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Belo Horizonte
2017
Lauro Eustáquio Guirlanda de Moura
Belo Horizonte
2017
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 2:159.9
Lauro Eustáquio Guirlanda de Moura
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva – PUC Minas (orientador)
Agradeço aos meus orientadores, Márcio e Anete, que com paciência e cuidado me
conduziram através dessa jornada do Mestrado.
Agradeço à minha esposa Symone, pelo amor e por suportar minhas ausências nesse
período, e ao meu filho vindouro Benjamin, por dar sentido a tudo.
Agradeço também à minha mãe, Iara, pela força e a meu pai, Hélio, pelo exemplo de
persistência.
Agradeço aos meus irmãos, pelo carinho.
Agradeço especialmente a Fernando Madalena, Fernando Nobre e Alexandre Aguiar
e aos residentes de psiquiatria do Instituto Raul Soares, que contribuiram para a realização e
a conclusão desse trabalho.
Aos amigos, pelo apoio nos momentos difíceis.
Aos pacientes da pesquisa, que se dispuseram a falar de tema tão íntimo. Aprendi
muito com eles.
A São Sebastião e São Tomás de Aquino, que foram fonte de resistência diante das
dificuldades e de inspiração.
Por fim, agradeço a Deus, que me conduziu por essa estrada acidentada, dando
sentido à caminhada, mostrando que lá longe, havia uma luz a ser encontrada.
Por que chora o homem?
Que choro compensa
O mal de ser homem?
A presente dissertação tem como objetivo principal estudar as relações entre a depressão
moderada a grave e a religiosidade nos sujeitos da contemporaneidade. Para isso, foram
entrevistados e colhidos dados de onze pacientes através de instrumentos padronizados e
validados de pesquisa (escalas). O nível de depressão também foi medido 60 a 90 dias depois,
para se fazer correlações com o nível de melhora da depressão e o nível de religiosidade
intrínseca. Os resultados mostraram que maior nível de envolvimento religioso medido pela
escala de religiosidade intrínseca não esteve implicado em maior melhora da depressão, nem
em piora. Porém, constatou-se que maior nível de envolvimento religioso foi associado a
menores níveis de depressão no início do estudo, de forma significativa. A partir de alguns
referenciais da psicologia da religião, conclui-se que a religiosidade possui pouco ou nenhum
efeito na melhora de pessoas com depressão moderada a grave. Entende-se que isso ocorre
porque a religiosidade perdeu muito de sua força na contemporaneidade, além de fatores
biológicos e psicológicos que tornam a depressão, depois que atinge certa gravidade, imune aos
efeitos da religião. No entanto, como os sujeitos mais religiosos tenderam a ter menores níveis
de depressão no início do estudo, conclui-se que se a religião não melhora pelo menos ela tem
um efeito atenuante no surgimento do quadro, que se não fosse a religiosidade seria bem mais
grave. Assim, a religiosidade de fato proporcionou aos sujeitos uma maneira eficaz de diminuir
os sintomas depressivos, através do enfrentamento (coping) do estresse e fazendo com que a
experiência depressiva tenha algum significado no crescimento espiritual do sujeito, através da
sua ressignificação. Termina-se enfatizando a dimensão do cuidado espiritual, que poderá trazer
mais qualidade no atendimento dos profissionais de saúde.
The main objective of this dissertation is to study the relationship between moderate to severe
depression and religiosity in contemporary subjects. For this, eleven patients were interviewed
and collected through standardized and validated research instruments (scales). The level of
depression was also measured 60 to 90 days later to correlate with the level of depression
improvement and level of intrinsic religiosity. The results showed that a higher level of religious
involvement measured by the intrinsic religiosity scale was not implicated in greater
improvement in depression nor in worsening. However, it was found that a higher level of
religious involvement was associated with lower levels of depression at the beginning of the
study, in a significant way. From some references in the psychology of religion, it is concluded
that religiosity has little or no effect on the improvement of people with moderate to severe
depression. It is understood that this happens because religiosity has lost much of its force in
the contemporaneity, in addition to biological and psychological factors that make depression,
after reaching a certain severity, immune to the effects of religion. However, as more religious
subjects tended to have lower levels of depression at the beginning of the study, it is concluded
that if religion does not improve at least it has an attenuating effect on the appearance of the
disorder, that if it were not religiosity would be much more serious. Thus, religiosity in fact
provided the subjects with an effective way to reduce depressive symptoms by coping with
stress and making the depressive experience have some meaning in the spiritual growth of the
subject, through its re-signification. It ends by emphasizing the dimension of spiritual care,
which may bring more quality in the care of health professionals.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................27
4 CONCLUSÕES ..................................................................................................................129
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................133
27
INTRODUÇÃO
A saúde mental é uma das principais preocupações do nosso tempo, e talvez o problema
de saúde mais urgente da humanidade. (WOLF, 2014). A depressão, especificamente, afeta em
torno de 350 milhões de pessoas no mundo segundo dados mais conservadores (FIOCRUZ,
2017), e já é a segunda doença que mais provoca incapacidade, em termos de anos vividos com
incapacidade. (FERRARI, 2013, p. 1). Há a perspectiva de que seja, já nos próximos 15 anos,
a doença mais comum do mundo e “será também a doença que mais gerará custos econômicos
e sociais para os governos, devido aos gastos com tratamento para a população e às perdas de
produção”. (BBC BRASIL, 2009).
Além disso, a humanidade vive uma crise espiritual que se acentua de forma
significativa desde a modernidade, com a queda da importância dos valores tradicionais,
culminando, na contemporaneidade, com a sensação falta de sentido vivida pelas pessoas.
(FRANKL, 2007, p. 87).
Há também a queda da importância das religiões institucionalizadas (JUNG, 2008,
p.107), que se refletiu no último censo brasileiro, em que houve aumento expressivo das pessoas
que se denominaram “sem religião”. (DECOL, 2014, p. 1054).
Suspeitamos de que os três fatos estão relacionados: o aumento da incidência da
depressão e sua pior evolução clínica, a queda da importância das religiões institucionalizadas
(com aumento dos “sem-religião”) e a crise de sentido da contemporaneidade. Não sabemos,
efetivamente, se é a depressão leva as pessoas à crise espiritual e a perda de sentido e também
ao abandono das igrejas, ou, partindo do pressuposto de que a religião ajuda na construção do
sentido, podemos aventar que o baixo nível de envolvimento religioso gera uma sensação de
falta de sentido que culmina, em alguns casos, com a depressão clínica.
É importante salientar que a religiosidade é um fator de aumento da resiliência
psicológica aos eventos negativos da vida. Ou seja, pessoas com maior nível de envolvimento
religioso tem menos depressão quando submetidas a estresse, problemas pessoais ou perdas.
(MOREIRA-ALMEIDA, 2006, p. 242). Em uma revisão sistemática de 850 artigos publicados
no século XX, o mesmo autor supracitado (2006, p. 242) concluiu que “há evidência suficiente
disponível para se afirmar que o envolvimento religioso habitualmente está associado a melhor
saúde mental”.
Para corroborar ou não esses dados de pesquisas anteriores, e, principalmente, para
investigar como a depressão e a religiosidade se relacionam dentro da história de vida dos
sujeitos, resolvemos fazer o presente estudo. Ele foi realizado de forma empírica e hipotético-
28
1
A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da PUC (CAAE: 51407615.4.0000.5137) e da
FHEMIG (CAAE: 51407615.4.3002.5119).
29
entrevistas que foram gravadas. Somente as partes que evidenciam aspectos importantes da
psicologia da religião é que foram transcritos. Logo em seguida, faz-se considerações
preliminares sobre as entrevistas realizadas. Faz-se também a análise dos dados quantitativos,
utilizando-se do referencial estatístico.
No terceiro capítulo, relacionam-se os dados quantitativos e qualitativos obtidos na
pesquisa de campo com os referenciais teóricos da psicologia da religião já citados acima.
Primeiro, investiga-se o papel que teve a religiosidade nos sujeitos da pesquisa, relacionando
os dados encontrados com a chave da psicologia existencial e da crise de sentido. Depois,
utiliza-se a teoria do coping religioso-espiritual para se tentar compreender porque alguns
sujeitos melhoraram e outros nem tanto, ou até mesmo pioraram na segunda avaliação. Por fim,
procura-se explicar o processo de individuação na psicologia de Jung, e como esse processo
pode se utilizar da religiosidade e da experiência depressiva, aplicando-se essas ideias para os
sujeitos da pesquisa. De acordo com os resultados e as evoluções dos casos, faz-se uma
separação dos casos por tendências da religiosidade e da relação do sujeito com Deus.
Encerramos com conclusões gerais a respeito da pesquisa, e tentando apontar novos
caminhos e possibilidades para a abordagem do paciente deprimido e de sua espiritualidade.
31
(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal
aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente
realistas.
Escolhi tal definição pois ela enfatiza que a religião é “um sistema de símbolos”, de
forma que isso amplifica o alcance do significante “religião”. Além disso, Geertz, com essa
definição, esboça algum efeito da religião sobre a psique, pois para ele, a religião estabelece
“poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens”.
32
Dando mais ênfase ao aspecto ético e comportamental, Gilberto Safra (2005, p. 210) diz
que religião é “o sistema representacional de crenças e dogmas consciente, por meio do qual
uma pessoa procura modelar sua vida e conduta, de maneira espiritual ou de modo
antiespiritual”. A semelhança com a definição de Geertz é que as duas definições enfatizam o
aspecto cognitivo da religião, ou seja, da crença.
Outra aproximação do conceito de religião de Geertz é a de Rodrigues e Gomes (2013,
p. 334), porém eles acrescentam um elemento transcendental: “a religião é uma instituição
social que discute a realidade que transcende a humana, repetindo-se dinamicamente em
diferentes signos, símbolos, mitos e ritos nas diversas organizações humanas”.
Outros autores, como o psicólogo norte-americano Kenneth Pargament, enfocam o
aspecto institucional da religião, fazendo uma clara oposição em relação à espiritualidade:
“mais e mais, entretanto, nos estamos considerando a espiritualidade definida em contraste com
a religião […]. Primeiramente, religião está sendo definida como o organizacional, o ritual e o
ideológico (itálico nosso). Para a religião, substitua por “religião institucional”.
(PARGAMENT, 1999, p.5).
Adentrando mais no campo da psicologia da religião, um dos autores de maior destaque
é Antonio Ávila (2007, p. 13). Ele divide a definição da religião em substantiva e funcional. Na
definição substantiva, mais restritiva e precisa, a religião se refere ao que envolve deuses,
divindades e forças transcendentais. Já na definição funcional, a religião é entendida como algo
que está envolvido na teleologia da vida, na busca de sentido, na explicação das coisas (ÁVILA,
2007, p. 13). Essa última definição é marcadamente mais ampla, podendo inadvertidamente
englobar sistemas de crenças humanas não religiosas, como o marxismo, a psicanálise e outras
ideologias. Ávila então sugere que partamos da definição substantiva, para delimitar melhor o
campo, para depois entrarmos na definição funcional.
Quanto à espiritualidade, muitos autores focam no seu aspecto transcendental e
teleológico, como por exemplo, Safra, para quem a espiritualidade seria o “sair de si em direção
a um sentido último e o sustentar a transcendência ontológica do indivíduo”. (SAFRA, 2005,
p. 210). Já outros autores acentuam a dimensão da experiência na descrição da espiritualidade,
como Pargament (1999, p. 6), para quem a espiritualidade é “o pessoal, o afetivo, o
experimental e o thoughtful2”.
É difícil, na definição e na explicação do que é a espiritualidade, fugir de uma descrição
psicológica. Edênio Valle (2005, p. 104) já começa pela psicologia: “[…] antes de tudo […]
uma necessidade psicológica (itálico nosso) constitutiva de todo ser humano. É algo tão básico
e elementar como a necessidade de desenvolver a autoconsciência ou estabelecer relações
saudáveis com outros seres humanos”.
Ele continua e enfatiza a necessidade de sentido da psique, que a espiritualidade fornece
tão bem:
Freud, em O Futuro de uma ilusão, já falou sobre o “sentimento oceânico”, bem como
Rudolf Otto no livro O Sagrado. Ancona-Lopez usa esse sentimento para dar sua definição de
espiritualidade:
1999, p. 6). O movimento em direção à espiritualidade consiste, então, “de uma tendência
sociocultural no sentido de desinstitucionalização e individualização” (PARGAMENT, 1999,
p. 7) e no sentido da própria perda da importância da religião no mundo pós-moderno.
Não seria possível, então, unificar esses conceitos, o de religião e espiritualidade? Pois
alguma coisa há em comum, que seria o sagrado (no sentido de sagrado de Rudolf Otto).
Pargament, tentando resolver essa questão (PAIVA, 2005, p. 36) diz que a religião se baseia na
busca de significado por maneiras relacionadas ao sagrado (1999, p. 11) enquanto a
espiritualidade é a própria busca pelo sagrado.
Para Pargament, então, a espiritualidade, é a “função mais central da religião” (1999, p.
12), ou seja, ela está dentro da religião. Mas a religião também pode ser vista como uma forma
específica e compartilhada socialmente de viver a espiritualidade. O que faz algum sentido, pois
a religião envolve aspectos não-espirituais, a saber: convívio social, instituições, cargos,
edificações e outras coisas “fora da espiritualidade”, mas que também podem ser entendidas
como “fora da religião” e daí vem a confusão.
E por fim como definiríamos o termo “religiosidade”? Para Gilberto Safra (2005, p.
210), a religiosidade seria “a espiritualidade que ocorre em meio a concepções sobre o divino”.
Antonio Ávila (2007, p. 69) aplica o termo “religiosidade” a “todo comportamento, atitude,
crença que tenha um caráter religioso, independentemente de sua origem”. Outra definição é “a
religiosidade se refere ao quanto um indivíduo acredita, segue e pratica uma determinada
religião”. (KOENIG apud TAUNAY, 2012b, p. 131). Assim, para Koenig a religiosidade está
intimamente ligada a uma religião, e essa é a visão do autor dessa dissertação.
Nesse momento, uma síntese dos conceitos seria bastante interessante, apesar de não
conseguir, evidentemente, esgotar o assunto. Não há definições precisas e estáveis de religião,
religiosidade e espiritualidade, mas através do diálogo entre os diversos autores citados acima
conseguimos ter uma visão do assunto. De qualquer forma, apresento o resumo de Clarissa de
Franco (2013, p. 401):
Dessa forma, a espiritualidade é termo mais amplo, que engloba religião e religiosidade.
Assim, não há religião sem religiosidade e sem espiritualidade, não há religiosidade sem
35
espiritualidade, mas há espiritualidade por si só. Essa visão, porém, não é compartilhada por
todos os autores. Pargament (1999, p.6) tem outra visão, para ele “um indivíduo pode ser
espiritual sem ser religioso, ou religioso sem ser espiritual”.
Nessa dissertação, quando usarmos a palavra “religião” estaremos mais próximos da
definição de Pargament, definição essa que enfatiza o lado comportamental da religião. Usarei
essa definição por se aplicar melhor à psicologia da religião e por deixar de forma evidente
certa oposição ao conceito de espiritualidade. Devo esclarecer, entretanto, que apesar do fato
desses conceitos serem opostos (no sentido comportamental) há algo que pode uni-los, que é a
noção de sagrado da fenomenologia da religião.
Optarei, entretanto, por usar com maior frequência o termo “religiosidade”, pois é um
termo bastante frequente nos estudos na área da saúde mental. (SMITH, MCCULLOGH e
POLL, 2003). É um conceito que serve mais para a nossa proposta de estudo, pois não é tão
restritivo como “religião” e nem tão amplo como “espiritualidade”.
A área de estudos sobre a relação da religiosidade com a saúde mental é uma das áreas
mais promissoras do campo epistemológico da psiquiatria e das ciências da religião3. Essa
mudança de paradigma vem corrigir um erro histórico da medicina ocidental, especialmente da
psiquiatria, “que vinha tendo duas posturas principais em relação ao tema: negligência, por
considerar esses assuntos sem importância ou fora da área de interesse principal; ou oposição,
ao caracterizar as experiências religiosas dos pacientes como evidência de psicopatologias
diversas”. (SIMS, 1994 apud PANZINI, 2007b, p. 105).
Essa postura mais opositiva da religião está dentro da perspectiva iluminista e freudiana
que rondava a psiquiatria. Freud, em sua obra “O Futuro de uma Ilusão” (1974), postula que a
religião não passaria de uma espécie de neurose obsessiva coletiva, cuja única função seria
impedir que a humanidade se autodestruísse, através da contenção das pulsões violentas. Com
o progresso (conceito caro aos iluministas) da humanidade, a religião seria eliminada, pois ela
não seria mais necessária. Esse progresso da humanidade seria feito através da própria
psicanálise, inventada por Freud. Assim, Freud se coloca como um salvador da humanidade,
3 É importante destacar a relevância que tem sido dada ao tema pela Associação Brasileira de Psiquiatria. No
último congresso da entidade (Congresso Brasileiro de Psiquiatria), realizado em Florianópolis de 4 a 7 de
novembro de 2015, várias mesas redondas e conferências foram dedicadas ao tema da espiritualidade e saúde
mental. É de se destacar a conferência do psicólogo norte-americano Kenneth Pargament, intitulada “avanços
nos estudos do coping religioso/espiritual: implicações para a saúde mental”.
36
Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda,
não teria dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem
disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e
de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’,
o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal
adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? (FREUD,
1974, p. 170-171).
4
acreditadas estão oferecendo cursos sobre a espiritualidade na medicina.
(MOREIRA-ALMEIDA, 2006, p. 43, tradução nossa).
Só bem aos poucos esse cenário tenso foi progressivamente sendo substituído por
outro mais aberto, dando origem a novas aproximações e movimentos dentro da
psicologia […]. É inegável, contudo, que o viés antirreligioso militante de alguns
decênios atrás é coisa do passado. Reinam hoje mais objetividade e mais tolerância.
Os sinais da abertura são evidentes. (VALLE, 2005, p. 86).
Nos últimos 30 anos, entretanto, a psiquiatra americana evoluiu para uma atitude mais
positiva e receptiva em direção à espiritualidade e a religião. Isso é devido em parte a
uma aumentada consideração para a o significado da cultura dos pacientes, como
também a evidência crescente que a religião e a espiritualidade podem ter efeitos
saudáveis na saúde mental. 5 (PARGAMENT, 2014, p. 359, tradução nossa).
Sacerdotes de vários tipos têm preenchido o papel que psiquiatras agora preenchem
por literalmente milhares de anos, e seria de fato presunção de nossa parte assumir
que não podemos aprender nada de sua experiência. […] O muro esfarelante entre a
psiquiatria e a religião, construído pela tradição analítica, não deve ser remendado.
4 In the last two decades, things begun to change. Literally, thousands of papers have been published on the
relationship of religion and health in the medical and psychological academic literature. Indeed, many medical
schools have integrated spirituality into the curriculum. In the US, 84 out of 126 accredited medical schools are
offering courses on spirituality in medicine.
5 In the last 30 years, however, American psychiatry has evolved toward a more positive and receptive stance
toward religion and spirituality. This is due in part to an increased appreciation for the significance of patients'
culture, as well as increasing evidence that religion and spirituality can have salutary effects in mental health.
38
Ele serviu bem no seu tempo, sem dúvida. (ANDREASEN, 1972, p. 165, tradução
nossa)6.
Mas em uma era quando a maré da fé está baixa, quando pessoas cometem suicídio
por falta de uma causa para morrer, quando o autoritarismo moral foi sucedido pela
ética situacional, e quando a sociopatia é talvez mais comum que a histeria, clero e
clínicos fariam bem em pedir e receber uma mão amiga por entre o muro.
(ANDREASEN, 1972, p.165, tradução nossa). 7
6 Priests of various sorts have fulfilled the role that psychiatrists now fill for literally thousands of years, and we
should indeed be presumptuous to assume that we can learn nothing from their experience. […] The crumbling
wall between psychiatry and religion, built by analytic tradition, should not be mended. It served well in its time,
no doubt.
7 But in an era when the sea of faith is at an ebbtide, when people commit suicide for lack of a cause to die for,
when moral authoritarianism has been succeeded by situational ethics, and when sociopathy is perhaps more
common than hysteria, clergyman and clinician would often do well to ask for and to receive a helping hand
across the wall.
39
Essa categoria pode ser usada quando o foco da atenção clínica é um problema
religioso ou espiritual. Exemplos incluem experiências estressantes que envolvem
perda ou questionamento da fé, problemas associados à conversão a uma nova fé, ou
questionamento dos valores espirituais, relacionados, ou não, a uma igreja organizada
ou instituição religiosa. (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1994, p.
685, tradução nossa)8.
Em suma, podemos dizer com bastante certeza que atualmente existe um diálogo
bastante produtivo entre a psiquiatria, a psicologia e a espiritualidade, de acordo com as
evidências citadas acima.
8 This category can be used when the focus of clinical attention is a religious or spiritual problem. Examples
include distressing experiences that involve loss or questioning of faith, problems associated with conversion to
a new faith, or questioning of spiritual values that may not necessarily be related to an organized church or
religious institution.
40
A depressão é um transtorno que pode ser aliviado, não se alterar e até mesmo piorar
dependendo como o sujeito se relaciona com a religião. Se a religiosidade é fonte de sentido,
aceitação, laço social e transcendência, e se Deus é visto como amoroso, misericordioso e
compreensivo, ela (a religiosidade) pode contribuir muito para uma evolução favorável da
depressão. Por outro lado, se a religiosidade é fonte de angústia, culpa e isolamento social, e se
Deus é visto como irascível, punitivo e severo, ela vai muitas vezes contribuir para a piora da
depressão. (PARGAMENT, 1999). A isso chamamos de coping religioso negativo. Não é
possível definir se o coping religioso negativo é que ocasionou a depressão, ou a depressão que
ativou sentimentos disfuncionais para lidar com a depressão. Pois não podemos negar que a
religiosidade faz parte do ethos e da moral do sujeito, e da cultura da sociedade, influenciando
como a depressão se manifesta e em como ela é percebida.
Vemos aqui um campo de complexidade e efeitos mútuos, pois a própria depressão
altera o modo de pensar do sujeito, levando-o a ter mais ideias de culpa e mais angústia do que
normalmente teria se estivesse com o humor normal. A depressão afeta o modo como o sujeito
vive a própria religiosidade. E a religiosidade afeta o modo como o sujeito experimenta a
depressão.
Dalgalarrondo (2008, p. 155) comenta, citando Kurt Schneider, que os depressivos
podem ter ruminações religiosas dos mais variados tipos, sendo que é comum que a
autoconsciência religiosa “torture” o paciente, que se autoacusa por ter cometido pecados
imperdoáveis aos olhos de sua religião e de sua consciência, influenciado pelo estado
depressivo grave. O psiquiatra de Campinas completa, por fim, que muitos pacientes entram
numa religiosidade penosa, numa procura frenética por padres, pastores, confissões, missões e
peregrinações, que só produzem um alívio transitório.
Voltamos aqui ao que disse Pargament (1999, p.5) ao afirmar que “a maioria de nós irá
concordar com a noção que o relacionamento entre a religiosidade e o bem-estar depende do
41
9 Most would agree with the notion that the relationship between religiousness and well-being depends on the kind
of religion we are talking about.
42
mais crer, não conseguem rezar ou confessar-se.' Eles não sabem mais o que é pecado, a imagem
do Cristo na parede não lhes diz mais nada...”
Dentro da visão junguiana, a depressão é uma experiência de isolamento, de perda de
sentido, de sofrimento, de deserto, de alienação do ego, como a descrita pelos pacientes acima.
O ego vive até certa época da vida identificado com o Self, centro da psique onde há a imagem
de Deus (imago Dei). Em determinado momento, ocorre a separação (alienação) do ego, o que
causa sofrimento a esse último, e isso é a depressão do ponto de vista junguiano. (EDINGER,
1972). Ou seja, a alienação do ego significa que o ego foi separado do seu centro, perdeu a
conexão com o centro da psique, o que dá a sensação de perda de sentido. Em um estágio
ulterior, o ego poderá voltar a se comunicar com o Self, mas somente através de uma conexão,
de uma religação (religio). A identificação nesse estágio não cabe mais, porque gera sensação
de que se é Deus. A religação gera o sentimento de que estou ligado a Deus, mas não sou ele.
Kierkegaard (apud EDINGER, 1972, p.48) afirma que o ganho do infinito [pelo ser
humano] nunca será conseguido a não ser através do desespero (itálico nosso). Jung (apud
EDINGER, 1972, p. 49) afirma que a experiência do Self é sempre uma derrota para o ego, e a
depressão representa uma derrota para o ego. Ambos falam da experiência de alienação do ego.
É conhecido o fato de que vários santos e beatos católicos também passaram por essa
fase de alienação do ego. Um dos mais conhecidos é São João da Cruz, que no século XVI
escreveu o poema A noite escura da alma, onde relata a experiência de não sentir mais Deus
em sua vida, estado esse que teria durado 45 anos. Também passaram por tal estado Madre
Teresa de Calcutá e Santa Teresa de Lisieux.
É notável a capacidade de um símbolo de expressar conceitos aparentemente
inconciliáveis. Segundo Edinger (1972, p. 50), a imagem do deserto (wilderness10) é o símbolo
clássico da alienação, da sede, do isolamento; ao mesmo tempo, é lá que acontece o encontro
com Deus. Quando aquele que está no deserto está quase morrendo, Deus aparece para
alimentá-lo (“chamado ou não, Deus aparece”11):
10 A palavra wilderness é de difícil tradução. Ela tem sido tradicionalmente traduzida como “deserto”, apesar de
não ser exatamente isso. O conceito mais próximo é o de um lugar selvagem, intocado pelo homem, que permite
o isolamento do sujeito. De forma interessante, em italiano o termo equivalente é “solitudine” que significa ao
mesmo tempo solidão e um lugar ermo, solitário. Em hebraico, língua em que o livro do Êxodo foi escrito, a
palavra deserto se diz “midbar”, que vem da palavra “dabar” que significa “falar”, que por sua vez vem da
palavra “dabyr” que significa “santuário” ou “lugar de ordem”. Assim, a palavra “midbar” em hebraico pode ser
traduzida como “deserto” ou “lugar de colocar em ordem”. (LOPEZ, 2011). Isso que se relaciona bastante com
o fato analisado aqui que o deserto tem teleologicamente a função de religar o ego ao Self (ou a Deus).
11 Jung esculpiu em pedra esse adágio de Erasmo na entrada de sua casa, em latim: “Vocatus atque non vocatus,
Deus aderit”.
43
Os Israelitas no deserto são alimentados por maná do céu (Êxodo 16:4) [...], Elias no
deserto é alimentado por corvos (Reis 17: 2-6) […]. Psicologicamente isso significa
que a experiência da função apoiadora da psique arquetípica é mais provável de
ocorrer quando o ego está exaurido de seus próprios recursos e está consciente de sua
essencial impotência por ele mesmo. “A extremidade do homem é a oportunidade de
Deus”.12(EDINGER, 1972, p. 50, tradução nossa).
Nos primeiros estudos sobre religiosidade e saúde mental, chamava a atenção o fato de
os resultados serem muito contraditórios. Em alguns, a religiosidade melhorava a saúde mental,
e em outros piorava ou não alterava. A compreensão da causa dessa discrepância foi
parcialmente solucionada a partir dos conceitos de religiosidade de Gordon Allport.
12 The Israelites in the wilderness are fed by manna from heaven (Exodus 16:4) […] Elijah in the wilderness is
fed by ravens (Kings 17: 2-6). […] Psychologically this means that the experience of the supporting aspect of
the archetypal psyche is most likely to occur when the ego has exhausted its own resources and is aware of its
essential impotence by itself. “Man's extremity is God's opportunity.”
44
Segundo Allport (1967) a orientação religiosa de uma pessoa pode ser extrínseca ou
intrínseca. A orientação extrínseca marca a frequência a um determinado culto religioso:
Pessoas com essa orientação são dispostas a usar a religião para seus próprios fins.
[...] Pessoas com essa orientação podem achar a religião útil de diversas maneiras -
para promover segurança, sociabilidade e distração, status e auto-justificação. O credo
abraçado é superficialmente mantido, ou melhor, seletivamente moldado para atender
necessidades primárias. (ALLPORT, 1967, p. 434, tradução nossa).13
Pessoas com essa orientação encontram sua motivação principal na religião. Outras
necessidades, fortes como elas podem ser, são vistas como de menos significância
última, e elas são, na medida do possível, trazidas em harmonia com as crenças
religiosas e as prescrições. Tendo abraçado um credo, o indivíduo procura internalizá-
lo e segui-lo plenamente. (ALLPORT, 1967, p. 434, tradução nossa).14
Mortais que somos, a maioria de nós está envolvida em ao mesmo tempo viver e usar
a nossa religião. Procuramos por Deus e procuramos satisfazer nossas necessidades
humanas. I [intrínseca] versus E [extrínseca], religião versus espiritualidade – essas
polarizações são sedutoras. Elas oferecem maneiras fáceis de pensar sobre o mundo e
soluções fáceis. Mas elas não são particularmente bem moldadas para um mundo
complexo que pede mais soluções bem integradas do que simplistas. (PARGAMENT,
1999, p. 10, tradução nossa).15
13 Persons with this orientation are disposed to use religion for their own ends. […] Persons with this orientation
may find religion useful in a variety of ways – to provide security and solace, sociability and distraction, status
and self-justification. The embraced creed is lightly held or else selectively shaped to fit more primary needs.
13 Persons with this orientation find their master motive in religion. Other needs, strong as they may be, are
regarded as of less ultimate significance, and they are, so far as possible, brought into harmony with the religious
beliefs and prescriptions. Having embraced a creed the individual endeavors to internalize it and follow it fully.
15 Mortals that we are, most of us are engaged in both living and using our religion. We search for God and we
search to satisfy our human needs. I versus E, religion versus spirituality – these polarizations are seductive.
They offer easy ways to think about the world and easy solutions. But they are not particularly well-suited to a
complex world that calls for well-integrated rather than simplistic solutions.
45
estado mental mais saudável, enquanto a orientação extrínseca é associada com o oposto”.
16 a) Are you religious, spiritual, or a person of faith? Is spirituality (or religion) important in your life?
b) Are you part of a religious / spiritual community? Do you attend R/S (religious/spiritual) meetings? Which
activities? How often?
c) Do you perform some private such as prayer, meditation, reading religious texts, or watching/ listening to R/S
programs or songs? When? How often?
d) Does your R/S influence the way you live your life and deal with your current problem? How? […] How do
your faith and religious community see your problem and treatment? Do they support it, oppose it, or are they
neutral?
e) Are there other aspects or your life you would like to share? Do you have any other spiritual need that needs to
be addressed?
46
A seção seguinte contém três frases a respeito de crenças ou experiências religiosas. Por favor, anote o quanto
cada frase se aplica a você.
17 O WHOQOL – SRPB (World Health Organization – spirituality, religiosity and personal beliefs) é o
instrumento de avaliação da qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde – módulo espiritualidade,
religiosidade e crenças pessoais. Moreira-Almeida e Koenig criticam tal instrumento, alegando que ele mede
bem-estar psicológico e não religiosidade intrínseca. (TAUNAY, 2012b, p. 133). Por isso não incluí tal
instrumento nas escalas de avaliação de religiosidade.
47
2. Em geral é verdade
3. Não estou certo
4. Em geral não é verdade
5. Não é verdade
(4) As minhas crenças religiosas estão realmente por trás de toda a minha maneira de viver.
1. Totalmente verdade para mim
2. Em geral é verdade
3. Não estou certo
4. Em geral não é verdade
5. Não é verdade
(5) Eu me esforço muito para viver a minha religião em todos os aspectos da vida.
1. Totalmente verdade para mim
2. Em geral é verdade
3. Não estou certo
4. Em geral não é verdade
5. Não é verdade
9 Embora eu seja uma pessoa religiosa, eu me recuso a deixar a religião influenciar meus assuntos do dia a dia.
10 Embora eu acredite na minha religião, sinto que há muitas outras coisas importantes na vida.
1 Nunca / nada
2 Raramente / pouco
3 Ocasionalmente / médio
4 Freqüentemente / muito
5 Sempre / extremamente
Total:______
Estamos interessados em saber se e o quanto você utiliza a religião e a espiritualidade para lidar com o estresse
em sua vida. O estresse acontece quando você percebe que determinada situação é difícil ou problemática, porque
vai além do que você julga poder suportar, ameaçando seu bem-estar. A situação pode envolver você, sua família,
seu trabalho, seus amigos ou algo que é importante para você.
Neste momento, pense na situação de maior estresse que você viveu nos últimos três anos. Por favor, descreva-a
em poucas palavras:
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
As frases abaixo descrevem atitudes que podem ser tomadas em situações de estresse. Circule o número que
melhor representa o quanto VOCÊ fez ou não o que está escrito em cada frase para lidar com a situação estressante
que você descreveu acima.
Ao ler as frases, entenda o significado da palavra Deus segundo seu próprio sistema de crença (aquilo que você
acredita).
Exemplo:
Tentei dar sentido à situação através de Deus.
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
Se você não tentou, nem um pouco, dar sentido à situação através de Deus, faça um círculo no número (1)
Se você tentou um pouco, circule o (2)
Se você tentou mais ou menos, circule o (3)
Se você tentou bastante, circule o (4)
Se você tentou muitíssimo, circule o (5)
Lembre-se: Não há opção certa ou errada
Marque só uma alternativa em cada questão.
Seja sincero (a) nas suas respostas e não deixe nenhuma questão em branco!
1. Orei pelo bem-estar de outros
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
2. Procurei o amor e a proteção de Deus
51
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
3. Pedi a ajuda de Deus para perdoar outras pessoas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
4. Revoltei-me contra Deus e seus desígnios
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
5. Procurei uma ligação maior com Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
6. Questionei o amor de Deus por mim
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
7. Não fiz muito, apenas esperei que Deus resolvesse meus problemas por mim
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
8. Procurei uma casa religiosa ou de oração
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
9. Imaginei se o mal tinha algo a ver com essa situação
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
10. Procurei trabalhar pelo bem-estar social
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
11.Supliquei a Deus para fazer tudo dar certo
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
12. Busquei proteção e orientação de entidades espirituais (santos, espíritos, orixás, etc)
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
13. Procurei em Deus força, apoio e orientação
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
14. Tentei me juntar com outros que tivessem a mesma fé que eu
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
15. Senti insatisfação com os representantes religiosos de minha instituição
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
16. Li livros de ensinamentos espirituais/religiosos para entender e lidar com a situação
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
17. Pedi a Deus que me ajudasse a encontrar um novo propósito na vida
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
18. Tive dificuldades para receber conforto de minhas crenças religiosas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
19. Procurei por amor e cuidado com os membros de minha instituição religiosa
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
20. Tentei parar de pensar em meus problemas, pensando em Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
21. Fui a um templo religioso
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
22. Fiz o melhor que pude e entreguei a situação a Deus
52
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
23. Fiquei imaginando se Deus estava me castigando pela minha falta de fé
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
24. Pratiquei atos de caridade moral e/ou material
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
25. Senti que Deus estava atuando junto comigo
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
26. Roguei a Deus para que as coisas ficassem bem
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
27. Pensei em questões espirituais para desviar minha atenção dos meus problemas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
28. Através da religião entendi porque sofria e procurei modificar meus atos para melhorar a situação
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
29. Procurei me aconselhar com meu guia espiritual superior (anjo da guarda, mentor, etc)
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
30. Voltei-me a Deus para encontrar uma nova direção de vida
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
31. Tentei proporcionar conforto espiritual a outras pessoas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
32. Fiquei imaginando se Deus tinha me abandonado
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
33. Pedi para Deus me ajudar a ser melhor e errar menos
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
34. Pensei que o acontecido poderia me aproximar mais de Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
35. Não tentei lidar com a situação, apenas esperei que Deus levasse minhas preocupações embora
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
36. Senti que o mal estava tentando me afastar de Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
37. Entreguei a situação para Deus depois de fazer tudo que podia
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
38. Orei para descobrir o objetivo de minha vida
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
39. Realizei atos ou ritos espirituais (qualquer ação especificamente relacionada com sua crença: sinal da cruz,
confissão, jejum, rituais de purificação, citação de provérbios, entoação de mantras, psicografia, etc.)
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
40. Agi em colaboração com Deus para resolver meus problemas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
41. Imaginei se minha instituição religiosa tinha me abandonado
53
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
42. Focalizei meu pensamento na religião para parar de me preocupar com meus problemas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
43. Procurei por um total re-despertar espiritual
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
44. Procurei apoio espiritual com os dirigentes de minha comunidade religiosa
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
45. Rezei por um milagre
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
46. Segui conselhos espirituais com vistas a melhorar física ou psicologicamente
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
47. Confiei que Deus estava comigo
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
48. Busquei ajuda espiritual para superar meus ressentimentos e mágoas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
49. Procurei a misericórdia de Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
50. Pensei que Deus não existia
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
51. Questionei se até Deus tem limites
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
52. Assisti a programas ou filmes religiosos ou dedicados à espiritualidade
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
53. Convenci-me que forças do mal atuaram para tudo isso acontecer
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
54. Busquei ajuda ou conforto na literatura religiosa
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
55. Ofereci apoio espiritual a minha família, amigos...
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
56. Pedi perdão pelos meus erros
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
57. Participei de sessões de cura espiritual
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
61. Tentei fazer o melhor que podia e deixei Deus fazer o resto
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
62. Envolvi-me voluntariamente em atividades pelo bem do próximo
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
63. Ouvi e/ou cantei músicas religiosas
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
64. Sabia que não poderia dar conta da situação, então apenas esperei que Deus assumisse o controle
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
65. Avaliei meus atos, pensamentos e sentimentos tentando melhorá-los segundo os ensinamentos religiosos
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
66. Recebi ajuda através de imposição das mãos (passes, rezas, bênçãos, magnetismo, reiki, etc.)
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
67. Procurei auxílio através da meditação
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
68. Procurei ou realizei tratamentos espirituais
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
69. Tentei lidar com a situação do meu jeito, sem a ajuda de Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
70. Tentei encontrar um ensinamento de Deus no que aconteceu
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
71. Tentei construir uma forte relação com um poder superior
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
72. Comprei ou assinei revistas periódicas que falavam sobre Deus e questões espirituais
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
73. Senti que meu grupo religioso parecia estar me rejeitando ou me ignorando
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
74. Participei de práticas, atividades ou festividades religiosas ou espirituais
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
75. Montei um local de oração em minha casa
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
76. Tentei lidar com meus sentimentos sem pedir a ajuda de Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
77. Procurei auxílio nos livros sagrados
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
78. Imaginei o que teria feito para Deus me punir
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
79. Tentei mudar meu caminho de vida e seguir um novo – o caminho de Deus
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
80. Procurei conversar com meu eu superior
(1) nem um pouco (2) um pouco (3) mais ou menos (4) bastante (5) muitíssimo
55
2)
0.Não estou especialmente desanimado quanto ao futuro.
1.Eu me sinto desanimado quanto ao futuro.
2.Acho que nada tenho a esperar.
3.Acho o futuro sem esperança e tenho a impressão de que as coisas não podem melhorar.
3)
56
Optei por usar no estudo, a ser descrito no capítulo 2, a escala de religiosidade intrínseca
de Taunay, a escala de coping-religioso espiritual, o inventário de depressão de Beck e a
anamnese espiritual.
Sabemos de antemão que escalas são instrumentos incompletos para se avaliar
fenômeno tão complexo e pessoal. Porém, é o que temos disponível até agora, e por isso a
importância de um estudo qualitativo.
20 Religious life to be truly healthy (like love) needs a certain amount of inner freedom and flexibility.
61
desse parágrafo, esses sujeitos “ […] também parecem recuperar mais rapidamente de episódios
depressivos e são menos propensos a se tornarem deprimidos ao longo do tempo”. 21
Posteriormente, outra metanálise sobre depressão e religiosidade foi realizada por
Smith, McCullogh e Poll em 2003.
Foram analisados 147 estudos, totalizando 98.975 participantes, chegando a um
tamanho de efeito geral de – 0,096 (p <0,000001, intervalo de confiança de 95% = - 0,11 a –
0,08). Um tamanho de efeito pequeno, de forma que se pode concluir que a religiosidade influi
em apenas 1% na variância da gravidade dos sintomas depressivos na população (SMITH;
MCCULLOGH; POLL, 2003, p. 626). Apesar de pequeno, foi um efeito que se aplicou a toda
a população, independente do gênero, etnia ou idade, e estatisticamente muito significativo.
Quando o efeito da religiosidade na depressão foi medido apenas nas populações que estavam
vivendo estresse moderado a grave, o efeito foi bem maior (-0,141 e -0,152, respectivamente).
Esse efeito da religiosidade em reduzir o impacto do estresse na saúde mental é conhecido como
“efeito tampão”. Em um estudo citado na metanálise, que analisou o efeito da religiosidade em
pais que perderam filhos recentemente, o efeito foi ainda maior (-0,33).
Destaco também, ainda citando a metanálise acima, que a orientação religiosa extrínseca
e o coping religioso negativo foram associados a maior risco de depressão, com tamanhos de
efeito bastante grandes (0,239 e 0,230, respectivamente).
1.2.3.2.1 Estudo 1
No primeiro estudo realizado sobre o tema (segundo os autores), publicado por Koenig
et. al. em 1998, foram acompanhados 111 pacientes com mais de 60 anos, internados em um
centro médico universitário por motivos clínicos (ou seja, não devido a uma doença
psiquiátrica). Esses pacientes fizeram um screening para depressão. Dos 111 pacientes que
marcaram mais que 16 pontos na escala de depressão do Centro para Estudos Epidemiológicos
21 They also appear to recover more quickly from depressive episodes and are less likely to become depressed
over time.
62
(CES-D), 94 foram diagnosticados com depressão por um psiquiatra usando uma entrevista
estruturada. Na alta hospitalar, os pacientes foram seguidos por telefone, por 4 vezes, em
intervalos de 12 semanas.
Durante o seguimento, 47 pacientes tiveram remissão da depressão. A religiosidade
intrínseca foi significante e independentemente relacionada ao tempo para remissão, mas a
frequência à igreja e atividades religiosas privadas (ou seja, religiosidade extrínseca) não foram.
Os pacientes deprimidos com maiores scores de religiosidade intrínseca tiveram remissão mais
rápida que os pacientes com baixos scores (risco relativo = 1,54, intervalo de confiança de 95%
= 1,0 – 2,39, p = 0,05). Os autores então concluíram que maior religiosidade intrínseca predisse
de forma independente tempo mais curto de remissão. É importante destacar que a religiosidade
intrínseca não é limitada por problemas de saúde, eles podem até mesmo aumentá-la.
Outros fatores também predisseram menor tempo de remissão para a depressão nesse
estudo: maior qualidade de vida, menor prejuízo das atividades de vida diária e ausência de
história familiar de doença psiquiátrica. O tratamento não teve efeito no desfecho da depressão,
seja nos pacientes com depressão maior seja nos pacientes com quadros subsindrômicos.
1.2.3.2.2 Estudo 2
Em 1997, Braam et. al.22 publicaram estudo realizado na Holanda com 177 idosos
vivendo na comunidade, sobre a influência da religiosidade na incidência e evolução da
depressão. A depressão foi medida através da Escala de Depressão do Centro para Estudos
Epidemiológicos (CES-D). A religiosidade foi medida através de um construto que os autores
chamaram de “saliência religiosa”, ou seja, a importância relativa da fé em relação a outros
aspectos da vida. O sujeito tinha que escolher 3 de 8 domínios, a saber, 1, uma boa renda, 2,
uma família harmoniosa, 3, boa saúde, 4, memórias cheias de significado, 5, uma boa vida
conjugal, 6, uma fé forte, 7, muito amigos e 8 uma boa casa. Se “uma fé forte” estivesse entre
as escolhidas, a religião era considerada de grande importância na vida do sujeito.
Destaco que o método descrito acima para avaliar o grau de religiosidade é muito
superficial, mas esse foi um dos primeiros estudos longitudinais sobre depressão e religiosidade
e na época não havia muitas escalas validadas, de forma que os autores tiveram que inventar
um método próprio de medição.
22 Se verificarmos o ano de publicação (1997), na realidade esse é o primeiro estudo publicado sobre influência
da religiosidade na evolução da depressão, e não o estudo do Koenig de 1998, mérito que foi relatado por ele no
seu estudo.
63
Os resultados foram que a presença da saliência religiosa não foi associada a menor
incidência de depressão. Porém, ela foi muito significativa no que refere a melhora da
depressão. Nos sujeitos com má saúde física, a associação foi ainda mais proeminente.
(BRAAM et. al., 1997, p. 199).
1.2.3.2.3 Estudo 3
Em 2003, Bosworth et. al. publicaram estudo que acompanhou 114 pacientes geriátricos
com depressão. Eles fizeram medidas de religiosidade pública, privada e de coping religioso
positivo e negativo (através de escala elaborada por Pargament em 2000). Também fizeram
medidas de depressão através da escala de Montgomery-Asberg (MADRS) na entrada no estudo
e após 6 meses.
Os resultados foram que a religiosidade pública foi associada a menores pontuações na
MADRS ao final do estudo, mas a religiosidade privada não. Além disso, maiores pontuações
de coping religioso positivo foram relacionados a menores pontuações na MADRS ao final do
estudo.
Esse estudo não usou o construto tradicional da maioria dos estudos em religiosidade e
depressão, que é religiosidade extrínseca x intrínseca. Ao invés disso, ele usou religiosidade
privada x pública (ou seja, formas extrínsecas na DUREL) e coping religioso (que está
relacionado diretamente à religiosidade intrínseca).
1.2.3.2.4 Estudo 4
Koenig publicou em 2007 estudo que acompanhou 839 pacientes internados com
insuficiência cardíaca congestiva e/ou doença pulmonar crônica, também portadores de
depressão. Ele encontrou que a combinação de frequentar atividades religiosas, prece, estudo
da Bíblia e alta religiosidade intrínseca (medida pela escala de Hoge) predisse um aumento de
53% na velocidade da remissão da depressão (hazard-ratio 1,53, intervalo de confiança de 95%
1,2 – 1,94, p = 0,0005). Quando se controlou para apoio social, o efeito se manteve
estatisticamente significante (apesar de inferior: hazard-ratio = 1,45, p = 0,003).
O autor conclui que a gravidade da depressão não fez diferença no efeito da
religiosidade. Ele também recomenda que os profissionais devem encorajar seus pacientes a
procurarem apoio na religião que eles já frequentam. Outro dado importante que a pesquisa
concluiu é que os pacientes que não se envolvem em atividades religiosas ou não são religiosos
64
têm maior risco de ter depressão persistente. No entanto, eles não devem ser incentivados a
“virarem” religiosos, pois não há suporte na literatura para isso. (KOENIG, 2007, p. 394).
1.2.3.2.5 Estudo 5
Em 2010, Dew et. al. publicaram estudo que acompanhou 145 adolescentes de 12 a 18
anos, portadores de depressão, durante 6 meses, fazendo medidas de depressão pela BDI no
início e no término do acompanhamento. Em termos longitudinais, o único achado significativo
foi que os adolescentes que relataram “perda da fé” no início do estudo tiveram pior evolução
da depressão, fazendo dessa característica um fator de mau prognóstico para a depressão em
adolescentes.
1.2.3.2.6 Estudo 6
Miller et. al. publicaram em 2012 estudo que acompanhou 114 crianças dos 10 anos aos
20 anos de idade, cujos pais tinham ou não depressão. A religiosidade dessas crianças foi
medida, através de três perguntas: qual a importância da religiosidade/espiritualidade para
você? Qual a frequência que vai a cultos? Você faz parte de alguma organização religiosa? Elas
foram divididas em 2 grupos: o de alto risco (cujos pais tinham depressão) e os de baixo risco
(cujos pais não tinham).
O grupo de alto risco teve o dobro de incidência de depressão do grupo de baixo risco,
durante o acompanhamento. E o grupo que declarou alta importância da religião/espiritualidade
teve um quarto do risco de ter depressão comparado aos outros participantes (com baixa
importância da religião/espiritualidade). No grupo de alto risco com episódio prévio de
depressão, os que relataram alta importância da religiosidade/espiritualidade tiveram 5 vezes
menos risco de ter uma recorrência da depressão. Quando se comparou os dois grupos de alto
risco, os que relataram alta importância da religião/espiritualidade tiveram um décimo da
incidência de depressão em relação aos que declararam baixa importância. São resultados muito
expressivos.
Chegamos a uma conclusão com esse estudo: relatar alta importância da
religião/espiritualidade pode ter um efeito protetor forte sobre a recorrência da depressão, efeito
ainda maior nos adultos com história paterna ou materna de depressão.
Esse estudo também explica por que a religião funciona muito para prevenir depressão
em algumas pessoas e em outras o efeito é estatisticamente insignificante. Talvez porque ela
65
funcione bem mais naquelas pessoas com alta tendência familiar à depressão.
1. Humor deprimido na maioria dos dias, quase todos os dias (p. ex.: sente-se triste, vazio ou sem esperança)
por observação subjetiva ou realizada por terceiros (Nota: em crianças e adolescentes pode ser humor irritável);
2. Acentuada diminuição do prazer ou interesse em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia,
quase todos os dias (indicado por relato subjetivo ou observação feita por terceiros);
3. Perda ou ganho de peso acentuado sem estar em dieta (p.ex. alteração de mais de 5% do peso corporal em
um mês) ou aumento ou diminuição de apetite quase todos os dias (Nota: em crianças, considerar incapacidade
de apresentar os ganhos de peso esperado);
4. Insônia ou hipersônia quase todos os dias;
5. Agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias (observável por outros, não apenas sensações subjetivas
de inquietação ou de estar mais lento);
6. Fadiga e perda de energia quase todos os dias;
7. Sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada (que pode ser delirante), quase todos os dias
(não meramente autorrecriminação ou culpa por estar doente);
8. Capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se ou indecisão, quase todos os dias (por relato subjetivo ou
observação feita por outros);
9. Pensamentos de morte recorrentes (não apenas medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano
específico, ou tentativa de suicídio ou plano específico de cometer suicídio;
(Notas: 1. Os critérios de A-C representam um episódio depressivo maior; 2. Respostas a uma perda significativa
(luto, perda financeira, perda por um desastre natural, uma grave doença médica ou invalidez) podem incluir
sentimentos de tristeza intensa, reflexão excessiva sobre a perda, insônia, falta de apetite e perda de peso
observado no critério A, que pode assemelhar-se a um episódio depressivo. Embora estes sintomas possam ser
compreensíveis ou considerados apropriados para a perda, a presença de um episódio depressivo maior em adição
a uma resposta normal a uma perda significativa, deve também ser considerado cuidadosamente. Esta decisão,
inevitavelmente, requer o exercício de julgamento clínico baseado na história do indivíduo e as normas culturais
para a expressão de angústia no contexto de perda);
D. A ocorrência de episódio depressivo maior não é melhor explicada por transtorno esquizoafetivo,
esquizofrenia, transtorno delirante ou outro transtorno especificado ou não do espectro esquizofrênico e outros
transtornos psicóticos;
E. Não houve nenhum episódio de mania ou hipomania anterior (Nota: esta exclusão não se aplica se todos os
episódios tipo maníaco ou hipomaníaco forem induzidos por substância ou atribuíveis aos efeitos fisiológicos
de outra condição médica).
Respostas a uma perda significativa (p. ex., luto, ruína financeira, perdas por um
desastre natural, uma doença médica grave ou incapacidade) podem incluir
os sentimentos de tristeza intensos, ruminação acerca da perda, insônia, falta de apetite
e perda de peso observados no critério A, que podem se assemelhar a um episódio
depressivo. Embora tais sintomas possam ser entendidos ou considerados
apropriados à perda, a presença de um episódio depressivo maior, além da resposta
normal a uma perda significativa, também deve ser cuidadosamente considerada.
(Itálico nosso). Essa decisão requer inevitavelmente o exercício do julgamento clínico
baseado na história do indivíduo e nas normas culturais para a expressão de sofrimento
no contexto de uma perda. (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p.
161).
Depois, há outra nota que explica que os sintomas de depressão tendem a ser mais
persistentes ao longo do dia, enquanto os de luto são mais episódicos, vindo em ondas
conhecidas como “dores do luto”, geralmente associadas a pensamentos ou lembranças do
falecido.
O autor considera infundadas as críticas ao DSM – 5 nesse aspecto, pois o Manual deixa
68
claro que para diferenciar o luto normal do patológico é imprescindível o julgamento clínico, o
compreender a história do indivíduo, deixando a arte do diagnóstico e da diferenciação na mão
do psiquiatra. Sabemos que muitos pacientes iniciam um episódio depressivo após uma perda
significativa e isso não pode ser desprezado, pois o paciente precisa iniciar o tratamento o
quanto antes.
As criticas ao DSM, vindas principalmente da psicanálise freudiana e lacaniana, se
baseiam na premissa que os psiquiatras estariam “medicalizando a tristeza”. Antonio Quinet,
psicanalista lacaniano, resume a sua visão:
1.3.3 Conclusões
Nesse capítulo, farei uma breve introdução sobre a psicologia da religião e sua relação
com as ciências da religião. Depois, apresentarei os conceitos e instrumentos utilizados nas
pesquisas sobre religiosidade e saúde mental. Por fim, apresentarei os casos clínicos
acompanhados por mim na pesquisa de campo e farei interpretações a partir da perspectiva da
psicologia da religião.
Como ainda citado pelos mesmos autores, a Psicologia da Religião ainda não desfruta
de alta respeitabilidade acadêmica, por dois motivos principais: a complexidade e a
subjetividade da experiência religiosa e a pluralidade de referencial teórico e metodológico da
própria psicologia.
Mesmo assim, a Psicologia da Religião é um campo que vem ganhando grande
vitalidade dentro das Ciências da Religião (FILORAMO, 1999, p. 188). Essa relação,
entretanto, nem sempre é livre de conflitos e controvérsias. Para Hock (2010, p. 161), a
psicologia da religião desempenha um papel de subordinação frente às outras disciplinas das
Ciências da Religião. Para ele, há uma desconfiança entre os psicólogos e os cientistas da
religião:
Porque acontece a situação relatada por Hock? Do lado dos psicólogos e, por extensão,
dos psiquiatras, ainda há grande dificuldade em se abordar e estudar de modo (pelo menos
parcialmente) isento o tema da religião. Isso está relacionado a diversos fatores.
O primeiro, e talvez o mais importante, se deve à influência da psicanálise freudiana na
maioria dos psicólogos e psiquiatras, especialmente no Brasil, na Argentina e na França. Mesmo
os que não usam tal abordagem como método terapêutico (cuja eficácia nos transtornos mentais
tem sido cada vez mais questionada), receberam alguma influência do neurologista vienense.
Para Sigmund Freud, “a religião é totalmente supérflua, e a religiosidade uma expressão de
infantilidade. O ser humano pode se libertar dessa infantilidade, mas não o precisa
necessariamente – é deixado à sua própria decisão se quer ou não permanecer infantil”. (HOCK,
2010, p. 173). Freud era um médico positivista, que compartilhava a visão comum do final do
século XIX e início do século XX: de que a ciência seria a salvação da humanidade. Nesse
aspecto, não haveria lugar para a religiosidade, vista como uma forma primitiva e atrasada de
ciência.
O segundo fator é que os psicólogos e psiquiatras são em geral pessoas que tem baixa
religiosidade. (CURLIN, 2007, p. 1193). Isso faz com que seja mais provável que não
compreendam a vivência religiosa do paciente, e a importância que isso tem na vida do mesmo.
Porém, em um estudo feito nos Estados Unidos (MCCORD, 2004, p. 356), até 83% dos
pacientes de médicos em geral queriam que o tema fosse abordado nas consultas. Essa baixa
religiosidade se choca com as crenças dos clientes, já que “[...] na clínica psicológica, 'a maioria
dos clientes é religiosa', e que 'as pessoas pertencem a filiações religiosas cada vez mais
diversificadas', o que implica a necessidade de conhecimento e investigação do modo de ser
religioso dos pacientes”. (ANCONA-LOPEZ apud FRANCO, 2013, p. 403).
O terceiro fator, talvez mais secundário, é a convivência dos profissionais psi com
quadros psiquiátricos e psicológicos em que a religião faz parte da psicopatologia, como por
exemplo nos delírios místico-religiosos e nas alucinações com vozes de entes religiosos. A
religião então é vista mais como patologia do que como contribuinte para boa saúde mental.
E por que os cientistas da religião têm tanta reserva com as abordagens psicológicas? A
minha hipótese, a partir da afirmativa de Hock que os cientistas da religião acham as abordagens
religiosas insensíveis às dimensões religiosas, é que boa parte dos cientistas da religião veio da
Teologia e/ou são sacerdotes ou pastores. Dessa forma, talvez vejam a psicologia como uma
ameaça à religião, principalmente na sua forma institucionalizada. Não é possível negar que
75
estão parcialmente certos, em vista da psicologia da religião, na maioria das abordagens, focar
na imanência da religião, em detrimento da transcendência.
mesma pesquisa, 68% dos profissionais relataram ser importante reconhecer as necessidades
espirituais dos pacientes, porém apenas 18,1 % abordam essas questões com frequência. De
forma surpreendente, 83% desses mesmos profissionais relataram que utilizam da
espiritualidade para lidar com seus próprios sofrimentos. A autora finaliza dizendo que os
profissionais reconhecem a importância da espiritualidade na prática clínica, mas talvez por
falta de treinamento específico não o fazem. (ESPERANDIO, 2014, p. 822).
2.2.2 Metodologia
23
O presente estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da PUC – Minas
(CAAE:51407615.4.0000.5137) e da FHEMIG (CAAE: 51407615.4.3002.5119).
77
Tentei fazer com a que a entrevista refletisse o mais fielmente possível a fala do
paciente, de forma que elas contêm algumas expressões coloquiais e da linguagem falada. No
entanto, é impossível fazer transcrição perfeita: algo inevitavelmente se perde. Procurei
transcrever em pouco tempo após a realização da entrevista, para manter um (possível)
sentimento do momento da entrevista.
A totalidade da transcrição não foi utilizada nos resultados e no texto da dissertação, e
nem optei por colocá-lo no apêndice, por motivos éticos. A transcrição integral encontra-se em
78
minha posse e será destruída após a defesa da dissertação. Apenas trechos que destacaram e
exemplificaram pontos importantes da relação do sujeito com a religiosidade foram publicados
nessa seção. Os nomes e os gêneros24 dos pacientes são mantidos em sigilo, bem como fatos e
características que poderiam de alguma forma identificar os sujeitos por terceiros que
eventualmente viessem a ler essa dissertação.
Apresento as entrevistas caso a caso, pois ao longo da pesquisa percebi que a relação do
sujeito com a sua religiosidade é única, de forma que se eu apresentasse como grupo
prejudicaria o objetivo do trabalho, que é apresentar o como a religião funciona25
individualmente a princípio, mas depois em grupo.
Depois, o paciente respondeu a três escalas: ao inventário de religiosidade intrínseca, ao
inventário de depressão de Beck e à escala de coping religioso-espiritual, já descritas no
primeiro capítulo.
No final do estudo, depois de 60 a 90 dias da entrada do paciente, medi novamente o
grau de depressão pelo BDI. Faço correlação do grau de melhora da depressão com o grau de
religiosidade intrínseca e com a forma como o sujeito se relaciona com a religiosidade (ou a
ausência dela).
Os critérios de inclusão para a pesquisa foram:
a) pacientes ambulatoriais, maiores de 18 anos, portadores de episódio depressivo,
transtorno depressivo recorrente ou distimia pelo DSM-5;
b) pacientes com crítica de morbidade preservada, ou seja, tinham a capacidade de
reconhecer que estavam deprimidos;
c) pacientes portadores de quadro moderado a grave através do Inventário de Depressão
de Beck (BDI), ou seja, 20 pontos ou mais;
d) pacientes capazes de entender a realização da pesquisa e que concordaram em assinar
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os critérios de exclusão para a pesquisa foram:
a) pacientes com grave lentificação psicomotora ou estado avançado de desnutrição
devido à depressão;
b) pacientes com sintomas psicóticos não congruentes com o humor deprimido.
24
Optei, para dar maior fluência ao texto, em padronizar todos os pacientes para o gênero masculino. É verdade
que questões de gênero, que influenciaram a evolução de alguns casos, tiveram que ser colocadas de lado em
nome do sigilo.
25
Faço referência aqui ao livro de Ilkka Pyysiainen, How religion works.
79
BDI inicial = 27. BDI final = 29. Variação absoluta= -2. IRI = 36 (alto). CRE: 136 %
negativo.
Médico (M): qual a sua religião?
Paciente (P): ((risos)) evangélica, mas eu não estou indo em nenhuma…
M: você não está frequentando?
P: não, nada...eu era da Assembleia…
M: Assembleia de Deus, não é?
P: isso.
M: tem muito tempo que você não frequenta, que você não participa?
P: tem. Muito tempo né? Mais de 8 anos…Mais do que 8…
I (irmão): porque de 8 anos você pelo menos ia uma vez por semana, agora nem isso!
Oito para cá é nenhuma! […]
M: [a religião] influencia na maneira como você vive seus problemas?
P: (4,0) influencia na maneira como você vive seus problemas...como assim? Me
ajuda a entender…
M: a religiosidade te ajuda por exemplo a lidar com a depressão, ou te atrapalha ou
não tem nada a ver?
P: as vezes eu estou tão para baixo que + não penso em nada né, nem em Deus mesmo.
Mas eu acredito que ele faz milagres, eu acredito. Mas tem vez que não, que eu estou
totalmente fora assim do contexto de igreja, de nada, de tudo, de mim mesmo...de
tudo...nem penso em Deus, não penso em nada, nem em mim, entendeu? Se a pergunta
for basicamente sobre isso…[...]
M: por que? [Sobre parar de ir na igreja após ter depressão]
P: ++ ah é porque foi ++ tem dia que não dá vontade nem de levantar da cama, aí
como você vai em outro lugar? Aí quando te pergunta assim: por que você não está
indo na igreja? Ah, é porque eu não tenho força para ir. Mas não quer dizer que eu
não esteja acreditando em Deus...eu penso em Deus, às vezes né, porque tem vez que
que está tão forte que nem não penso em nada. É um pouco contraditório isso né?
M: é, é sim!
P: mas tem vez que eu acredito assim fielmente, mesmo não estando lá, indo lá na
igreja, ouvindo a palavra, mas eu creio né, mas tem vez que eu não quero saber de
nada, nem de mim, nem de nada, nem de mim mesmo, de nada, nada, nada, só quero
ficar no meu quarto trancado, com a porta fechada, a janela fechada, sem televisão,
sem som, sem nada, e quanto menos pessoa parar para vir conversar comigo é melhor,
que eu não quero conversar com ninguém, entendeu? Eu fico assim. Tem vez que
estou mais aberto, aí quando estou mais aberto, de vez em quando ainda vou na igreja.
M: você ficou muito tempo sem ir?
P: sim, tem muito tempo ((risos))
M: como que a sua igreja vê o seu problema atual da depressão, seu tratamento?
P: eu não sei. Não estou indo...
I: ((o irmão interrompe imediatamente)) não tem nem como ver, que você não está
indo!
P: ninguém está indo me visitar, então não tem como. Mas eu posso falar de quando
eu comecei. Quando eu comecei o tratamento, parecia uma escadaria lá em casa, de
oração. Um monte de gente ia, orava, orava, orava, descia, aí vinha um monte de
gente, orava, orava, orava, descia, aí no início tive muito apoio da igreja, mas embora
algumas pessoas acreditavam que aquilo era demônio, que não é doença. Eu já cheguei
brigar várias vezes por esse motivo. Porque eu estava doente, não quer dizer que era
demônio, e as pessoas acreditavam que é demônio. Sendo que é uma doença, não é
uma coisa que é demoníaco. Então isso na minha cabeça mexia muito, eu ficava muito
nervoso, aí chegou com um fim que eu já não queria receber ninguém mais, de igreja
nenhuma. Aí que eu me afastei totalmente. Aí então eu não tenho como dizer assim o
que a igreja pensa...porque eu me afastei totalmente, eu não quis saber mais de nada.
M: então na experiência que você teve te deram apoio, mas também alguns falavam
que era demônio.
80
P: isso, aí eu fui ficando irritado, chateado e aí eu fui me afastando, hoje eu não vou
em lugar nenhum, ninguém vai lá em casa e se for ainda é possível eu ainda não
receber ((risos)). (Fim da entrevista).
Esse caso foi peculiar, pois o irmão do paciente pediu para participar da entrevista, e
durante todo o tempo fazia comentários a respeito das respostas do paciente. Se por um lado
pode ter inibido algumas respostas, por outro mostrou ao pesquisador um pouco do ethos em
que vive o paciente. Alguns comentários mais relevantes do irmão foram colocados no texto.
O irmão demonstrou atitude carinhosa e presente, porém cobrava que o paciente deveria
frequentar mais a igreja.
Transcrevi quase a totalidade da entrevista desse paciente, pois demonstra na prática
diversos aspectos da psicologia da religião.
O primeiro é que o sujeito quando está muito deprimido abandona as atividades
religiosas, o que, frequentemente, faz com que ele piore seu nível de energia, aumente seu
isolamento social e consequentemente piore seu humor deprimido (dentro de uma visão
puramente behaviorista), criando assim um ciclo vicioso.
O segundo é relacionado com as crenças religiosas do grupo sobre a depressão e o
comportamento desse grupo. No caso, o grupo religioso do paciente (no caso, Assembleia de
Deus) deu-lhe apoio no início do quadro, visitando-o e fazendo orações, mas dentro desse grupo
alguns falaram que o problema dele estava relacionado ao demônio. Isso lhe causou certa
revolta, por não concordar com essa alegação, e o paciente acabou abandonando o convívio
religioso (o que, naturalmente, levou à piora da depressão).
Ao se reunir os dados de sua anamnese espiritual com as suas características de
personalidade (algo pueril, e muito ligado à figura do irmão, a quem espontaneamente fala que
é como um pai), pensamos numa ligação superficial com a religiosidade. Quando ele estava
bem, a ligação era forte, mas bastou vir a depressão que ele parou até mesmo de pensar em
Deus. Ele demorou a entender as perguntas “como a religiosidade influencia na sua vida?”,
“como a religiosidade te faz lidar com a depressão?”, pois talvez nunca tinha parado para refletir
nesses pontos. Nessa lógica, a entrevista pode ter sido até benéfica para o paciente, pois o levou
a refletir sobre a sua depressão e a sua religiosidade.
No entanto, o dado empírico é que o paciente apresentou piora do quadro depressivo na
segunda avaliação, com queda de 2 pontos na escala BDI. Apresenta padrão de coping religioso-
espiritual bastante polarizado para o coping negativo (136%) e escores baixos de coping tanto
negativo (1,57 em 5) quanto positivo (1,15 em 5). Isso na prática significa que o paciente se
utiliza pouco dos recursos da sua religiosidade, e quando os usa, há uma predominância de
81
crenças negativas e disfuncionais (que não o ajudam a lidar melhor com o estresse).
BDI inicial = 47. BDI final = 29. Variação absoluta: 18. IRI 11/50 (muito baixo).
CRE = 144 % negativo (escore de coping negativo 2,09/5, escore de coping positivo 1,45/5).
mais interessante. A mitologia é tipo uma religião que você não acredita mais né...eu
até gosto dela. Ela é até reconfortante... Nesse lado assim eu parei de pensar um
pouco...estou dando um tempo...talvez eu volte dar uma lida na mitologia...não por
acreditar que ela seja real...mas aquele lance dos arquétipos...eu acho interessante...os
arquétipos da mitologia. Não sei se ajudou não, mas...” (fim da entrevista).
O paciente citado mostra, desde a infância, uma relação inadequada com a religião,
sendo que os primeiros contatos com a religiosidade se deram de forma traumática, com certa
violência psíquica. Segundo o relato do mesmo, a família usava a religiosidade como meio de
amedrontamento, forma de controle e contenção. O paciente relata sintomas depressivos desde
a adolescência, e devido à sua visão desadaptativa da religiosidade como coisa punitiva, sentiu-
se abandonado por Deus. Podemos assim aventar a hipótese que uma tendência inata à
depressão somada a experiências negativas da religiosidade levou o paciente a experimentar
sintomas depressivos mais intensos. Se a religiosidade fosse apresentada como possibilidade de
acolhimento e sentido, talvez a depressão do paciente não teria chegado ao patamar inicial de
gravidade.
O paciente então faz um ato de certa hybris, que também parece um experimento
científico: vou desafiar Deus a me destruir, vou negá-lo, como para testar a hipótese se ele
existe ou não. Ele não suportou a tensão da linha que liga o crer e o não crer, decidindo por
cortá-la. Chegou à conclusão que Deus não existe, e pronto. Isso, no entanto, não lhe trouxe
nenhum alívio.
Percebemos que o paciente oscila entre o crer e o não crer. Não parece de fato haver
uma descrença total, mas sim uma revolta com Deus, como se Deus estivesse propositalmente
lhe causando sofrimento. Depois ele chega à conclusão que não vai conseguir negar Deus. Por
fim, notamos alguma ponta de esperança: a mitologia faz certo sentido para o paciente.
Notamos como a religiosidade e a depressão estão intimamente ligadas: o humor
deprimido se projeta em um Deus mau. A crença em um Deus mau justifica os sintomas
depressivos. A imago Dei do paciente é de um Deus punitivo, e isso de certa forma dificulta a
melhora da sua depressão, pensando no poder curativo da imago Dei, do arquétipo do Si-
mesmo.
Qual a saída psicoterapêutica para esse impasse? Talvez seja, para os pacientes que têm
essa relação abalada com a Divindade, reforçar o seu espírito científico, focando nos aspectos
cognitivos, comportamentais e biológicos da depressão. Sabemos que a religiosidade, em
estudos prévios, melhora a evolução da depressão, mas não há estudos mostrando que o paciente
não religioso passar a sê-lo melhora a evolução da depressão.
O paciente obteve alguma melhora da depressão, mas continuou muito sintomático,
83
relatando importante prejuízo tanto nas relações pessoais, no trabalho e principalmente, por não
ver muito sentido na vida. Continuou com quadro considerado grave. Mas, ao mesmo tempo,
apresentou queda importante na pontuação da escala. Apresentou padrão de coping religioso-
espiritual bastante polarizado para o coping negativo (144%), e baixos escores de uso do coping,
tanto positivo quanto negativo.
BDI inicial = 44. BDI final = 27. Variação absoluta = 17. IRI = 35 (alto). Dados de CRE
não disponíveis.
depressão faz com que a pessoa tenha uma visão mais ácida e crítica da realidade, caminhando
em direção a um certo niilismo como posição filosófica. Perde-se, temporariamente, qualquer
otimismo com relação ao mundo.
A depressão foi tão grave que fez o paciente abandonar a religiosidade, e parece que
isso interferiu em uma melhora mais significativa do quadro. Podemos dizer que houve uma
melhora importante, tanto na redução de pontuação quanto subjetivamente (pois apresentava
um quadro bastante grave), porém não chegou perto da remissão. Assim, nesse caso específico,
podemos dizer que sua alta religiosidade esteve associada a uma redução dos sintomas
depressivos, mas não à sua remissão. Precisaríamos de mais tempo para verificar a evolução
desse paciente.
BDI inicial = 31. BDI final = 29. Variação absoluta = 2. IRI: 31. Dados de CRE não
disponíveis.
Deus assim, Buda assim, eu acredito, o que for para o bem faz bem para mim, mas eu
não tenho aquela bitolação de ficar é só um Deus, o pai de Jesus, tem essas outras
coisas que eu também acho bom, que é meio para o bem eu acho bom assim, quando
a gente trouxe o Shiva várias coisas aconteceram…de destruição e depois de
calmaria...de realocar coisas e tal...aconteceram coisas ruins mas depois foram coisas
boas...eu acredito muito, […] eu acredito muito em Shiva também... em Deus, em
tudo...mas eu não tenho essa coisa de só ah é católico e ponto final, budista, mas eu
gosto muito e me faz bem assim… (fim da entrevista).
Existem alguns pontos a se considerar nesse caso: seu trauma religioso na infância e
adolescência, quando foi habituado e amedrontado por uma imagem de Deus punitivo e terrível
(imagem essa que introjetou, e hoje diz claramente que acredita em Deus pois tem medo de que
aconteça alguma coisa). Assim, acaba criando uma espécie de Deus alternativo, na figura do
deus indiano Shiva, que para ele representa destruição, mas também reconstrução (ou seja,
Shiva tem relação com uma certa teleologia, mas o Deus católico não: ele é apenas punição).
O paciente não faz nenhuma relação da sua religiosidade com a sua depressão. Ele é um
bom exemplo de religiosidade contemporânea: oscila entre a crença e a descrença e acredita em
deuses e figuras orientais (Shiva e Buda). Em termos de propor uma solução psicoterapêutica,
uma possível saída seria focar na figura de Shiva, fazendo uma certa analogia com a depressão.
Shiva representa arquetipicamente uma força de destruição para se construir o novo, de forma
que o paciente poderia ver a depressão dessa forma e assim dar um sentido para o transtorno.
A melhora desse paciente foi praticamente inexistente pela pontuação da escala, mas foi
clinicamente (subjetivamente) muito significativa na segunda avaliação. Ele falou que estava
bem melhor, apesar de persistir com sintomas importantes.
Essa religiosidade flexível e questionadora pode ter tido um papel importante nessa
melhora. De fato, o paciente apresentou uma religiosidade intrínseca média. Isso nos leva a
aventar a hipótese de que esse tipo de religiosidade (BONELLI; KOENIG, 2013, p. 669) está
associada a melhor saúde mental.
BDI inicial = 41. BDI final: 17. Variação absoluta = 24. IRI = 20. Dados de CRE não
disponíveis.
M: você é religioso, espiritualista, ou uma pessoa de fé? A religião é importante em
sua vida
P: não muito. Eu sempre acreditei em Deus. Nunca fui de frequentar igrejas...minha
família sempre foi católica, mas nunca fui de frequentar, nunca tive esse costume. Só
que de uns anos para cá fui ficando triste, triste então deixei de acreditar. As coisas na
minha vida sempre deram errado. Eu sempre fiz bem para todo mundo e não sei
porque dá tudo errado. Então com isso eu deixei de ir acreditando em Deus. Não sei
86
se é uma vida passada, eu fiz alguma coisa que estou pagando agora... Sendo punido
por alguma coisa. Mas hoje a minha fé está bem abalada. Não consigo acreditar que
existe um Deus capaz de me ajudar hoje. Acredito um pouco...tenho dúvidas se existe
mesmo. As vezes a gente vê alguma coisa e a gente fala ‘foi Deus’. Na minha
experiência de vida eu nunca tive nada assim que pudesse falar assim: ‘foi Deus que
me ajudou nisso’. Pelo contrário. Eu sempre começo alguma coisa, acho que vai dar
certo, dá errado. Não sei, se Deus existisse mesmo, porque aconteceu isso comigo?
Deus existe, quer o nosso bem, por que estou sofrendo? Por que a minha vida está
assim hoje? Por que eu não consigo ser uma pessoa alegre? Por que eu não consigo o
que eu quero? Por que as coisas dão errado para mim? Então isso me faz duvidar da
existência de Deus.
M: você acredita que a religião é importante em sua vida?
P: não, não é.
M: você faz parte de alguma comunidade, as vezes vai em alguma reunião?
P: raramente eu vou à missa na Igreja Católica, mas não é frequente, e quando eu vou
eu não me sinto bem, estou sendo bem sincero, eu não me sinto representado por
aquela religião. Algum tempo atrás eu frequentei Centro Espírita e me sentia melhor
lá, nas reuniões públicas, nas palestras, sentia que era mais coerente, assim...as
histórias, palestras, assim, mas assim, tem um tempo que não vou, não fui mais.
Apesar de eu ter ido no centro espírita, assim, também tenho um pouco de dúvida se
realmente existe espíritos. Essa dúvida me levou a não ir mais. Lá tinha os médiuns,
você pegava uma receita, você dava seu nome lá, eles psicografavam para você, no
final você recebia, e lá falava se você tinha que tomar um passe, um passe individual,
se era um passe na sua casa, então assim eu não sei, comecei a duvidar daquilo...apesar
de que uma vez tudo o que eu fiquei pensando na palestra veio nessa receita…veio a
resposta de tudo o que eu pensei...nesse dia eu fiquei meio encucado com isso…falei
assim ‘nossa!’...a pergunta que eu fiz na minha cabeça, a primeira linha da receita era
a resposta da pergunta. Nossa, como que pode isso? Mas daí fui me afastando e não
voltei [...].
M: a religião ou a espiritualidade influencia a maneira como você vive sua vida?
P: Não. [...]
M: eu estava perguntando se a religião influencia na sua depressão.
P: influencia de forma negativa. Me faz duvidar da existência de Deus. Se existe um
Deus, por que para mim não dá certo as coisas, será que existe mesmo? Eu deixo de
acreditar que existe um Deus pelas coisas que me acontecem. Acho que se existisse
um Deus mesmo, eu me considero assim uma pessoa tão boa, que ajuda todo mundo,
por que eu não tenho um retorno bom da vida. Por que que as coisas que acontecem
comigo nunca dão certo? No estado que estou, triste, não consigo ver uma figura de
Deus bom que vai me ajudar a sair dessa. [...]
M: quando deixou de acreditar em Deus?
P: quando a gente é mais novo, a gente tem muitos sonhos. E acha que quando for
mais velho vai realizar. E aí os anos vão passando, não vai acontecendo o que você
espera, isso foi quando começou esse sentimento de desacreditar em Deus. Quando
eu era mais novo eu acreditava, eu tinha fé, eu esperava muitas coisas, mas de uns
anos para cá e que não acontece...quando a gente crescer, tiver a profissão e tudo vai
acontecendo... Hoje na minha vida eu não sou satisfeito no trabalho, não tenho um
relacionamento assim...Muitas coisas que eu achei que estaria resolvida na minha
idade e não estou, me fez não acreditar em Deus, não ter fé. (Fim da entrevista)
Novamente, vemos uma pessoa que oscila entre o crer e o não crer, já que às vezes fala
que tem dúvida, às vezes fala que não acredita. Desde a infância tinha uma religiosidade baixa.
E quando veio a depressão, a religiosidade diminuiu ainda mais. Apresenta um quadro
depressivo de início mais recente, que evoluiu relativamente bem. No segundo contato que tive
com o paciente, elogiou o tratamento recebido pelo médico assistente, dizendo que ele o escutou
bastante. Isso parece ter desempenhado um importante papel na melhora.
87
Nesse caso, a hipótese que podemos aventar é que a baixa religiosidade desde a infância
foi um fator de proteção a menos para a sua depressão, dado esse que foi encontrado em estudo
realizado por Miller (2012), citada no capítulo 1.
Destaco também o comentário do paciente sobre a palestra e a receita que recebeu no
kardecismo, que lhe impressionou bastante. Cito aqui Bernardo Lewgoy:
O kardecismo foi a única religião que conseguiu construir um sentido para o paciente.
Mas mesmo assim não produziu uma adesão duradoura.
Mas, se considerarmos a evolução do quadro depressivo, houve uma resposta bastante
significativa ao tratamento, tanto na escala quanto clinicamente. Paciente saiu de um quadro
grave para um quadro leve a moderado. Sua religiosidade é questionadora, está ainda buscando
algo que dê sentido e significado, e tem certa flexibilidade. A relação com o outro curativo (o
médico) foi satisfatória.
BDI inicial = 25. BDI final = 22. Variação absoluta = 3. IRI = 47. Dados de CRE não
disponíveis.
M: a religião ou a espiritualidade influencia na maneira com que você vive sua vida e
lida com seu problema atual, ou seus problemas atuais?
P: eu queria que fosse mais. Tem hora que eu faço umas coisas para depois pensar no
que que eu fiz. Tem horas que eu tomo umas atitudes que eu falo assim, gente, se
fosse seguir a religião eu não teria feito dessa forma, tem hora que a gente faz as coisas
no impulso, e parece que você está fazendo por vingança, ou porque o outro fez aquilo
e vou fazer também, se você for seguir a risca não tem que ser assim sabe, eu queria
ter isso mais intrínseco dentro de mim, mais arraigado, para eu poder fazer as coisas
com mais naturalidade, dentro do que Deus prega, dentro do que tudo prega, então eu
acho… estou muito longe do que a espiritualidade, do que Deus manda...eu queria
que fosse mais, mas quando eu faço alguma coisa que está muito longe eu sei
exatamente onde que eu fiz errado e onde que tinha de ser...então assim...eu estou
muito longe de fazer as coisas da maneira correta dentro do que Deus prega…[...]
M: como a religião ou a espiritualidade faz você lidar com seus problemas?
P: faz eu lidar assim: se eu estou com esse problema, Deus com certeza vai fazer com
que eu aprenda alguma coisa, vai vir coisa melhor para mim, se eu estou passando
por isso é porque ele vai me ajudar, eu vou sair disso aqui fortalecido, eu vou ficar
bem, aí o coração da gente parece que fica mais leve, aí a gente vai dormir parece que
88
tá bem... chega no outro dia vem outra traulitada ((sic))...meu Deus, está difícil demais
essa carga...aí você começa a conversar com ele de novo né...eu sei que você tem
algum propósito, mas que propósito é esse? Quando que vai chegar coisa boa? E você
vai tentando colocar não é a culpa, mas a responsabilidade do que está acontecendo e
a forma como está acontecendo em cima dele, se está acontecendo alguma coisa boa
para mim tem que vir depois...ou então você tenta dividir isso com Ele, que é a bendita
da culpa né, se está vindo, onde que eu tenho a responsabilidade nisso também? Ele
fala: ‘faça a sua parte que eu te ajudarei’...Onde que eu fiz a minha parte errada? Aí
você fica nesse dilema, você não sabe até que parte você fez, para caminhar para
aquilo, e até que parte que é Ele, mas se você pensar que Ele está acima de tudo, que
está vendo tudo que você está passando, que Ele não te deixa, Ele fala que te carrega,
aí aquilo te conforta, que ele está do seu lado. Aí você fica nessa dicotomia o tempo
inteiro. Então quando você está sofrendo muito, você põe a responsabilidade em cima
dele, e fala assim, Ele está do meu lado, ele está aqui comigo e não vai me deixar.
M: de alguma forma você também atribui o seu sofrimento, a responsabilidade, a
Deus?
P: não é atribuir a Ele, mas é que Ele está comigo, e eu vou suportar aquilo. Uma hora
vai aliviar e que vai chegar coisa boa. Se ele fala que está do meu lado ele não vai me
largar, que não vai acontecer coisa pior do que está acontecendo…então eu vou
suportar aquilo. […]
BDI inicial = 35. BDI final = 16. Variação: 19. IRI = 41. CRE: 53% negativo (escore
de coping negativo 1,90 e de coping positivo 3,56).
depressão.
Paciente apresenta polarização para o coping positivo, com apenas 53% de uso de
coping negativo, o que indica um bom prognóstico para a depressão, e de fato foi o que ocorreu.
Paciente apresentou melhora significativa do quadro na segunda avaliação.
BDI inicial = 41. BDI final = 50. Variação absoluta = -9. IRI = 22. CRE: não disponível.
[...]
M: você acha que Deus não te escuta?
P: não me escuta...aí você fala para mim: é importante para você? É
importante, mas eu não sei quando que ele vai me escutar.
M: mas você acha que sua crença é importante? Você continua acreditando?
P: eu acredito que Ele existe para os outros, mas para mim não.
M: você tem dúvida?
P: eu tenho certeza.
M: certeza de que ele não existe para você?
P: QUE ELE NÃO ME ESCUTA. Ele existe, mas ele não me escuta, não
consegue me tirar do meu sofrimento. […]
M: você acredita na força da sua oração?
P: tem hora que parece que eu estou orando feito um papagaio. Como eu não
consigo atingi-lo, a minha oração também não vai para ele.
M: [...]você acha que o seu relacionamento com ele é importante para você?
Mesmo que parece que seja ruim, é importante?
P: eu acho que se eu não tivesse absolutamente nada, nada, nada, por
exemplo, se você me perguntasse “ Deus existe? ”, eu falasse para você “não
existe” seria pior. Mesmo que ele não exista, mesmo que eu sinta que ele
não me ame, mas eu sei que ele existe. Se eu acreditasse que ele não existisse
seria pior. Mesmo que ele exista para o outro, já é importante.
M: você acha que ele existe para o outro, e não para você? Mas como isso é
possível?
P: eu queria sentir que ele me ame, que ele está cuidando de mim, mas como
eu posso estar passando por tanta coisa ++ ((fortes barulhos)) como eu
posso estar passando por tanta coisa e não consigo ver um movimento dele?
Mesmo eu clamando por ele? ((fala com voz embargada, quase
chorando)).
M: sei...você acredita em milagres? Que milagres podem acontecer?
P: para o OUTRO, sim.
M: para você não. ++ Agora, seu relacionamento com ele é importante? Você
sente que tem um pouco de importância para você?
P: tem...se eu não tivesse essa gota, essa gotinha...de certeza que ele existe,
fosse uma pessoa completamente descrente da presença dele, seria muito
pior.
M: você faz parte de alguma comunidade religiosa, frequenta alguma
reunião?
P: não...já fui em tudo quanto é lugar...eu fui evangélico durante muito tempo,
tinha as questões lá de que existia profecia, que Deus falava para as pessoas, e
elas davam recado para mim, e eu ...você tem que fazer assim, DEUS TÁ ME
DIZENDO QUE VOCÊ TEM QUE FAZER ASSIM! , aí eu agia com a
fidelidade acreditando que Deus estava falando através daquela pessoa uma
coisa para mim fazer, e na minha vida muita coisa deu errada, muitos caminhos
eu peguei contrários por eu acreditar nisso. [...]
91
M: tem alguma outra coisa que você acha importante dizer sobre a sua
depressão, sua relação com a religiosidade, alguma outra coisa que está
te preocupando, está te angustiando?
P: a coisa que é ruim assim, é a vontade de não levantar. Um desejo que você
tem de não existir mais. Que você não vê outro caminho, a não ser ir
embora. A esperança ela não existe mais... ((voz embargada)) ((opto por
encerrar, pois o paciente começa a ficar muito abalado)). (Fim da entrevista).
O entrevistado mostrou muito desejo de falar sobre a sua relação com a religiosidade,
de forma que antes de eu começar formalmente a entrevista ele já começou a falar sobre o fato
de Deus não o escutar. Assim, guiei a entrevista pelo desejo do paciente e não segui tanto o
roteiro da anamnese espiritual.
De todas as minhas entrevistas, esse é o paciente que considerei mais grave. Seu afeto
(expressão emocional) é muito deprimido, provocando sentimentos similares em quem a
atende. Ao escutá-lo, senti um certo niilismo em sua fala, uma falta de esperança, uma baixa
autoestima, a ponto de acreditar que Deus só existe para os outros. Para ele, o "silêncio de
Deus". "Deus não me escuta." Houve uma procura por ajuda em diversas religiões, e todas as
tentativas foram malsucedidas. Algumas formas de religiosidade até pioraram seu humor, ao
dizer que ele estaria com "maus espíritos".
O tratamento medicamentoso para esse paciente também não tem surtido muito efeito,
segundo o mesmo, não apresentou melhora do quadro depressivo na minha segunda avaliação.
Necessita fazer psicoterapia, mas não tem condições econômicas. O que lhe resta? Talvez, um
auxílio da religiosidade, porém uma religiosidade acolhedora, que aceite a sua vivência.
Essa paciente mostra como existe um grave despreparo de alguns sacerdotes e fieis de
algumas religiões ao lidar com pacientes com depressão. Esse despreparo pode gerar graves
danos, chegando a ser uma forma de violência psíquica. Alguém diria para um paciente com
câncer que a culpa é dele, pois atraiu 'maus espíritos'? Certamente que não. Por que com a
depressão é diferente?
Uma visão de ego traz essa percepção: o deprimido é um derrotado, um preguiçoso, está
assim porque quer. Uma visão de alma propõe algo diferente: acolher o sofrimento do outro,
sem julgamentos, ajudando-o a encontrar um sentido para o que está vivendo, não um sentido
imediato e causal (por exemplo, 'espíritos maus'), mas um sentido teleológico, no sentido de
que a depressão possa levar a algum aprendizado.
Outra conclusão relevante ao analisar esse caso: mesmo um mínimo de religiosidade
("uma gotinha" nas palavras do paciente) pode salvar uma vida, evitando o suicídio. Essa fala
do paciente vai ao encontro de diversos estudos, em que o tamanho de efeito da religiosidade
em prevenir o suicídio é bastante robusto.
92
BDI inicial = 41. BDI final = 32. Variação absoluta = 9. IRI = 36. CRE: 47% de coping
negativo (baixo), com escores de coping negativo 1,28 e positivo 2,72.
positiva”. Isso, no entanto, não tem lhe trazido muita melhora do quadro depressivo, segundo
os seus relatos da história pregressa da depressão.
Fico, assim, com dois questionamentos. O primeiro é que o paciente possui alta
religiosidade intrínseca, pelo IRI, que está associado, em estudos anteriores, com melhor
prognóstico da depressão. Porém não obteve melhora importante. Parece que não há uma busca
do paciente por mais profundidade, por uma experiência mais intensa do Sagrado.
O segundo questionamento decorre do primeiro: será que o IRI mede com fidedignidade
a religiosidade desse paciente, em nível mais profundo? Pelo menos nesse caso, não. O que nos
leva a uma conclusão preliminar: o IRI não é capaz de medir com precisão a relação do sujeito
com sua religião, o que reforça a necessidade de mais pesquisas qualitativas no campo da
relação entre a religiosidade e a saúde mental.
Houve alguma melhora na segunda avaliação do paciente, mas ainda continuava muito
sintomático. Apresenta polarização significativa para o coping religioso-espiritual positivo,
com o uso de apenas 47% de coping negativo, o que lhe traz um bom prognóstico.
2.2.12 Entrevistado J - “ó Deus, tem misericórdia de mim, tira a minha vida, abrevia o meu
tempo aqui, porque eu estou cansado, não estou aguentando...”
BDI inicial = 47 (muito grave). BDI final = 54. Variação absoluta = -7. IRI = 13 (muito
baixo). CRE não disponível.
para lugar nenhum, não atendia telefone, não falava com ninguém, eu não queria ver
ninguém, conversar com as pessoas eu evitava, então assim evitava todo mundo,
evitava ver gente, evitava sair na rua, evitava sair do portão para fora, então nesse caso
eu acho que sim porque eu não queria ter contato com mais ninguém, com mundo lá
fora. Eu ficava só no meu quarto, no meu canto, sozinho.
M: você tem depressão tem quantos anos?
P: eu comecei a tratar em 2003.
M: então quando sua depressão começou você ainda tinha um pouquinho, frequentava
algumas coisas…
P: frequentava, frequentava, e gostava de ir, sentia bem, no espiritismo, no
kardecismo, depois eu simplesmente perdi o interesse, tomei antipatia das pessoas,
assim, comecei a sentir menor do que elas, sabe, elas sendo superiores, eu sendo
inferior, elas conseguindo aprender, atingir um grau daquilo que a gente tava ali para
conseguir, superar, aprender, crescer, eu sempre ficando para trás, então eu fui me
sentido diminuído, e eu, por isso eu falei, não vale a pena, não faz sentido continuar
[…].
M: você se sentiu diminuído frente às outras pessoas da sua comunidade religiosa?
Qual religião que era?
P: todas elas eu senti diminuído...porque o kardecismo por exemplo, eu gostava muito
de ler, Allan Kardec, esses livros, Zíbia, gostava muito ((ininteligível)) então assim às
vezes a gente pegava um livro para ler, enquanto eu estava lendo um livro a pessoa já
tinha lido dois, três livros na minha frente, já estava dando assim meio que uma
palestra, já estava participando de um grupo, de alguma forma, e eu não conseguia
sair daquele lugar que eu queria ser e ficava ali o tempo todo […]. Por exemplo no
kardecismo chegou uma certa parte que a gente começa a ir nos lares, pedir ajuda,
mantimentos, roupas, essas coisas, aí era no sábado, onde a gente ajuda a distribuir
cesta básica, e nem isso eu conseguia chegar, aí eu ficava indo lá, tomando passe, água
fluidificada, indo nas reuniões, nas músicas e tudo, mas assim ninguém nunca falou
assim, hoje Fulano você vai participar de tal coisa, eles nunca viram que eu tinha
capacidade de fazer alguma coisa, e isso me desanimou, me deixou desanimado…
M: ainda hoje você conversa com Deus?
P: quando eu estou muito triste, quando eu estou muito assim desacreditado mesmo,
quando eu vejo que não tem mais saída, eu falo “ó Deus, tem misericórdia de mim,
tira a minha vida, abrevia o meu tempo aqui, porque eu estou cansado, não estou
aguentando...”, mas por exemplo eu hoje eu não consigo orar Pai-Nosso, Ave-Maria,
sabe, eu começo a rezar, mas foge da minha cabeça, não lembro um pedaço, tento
voltar de novo…então assim …
M: mas também você não desacreditou totalmente em Deus…
P: não, não desacreditei totalmente em Deus não, porque eu acho que se Deus não
existisse eu acho que eu já teria feito coisas muito piores, sabe? E de alguma forma
ele colocou filhos na minha vida, ele colocou pessoas que eu amei, ele colocou
trabalho, então eu acho que de alguma forma assim Ele...eu não sei se Ele me
abandonou temporariamente, se eu que me afastei dele, não sei, mas assim antes eu
tinha uma fé muito viva, para mim Deus era tudo, tudo, independente da religião, da
conversa, da doença, de tudo, era Deus, Deus, Deus, hoje eu já não tenho essa... Ah
se acontecer alguma coisa, eu vou pedir a Deus, hoje eu ah ‘deixa acontecer’, sabe,
tem que acontecer, vou esperar né?
M: alguma outra coisa que você queria falar a respeito da sua história com a religião?
P: ((3,0)) ah a respeito da minha história com a religião, eu vejo, por exemplo, pessoas
kardecistas com um canceroso na cama morrendo, ele sofrendo, e a pessoa não pode
fazer nada, eu vejo evangélico, minha mãe é evangélica, minha mãe tem quatro filhos
viciados em crack, e ela vive dentro da igreja 24 h, então eu vejo pessoas do
candomblé, por exemplo, aí aparece na Internet, ah tacaram fogo, atearam fogo no
candomblé de fulano de tal, quebrou as imagens, ah bateu, matou o pai-de-santo
fulano de tal, a mãe-de-santo fulana de tal, então assim eu acho que não me acrescenta
em nada, eu acho que se realmente tivesse ali uma força maior, eu não sei, eu acho,
evitaria muita coisa, eles seriam avisados antes sabe, alguma coisa desse tipo, por isso
que hoje em dia eu penso assim, se vai acontecer alguma coisa, deixa acontecer para
ver o que vai dar...eu não vou recorrer por exemplo, ah eu vou na benzedeira, ah eu
vou lá na igreja rezar para São Judas, ah eu vou lá na igreja, ah meu Deus, eu não faço
95
BDI inicial = 32. BDI final = 31. Variação = 1. IRI = 30. Escala de CRE: 79% negativo.
dinheiro provoca. Os pacientes acompanhados no serviço são em sua maioria casos mais
difíceis, graves e com algum grau de resistência ao tratamento.
As escalas empregadas, apesar de amplamente utilizadas, validadas há vários anos e
traduzidas para o português, são instrumentos limitados, especialmente para um assunto tão
complexo como a religiosidade e a depressão.
O inventário de depressão de Beck apresenta boa sensibilidade, mas especificidade
reduzida (apesar de adequada). Pacientes com níveis de depressão clinicamente não tão graves
pontuam muito na escala de Beck. Isso pode ter levado ao viés de que numericamente alguns
pacientes não melhoraram muito, mas clinicamente sim. Tive o cuidado de descrever esse fato
caso ele tenha acontecido.
O inventário de religiosidade intrínseca sofre de problema semelhante: pontua muito em
pessoas que clinicamente (subjetivamente) percebemos que tem religiosidade baixa e
superficial. No entanto, quando ele pontua baixo, parece ser mais confiável.
A escala de coping religioso-espiritual é extremamente extensa, e sua aplicação em
populações de baixa renda (exatamente a população do estudo) é difícil. (CURCIO;
LUCHETTI; MOREIRA-ALMEIDA, 2016, p. 173). Apenas metade dos pacientes
conseguiram respondê-la completamente. Alguns pacientes começaram a responder e devido à
irritabilidade ou o cansaço dos mesmos tive que interromper o preenchimento no meio do
processo. Outros pacientes estavam muito deprimidos, e resolvi deixar esse preenchimento para
a avaliação posterior. Alguns conseguiram, mas outros persistiam muito deprimidos, de forma
que para não os prejudicar acabei abrindo mão desse dado.
Assim, mais estudos são necessários sobre o tema, tanto para elaborar instrumentos de
pesquisa mais precisos e práticos, tanto com a utilização de amostras maiores e de condições
socioeconômicas diversas.
Os dados quantitativos do estudo são apresentados na tabela abaixo.
99
50
45
40
35
30
BDI inicial
25
20
15
10
5
0
0 10 20 30 40 50
IRI
O gráfico apresenta coeficiente de correlação entre as duas variáveis (r) = - 0,74, o que
indica que no estudo realizado maior religiosidade intrínseca representou 74% de chance de o
sujeito ter no início do estudo uma depressão de menor intensidade.
Nesse momento, urge responder uma pergunta: os pacientes com maior religiosidade
apresentaram maior melhora da depressão? Para responder essa pergunta, vamos primeiro
analisar o gráfico 2.
30
25
20
15
Variação do BDI
10
0
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50
-5
-10
-15
IRI
O gráfico apresenta coeficiente de correlação das duas variáveis (r) = 0,04, ou seja,
maior religiosidade implicou em apenas 4% de chance de o paciente ter tido maior melhora da
depressão. Tal valor está dentro da margem de erro da pesquisa.
Assim, a resposta para a pergunta: “os pacientes mais religiosos melhoraram mais da
depressão?” , de acordo com os dados colhidos na pesquisa, é não. Não, na maioria dos
pacientes maior religiosidade medida pelo IRI não esteve associada a maior melhora da
depressão, de forma significativa.
Essa resposta se relaciona com um fato bastante significativo nessa pesquisa: a maioria
dos pacientes (64% dos entrevistados) não apresentou melhora muito significativa (mais do que
10 pontos na escala de BDI) do quadro depressivo, apesar do tratamento de razoável qualidade,
feito por residentes de psiquiatria e orientado por um psiquiatra experiente e especialista em
101
transtornos do humor.
O que nos leva à consideração que o que importa na melhora da depressão não é a alta
religiosidade intrínseca, mas sim a qualidade dessa religiosidade, o como o sujeito se relaciona
com sua transcendência.
Assim, podemos tecer diversas conclusões preliminares sobre esses resultados:
Ao fazer esse estudo de campo, um fato me chamou muito a atenção, em quase todas as
entrevistas: é muito difícil separar o papel de cientista da religião do papel de médico. Se o
cientista da religião estuda a religião empiricamente, o médico, especialmente o psiquiatra
(médico da alma) tem como objetivo aliviar e curar o sofrimento psíquico.
A dificuldade de separar o cientista da religião do médico aconteceu por dois motivos
principais: muitos pacientes se sentiram aliviados ao falar de sua religiosidade para uma pessoa
que estava ali apenas para ouvi-las, sem fazer juízos de valor. Falas contraditórias e
ambivalentes surgiram, e me preocupei em reforçar para os autores dessas colocações que isso
dentro da religiosidade é perfeitamente normal. Além disso, o médico contém um simbolismo
de cura e de confiança. Assim, a própria pesquisa teve um valor terapêutico intrínseco.
Minha constatação vai ao encontro das recomendações de Hefti e Esperandio (2016, p.
33) que afirmam que “a anamnese espiritual é um ato poderoso em si mesmo, e abre uma nova
dimensão na relação médico-paciente, pois envia ao paciente a mensagem de que esse aspecto
da sua identidade é reconhecido e respeitado”. Assim, abordar as necessidades espirituais,
especialmente do paciente com depressão, é uma parte importante da anamnese médica e traz
melhores resultados para o paciente. Esse dado é essencial para se combater o preconceito que
existe na comunidade médica quando se fala em integração da espiritualidade na prática clínica.
102
Épocas houve em que o homem pressentia o seu mundo como uma constante, como
momento preciso entre o meridiano transcurso de uma longínqua época de oiro e um
próximo fim do mundo sujeito à hora marcada pela divindade. [...] A sua atividade ia
no sentido de melhorar a sua posição no invariável condicionalismo em que se sabia
em agasalho, preso à terra e cativo do céu [...] na transcendência era que o ser ganhava
inteligibilidade. (JASPERS, 1968, p. 10).
Carlos Alberto Steil (1994, p. 36) confirma o marco temporal de Jaspers, relatando que
essa crise de fato teria se iniciado a partir dos séculos XVI e XVII.
Na visão do filósofo e psiquiatra alemão, a situação do mundo moderno mudou: “em
comparação com tais épocas encontra-se o homem, hoje, desenraizado, certo apenas da sua
inserção num fluxo historicamente determinado da humanidade”. (JASPERS, 1968, p. 10).
Jaspers prossegue, explicando que o homem põe seu sentimento de idealismo na Terra:
Essa constatação de Jaspers nos remete a algo típico da modernidade, que são as
ideologias sem divindade, como o Positivismo, o Marxismo e a Psicanálise. Tais ideologias
colocam na própria Terra a sua transcendência, no sentido da transformação do mundo em um
lugar igualitário e sem classes (no caso do Marxismo) e em um mundo sem religião, imbuído
apenas do espírito científico (tal como Freud descreve no “Futuro de uma ilusão”), e tal como
o Positivismo26. Destaco também o fato, comentado por Jaspers, de que o indivíduo quase
sempre se decepciona quando se apega à crença da possibilidade de transformação do mundo,
o que gera, segundo o autor, um sentimento de impotência.
No século XVIII a consciência do progresso atinge o seu apogeu, há um otimismo
reinante, já que o caminho que antes levava ao juízo final agora levava à plenitude da
civilização. A Revolução Francesa fez com que o homem, usando a razão, assumisse seu
próprio destino (ele não estava mais nas mãos de Deus), provocando uma onda de júbilo.
(JASPERS, 1968, p. 15-16).
Ainda segundo Jaspers, de forma anacrônica, Kierkegaard e Nietzsche são os primeiros
a fazer uma crítica da sua própria época, mas não foram muito levados a sério, só tardiamente
26 É necessário destacar que na cidade do Rio de Janeiro há um templo dedicado ao Positivismo, localizado na
rua Benjamin Constant, 74, no bairro da Glória.
105
se tornando atuais. Esses dois filósofos, já no século XIX, anteveriam que a dessacralização do
mundo conduziria ao nada.
Diversos autores contemporâneos, nos últimos anos, concordam, em maior ou menor
grau, com a perspectiva de Jaspers.
Marco Heleno Barreto, em seu livro “Pensar Jung”, faz interessantes correlações entre
a crise de sentido da contemporaneidade e as contribuições do psiquiatra suíço Carl Gustav
Jung. Para ele, a falta de sentido tornou-se um elemento estrutural da sociedade contemporânea,
manifestada como niilismo, numa civilização regida pela técnica e pelo consumo. (BARRETO,
2012, p. 119; p. 123). Segundo o mesmo autor, Jung chamava isso de “neurose contemporânea
generalizada”. Barreto prossegue na sua argumentação, dizendo que a cisão entre a razão e a fé
se iniciou na Idade Média, mas na nossa era tecnológica, ela se acentua bastante, produzindo
um dilaceramento que causa muito sofrimento psíquico.
Por que se inicia na humanidade o processo da crise de sentido? Na interpretação de
Barreto da obra de Jung (2012, p. 156), a origem do mal-estar da subjetividade moderna está
em dois pontos: no cisma protestante com sua iconoclastia e nos efeitos da revolução científica.
O cisma protestante originou uma religiosidade com muito menos símbolos e rituais, e
muito mais intelectualidade e hermenêutica, baseada somente nas escrituras (sola scriptura 27).
Segundo a perspectiva junguiana, os rituais e os símbolos facilitam o contato do sujeito com
elementos irracionais do inconsciente coletivo: esses elementos possuem uma energia psíquica
muito intensa, no sentido de “arrebatar” o praticante da religião.
Quanto à revolução científica, são inegáveis os benefícios que ela tem trazido à
humanidade, no entanto algo que falta à ciência é trazer sentido e significado para a vida das
pessoas. Nisso, a religião tem a primazia.
Jacques Lacan, psiquiatra e psicanalista francês, é conhecido por propagar, nos meios
psicológicos e psiquiátricos, um “retorno a Freud”. Porém, ele acaba reconhecendo, de alguma
forma, que a religião traz sentido à vida das pessoas. Há um texto (propositalmente?) não muito
difundido pelos próprios lacanianos, talvez por admitir a persistência da força de religião,
chamado “O triunfo da religião”.
Eles [os religiosos] gastaram um tempo, mas de repente compreenderam qual era sua
chance com a ciência. Vão precisar dar um sentido a todas as reviravoltas introduzidas
pela ciência. E, no que se refere ao sentido, eles conhecem um bocado. São capazes
de dar sentido um sentido realmente a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, por
exemplo. São formados nisso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar
27 “Somente na escritura”. Tudo na religião deve ser construído a partir do que diz a Bíblia.
106
um sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais. (LACAN, 2005, p. 65).
Lacan prossegue e dá suporte à ideia de Jung que o cisma protestante em parte causou a
crise de sentido da modernidade, quando é perguntado o que significa ‘a verdadeira religião’.
Lacan responde que a verdadeira religião é a “romana”, ou seja, a Católica Apostólica Romana.
(LACAN, 2005, p.67). Ele prossegue, dizendo que a humanidade será “curada” da psicanálise,
devido ao “mergulho” que a religião promoverá no sentido, o que acabará causando um
“recalque” da psicanálise, que para Lacan é o próprio sintoma do mal-estar da humanidade.
Essa é uma posição diametralmente oposta à posição de Freud em O Futuro de uma Ilusão
(1974). Para Freud, o mal-estar é o sintoma, e a psicanálise a cura.
É interessante (para não dizer surpreendente) como Jung e Lacan concordam, de alguma
maneira, nesses aspectos. Para ambos, a religião tem algum papel em ser uma saída eficaz para
o mal-estar da modernidade. Lacan até mesmo teria visitado Jung na sua casa na Suíça, e ficado
impressionado com o fascínio que ele provocava nos pacientes que o visitavam.
(ROUDINESCO, 2008, p. 360). Porém nunca se divulgou qual foi o tema da conversa.
Com relação à posição de Jung sobre a função da psicologia, Barreto (2012, p. 153),
afirma que “Jung não alimentava quaisquer ilusões a respeito da difícil situação espiritual em
que o homem moderno está enredado. […] Consequentemente, ele compreendeu e
conscientemente reconheceu que o seu projeto psicológico era endereçado à mente moderna”.
Ou seja, o projeto psicológico de Jung, e de certa forma, também a psicanálise freudiana e
lacaniana, só floresceram por uma intrínseca necessidade de ajuda do ser humano afundado na
crise de sentido.
Essa perda do enraizamento religioso gerou uma busca pela então nascente psicoterapia
(BARRETO, 2012, p. 132). Ele diz que
Se Jung “psicologiza” a ideia de Deus, então não seria a religião, no fundo, apenas um
sistema psicoterapêutico? Galimberti (apud BARRETO, 2012, p. 133) afirma que quando Jung
coloca que a religião é um sistema psicoterapêutico, ele se torna muito mais perigoso do que
Freud para a Igreja Católica, pois é como se ele tivesse acertado o alvo e retirado todas as
máscaras do nome de Deus.
Assim, a partir da perspectiva de Jaspers, Barreto e Jung, proponho um conceito para a
crise de sentido da época atual: sentimento coletivo, vago e difuso de tédio, angústia, ansiedade
e falta de sentido para a vida. As manifestações dessa crise de sentido se dão na forma de perda
dos ideais, na fluidez e superficialidade dos relacionamentos, na descrença na política, no
aumento do consumo de drogas lícitas e ilícitas, e, por fim, no aumento significativo dos
quadros psiquiátricos ligados às crises de sentido: depressão, ansiedade e dependência de
substâncias psicoativas.
Edgar Morin concorda em maior ou menor grau com os autores citados anteriormente.
Para ele, a crise da modernidade surge no momento em que a problematização do mundo deixou
de se voltar para Deus e passou a se voltar para a própria modernidade (MORIN, 2011, p. 23).
A ciência teria um papel fundamental nesse contexto, pois ao mesmo tempo que ela produz
soluções e felicidade para os seres humanos, também produz a capacidade de autodestruição da
espécie humana. (MORIN, 2011, p. 23).
Isso causaria grande angústia, com aumento significativo da infelicidade. Segundo
108
Morin, “o mito da felicidade também está em crise. Começa-se a compreender hoje que, se os
produtos positivos da felicidade permanecem, os subprodutos negativos aparecem igualmente:
fadiga, abuso de psicotrópicos, drogas...”. (MORIN, 2011, p. 27).
De fato, os laboratórios farmacêuticos nunca venderam tantos psicotrópicos
(especialmente os antidepressivos e ansiolíticos). O medicamento ansiolítico e hipnótico
clonazepam (Rivotril®) foi o segundo remédio mais vendido no Brasil em 2009 (SEGATTO;
MARTINS, 2009). O laboratório Roche já parou de fazer propaganda médica desse
medicamento, possivelmente porque ele já faz parte da cultura popular. Hoje ele não figura
mais na lista dos mais vendidos, mas o motivo é que o princípio ativo se esfacelou em diversas
marcas de remédios genéricos e similares.
Paiva e Tomé (2014, p. 117) resumem as mudanças que a modernidade promoveu:
A religião, que antes se impunha como um dossel sagrado sobre todas as dimensões
109
Essa nova espécie histórica, "o ser humano moderno", deixou a religião de lado
acreditando no logos e na felicidade terrena, mas a partir da crise de sentido e do crescimento
da incidência e da prevalência da depressão, poderíamos dizer que até o momento essa mudança
não foi bem sucedida. A própria crença ingênua no logos foi catastrófica:
Já citamos no primeiro capítulo diversos estudos que mostram que pessoas mais
religiosas tem melhor saúde mental, incluindo-se nisso menor risco de depressão e menor risco
de suicídio. Mas, repito, é difícil delimitar a secularização como causa da crise de sentido, pois
poderíamos também pensar que ela é até mesmo consequência. Nesse caso falamos em
associação: os fatos estão relacionados de tal forma que não se é possível dizer qual é a causa
e qual a consequência.
Na pesquisa empírica realizada, a maioria dos sujeitos tinha alguma religiosidade, e
mesmo assim desenvolveram depressões, algumas graves, e a maioria (64%) com pouca
melhora, independente da religião. A religiosidade teve algum efeito em prevenir ou atenuar o
quadro de depressão (como foi comprovado na pesquisa, pois os sujeitos mais religiosos
tiveram 74% de chance de ter um quadro depressivo menos intenso). Mas quando ela (a
110
depressão) se desenvolve e atinge certo patamar de gravidade, ela (a religiosidade) tem pequeno
efeito na sua evolução. O pequeno efeito que teve a religiosidade na melhora da depressão foi
devido ao fato de que no sujeito contemporâneo a relação com a religiosidade é mais fraca do
que era no passado, como já foi colocado por Jaspers e Abumanssur. A religiosidade, entretanto,
não desapareceu, ela persiste de alguma forma. Diferente, enfraquecida, mas persiste, com
novas roupagens e novas funções.
Dentro dessa linha de pensamento, diversos pesquisadores questionam se está de fato
havendo uma secularização na contemporaneidade. A religião institucionalizada sem dúvida
alguma está perdendo o seu poder, mas será que isso se reflete na espiritualidade particular dos
sujeitos? Percebemos, na pesquisa, que mesmo os sujeitos que se declararam ateus na verdade
tinham algum tipo de espiritualidade, como o entrevistado B e o entrevistado J. É notável que
o próprio Peter Berger tenha revisto sua tese sobre a secularização, dizendo depois que a religião
continua com o mesmo poder de antes na sociedade ocidental, principalmente no Terceiro
Mundo. Na Europa, entretanto, o autor continua afirmando que a secularização de fato está
acontecendo:
O filósofo francês Marcel Gauchet, em seu diálogo com Luc Ferry no livro “Depois da
religião” (2008, p. 41), afirma que a questão da secularização tem dois lados e ambos devem
ser considerados:
Por um lado, com base num fato indiscutível – o recuo da empresa organizadora do
religioso sobre a vida das sociedades - conclui-se sobre a perda da função da religião
e, portanto, sobre seu desaparecimento inevitável (que seria somente uma questão de
tempo). (FERRY; GAUCHET, 2008, p. 41).
Esse é o lado que a ampla maioria dos autores concordam: está havendo uma perda da
influência da religião. Mas
Por outro lado, parte-se de dois fatos também indiscutíveis: em primeiro lugar, a
permanência da fé e, em segundo, a revivescência periódica dessa fé […]. A partir
desses fatos, anuncia-se o retorno iminente do religioso, procedendo a uma mesma
extrapolação profética. A saída moderna da religião não terá sido, então, nada além
de um eclipse temporário e superficial. (FERRY; GAUCHET, 2008, p. 41).
111
Assim, são dois movimentos que ocorrem ao mesmo tempo: uma saída e uma
permanência da religião, sendo que há um ponto em comum entre as sociedades que
permanecem muito religiosas, como os Estados Unidos, e as sociedades que estão de fato
entrando na secularização (como a Europa): o fato religioso em ambas não mais estrutura a
sociedade ou a comunidade; se ele persiste, é apenas ao nível do indivíduo. (FERRY;
GAUCHET, 2008, p. 42). A religião passou a ser uma escolha do sujeito. Até mesmo não ter
nenhuma religião ou não acreditar em Deus tornou-se apenas uma questão de opção. A pesquisa
comprova esse fato: na maioria (80%) dos sujeitos entrevistados, a religião é uma questão de
foro íntimo. Podemos fazer exceção aos entrevistados A e J, em que a comunidade religiosa
ainda desempenha um papel estruturante em suas vidas.
Continuando o diálogo com Gauchet, Luc Ferry propõe que não haverá o “fim da
religião”. O que já está acontecendo é uma “reinterpretação do religioso” na relação com a Lei.
(FERRY; GAUCHET, 2008, p. 71). Os autores explicam que atualmente a religião está
posicionada “a jusante” da Lei, enquanto antes ela era localizada “a montante”. Se imaginarmos
o fluxo de um rio, antes a religião vinha primeiro, e depois a Lei era produzida. Atualmente, as
Leis são baseadas em preceitos humanos (e não divinos), e só depois passam pela religião. A
religião, então, dará sua posição a respeito dessa ou daquela lei. Para dar um exemplo bastante
claro desse posicionamento, podemos dizer sobre o aborto. Na Lei brasileira, ele é permitido
em casos de estupro, porém a Igreja Católica se posiciona abertamente contra, mesmo nas
situações supracitadas. A Lei católica, assim, está “a jusante” do Direito. Nas teocracias, como
no Irã, a religião continua a montante do Direito, de forma que é esse último que tem que se
adaptar à religião (na prática, a Religião e o Direito se confundem nas Teocracias).
Outro autor que considera que a secularização não está acontecendo de fato, somente a
religião é que está mudando de forma, é Vilhena: “na modernidade superativada, ofertar aos
deuses, aos espíritos ancestrais, aos seres da natureza, aos orixás, aos santos protetores, às
entidades continua em voga”. (VILHENA, 2013, p. 523). Em Manhattan, Nova York, um pastor
luterano montou uma “barraquinha” do lado de fora, em frente à sua igreja, onde oferece “ajuda
espiritual” para quem estiver passando pelo local. A iniciativa obteve grande sucesso, atraindo
cristãos, judeus e aqueles que há anos não compareciam à igreja. (KIS, 2016, p. 4).
Concluímos que a “saída da religião” de que Gauchet fala não representa o “fim” da
religião. O que aconteceu é que a religião tomou outro sentido. Ela virou uma parte tão íntima
da vida que ela representa muitas vezes aquilo de que não queremos falar. (GAUCHET, 2016).
Para Camurça (2016), sim, o ser humano moderno está livre e autônomo. Mas o preço
que ele pagou foi a solidão e a perda de Deus.
112
28
A palavra buffering é traduzida em português por “tampão” e significa uma solução que mantém o pH
estabilizado mesmo quando se acrescenta a ela um ácido ou uma base.
114
sentido e da forma mais extrema dessas crises de sentido, a depressão. O dado encontrado na
pesquisa foi que os sujeitos mais religiosos iniciaram com quadro depressivos mais leves. Ou
seja, a religiosidade de fato desempenhou seu papel de ser um mecanismo de lidar com o
estresse e a depressão, prevenindo quadros mais graves.
Para Pargament (2000, p. 521), a religião tem cinco funções principais:
positivo, e os estilos delegação e súplica são considerados coping religioso negativo. Conforme
já citado no capítulo 1, estudos mostram que pacientes que usam mais o coping religioso
positivo tem melhor saúde mental, principalmente após eventos estressantes da vida,
desenvolvem menos depressão e caso a desenvolvam, melhoram mais rapidamente e atingem
taxas mais altas de remissão.
A religiosidade oferece recursos prontos (ready-to-use) de coping religioso positivo
(mas também de negativo). Para definir o motivo pelo qual alguns sujeitos se utilizam
majoritariamente de um ou outro estilo de coping, é necessário se investigar a história de vida
desse sujeito, a sua relação com a religião e suas tendências de personalidade e temperamento.
Na pesquisa que realizei, de fato a religiosidade desempenhou esse papel de coping, pois
os sujeitos mais religiosos se apresentaram, em um corte transversal, bem menos deprimidos
que os menos religiosos.
Dessa forma, a religião dá respostas àquilo que de outra forma não seria possível. Ou
seja, é fonte de significado, especialmente nas situações de eventos trágicos e crises (SPILKA;
SHAVER; KIRKPATRICK, 1985, p. 7). A partir do sexto axioma, decorrem os seguintes
corolários:
32 C6.1 Systems of religious concepts provide individuals with a comprehensive, integrated meaning-belief
system that is well adapted to acomodate and explain events in the world […].
C6.2 Systems of religious concepts satisfy the individual’s need or desire to predict and control events […].
C6.3 Systems of religious concepts offer individuals a variety of means for the maintenance and enhancement of
self-esteem […].
117
Para Jung, a psique (ou a alma) é um sistema autorregulatório, e assim, como o corpo,
sempre estará buscando seu equilíbrio. O equilíbrio da psique é condição indispensável para o
processo de individuação, que inevitavelmente acontecerá, quer o sujeito (o ego) colabore com
ele ou não. A depressão, vista como movimento da alma e não simplesmente como doença
cerebral, é dessa forma parte de um processo maior de desenvolvimento da psique, o processo
de individuação.
Mas, segundo Jung, em que consiste o processo de individuação? E qual o papel da
religiosidade nesse processo?
Jung faz uma definição utilizando-se de um exemplo:
Para o oráculo de Delfos, “Conhece-te a ti mesmo” significava: fica ciente de que não
és deus e não cometas o erro de pretender tornar-te um. Para o Sócrates de Platão, que
retoma a frase a seu modo, ela quer dizer: conhece o deus que, em ti, és tu mesmo
(itálico nosso). Esforça-se por te tornares, tanto quanto possível, semelhante a deus.
(VERNANT, 2006, p. 88 apud PAIVA; DIAS, 2010, p. 58).
O Si-mesmo é o arquétipo central da psique, que organiza toda a vida psíquica e é capaz
de curar o indivíduo. Assim como o corpo tem a capacidade de se defender de doenças, através
do sistema imunológico, e até mesmo de curá-las, o mesmo acontece com a psique. O arquétipo
do Si-mesmo contém todo o potencial do indivíduo, assim como uma semente contém todo o
potencial de uma árvore. O trabalho da individuação seria então dar condições dessa semente
se desenvolver, afastando os eventuais obstáculos para o crescimento individual. E assim como
a videira produz as melhores uvas (e por consequência, os melhores vinhos) quando é forçada
a viver em um ambiente com pouca água, muitas vezes o processo de individuação joga o
indivíduo em situações de estresse, dificuldades, perdas e depressão. Conseguir ter uma visão
que pode haver um objetivo final nessas situações pode ser de grande alívio para o indivíduo.
Dentro da perspectiva junguiana, a figura de Cristo nos facilita a compreensão do
arquétipo do Self: “[…] logo, aquilo que o indivíduo identifica em Cristo é o arquétipo que
exprime sua própria necessidade psíquica interior de integralidade e unidade: isto é, Cristo
‘exemplifica o arquétipo do Self’”. (PALMER, 2001, p. 174). Assim, no processo de
individuação, o indivíduo projeta em Cristo a imagem do seu Self, de forma que ao olhar para
Cristo, ele percebe o próprio Self: ele antevê a possibilidade de sua completa autorrealização,
completude e significação. No entanto, o indivíduo percebe também que poderá haver grandes
dificuldades para a realização desses objetivos. Numa perspectiva de individuação, Cristo não
é um exemplo a ser imitado literalmente, mas uma imagem com forte conteúdo simbólico e
transcendente, através da qual podemos compreender e aceitar o processo de individuação, com
suas dificuldades, renúncias e a sua constante tensão ética.
E qual o papel da religiosidade nesse processo de individuação? Jung diz que a atitude
religiosa (itálico nosso) não deve e não pode ser descartada no processo de individuação. A
atitude religiosa é uma função psíquica, como qualquer outro instinto. No prefácio de
“Psicologia e alquimia” vejamos o que ele diz, sobre a função religiosa da alma:
Não fui eu que atribuí uma função religiosa à alma; simplesmente apresentei os fatos
que provam ser a alma "naturaliter religiosa", isto é, dotada de uma função religiosa:
função esta que não inventei, nem coloquei arbitrariamente nela, mas que ela produz
119
por si mesma, sem ser influenciada por qualquer idéia ou sugestão. (JUNG, 1990, p.
25).
Quando Jung diz que nossa alma é naturaliter religiosa (“naturalmente religiosa”),
somos conduzidos, de forma heurística, à psicologia evolucionária. Se algo é natural, significa
uma tendência que está presente desde o nascimento, está nos nossos genes, e se está nos nossos
genes isso foi carregado ao longo dos milhões de anos da evolução humana (e, naturalmente,
representou algum tipo de vantagem evolutiva). Essa é a tese central de Pascal Boyer: nossa
mente foi preparada pela evolução para criar a religião (BOYER, 2001, p. 4). A evolução não
criou a religião, mas criou um cérebro capaz de adquirir ideias religiosas. Nesse ponto, a teoria
junguiana se aproxima da psicologia evolucionária.
O filósofo Luiz Felipe Pondé, que se declara “ateu não militante”, diz que falta a ele “o
órgão da fé” (PONDÉ, 2014), ou seja, amplificando o seu raciocínio, existe alguma parte na
maioria de nós que já está “preparada” para crer.
Para Jung, as religiões expressam, de forma organizada e protetora, conteúdos do
inconsciente coletivo. O contato com esses conteúdos faz parte do processo de individuação,
principalmente após o confronto com o inconsciente pessoal. Os conteúdos do inconsciente
coletivo, de acordo com a teoria junguiana, têm muita energia psíquica, de forma que se se
expressarem diretamente no sujeito, podem levá-lo a uma crise ou até mesmo à dissolução do
ego, na forma de psicose. A religião, dessa forma, é um meio através do qual é possível se ter
contato com o inconsciente coletivo com o mínimo risco de desintegração da personalidade.
Para Jung, a força do inconsciente coletivo e do empuxo à individuação é tamanha que eles irão
se manifestar, queira o sujeito ou não, e caso tenha a religião ou a religiosidade como recurso,
esse processo será facilitado. Em um estágio mais avançado da individuação, a religião
institucionalizada poderá ser questionada, de forma que ela não mais responda às necessidades
do sujeito em seu processo de se “tornar ele mesmo”. Assim, para Jung a religião é vista como
um meio, não como uma finalidade. A experiência religiosa pode ser um meio de se atingir a
individuação.
Toda tentativa de negar a significação da experiência religiosa vai levar à perda do
equilíbrio psíquico e à neurose. (PALMER, 2001, p. 181). Há uma passagem de Jung bastante
famosa, em que ele explicita isso:
Entre todos os meus pacientes na segunda metade da vida – isto é, que tinham mais
de trinta e cinco anos – não houve um único cujo problema, em última análise, não
era a descoberta de uma perspectiva religiosa com relação à vida. É seguro dizer que
cada uma dessas pessoas adoeceu por ter perdido aquilo que as religiões vivas de todos
os tempos têm dado aos seus seguidores, e nenhum dos que de fato se curaram
120
deixaram de recuperar sua perspectiva religiosa. É claro que isto nada tem a ver com
um credo particular ou o pertencimento a uma igreja”. (JUNG, OC 11, § 334, tradução
nossa). 33
O que seria para Jung “aquilo que as religiões vivas de todos os tempos têm dado aos
seus seguidores”? Imagens, símbolos e textos sagrados que permitem trazer sentido à vida e
alívio para os problemas e tensões que a humanidade enfrenta. Sobre isso, cito a opinião de
Michael Palmer:
[Para Jung] a experiência religiosa é uma experiência numinosa dos fundamentos
arquetípicos e eternos da própria humanidade e, nessa medida, capacita o indivíduo a
elevar-se acima de seus problemas pessoais e a se relacionar em vez disso com a
dimensão indestrutível e primordial de seu próprio ser psíquico (PALMER, 2001, p.
182).
Jung, além disso, não concorda com Freud no que diz respeito à natureza da religião.
Para ele, a religião não é uma neurose sexual: para começar, a neurose para Jung nem sempre
é sexual, então já é uma falácia dizer “neurose sexual”; e, além disso, a religião nem sempre é
uma neurose, a não ser quando ela seja disfuncional para o sujeito. Por fim, para Jung a neurose
pode ser um passo necessário no sentido da individuação. (PALMER, 2001, p. 142). Freud
descartou a religião caracterizando-a como infantil, e assim também ignorou sua qualidade de
tentar integrar conteúdos conscientes e inconscientes do indivíduo e de dar sentido prospectivo
às experiências. (PALMER, 2001, p. 144).
Ana Maria Rizzuto, citada em Palmer (2001, p. 102) também discorda da posição de
Freud sobre a religião:
Freud considera Deus e a religião uma ilusão infantil irreal...Tenho de discordar […].
Após a resolução edipiana, Deus é um objeto potencialmente adequado, e, se
atualizado no curso de cada crise do desenvolvimento, pode permanecer como tal na
maturidade e no resto da vida. Pedir a um indivíduo maduro e funcional que renuncie
a seu Deus equivaleria a pedir a Freud que renunciasse à sua própria criação, a
psicanálise, bem como à promessa “ilusória” quanto àquilo que o conhecimento
científico pode fazer. (RIZZUTO apud PALMER, 2001, p.102).
Jung também fala da perda da importância da religião no mundo atual, para o homem
moderno: “Nenhum espírito supraterrestre é capaz de prendê-lo com uma revelação interior.
Ao invés, ele se esforça por escolher religiões e convicções e veste uma delas, como se veste
uma roupa de domingo, desfazendo-se finalmente dela como se faz com uma roupa usada”.
33 Among all my patients in the second half of life - that is to say, over thirty-five - there has not been one whose
problem in the last resort wras not that of finding a religious outlook on life. It is safe to say that every one of
them fell ill because he had lost what the living religions of every age have given to their followers, and none of
them has been really healed who did not regain his religious outlook. This of course has nothing whatever to do
with a particular creed or membership of a church.
121
A palavra grega para “fim, finalidade” é telos. Assim, temos a palavra “teleologia”, que
diz respeito aos fins últimos de um processo. Uma atitude religiosa perante a vida permite um
contato do sujeito com seu arquétipo do Self, que assim se abre para a possibilidade de uma
sabedoria, de um aprendizado que pode estar fora dele mesmo. Esse aprendizado pode vir até
mesmo de uma experiência difícil ou estressante, ou até mesmo de uma depressão. Dessa forma,
a depressão passa a ter sentido para o sujeito, que assim pode suportá-la melhor. “O homem é
um ser de transcendência, tendo sua vivência plena caracterizada pela busca do significado
último de sua existência”. (PAIVA; DIAS, 2010, p. 50). Precisamos dar sentido e significado
às nossas experiências e às nossas vivências.
A teoria de atribuição de causalidade de Spilka, Shaver e Kirkpatrick também dá suporte
teórico ao fato de que a religião funciona para os sujeitos porque lhes traz sentido. Citamos seu
corolário 6.1: “os sistemas de conceitos religiosos fornecem aos indivíduos um sistema de
sentido compreensivo e integrado, bem preparado para acomodar e explicar os acontecimentos
no mundo. [...]”. (SPILKA; SHAVER; KIRKPATRICK, 1985, p. 7). Muitos críticos da
religiosidade dirão que a religião traz explicações para os acontecimentos que não
correspondem à verdade científica; é claro que às vezes a religião traz explicações inverídicas
e disfuncionais. Porém muitos acontecimentos não são facilmente explicáveis sem que se
recorra a uma compreensão teleológica. Por exemplo, acontecimentos trágicos como perda de
um ente querido ou uma doença grave como o câncer não tem uma explicação imediata. A
religiosidade poderá ajudar o sujeito a tecer uma rede de sentidos que “envolva” a tristeza e lhe
alivie, dando-lhe certa sensação de controle.
A depressão, a neurose, na maioria das vezes não é facilmente explicada ou
compreendida pelo sujeito em crise. Sobre esse assunto, cito novamente Barreto (2012, p.66):
“a neurose é entendida como uma espécie de corretivo para uma falsa atitude do eu consciente,
e ela brota da totalidade de um ser humano, que é compreendida na psicologia analítica pela
categoria do si mesmo”.
Ou seja, a neurose (a depressão) é uma criação intencional do arquétipo do Si-mesmo
(ou Self) para corrigir o caminho do sujeito até a individuação. A maioria, evidentemente,
projeta em Deus o arquétipo do Si-mesmo (e ele realmente representa a imago Dei dentro de
nós). A depressão é uma doença, mas segundo Barreto (2012, p. 66), “uma neurose não deveria
ser encarada apenas como uma doença, mas como um evento psicologicamente intencional”.
Sobre isso, cito também o próprio Jung, que em poucas palavras resume com
123
Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o
que ela significa, o que ela ensina, qual o sua finalidade e sentido. Deveríamos
aprender a ser-lhe gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos
perdido a oportunidade de conhecer realmente quem somos. Uma neurose estará
realmente "liquidada" quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é
curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da
natureza de curá-la. (JUNG, OC 10, § 361).
Há que se reconhecer: como deve ser difícil para um sujeito com depressão ser grato a
ela! Naturalmente, o paciente só conseguirá desenvolver essa atitude após uma melhora
significativa do quadro. Cabe aos profissionais de saúde fazer todos os tratamentos baseados
em evidências científicas para a melhora do quadro depressivo: medicamentos, psicoterapias
empiricamente validadas e a prescrição de exercícios físicos. A simples compreensão
intelectual de que a depressão tem um sentido nem sempre contribuirá para uma melhora do
paciente. Mas, após uma melhora, a depressão poderá ser ressignificada. E daí podemos extrair
ricos e sábios ensinamentos sobre a dinâmica psicológica do sujeito, os padrões, mitos e
esquemas que governam sua vida e as mudanças de atitude que ele deve tomar na vida, para
prevenir novas crises de depressão.
A depressão funciona como uma espécie de alarme psicológico. O arquétipo do Si-
mesmo quer dizer: alguma coisa está errada, e você precisa ser derrubado para perceber!
Assim, o sofrimento muitas vezes é necessário para o desenvolvimento do sujeito.
Desenvolvimento significa abrir mão de velhas atitudes, e isso de forma geral não é fácil para
o sujeito. Sobre isso, diz Barreto:
Uma vida sem nenhum sofrimento poderia até possibilitar crescimento ao sujeito, no
sentido econômico, social, ou puramente intelectual. Entretanto, desenvolvimento só é
adquirido com a destruição de atitudes inadequadas e tomada de consciência de partes não
agradáveis. Ainda citando Barreto: “para Jung, portanto, o sofrimento é um mal necessário,
atuando como uma espécie de motor na realização humana, vale dizer, na individuação”.
(BARRETO, 2012, p. 100).
A psicóloga Lisa Miller, em um pungente relato pessoal no Youtube, resume de forma
124
alegórica tudo o que foi dito nessa seção: para ela, a depressão é uma porta que possui dois
lados. Um de fato se volta para um canto escuro; o outro, no entanto, se volta para um lado
iluminado, que é o despertar espiritual do sujeito34. (MILLER, 2014).
Finalizo com Kierkegaard, um filósofo anacrônico, citado por Pondé (2011), que diz
que toda forma de autoconhecimento começa com um profundo entristecimento consigo
mesmo.
Podemos fazer algumas conexões com os sujeitos da pesquisa, já que a grande maioria,
em torno de 64%, não apresentou melhora significativa da depressão. Esses sujeitos ainda não
apresentaram seu despertar espiritual, que talvez virá somente depois de um longo percurso que
esses indivíduos deverão percorrer, seja através do contato com a religiosidade ou a
espiritualidade, seja através de uma psicoterapia. Destaco o fato, bastante significativo, que um
dos poucos entrevistados que apresentou melhora importante (entrevistado E) foi o único, em
toda a amostra, que estava realizando psicoterapia.
Por outro lado, a partir do dado que os pacientes mais religiosos tiveram menores níveis
iniciais de depressão, podemos dizer que nesses pacientes a depressão começou a aparecer, mas
o “órgão da fé”, a crença em algo superior, a crença de uma “teleologia dos sintomas” contribuiu
para amenizar o quadro. Assim, esses sujeitos não ficaram tão deprimidos, e o seu quadro seria
muito pior se eles não tivessem a religiosidade. Essa aliás foi uma das frases espontaneamente
relatadas pela entrevistada K: “seria muito pior se não fosse a religião”.
Tendo abordado o telos da depressão e estabelecido a leitura dos dados que a pesquisa
de campo revelou, agora vamos fazer uma classificação das tendências da religiosidade dos
pacientes deprimidos entrevistados e das tendências da depressão em cada tipo de religiosidade
descrita.
Tenho consciência de que tal tarefa é árdua e sujeita a críticas. Afinal, o encontro da
pessoa e sua religiosidade com a depressão é sempre uma reação química. A religiosidade sai
modificada depois da experiência depressiva, assim como a depressão se modifica de acordo
com a religiosidade que a pessoa tem.
Pensando em graus de evolução e de processo de individuação, dividi a religiosidade,
34 And so we continued and I found myself in community with those who for generations have known it:
depression is one side of the door and spiritual awakening is the other.
125
a) religiosidade vaga;
b) relação inadequada com Deus;
c) relação saudável com Deus.
Reitero que “Deus” pode ser pensado psicologicamente como o arquétipo do Si-mesmo,
a imago Dei em nós.
a) Religiosidade vaga: essa foi a tendência de 30% dos entrevistados, que mostram um
discurso vago e pouco reflexivo sobre a religiosidade, embora possam ter grande religiosidade
extrínseca, e as vezes até mesmo alta religiosidade intrínseca. Essas pessoas acreditam em Deus,
mas diante do estresse e das dificuldades ficam perdidas. Não sabem direito como a
religiosidade pode ajudá-las. Assim, abandonam a religiosidade. É como na parábola do
semeador: a planta que cresce com raízes superficiais é facilmente destruída pelo vento. Falta-
lhes um arrebatamento pela religiosidade, falta-lhes a busca de um sentido maior da vida. Penso
que os entrevistados A, G e I apresentaram tal tendência predominante. Não houve uma clara
tendência de melhora ou piora nesses sujeitos, com resultados dispersos.
b) Relação inadequada com Deus: o grupo mais comum, atingindo 40% dos
entrevistados. Também podemos dizer que foi o grupo que apresentou quadros depressivos
mais graves. Para elas Deus é um ser punitivo, que provoca medo. Alguns desse grupo
declararam-se ateus, mas na entrevista revelaram que vivem angústias religiosas, oscilam entre
o crer e o não crer. O não crer, nesses casos, é mais uma atitude de revolta com Deus do que
propriamente um ceticismo intelectual. O não-crer vem da emoção, da raiva, do fato de Deus
não os escutar. Essa é a posição principal dos entrevistados B, D, H e J. A grande maioria desses
entrevistados (75%) não melhorou do quadro depressivo ou até mesmo piorou.
c) Relação saudável com Deus: na amostra, 30% dos entrevistados apresentaram tal
tendência. Foi o grupo mais heterogêneo, sem dúvida. As dificuldades estão aí, mas eles não
perdem a fé, continuam buscando, questionando, caindo e levantando. Mas quanto ao nível de
envolvimento religioso pelo IRI, os números são irregulares, um com alta, outro com média,
outro com média-baixa. São as tendências dos entrevistados C, E e F. Todos esses entrevistados
apresentaram alguma melhora ou tiveram sintomas depressivos mais leves do que o restante
da amostra. Dois entrevistados melhoraram bastante, reduzindo mais que 10 pontos na escala
BDI. Assim, a avaliação subjetiva do entrevistador que o sujeito tem uma relação saudável com
Deus esteve associada a melhor evolução da depressão. Como já foi relatado por Jung, o Si-
mesmo é um arquétipo com grande poder curativo. A psique aciona mecanismos de cura e de
126
Não conseguimos estabelecer uma relação positiva entre maior religiosidade e maior
melhora da depressão moderada a grave. No entanto, o percurso da pesquisa de campo e as
entrevistas com os pacientes nos fizeram concluir que conversar sobre religiosidade e
espiritualidade com os pacientes deprimidos melhora substancialmente a qualidade do cuidado
que lhes prestamos. Foram bastante frequentes os agradecimentos ao pesquisador por poder
falar desse tema. Algumas vezes, pacientes que nem me conheciam, mas que sabiam que eu ia
conversar sobre religiosidade nem esperaram eu fazer a primeira pergunta, e já foram contando
a sua história. Assim, conversar sobre religiosidade e espiritualidade na consulta médica
melhora muito a relação médico-paciente.
Essa é a dimensão do chamado cuidado espiritual. Para Hefti e Esperandio (2016, p.
25), essa dimensão está fundamentada em uma visão holística (biopsicossocioespiritual) tanto
da pessoa quanto da doença. Isso é importante porque a doença não é apenas um processo
biológico no organismo, “ela separa famílias e locais de trabalho, quebra padrões preexistentes
de coping (enfrentamento) e levanta questões sobre a relação do sujeito com o transcendente.
(SULMASY, 2002, p. 26 apud HEFTI; ESPERANDIO, 2016, p. 25).
Se Jung reduz a religiosidade à imanência e retira as “máscaras de Deus”, Viktor Frankl
(2007, p.19) com o seu conceito de inconsciente espiritual devolve a transcendência à
religiosidade. Para ele, o espiritual é a quarta dimensão do ser humano, ao lado do biológico,
do psicológico e do social. Na prática médica, especialmente a psiquiátrica, o espiritual não
pode ser deixado de lado.
Hefti e Esperandio (2016, p. 31) enfatizam que os médicos, como líderes das equipes de
tratamento, são os responsáveis por certificar de que as necessidades espirituais dos pacientes
estão sendo bem atendidas e os conflitos espirituais estejam sendo avaliados, pois são fatores
que interferem bastante na evolução do tratamento.
A medicina evoluiu enormemente no século XX e trouxe tecnologias e exames antes
inimagináveis. Ao mesmo tempo, alguns pacientes reclamam que os médicos estão muito
técnicos e desumanos. Trazer a dimensão do cuidado espiritual para a medicina é requalificar a
relação médico-paciente, com ganhos em satisfação de todos os lados envolvidos no processo
doença-cura.
129
4 CONCLUSÕES
A principal limitação quantitativa do estudo de campo foi a baixa amostra, que não nos
permitiu chegar a conclusões estatísticas muito significantes.
As chaves de leitura para a interpretação dos resultados foram a teoria do coping
religioso espiritual de Pargament, a psicologia existencial e a crise de sentido da
contemporaneidade e a psicologia analítica de Jung.
A crise de sentido da contemporaneidade associada a secularização pode ter um efeito
“a jusante” na origem de quadros depressivos, ou seja, estar na base social da epidemia de
depressão dos nossos tempos, já que a religiosidade em diversos estudos prévios mostrou efeito
na prevenção de quadros depressivos. A religiosidade proporciona sentido, conforto,
explicações e colaboração da comunidade religiosa, o que alivia o estresse do sujeito e pode
prevenir que desenvolva quadro depressivo, ou atenuar a gravidade desse quadro, caso ele surja.
Nos sujeitos da pesquisa isso ficou evidenciado, pois os sujeitos mais religiosos
mostraram alguma tendência a ter quadros depressivos menos graves. No entanto, a
religiosidade não esteve associada à melhora, no período do acompanhamento do estudo. Parece
que quando a depressão se inicia, e atinge certo grau de gravidade, a religiosidade já não
apresenta muito efeito.
As entrevistas nos permitiram classificar os sujeitos da pesquisa em três grupos:
religiosidade vaga, relação inadequada com Deus e relação saudável com Deus.
O único critério que esteve associado à melhora clínica foi o paciente ter sido
classificado em “relação saudável com Deus”, e o paciente estar fazendo algum tipo de
psicoterapia (apenas 10% estavam).
Alguns sujeitos relataram acolhimento inadequado de suas comunidades religiosas
quando adoeceram, o que nos leva a concluir que os dirigentes das religiões teriam que ter maior
preparo para lidar com sujeitos deprimidos, e orientar os fieis de um modo geral a também fazê-
lo. Lévinas nos propõe uma religiosidade baseada no acolhimento do Outro, mesmo com todas
as suas diferenças. Esse acolhimento também deveria ser realizado ativamente pelos
profissionais de saúde, especialmente médicos, pois conversar sobre religiosidade com os
pacientes, especialmente os deprimidos, lhes traz grande conforto além de melhorar bastante a
relação médico-paciente.
Elaboradas as conclusões, chega a hora de finalizar. Os objetivos da pesquisa foram
alcançados? Sim.
Consegui atingir o objetivo geral, que era responder à pergunta: maior nível de
envolvimento religioso significa melhor evolução da depressão? Consegui, e a resposta a essa
pergunta, de acordo com as entrevistas realizadas e dados coletados, foi não.
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