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O AUTO DA COMPADECIDA

*João Grilo e Chicó andam pela praça*

JOÃO GRILO: Estou desconfiado, Chicó. Você é tão sem confiança!


CHICÓ: Eu, sem confiança? Que isso, João, está me desconhecendo? A dificuldade não
é ele vir, é o padre benzer porque o bispo tá aí.
JOÃO GRILO: Não vai benzer? Por que? Que é que um cachorro tem de mais?
CHICÓ: Bom, eu digo isso porque sei como esse povo é cheio de coisas. Eu mesmo já
tive um cavalo bento.
JOÃO GRILO: Você vem com essas histórias e depois não sabe o porquê do povo dizer
que você é sem confiança.
CHICÓ: Eu? Antônio Martinho está aí pra dar as provas que eu digo.
JOÃO GRILO: Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu.
CHICÓ: Mas era vivo quando eu tive o bicho.
JOÃO GRILO: Quando você teve o bicho? E foi você que pariu o cavalo?
CHICÓ: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro de nada. No mês
passado uma mulher pariu um no interior do Ceará.
JOÃO GRILO: Isso é coisa da seca. Mas seu cavalo, como foi a história?
CHICÓ: Foi uma velha que me vendeu barato, mas recomendou todo cuidado porque o
cavalo era bento, uma vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis
da tarde. Tomei uma vereda que havia assim e saí tangendo o boi...
JOÃO GRILO: Boi? Não era uma garrota?
CHICÓ: Uma garrota e um boi.
JOÃO GRILO: E você corria atrás dos dois de uma vez?
CHICÓ: Corria, é proibido?
JOÃO GRILO: Não, mas me encanta eles correrem tanto tempo, como foi isso?
CHICÓ: Não sei, só sei que foi assim. Eu comecei a correr da ribeira do Taperoá, na
Paraíba, depois na entrada de uma rua perguntei a um senhor onde estava e eles disse
que era Propriá, de Sergipe.
JOÃO GRILO: Sergipe, Chicó?
CHICÓ: Sergipe! Eu tinha corrido até lá com meu cavalo.
JOÃO GRILO: Mas Chicó, e o rio São Francisco?
CHICÓ: Só podia estar seco nesse tempo. É por essas e outras que não me admiro mais
de nada, cachorro bento, cavalo bento, tudo isso eu já vi.
JOÃO GRILO: Então você acha que o homem vem?
CHICÓ: A mulher disse que vai largá-lo se o cachorro morrer. O doutor disse que não
sabe o que o bicho tem, o jeito agora é apelar pro padre.
OS DOIS: Padre João! Padre João!
PADRE: Que há? Que gritaria é essa?
CHICÓ: Mandaram avisar que uma pessoa ia trazer um cachorro pro senhor benzer.
PADRE: Para eu benzer?
CHICÓ: Sim.
PADRE: Um cachorro?
CHICÓ: Sim.
PADRE: Que maluquice!
JOÃO GRILO: Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia.
PADRE: Não benzo de jeito nenhum!
CHICÓ: No dia que chegou o motor novo do Major Antônio de Moraes o senhor não
benzeu?
PADRE: Motor todo mundo benze, cachorro que eu nunca vi.
JOÃO GRILO: Eu acho cachorro uma coisa melhor do que motor.
PADRE: É, mas quem vai ficar engraçado sou eu benzendo cachorro.
JOÃO GRILO: É, o padre tem razão, uma coisa é benzer o motor do Major Antônio
Moraes e outra é benzer o cachorro do Major Antônio Moraes.
PADRE: E o dono do cachorro é Antônio Moraes?
JOÃO GRILO: É. Eu não queria vir porque sabia que o senhor ia zangar, mas o Major é
rico e poderoso.
PADRE: Zangar nada, João! Falei por falar, vocês tinham que ter dito de quem era o
cachorro.
JOÃO GRILO: Então benze?
PADRE: Não vejo mal em abençoar as criaturas do reino de Deus.
JOÃO GRILO: Então fica tudo na paz do senhor, com o cachorro benzido e todo mundo
feliz.
*Padre sai*
CHICÓ: Que história é essa de dizer que o cachorro é do Major?
JOÃO GRILO: Só assim pra ele benzer.
CHICÓ: Isso não vai dar certo.
JOÃO GRILO: Eu podia perfeitamente ter sido mandado pelo Major, o filho dele tá
doente e precisa mesmo de um padre.
CHICÓ: Me permite lhe dar parabéns, João, porque você acaba de meter numa danada!
JOÃO GRILO: Eu?
CHICÓ: O Major acabou de descer a ladeira, com certeza procurando o padre
JOÃO GRILO: Ave Maria! Que é que eu faço?
CHICÓ: Não sei, você que se vire.
JOÃO GRILO: Grande amigo você!

*Major passa*
JOÃO GRILO: Ora viva, seu Major Antônio de Moraes, como vai vossa senhoria? Veio
procurar o padre? Já vou logo dizendo que ele tá meio doido.
MAJOR: Está doido? O padre?
JOÃO GRILO: Sim, o padre! Tá dum jeito que não respeita mais ninguém e com mania
de benzer tudo.
MAJOR: Que loucura é essa?
JOÃO GRILO: Não sei, é a mania dele agora.
*Major entra na igreja e João Grilo e Chicó observam*
MAJOR: Padre? Está aí?
PADRE: Uma pessoa como Antônio de Moraes na igreja, que honra! O que o traz aqui?
O bichinho está muito doente, não está?
MAJOR: É, já está sabendo?
PADRE: Aqui tudo se espalha num instante, já está fedendo?
MAJOR: Fedendo? Quem?
PADRE: O bichinho.
MAJOR: Não, o que o senhor quer dizer?
PADRE: Nada, desculpe, é um modo de falar.
MAJOR: Pois o senhor anda com um modo de falar estranho.
PADRE: Peço desculpa. Mas qual é a doença? Rabugem?
MAJOR: Rabugem?
PADRE: Sim, já vi um morrer disso em poucos dias. Começou pelo rabo e espalhou-se
pelo corpo
MAJOR: Pelo rabo?
PADRE: Desculpa, devia ter dito cauda.
MAJOR: Como é?
PADRE: Ouvi dizer que é de família, a mãe deve ter tido.
MAJOR: A mãe?
PADRE: Sim, uma cachorra.
MAJOR: Padre, eu só não o mato porque matar padre é mais que pecado.
*Major sai irritadíssimo*
DORA: Ai padre, pelo amor de Deus! Minha cachorrinha tá morrendo, não deixe não
padre.
PADRE: Mas de novo, eu não benzo cachorro!
JOÃO GRILO: Mas se fosse o do Major Antônio Moraes...
EURICO: Como é a história?
PADRE: Acalmem os ânimos!
EURICO: Eu sou presidente da Irmandade das Almas, é mais que um direito.
PADRE: Não benzo.
DORA: Pois meu marido pede a demissão do cargo.
EURICO: Eu peço demissão do cargo!
DORA: Ai meu Deus, minha cachorrinha morreu!
JOÃO GRILO: Tudo que é vivo morre.
DORA: Ai, ai, ai, ai, ai , ai , ai, ai!
JOÃO GRILO: Ai, ai , ai , ai , ai!
*cutuca Chicó*
CHICÓ: Ai, ai, ai , ai, ai, ai, ai, ai, ai!
PADRE: Que barulheira é essa?
DORA: Se o senhor tivesse benzido, essas hora ainda tava vivo. Agora o senhor enterra!
PADRE: Enterrar cachorro?
DORA: Em latim!
PADRE: Mas vocês estão loucos, não enterro.
DORA: Está cortado o rendimento da irmandade.
PADRE: Oh mulher sem coração!
DORA: Sem coração porque não quero ver minha cachorrinha comida pelos urubus? O
senhor enterra.
JOÃO GRILO: Se me dessem um dinheirinho eu mesmo enterrava.
EURICO: Pois tem uns trocado ganho.
DORA: Que é que vocês estão combinando aí?
JOÃO GRILO: Estou dizendo que desse jeito vai ser difícil cumprir o testamento da
cachorra, na parte que ela deixava dinheiro para o padre.
PADRE: Dinheiro?
JOÃO GRILO: Era uma cachorra muito inteligente.
PADRE: Era mesmo *finge secar as lágrimas*, e o testamento onde está?
CHICÓ: Passado em cartório, tudo registrado. Mas pelo visto o padre vai deixar pros
urubus.
PADRE: De jeito nenhum! Pode deixar que enterro em latim.
JOÃO GRILO: Pois vamos eu e Chicó, com o padeiro e sua mulher.
PADRE: Se é assim, enterramos, qual era o nome da cachorra?
DORA: Xaréu.
PADRE: Xaréu. Absolve, Domine, animais omnium fidelium defunctorum ab omni
vinculi delictorum.
TODOS: Amém.
FIM DO PRIMEIRO ATO.

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