‘pura’ na clínica

com a criança. A infância, por corresponder ao tempo de estruturação do sujeito,

implica justamente a constante possibilidade de reordenamentos estruturantes,

trazendo problemáticas específicas para o estabelecimento de quadros

diagnósticos.

A psicopatologia da criança se configura como um dos campos


sobre os quais as convicções inarredáveis aparecem como
condenações e, portanto, campo no qual a certeza diagnóstica é
vértice imaginário que fomenta a direção do tratamento,
delimitando a classe em que a criança cabe no mesmo
movimento em que antecipa o enquadramento no qual doravante
ela será localizada e reconhecida. (VORCARO, 2004b, p.12).

A autora atenta para o fato de que, uma vez que o sujeito se constitui a

partir da linguagem e a infância é o período dessa constituição, aquilo que lhe é

então dirigido como discurso passa, assim, a ser-lhe constituinte. Nesse sentido,

ao invés de abrir caminhos, a convicção diagnóstica do clínico pode justamente

limitá-los, podendo mesmo levar ao engessamento do sujeito em uma

determinada configuração psíquica. Noutros termos, a própria função diagnóstica

exercida pelo analista pode expressar uma opressão tão determinante quanto o

discurso social reproduzido pelos pais sobre a criança.


108

Ainda que a psicanálise possa se apoiar em formulações teóricas sobre

descrições psicopatológicas, sua própria especificidade 29 a impede de se reduzir

a elas, dissociando-as da prática clínica direta com a criança. Lembre-se que o

compromisso da psicanálise é com o sujeito, em toda a sua singularidade, e não

com um sistema classificatório. 30 O psicanalista não se ocupa de um doente que

se submete passivamente a um procedimento curativo, “mas de um sujeito a ouvir

quanto à orientação ou à reorientação de seu desejo, com base na expressão

transferencial que ele pode lhe dar”, assim, “os compartimentos diagnósticos

operam tanto melhor quanto mais o analista os deixa no lugar em que convém:

em segundo plano.” (GUILLERAULT, 1996, p.101).

Sem dúvida a psicanálise produziu os instrumentos de um saber,


de uma psicopatologia da criança. Mas o que constitui a
grandeza da experiência analítica sob este aspecto, e a força de
sua operatividade, é a distância que ela assume do que implicaria
uma mera aplicação desse saber. Nesse sentido, se ela rejeita
todo o projeto de uma psicopatologia academicamente
estabelecida, é porque submete o saber sobre o ofício da
experiência a fins de exploração ou de revelação do desejo.
Desse prisma, ela está sempre além da epistemologia que no
entanto anuncia. Cabe notar que é também isso que lhe confere
sua dimensão ética. (GUILLERAULT, 1996, p.103).

Nenhuma descrição psicopatológica pode ocupar o lugar da experiência

clínica, cabendo então ao analista, a cada nova psicanálise, levantar hipóteses a

respeito desse sujeito que vem encontrá-lo. Na clínica com crianças, vale insistir,

sujeitos cujas estruturas se encontram inacabadas, tal exercício deve ser

constante, o que leva alguns psicanalistas a propor categorias diagnósticas como

29
Note-se a indissociável vinculação entre técnica e ética no campo psicanalítico, a ser discutida no capítulo
sete.
30
A esse propósito, «Como toda classificação, útil ; como toda classificação, falsa», Fernando Pessoa.
109

‘psicose não-decidida’, denominação que encerra a dificuldade de delimitação

clara de um diagnóstico na infância. 31

Os instrumentos de leitura de que dispõe o analista, na clínica com

crianças, para a realização de uma hipótese diagnóstica são, portanto, além da

transferência, por meio da qual pode rastrear a relação da criança com o Outro, a

escuta do discurso familiar nas entrevistas preliminares, para localizar o lugar da

criança na fantasia parental, de modo a recolher significantes familiares

fundamentais que permitam realizar a leitura da resposta da criança a essa

configuração.

Nesse sentido, com todas as limitações e impasses apresentados com

relação ao diagnóstico na infância, o texto de Lacan Nota sobre a criança, 1969,

pode ser tomado como uma proposta de leitura diagnóstica a partir de um

entendimento sobre o sintoma na infância, referência importante, da qual parte a

maioria dos autores do campo lacaniano para falar da psicopatologia da criança.

Lacan afirma que o sintoma da criança se situa de forma a corresponder ao

que há de sintomático na estrutura familiar, definindo-se como representante da

verdade de tal núcleo, revelando sua implicação com a subjetividade dos pais.

A articulação é mais simples quando o sintoma tem a ver unicamente com

a subjetividade da mãe: a criança é tomada como objeto da fantasia materna e

tem como função revelar a verdade desse objeto. Assim, ao realizar a presença

do objeto a na fantasia, a criança obtura a falta da mãe, mantendo-a completa.

Trata-se da criança psicótica ou autista, a própria criança colocada no lugar de

sintoma do Outro, configurando o que se pode chamar de criança sintoma. Essa

armação maciça traz dificuldades para a intervenção analítica, requerendo pensar

31
Cf Bernardino (2004) op.cit.
110

sobre as condições em que tal intervenção pode ocorrer, afinal, quando a

metáfora paterna não se instala, a operação analítica sofre uma inversão, partindo

de um real flagrante a um simbólico ainda impossibilitado. 32

Quando o sintoma representa a verdade do casal parental, o caso é mais

complexo, mas também mais aberto às intervenções do analista, pois a metáfora

paterna já instalada torna o sujeito sensível à linguagem, caso da criança

neurótica, que responde com um sintoma próprio, nomeado, portanto, de sintoma

da criança, ao que há de sintomático na estrutura familiar. São esses os casos

que interessam a este trabalho.

Lacan (1969) faz uma referência específica ao sintoma somático, que dá o

máximo de garantia ao desconhecimento da mãe de sua verdade, trazendo

também mais dificuldades para sua abordagem. De qualquer modo, em cada

caso é preciso se fazer uma leitura minuciosa do sintoma, investigar ao que ele

responde, afinal, mesmo dentro dessas categorias, pode-se deduzir da leitura

desse texto que existem graus diferentes de submissão à fantasia materna.

Em suma, na relação dual com a mãe, a criança lhe dá,


imediatamente acessível, aquilo que falta ao sujeito masculino: o
próprio objeto de sua existência, aparecendo no real. Daí resulta
que, na medida do que apresenta de real, ela é oferecida a um
subornamento [subornement] maior na fantasia. (LACAN, 1969,
p.374).

A criança entra como um novo elemento na dialética que se estabelece em

torno da relação da mulher com sua falta essencial de objeto, cujo significante é o

falo. A questão da criança é saber como pode, ou não, saciar o desejo da mãe

com relação a essa falta: ocupar o lugar de falo imaginário, legado por Freud, ou

o de objeto a, proposto por Lacan. Se a criança ocupar o lugar de falo da mãe, a

32
Esses casos foram objeto de estudo em pesquisa de mestrado já referida anteriormente. Cf Petri (2000)
op.cit.
111

direção do tratamento será examinar qual é a versão de falo intrínseca a seu

sintoma; se ocupar o lugar de objeto a, o analista examinará qual versão desse

objeto ela é para a mãe, e como pode vir a se descolar dele. Uma vez que,

inicialmente, toda criança é para a mãe aparição no real do objeto de sua

existência, e pode, em um segundo momento, ocupar o lugar de falo ou

permanecer realizando o objeto a em sua fantasia, realizar essa leitura diferencial

é fundamental ao analista para decidir as intervenções pertinentes a cada

tratamento.

Nesse sentido, Lacadée desdobra a afirmação de Freud, em Inibição,

Sintoma e Angústia, 1925, de que o sintoma é o sinal e o substituto de uma

satisfação pulsional que não teve lugar: “em o sinal e o substituto reencontramos

a vertente simbólica da criança como substituto fálico e na satisfação pulsional

que não teve lugar, a vertente da criança que, como objeto a, vem preencher o

buraco real que excede a satisfação fálica.” (LACADÉE, 1996, p.81). Quando a

criança está no lugar de falo da mãe, é sinal de que já existe uma referência

ternária, portanto, simbólica; enquanto objeto a, a relação é ainda dual, não

contando com esse distanciamento. Note-se que, na vertente simbólica ou na

real, a criança não deixa de encontrar um lugar como versão substitutiva de um

elemento estrutural desse Outro que agencia sua fantasia.

Note-se, ainda, a importância conferida à sexualidade feminina no avanço

do entendimento do sintoma da criança. Um filho, que de algum modo sempre

aparece como um possível substituto àquilo que falta essencialmente à mulher,

servindo assim para obturar essa falta, estará contudo livre de maiores riscos, se

sua mãe continuar exercendo a própria sexualidade enquanto uma mulher.

Quando consente em servir ao gozo de um homem, renunciando a gozar às


112

custas do filho, a mãe segue então desejando enquanto mulher, posição que será

fundamental à possibilidade de a criança realizar as construções necessárias à

sua própria constituição como um sujeito desejante. Esse momento de apreensão

da castração materna é o ponto central de articulação das questões da infância.

No caso da criança neurótica, o sintoma corresponde então a uma solução,

ainda que parcial, para responder ao real em jogo, sendo, assim, o testemunho de

sua apropriação, como sujeito, do que ela é no desejo parental. É no sintoma que

a criança pode alojar sua subjetividade, garantindo a legitimidade de sua

existência. Para fazer a leitura do sintoma, da resposta que a criança dá ao

desejo que a engendrou, a escuta dos pais nas entrevistas preliminares é, como

já afirmado, fundamental.

O sintoma aparece justamente quando a criança não encontra disponíveis

no campo do Outro os termos necessários para contornar os impasses que

enfrenta, diferentes conforme o tempo da constituição em que se encontra, o quê

inviabiliza a construção de um mito que lhe permita avançar em suas

investigações, na elaboração de suas respostas e questões. Diante dessa

carência de dispositivos para enfrentar o real, ele se impõe, trazendo angústia. A

criança paga o preço das limitações impostas pela invenção de um sintoma que

lhe permita contornar esse real gerador de angústia. Vale ressaltar que não existe

uma equivalência entre sintoma e momento de efetuação da estrutura, podendo o

mesmo sintoma clínico aparecer em momentos distintos da constituição do

sujeito.

Com as formulações do último tempo do ensino de Lacan, sobretudo na

década de setenta, a noção de sintoma sofre mudanças significativas, sendo

trabalhado como uma função, trazendo implicações fundamentais para a clínica.


113

É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma letra, na


medida em que, apenas na letra, a identidade de si a si está
isolada de qualquer qualidade. Do inconsciente todo um, naquilo
que ele sustenta o significante em que o inconsciente consiste,
todo um é suscetível de se escrever com uma letra [...]. O que
não cessa de se escrever no sintoma vem daí. (LACAN, 1974/75,
p.23).

Ressalta-se, assim, o ponto de fixação de gozo existente no sintoma como

função de gozo da letra, configurando o núcleo do sintoma, responsável por um

certo modo de gozo. Essa formulação não invalida a anterior, o sintoma como

metáfora, mas traz um acento na escritura, a face real do sintoma.

A partir dessas formulações, Braunstein (1999) define o sintoma como

gozo encapsulado, com valor de letra, escritura a ser decifrada a partir de sua

conversão em discurso. Quando o sujeito emudece, o sintoma vem ocupar seu

lugar, como reversão do discurso em gozo, gozo ignorado e repudiado pelo

sujeito. Com a tese da palavra como diafragma do gozo 33 , o autor assinala que o

sintoma na neurose aparece diante da necessidade de refrear um gozo vivido

como perigoso e intolerável, quando o diafragma então se fecha, represando

assim o gozo que consistirá no alimento do sintoma. De acordo com essa

imagem, a psicanálise corresponderia a uma incidência sobre a palavra de modo

a permitir o desbloqueio e a passagem do gozo retido. Noutros termos, através

das condições ideais e artificiais do encontro analítico, o sujeito do sintoma

confronta-se com o impossível do gozo, reconhecendo como alternativa para tal

impossibilidade o caminho do apalavramento.

Mais além, Lacan, no seminário Sinthome, 1975/76, aprofunda a questão,

alterando a escrita da palavra sintoma para sinthoma. Leite (s/d, p.9) relaciona as

duas noções: “o sinthoma opera como suplemento. O sinthoma aponta ao real do

33
Cf capítulo dois, item dois.
114

sintoma, real este constituído pela exclusão do simbólico e que aponta o gozo

fora do sentido. O sintoma, além de mensagem cifrada, é efeito do sinthoma,

meio do sujeito organizar seu gozo.” O sinthoma refere-se ao modo de gozo do

sujeito, é da ordem da escritura, enquanto o sintoma é a criação de um elemento

para delimitar um extravasamento de gozo, já sendo uma interpretação, uma

tentativa de deciframento daquilo que faz letra. Quando essa decifração é

realizada pela palavra, o sujeito pode dispensar o sintoma.

O sinthoma corresponderia assim a um quarto anel compondo o nó

borromeano, presente em qualquer estrutura como o elemento que vem amarrar

definitivamente os registros RSI. Nesse sentido, comparativamente ao sintoma,

enigma endereçado ao Outro demandando decifração, o sinthoma não é

transitivo: não precisa de dois, é um. “Não se trata, é claro, da solidão

subjetivada, vivencial, mas do Um como formação psíquica em hiância com o

Outro”. (HARARI, 2002, p.215). A dependência do Outro através de uma dívida

simbólica impagável não se aplica. Em vez de metáfora, o sinthoma é nominação,

ou seja, não uma substituição, mas uma invenção que vem reparar o erro de

escrita do nó, um erro constitutivo que, de algum modo, em alguma medida,

sempre participa de uma estruturação. No sinthoma, o que está em jogo não é a

verdade, mas o real, ao qual só se tem acesso por pontas e pedaços. Nesse

sentido, o tratamento analítico é nomeado como práxis do real e não como busca

da verdade, uma vez que não reside simplesmente em interpretar o inconsciente,

mas em tocar um pedaço do real.

Embora a matéria-prima seja a mesma, as marcas inaugurais do sujeito,

sintoma e sinthoma são construções radicalmente diferentes: o sinthoma remete

ao saber fazer com aquilo que deu lugar ao sintoma, os fatores da ordem da
115

causa. O fim de análise no tratamento padrão, segundo essa leitura,

corresponderia então à identificação com o sinthoma, como uma formação que

não divide, não despedaça. 34 (Harari, 2002).

Qual a pertinência dessa teoria do sinthoma na clínica com crianças?

Como esses novos elementos propostos podem servir à leitura da criança como

analisante?

Há posicionamentos teóricos distintos. Para Jerusalinsky, em Sintomas de

Infância, 1997, o sinthoma refere-se a “uma forma estrutural de resolução da

distância que separa a criança, enquanto sujeito, de seu objeto ideal [...] uma

posição necessária para o sujeito em questão”, ao que nomeia de sintoma de

infância, enquanto o sintoma, ao qual prefere chamar de symptôme, mantendo

uma referência à língua francesa, corresponderia aos sintomas clínicos, que

revela a contingência de uma resolução, de caráter provisório, ao qual nomeia

sintoma infantil.

Noutros termos, o sintoma de infância é “a versão subjetiva que sua

condição infantil [do sujeito na infância] lhe permite dar ao sexual”

(JERUSALINSKY, 1997, p.13), e se refere a toda a problemática da sexuação que

determina a posição do inconsciente durante a infância. A sexuação determina-se

no campo da linguagem, mas é sensível aos ideais parentais: “Ser homem ou ser

mulher já, quando ainda não tem possibilidade do ato que nisso as situe, obriga

as crianças a produzirem seu sintoma [sinthoma] ...que, a partir dali, não é mais

dos pais, mas é próprio.” (JERUSALINSKY, 1997, p.12).

34
A discussão sobre o fim da análise será realizada no capítulo seis.
116

Como abordado no capítulo dois, essa condição de a criança não ter

acesso ao ato sexual propriamente dito caracteriza uma diferença essencial em

relação ao adulto quanto à impossibilidade da relação sexual. Dependendo de

como essa impossibilidade é transmitida, verificam-se efeitos distintos.

A impossibilidade da relação sexual, colocada para a criança


como impotência, é o que faz deslizar do medo noturno a dormir
com os pais, do pesadelo à enurese, do insistente ‘por que’ à
fobia escolar, da teorização sexual ao ritual obsessivo, da
personificação ao mimetismo. (JERUSALINSKY, 1997, p.13-14).

O modo de a criança assimilar a inexistência da relação sexual seria então

o que faz a báscula da neurose infantil, da ordem do sinthoma, para a neurose da

criança, com sua sintomatologia clínica. O autor afirma ainda que a fantasia na

infância sustenta um paradoxo, qual seja, “a sexuação antecipa-lhe na estrutura

uma posição cuja prática está duplamente vedada.” Quando a transmissão da não

relação sexual fracassa, ou seja, o impossível é transmitido como impotência, o

sintoma aparece, possibilitando assim uma saída, mesmo que precária, para esse

impasse.

Para Jerusalinsky, a construção do sinthoma se dá portanto ainda na

infância, equivalendo ao próprio movimento de estruturação subjetiva, não

necessariamente vinculada à emergência de sintomas. O entrave na construção

do sinthoma, ou seja, os impasses e fracassos na construção da neurose infantil,

traz os sintomas clínicos, que configuram a neurose da criança.

Rassial (1997), como já apontado 35 , defende outra tese. Ressalta a

importância da infância como um primeiro tempo da estruturação, com os

sucessivos enodamentos entre os registros real, simbólico e imaginário, a partir

do qual somente na adolescência, um segundo tempo dessa estruturação, é que

35
Cf. Rassial (1999) op. cit.
117

poderia se dar a construção do sinthoma como um quarto elo com a função de

reparar as falhas da primeira estruturação. A adolescência, portanto,

corresponderia ao tempo lógico da construção do sinthoma. O autor destaca essa

questão da temporalidade na teoria dos nós.

Com efeito, se os três primeiros aros, sejam quais foram os


fracassos de seu enodamento, são primários, este quarto aro é,
em sua essência, secundário, pois reparador. Assim, a descrição
sincrônica não basta e sua escritura supõe uma diacronia, ou, em
termos mais explícitos, uma gênese do nó sinthomal. (RASSIAL,
1997, p.32).

Vorcaro (1997) propõe a constituição subjetiva na infância a partir do

enodamento de RSI, segundo uma lógica de construção do nó borromeano de

três aros, apenas citando o quarto aro reparador junto à indecisão teórica que o

cerca - possibilidade de suplência à estrutura ou condição de estruturação –

reconhecendo, contudo, a importância da noção de sinthoma para se refletir sobre

o tratamento de crianças nos casos que escapam a essa condição borromeana

de estrutura de três aros como, por exemplo, o autismo, as psicoses e a

debilidade.

O sujeito pode constituir invenções para o atamento borromeano,


em suprimento aos pontos de fracasso do enodamento, pontos
em que a função da metáfora paterna não teve incidência, nas
versões (pére-versions) que amarram RSI para suportar a
modalização subjetiva. (VORCARO, 1997, p.134).

A hipótese defendida neste trabalho é a de que, embora não esteja em

jogo na infância a construção propriamente dita do sinthoma, como um quarto elo

reparador, é durante esse período que os arranjos fundantes da estrutura se

ordenam, com os enodamentos dos registros e seus possíveis erros de escrita, e

é nessa situação, então já desenhada, que o sinthoma adolescente virá se


118

inscrever. Nesse sentido, em consonância com Rassial, sustenta-se neste

trabalho que a estruturação se dá numa seqüência lógica em dois tempos.

Lacan, no seminário sobre o sinthoma, 1974/75, afirma que o traçado do nó

faz erro, por uma carência do pai. Carência aqui não é sinônimo de falta

simbólica, mas de um chamado dirigido a alguém que não comparece, não

responde, ao que o sinthoma vem reparar. Na infância, são os sintomas que virão

eventualmente sinalizar uma falha, localizada em pontos determinados da

articulação da estrutura. Noutros termos, pode-se dizer que a criança tem um

trabalho psíquico a realizar, tecer o nó borromeano de três aros, articular RSI, e

na ocorrência de um lapso, é por meio dos sintomas que contornará seus

impasses. Lacan (1973/74) afirma ainda que a criança deve aprender alguma

coisa para que o nó seja bem feito, ressaltando que nada é mais fácil do que algo

falhar nesse amarração. Assim, os impasses próprios a cada tempo da

constituição do sujeito desenhariam um mapa sobre o qual a construção do

sinthoma se daria mais tarde.

A função do sintoma na criança e no adulto é, então, diferente. Esse quarto

elo, sinthoma de estrutura, a partir da adolescência, é uma tentativa de reparação

das falhas de enodamento dos três registros, ou seja, uma tentativa de reparação

do impossível da relação sexual. O adulto demanda análise pelo incômodo do

sintoma como mensagem cifrada, mas o trabalho da análise aponta para o

sinthoma. Na infância, os sintomas vêm solucionar algum impasse no

enodamento dos registros, servindo para buscar efeitos parciais de acomodação,

uma vez que a estrutura toda ainda não está em questão. Esse impasse tem

relação com o Outro parental, onde a criança busca os termos necessários para

resolver seus problemas. Muitas vezes essa solução sintomática do impasse em


119

questão traz dificuldades, ou mesmo impossibilidades, causando uma estagnação

na construção da neurose infantil, podendo demandar uma escuta analítica para

propiciar a retomada da estruturação.

A hipótese diagnóstica na infância é então composta de uma leitura

estrutural articulada à leitura do estado de efetuação dessa estrutura, uma vez

que corresponde a um período da constituição no qual os elementos mudam de

lugar configurando ordenamentos distintos. Esse trabalho propõe, como visto no

segundo capítulo, uma escanção da infância em três tempos: ‘a criança pequena’,

anterior à confrontação com a castração materna, em plena dialética da

frustração; ‘a criança edípica’, na travessia do complexo de Édipo; e a ‘criança na

latência’, com um caminho já escolhido para a neurose, em tempo de

compreender a castração. Para precisar a leitura diagnóstica faz-se necessário

detectar qual a relação que os elementos estabelecem entre si e localizar o ponto

de carência que leva o sujeito a inventar um sintoma para repará-lo, permitindo ao

analista realizar a leitura desse sintoma, estabelecer a direção de tratamento e,

posteriormente, definir o momento de encerramento da análise.

Na ‘criança pequena’, o sintoma aparece como correlato do gozo do Outro,

gozo que se situa no corpo, sendo exterior ao simbólico. Quando o agente da

função materna falha, situando-se numa posição não-castrada, deixando,

portanto, de veicular a palavra paterna, impede a criança de encontrar elementos

que possibilitem a resolução de seus impasses. Noutros termos, quando a

renúncia ao gozo simbiótico com a mãe não se efetiva, aparecem os sintomas,

com seu equivalente excesso de gozo.

Freqüentemente, os sintomas da criança pequena aparecem atrelados ao

corpo, uma vez que “o significante, na infância, entrelaça-se com o corpo de uma
120

maneira muito mais estreita do que no adulto.” (CORIAT, 1999, p.152). Nesse

sentido, “podemos ouvir o funcionamento do organismo como ouvimos as

palavras de um analisante ou a produção gráfica de uma criança: são efeitos do

inconsciente de quem as produz, referentes à experiência do sujeito”.

(ELIACHEFF, 1995, p.17/18).

A anorexia mental é um sintoma comum desse tempo, embora apareça

também em outros momentos, acompanhada de outros transtornos como, por

exemplo, vômitos, refluxos, descontrole dos esfíncteres, distúrbios de sono. Tais

sintomas surgem diante de impasses não superados na dialética da frustração,

lógica que caracteriza esse tempo da constituição do sujeito.

R. apresenta uma anorexia em resposta à posição da mãe, leitura feita pelo

analista a partir das entrevistas preliminares, que, diante da distância entre seus

ideais e os acontecimentos iniciais na sua relação com o filho – gravidez

indesejada, nascimento precoce, falta do próprio leite para a amamentação,

alergias da criança com relação a outros leites – construiu um quadro depressivo

que a impossibilita de ser agente transformador do objeto real em objeto de dom.

A criança, por sua vez, recusa sistematicamente seus objetos de necessidade,

passando então a comer nada, objeto possível no plano simbólico.

O fracasso na dialética da frustração apresenta-se assim como uma

inviabilidade para a entrada no jogo de engodo, o jogo no qual a criança aceita se

fazer objeto enganador forjando a complementaridade do Outro. No caso de R., o

jogo fracassa porque o desejo da mãe é a um só tempo enigmático e devastador,

deixando a criança impossibilitada de uma resposta satisfatória. A saída

sintomática encontrada pela criança para se sustentar como sujeito diante da


121

mãe, que se retirou em uma posição depressiva, foi comer nada, de modo a

inverter a lógica do jogo, colocando assim a mãe na sua dependência.

O sintoma na ‘criança edípica’ é referente ao gozo fálico, possível a partir

da incidência da castração. Surge quando há uma falha, que indica uma carência

do articulador essencial de tal tempo, qual seja, o pai real, agente da castração.

A renúncia ao gozo não se realizando, cria um represamento que alimenta o

sintoma. Nesse sentido, a fobia de cavalos do pequeno Hans é exemplar. Entre a

angústia provocada pelo vislumbre da castração materna e a ausência de

recursos ‘paternos’ para ajudá-lo a seguir adiante, Hans só consegue permanecer

no mesmo lugar já ocupado de objeto para o gozo de sua mãe, configurando o

significante ‘cavalo’ como objeto ao qual dirigir uma fobia de modo a aplacar sua

angústia. A elaboração do sintoma de Hans é assim, ao mesmo tempo,

absolutamente singular quanto à escolha do objeto cavalo, articulador central de

suas cadeias significantes, mas também notadamente elucidativa quanto à

importância da função paterna nesse tempo da constituição do sujeito.

A ‘criança na latência’, que já atravessou o Édipo e está às voltas com a

compreensão da castração, apesar de aparentemente manifestar sintomas que

respondem a uma lógica mais próxima do adulto, apresenta particularidades pelo

fato de ainda não estar concretamente confrontada com falta da relação sexual e

não ter construído seu sinthoma. Para além do gozo fálico, a criança tem nesse

momento a experiência da linguagem como insuficiente para dar conta das

perguntas sobre o desejo e o gozo do Outro. A questão do sentido então se

coloca, podendo levar ao que Lacan chamou de gozo do sentido - jouis-sens - o

qual se inscreve na intersecção entre S e I, sustentado pela ex-istência do real.


122

Apontar para o gozo que se obtém através de um sentido é o que pode levar à

[re]abertura da cadeia significante.

M. apresenta sintomas que revelam sua crescente apreensão da

inconsistência do Outro. Torna-se uma criança retraída, mostrando um

desinvestimento nas relações familiares inversamente proporcional ao

investimento excessivo em outras figuras de adultos - professores, dentistas,

instrutores etc. - buscando aparententemente compensar a falta de referências

encontrada junto aos pais. Esse quadro aparece após a separação litigiosa do

casal parental e a posterior assunção pela mãe de uma posição homossexual,

passando efetivamente a morar com uma outra mulher. Esse cenário parece

causar um espécie de ‘curto-circuito’ nas elaborações até então sustentadas pela

criança a partir da transmissão dos modos de gozo realizada pelos pais. A brusca

e traumática ruptura dessa ordem joga-lhe duramente ao encontro com a verdade

de que o saber paterno não pode dizer nada sobre o gozo da mãe, e seu

retraimento pode ser compreendido como uma resposta ao fato de não ter

encontrado no Outro parental condições para elaborar de modo suficiente a

problemática sobre o desejo da mãe.

Como já enunciado, o estabelecimento de uma hipótese diagnóstica e a

elucidação do sintoma são funções das entrevistas preliminares que se articulam

ainda com uma terceira, a transferência, que será mais especificamente abordada

no próximo capítulo.
123

5 TRANSFERÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E ATO

5.1 Transferência

A noção de transferência é central para a clínica psicanalítica. Freud tratou

do tema em vários momentos de sua obra. Primeiramente em Estudos sobre a

histeria, 1895, a propósito de um modo particular de resistência inerente à relação

do paciente com o médico. Na Interpretação dos sonhos, 1905, define-a como um

deslocamento que visa a realizar o desejo inconsciente através do material

fornecido por restos diurnos, pré-conscientes.

Em 1912, Freud caracteriza a transferência como a reprodução atualizada

de um protótipo relacional infantil, fenômeno recorrente em qualquer relação,

embora realçado pela própria estrutura da relação analítica, de modo a revelar os

conflitos essenciais que se tornam objeto da intervenção do analista.

Ainda em 1912, Freud aponta a contradição intrínseca à transferência,

tanto veículo quanto obstáculo para a análise, ressaltando a importância de seu

manejo para o sucesso do tratamento.

Não se discute que controlar os fenômenos da transferência


representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não
se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o
inestimável serviço de tornarem imediatos e manifestos os
impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando
tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou
in effigie. (FREUD, 1912, p.143).

Em 1914, Freud nomeia esse fenômeno de neurose de transferência:

Contanto que o paciente apresente complacência bastante para


respeitar as condições necessárias da análise, alcançamos
normalmente sucesso em fornecer a todos os sintomas da
moléstia um novo significado transferencial e em substituir sua
neurose comum por uma ‘neurose de transferência’, da qual pode
124

ser curado pelo trabalho terapêutico. A transferência cria, assim,


uma região intermediária entre a doença e vida real, através da
qual a transição de uma para a outra é efetuada. (p.201).

A neurose de transferência seria então uma doença artificial transitória a

ser curada pela própria análise que a provocou, a qual revela ao analista a

posição do sujeito diante do Outro, configurando assim o “terreno de manobra

onde se desenrola a compulsão à repetição da qual transborda a rememoração,

ao ponto, aliás, de a própria transferência poder ser considerada como uma

espécie de passagem ao ato dessa repetição.” (PORGE, 2003b, p. 140).

Além das considerações sobre a transferência como repetição e

resistência, Freud aponta ainda para o potencial sugestivo da situação. “Devemos

admitir que os resultados da psicanálise repousam sobre a sugestão. Por

sugestão devemos entender a forma de influir sobre uma pessoa mediante os

fenômenos de transferência possíveis em seu caso.” (FREUD, 1912, p.140).

Apesar de todo o desenvolvimento freudiano da questão, a leitura inicial da

transferência como expressão dissimulada do desejo inconsciente manteve-se

inalterada. Com a evolução da clínica, percebeu-se que a própria estrutura da

relação analítica torna a figura do analista uma representação privilegiada para a

qual o deslocamento se dirige. O saber inconsciente, saber que não se sabe, é

confiado ao analista, que se torna assim precioso por ser o depositário do tesouro

do analisante, do verdadeiro cerne de seu ser. Essa estrutura relacional tem como

conseqüência inevitável o amor de transferência, amor àquele que se supõe saiba

sobre o sofrimento que acomete o sujeito, suposição essa necessária para que a

entrada em análise aconteça. Freud realizou um esforço teórico intenso na

sustentação de que para além da questão ética, não responder à demanda de


125

amor do paciente é a própria condição de existência da psicanálise: o analista

deve responder ao amor com o saber.

É com Lacan que a leitura dessa estrutura própria à relação analítica ganha

uma maior precisão, trazendo conseqüências para a compreensão e o manejo do

fenômeno da transferência.

O sujeito suposto saber é, para nós, o eixo a partir do qual se


articula tudo o que acontece com a transferência. [...] Vemos que,
embora a psicanálise consista na manutenção de uma situação
combinada entre dois parceiros, que nela se colocam como o
psicanalisante e o psicanalista, ela só pode desenvolver-se ao
preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no
discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto
saber, esta uma formação não de artifício, mas de inspiração,
como destacada do psicanalisante. (LACAN, 1967, p.253-254).

A transferência se articula, então, entre analisante e analista graças ao

significante sujeito suposto saber, constituinte ternário dessa relação, o qual, uma

vez instalado, traz como efeito o aparecimento do amor. A demanda por livrar-se

do sintoma, característica do discurso de chegada do analisante, verte-se, assim,

em uma demanda de amor. O analista deve estar atento para fazer emergir nessa

demanda a dimensão do desejo, como desejo do Outro, permitindo ao sujeito

uma elaboração própria dessa questão, sem o que corre-se o risco de

permanecer na vertente imaginária da transferência, inviabilizando assim o

tratamento.

O amor na transferência é dirigido ao saber, embora não deixe de ter como

finalidade o objeto causa do desejo. “Esse objeto (o objeto a) é o que confere à

transferência seu aspecto real: de real do sexo. Trata-se aqui da vertente da

transferência como colocação em ato da realidade sexual do inconsciente”.

(QUINET, 2002, p.29). O lugar do analista na estrutura da transferência é portanto

o de suporte do objeto causa do desejo, e não o da própria causa.


126

É preciso separar e diferenciar suporte e causa. A causa de um


desejo se sustenta, se ordena no aparato psíquico de quem
deseja [...] A causa do desejo se localiza no (a) de ser fantasma.
Passemos agora a este outro lugar, que é de quem suporta o
lugar de causa; implica a estrutura de quem o suporta, o lugar
desde onde o faz. (...). É necessário destacar que não é o
mesmo suportar o objeto causa do desejo do outro, que ser a
causa mesma, se isso ocorresse haveria relação sexual.
(CAZENAVE, 1991, s/p).

Ao se colocar como o suporte desse objeto, o analista se torna precioso,

condição para manter a transferência, permitindo assim a realização da análise.

Nesse sentido, através da transferência, como função de amor, torna-se possível

ao analisante fazer com que o gozo ceda ao desejo, passando então pelo

diafragma da palavra.

A partir dessa leitura estrutural, a noção de neurose de transferência tal

como propõe Freud parece não se sustentar. Porge (2003b, p.144) explica que

não se poderia verdadeiramente falar de uma reedição da história passada do

sujeito sobre a pessoa presente do analista, pois, “o analista estava já lá na

história do sujeito. E ela [a neurose de transferência] não vem a substituir a

neurose ordinária, uma vez que está em uma relação de coalescência com

aquela”. Noutros termos, o sujeito suposto saber, presente desde o princípio,

juntamente com o objeto a são os dois elementos aos quais se relaciona a

transferência no ensino de Lacan.

De modo esquemático pode-se dizer que o objeto a concerne a


relação do sujeito ‘de um Outro ao outro’, ao objeto, ao mais-de-
gozar, segundo o registro do possível, do contingente, enquanto
o sujeito suposto saber concerne o sujeito em sua relação à
consistência do saber, à coerência significante, à origem da
ciência e se inscreve antes no registro do necessário. (PORGE,
2003b, p.152).

A escolha do analista é também relevante para a instalação da

transferência, formalizada por Lacan como a articulação entre dois significantes: o


127

significante da transferência dirigido pelo analisante ao significante qualquer

representado pelo analista. O efeito dessa transferência significante é a produção

de um sujeito como significado articulado através de uma suposição de saber

inconsciente. (QUINET, 2002, p.27-28).

A transferência é assim uma função do analisante que lhe possibilita entrar

em análise, cabendo ao analista sustentá-la, manejá-la, interpretá-la e conduzi-la

à dissolução, conforme o momento do tratamento.

Uma vez explicitados os elementos essenciais da transferência, como

articulá-los na clínica com crianças?

Freud, na Conferência 34, 1937, ocasião em que afirma que a técnica de

tratamento deveria ser modificada para sua aplicação em crianças, nota que a

transferência em tais casos desempenha um papel diferente, devido

principalmente ao fato de os pais reais ainda estarem em evidência. Mais uma

vez, para abordar a criança como analisante é preciso começar pela presença

dos pais.

Como já visto, o que caracteriza a criança como analisante é o fato de ser

um sujeito ainda em constituição, numa relação de dependência com o Outro,

sem a confrontação com o Outro sexo, o que a deixa numa posição

incompletamente decidida em relação ao gozo. Noutros termos, a infância não

corresponde ao ‘dito e feito’, ao contrário, os chamados conflitos infantis, em

plena vigência, deixam a criança empenhada na busca de elementos,

encontrados no campo do Outro, para contorná-los, trabalho psíquico que realiza

sobretudo através do brincar.

Essa condição estrutural do sujeito na infância traz uma série de

conseqüências para o estabelecimento da transferência. Um primeiro ponto


128

fundamental é que antes mesmo da instalação do constituinte ternário na relação

analista/analisante, o sujeito suposto saber, é necessário ao analista ocupar tal

lugar primeiramente para os pais da criança, para que a análise possa vir a

ocorrer. Efetivamente, já não se está diante de uma situação acertada entre dois

parceiros apenas: tem-se necessariamente pelo menos mais um elemento na

cena, não somente para a configuração inicial, como também para todo o

direcionamento, do tratamento. Enquanto a transferência dos pais não se instalar,

a análise da criança não poderá ocorrer, não apenas porque, objetivamente, seu

comparecimento às sessões depende da mobilização de seus pais, mas também

porque o lugar por eles ocupado, de Outros primordiais, detém o poder de

desautorizar o tratamento, desfavorecendo assim o estabelecimento da

transferência da própria criança.

O analista ocupa então um lugar transferencial ambivalente: é sujeito

suposto saber para a criança, em grande medida, porque é sujeito suposto saber

para seus pais. Atal (1998) usa o termo ‘dupla escuta do analista’ para se referir a

essa transferência de dois lados. Tal configuração traz dificuldades para o manejo

transferencial, uma vez que compõe transferências que se entrecruzam, mas que

mantêm elementos distintos. Em geral, a demanda dos pais é dirigida ao analista

como um especialista e, para que possam aceitá-lo no lugar de sujeito suposto

saber, é preciso portanto que se reconheçam destituídos desse lugar de quem

sabe sobre o sintoma do filho. O manejo dessa transferência implica em não

responder a essa demanda inicial, criando um espaço para o resgate da

possibilidade de confecção de um saber paterno sobre o filho, o que não rivaliza

necessariamente com a análise da criança, mas visa a restabelecer um lugar de

transmissão simbólica que foi interrompida. Sendo assim, a transferência dos pais
129

com o analista é uma condição para a psicanálise com crianças, torna-se tarefa

do analista manejá-la de modo a garantir a situação analítica com a criança.

Uma vez que a escolha do analista é geralmente feita pelos pais, a criança

pode endossar tal escolha, tomando um significante qualquer do analista para

onde dirigir o significante da transferência, ou pode recusá-la, não estabelecendo

a relação transferencial.

Uma particularidade esclarecedora da transferência na clínica com

crianças, especificamente quanto à relação transferencial da própria criança, é o

fato de o lugar de sujeito suposto saber a ser ocupado pelo analista já estar sendo

ocupado pelo adulto, sobretudo o casal parental, “encarnando o Outro com uma

consistência que não é equivalente à que podemos encontrar num adulto”

(CORIAT, 1997, p.300). Nesse sentido, Porge (1998) propõe que a neurose da

criança é sempre uma neurose de transferência, dirigida a algum objeto parental.

Dessa forma, a criança vem à análise quando a neurose de transferência com os

pais entra em colapso, trazendo uma ruptura na transmissão do saber.

O ponto de ruptura da transferência, em um dos pais, é esse


ponto em que não se é mais bom entendedor, onde não se ouve
mais a divisão do sujeito na sua mensagem, ali onde justamente
seria importante que ele o ouvisse. Essa falência é tão geral
quanto a neurose na criança. (PORGE, 1998, p.14).

Lacan (1964, p.197), embora ressalte a importância da presença de

pessoas ao redor da criança, afirma que ela quando fala não se dirige a uma

pessoa, falando “para lá, canto da coxia”. É a partir dessa formulação que Porge

(1998, p.15) elabora a noção de transferência para os bastidores, com a idéia de

que a companhia de um bom-entendedor é fundamental para que a criança

possa, através de suas brincadeiras e indagações, explorar as possibilidades do

saber possível ao seu tempo de constituição, de modo a realizar a construção de


130

sua neurose infantil. Nesse sentido, quando o bom-entendedor, sustentáculo dos

bastidores, deixa de sê-lo, rompe-se a transferência. Tal ruptura ocorre

geralmente quando o adulto em questão em vez de continuar sustentando ‘o

bastidor’ passa a encarná-lo, sobrepujando assim as questões psíquicas da

criança com as próprias. Situação bastante comum em nossa atualidade, na qual,

como mencionado 36 , a relação com a castração se evidencia um problema,

levando o adulto a olhar para a criança como uma possibilidade de restituição

narcísica, sugerindo que ela deva, por sua vez, procurar também escapar à

castração, ao invés de tirar proveito dela.

Nesse sentido, quando os pais fracassam no lugar de bons-entendedores,

dificultando o acesso da criança aos termos necessários para a resolução dos

impasses próprios a suas elaborações, o analista pode ser convocado.

Esse modo de falência atribui ao analista, quando é solicitado,


um lugar equivalente àquele que desempenha para a criança o
romance familiar. [...] O romance familiar é uma maneira de
restabelecer o pedestal do qual os pais caíram. O analista é
levado a preencher a mesma função, a restabelecer uma
transferência posta a prova. [...] O analista chega, de fato, a
encontrar um lugar, na neurose de transferência da criança. Mas
não será, como no adulto, uma neurose de transferência que
substituirá a neurose comum, uma vez que essa neurose comum,
para a criança, já é a neurose de transferência. É uma
transferência indireta que visa sustentar a transferência na
pessoa que, no início, se revelou inapta a suportá-la. É
igualmente um transferência indireta, contemporânea do
estabelecimento de um lugar de transferência para um dos pais,
no momento mesmo em que este último falha. Seria uma
transferência para os bastidores. (PORGE, 1998, p.14-15).

Uma vez que a já mencionada condição estrutural da criança, com um

Outro consistente e sabido, impõe ao analista ocupar justamente esse lugar,

como então não encarná-lo?

36
Cf. capítulo três, p.88-89..
131

A organização simbólica do mundo, sustentada em elementos culturais, é

patrimônio comum recebido por cada novo sujeito. “Se tal organização simbólica

dá à sugestão seu fundamento incontestável, a abordagem de uma criança em

processo de estruturação subjetiva não prescinde de sugestão.” (VORCARO,

2003, p.30). Cabe ao analista saber se posicionar de maneira a “criar condições

para a transmissão simbólica: resgatando a criança do anonimato do desejo,

reconduzindo-a à herança de sua linhagem simbólica própria, para que o sujeito,

constituído, possa fazer com ela algo de novo”. (VORCARO, 2003, p.16).

O analista, assim, sustenta o lugar de Outro, sem contudo encarná-lo.

Diferentemente dos pais, o analista se baliza pelo desejo de analista, não

desejando nada em específico à criança para que ela possa prosseguir na

elaboração de suas próprias questões. Nesse sentido, o analista tende a ocupar o

lugar de semblante de a, abrindo espaço para a enunciação da criança. O lugar

do analista oscila então entre o lugar de Outro e de objeto a, sempre vetorizado

para esse último.

Cabe indagar se o estatuto do objeto a na infância é o mesmo que no

adulto. Segundo Coriat (1997), o objeto a no “sujeito infantil” ainda não tem o

estatuto de radicalmente perdido e articulado na fantasia. Lacan fala das

sucessivas interdições que esse pequeno sujeito sofre em suas quatro versões

corporais do objeto a - voz, olhar, seio e fezes - até finalmente ter, com a

operação de castração, a experiência do objeto totalmente perdido, embora nesse

momento ainda não tenha como contar com a estabilidade da fantasia. “A história

de cada um é a história dos modos de faltar o objeto impossível; um resultado da

inexistência da relação sexual”. (BRAUSTEIN, 1999, p.42). O objeto a, como

saldo da operação de castração, terá a consistência e o estatuto de radicalmente


132

perdido somente na adolescência, antes da qual o sujeito ocupa-se em

desprender-se de objetos primários.

Articulando-se o exposto aqui à escanção proposta no capítulo dois, pode-

se então concluir que o analista ocupa na transferência um lugar que se

transfigura de acordo com o tempo da constituição psíquica da criança, uma vez

que, para ela, esse Outro ocupante do lugar de sujeito suposto saber se

apresenta de maneiras distintas.

No tratamento da ‘criança pequena’, atravessando o tempo da dialética da

frustração com a mãe, o analista ocupa o lugar da alteridade materna, uma vez

que a neurose de transferência da criança tinha esse Outro primordial como

objeto. É esse agente da função materna que fracassa em ocupar o lugar de

sujeito suposto saber para a criança, o qual poderá então ser ocupado pelo

analista. Na análise de R., observa-se que a mãe, objeto da transferência da

criança, esbarra no insuportável de sua própria castração, fracassando assim na

sustentação do lugar de saber. O analista, ao incidir no ponto de impasse que não

permitia à criança entrar no jogo de engodo com a mãe, promoveu o

descongelamento dessa dialética. Logo nas primeiras sessões, foi convocado a

esse lugar de Outro primordial pela criança que propôs um jogo de ‘fazer

comidinha’ e ‘dar de comer’. O analista, enquanto um outro Outro, não operou a

partir da fantasia materna, mas sim do desejo de analista, instituindo um lugar

vazio, um ‘bastidor’, em direção ao qual a criança pôde dirigir questões, formular

elaborações, encontrando condições que propiciaram a retomada da construção

de sua neurose infantil e o prosseguimento da confecção de seu nó borromeano.

No tratamento da ‘criança edípica’, o analista é solicitado no lugar da

alteridade paterna, já que nesse tempo é o agente da função paterna que ocupa o
133

lugar de sujeito suposto saber. “Trata-se pois de sustentar na análise o lugar

simbólico do pai, o lugar da Lei [...].” (OLIVEIRA, 1991, s/p). Com relação ao caso

do pequeno Hans, a formulação de Freud vinculando a possibilidade de

realização dessa análise à peculiar conjugação das autoridades paterna e médica

parece corroborar com a hipótese da importância do pai como ‘lugar’ ao qual

endereçar as questões quando se trata de uma criança nesse tempo da

constituição, ainda que nesse particular caso clínico tal lugar tenha de fato sido

sustentado transferencialmente pelo próprio Freud, uma vez que o pai da criança

não pôde operar a função paterna, assumindo a posição de espectador da

relação entre mãe e filho.

O tratamento da criança que se encontra no tempo da latência, para quem

os pais já perderam a hegemonia do lugar de saber, relativizados por alternativas

apresentadas pela esfera social, solicita o analista no lugar de mestre. É comum

as crianças nesse tempo de sua constituição se referirem à análise como aula.

Mestre aqui não é aquele que exerce a autoridade através do poder, mas uma

figura que pode ser tomada no lugar do pai imaginário, desinflado, para sustentar

uma função simbólica. M., como visto, enfrenta empecilhos na formulação de

suas respostas sobre o desejo do Outro dada sua situação familiar. Convoca

então o analista como “alguém neutro”, não comprometido com a fantasia

parental, para onde dirigir suas questões - para onde o desejo de minha mãe se

dirige? como configurar família? - de modo a proceder à construção de uma ficção

que pudesse fazer frente aos enigmas do desejo do Outro.

A transferência, como ponto nodal da estratégia clínica, impõe ao analista

ocupar esse lugar de Outro para a criança, assumindo inicialmente o semblante

de diferentes figuras de alteridade conforme cada um dos tempos da constituição.


134

Contudo, orientado pelo operador desejo de analista, não lhe dirige demandas,

mas propõe a ela um lugar vazio a partir do qual possa formular uma demanda

própria. Nesse sentido, como suporte do objeto causa do desejo, o analista cria

condições para que a criança possa encontrar os elementos necessários para

solucionar o impasse que a está impossibilitando de seguir na construção de sua

neurose infantil. Importa ressaltar que essas nuances transferenciais no

tratamento da criança devem ser entendidas enquanto tendências, prevalências

do lugar ao qual o analista é inicialmente solicitado, sem entretanto desconsiderar

a complexidade clínica que preservará a possibilidade do analista posicionar-se

de modo singular conforme o caso.

Levando-se em conta a figura topológica do nó borromeano, esse

posicionamento do analista como suporte do objeto a que se inscreve na

intersecção dos três registros, encerra assim três dimensões:

Como semblante de a, resto caído do real que é impossível de


simbolizar, como imagem de um semelhante especular, e como
suporte da regra fundamental que obriga o sujeito a dizer-se [...].
Real, imaginário, simbólico.
Se o que existe é um dispositivo para uma invenção constante e
não uma ‘técnica psicanalítica’ é porque esta tríplice função
legisla não um código de procedimentos mas uma posição do
analista frente à trama linguageira criada por Freud na qual o
próprio analista está enredado. (BRAUSTEIN, 1999, p.217).

Mais além, uma questão permanece: qual o limite da análise da

transferência analisante-analista na clínica com criança?

Há uma limitação estrutural na interpretação dessa transferência: não pode

haver análise da transferência amorosa criança-analista, uma vez que a criança,

não se confrontando com o Outro sexo no ato sexual, não tem como se deparar

com a verdade da inexistência da relação sexual.


135

A criança não pode aceder à análise da transferência amorosa


para o analista porque não tem acesso àquilo que, no encontro
sexual e por ele, vai colocá-la na determinação da fórmula ‘não
há relação sexual’, fórmula que não se confunde absolutamente
com a interdição do incesto tal como a teorizou Freud, e que por
sua vez se desenvolve no campo de uma relação sexual, aquela
entre pais e filhos. É a efetivação dessa interdição que pode, no
melhor dos casos, se realizar com a psicanálise da criança. Mas,
o interdito não está no mesmo plano que o impossível da relação
sexual. (PORGE, 1998, p.17).

Essa condição da criança, além de deixá-la numa posição instável com

relação a suas palavras, não permite responsabilizar-se totalmente também por

seus atos, então remetidos para o futuro. O fato de a criança não ter a mesma

relação com a palavra que o adulto constitui, na leitura de Michel Silvestre (1982),

o principal diferencial da transferência na psicanálise com crianças, implicando na

presença de desenhos e jogos na cena analítica. Situação que leva o analista a

se defrontar com a tentação de completar com a própria fala a expressão

aparentemente faltante da criança, conduzindo assim a análise ao aprisionamento

pela vertente imaginária da transferência. Desse modo, seja tomando o lugar da

criança na tentativa de compreendê-la, ou encarnando o Outro, o analista provoca

o fracasso do tratamento.

Como então escapar dessa armadilha, sustentando o lugar de sujeito

suposto saber para uma criança de modo a garantir a transferência simbólica?

Ainda segundo Silvestre (1982), a insistência da criança em fazer

perguntas remete à sua relação com o saber, a qual corresponde a uma

duplicação de sua relação com a sexualidade, uma vez que, essencialmente, o

saber se origina da curiosidade sexual. Nesse sentido, a criança busca

significantes que possam dar contorno às questões sobre a origem, os quais

fazem assim para ela a função de nome-do-pai. Mas, se perseguir significantes é


136

o que se faz em toda análise, qual seria então a especificidade da análise com

criança? O autor afirma que a diferença em questão é introduzida não pelo

simbólico, mas pelo real do sexo em jogo, diante do qual a criança não tem como

apreender a inexistência da relação sexual entre um homem e uma mulher, uma

vez que não tem ainda como defrontar-se com o Outro sexo. Eis o limite da

análise com crianças, seu fim, seja como finalidade ou finalização. 37

Desse modo, Silvestre (1982) aponta o mesmo limite já assinalado por

Porge (1998): a diferença crucial entre o adulto e a criança é a possibilidade do

sujeito se [des]encontrar com o Outro sexo, confrontando-se assim com a

inexistência da relação sexual. Em cada tempo da constituição psíquica, a criança

se depara com uma versão dessa não-relação, apreendendo diferentes registros

da falta no Outro. É somente na adolescência, com a possibilidade efetiva da

experiência sexual, que o sujeito poderá [des]encontrar-se com o Outro sexo para

construir o sinthoma reparador da inexistência da relação sexual, definindo assim

seu modo de gozo.

Importa ressaltar que a consideração das limitações intrínsecas à condição

da criança não implica em desconsiderar a potência do ato analítico nessa clínica.

Noutros termos, o analista reconhecer as especificidades do sujeito na infância

não equivale a deixar de intervir “como canalizador específico, possibilitando que

se abra [para a criança] o caminho à palavra própria, à responsabilidade pelo ato

e, fundamentalmente, ao andamento ordenado do desejo”. (CORIAT, 1997,

p.300).

37
Cf. capítulo seis.
137

5.2 O brincar sob transferência

Depois de realizado o diagnóstico diferencial e do sintoma configurar-se em

uma questão para o sujeito, o estabelecimento da transferência vem

complementar as condições necessárias para efetivamente iniciar-se uma análise,

colocando um fim nas entrevistas preliminares. No tratamento-padrão, esse

momento é em geral selado com a indicação do divã, recomendado por Freud

não só pelo conforto propiciado ao analista, mas também pela potencialização da

transferência, uma vez que, reduzindo o campo escópico, facilita ao sujeito ater-

se a seu próprio discurso. Nesse sentido, privilegiar a fala implica minimizar os

efeitos imaginários de modo a favorecer a emergência do sujeito do inconsciente.

Vale lembrar que a utilização do divã não é suficiente nem indispensável para

garantir uma análise, pois o que de fato fundamenta o processo analítico é a

sustentação da regra fundamental da associação-livre.

O ato psicanalítico não é um ato sexual, é completamente o


contrário. Mas dizer ‘o contrário’ não é dizer ‘o contraditório’. [...]
A cama analítica (o divã) significa uma área que não está sem
relação ao ato sexual, é uma relação contrária, a saber: não é, de
forma alguma, possível obviar que é uma cama e que introduz o
sexual sob a forma de um conjunto vazio. (LACAN, apud
CORIAT, 1997, p.301).

O divã é simplesmente um artifício: uma cama que, referida ao ato sexual,

pode ser remetida à inexistência da relação sexual. “Como não há a possibilidade

do ato sexual na vida da criança, propor-lhe o divã seria uma manobra sedutora,

que introduziria o sexual sem possibilidade de formalizá-lo como conjunto vazio,

porque não haveria nada para deixar fora.” (CORIAT, 1997, p.301).

Com a criança, não apenas o divã não tem sentido, como também a cena

analítica desdobra-se geralmente incluindo os corpos do analista e do analisante,


138

além de uma série de outros objetos, para dar suporte à fala. Inversamente à

função do divã para o adulto, os desenhos e as brincadeiras da criança,

sustentados pelo campo da visibilidade, poderiam levar ao inflamento do

imaginário. Contudo, Stevens (s/d, p.15) ressalta que a imagem corporal não está

tão fixada na criança como no adulto, fazendo portanto menos obstáculo nas suas

relações com o outro.

O corpo é o receptáculo concreto do discurso do Outro primordial e, na

infância, está sendo por ele traçado. Na mesma medida em que o objeto a ainda

não tem estatuto de radicalmente perdido, o corpo também não está ainda

radicalmente recalcado. É a castração que realiza tal operação, qual seja,

interditar o gozo do corpo com a promessa do gozo fálico. A criança perde aos

poucos a “intimidade com o objeto de seu gozo: com o peito, com as fezes, com o

leite, com o corpo materno e com o seu próprio corpo. E, para aceitar essas

perdas, ela tem que poder acreditar numa promessa de compensação”.

(JERUSALINKY, 2001, p.74).

A criança consente na perda em vista do que ganhará: jogo do ‘quem

perde ganha’, como o nomeia Lacan referindo-se à castração. Ganha a promessa

de realizar o desejo de ser adulta, de desfrutar do desejo como os adultos. A

estrutura do sujeito só se estabilizará na adolescência, momento em que tal

promessa, por mais decepcionante que se revele, pode então se realizar.

Desse modo, além da escuta, o olhar e o corpo estão também presentes.

Os objetos que fazem parte da situação analítica com uma criança teriam assim o

objetivo de favorecer a leitura do inconsciente da criança, na direção de criar

condições para a análise. “Todos sabem, e os psicanalistas de crianças em


139

primeiro lugar, que é preciso um bocado de pequenos objetos para manter uma

relação com a criança”. (LACAN, 1958a, p.623).

Freud (1920) já chamava a atenção para esse fato em sua observação do

jogo do ‘Fort-da’, no qual a criança lança e recupera um carretel repetidas vezes

junto a vocalizações que sugerem os significantes partir e voltar. Na leitura

freudiana a criança estaria encenando, por meio de um objeto, a partida e o

retorno da mãe, segundo a manifestação de um instinto de dominação, ou seja,

passando de um lugar passivo para a assunção de um papel ativo estaria

procurando assim um controle imaginário da situação.

A leitura lacaniana aponta para uma outra direção:

Se o pequeno sujeito pode exercitar-se neste jogo do fort-da, é


justamente que ele não se exercita de modo algum, pois nenhum
sujeito pode apreender esta articulação radical. Ele se exercita
com a ajuda de um carretelzinho, quer dizer, com o objeto a. A
função de exercício com este objeto se refere a uma alienação, e
não a qualquer suposto domínio, do qual mal se vê o que o
aumentaria numa repetição indefinida, ao passo que a repetição
indefinida de que se trata manifesta às claras a vacilação radical
do sujeito. (LACAN, 1964, p.226).
Nesse sentido, a criança precisaria de um objeto como o suporte concreto

para operar com o significante de modo a sustentar sua própria fala, pois o

desenvolvimento da cadeia significante ainda não é suficiente na criança para

poder se apoiar somente na palavra. O brinquedo, como suporte do objeto a,

serve ao exercício da criança na linguagem como sujeito, possibilitando assim,

através do brincar, sua elaboração de uma resposta, significante, ao enigma do

desejo do Outro.

Freud (1907, p.149) compara a brincadeira da criança com a criação

literária: “Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta

como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os

elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?” As fantasias e
140

devaneios do adulto corresponderiam, desse modo, a uma herança do brincar

infantil, ou seja, uma substituição dos meios para o prazer que obtinha ao brincar.

Segundo Freud, o brincar da criança é movido por um único desejo, ser grande,

no sentido de ser adulto, da mesma maneira que os desejos insatisfeitos dos

adultos buscam realizar-se por meio de fantasias, devaneios e sonhos. Nesse

sentido, de acordo com a próprias possibilidades, tanto a criança quanto o adulto

revelam manifestações do inconsciente susceptíveis de serem interpretadas.

Através de suas brincadeiras, a criança põe em jogo suas


próprias interpretações, buscando dar um sentido diante da
angústia que desperta o enigma do desejo do Outro. [...] A
posição do analista na estrutura da transferência [tal qual na
clínica com adultos] será a de não agregar sentido às
interpretações que a criança destaca em suas brincadeiras, mas
o lugar de objeto causa do desejo, lugar de Che vuoi? (GIRALDI,
1991, s/p).

Embora faça a diferença entre brincadeira e realidade, a criança ‘brinca a

sério’, seu trabalho é o brincar, atividade que consome seu tempo, demandando

investimento psíquico. O brincar é inevitável para a criança, uma vez que

corresponde ao próprio movimento de sua estruturação psíquica: quando uma

criança não brinca é sinal que existe algum impedimento em seu processo de

subjetivação.

Nesse sentido, o ofício da criança situa-se entre o inacabamento próprio a

sua condição estrutural e o ideal veiculado pelo discurso do Outro, de modo a

“fazer uma brincadeira para construir a ponte entre essa insuficiência e o ideal

para articular algum saber próprio, brincando de vir-a-ser grande”. (TAVARES,

1998, p.61). Entre o real que habita essa insuficiência e o ideal simbólico, há uma

lacuna a ser preenchida que a criança “recobre com esse imaginário que é o

brincar.” O brincar inventa assim uma conciliação do inconciliável entre tal


141

insuficiência e o ideal, permitindo à criança avançar rumo à construção de sua

subjetividade. Vale lembrar que a brincadeira, ainda que seja uma produção

imaginária, está sustentada pelo simbólico, sem o qual não seria possível.

Noutros termos, uma falha no funcionamento do registro simbólico da criança tem

sempre efeitos sobre sua atividade lúdica.

Se o brincar é permanente, por que a criança precisaria fazê-lo junto ao

analista? Importa lembrar que a criança é geralmente trazida para a análise

quando seu brincar espontâneo é interrompido, seja pela ausência ou a ‘repetição

em falso’ da atividade lúdica. Ao se oferecer como um outro Outro, o analista cria

condições para a criança retomar a brincadeira por meio da qual elabora suas

questões. Quando brinca em análise, a criança põe em jogo “os significantes que

a marcaram... porém, agora, em uma nova combinatória, inédita, criada

exclusivamente por ela, de sua própria autoria”. (CORIAT, 1997, p.304).

O psicanalista da criança torna-se também um objeto, embora muito

particular, para o exercício da brincadeira. Nesse sentido, o próprio analista

enquanto semblante de um objeto a “é um brinquedo mágico: quando o brincar se

interrompe, ou quando gira reiterativamente em repetições vazias, é o pequeno

objeto a que se oferece, relançando o tear significante do desejo.” (CORIAT,

1997, p.305).

Giraldi (2004, p.10-11) acrescenta que, além dos objetos, a criança

também brinca com palavras, equívocos e falhas da alíngua, sendo portanto

desnecessário ao analista paramentar seu consultório com brinquedos técnicos

ou convidar a criança para brincar. O analista, outrossim, convida-a a falar, já que

a criança pode brincar de qualquer coisa enquanto fala. A autora assevera ainda
142

que o melhor brinquedo para o tratamento de uma criança é o próprio analista, no

sentido de que ela pode se servir dele.

Vorcaro (2003, p.23) afirma que por meio da brincadeira a criança reordena

seu mundo, operação que se diferencia da fala somente pelo fato de os

significantes utilizados não serem vocais, respondendo contudo às mesmas leis

do funcionamento psíquico, quais sejam, a condensação e o deslocamento.

Sendo assim, o brincar da criança, costurado pelo discurso que ela profere,

seja sobre o enredo da brincadeira ou sobre seu mito familiar, será objeto da

interpretação do analista. Como em qualquer análise, o analista deve se deter no

deslizamento significante e não na trama imaginária, o que exige atenção

redobrada, afinal, como já apontado, todo o cenário montado pela criança seduz

na direção do imaginário. Vale ressaltar que o gesto, o brincar, o desenhar, o

escrever e o falar apresentam graus distintos de complexidade na apropriação da

criança do funcionamento simbólico. Quanto mais a criança puder apreender a

falta no Outro, maior será a operatividade de seu registro simbólico. Como no

analista o simbólico opera em toda sua extensão, torna-se difícil para ele

deslocar-se da imagem utilizada pela criança em seu jogo para tomá-la como uma

produção significante. Obviamente, essa dificuldade refere-se à capacidade de

leitura do analista e não a uma incapacidade de produção por parte da criança.

Nesse sentido, o jogo e a transferência sustentam-se mutuamente no

tratamento psicanalítico com crianças permitindo ao analista operar com a

interpretação. Noutros termos, a brincadeira é objeto e meio, enquanto a

transferência é meio, e não objeto, para a interpretação.


143

5.3 Interpretação e ato

Com A Interpretação dos sonhos, 1900, Freud lança as bases de uma

noção central para a psicanálise. A interpretação, ali introduzida como o

instrumento pelo qual o analista visa a trazer à consciência o sentido latente do

sonho, é posteriormente desenvolvida como uma ferramenta mais ampla, para

preencher lacunas da memória, suprimir a amnésia infantil, reencontrar o sentido

de sintomas, de modo a promover uma mudança subjetiva do paciente. A

interpretação é assim o que incide sobre o desejo inconsciente atualizado na

transferência com o objetivo de interromper a repetição e propiciar o advento de

novas significações.

A tese de Lacan do inconsciente estruturado como linguagem renova a

importância da interpretação. Se a linguagem humana é caracterizada por sua

polissemia, geradora do campo do mal-entendido que serve às manifestações

disfarçadas do desejo, é então seu próprio funcionamento o que cria as condições

para a interpretação. Noutros termos, se o inconsciente se revela à ‘flor da língua',

a escuta do analista é o que torna possível a interpretação.

O analista então colhe significantes no próprio discurso do analisante para

formular uma interpretação, cujo valor é dimensionado em função das

conseqüências provocadas. Uma vez proferida, deve servir de enigma ao

analisante para levá-lo a uma produção significante diversa, causando assim uma

nova incidência na enunciação. O objetivo da interpretação é que o analisante

tenha um ‘ganho de saber’ que promova alguma mudança subjetiva. “É que ao

tocar, por pouco que seja, na relação do homem com o significante, [...] altera-se
144

o curso de sua história, modificando as amarras do seu ser”. (LACAN, 1957,

p.531).

Tal interferência visa a romper o círculo-vicioso das repetições

inconscientes, de modo a libertar o significante aprisionado em uma única

significação.

A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições


inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que
nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução –
precisamente aquilo que a função do Outro permite no
receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o
elemento faltante. (LACAN, 1958a, p. 599).

Contudo essa operação não se dirige à produção de um novo sentido,

talvez mais consistente, mas justamente a um esvaziamento do sentido, com o

desmantelamento da trama de significações através do jogo em torno do

equívoco. Noutros termos, a interpretação visa ao desejo tanto em seus efeitos de

verdade subjetiva como em sua causa, o objeto a.

Com as formulações do último período do ensino de Lacan, no qual a

análise é concebida como um processo de leitura do gozo inscrito e desconhecido

para o sujeito, a interpretação ganha uma precisão maior. Além de operar sobre a

cadeia significante, busca desvelar ao sujeito o ponto de ancoragem real onde se

inscreveu seu modo de gozo. Esse ponto corresponderia ao sinthoma, núcleo

irredutível do sujeito, constituindo o próprio limite da interpretação: pode ser por

ela apontado, mas permanece, em si mesmo, intocado. A partir de tal avanço

teórico, Lacan (1972, p.493-4) defende que a interpretação deve atentar para os

“equívocos pelos quais se inscreve o lateral de uma enunciação” segundo três

campos: a homofonia, como semelhanças sonoras sugestivas; a gramática, como

transgressões reveladoras; e a lógica, como formalizações paradoxais.


145

Entretanto, a interpretação não é o único dispositivo de que o analista

dispõe para conduzir a análise do sujeito em direção à realização da falta. O ato

analítico, noção bastante posterior à de interpretação e que não se sobrepõe a

ela, amplia a leitura daquilo que cabe ao analista na direção do tratamento. A

psicanálise institui um fazer, orientado pela regra fundamental, realizado pelo

analisante, ao analista cabe o ato.

Interpretação e transferência estão implicados no ato pelo qual o


analista dá a este fazer suporte e autorização. É feito para isso.
É, de qualquer forma, dar algum peso à presença do ato, mesmo
se o analista não faz nada. Logo, esta repartição do fazer e do
ato psicanalítico. (LACAN, 1967/68, p.65-66).

Freud não fala propriamente de ato analítico, mas sim de ato sintomático,

tendo como paradigma o ato falho. Lacan parte dessa formulação para,

ressaltando a dimensão significante do ato, pensar no ato analítico. Destaca ainda

que, já em Freud, o ato só pode ser referido em um segundo momento, ou seja, é

possível apontá-lo somente a posteriori.

Na primeira aula do seminário sobre o ato analítico, Lacan (1967/68) afirma

que o sujeito do inconsciente, profundamente implicado no fazer psicanalítico,

está colocado em ato na transferência. Nesse sentido, a decisão de iniciar uma

psicanálise merece o nome de ato e comporta um certo engajamento, não só do

analisante como também do próprio analista.

Tal engajamento se verifica em toda a estrutura da situação analítica, que

se inicia com a decisão do sujeito por uma psicanálise e prossegue com o

acolhimento que o analista dá a sua demanda, sem contudo respondê-la. Em

seguida, o disparo da transferência, com a instituição do sujeito suposto saber e a

direção assumida desde o início de destituição desse lugar. Toda essa montagem

é da ordem do ato analítico, ainda que somente a posteriori seja possível


146

identificar os momentos pontuais em que um ato aconteceu, tendo produzido

mudanças em um posicionamento subjetivo, das quais a mais crucial seria a

própria passagem de analisante a analista. Entrar em análise é, portanto, engajar-

se no ato analítico.

A transferência é assim condição para o ato analítico, ao mesmo tempo em

que é por ele sustentada. Ressaltando essa intrínseca interdependência, Lacan

afirma (1967/68, p.46): “Fora do que chamei de manejo da transferência, não há

ato analítico.” É através do ato que o sujeito pode aceder a algo da ordem de um

saber, uma vez que o ato implica uma subversão do sujeito, produzindo uma

conversão da posição do sujeito quanto à sua relação ao saber.

Bernardino (2004c, p.38-39) propõe uma diferença entre ato e

interpretação: “o ato é o instrumento que permite lidar com a pulsão, ali onde a

interpretação aparece enquanto inutilidade”. O que os diferencia então seria o fato

de a interpretação ser uma intervenção calculada pelo analista a partir de sua

escuta diante da direção que dá ao tratamento, enquanto de outro modo o

analista é “conduzido ao ato por um desejo que se impõe, produto da imersão no

campo transferencial que dá lugar ao inconsciente do paciente”. A autora define o

ato como “um fazer que, por uma dupla função, faz efeito significante”: a primeira

função refere-se à instituição de “um corte, interrompendo a repetição”, e a

segunda, demarcando “um começo, registra o aparecimento de algo novo, que

exige uma mudança de posição”.

Deduz-se dessa formulação que a interpretação pode ser realizada com o

analista no lugar de Outro enquanto o ato exige-lhe o lugar de objeto a. “O objeto

perdido inicial de toda a gênese analítica, esse que Freud martela em toda sua

época do nascimento do inconsciente, ele está aí, esse objeto perdido, causa do
147

desejo. Teremos que vê-lo como no princípio do ato.” (LACAN, 1967/68, p.88). O

sujeito não é causa de si, mas conseqüência da perda do objeto a, saldo da

incidência do significante no real do organismo. É a partir da sustentação desse

lugar que um ato pode vir a ocorrer.

Como entender a interpretação e o ato analítico na clínica com criança

levando-se em conta o que a caracteriza como analisante?

O fato de a infância corresponder ao período de aquisição da linguagem,

responsável pelo advento do sujeito do inconsciente, faz com que a criança tenha

uma posição particular com relação a essa estrutura que é ao mesmo tempo

condição e veículo para a interpretação. Mesmo que a criança ainda não fale, a

linguagem já opera possibilitando-lhe situar-se nessa estrutura segundo um lugar

que, contudo, guarda certa instabilidade característica ligada aos avatares da

constituição subjetiva.

Obviamente, tal contexto traz dificuldades à tarefa da interpretação na

análise com crianças porque compromete as operações sobre a homofonia, a

gramática e a lógica, sobretudo com relação àquelas que ainda não escrevem,

uma vez que a interpretação e a escrita são intimamente relacionadas. Stevens

(s/d, p.16) faz duas considerações valiosas com respeito à situação da

interpretação na análise com uma criança que ainda não escreve. A primeira

refere-se ao estatuto do significante que ainda não opera em toda sua extensão.

A criança ainda não é sensível ao jogo de palavras, não tendo portanto a

dimensão do equívoco. Noutros termos, não há a possibilidade de se usar a

homofonia, por exemplo, como fundamento para uma interpretação. A criança faz

um jogo de palavras infantil cujo efeito cômico reside na provocação do riso do

adulto e não no próprio jogo de palavras. As crianças tratam assim das palavras
148

como coisas, “tendem a esperar que as palavras idênticas ou semelhantes

tenham, subjacentes, o mesmo sentido – fato que é fonte de muitos equívocos

dos quais os adultos se riem”. (FREUD, 1905, p.142). Nesse sentido, é o adulto

quem se diverte com os jogos de palavras da criança que, por sua vez, diverte-se

com o riso do adulto sem contudo sofrer os efeitos do equívoco revelador.

A segunda consideração de Stevens refere-se ao objeto. O autor

compreende o desenho como uma produção pela qual a criança vem compensar

o fato de não escrever. O desenho seria assim uma tentativa de recuperação do

gozo por intermédio do significante estruturado pelo traço. O objeto aparece no

desenho da criança de um modo que não demanda interpretação. O desenho

seria um recurso para dar forma ao objeto, de modo diverso do adulto, para

quem o objeto visado é sem forma.

Nesse sentido, os desenhos como os demais objetos que compõem a cena

analítica da criança são suportes imaginários que funcionam como imagens de

um sonho, significantes assim apresentados, correspondendo portanto a sua

produção discursiva.

Se, por um lado, a posição da criança na linguagem traz limitações ao

exercício da interpretação, por outro, não a inviabiliza totalmente. A interpretação

possível pode acontecer sobre a fala que a criança produz ao brincar, relacionada

a seu mito familiar ou ao enredo da brincadeira, ou sobre elementos da própria

brincadeira, quando tal fala não é produzida. Importa lembrar que, assim como

com adultos, a interpretação pretendida com a criança deve sempre apontar para

o significante, evitando o engodo de uma perspectiva imaginária.

A criança ocupa um lugar que já foi antecipado pela transmissão simbólica

realizada pelos pais, sem plenas condições de sustentá-lo, não sendo, portanto,
149

totalmente responsável por seu ato, posição que a leva a conjugar as próprias

ações no futuro – vou ser médico, vou ser jogador de futebol, vou casar com você

etc. – ou no chamado ‘futuro anterior’ 38 , geralmente aplicado à elaboração da

brincadeira – agora eu era o papai e você era a mamãe, eu era o médico e você

era o paciente etc.

Tais construções linguageiras revelam uma oposição significativa implícita

em uma enunciação presente que, contudo, remete-se ao passado, apontando

assim o espaço de fantasia no qual a criança pode responsabilizar-se por seu

próprio ato. Enquanto no chamado ‘futuro anterior’ da língua francesa tem-se a

antecipação do futuro no tempo presente, em seu correspondente na língua

portuguesa, tem-se a presentificação de um passado: de um modo ou de outro,

essas flagrantes discrepâncias temporais conjugadas prestam-se à criação de um

‘tempo verbal’ que atenda às necessidades de enunciação da criança. Noutros

termos, a aparente inconsistência temporal dessas conjugações corresponde, em

verdade, a uma plasticidade temporal que a criança manipula com o intento de

enunciar-se. Nas palavras de Jerusalinsky, “uma criança suporta em seu brincar o

dizer do que ainda não pode falar”. (1999, p.43).

A criança está assujeitada a esse futuro que lhe é antecipado, encontrando

em seu ‘faz de conta’ um modo de ‘fazer contar’ sua palavra e seu ato para o

Outro. Nesse sentido, o psicanalista, seja no engajamento efetivo ou na simples

‘escuta’, considera o jogo da criança na cena analítica como material para

interpretação.

Retomando a escanção proposta no capítulo dois, tem-se que a ‘criança

pequena’, alienada à dialética da frustração e normalmente não-alfabetizada,


38
Tempo verbal da língua francesa cuja formulação mais próxima em português seria o pretérito imperfeito
referido a eventos atuais.
150

oferece um campo mais limitado para a interpretação, que então se realiza mais

comumente por meio da própria brincadeira. Na análise de R., por exemplo, o

analista realizou interpretações a partir do lugar assumido nas cenas vividas com

a criança em torno da atividade de alimentação. Ao se oferecer como um outro

Outro, referido ao desejo do analista, ajudou a criança a superar o impasse diante

de seu Outro primordial de modo a seguir na construção de sua neurose.

A ‘criança edípica’, já iniciando seu contato com os enigmas da língua,

começa a abrir espaço para o jogo do equívoco, embora ainda com limitações. É

um momento de franca investigação da vida, com produção de teorias e mitos

para contornar pontos de impossibilidade que emergem do discurso tecido pela

criança, servindo de material para a interpretação do analista. O caso “pequeno

Hans” é bastante rico nesse sentido, com franca produção de fantasias pela

criança que vão oferecendo material e ocasião para a intervenção do ‘analista’.

Com a ‘criança na latência’, já dominando a escrita, a interpretação ganha

uma complexidade próxima à dos adultos. Embora a brincadeira ainda seja

bastante presente, essas crianças geralmente já conseguem sustentar uma livre-

associação na fala. A partir da nomeação dos personagens da história, pai-medo

e mãe-estranha, foi possível a uma criança de nove anos perseguir associações

com relação a esses significantes, medo e estranha, que possibilitaram uma

construção sobre o desejo do Outro sustentado pelos pais, ao qual ela até então

respondera apenas com seus sintomas. Desse modo, o sujeito confeccionou uma

nova articulação significante, liberando-se do sofrimento causado pelo sintoma.

Finalmente, considerando-se as características do sujeito na infância, cabe

lembrar a pergunta de Stevens (s/d, p.13): pode ela engajar-se no ato analítico?

Nada impede estruturalmente que isso aconteça, entretanto é preciso relevar a


151

particularidade da relação da criança com o ato. Sem o direito de realizar

qualquer ato - não pode decidir deixar os pais, por exemplo 39 - tem em suspenso

a conclusão de um dizer por um ato. Tal situação traz dificuldades para o

engajamento da criança na análise, embora não se constitua em um

impedimento. Como já visto, a criança não vem para a análise por sua própria

vontade, colocando uma questão com relação à demanda, o pagamento também

não está em suas mãos, assim como a decisão de dar continuidade ou não à

análise também não lhe cabe, pelo menos em princípio, embora sua palavra

sobre esse ponto deva ser levada em conta pelo analista.

A palavra irresponsável da criança – e aqui é preciso introduzir


nuances dependendo da idade – é solidária de uma fronteira
fluida entre a fantasia, não digo fantasma, e a realidade. [...] mas
sua maior liberdade fabulatória, que paralisa às vezes o analista,
é o estigma de um defeito na sua constituição da realidade, a
qual supõe, no dizer de Freud, uma dessexualização, e nos
termos de Lacan, uma extração do objeto a partir da qual o
fantasma toma consistência ao mesmo tempo em que a realidade
(SOLER, 1994, p.10-11).

O fato de a criança ter uma relação diferente do adulto com o ato não

implica que ela não seja um sujeito do inconsciente. Sua posição como um sujeito

em constituição tem o importante diferencial de levá-la a não decidir e assumir os

próprios atos, na maioria das vezes assumidos pelo Outro, agente de linguagem,

encarnado pelos pais. Obviamente, tal situação a deixa numa posição delicada

com relação ao ato, trazendo conseqüências ao fazer psicanalítico.

Nesse sentido, como já apontado, o ato da criança é produzido sobretudo

na brincadeira através da qual pode ter algum valor para o Outro, enquanto o ato

do analista refere-se à sustentação e direcionamento da análise.

39
Atualmente não é raro tomarmos conhecimento de crianças que abandonam suas casas e seus pais, mas
pela sua posição no laço social, uma vez encontrada, é restituída à família, ou a alguma instituição que teria
como função educá-la e protegê-la.
152

6 O FIM DA ANÁLISE

Qual o tempo de uma análise? Pergunta tão inquietante quanto inevitável,

cuja resposta se revela apenas a posteriori. Freud já aconselhava em todo caso a

prevenir o paciente de que se trata de um período longo, idéia que merece ser

lembrada sobretudo diante do valor conferido à rapidez em nossa atualidade

tecnológica e globalizada. Mas o quê afinal é preciso para que um fim de análise

aconteça? Freud, no texto Análise terminável ou interminável, 1937, levanta a

questão: “existe algo que se pode chamar de término de uma análise – há alguma

possibilidade de levar uma análise a tal término?” Propõe duas condições para

tanto: a primeira se refere a mudanças no paciente, que “não mais esteja

sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições”; e a

segunda cabe ao julgamento do analista, que deve avaliar se o inconsciente,

material recalcado e ininteligível, tornou-se consciente, esclarecido, com as

resistências internas suficientemente vencidas, não havendo portanto a

“necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço”.

Nesse texto, Freud procura estabelecer os limites da eficácia do tratamento

analítico para circunscrever seu possível término. Refere-se à análise como uma

profissão impossível, que a priori pode-se estar seguro de chegar a resultados

insatisfatórios, já que toda e qualquer intervenção só terá efeitos com o

engajamento do sujeito. De qualquer modo, a possibilidade de condução da

análise a seu termo, que equivaleria ao encontro com o rochedo da castração,

vivido de maneiras distintas pelo homem e pela mulher, depende radicalmente do

analista, que necessita qualificar-se para esse ofício a partir da própria análise.
153

Poder-se-ia abreviar o processo analítico através de algum artifício? -

pergunta-se Freud. Não! Poder-se-ia almejar uma cura definitiva? Bem, a cura

definitiva seria uma cura da neurose. Freud argumenta que a causa da neurose

corresponde ou a uma experiência traumática, que embora traga sofrimento e

sintomas preserva o eu, sendo mais susceptível ao tratamento analítico; ou a um

conflito com a pulsão, diante do qual o eu se altera para defender-se, trazendo

então maiores resistências ao tratamento. Embora admita a hipótese de cura da

neurose, considera a possibilidade de conflitos latentes, não abordados na

análise, eclodirem posteriormente, assim como o risco de uma vivência de

situações traumáticas, após o término da análise, desencadear novamente uma

formação de sintomas.

O percurso realizado por este trabalho aponta justamente para o fato de

que essas duas causas da neurose apresentadas por Freud, a experiência

traumática e o conflito com a pulsão, correspondem, na verdade, a uma só: é a

pulsão sexual que traumatiza. Noutros termos, o encontro com a sexualidade é

sempre um mau encontro necessário ao surgimento do sujeito, definidor de um

modo de gozo, embora haja uma indeterminação de quando e como tal encontro

acontece.

Freud assinalou pontos fundamentais para a discussão sobre o final da

análise, a partir dos quais Lacan realizou um grande esforço de formalização

teórica, articulando à questão da formação do analista. Lacan rompeu com

padrões já instituídos, formulando novos dispositivos para conceber as

qualificações necessárias à ocupação do lugar de analista. O principal deles é o

passe, criado para verificar o que fundamenta a passagem da posição de

analisante à de analista. “Nessa reviravolta em que o sujeito vê soçobrar a


154

segurança que extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela

para o real, o que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a

de um des-ser.” (LACAN, 1967, p.259). Contudo a experiência do passe não

coincide necessariamente com o fim da análise, e o que importa nesse momento

não é a formação do analista, mas a noção de final de análise para se refletir até

onde pode ir o tratamento de uma criança.

Observam-se três momentos de elaboração teórica sobre o final de análise

no ensino de Lacan. O primeiro, freudiano, consiste na interpretação do sintoma,

operação realizada no eixo significante que, embora permita ao sintoma adquirir

significação, deslocar-se, desaparecer, corresponde à vertente da análise como

deciframento do inconsciente, sendo assim interminável, dada a própria estrutura

da linguagem.

O segundo momento versa sobre a travessia da fantasia, formulação

possível a partir da invenção do objeto a, que escapa ao eixo significante.

Atravessar a fantasia é ter acesso ao outro pólo elidido, passando

necessariamente pela função de enodamento dos registros presentes na fantasia

onde se inscreve o desejo. “O final da análise consiste na queda do sujeito

suposto saber e sua redução ao advento desse objeto ‘a’, como causa da divisão

do sujeito, que vem ao seu lugar.” O analista passa de uma posição inicial de

significante do Outro para objeto a, resto da operação do ato analítico. “O objeto

pequeno a é a realização desse tipo de de-ser que atinge o sujeito suposto

saber.” Do lado do analisante, ao término da tarefa analítica, o sujeito se realiza

na castração, tomada em sua dimensão de experiência subjetiva, “enquanto

faltante ao gozo da união sexual”. (Lacan, 1967/68, p.89-97).


155

A última formulação se refere ao fim da análise como identificação ao

sinthoma, operação que traria uma estabilização, não no sentido de adaptação,

mas como uma formação psíquica que não faz divisão, que não despedaça.

Como entender essa última à luz das anteriores? O sintoma como

resultado do retorno de um elemento recalcado por se encontrar em desacordo

com o eu, é, assim, uma metáfora que aparece a partir de uma rejeição de gozo.

O sujeito procura a análise acreditando existir no sintoma um saber a ser

decifrado junto ao analista na busca pela cura do sofrimento. Essa análise se

desenrola no campo simbólico e, ainda que se possa terminá-la, não teria

propriamente um fim.

Lacan avança no entendimento do sintoma, ressaltando o ponto de fixação

de gozo nele existente, real responsável por um certo modo de gozo 40 . Embora

se manifeste no simbólico, o sintoma passa então a ser definido como função de

gozo da letra, formulação que não invalida a anterior, do sintoma como metáfora,

mas traz um acento na escritura, na face real do sintoma.

Se colocarmos o inconsciente como linguagem na conta do


simbólico, o sintoma será real por duplo motivo, por causa do
gozo propriamente dito, que não é simbólico, e por causa da
estrutura da letra, que, como idêntica a si mesma, é um
significante fora do simbólico, realizado. (SOLER, 1995, p.76).

Nesse sentido, o objetivo da análise é atingir o ‘núcleo de gozo do sintoma’,

chegar a essa formação mínima, ponto de ancoragem real que sustenta o sujeito.

“Trata-se na psicanálise, de despir o sintoma de sua mentira significante e de

reduzi-lo a seu ser de gozo, sempre idêntico a ele mesmo.” (SOLER, 1995,

p.103).

40
Cf. capítulo quatro.
156

É com esse ponto irredutível, núcleo do sintoma onde se localiza uma

fixação de gozo, que o sujeito se identifica no final da análise, o qual corresponde,

então, a “consentir, reconhecer que [o sintoma] é o modo de gozo central do

sujeito, reduzido, único e privilegiado”. (SOLER, 1995, p.95). Para a autora, essa

última formulação de Lacan apresenta “convergências parciais, embora

verdadeiras” com a proposta de Freud presente em Análise terminável ou

interminável, de que o fim de análise corresponde a “uma revisão das posições do

sujeito quanto à pulsão, notando que assumir ou rejeitar o que descobriu de seu

inconsciente é uma escolha deixada para o sujeito” (1995, p.65), que se aproxima

daquela em que o sujeito se identifica com o modo de gozo revelado pelo próprio

sintoma.

A identificação com o sintoma consiste assim em assumir tal gozo,

definindo uma posição que situa o sujeito no sexual.

Quando Lacan fala de um fim por identificação com o sintoma,


não designa um fim de impotência próprio de um determinado
sujeito, mas um fim de acordo com o impossível da relação
sexual. Um impossível que valha para qualquer sujeito, e não
para um em particular [...] sintoma preenche a falta da relação
sexual. (SOLER, 1995, p99).

O sintoma que traz o sujeito à análise, sintoma clínico, causa de sofrimento

e meio pelo qual o sujeito goza, contém esse núcleo, que pode ser alcançado a

partir de um processo de ‘decantação’ do próprio sintoma. Trata-se portanto de

duas formações distintas partindo de uma mesma origem, ‘feitas’ do mesmo

material. Lacan, no seminário Sinthoma, 1975/76, passa então a usar a escrita

com th para denominar especificamente esse núcleo irredutível, considerado o

quarto anel do nó que fará consistir RSI de maneira singular, articulando o final da
157

análise com o saber lidar com esse sinthoma, entendido assim como síntese do

homem, aquilo que preencheria a falta da relação sexual.

Assim, o sinthome é um núcleo mais radical que o sintoma ou a


fantasia. Não pode ser interpretado como o sintoma, nem
atravessado como a fantasia. O que fazer com ele, portanto? O
sinthome representa o limite do ato analítico. Atingimos o término
do processo analítico: no real do sintoma, encontra-se o esteio de
seu ser. Ali, onde o sintoma estava, reconheceremos o elemento
que garante sua consistência. (PEREIRA, 2003, p.15).

A partir dessas referências, Harari (2002, p.115) afirma que “a proposta da

análise é não gozar por meio do sintoma, mas gozar com o sinthoma”, formulação

que aponta para a responsabilidade e o comprometimento do sujeito com seu

modo de gozo como produto da análise.

Existiriam na clínica com crianças elementos que permitam estar de acordo

com essas formulações sobre o final de análise? Qual seria o fim da análise da

criança, seja como término ou finalidade?

Primeiramente, o que se pode assinalar é que o final de análise com

crianças implica a concepção freudiana de interpretação do sintoma, uma vez que

os avanços lacanianos com relação à travessia da fantasia e identificação com o

sinthoma não se aplicam à infância, tempo da construção fantasmática e

enodamento primário dos registros. Nesse sentido, cabe então ao analista lidar

com o sintoma como uma solução precária e parcial inventada pela criança para

fazer frente aos impasses vividos na construção de sua neurose infantil. Seu

sintoma pode, assim, ser considerado como a melhor resposta à pergunta sobre o

desejo da mãe, uma vez que a questão sobre o que quer uma mulher ainda não

tem uma formulação consistente.


158

Basta se tomar a criança como analisante para notar de imediato o

elemento tempo envolvido na constituição do sujeito: como articular tal tempo com

o tempo do tratamento?

O encontro efetivo com o Outro sexo apenas pode se realizar a partir da

adolescência, e a criança, numa posição incompletamente decidida em relação ao

gozo, já apresenta assim um limite estrutural para a análise. “Há um momento em

que a análise de crianças pára, e essa parada se localiza em relação à estrutura

da relação amorosa que será determinante mais tarde.” (PORGE, 1998, p.18).

Existe portanto algo de sempre inacabado na análise de uma criança, por uma

necessidade estrutural, o que, contudo não implica a impossibilidade de uma

conclusão. Naturalmente, as elaborações que foram suficientes para uma criança

retomar a construção de sua neurose infantil em um certo momento são

provisórias, embora determinantes, com relação ao sinthoma que o sujeito

construirá na adolescência. Nesse sentido, retomando Porge, “como terminar de

tal modo que isso fique inacabado de uma boa maneira?” Para o autor, chega-se

ao fim da análise com a criança com a dissolução da neurose de transferência,

deixando intocada a análise da transferência amorosa criança-analista, já que ela

“não tem acesso àquilo que, no encontro sexual e por ele, vai colocá-la na

determinação da fórmula ‘não há relação sexual’”. (1998, p.17).

Soler (1994) ressalta a importância de não se violar a análise de uma

criança com uma conclusão definitiva sobre o que está, justamente, ainda

indefinido. O analista causa o trabalho do simbólico para que o ‘programa de

castração’ da estrutura seja executado, ajudando assim a corrigir as fixações

sintomáticas de gozo, ao mesmo tempo em que não deixa de reconhecer a

incompletude própria do inacabado.


159

A criança inicia uma análise quando dirige seu sintoma ao analista como

Outro a quem supõe um saber. O sintoma na infância remete a pontos isolados

da construção da estrutura, vem fazer suplência a falhas no enodamento primário

dos registros, e não à inexistência da relação sexual, ainda que o tempo todo

esteja remetido às vicissitudes da transmissão da falta. Permitir que o excesso de

gozo revelado pelo sintoma não impeça a construção da neurose infantil é o

objetivo da análise com crianças. O analista então ocupa o lugar de causa e

suporte da construção da fantasia da criança, permitindo o acesso ao saber

necessário para solucionar o impasse sinalizado pelo sintoma, de modo a dar

continuidade na construção da neurose infantil, o que se revela assim como a

finalidade da psicanálise com crianças. E quanto ao término? Seria possível

estabelecer condições para definir o momento de encerramento?

Toda precaução é pouca quando se trata de fixar critérios de


término de análise pois, quaisquer que sejam, implicariam a
submissão a um novo universal. Não pode haver senão critérios
para o término de uma análise, infinitamente variável para cada
análise. (BRAUSTEIN, 1999, p.243).

O final da análise de um sujeito é sempre absolutamente singular, assim

como a análise de uma criança é sempre, em certo sentido, inacabada. Tais

constatações não impedem, dentro dos objetivos desse trabalho, de sistematizar

elementos para a formulação de finalizações possíveis e pertinentes.

Para refletir sobre o fim de análise com crianças, formulou-se aqui uma

suposta discussão a propósito do caso ‘pequeno Hans’ entre Freud e Lacan.

Segundo Freud (1909, p.104-107), com a última fantasia de Hans - o

bombeiro que teria lhe dado um traseiro e um pipi maiores - a análise teria

chegado a uma conclusão satisfatória, pois “a ansiedade que foi provocada pelo

seu complexo de castração foi superada, e suas dolorosas expectativas


160

receberam uma transformação mais feliz”. Afirma que esse “pequeno Édipo” teria,

assim, encontrado uma solução mais feliz do que a prescrita pelo destino e “em

vez de colocar seu pai fora do caminho, concedeu-lhe a mesma felicidade que ele

mesmo desejava: fez dele um avô e casou-o com a sua própria mãe também.”

Mas para Lacan (1956/57, p.394-395), a elegante solução de Hans não

encontra na própria obra de Freud nada que a sustente como uma solução típica

do complexo de Édipo. “O terceiro que não achou no pai, ele o encontra na avó”,

desdobrando o lugar da mãe. “É precisamente na medida em que, por trás da

mãe, acresce-se uma segunda, que o pequeno Hans instaura a si mesmo numa

paternidade [...] imaginária”.

A análise de Hans se mostra portanto insatisfatória na leitura de Lacan,

pois ao invés do encontro com a impossibilidade formulada pela castração,

permitiu uma manobra que ludibriasse tanto o pai quanto o filho, preservando-os

imaginariamente da inexistência da relação sexual, o que certamente marcou a

posição sexual de Hans, definindo seu modo de relação com as mulheres.

O parceiro feminino não terá sido engendrado a partir da mãe, e


sim a partir desses filhos imaginários que ele pode fazer na mãe,
eles mesmos herdeiros desse falo em torno do qual girou todo o
jogo primitivo da relação de amor, da captação do amor, em
direção à mãe. (LACAN, 1956/57, p.396).

Freud e Lacan diferem quanto ao que seria um final de análise satisfatório

para o caso Hans, pois enquanto um se contenta com o desaparecimento do

sintoma por meio de uma solução imaginária do Édipo, o outro aponta a

necessidade da experiência subjetiva da castração para legalizar as relações, o

que permitiria assim a circulação do falo, lembrando que nesse ponto da

formulação lacaniana, é a teoria fálica que permite a leitura do lugar da criança.


161

Laurent, no texto Existe um final de análise para as crianças, 1994, apóia-

se principalmente nos escritos de Lacan Alocução sobre as psicoses da criança,

1968, e Nota sobre a criança, 1969, para trazer contribuições preciosas a essa

problemática. Compreende o termo ‘pessoa grande’, mencionado por Lacan,

como o “sujeito que poderia fazer-se responsável por seu gozo”, afirmando que “a

dignidade da psicanálise, se é que existe alguma, é a de produzir grandes

personnes”. Quando Lacan toma o pai “não tanto em termos de relação ao falo,

mas em relação com o objeto a” passa a compreender que o sujeito se define não

“a partir do significante desse desejo [desejo da mãe], que é o falo, mas a partir

do resto”. (1994, p.30).

Dessa maneira, Laurent se refere à báscula teórica realizada por Lacan

com relação ao estatuto da criança, que passa de versão do falo à de objeto a,

extraindo conseqüências para o entendimento do final de análise.

Em um caso é a criança quem pode responder do ponto de vista


fálico e a resposta que pode dar determina o final. Quando a
criança tem uma versão do falo, não vale a pena continuar, já é o
suficiente e ainda que tenha que colocá-la à prova, isto já basta.
No segundo caso, será necessário que a criança tenha uma
versão do objeto a. (LAURENT, 1994, p.31-32).

A construção da fantasia na infância garante que a criança não permaneça

como objeto para o gozo da mãe, promovendo sua separação desse lugar, ainda

que tal formação não tenha alcançado a estabilidade e consistência possíveis no

adulto. Para Laurent, essa fantasia fundamental corresponde a “construções de

ficção” que possibilitem à criança responder à pergunta sobre o gozo da mãe.

Nesse sentido, o tratamento de uma criança corresponderia então a uma oferta

de condições para que ela formule sua versão de objeto a: “um modo no qual a

criança, inclusive a criança psicótica, venha a dar uma posição, não de seu
162

inconsciente mas uma posição de gozo.” (1994, p.32). A ficção construída por

Hans, ao contrário, mantém-no justamente comprometido com o gozo da mãe.

Reconhece-se então, com Laurent, uma primeira condição para o final de

análise com uma criança, qual seja, o fato de “que o sujeito tenha construído

suficientemente o fantasma que o anima, com a versão do objeto que dispõe

segundo a idade que tem”. (LAURENT, 1994, p.32). Construindo tal ficção a

criança garante seu descolamento da posição de objeto condensador de gozo

para a mãe, passando assim a assumir sua própria posição de gozo, ainda que

incompletamente decidida. Com esse rearranjo de lugares, essencialmente

estrutural, ocorre uma destituição da posição subjetiva da criança na fantasia dos

pais, levando-a enfim a separar-se do gozo do Outro. Essa tarefa da criança

corresponde ao que Lacan já mencionara como fomentação mítica 41 , ou seja, a

estruturação de um sistema simbólico como tentativa de articular a solução de um

problema. Se a ficção por excelência é a fantasia, cabe ao analista criar as

condições para que ela aconteça.

Nota-se na clínica que essa destituição da posição da criança na fantasia

parental 42 tem em geral duas possíveis conseqüências: ou precipita um pedido de

análise por parte de um dos pais, ou o Outro parental em jogo, ao libertar a

criança desse lugar, encontra um novo suporte para seu objeto, de modo a não

desestabilizar significativamente sua própria equação fantasmática. A mãe, por

exemplo, pode voltar a investir em seu trabalho, ou casar-se novamente, ou,

ainda, conceber um outro filho. As intervenções junto aos pais durante o

tratamento são fundamentais para ajudá-los nessa direção.

41
Cf. capítulo dois, p.66.
42
Fantasia parental nesse sentido pode referir-se aos pais enquanto casal, ou somente à mãe, dependendo
do caso, como discutido no capítulo quatro.
163

Rassial (2004) 43 parte desses mesmos elementos teóricos para afirmar que

o objetivo da análise da criança seria então aliviar o sujeito da dependência de

seu objeto, possibilitando-lhe assim um ‘ganho de charme’. Nesse sentido,

observa alguns efeitos do final do processo analítico com a criança: o terapêutico,

que consiste no desvencilhar-se do sintoma então obsoleto para a infelicidade

neurótica, o ganho de laicidade, no sentido de se desembaraçar dos pais,

passando a desacreditar dessa figura ideal do adulto, e o didático, implicado na

construção de uma outra relação com o saber.

Ressalte-se aqui a seguinte questão: pode a criança, por estrutura,

desembaraçar-se do Outro encarnado pelos pais? Pode a demanda dirigida ao

Outro esvaziar-se na infância?

A entrada no mundo se dá pela demanda, assim como é também por meio

de uma demanda que se caracteriza o momento da entrada no processo analítico.

Segundo Miller, essa demanda se modifica durante o tratamento, pois o sujeito

apreende que toda demanda é fundamentalmente sem saída. O término de uma

análise consistiria então no desaparecimento radical da demanda, ou seja, o

desaparecimento do Outro a quem dirigir o pedido para suprir a falta,

correspondendo assim à aceitação da castração, a partir da qual o sujeito vive

uma importante destituição subjetiva. (MILLER,1995, 28-32).

Esse desaparecimento da demanda é, contudo, apenas um evento,

marcadamente pontual, que, embora produza efeitos permanentes na posição do

sujeito com relação ao Outro, não corresponde propriamente a um estado que

possa ser alcançado, mesmo quando se trata de uma ‘pessoa grande’. A função

do analista implica justamente essa habilidade, elaborada a partir da própria

43
Em seminário na USP, 21/08/2004.
164

análise, de [des]ocupar o lugar do Outro para o esgotamento da demanda do

analisante, sobretudo no final de uma análise. Importa lembrar que, embora essa

ocorrência conduza o sujeito efetivamente a uma outra posição, na qual não mais

se encontre como prisioneiro da demanda, não erradica, contudo, a formulação

de demandas no mundo. Caso contrário, poder-se-ia ser analista, enquanto se

sabe, com Lacan, que o analista é exatamente um des-ser.

O que acontece no final de uma análise é então um desinflamento do

Outro, uma descrença de que se poderia ali encontrar o objeto perdido, aquilo que

em falta causa o sujeito. Compreende-se assim, de modo relativo, a possível

independência com relação ao objeto.

Ainda que a criança possa minimizar o peso do Outro, relativizando seu

papel, permanecerá estruturalmente em uma posição de dependência desse

Outro, que assim mantém sempre uma certa consistência. Entende-se aqui que a

criança trazida para análise volta-se ao analista porque não encontrou no Outro

parental, esse mesmo que a trouxe, as respostas necessárias às próprias

elaborações, seja por uma carência de elementos ou por um excesso da

presença desse Outro. Diante dessa espécie de curto-circuito no jogo da

demanda e do desejo, o analista se apresenta como um bom entendedor da

mensagem da criança, um outro Outro que poderia auxiliá-la a retomar a

construção da neurose infantil. O término da análise seria, então, não somente a

resolução do impasse responsável pelo sintoma, mas também a restituição dos

pais no lugar de suposto saber para a criança. Nesse sentido, o final de análise

para a criança não seria um desaparecimento da demanda, mas o

reendereçamento da mesma ao Outro parental, lançando ao futuro a possibilidade

do sujeito voltar à análise. O acompanhamento da construção da neurose infantil


165

torna-se indispensável somente quando houver riscos flagrantes para a

constituição do sujeito, seja pela fragilidade das construções da criança, seja pelo

fato de os pais demonstrarem-se insuficientes para [re]assumirem a função de

suposto saber. Delineia-se, assim, uma segunda condição para o encerramento

do tratamento da criança, qual seja, a possibilidade de os pais recuperarem o

lugar de sujeito suposto saber, sendo bons entendedores da mensagem da

criança.

Importa ressaltar que a análise com uma criança pode-se interromper a

qualquer momento, independentemente da relação analítica, uma vez que, em

última instância, é uma decisão dos pais. Em geral, a tendência deles é demandar

que a análise termine o quanto antes, seja devido a todos os inconvenientes e

incômodos que traz ao núcleo familiar, seja pelo legítimo desejo de que a criança

viva melhor.

Nesse sentido, a interrupção pode sobrevir: i) a partir da melhora da

criança - situação que comumente provoca um ‘rearranjo’ no Outro parental - mas

sem levar em conta o processo analítico, uma vez que o final dos distúrbios não

coincide necessariamente com o fim da análise; ii) se não se nota na criança uma

melhora, pois é difícil aos pais renovarem a transferência quando o sintoma

parece não ceder, ainda que o analista advirta que esse não é o único parâmetro

para se avaliar o avanço de um tratamento; iii) quando a criança aparenta piorar,

exibindo uma intensificação do sintoma que não necessariamente implica a

ineficácia do tratamento, podendo justamente apontar para o uso que a criança

está fazendo do espaço analítico para realizar uma construção mais elaborada da

qual, somente num segundo momento, poderá abrir mão.


166

Para que uma análise chegue ao seu término, no sentido de uma

conclusão do processo, não basta, portanto, que a criança esteja engajada: é vital

que os pais não interrompam o tratamento. Para tanto, é fundamental que o

analista dê sustentação a um campo transferencial no qual também os pais

estejam implicados.

A ‘criança pequena’, que vive ainda a relação de frustração com a mãe,

quando algo impede que a dialética se instale, trazendo um excesso de gozo do

Outro, alimentando sintomas, a restauração da dialética pode ser suficiente para o

encerramento da análise, o que aconteceu com R., cujo sintoma, anorexia,

revelava justamente o fracasso do jogo do engodo da criança com seu Outro

primordial. Uma vez que o analista se oferece como uma outra versão de Outro,

sustentado no desejo de analista, propicia à criança encontrar elementos que

permitem retomar a construção de sua fantasia. O sintoma cede e os pais,

principalmente a mãe, recupera seu lugar de sujeito suposto saber para a criança.

Na ‘criança edípica’, o final de análise, como destacou Lacan a propósito

do Hans, deve ter uma saída simbólica, no sentido da transmissão da castração,

permitindo a construção da fantasia e legalizando as trocas nas relações da

criança com o Outro. A discussão feita mais acima sobre o final da análise do

caso Hans ilustra este momento.

Na latência, ainda que a criança já tenha construído sua fantasia, essa

construção pode apresentar uma certa inconsistência, que leva a criança a

inventar sintomas na tentativa de se sustentar subjetivamente. O final de análise

seria tornar essa construção mais estável, alcançando finalmente o

apaziguamento necessário para a criança poder se lançar em outras direções. M.

constrói, em seu processo analítico, uma ficção, a partir da apropriação de uma


167

questão significante veiculada pelo pai – seu receio de que a convivência com o

casal formado por sua mãe e a namorada pudesse atrapalhar sua formação

psíquica. M. inventa um personagem, que “encontra no consultório do analista”,

uma formiga que nomeia Fú, confeccionada com um pedaço de papel, que

inicialmente tem a função de facilitar o endereçamento de suas questões ao

analista. Aos poucos este personagem vai ganhando expressão, aparecem seus

pais, Fé e Fó, um irmão mais novo, o Fí e uma irmã mais velha, a Fá (M. é a filha

do meio, tendo duas irmãs). Constrói uma casa para esta família habitar, a escola

onde vão diariamente os três irmãos, além do local de trabalho dos pais, que se

localiza na mesma rua da escola. Fala sobre as diferenças e semelhanças dessa

família com a sua, o que permite a veiculação de suas demandas em relação aos

membros de sua família. Nos últimos meses de trabalho, M. toma para si a tarefa

de escrever um livro sobre a história desses personagens, um livro bastante

singular, uma vez que ao invés de texto, existe uma legenda no início do livro com

as figuras e o que elas representam, o que permite a leitura da história. É

interessante notar que não existe propriamente um final na história, M. apresenta

os personagens, coloca-os em movimento e, uma vez que não precisam mais

dela para existir, fica indicada a continuidade autônoma de suas vidas, assim

acaba o livro. Na capa, aparece o nome da história – A História das Fús, o nome

de M. como desenhista e escritora, ao lado do nome do analista, editor. Através

da construção dessa ficção, que não se configura em uma resistência em aceitar

a nova configuração familiar, M. coloca novamente em relação o casal parental,

constrói uma resposta para o enigma do desejo do Outro, recuperando a

possibilidade de viver bem e investir em outros objetos. Trata-se de uma

elaboração singular em que é possível o emparelhamento do casal parental em


168

termos significantes, permitindo que M. viva bem com sua nova configuração

familiar.

De modo geral, o objetivo da análise da criança seria permitir a ela separar-

se do objeto de gozo dos pais, ocupando um outro lugar por meio da construção

de uma posição própria diante do desejo do Outro, o que só é possível a partir da

aceitação da falta, nas versões possíveis a cada tempo da constituição.


169

7 ÉTICA COMO MANDAMENTO TÉCNICO

Discutiu-se no primeiro capítulo deste trabalho como a experiência clínica

impôs ao inventor da psicanálise um modelo de procedimento, requerendo-lhe

uma sustentação teórica compatível, desafio a que todo analista está

permanentemente confrontado em sua práxis. Contudo a posição do analista, ali

onde a ética da psicanálise se desvela, é o que de fato opera a interface entre

teoria e técnica.

A Ética é o estudo das apreciações que se referem à conduta humana,

campo do julgamento dos atos, diferente da Moral, que corresponde ao conjunto

de regras de conduta consideradas válidas em determinado sistema de relações.

Freud não trabalhou explicitamente essa diferença, mas sua obra permite

concluir que a psicanálise não se ocupa de questões morais, enfatizando

outrossim a ética, que assume contornos bastante específicos. A preocupação

moral não é estrangeira ao trabalho do analista, mas justamente nesse âmbito é

que deve reconhecer que “o bem e o mal de uma vida não se decidem a partir de

princípios preestabelecidos; eles se decidem na complexidade da própria vida da

qual se trata.” (CALLIGARIS, 2004, p.12). Não cabe, portanto, ao analista

formular um juízo moral, pré ou pós-concebido, o que de outro modo lhe impediria

de desempenhar sua função.

Como apreender esse campo ético? “Se há uma ética da psicanálise é na

medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece algo

que se coloca como medida de nossa ação.” (LACAN, 1959/60, p.374). O que

seria essa medida?


170

O homem como sujeito de um desejo é um ser em falta. Essa redundância

envolvendo falta e desejo, equivalentes no vocabulário psicanalítico, é aqui

justificada pelo fato de, sendo tão recorrente, sobretudo no campo lacaniano, ter-

se transformado numa espécie de obviedade oculta. Reafirmar explicitamente que

o homem é em falta corresponde a ratificar de modo inequívoco o próprio cerne

da questão ética na psicanálise, em uma contraposição, tão difícil quanto

necessária, aos valores morais apregoados em nossa atualidade. Segundo

Lacan, enquanto a moral é definida a partir dos ideais de eu, a ética está

implicada nas relações do sujeito com o desejo inconsciente. Uma ação humana

só pode ser então devidamente avaliada tomando como princípio a singularidade

da situação. A originalidade da contribuição psicanalítica reside justamente em

assumir o desejo como referência ética central e, nesse sentido, a verdadeira

medida de nossa ação.

A indagação “Agiste em conformidade com teu desejo?” (LACAN,1959/60,

p.373) encerra assim uma questão crucial.

Diante do desejo o sujeito faz uma escolha entre a responsabilidade e a

culpa. A culpa é sustentada pelo assujeitamento aos ideais morais, diante do que

o sujeito capitula ao desejo; a responsabilidade, por outro lado, consiste em

responder pelo seu desejo inconsciente. A ética pode assim ser definida como a

articulação entre ação e o desejo inconsciente que a habita, o que em última

análise equivale dizer que a ética é fundada no desejo.

Nesse sentido, a neurose não é uma enfermidade, mas um mal ético.

(BRAUNSTEIN, 1999, p.220). O autor explica tal assertiva por meio de uma

metáfora na qual a vida corresponderia a um jogo. O sujeito deve jogar quando é

sua vez, não pode passá-la como, por exemplo, no jogo de xadrez. Fazer a
171

jogada de acordo com o desejo, submetendo-se às conseqüências, implica

aceitar uma limitação de gozo em função de um outro caminho na escala invertida

da Lei do desejo. O sujeito deve jogar e o saldo da ação é uma perda irreparável.

Quando não joga, manifesta impotência ou renúncia com relação a sua própria

posição, o que configura um mal ético. Se quem joga pode perder, quem não joga

já está perdendo e, nesse sentido, o verdadeiro jogador não joga tanto para

‘ganhar’, quanto para ‘continuar jogando’. A análise propõe ao sujeito jogar o jogo,

esse jogo inverso do ‘quem perde ganha’, resguardando a integridade do desejo

como única alternativa para um posicionamento ético frente à própria existência.

“[...]o tratamento analítico tende a reconquistar a terra estrangeira interior,

fazendo-a passar pelo diafragma da palavra inédita e insólita que invente uma

saída para o desejo pela via do ato afirmativo da particularidade subjetiva.”

(BRAUNSTEIN, 1999, p.227).

Obviamente, a ética na psicanálise não se confunde com uma ética dos

costumes, uma redução historicamente determinada destinada à crítica da moral

ao serviço dos bens, mas, justamente ao contrário, remonta a um

comprometimento radical que implica a relação entre a ação e o desejo que a

anima. “Não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço ao acesso

ao desejo - na medida em que esse desejo, nós o definimos alhures como a

metonímia de nosso ser”. (LACAN, 1959/70, p.385).

Como pode então o analista, sustentado em seu fazer pela ética da

psicanálise, acolher essa nossa recorrente demanda contemporânea por uma

mal-concebida felicidade ostensiva? Mais além, o que pode fazer quando o

aspirante a tal conquista é uma criança sofrendo a carga do discurso social

implícito na demanda parental?


172

O ideal de felicidade atualmente celebrado pela sociedade de consumo é

francamente incompatível com a idéia de regras e limites para o gozo. Essa

felicidade fantasiosa guarda a imposição de um gozo indomado, ilimitado,

absoluto, ou seja, um ‘todo-gozo’ impossível, desconsiderando, numa trágica

ironia, exatamente aquilo que de fato possibilitaria ‘algum-gozo’. Segundo Melman

(1995), essa situação é especialmente comprometedora quando se pensa na

criança, pois os pais não apenas descarregam sobre ela todo o peso desse

discurso social, mas vêem-se desamparados para agirem de outro modo. A atual

sobrevalorização da ciência, cada vez mais fortalecida como o único verdadeiro

saber, acaba por desautorizar o saber essencial que só a função paterna poderia

transmitir, e os pais, assim solapados, passam então a prometer a seus filhos

uma mentira de gozo.

Nesse sentido, percebe-se que a felicidade em nossos dias se apresenta

contaminada por um ideal perverso, de gozar a qualquer custo, sempre, mais e

melhor. Certamente, esse estado das coisas traz dificuldades para o trabalho do

analista. Contudo, a psicanálise ensina que a demanda é sempre demanda de

uma outra coisa, ou seja, uma tentativa de dizer o desejo, ainda que incompatível

com a fala. A ética do campo analítico orienta então o analista a tomar essa

demanda por felicidade, seja ela qual for, na direção de fazer deslizar o desejo na

fala. Esse posicionamento do analista é, a um só tempo, um princípio ético e um

mandamento técnico.

Tal posição é apenas possível a partir da função que exerce o analista na

direção do tratamento, qual seja, a de suporte do objeto causa de desejo. O

desejo de analista orienta-o a se presentificar como esse objeto que toca o

sujeito, suscita a fala e possibilita o desfilar do desejo pelo significante, aplacando


173

assim o sofrimento gerado pelo represamento do gozo no sintoma. Não é a via

para aquela felicidade total que prometia a existência da relação sexual, mas uma

via pela qual o Outro perde seu peso de cruz a ser carregada, trazendo a leveza,

por que não dizer, de uma certa felicidade. Uma análise visa, portanto, a permitir

a transformação da “miséria neurótica” em “infelicidade banal”, ou seja, uma

báscula da impotência ao impossível.

Não somente o que se lhe demanda, o Bem Supremo, é claro


que ele [o analista] não o tem, como sabe que não existe. Ter
levado uma análise a seu termo nada mais é do que ter
encontrado esse limite onde toda a problemática do desejo se
coloca.
Que essa problemática seja central para todo acesso a uma
realização de si mesmo, é a novidade da análise. (LACAN,
1959/60, p.359).

O que é felicidade no âmbito analítico? Qual definição de felicidade seria

cabível aos princípios éticos da psicanálise? O que os analisantes podem esperar

de uma análise, enfim?

Mezan (1996) propõe que se considere a proteção da sobrevivência

psíquica do sujeito como um valor ético-analítico fundamental. O analista não

ataca nem desacata essa proteção, mas oferece as condições para que se criem

soluções, talvez mais criativas, nas quais o amor, o trabalho e o sofrimento não

precisem mais ser temidos ou evitados, podendo então desempenhar seu papel

estruturante. Note-se aqui a ressonância do que Freud certa vez anunciou sobre o

que se poderia esperar de uma psicanálise: devolver ao analisante a capacidade

de amar e trabalhar, trabalho esse que no caso das crianças corresponde ao

brincar.

Note-se ainda uma afinidade com a formulação de Calligaris (2004), que

propõe a felicidade possível como a qualidade da experiência vivida, definida em


174

função da intensidade com a qual nos permitimos viver, para além da alegria ou

tristeza de cada momento. Nesse sentido, pode-se mesmo dizer que há algo de

moral na psicanálise, uma vez que o analista zela pela qualidade da experiência

do analisante na mesma medida em que a considera um valor.

O autor introduz assim uma noção de normalidade aceitável como meta de

cura na psicanálise por ser eticamente cabível: “nosso ideal de normalidade é o

estado em que um sujeito se permite realizar suas potencialidades, ou seja, o

estado em que nada impede que alguém viva plenamente o que lhe é possível

nos limites impostos por sua história e sua constituição.” (CALLIGARIS, 2004,

p.72-73). Para além das individualidades, o desinflamento do Outro e a

conseqüente experiência da própria pequenez humana que a análise proporciona,

tende a levar o sujeito a viver melhor.

Torna-se evidente a impostura da demanda de cura vinculada à noção de

felicidade veiculada pelos pais das crianças que procuram ajuda na psicanálise, o

que requer um posicionamento ético consistente por parte do analista, que

desvelará o elo necessário entre cura e castração, avesso em estrutura à

imposição de ideais, fazendo da psicanálise talvez a única modalidade de

psicoterapia que faz limite ao discurso cientifico, como guardiã da singularidade

da experiência humana.

7.1 O desejo do analista

Durante todo o percurso deste trabalho, destacou-se o lugar-função do

analista como o elemento central articulador dos demais tanto no estabelecimento


175

das condições para a psicanálise quanto no direcionamento do tratamento.

Considerando a importância vital dessa questão, intrinsecamente ligada ao modo

como o analista age com seu próprio ser, “cabe formular uma ética que integre as

conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do

desejo de analista.” (LACAN, 1958a, p.621).

Freud não faz nenhum tratado sobre o desejo de analista em sua obra,

mas no texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, 1912,

encontra-se um apontamento do que seria necessário por parte do analista para

que pudesse conduzir uma análise: ter passado por uma purificação analítica,

submetendo-se ele mesmo a um tratamento, tornando assim sua escuta

desembaraçada de seus próprios complexos. A partir das formulações

lacanianas, pode-se inferir que Freud estaria ali antecipando a função desejo de

analista, entendida como um dos resultados da análise do psicanalista, o principal

deles no que se refere à capacidade desse profissional para desempenhar seu

ofício.

O desejo de analista corresponde então a uma função lógica que possibilita

ao analista dirigir o tratamento, uma vez que lhe permite ocupar o lugar de

suporte do objeto causa de desejo para o analisante. Ocupando tal lugar, o

analista deixa desimpedida a via de acesso do analisante à dimensão alienante

do desejo – desejo do Outro – promovendo assim um ‘encontro com a separação’

de modo a desvelar o objeto causa de desejo. O desejo de analista, portanto, não

é desejo do Outro, ao contrário, deve apontar justamente para a inconsistência

desse Outro.

Enquanto o desejo inconsciente [desejo do Outro] é uma


pergunta, o desejo do analista é uma resposta. É uma resposta
do analisante ao sem-saída da via da demanda, uma resposta à
ausência de resposta do Outro, uma resposta ao desamparo. [...]
176

[...] é um desejo derivado do saber que não há relação sexual,


que não há Outro do Outro, que não há o ato do ato. (QUINET,
2003, p.112-115).

Torna-se óbvio que o desejo de analista não se refere ao desejo da pessoa

do psicanalista, mas exatamente a seu dever analítico, essencialmente ético, de

calar o próprio desejo enquanto sujeito, resguardando assim o lugar vazio que

permite “ao paciente demarcar o objeto de seu desejo, para além das miragens

do amor, a partir da falta de seu signo no Outro”. (COTTET, 1989, p.173). Nesse

sentido, o desejo de analista é qualificado como ‘desejo prevenido’, relevando

justamente a idéia de que não se deve desejar o impossível. (LACAN, 1959/60,

p.360).

Lacan se utiliza de uma imagem interessante para pensar o trabalho do

analista:

Um santo, para que me compreendam, não faz caridade. Antes


de mais nada ele banca o dejeto: faz descaridade. Isso para
realizar o que a estrutura impõe, permitir ao sujeito, ao sujeito do
inconsciente, tomá-lo por causa de seu desejo. [...] o santo é o
rebotalho do gozo. [...] Na verdade, o santo não se considera a
partir de méritos, o que não quer dizer que ele não tenha moral.
(1974a, p.32-34).

Essa idéia de ‘des-caridade’ pode ser compreendida como uma certa

impiedade necessária à posição do analista, um dever de coerência com a única

verdade da psicanálise, a de que não há relação sexual, uma vez que o

psiquismo só se estrutura ao redor dessa falta, única via para a instalação e

reconhecimento do desejo.

Seja na posição do analista exercendo sua função ou do adulto diante de

uma criança, esse posicionamento fundamental à necessária transmissão de uma

herança simbólica é difícil de ser sustentado. Especialmente em nosso atual


177

contexto histórico no qual os adultos, enquanto mantenedores do discurso social

vigente, reproduzem sobre suas crianças a demanda de uma felicidade sem lei,

como se o determinante atravessamento da castração pudesse ser simplesmente

ignorado 44 . O adulto, independente da função exercida, ocupa inevitavelmente o

lugar de Outro para a criança, pela assimetria própria a essa relação, por habitar

a linguagem de modo mais estável, por dispor de uma fantasia mais consistente,

enfim, pelo fato mesmo de ser um adulto, e o analista, enquanto tal, acaba sendo

também convocado a essa posição, precisando responder diferentemente. A

situação do adulto frente à criança implica poderes, ou ainda, ‘deveres’, sobretudo

quanto à transmissão do legado cultural necessário à constituição do sujeito, mas,

se não cabe ao analista corresponder à demanda social, não lhe cabe tampouco

assumir a função dos pais.

Como então sustentar o lugar de desejo do analista na clínica com

crianças? “Como o analista pode se fazer parceiro da criança, sem se tornar seu

mestre, seu instituteur simbólico, sem tomar o lugar de guru?” (THIBAUDEAU,

1994, p.30). Noutros termos, como o analista pode acompanhar a criança sem

gozar às suas custas? Mais além, como, enquanto adulto, abdicar à transmissão

de seu próprio saber sobre o mundo? O que se transmite numa análise com

crianças, afinal?

Segundo Soler (1994), a condição para que o desejo de analista possa

operar é a existência de um desejo constituído no analisante, efeito da subtração

de gozo que engendra o sujeito. Nesse sentido, ocupar o lugar de objeto causa do

44
Note-se aqui a possível vinculação entre o lugar ocupado pela ciência em nossa sociedade de mercado, a
função do consumo mitologizado pela mídia, e a tentativa infantil de perpetuar a dialética do engodo com a
falsificação imaginária de um gozo absoluto.
178

desejo requer que a criança já seja um sujeito de desejo, ou, pelo menos, esteja a

caminho de sê-lo, não se encontrando impedida por permanecer encravada no

lugar de objeto da fantasia materna, situação que requereria do analista

manobras clínicas anteriores.

A possibilidade de sustentar o desejo de analista diante da criança remete

à capacidade do analista de ocupar um lugar de ‘abnegação subjetiva’ que lhe

permita operar com o desejo liberto de sua fantasia, posição nada fácil diante da

criança, uma vez que o risco de tomá-la como objeto de gozo é especialmente

tentador, sobretudo para aqueles com a escuta obstruída pelas próprias

fantasias 45 .

Como discutido no capítulo cinco, a palavra na criança não engaja o

sujeito, aumentando as dificuldades do analista para a sustentação de seu lugar.

Isso não impede forçosamente a análise, mas a inconsistência marcada pela

liberdade fabulatória, apontando para um processo não finalizado de extração de

objeto e montagem da fantasia, indica uma posição a respeito do gozo ainda

incompletamente decidida, instável, à espera de uma definição.

A grande importância do desejo de analista está em designar a presença

inelutável da questão ética na prática analítica, levando o profissional a não

identificar “o desejo que aprendeu a reconhecer durante a sua análise, atrelado a

sua fantasia fundamental, [...] com o desejo do Outro dos seus pacientes.”

(GOLDENBERG, 2004, p.20). Na psicanálise com crianças, essa capacidade do

analista é fundamental, uma vez que, “na falta de um tratamento-padrão, a

análise de crianças só existirá se for interrogado o desejo do analista, em seu ato,

como efeito de um estilo”. (RASSIAL, 2004, p.34). O autor ressalta ainda a


45
Soler (1994) refere-se à posição de alguns dos primeiros psicanalistas de crianças, aqui abordados no
capítulo um, os quais acabaram por realizar transmissões partindo ingenuamente de suas próprias fantasias.
179

tentação do analista de se desviar da direção orientada pelo desejo do analista

rumo a outras posições quando se depara com uma criança como analisante.

Bernardino (2004b) afirma que o vazio introduzido pelo operador desejo

de analista proporciona uma experiência inédita à criança, fazendo-a recolocar o

enigma ‘o que o Outro quer de mim’. A criança se depara com um outro Outro que

não lhe deseja nada em específico, a não ser que persiga suas próprias questões

para o desvelamento do desejo, tornando o sintoma menos essencial,

possibilitando assim a retomada da construção da neurose infantil. O desejo do

analista, introduzindo a falta no Outro, tem um efeito apaziguador para a criança,

o que também afeta, de outro modo, os pais, então desafiados a suportarem

‘perder a criança’. Nesse sentido, o operador desejo de analista tem uma

importante função também nas entrevistas com os pais, permitindo-lhes, por sua

vez, um [re]posicionamento quanto à falta e ao lugar ocupado pelo filho.

Bernardino (2004b) lembra outros pontos sobre os quais o desejo do

analista deve estar ‘prevenido’ quando se trata da clínica com crianças, como o

apelo à aliança com algum dos pais; o risco de associar-se com ‘A criança’,

sintoma do infantil; o fascínio exercido pela criança ‘Mestre do gozo’; e a tentação

do viés educativo, por exemplo. Como se livrar de tais armadilhas? Além da

análise do analista, a autora ressalta a importância da supervisão como o espaço

por excelência da transmissão de um ‘saber-fazer’ analítico.

Ressalta ainda uma característica fundamental do fazer do analista na

clínica com crianças, qual seja, a convocação do analista à invenção,

corroborando assim a formulação de Rassial de que o analista não tem como se

esconder atrás de um suposto tratamento padrão quando está diante de uma

criança.
180

Ao analista de crianças aparece como uma conseqüência lógica


que ele seja chamado a inventar, ali onde a teoria serve apenas
de ponto de partida e a técnica é bastante insuficiente – cabe-lhe
ousar, na busca de um ato que possa funcionar como
significante, que possa fazer corte, que possa dar início a um
desenho, uma modelagem, um jogo, que ponham a criança na
via da enunciação, a trabalhar. (BERNARDINO, p.73).

Essa conseqüência lógica se deve às particularidades do sujeito no tempo

da infância, que tornam a criança um analisante ‘mal comportado’: traz

brinquedos, comida, pessoas à sessão; fecha a porta da sala com o analista para

fora; quer pegar um objeto na sala ao lado; pede para levar objetos para casa;

cria inúmeras situações, enfim, para as quais o analista precisa inventar uma

resposta, construir uma intervenção, conceber um ato, sempre orientado pelo

desejo de analista para estabelecer a melhor direção para cada tratamento.

Como visto no capítulo cinco, o analista intervém a partir de um duplo

lugar: semblante de objeto a e Outro. Na transferência, o analista é chamado a

encarnar o Outro, entrando com seu corpo, sua história, seu desejo, cabendo-lhe

suportar tal lugar sem contudo deixar-se tomar por ele, possibilidade que se

apresenta condicionada ao operador desejo de analista. Contudo, importa

lembrar, “mesmo que o desejo de analista não seja um desejo particular, seu

lugar é particular a cada caso. Essa singularidade não supõe fazer do analista um

sujeito, mas é uma maneira para diferenciá-lo do Outro o qual ele sustenta a

função”. (BERENGUER, 1994, p.50).

Segundo Berenguer, o desejo de analista deve intervir no lugar no qual o

impasse que trouxe a criança à análise se apresentou, procurando levar o sujeito

para além das miragens que o fixaram numa determinada relação com o Outro. O

analista é convocado pela criança a responder com relação a esse ponto. “A

abnegação própria ao desejo de analista, sua não-resposta, ou sua resposta


181

outra, produz-se no mesmo lugar onde já houve alguma coisa. Ali o desejo de

analista desvela sua diferença em relação ao desejo da mãe ou ao desejo do

Outro”. (BERENGUER, 1994, p.50).

Essas afirmações parecem vir ao encontro da hipótese sustentada neste

trabalho de que o lugar ao qual o analista é convocado pela criança guarda certas

particularidades dependendo do tempo da constituição do sujeito em que a

criança se encontra, uma vez que os impasses são próprios a cada tempo. Cabe

ao analista responder em cada caso, mas sempre orientado pelo desejo de

analista.

Nesse sentido, só o que pode restar de qualquer análise como transmissão

é então a inexorabilidade do vazio resultante da extração do objeto a. A análise

de uma criança não é diferente nesse aspecto, embora o objeto a no contexto da

infância não seja sempre o mesmo, no sentido de não ter o mesmo valor nem a

mesma função em cada um dos tempos da constituição psíquica. Como já

apontado no capítulo anterior, na análise “trata-se de que o sujeito tenha

construído suficientemente o fantasma que o anima, com a versão do objeto que

dispõe segundo a idade que tem.” (LAURENT, 1994, p.32).

O objeto a é o que unifica RSI, “é o cerne do gozo que se sustenta com o

nó borromeano [...] causa vazia da realidade psíquica de um sujeito desejante”.

(VORCARO, 1997, p.130-1). O analista, semblante de tal objeto, opera segundo o

desejo de analista na direção de criar as condições para que o enodamento

borromeano se realize fazendo consistir RSI e, nesse sentido, deve oferecer linha

e agulha para a confecção do nó justamente ali aonde alguma falha veio se

inscrever.
182

Noutros termos,

Esse objeto insensato, que especifiquei de “a”. É isso, o que se


agarra à fixação do simbólico, do imaginário e do real como nó. É
ao justo agarrar que vocês podem responder àquilo que é função
de vocês: oferecê-lo como causa de seu desejo aos seus
analisantes. É isso que se trata de obter. Mas se vocês aí se
prendem a pata não é tão terrível. O importante, é que isso se
passe sob os seus encargos. (LACAN, 1974, p.20).

Se o que se transmite numa análise a partir do analista no lugar de suporte

do objeto a é o vazio necessário à realização da falta inscrita no Outro e, como já

mencionado, o bem maior que os pais podem transmitir a seus filhos é essa

mesma falta, qual seria então a diferença entre esses dois modos de

transmissão?

Os pais transmitem a falta a partir de suas próprias posições fantasmáticas,

ou seja, versões singulares de como puderam em suas vidas lidar com a lacuna

estruturante do psiquismo. Noutros termos, a falta assim transmitida está

fundamentada no testemunho de um saber particular sobre como as figuras

parentais arranjaram-se com a incompletude intrínseca à condição humana. Ainda

uma vez importa lembrar que os valores sociais atualmente celebrizados tendem

a caracterizar a falta dos pais como um ‘defeito’ deles, sugerindo à criança a idéia

de que o vazio estrutural de um sujeito não só pode como deve mesmo ser

preenchido. Nesses casos, o trabalho do analista junto aos pais inclui manobras

necessárias a [re]autorizá-los a operar a partir dessa falta fundamental.

O analista, por sua vez, ocupa-se em também transmitir esse vazio

essencial, mas, orientado pelo desejo de analista, opera a partir dessa posição de

“abnegação subjetiva”, procurando justamente manter-se desembaraçado da

própria fantasia para permitir, promover e sustentar a construção de uma resposta

fantasmática própria por parte da criança, que então pode articular de maneira
183

renovada os elementos que já se encontram presentes como resultado da

transmissão simbólica operada pelo Outro parental.

Importa concluir que, não apenas no que se refere a essa transmissão,

mas com relação a tudo até aqui discutido ao longo deste trabalho, o diferencial

analítico, seja na clínica com criança ou no tratamento padrão, remonta sempre a

uma mesma unidade, essencialmente ética. Considerar as especificidades da

criança como analisante, bem como, de modo particular, as singularidades de

cada caso, implica fundamentalmente o desejo do analista, tanto para a criação

das condições quanto para o direcionamento do processo analítico. Pode parecer

contraditório que uma mesma posição manifeste-se de diferentes maneiras, mas

justamente porque o analista baliza-se pelo operador desejo de analista é que

pode reconhecer, no adulto, na criança, em cada um, as possibilidades para uma

via legítima de realização da falta. A [re]invenção do caminho interrompido,

esquecido, perdido, para o acesso do sujeito analisante ao desconhecido vital do

desejo gira assim em torno do eixo sustentado por esse lugar-função do analista

como reserva e guardião do elemento central que integra todos os demais em seu

fazer: a ética psicanalítica.


184

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ZBRUN, M.A. (1999) Lacan e o campo do gozo. Revinter, Coleção Freudiana, Rio
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196

ANEXO

Nó do sinthoma
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