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O adoecimento mental do trabalhador: perspectivas da psicologia do trabalho

The worker's mental illness: perspectives from the work psychology

La enfermedad mental del trabajador: perspectivas desde la psicología del trabajo

Amanda Cláudia Alves Santos


Aluna concluinte do curso de Psicologia do Centro Universitário Una
Email:amandapompeu00@yahoo.com.br

Heloiza Fernandes da Silva Santos


Aluna concluinte do curso de Psicologia do Centro Universitário Una
Email:heloy18@yahoo.com.br

Isabella Ramos dos Santos


Aluna concluinte do curso de Psicologia do Centro Universitário Una
Email:is-abelaramos@hotmail.com

Rosemary Maria do Carmo


Aluna concluinte do curso de Psicologia do Centro Universitário Una
Email:marycarmo2015@hotmail.com

Suellen Susan Merlo


Aluna concluinte do curso de Psicologia do Centro Universitário Una
Email:suellenmerlo@gmail.com

Me. Túlio LouchardPicinini Teixeira


Professor orientador do trabalho de conclusão de curso
Centro Universitário Una
Email: tulio.teixeira@prof.una.br

Belo Horizonte
2021
Amanda Claudia Alves Santos
Heloiza Fernandes da Silva Santos
Isabella Ramos dos Santos
Rosemary Maria do Carmo
Suellen Susan Merlo
Túlio LouchardPicinini Teixeira

RESUMO
O presente estudo foi elaborado a partir de pesquisas bibliográficas e visa analisar os aspectos das
organizações que predispõem o adoecimento mental dos trabalhadores e os quadros de doenças
psicossomáticas. Tal abordagem considera a relação entre sujeito e a atividade laborativa a partir de
uma perspectiva transhistórica e dialética. Além disso, o texto também elabora explanações sobre as
contribuições que a Psicologia do Trabalho pode exercer neste cenário para prevenir e cuidar dos
possíveis efeitos deletérios à saúde mental.

Palavras chaves: História do trabalho, Doenças psicossomáticas, Psicologia do trabalho, Saúde


mental.

ABSTRACT

This study was based on bibliographical research and aims to analyze the aspects of organizations
that predispose workers to mental illness and psychosomatic illnesses. Such an approach considers
the relationship between the subject and the work activity from a transhistorical and dialectical
perspective. In addition, the text also elaborates explanations on the contributions that Work
Psychology can exert in this scenario to prevent and take care of possible harmful effects on mental
health.

Key words: Work history, Psychosomatic diseases, Work psychology, Mental health.

RESUMEN

Este estudio se basó en una investigación bibliográfica y tiene como objetivo analizar los aspectos
de las organizaciones que predisponen a los trabajadores a las enfermedades mentales y
psicosomáticas. Tal enfoque considera la relación entre el sujeto y la actividad laboral desde una
perspectiva transhistórica y dialéctica. Además, el texto también elabora explicaciones sobre los
aportes que la Psicología del Trabajo puede ejercer en este escenario para prevenir y atender
posibles efectos nocivos sobre la salud mental

Palabras clave: historial de trabajo, Enfermedades psicosomáticas, Psicología del trabajo, Salud
mental.

1 Introdução

Sabe-se que o trabalho é atividade imprescindível para o desenvolvimento das

capacidades humanas e do elo social. Sua importância é significativa quando se considera que a

formação de identidades (papéis sociais) está vinculada à profissão que se exerce, bem como o

status de reconhecimento, emancipação e possibilidades de ascensão. Além disso, o trabalho é a

base para a estruturação de uma sociedade e perpassa pelas mais variadas formas de organizações

do corpo social. É também fator constituinte do fenômeno psicológico, que nada mais é que a

representação simbólica do que é externo no indivíduo. Por isto, fica notória a relação íntima que a

laboração possui com as condições de existência e saúde do trabalhador, pois o modo de produção,

não produz somente o produto, mas produz também um modo de existência. (Marx, 1983)

Nessa perspectiva, o debate acerca do adoecimento mental dos trabalhadores ainda se

mostra muito pertinente na sociedade brasileira pois ao avaliar as relações entre trabalho e saúde,

observa-se que as empresas tendem a aceitar somente aqueles que gozam de boa “saúde”. Tal

premissa pode causar relações eufemizadas entre empregador e trabalhador, dificuldades de

diagnóstico do sofrimento e da precariedade no ambiente, enfim podem resultar em efeitos

deletérios à saúde mental dos trabalhadores.

Dentro deste cenário, para se compreender os fenômenos que predispõem o adoecimento

mental do trabalhador, é imprescindível investigar as configurações sócio-históricas que

constituíram o mercado de trabalho, assim como a dinâmica relacional entre organização e


empregado. O sujeito trabalhador, para cumprir determinada tarefa, tende a aceitar a prescrição da

atividade laboral, que se constitui por meio da elaboração de estratégias subjetivas para lidar com o

sofrimento, instigados por compensações financeiras ou atépela garantia do emprego.

Considerando então este cenário delinearam-se os objetivos da presente pesquisa. O objetivo

geral foi verificar de que modo o trabalho pode propiciar o adoecimento mental do trabalhador.

Mas, para ter uma resposta mais assertiva para esse objetivo geral, traçou-se os seguintes objetivos

específicos: compreender a relação entre sujeito e trabalho em uma perspectiva trans-histórica,

dialética;identificar fatores presentes na organização do trabalho que predispõem ao adoecimento

psíquico do trabalhador; e mensurar a contribuição da psicologia do trabalho e as práticas que visam

promover a saúde mental do trabalhador e o enfrentamento ao lidar com adoecimento psíquico. As

análises ora realizadas foram fruto de um estudo bibliográfico de natureza exploratória.

Portanto, nas seções do texto que se segue verifica-se primeiramente,de forma sucintaas

principais configurações históricas do trabalho e a relação do trabalhador com a atividade laboral.

Na segunda seção exploramos alguns conceitos desenvolvidos pelo campo da psicologia do

trabalho, tais como: a invisibilidade real do trabalho e a diferença entre o queé o trabalho prescrito e

trabalho real. Tais abordagens permitem entender os fatores que predispõem oadoecimento mental

do trabalhador e o surgimento de algumas doenças laborativas. Por fim, na última parte, procura-se

entender de que modo a psicologia do trabalho pode contribuir para formulação de estratégias que

minimizem o adoecimento do trabalhador e propicie relações equilibradas e saudáveis dentro do

ambiente organizacional, considerando os desafios existentes e as limitações.

Assim sendo, apresenta-se a seguinte pergunta norteadora desta pesquisa: como o

trabalho pode afetar a saúde mental do trabalhador? Entende-se como relevante retomar a discussão

em função do contexto recente onde ocorrem iniciativas que visam flexibilizar as leis trabalhistas

dado os eventuais impactos da pandemia Covid 19. O interesse das pesquisadoras pelo estudo da

temática justifica-se pelas seguintes razões:a) no campo pessoal, é fruto de algumas disciplinas

lecionadas que tinham como foco principal elucidar as relações existentes entre sujeito, saúde e
trabalho e isso trouxe uma nova perspectiva para se pensar a dinâmica da atividade laboral e sua

relação com o adoecimento mental; e b) no campo acadêmico, pois pretende-se contribuir para o

conhecimento científico no que diz respeito à explanação teórica da associação entre saúde e

trabalho, concatenando alguns conceitos importantes desenvolvidos ela psicologia do trabalho. Vale

ainda lembrar que a relevância do presente estudo se torna importante com a flexibilização dos

direitos trabalhistas, do aumento da insegurança e do desemprego, principalmente em decorrência

da pandemia covid-19, cuja impactos revelam um aumento dos transtornos mentais. Portanto,

destaca-se a atuação crítica da psicologia do trabalho.

Em suma, este trabalho pretende analisar, entender e verificar os fatores existentes nas

organizações que predispõem o adoecimento mental do trabalhador e a contribuição da psicologia

do trabalho no sentido de viabilizar estratégias de prevenção e cuidado com a saúde psíquica dos

sujeitos na relação com a atividade laboral.

2 A relação entre sujeito e trabalho numa perspectiva trans-histórica dialética.

Iniciaremos o estudo com uma breve revisão da literatura evidenciando alguns conceitos

e períodos históricos que compõem o desenvolvimento do trabalho e sua relação com o sujeito.

Objetiva-se compreender como a relação homem/trabalho afeta a saúde mental do indivíduo.

Para compreender o significado do trabalho, segundo a autora Lima (2002), temos que

considerar sua dupla dimensão: o trabalho enquanto categoria permanente, cujo sentido genérico

consiste na autoconstrução humana, indissociável do homem e a outra dimensão é as configurações

históricas do trabalho e seus diferentes modos de produção. Portanto,

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por
sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. [...] Ele põe em movimento
as forças naturais pertencentes à sua corporeidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se
da matéria natural como forma útil para a sua própria vida. Ao atuar por meio desse movimento, sobre a
Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica ao mesmo tempo a sua própria natureza (Marx,
1983, p.149)
Segundo Fortes (2001), o autor Lukács, ao analisar a obra “O Capital” de K. Marx,

definiu o trabalho como um sistema complexo de inter-relações entre o ser natural e o ser social, ou

seja, esta dinâmica resulta na autoconstrução do ser social pois o trabalho exerce a função de

mediador entre a sociedade e a natureza. Assim podemos afirmar que,

Tudo o que a cultura humana criou até hoje, nasceu não de misteriosas motivações internas espirituais (ou
coisas que o valham), mas do fato de que, desde o começo, os homens se esforçaram, para resolver
questões emergentes da existência social. É a série de respostas formuladas a tais questões que damos o
nome de cultura humana” (Lukács, 1991 apud Fortes, 2001, p. 13)

Sendo assim,Fortes (2001) toma o homem como um sujeito prático que reage de forma

reflexiva e modifica a natureza conforme a suas necessidades e satisfações.Nessa perspectiva do

sujeito prático, surge o conceito de teleologia, que considera o trabalho como uma atividade

meramente humana, presumindo a implicação da consciência do sujeito em todo o processo

laborativo pois, ao idealizar previamente aquilo que se deseja elaborar, bem como todas as suas

etapas constituintes, o homem revela capacidades cognitivas e singulares ao seu grupo ontológico

ou espécie. (Lima,2002)

É impossível que o trabalho não seja precedido por uma idealização para arquitetar sua

finalidade e etapas. Neste sentido, define-se dois momentos essenciais para a execução da atividade

laboral: pensar/produzir.

Tal essência de fato consiste nisto: um projeto ideal precede o atuar materialmente, uma
finalidade pensada que transforma a realidade material, coloca na realidade alguma coisa de
material que, no confronto com a natureza, apresenta algo qualitativamente e radicalmente
novo. (Fortes, 2001, p.58)

A potencialidade de se realizar o trabalho desdobra-se na ideia de este ser

intrinsecamente humano e distinto por cada sujeito o que torna necessário considerar os aspectos da

subjetividade desta atividade. Ora, o ser humano realiza a sua subjetividade na materialidade

objetiva, uma vez que ao concretizar um trabalho no meio externo, utiliza-se da sua intelectualidade

e peculiaridade de estilos, produzindo dessa forma obras inigualáveis e reconhecidas como tais.

(Lima, 2002)
Outro conceito que faz referência à complexidade da atividade humana é o descrito pela

causalidade, que diz respeito aos aspectos próprios de um objeto com o qual se trabalha, que irá

ditar de modo lógico quais devem ser as ferramentas e os modos pelo qual a ação deverá ser

operada.Segundo Lukacs (1991apud Fortes, 2001, p. 55), a relação entre os dois fundamentos

(teleologia e causalidade) está sobre o prisma da contingência da natureza e da intelectualidade

humana. Enquanto a natureza externaliza os princípios gerais de seus fenômenos, a cognição

humana opera transformações nesta materialidade objetiva a partir do reconhecimento destes

princípios, o que desencadeia uma sequência lógica de possibilidades criativas. Assim, é possível

compreender que:

A casa é qualquer coisa de materialmente existente tanto quanto a pedra, a madeira etc.E, no entanto, a
posição teleológica faz surgir uma objetividade totalmente diversa em relação aos elementos primitivos.
Para fazê-lo, é preciso o poder do pensamento e da vontade humanaque, fatual e materialmente, ordenam
tais propriedades em uma conexão totalmente nova em seu princípio.(Fortes, 2001 apud Lima, 2002, p. 8)

O referido processo nada tem de unilateralidade poisé essencialmente dialético, ou seja,

da mesma forma em que a consciência submete a natureza, segundo seus propósitos, é preciso se

submeter a ela considerando seus atributos. Portanto, conclui-se que o trabalho, além de ser uma

atividade exclusiva do ser humano, produz efeitos e modifica aquele que o idealiza e o executa:

[...] Ao se modificar a forma de produzir, a forma de trabalho, modifica-se também o homem. Pois nada
que é útil ao homem se encontra pronto na natureza. Precisamos dificultá-la, dando-lhe utilidade e, ao
fazê-lo, modificamos a sua própria natureza modificando a si mesmo. Ele não se modifica
biologicamente, embora no seu corpo fiquem as marcas do seu trabalho. (Lima, 2002, p. 11)

Ao considerar os aspectos do caráter transitório do trabalho e as diferentes formas de

produção, Lima (2002) relembra as contribuições do filósofo Chasinque discute a problematização

acerca de teorias que defendem a ideia de extinção do trabalho, o que ele definiu como modismos

teóricos contemporâneos. Para ele, as mudanças sociais e econômicas podem resultar na extinção de

algumas categorias de trabalho. Porém, o trabalho é a atividade ontologicamente estruturante do ser

humano, ou seja, não existe homem sem trabalhoe trabalho sem o homem.
Através de tal relação de interdependência entre o ser humano e o trabalho, conclui-se

que, por seu constante desenvolvimento, o ser humano tem a necessidade de elementos externos a si

para garantira sua existência. (Lima, 2002)

3 Modos de produção do trabalho

Para compreender o desenvolvimento do trabalho é preciso considerar os processos

históricos desde a forma mais antiga de produção, que é a comunidade primitiva, até o capitalismo.

Desse modo, tem-se a comunidade primitiva, que é caracterizada por uma relação de coparticipação

sobre o domínio da terra, ou seja, a vida comunal determinava as produções e ações dos indivíduos.

Neste modo de produção comunal o coletivo se sobrepunha à individualidade, apesar do indivíduo

exercer uma relação direta com a terra, ou se considerar o proprietário desta, este estava sujeito às

dinâmicas e decisões da comunidade (que limitava a sua potência). Também a propriedade sobre a

terra possuía um caráter temporário enquanto o indivíduo pertencesse à condição de membro da

comunidade.

Todas as formas [...] nas quais a comunidade se assenta em sujeitos constituindo uma unidade objetiva
determinada com as condições de produção desta ou antes sua existência subjetiva determinada supõe as
comunidades mesmas com as condições de produção; todas as formas correspondem necessariamente a
um desenvolvimento somente limitado, e limitado em seu princípio das forças produtivas. (Marx, 1979
apud Alves,1999, p. 50)

Outra forma de produção é a da antiga comunidade clássica, que também se baseava na

vida comunal, e teve como pressuposto a produção e ação dos indivíduos que migraram da vida

agrária para uma predominantemente urbana, graças ao surgimento da polis como centro dinâmico

da vida social e política. Neste período a individualidade ganha espaço e reconhecimento, bem

como a vida urbana não se funda apenas sob os laços sanguíneos, criando o intercâmbio societário,

em que os indivíduos através de suas interações instauram a comunidade. (Lima, 2002)

Contudo, os indivíduos ainda dependem em larga instância da vida comunal para

sustentarem seus projetos de produção e propriedade. Permanece ainda a indissociação entre sujeito
e trabalho, característica do processo da escravatura, uma vez que a atividade é inteiramente ligada

a determinações que limitam os aspectos cognitivos humanos à simplesmente compor elementos do

processo em detrimento de uma ação ativa e transformadora. (Alves, 1999)

Mais adiante, outra formatação societária se manifesta na comunidade germânicae essa

é marcada pelo isolamento de seus membros em suas propriedades. Tal comunidade se apresenta

ainda mais cerceada do que a clássica no quesito social e ocorre de forma aleatória e

impremeditada. Não obstante, no contexto germânico, a propriedade conjectura a comunidade. Tal

organização demonstra uma definição distinta de sociabilidade;

Devido à causalidade das interações, além do caráter abstrato das mesmas, não se pode falar que a
comunidade germânica gera o que se denomina sociabilidade, isto é, um comportamento recíproco de
indivíduos, pois estes aparecem como entidades determinadas e circunscritas por seu isolamento mútuo.
(Alves,1999, p. 74)

No modo de produção feudal, alguns aspectos e determinações da era germânica foram

mantidos, a exemplo, a valorização da individualidade, o que culminou no declínio da vida comunal

por meio do conflito entre a urbanização das cidades em detrimento ao modo de vida no campo. O

mundo feudal se configurou como unidade autônoma de transição entre os dois núcleos. Sendo

assim,

Esse caráter de transição "é conferido exatamente pelo fato, indicado por Marx, de que o modus societário
feudal se comporta como um pêndulo a oscilar ora na direção das formas de organização e apropriação
social de mundo próprios à antiguidade (em especial o mundo germano), ora fazendo frente e
incorporando os novos patamares de atividade e divisão social gerados no interior da vida urbana. (Alves,
1999, p.79)

Esta configuração culminou em relações hierárquicas de dominação e servidão, por

meio da apropriação dos instrumentos de produção, que extinguiu as relações de propriedade das

comunidades primitivas, definido por Alves (1999, p.80) como “dilaceração das formas mais

antigas do ser social''. Portanto, a oposição cidade/campo, propiciou novas dinâmicas sociais como

a interação entre comércios, a atribuição de valores para trocas de mercadorias, a separação dos
trabalhadores em relação ao terreno e a propriedade das condições de produção, marcando o

surgimento do capitalismo.

No início do capitalismo ocorreu a aceleração do processo de dissolução do modo de

vida comunal, estabelecendo uma nova forma de vida societária. Houve um enfraquecimento dos

vínculos entre os indivíduos transformando as relações sociais e a atividade produtiva. Porém, é

importante ressaltar que tal dissolução não foi por vontade dos indivíduos, e sim, devido ao caráter

de apropriação dos recursos, da força e da potencialidade produtiva humana, que culminaram na

criação de empregos assalariados. Nesse período, o indivíduo que não tinha mais a propriedade,

passou a vender a sua força de trabalho. (Alves, 1999 apud Lima, 2002)

Tal configuração estabeleceu a massa de trabalhadores livres, que já não tinham o

domínio dos meios de produção para sua própria subsistência, e passaram a vendersua força de

trabalho. Isso trouxe importantes transformações no modo de vida, na relação com o trabalho, e na

dinâmica de coação, ou seja, o trabalho forçado pela comunidade, cede lugar à condição de não-

proprietário. Essa nova condição ampliou a atividade produtiva e contribuiu para maior

individualidade em seu processo, o oposto da limitação na vida comunal, em que o trabalho tinha

um caráter mais objetivo. Também surgiram outras formas de interatividade social que

apresentavam um caráter volúvel, diferente da estabilidade existente nas comunidades primitivas já

que a vida em comum não desempenha mais o papel central. (Alves 1999, apud Lima, 2002)

O advento do capitalismo propiciou o status de interdependência dos indivíduos,

consolidando a atmosfera para troca livre de mercadorias e valores, por meio de mediações e

intercâmbios, ou seja, a objetivação voltada para a própria produção na formação pré-capitalista

passa a ser direcionada pelo dinheiro. Desse modo os indivíduos que outrora eram criadores se

tornaram produtores de valores e de riqueza, denominados por Alves (1999) como “sujeitos de

troca”.

O dinheiro é o problema da modernidade por excelência. Ele não existe mais como um elemento à
margem da vida social, mas é o próprio meio desta vida social. É o elemento que ordena, une e
vivifica todas as manifestações da vida e da produção dos indivíduos. Frente a ele, nenhuma outra
determinação pode reivindicar dignidade ou nobreza de per se. O valor, as necessidades de
reprodução deste e sua lógica é agora a própria medida humana, a vida em comum dos indivíduos, seu
liame essencial e real. O dinheiro surge como a verdadeira instância que estabelece o vínculo entre os
indivíduos”. (Alves, 1999, p. 102-103)

Tal relação de dependência passa a conectar os indivíduos pelas mercadorias e pelo seu

poder de troca, o que propiciou a busca pela igualdade e equiparação correspondente ao valor das

mercadorias. Desse modo, cada indivíduo tem validação quando participa desse processo de troca, o

que Marx definiu como objetivação máxima da própria sociabilidade. Com isso o dinheiro se torna

o elemento de ligação entre os indivíduos e assim reduz o homem ao status de mercadoria. (Lima,

2002)

Essa nova forma de interação social modificou as relações entre os indivíduos, seu

modo de existência, e a atividade de trabalho, como exemplo, a distinção entre o trabalho que

objetivava a subsistência da comunidade, e o trabalho para obtenção de valores e riquezas,

transformando o seu significado primário. Isso permitiu um maior desenvolvimento humano, pois

os indivíduos passaram a se relacionar com os materiais, e os meios, o que antes era só produzido,

agora é transformado e incutindo algum valor. (Lima, 2002)

Por outro lado, esse valor determinará de que modos os indivíduos irão produzir a sua

existência, assim:

A atividade que produz riqueza é indicada por Marx como aquela que, ao mesmo tempo, se opõe a si e ao
seu resultado o agente de produção. Os indivíduos se objetivam sob a forma de riqueza e, ao fazerem isto,
criam na outra ponta entes estranhos que se lhes opõem como forças e coisas autônomas. Este
estranhamento se coloca para Marx como processo no qual se opera uma usurpação da atividade dos
indivíduos. Usurpação na qual, o trabalho vivo, a atividade efetivadora e a efetivação dos indivíduos,
torna-se um elemento que se dirige à reprodução do valor e não apenas à expressão ativa da vida dos
indivíduos. (Alves, 1999, p. 110)

A sociabilidade do capital colocou a objetivação dos indivíduos como mera atividade de

sobrevivência e estabeleceu uma relação de troca entre trabalhador e capitalista. Assim, a força de

trabalho é trocada por dinheiro,ou seja, a mesma condição das mercadorias. Isso resultou na

submissão do indivíduo/trabalhador, que cedeu sua condição subjetiva da própria atividade ea perda

do controle sobre sua própria existência.

No capitalismo, ocorre uma produção inédita de riquezas, mas, simultaneamente, a destruição do produtor
dessas riquezas. Na ordem atual, o trabalho torna o homem eminentemente social, permite, pela primeira
vez na história, a emergência da individualidade, além de, também pela primeira vez, criar a possibilidade
de domínio da natureza pelo homem. Mas, ao mesmo tempo, transforma-se em mero meio de subsistência
e submete o homem a um processo progressivo de destruição. (Lima, 2002 p. 41)

Tais repercussões e características dessa forma de sociabilidade se expandiram com a

revolução industrial que ocorreu no século XVIII, em que a organização laboral passou a se

sistematizar como padrão de produção em escala, já que o aumento dos centros urbanos demandava,

cada vez mais, produtos. A partir disso houve construções das fábricas, o desenvolvimento da

mecanização da produção, que foi difundida a princípio pelo Taylorismo e aprimorada pelo

Fordismo. Essa forma de organização se tornou parte central da atividade laboral, reduzindo o

caráter da concepção do produto para uma mera execução e a perda do controle do trabalhador

sobre o processo produtivo, assim como a sua representação. (Araújo & Morais, 2017)

No final do século XX, após a implementação das teorias que objetivavam a

organização e estrutura dos processos de trabalho, como Toyotismo, que visavam a descentralização

do trabalho, a divisão da funçãoe sua automação para produção em grande escala, o trabalho passa a

ocupar maior tempo na vida dos indivíduos. Novos segmentos e contratos de trabalhos são criados,

assim como novos programas de gestão com um modelo japonês de cunho neoliberal que visava a

participação dos lucros e resultados e a flexibilização para aumento da produção. Tal ideário

culminou no aumento da informalidade e na precarização do trabalho. (Antunes, 1995apud Araújo

& Morais, 2017)

A flexibilização toyotizada desencadeou diversas mudanças no mercado de trabalho,

tais como: trabalho informal, trabalho temporário, teletrabalho, mudança na jornada, alteração dos

contratos, e a terceirização das empresas, que se ramificaram em várias do tipo micro e pequenas, o

que aumentou a precarização dos contratos trabalhistas. Esse processo desencadeou a separação dos

trabalhadores, entre os que eram considerados estáveis (núcleo de produção), os periféricos, os

terceirizados, e os temporários, os que tinham qualificação técnica e os sem qualificação. Isso

representou oferta reduzida de trabalhos bem pagos e como consequência maior instabilidade dos
trabalhadores, principalmente dos trabalhadores sem qualificação ou periféricos. (Kovács,

2003apud Araújo & Morais, 2017)

A década de 70 foi marcada pela crise do fordismo, que ampliou o desemprego e o

aumento da flexibilização dos direitos para contratação ou demissão dos trabalhadores, situação

reforçada pela implementação de políticas neoliberais. Desta forma “o mundo do trabalho passa a

ser regido cada vez mais pelas oscilações de mercado, e para tanto, é necessário que indústrias e

empresas prestadoras de serviços tenham maior flexibilidade de contratação e demissão de pessoal",

aumentando o número de empregos informais, e a vulnerabilidade das relações de trabalho, já que o

trabalhador sem estabilidade passa a ter medo do desemprego e se submete as péssimas condições

de trabalho, à discriminação e outras formas de assédio. (Aquino, Moita, Correa & Souza, 2014, p.

177).

Nesse contexto observa-se que a partir da década de 90 as relações de trabalho ficaram

cada vez mais frágeis, inseguras e precárias devido à competitividade de mercado, ou pela

disseminação de políticas neoliberais, que justificam as mudanças como sendo cruciais para o

avanço econômico, muitas vezes feitas com a finalidade de reduzir os direitos trabalhistas. Essas

mudanças permitem a flexibilização das empresas, oque pode resultar no aumento da jornada de

trabalho, baixo nível salarial e falta de equipamentos ou condições mínimas para a execução do

trabalho. (Araújo & Morais, 2017)

Tal condição aumentou a vulnerabilidade do trabalhador, reduzindo sua relação de

pertencimento e representação social. Surgiu uma dinâmica de mercado capaz de reduzir o

indivíduo a mera massa de produção que pode ser facilmente substituída por outra mão de obra

barata, devido à alta rotação de pessoas e a terceirização. Assim, para Campo e Ferreira (2016 apud

Araújo & Morais, 2017), o desgaste físico e psicológico, a baixa autoestima, a pressão por

resultados e a insatisfação são aspectos inerentes a esse novo mundo de trabalho, e, dessa forma, a

questão da qualidade de vida no trabalho passa a obter destaque e demanda projetos para buscar

solução para esses problemas.


Diante do que foi apresentado vimos que o trabalho é indissociável do sujeito, sendo

elemento central da sua existência, interatividade social e sua representação no mundo. Sendo

assim, é imprescindível a compreensão do contexto histórico/cultural para investigar os

determinantes e os impactos em relação à saúde mental do trabalhador. Tal assunto será a seguir

abordado.

4 O adoecimento mental do trabalhador

Como vimos anteriormente, a compreensão do trabalho pelo viés de seu sentido trans-

histórico e dialético e como estrutura fundante do ser social, além de base para a autoconstrução dos

sujeitos, é o alicerce para se pensar os componentes que atuam na relação indivíduo e atividade

laboral, delineando os processos que envolvem a saúde versus adoecimento. A história do trabalho,

revela a intrínseca ligação que os sujeitos sociais possuem para com o meio externo, sendo

imprescindível o exercício de tarefas previamente idealizadas em sequências lógicas, para permiti-

lo atuar neste meio, considerando as necessidades de seu desenvolvimento e da própria

sobrevivência. (Lima, 2002)

Várias modificações em relação ao trabalho ocorreram nos últimos tempos, cujas bases

que antes eram vinculadas exclusivamente à sobrevivência, passaram a ter fatores mais ligados ao

desenvolvimento intelectual dado o advento da automação ou de aparatos tecnológicos em

detrimento da produção manufaturada. Tais alterações exigem dos sujeitos habilidades cada vez

mais sofisticadas para sustentarem a nova ordem das atividades. (Lhuilier, 2012)

A partir das novas demandas do mercado de trabalho com seu caráter amplamente

competitivo direcionado para o acúmulo de bens e do aumento da produção, surgem questões

acerca dos prejuízos e de sofrimento psíquico do trabalhador. Este fato é perceptível na negligência

de certos aspectos da atividade laboral, como por exemplo a desconsideração da distância e ou

diferença entre o que é trabalho prescrito e o trabalho real (Lhuilier, 2012)


Segundo Ferreira e Barros (2002), esta diferença causa impactos no dia a dia do

trabalhador, sendo que quanto maior a distância, maior o sofrimento.

O grau de (in)compatibilidade entre a tarefa e a atividade pode interferir positivamente ou negativamente


nas vivências de prazer-sofrimento dos trabalhadores. Esta influência configura duas faces
interdependentes: (a) dimensão negativa - quanto maior for o descompasso entre a tarefa e atividade,
maior será o custo humano do trabalho, potencializando as vivências de sofrimento dos trabalhadores; e
(b) dimensão positiva - quanto menor for o descompasso entre a tarefa e atividade, menor será o custo
humano do trabalho, potencializando as vivências de prazer dos trabalhadores. (Ferreira & Barros,2002,p.
1)

Quando a discrepância entre o trabalho prescrito e o real é extensa, observamos uma

exigência para o indivíduo e o surgimento de custos, que podem ser individuais e coletivos. Tais

custossão divididos em custos físicos, cognitivos e afetivos:

O referido custo apresenta como traços característicos principais: é imposto externamente aos
trabalhadores sob a forma de constrangimentos para suas atividades; é gerido por meio das estratégias de
mediação individual e coletiva, podendo ser confrontações positivas ou negativas que, por sua vez,
impactam na dinâmica das vivências de bem-estar e mal-estar no trabalho; comporta três modalidades
interdependentes de exigências: físicas (custo corporal), cognitivas (custo cognitivo) e afetivas (custo
afetivo).(Ferreira & Barros, 2002,p.15)

Toda atividade responde a um conjunto normativo, que designa sua finalidade e

métodos para o desenvolvimento de cada etapa pertinente ao processo; (trabalho prescrito).).

Entretanto, quando se executa qualquer atividade laboral, depara-se com elementos não previstos

pelas normas elementos estes que, apesar de com frequência serem ignorados, incidem diretamente

sobre a produção, tanto em termos quantitativos, como qualitativos. (Lhuilier, 2012)

Ainda nesta perspectiva de análise do trabalho, tem-se a concepção do real do trabalho,

que se traduz pela ideia da atividade que se objetiva fazer, sem sucesso, daquilo que se procura

fazer sem conseguir, ou seja, da fatídica vivência do fracasso. Tal conceito é bastante perceptível na

vida prática e nos ambientes de trabalho da atualidade, onde a exigência por desempenhos

excepcionais, extrapolam os meios de se atingi-la, relegando aos trabalhadores a sensação de serem

insuficientes e facilmente substituíveis. Estes fatores devem ser admitidos para se pensar com

clareza a dinâmica da relação entre saúde mental e trabalho.

É preciso ainda destacar que nessas situações ocorre uma eufemização por parte dos

empregadores e mesmo dos colaboradores das organizações, dado os eventos que fomentam o
sofrimento psíquico em tal contexto. Assim, emerge a invisibilidade crescente do trabalho real,

admitido pela negação das origens dos sintomas, vinculados aos fatores de riscos presentes nos

ambientes laborais, o que potencializa o quadro do adoecimento. Trata-se ainda de relações

multifatoriais que resistem a uma atribuição causal unívoca. (Lhuilier, 2012)

Dessa forma, diversos campos disciplinares como as produções políticas, legislativas,

regulamentares e científicas vêm se ocupando da temática saúde e trabalho para se compreender os

nexos causais existentes na categoria. Especificamente, sob o olhar da Psicologia do Trabalho, os

efeitos da laboração sobre a saúde mental podem ser percebidos pela mediação da linguagem de

cada sujeito, devendo ser a expressão de sua interioridade a partir de significados construídos

socialmente. O sujeito precisa falar de si, considerando suas vivências singulares, de modo que o

diagnóstico,seguido de um adoecimento não seja a avaliação única realizada por um “expert” que

muitas vezes não analisa o contexto de forma abrangente.

A realidade psíquica é assim posta em forma numa construção coletiva que lhe fornece um quadro social
de sentido e de reconhecimento. E, aqui, a oferta de sentido ou linguagem para significar e dizer o mal-
estar no trabalho emerge essencialmente em duas fontes: o “estresse” ou o sofrimento no trabalho e o
assédio (HIRIGOYEN, 1998), vetores privilegiados de expressão da demanda social em matéria de saúde
psíquica no trabalho. (Lhuilier, 2012, p.19)

No que se refere aos diagnósticos e avaliações temos outro agravante, a falta de

reconhecimento das doenças psicossomáticas, fenômeno este que envolve múltiplos fatores como: o

potencial patogênico de certas formas de organização, as relações abusivas e hierarquizadas, as

metas cada vez maiores pela rigidez das prescrições e o estigma do sujeito não produtivo. Tais

fatores se tornam ainda mais significativos se forem vistos junto com o modo do indivíduo perceber

e vivenciar o ambiente de trabalho, a forma como ele equilibra e concilia as demandas pessoais e do

trabalho, a sua satisfação e representação com a atividade laboral e a habilidade para resolver

conflitos. Enfim, “o indivíduo está ligado à organização moderna não apenas por laços materiais e

morais, por vantagens econômicas e satisfações ideológicas que ela lhe proporciona, mas também

por laços psicológicos. A organização tende a se tornar fonte de sua angústia e de seu prazer”.

(Rangel & Godoi, 2009, p. 409)


Nesse processo é importante considerar que o trabalho vai além de garantir a

sobrevivência, faz parte dos processos da construção da identidade do sujeito, do seu

desenvolvimento pessoal, do seu potencial criativo, do fortalecimento dos vínculos pessoais e de

seu reconhecimento. Esses valores são imprescindíveis para que o trabalho tenha sentido. Assim,

segundo Dejours (1999 apud Rangel & Godoi, 2009), a falta de sentido durante a atividade laboral

pode repercutir em quadros de adoecimentos psíquicos.

Ou o trabalho contribui para agravar o sofrimento, levando a pessoa progressivamente à loucura, ou, ao
contrário, o trabalho contribui para subverter o sofrimento, para transformá-lo em prazer, a ponto de, em
certas situações, ser mais fácil para a pessoa que trabalha defender sua saúde mental, do que para a pessoa
que não trabalha.(Rangel & Godoi, 2009, p. 410)

Rangel & Godoi (2009) destacam que alguns autores como Dejours, Facchini,

Weiderpass e Tomassi apontam que o maior motivo de estresse no ambiente de trabalho é a

sobrecarga de tarefas devido sua forma de distribuição. Porém, é preciso distinguir a carga de

trabalho psíquica da carga de trabalho física. Acarga psíquica é referente a insatisfação proveniente

de um conteúdo ergonômico não adaptado à estrutura da personalidade, que afetará a princípio a

mente e se deslocará para outras desordens no corpo, diferente das doenças diretamente infligidas

no corpo devido às condições de trabalho. (Rangel & Godoi, 2009)

A chamada insatisfação psíquica geralmente ocorre quando há o cerceamento da

criatividade, das ideias que não podem ser praticadas pelo trabalhador diante de sua tarefa. Vale

destacar que, para manutenção do bem-estar do trabalhador é necessária a articulação entre o

conteúdo da tarefa e a descarga de energia psíquica que a tarefa demanda.

Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) asseveram que são muitos os que sofrem por causa da intensificação
do trabalho, pelo aumento da carga psíquica de trabalho e da fadiga. Há os que sofrem devido à
degradação das relações de trabalho contaminadas pelo modo operatório prescrito, pela desconfiança,
individualismo, competição desenfreada etc. A carga psíquica de trabalho aumenta quando a liberdade de
organização do trabalho diminui. (Rangel & Godoi, 2009, p. 410)

A definição de carga psíquica tem outras diferentes interpretações. Rangel e Godoi

(2009) lembram que autores como Greco, Oliveira e Gomes dizem respeito à organização da

jornada de trabalho, ou seja, o modo como o trabalhador agirá em situações que envolvem tomada
de decisões, responsabilidade e habilidade na resolução de eventuais conflitos. Já para o autor

Dejours, a carga psíquica é o confronto entre desejo e a ordem do empregador. Para Laurell e

Noriegasão elementos do processo de trabalho que demandam adaptações do trabalhador que

causam desgastes físicos e psíquicos, e por fim anulam sua capacidade potencial. E os autores

Lancmann e Sznelwar também foram lembrados por alegarem que o confronto entre a subjetividade

do trabalhador e a organização gera o sofrimento psíquico. (Rangel & Godoi, 2009)

Desse modo, Rangel e Godoi (2009) ainda chamam mais autores para explicar o

confronto entre a organização e o trabalhador, como por exemplo, as pesquisas de Beauregard, que

demonstram como os fatores estressantes da organização do trabalho influenciam outros campos da

vida do sujeito. Citando também Dejours, os referidos autores lembram que o indivíduo tem a

habilidade de desenvolver estratégias psíquicas para redução do sofrimento, mesmo em conflito

com a organização do trabalho, o que ele definiu como sofrimento criativo. No caso do sofrimento

patogênico, o indivíduo não tem espaço de criar soluções para superação do sofrimento e isso

ocorre geralmente quando a organização do trabalho é rígida e essa não resolução implicará no

aumento do sofrimento e nas doenças psicossomáticas. (Rangel & Godoi, 2009)

5 Algumas formas de doenças laborativas

A partir de pesquisas bibliográficas sobre o tema relacionado ao adoecimento mental

dotrabalhador vinculado aos ambientes organizacionais, percebe-se que há um grande número

dedoenças psíquicas que podem emergir em tal contexto. No entanto, neste artigo discorremos de

forma sucinta sobre alguns tipos de doenças, considerando sua gênese na dinâmica entre sujeitos

eatividades laborativas, iniciando pelas doenças psicossomáticas.

A palavra psicossomática é oriunda do grego, formada pela junção do termo psique que

significa alma/mente ao termo soma que se traduz pela palavra corpo. Desta forma, seu conceito

atualmente é concebido a partir dos trabalhos interdisciplinares da medicina e da psicologia, entre


outros, como a área de estudos que se dedica a investigar a formação de patologias que têm sua

origem em fatores psicossociais e que recaem sobre processos orgânicos, causando um

desequilíbrio físico e mental nos indivíduos. (Rangel & Godoi, 2009)

O processo de identificação e diagnóstico das doenças psicossomáticas evoluiu a partir

dessa compreensão que considera o indivíduo como um ser constituído por corpo, mente e a parte

social, portanto, o que se manifesta no corpo é resultado da interação com o externo. Parte dessa

evolução foi possível devido aos estudos psicanalíticos de Freud sobre a histeria, a saber:

No sintoma psicossomático, o corpo é acometido, as tensões recaem sobre ele ou não se derivam
adequadamente. Ele não se torna impotente ou inibido, mas entra em sofrimento e pode desorganizar-se
gravemente. Para o autor, o sintoma psicossomático aparece como uma impossibilidade ou como uma
tentativa de interferência no processo. (Rangel & Godoi, 2009 p. 407)

O sintoma é a manifestação de algo que está contido ou oculto e se mostra por meio do

corpo como forma de enfermidade. Os sintomas mais recorrentes, segundo França e Rodrigues

(2005 apud Rangel & Godoi, 2009, p.407), são:

aqueles que são resultantes das alterações das funções das fibras musculares lisas poderiam provocar no
aparelho digestivo: vômitos, diarréia, prisão de ventre, alterações da motilidade do estômago e intestino;
no aparelho respiratório: asma, bronquite; no aparelho genito-urinário: dor ao urinar, cólicas renais,
aumento da frequência urinária, vaginismo, ejaculação precoce, cólicas menstruais; do aparelho
circulatório: hipertensão arterial, enxaqueca, cefaléia de tensão; na pele: neurodermitis, eczemas,
pruridos. Caso a alteração da função for predominantemente secretora, manifestam-se modificações na
produção de muco, da secreção das glândulas endócrinas, na produção de hormônios do aparelho
digestivo, da secreção pancreática, biliar e entérica. Quando há significação da função de irrigação dos
órgãos, percebe-se diminuição da resistência da mucosa a agentes agressivos, podendo resultar em
hemorragias e ulcerações.

Outro aspecto comum é a percepção da dor que, segundo Mello Filho (1992, apud

Rangel & Godoi, 2009) se manifesta em três níveis. No primeiro, o ego identifica a ameaça ao

organismo, o segundo quando o indivíduo comunica a experiência e pede ajuda a outra pessoa, o

terceiro refere-se a um comportamento de queixa/ataque, que pode ser utilizado para manipular as

outras pessoas, ou como alívio da culpa por alguma falta. Além disso, a dor pode ser um aviso

quando algo errado ocorre com o organismo, e com a persistência da dor com o passar do tempo,

esse quadro pode se constituir na formação da doença e se tornar parte central da vida do indivíduo.
Para compreender o processo de formação da doença, voltamos ao relato de Rangel e

Godoi (2009), que enfatiza que é preciso perceber como as emoções podem se desdobrar em outros

sintomas, como a ansiedade nos casos da dor aguda e a depressão no caso da dor crônica. Tais

autores recorrem a outros estudiosos para elucidar a questão. Citando as contribuições de Mello

Filho, vale destacar que muitos pacientes que sofrem de dor crônica apresentam depressão,

fenômeno que foi observado em clínicas da dor e hospitais. Também é importante distinguir os

fenômenos observados na dinâmica do trabalho. Vale destacar também a apresentação das ideias de

Dejours, que considera que a fadiga é um sintoma psíquico e somático, pois o que ocorre na

vivência subjetiva, se manifesta no corpo, ocasionada pela sobrecarga de trabalho, como quanto

pela inatividade, ou seja, a inibição da atividade espontânea. Já os distúrbios do sono estão

relacionados às pessoas que passam por situações que demandam maior esforço, e podem se

manifestar de diferentes formas como insônia e sonolência. (Rangel & Godoi, 2009)

Já o estresse no trabalho surge como resultado do esforço da adaptação do sujeito

quando é cobrado além do seu limite psíquico/físico, em situações que podem ocorrer em diversas

funções ocupacionais. O que a priori surge como resposta biológica necessária para adaptação, em

longo prazo pode impactar o desempenho dos trabalhadores e também a sua saúde, ocasionando a

formação de novas doenças como: hipertensão, úlcera péptica, doenças cardiovasculares, distúrbios

osteomusculares como (DORT), todos muitos presentes no cenário brasileiro. (Rangel & Godoi,

2009)

Outro desdobramento oriundo do estresse no trabalho são as lesões por esforço

repetitivo (LER), que afetam músculos, nervos, articulações, constituindo o quadro em que o sujeito

sente dor não definida, de intensidade variável, e em alguns casos pode ter a redução da amplitude

do movimento e fadiga. Geralmente muitas pessoas que sofrem com a LER, antes de serem

diagnosticadasse submetem a inúmeros tratamentos que não surtem o resultado esperado. (França

&Rodrigues, 2005 apud Rangel & Godoi, 2009)


Já a Síndrome de Burnout, ocasionada pelo acúmulo de estresse, ou estresse crônico, é a

resposta emocional dadaà tensão promovida por situações de autocobrança e dedicação excessiva,

cuja expectativa e desejo de realização profissional não alcançam o objetivo. Esse conflito se

manifestará por meio do esgotamento físico, emocional e mental do trabalhador, assim como o seu

sentimento de frustração em relação a si e ao trabalho. (Rangel & Godoi, 2009)

Tais desordens emocionais não tratadas podem resultar em quadros de transtorno

mental, que é a terceira maior causa de afastamento do trabalho no Brasil, conforme a publicação da

Associação Nacional de Medicina do Trabalho – ANANT (2017, p.1), “Transtorno mental é a 3ª

causa de afastamentos de trabalho”. A situação corresponde a 9% da concessão do auxílio-doença e

aposentadoria conforme dados retirados do 1º Boletim Quadrimestral sobre Benefícios por

Incapacidade da Secretaria de Previdência/Ministério da Fazenda em 2017. Outras estimativas

mostram que os episódios depressivos são o principal motivo para os pagamentos não relacionados

a acidente de trabalho, que correspondem a 30,67% do total. Já os transtornos ansiosos

correspondem a 17,9%. No âmbito geral as reações de estresse grave, os transtornos de adaptação,

os episódios depressivos e transtornos de ansiedade, são responsáveis por 79% dos afastamentos do

trabalho durante o período de 2012 a 2016, sendo importante considerar que tais estimativas

representam um contexto anterior a pandemia Covid-19.

Em decorrência da pandemia Covid-19, novos processos de sofrimento e adoecimento

têm sido observados na atualidade e necessitam de pesquisas e levantamentos para melhor

compreensão da dimensão do seu impacto na saúde mental dos trabalhadores. Nessa perspectiva foi

publicada a matéria “Pesquisa analisa o impacto da pandemia na saúde mental de trabalhadores

essenciais” da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz (2020) que estima que 47,3% dos trabalhadores

dos serviços essenciais foram afetados pelos sintomas de ansiedade e depressão, sendo que 27,4%

sofrem de ansiedade e depressão. Também foi verificado o aumento do consumo de bebidas

alcoólicas em 44,3%, os distúrbios do sono em 42,9%, e 30,9% dos entrevistados receberam


diagnóstico ou tratamento de doenças mentais no ano anterior. Enfim 16% do total da amostra

sãotrabalhadores dos serviços essenciais.

A pesquisa supracitada também constatou que os sintomas de depressão e ansiedade são

maiores nos trabalhadores dos serviços essenciais do Brasil, ou seja 55%, pois os mesmos

trabalhadores na Espanha correspondem a 23%, mesmo a pesquisa tendo sido realizada no pior

momento vivido pela Espanha na pandemia. Algumas hipóteses foram levantadas para explicar essa

diferença, considerando as condições socioeconômicas de cada país, assim como o desemprego ou

ameaça de desemprego, e as iniquidades em saúde, fatores que podem resultar no surgimento do

estresse, da depressão e outros transtornos mentais.

Diante do que foi exposto é imprescindível analisar como os fenômenos sócio-históricos

influenciam as organizações, e como esta atuará para se adaptar e atender as demandas. Demandas

estas que se direcionadas exclusivamente para o capital, afetarão o trabalhador e a sua saúde mental.

O principal fator para o surgimento das doenças psíquicas é a dinâmica entre aquilo que é próprio

do sujeito, da organização do trabalho e da sociedade, pois quando não há possibilidade de

manifestação da personalidade no trabalho podem surgir processos de depressão e tensão nervosa.

O homem quando participa do coletivo nutre o desejo de reconhecimento, e esse desejo choca-se

em uma organização direcionada ao capital, que produz a forma de trabalho alienante, reduzindo o

trabalhador a condição de robô/máquina, isso se estende como deformidades no corpo e nas

potencialidades psíquicas. Pois, “enquanto o trabalhador age somente em busca dos objetivos da

empresa sem estar de acordo com seus anseios ele vive como uma máquina”(Rangel &Godoi, 2009,

p. 413). Assunto que iremos tratar na próxima seção sobre a contribuição da psicologia do trabalho

e as práticas que visam melhorar a saúde do trabalhador.

6 A contribuição da Psicologia do Trabalho e as práticas que visam promover a saúde


mental do trabalhador
Após abordar a relação entre o sujeito e o trabalho, compreendendo as predisposições

que podem resultar no adoecimento mental dos trabalhadores, surge a necessidade de explorar o

impacto e a contribuição da Psicologia através da sua atuação frente às demandas e suas

possibilidades de intervenção em prol da saúde mental.

No que se refere à saúde, este pressuposto marca a ideia de que existem relações muito estreitas entre o
trabalho e a construção da identidade do sujeito trabalhador, podendo, portanto, implicar a dinâmica da
realização do eu ou em efeitos deletérios à sua saúde física e mental (BASTOS, 2009, p.104)

Desse modo, é necessário atenção, pois o adoecimento do trabalhador também é

percebido quando este não se enxerga como parte do processo de solução. “A doença não é o

resultado da existência de problemas e, sim, da sensação de impotência diante deles, da vivência

depressiva do trabalho, expressão do sentimento de inutilidade e falta de importância do próprio

trabalho”. (Bastos, 2009, p.115)

Estes sentimentos de inutilidade e falta de importância associados a experiência de um

ambiente de trabalho insalubre são responsáveis pelas somatizações. Turato (2013 apud Souza et

al.,2019, p. 92) afirma que “as somatizações podem ser definidas também como o processo através

do qual conflitos profundos do âmbito psíquico, uma vez não resolvidos satisfatoriamente, usam a

via corporal para conhecer um necessário alívio, levando a transtornos manifestados no corpo”.

Tais desordens observadas no âmbito do trabalho requerem da psicologia atuações e

intervenções que permaneçam em constante evolução. Como afirma Veronese (2003,p.04):

“Debates sobre os rumos da psicologia têm provado que não há uma unidade de paradigmas e

práticas em psicologia, existindomesmo conflito e discordância sobre o que seria desejável em

termos paradigmáticos, éticos e de aplicação.”. A referida inconstância faz indispensável uma

atuação inovadora das profissionais de psicologia, conforme vemos que:

Se faz necessária uma nova psicologia, pois é preciso que os sujeitos se reconheçam em novas práticas, de
liberdade e solidariedade. Estas, ao serem apropriadas e validadas por sujeitos autônomos, livres e
solidários, produziriam uma nova subjetividade. A partir dessas inclinações a considerar a realidade como
um campo de possibilidades a serem exploradas, a psicologia pode tornar-se uma ciência crítica que
desenvolve teorias críticas: aquelas que não concebem a realidade unicamente como o que está dado,
além de buscar a superação das contradições da ciência moderna. (Santos, 1995 apud, Veronese, 2003,
p.4)
Para tal discussão, torna-se mister entender sobre a evolução da psicologia no campo do

trabalho, que pode ser dividida em três fases, sendo a primeira a psicologia industrial, a segunda a

psicologia organizacional e a terceira a psicologia do trabalho. Segundo Veronese (2003), a

primeira fase é basicamente psicométrica, já que os estudos científicos objetivam a produtividade e

a lucratividade do mercado/empresas, a preocupação com o rendimento, o aumento da produção e

no máximo uso das capacidades humanas dentro da indústria: tudo de forma legítima e esperada. Já

na segunda fase, a autora exemplifica que:

A segunda fase, como psicologia organizacional, incorpora elementos das teorias sistêmica e sócio-
técnica, da dinâmica de grupos, do desenvolvimento humano no trabalho, resultando no desenvolvimento
organizacional, desenvolvimento de equipes, estudos sobre liderança, etc. (Veronese, 2003, p. 3)

A segunda fase é advinda da Escola das Relações Humanas, marcada pela crítica aos

aspectos da psicologia industrial, por ter uma concepção mais humanista, que incorporou a

dinâmica de grupo, tendo como foco o desenvolvimento das capacidades humanas, os estudos sobre

a liderança, e o trabalho de equipes para uma maior colaboração, visando a integração de suas

necessidades psicossociais com os interesses da organização. Em relação a terceira fase, a autora diz

que “Como psicologia do trabalho, gesta-se a partir dos acontecimentos do final dos anos 60,

incorporando os elementos da psicanálise, da teoria crítica, dos estudos sobre identidades,

subjetividade, saúde do trabalhador, epidemiologia, ergonomia, dentre outros campos”. (Veronese,

2003, p. 4)

Esta fase, de acordo com Veronese (2003), consolida componentes das demais áreas de

conhecimento, contemplando a sociologia crítica, a antropologia, a filosofia, a ergonomia, a saúde

do trabalhador, a psicanálise e a psicologia social crítica, estabelecendo uma prática laboral

inovadora. Esta terceira fase permite uma ampliação da atuação através de uma prática humanizada

com o trabalhador, conforme a autora propaga:

Aqui a psicologia aplicada ao trabalho adquire novo vigor, engendrando a terceira face/fase que Jader
Sampaio chamou de psicologia do trabalho. Ganhando contornos mais questionadores e redescobrindo a
figura do trabalhador como sujeito dos processos, concebe-o como objeto central de seus esforços.
(Veronese, 2003, p.16)
Segundo a evolução da psicologia do trabalho e a partir de sua terceira fase,

compreendemos o sujeito como parte do processo de trabalho. A partir desta concepção, ao analisar

como os trabalhadores enfrentam os desafios de sua atividade laboral, nos deparamos com

estratégias que são desenvolvidas para lidar com os sofrimentos, que de acordo com Veronese

(2003, p. 16):

A análise do conceito de organização do trabalho como a divisão efetiva do trabalho, o sistema


hierárquico, o conteúdo da tarefa, as relações de poder, a distribuição das responsabilidades, o lugar onde
cada trabalhador é alocado foi importante para mostrar o impacto sobre a dinâmica psíquica dos
trabalhadores, que podem utilizar-se de mecanismos defensivos para lidar com sua realidade.

Os mecanismos defensivos citados acima, criados para enfrentar a realidade podem ser

diversos, pois cada indivíduo, através da atividade laboral, cria estratégias individuais e coletivas

contra o sofrimento, na expectativa de alcançar sua expressão no trabalho e inclusive uma utilidade

na comunidade. Através disso, a psicologia trabalha buscando integrar práticas colaborativas às

estratégias dos trabalhadores, conforme explica Veronese (2003, p.17):

Tanto Dejours, quanto Chanlat e outros inovam por trazer o sujeito complexificado (linguagem,
simbologias, inconsciente) para os processos de trabalho. O novo paradigma em psicologia trabalharia no
sentido de desenvolver um senso de comunidade no espaço laboral, ao colocar nos laços de solidariedade
e cooperação a base das relações interpessoais.

Por meio da necessidade de uma prática que desenvolva o sujeito frente ao trabalho,

Veronese (2003, p.17) assevera que “os principais desafios se situam no campo da exclusão do

trabalhador da sociedade civil central, na sua exploração, nos tipos de relações de trabalho

desumanizantes e injustas, na preocupação com a transformação da micro-política das relações no

trabalho”. Tais desafios, são complexificados através das diferentes subjetividades em contato com

o trabalho, o que exige uma múltipla atuação da psicologia frente a tais sofrimentos. Conforme

exposto por Veronese (2003, p.16), “o objetivo de uma nova psicologia é também para o auxílio do

sujeito perante o seu contexto, promovendo a função crítica, para o surgimento de um protagonismo

dos sujeitos possibilitando a alteração do seu próprio contexto”.

Outro ponto relativo à atuação da psicologia do trabalho, segundo Bastos (2009), é o

fato de que antes de qualquer intervenção o psicólogo precisa entender o desejo do sujeito, ou seja,
o que o mobiliza em relação ao seu trabalho e refletir sobre o seu papel, o seu compromisso ético,

os seus valores pessoais e a sua contribuição com a sociedade. Consequentemente, deve-se priorizar

a preocupação com o sofrimento psíquico de forma democrática, que abarque os dirigentes, as

chefias, e os funcionários de todas as esferas, com a finalidade de construir um campo propício ao

exercício da inteligência prática. Portanto é sugerido ao psicólogo ouvir o coletivo sem impor

orientação ou tarefa, formar grupos e propor a discussão acerca dos desafios, das facilidades, das

estratégias, a forma como lidam com os imprevistos, entre outros elementos. Tal tarefa é essencial

para que os trabalhadores compartilhem ideias, consigam manifestar em palavras o seu sofrimento,

e percebam como pensam os demais colegas, contribuindo como uma ferramenta de diagnóstico e

intervenção.

O propósito desta forma de atuação, sempre com transparência e baseados em princípios éticos, é ir
estabelecendo o grupo como espaço a ser apropriado pelos sujeitos que compartilham o mesmo coletivo,
dando a eles a chance de discutir e ressignificar a organização do trabalho, de substituir os conflitos
camuflados, e os rumores que favorecem os mal-entendidos, pela polêmica aberta entre os pares. A ideia
é que, aos poucos, o coletivo possa perceber as vantagens das relações de confiança e do trabalho baseado
na cooperação. (Bastos, 2009, p. 119-120)

Além disso, emerge uma nova demanda de atuação da psicologia do trabalho em

decorrência da pandemia Covid-19, pois o contexto gerou novas dinâmicas e exigências de

adaptação do trabalhador para atender as demandas das organizações, a exemplo, o trabalho remoto.

A rápida adaptação ao trabalho remoto de caráter compulsório não foi acompanhada ou precedida de
preparação material ou psicológica. Trabalhadores e gestores foram impelidos a adquirir habilidades
afetivas para a comunicação mediada por tecnologias, assertividade para buscar ajuda e suporte social de
colegas e superiores, aprender a regular os tempos de trabalho e descanso, equilibrar as atividades do
trabalho com as domésticas e regular os diversos estados afetivos que o isolamento exacerbou. (Oliveira
& Ribeiro, 2021, p.2)

Nessa perspectiva, Oliveira e Ribeiro (2021), ao analisarem o livro “Os Impactos da

Pandemia para o Trabalhador e suas Relações com o Trabalho”, que é parte da coletânea organizada

pela Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho, esclarecem que as

atividades que estimulam a criatividade e a proatividade dos trabalhadores são benéficas durante o

contexto de pandemia, pois permitem ao trabalhador a sua autogestão e a formulação de estratégias

para melhor adaptação ao se deparar com diferentes situações, a identificação de oportunidades e


novos métodos de trabalho, e isso aumentará o sentimento de pertencimento e capacidade de

contribuição.

Diante do que foi exposto, há de se compreender que estamos atravessando um contexto

histórico de relevância social e transformações políticas, propício às novas configurações de

trabalho com a expansão e uso da tecnologia, que já modificaram as dinâmicas da atividade laboral

e a mobilidade do trabalhador; também o aumento da vulnerabilidade, precarização, desemprego, e

a perda de direitos trabalhistas. Nesse contexto, o psicólogo do trabalho deve promover

intervenções que partem da investigação e compreensão de cada fenômeno e categoria de trabalho,

mapeando caso a caso, ou seja, “recomenda que o psicólogo aborde de forma mais direta possível o

contexto de trabalho buscando desvendá-lo e compreendê-lo, para, só então, se propor a alguma

intervenção.” (Lima, 2002 apud Bastos, 2009, p. 109).

7 Considerações Finais

Este artigo se propôs a refletir sobre a atuação da psicologia na criação de estratégias

que minimizem o adoecimento do trabalhador, considerando as características das organizações e os

aspectos sócio-históricos que compõem a relação entre o sujeito e a sua atividade laboral.

A partir do que foi visto até aqui sobre o exercício e atuação da psicologia do trabalho é

preciso compreendera dupla dimensão do sentido do trabalho: o primeiro como meio de

autoconstrução do homem, que se transforma e assim modifica a matéria-prima conforme sua

necessidade. O segundo, os períodos históricos e as transformações sociais que afetam o significado

da atividade laboral, desde a comunidade primitiva até o capitalismo da atualidade, permitindo a

compreensão que a representação social ou exercício do poder que o sujeito manifesta são

relacionados por meio do seu trabalho.

A princípio, o trabalho que era exercido nas comunidades primitivas tinha um caráter

coletivo, os fazeres eram limitados aos desejos e controle da comunidade, sendo exercido dentro do

núcleo familiar. Desse modo, o trabalhador tinha maior conhecimento em relação a todo processo
de produção, era o criador, e assim mantinha o poder das decisões sobre a sua criação. Depois com

as novas formatações das comunidades que vimos ao longo deste artigo, surgiu o movimento de

isolamento e individualidade, isso devido ao processo de migração da vida rural para os centros

urbanos. Então, novas interações sociais foram criadas além das ligações pelos vínculos sanguíneos,

como por exemplo os intercâmbios societários. Posteriormente, as relações de servidão e poder

fomentadas pela apropriação e domínio dos meios de produção levaram o sujeito a vender a sua

força de trabalho. A objetivação dos indivíduos tornou-se então mera atividade de sobrevivência.

Tal condição culminou no esvaziamento do sentido do trabalho, na perda da condição subjetiva da

própria atividade, na falta do sentimento de realização, idealização e significado e na representação

do trabalhador.

Os desdobramentos descritos podem propiciar o surgimento das doenças laborativas,

pois o homem quando participa do coletivo nutre o desejo de reconhecimento, e esse desejo choca-

se com uma organização direcionada ao capital, que geralmente tende a equiparar a figura do

trabalhador à máquina/ferramenta que tem a finalidade de atender as exigências e competitividade

do mercado. Neste contexto torna-se importante alinhar os objetivos das organizações,

considerando o que difere o sentido real do trabalho do trabalho prescrito, ou seja, compreender a

dinâmica geralda atividade laboral para distinguir e delimitar quais são os esforços que os

trabalhadores estão submetidos em sua rotina diária.

Diante do que foi exposto, para promover melhores condições de saúde mental ao

trabalhador inserido na organização, é imprescindível uma atuação dinâmica e singular do

psicólogo do trabalho, que abarque todos os aspectos sociais, históricos, subjetivos e simbólicos

envolvidos na atividade laboral. Desse modo, as leituras feitas indicam que é preciso considerar o

sujeito como parte do processo de trabalho, identificando os mecanismos de defesa criados para

lidar com a sua realidade e assim integrar práticas colaborativas que visam desenvolver um senso de

comunidade ede cooperação para o fortalecimento dos laços de solidariedade.


Também é pertinente reconhecer os desafios e impactos da flexibilização das leis

trabalhistas, a precarização do trabalho, as relações de trabalho desumanizantes e exploradoras e a

ameaça do desemprego. Fatores que exigem uma atuação crítica que possibilite ao trabalhador o

fortalecimento da sua autoestima e emancipação, para que o mesmo seja capaz de construir novas

perspectivas.

Esperamos que este trabalho suscite novas reflexões acerca do tema ampliando a

discussão para elaboração e implementação de práticas assertivas e integrativas que possibilitem o

equilíbrio entre a relação da organização e os trabalhadores.

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