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ROTEIRO da peça "O Auto da Compadecida"

Autor da peça: Ariano Suassuna


Roteiristas do filme: Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão
Adaptação: Kamylla Figueiredo

CENA 1
(ENTRA JOÃO GRILO E CHICÓ PELO CORREDOR DA PLATÉIA CONVERSANDO SOBRE
ARRANJAR UM EMPREGO)
João Grilo: Ô Chicó, não da pra viver nessa vida mais não. Vamos caçar trabalho.
Chicó: Ouvi dizer que o padeiro ta precisando de ajudante.
João Grilo: Ah, Chicó, descobrir, você tem cara de ajudante.
Chicó: Você acha?
João Grilo: E dos bons. Você ajuda o padeiro e com o dinheiro que ele lhe pagar, você
vai e me ajuda.
Chicó: Você acha que eu tenho cara de besta?!
João Grilo: Besta e ajudante é quase a mesma coisa. (SAI OS DOIS RINDO)

CENA2
(CHEGANDO NA CASA DO PADEIRO)
Chicó: Ô de Casa!
Eurico: Ô de fora, quem é?!
Chicó: Sô eu é, sô eu mesmo. Ouvi dizer que o senhor tá precisando de ajudante.
Eurico: Oxi! Quer me ajudar é? Pois pode ajudar! Ajuda e dinheiro são duas coisas não
se enjeitam!
Chicó: O quanto o senhor paga?
Eurico: Eu tô fazendo o favor de deixar você me ajudar, você quer mais o quê?
João Grilo: Não disse que você tinha cara de besta?
Dorinha: Cê tá parado é?
Chicó: Parado, esfomeado e aperreado!
João Grilo: E doido pra ajudar!
Chicó: Doidinho!
Dorinha: Pois o emprego é seu!
Eurico: Tudo bem, o emprego é seu.
João Grilo: E quanto ao salário?
Dorinha: O salário é pouco...
Eurico: Mas em compensação, o serviço é muito.
João Grilo: Serviço muito tem que ter dois ajudantes.
Eurico: Só se for pelo preço de um.
João Grilo: E quanto é o preço de um?
Eurico: E quanto é?
Dorinha: 5 tostões!
Eurico: 5 tostões.
João Grilo: 5 tostões, tá bom pra tu Chicó?!
Chicó: Pra mim tá!
João Grilo: Então vamos fazer essas contas! Chicó trabalha por 2 ganha 5 tostões que
é o preço de um!
Chicó: E eu vou dar conta de tudo sozinho, é?
João Grilo: Claro que não Chicó, mas da metade cê dá conta né?
Chicó: Eh... Da metade, vá-lá!
João Grilo: Está arranjado. Chicó trabalha por 2 ganha o preço de um e dá conta da
metade do serviço, eu trabalho por mais 2 ganha o preço de outro e dou conta da outra
metade!
Eurico: Nada disso. Eu disse 2 pelo preço de 1!
João Grilo: Mas o senhor está ganhando 4 pelo preço de 2, o que não ia dar no mesmo
patrão?!
Eurico: E é, é?
Dorinha: Oxente! Não sabe fazer conta não?
Eurico: Então tá fechado.
(CHICÓ E JOÃO GRILO SAEM DE CENA CARREGANDO BALAIO DE PÃO E DORINHA
ENTRA SEGURANDO A CACHORRA)

CENA 3
Dorinha: Vai minha bichinha, come pra ficar forte, vai!
(ENTRA JOÃO GRILO E CHICO COM PRATO DE COMIDA NA MÃO)
João Grilo: Desculpe perguntar, mas a senhora fala com cachorro é?
Dorinha: Falo sim, por que? Quer falar comigo?
Chicó: Mas ela escuta?
Dorinha: Escutar ela escuta, mas não me dá ouvido! Desde hoje que eu digo pra essa
danada comer e ela nada.
Chicó: Se ela não quiser, eu quero!
Dorinha: Tadinha, não comeu quase nada hoje!
João Grilo: Então tá melhor do que eu, que não comi nem o quase!
Dorinha: De manhãzinha, tomou só um cuscuizinho com leite.
Chicó: Ah... Um cuscuizinho com leite...!
Dorinha: Um tantinho assim de macaxeira!
João Grilo: Um tantinho assim de macaxeira...!
Dorinha: E um tiquinho de galinha grisada!
Chicó: Ai... Uma galinha grisada!
Dorinha: Coisa pouca, só por que eu adulei muito!
João Grilo: Se a senhora me adular um pouquinho, eu juro que eu como!
Chicó: Mas se não quiser adular, não tem problema, a gente come do mesmo jeito!
Dorinha: Mas olha só quis cara lisa, e vocês já não têm o cumê de vocês? A gente
serve do bom e do melhor, paga 5 tostões por esse servicinho fuleiro e ainda vem uns
mal-agradecido desse!
(DORINHA SAI E DEIXA O BIFE NO CHÃO PARA ACACHORRA COMER)
João Grilo: Bife passado na manteiga, Chicó!
Chicó: Não sei se como logo, ou se fico olhando mais um cadinho!
(A CACHORRA COMEÇA A GEMER)
Chicó: JOÃO, TÁ DANDO A PILORA NA CACHORRA!
João Grilo: Tá cá gota, deve ter sido a comida!
Chicó: Valei-me Deus, será que a nossa comida tava envenenada?
João Grilo: DEMÊNCIA! Pra quem só come filé, nossa gororoba é veneno!
Chicó: Acho melhor tu ser ligeiro e dar a notícia logo pra patroa.
(JOÃO VAI ATÉ O OUTRO LADO DO PALCO ONDE SE ECONTRA DORINHA)
João Grilo: Dona Dora! Aconteceu algo muito desagradável com um ente muito querido
seu...
Dorinha: Pois eu quero é que Eurico se dane!
João Grilo: Não, eu estou falando é da sua cachorrinha!
Dorinha: Ave Maria, o que aconteceu com Bolinha?!
(CORRE EM DIREÇÃO A CACHORRA)
Dorinha: Acode que minha cachorrinha tá doente! Valei-me meu São, meu São... Ave
Maria, qual é o santo que protege os cachorro?
João Grilo: Eu tenho pra mim que é São Francisco, que era o Santo que falava com os
bicho!
Dorinha: Valei-me meu São Francisco de... Mas é de Pádua ou de Assis?
João Grilo: Ai eu já não sei, melhor perguntar pro padre!
Dorinha: Isso, vá chamar Padre João pra benzer minha cachorrinha!
Chicó: Benzer?
Dorinha: Éee!!!
João Grilo: A cachorra??
Dorinha: Ain que se minha cachorrinha morrer eu morro junto. (vira-se para João e
Chicó) MAS ANTES DE MORRER EU MATO VOCÊS DOIS QUE AO INVÉS DE IR
ESTÃO AI REMACHANDO.(os dois saem correndo) Ain meu Deus acuda que essa
cachorrinha é a razão da minha existência!
Eurico: Calma minha filha você ainda tem eu.
Dorinha: Que é mais uma desgraça na minha vida!
(APAGA A LUZ DO PALCO E FOCA EM CHICÓ E JOÃO ENTRANDO PELO CORREDOR)

CENA 4
João Grilo: O Bispo está pra chegar, tenho certeza que Padre João não vai querer
benzer a cachorra!
Chicó: Não vai querer por que? O quê que tem demais. Eu mesmo ja tive um cavalo
bento.
João Grilo: Que isso, Chicó?! Já estou ficando por aqui com as suas histórias. É
sempre uma coisa toda esquisita e quando se pede uma explicação vem sempre com
"não sei, só sei que foi assim".
Chicó: Mas se eu tive mermo um cavalo meu filho, o que que eu posso fazer? Vou
mentir, dizer que não tive?
João Grilo: Você vive com essas histórias, depois não reclama que o povo diz que você
é sem confiança.
Chicó: Eu sem confiança? Antonio Martim ta ai pra da as provas de tudo que eu digo.
João Grilo: Hee Antonio Martinho, faz 3 ano que ele morreu.
Chicó: Mas era vivo quando eu tinha o bicho.
João Grilo: Mas como era esse cavalo bento?
Chicó: Cavalo bom como aquele, nunca tinha visto... (contando a história com
empolgação) Uma vez corremos atrás de uma garrota das 6 da manhã ate as 6 da
tarde sem parar nenhum momento. Fui derrubar o boi ja de noitinha.
João Grilo: O boi, não era uma garrota?!
Chicó: Era uma garrota e um boi.
João Grilo: E você corria atrás dos dois juntos assim de uma vez?
Chicó: Corria! É proibido?
João Grilo: Não, mas eu me admiro deles correrem tanto tempo juntos sem se
apartarem. Como foi isso?
Chicó: Não sei, só sei que foi assim. 17 horas montado e o cavalo ali comigo sem
reclamar nada.
João Grilo: Eu me admirava se ele reclamasse. Mas vamos ver se você com suas
lorotas convence o padre João.

CENA 5
(ENTRAM NA IGREJA CHAMANDO O PADRE JOÃO. O PADRE APARECE MEIO
DESNORTEADO)
João Grilo: Padre João, a gente queria lhe pedir um favor, mas o senhor tem que
garantir que não vai ficar nervoso, pode ser?
Padre João: Pode pedir meu filho, se estiver no meu alcance...
Chicó: É que a gente queria que o senhor benzesse uma cachorra...
Padre João: Uma cachorra?!
Chicó: Sim!
Padre João: Pra eu benzer?
Chicó: Sim!
Padre João: Que maluquice, que besteira!
João Grilo: Cansei de dizer a Chicó que o senhor não benzia, benze por que benze,
vim com ele!
Padre João: Não benzo de jeito nenhum!
Chicó: Mas Padre não vejo nada de mal se benzer o bicho.
João Grilo: No dia que chegou o motor novo do Major Antônio Moraes o Senhor não
benzeu?
Padre João: Motor é diferente, é coisa que todo mundo benze, mas cachorra eu nunca
ouvi falar...
Chicó: Acho cachorra uma coisa muito melhor que motor.
Padre: É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo cachorra. Benzer motor é
fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorra?!
João Grilo: É, Chicó, deixa pra lá, o padre tem razão! Quem vai ficar engraçado é ele, e
uma coisa é benzer o motor DO MAJOR ANTÔNIO MORAES, outra coisa é benzer a
cachorra DO MAJOR ANTÔNIO MORAES!
Padre João: Como?!
João Grilo: Eu disse que uma coisa era o motor, a outra era a cachorra do Major
Antônio Moraes!
Padre João: MININO! E o dono da cachorra que vocês estão falando é o Major Antônio
Moraes, é?
João Grilo: É Padre, eu não queria vir com medo que o senhor se zangasse, por que o
Major é rico e poderoso, estou trabalhando na fazenda dele, com medo de perder meu
emprego, fui forçado a obedecer. Mas eu disse a Chicó, o padre vai se zangar!
Padre João: Zanga nada João! Quem é o ministro de Deus pra ter o direito de se
zangar?
João Grilo: Então quer dizer que benze né?
Padre João: E você o que é que acha?
Chicó: Acho nada demais.
Padre João: Nem eu... Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!
João Grilo: Então fica tudo na paz do Senhor, com a cachorra benzida e todo mundo
satisfeito.
Padre: Diga ao Major que venha, estou esperando.

CENA 6
Chicó: Que invenção foi essa de dizer que o cachorro é do Major Antonio Moraes?
João Grilo: Era o único jeito do padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do
Major que se pela. Não viu a diferença? Antes era: "Que maluquice! Que besteira".
Agora: "Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus".
Chicó: E se ele descobrir?
João Grilo: Como? E cachorro é boi pra ter a marca do dono?
Chicó: Qualquer dia desse, ainda se mete numa embrulhada.
João: Eu acho é bom, sou louco por uma embrulhada.
Chicó: Isso não vai da certo, João. Você ja vem com suas coisas. E se Antonio Moraes
aparece aqui pela cidade?
João Grilo: Meu filho, o dia que o Major sair daquela fazenda a galinha cria dente!
Chicó: Então acho que as bichinha tão roendo osso, por que o homem vem mermo ali.
Antônio Moraes (A.M): Eurico quem engole-cobra é cabra frouxo! Anda roubando muito
a freguesia?
Eurico: Major Antônio Moraes! Há quanto tempo não aparece em nossa cidade!
A.M: Isso aqui tá pior que merda de gato, só venho por obrigação!
Eurico: E a que devemos a honra?
A.M: Se alembra da minha filha Rosinha?
Eurico: Oxi! É Claro! Cabelo liso, olhos pretos, ombros fortes, seios fartos, cinturinha...
A.M: Desce mais não que você se lasca!
Eurico: Major com todo respeito, que quando ela saiu daqui ainda era uma menina!
A. M.: Pois então, Rosinha andou meio adoentada e chegou do Recife para descansar
na fazenda, mas como tudo que é mulher tem verdadeira mania por igreja, e me pediu
que eu vá conversar com o padre para lhe dar benção quando ela chegar.
João Grilo: Ave Maria! O que se faz, Chicó?
Chicó: Não sei, não tenho nada haver com isso.
João Grilo: Por nossa Senhora, vamos la impedir o homem de se encontrar com o
padre.
Chicó: Você que inventou essa história, que gosta de embrulhada, que resolva.
João Grilo: E você também foi comigo la encomendar a benção da cachorra. Agora
vamo la!
Chicó: Vô nada!
Joaõ Grilo: Ô Chicó, você ta acostumado com essas coisas, ja teve até cavalo bento.
Chicó: É, mas acontece que Antônio Moraes pode ter alguma coisa de cavalo, de bento
é que ele não tem é nada. Não me meta nessa história não.

CENA 7
(O MAJOR COMEÇA ANDAR DE ENCONTRO A IGREJA E JOÃO GRILO COMEÇA A
CONVERSAR COM ELE)
João Grilo: Ora viva, seu Major Antônio Moraes, como vai vossa senhoria?
A.M: Do jeito que ocê tá vendo.
João Grilo: Bem demais, veio procurar o padre...?
A.M: Tá perguntando muito!
João Grilo: Se vossa senhoria quiser eu posso chamá-lo.
A.M: Se eu quisesse eu já tinha mandado.
João Grilo: Vou lhe contar um negócio, não se espante não, é que o padre está meio
doido!
A.M: O padre?! Doido?!
João Grilo: É, o padre está de um jeito que não respeita mais ninguém. E com mania
de benzer tudo. Vim dar ele um recado mandado pelo meu patrão, e ele me recebeu
muito mal, apesar de meu patrão ser quem ele é.
A.M: E quem é teu patrão?
João Grilo: O padeiro! Pois ele chamou o patrão de cachorro e disse que apesar disso
ia benzê-lo!
A.M: Ah, que loucura é essa?
João Grilo: Eu não sei, é a mania dele agora, benze tudo e chama a gente de cachorro!
A.M: Isso é porque foi com teu patrão, comigo é diferente.
João Grilo: Vossa senhoria me desculpe, mas eu penso que não!
A.M: Você pensa que não?
João Grilo: Eu penso! Digo isso porque eu ouvi o padre dizer "aquele cachorro só
porque é amigo de Antônio Moraes pensa que é alguma coisa".
A.M: Que história é essa? Você tem certeza?
João Grilo: Certeza plena, está doidinho o pobre padre!
A.M: Vamos esclarecer essa história, alguém vai pagar por isso!

CENA 8
(MOJOR ENTRA NA IGREJA E O PADRE O RECEBE CALOROZAMENTE)
Padre: Ora quanta honra, uma pessoa como Antonio Moraes na Igreja; a quanto tempo
esses pés não cruzam os umbrais da casa de Deus?
A.M: É melhor o senhor dizer que a muito tempo eu não venho à missa.
Padre: Qual o que, eu sei de suas ocupações e de sua saúde.
A.M: Você sabe muito bem que eu não trabalho e a minha saúde é perfeita.
Padre: Sim, sim... O que te trouxe aqui? Não me diga eu já sei, a bichinha está doente.
A.M: É, já sabia?
Padre: Já, aqui as coisas se espalham num instante não sabe?! Já está fedendo?
A.M: Fedendo? Quem?!
Padre: A bichinha.
A.M: Não, mas o que é que o senhor quer dizer?
Padre: Nada não, é apenas um modo de falar.
A.M: Pois o senhor anda com um modo de falar muito esquisito!
Padre: Desculpe um pobre padre sem instrução. Qual é a doença Major, rabugem?
(O MAJOR SENTA A MESA, EQUANTO O PADRE PEGA UM VIHHO PARA BEBEREM)
A.M: Rabugem?
Padre: Sim, já vi uma morrer disso em poucas horas, começou pelo rabo, e espalhou-
se pelo corpo inteiro.
A.M: Pelo rabo?!
Padre: Ai me desculpe, eu devia ter dito pela cauda, devemos respeito aos enfermos,
mesmo sendo da mais baixa qualidade.
A.M: Baixa qualidade?! (DA UM FORTE TAPA NA MESA E SE LEVANTA NERVOSO E
COMEÇA A SAIR DA IGREJA)Padre!!! Veja bem com quem está falando, a igreja é coisa
séria como garantia da sociedade. Mas tudo tem um limite!!!
Padre: Mas o que foi que eu disse?!
A.M: Baixa qualidade... Fique sabendo que meu nome todo é Antônio Noronha de Britto
Moraes, e esse Noronha de Britto veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gente que veio nas
caravelas, ouviu?!
Padre: Sem dúvida! Na certa os antepassados da bichinha também vieram nas
caravelas, não é isso?
A.M: É claro! Se os meus antepassados vieram, os dela vieram também! O que o
senhor tá querendo insinuar, que por acaso a mãe dela...?
Padre: Uma cachorra...
A.M: O quê...?!
Padre: Uma cachorra...
A.M: Repita!
Padre: Eu não vejo mal nenhum em repetir, a mãe dela não é mesmo uma cachorra?
A.M: Padre, eu só não lhe mato porque o senhor é padre e está louco! EU VOU ME
QUEIXAR AO BISPO.
(NA SAÍDA O A.M ENCONTRA COM JOÃO GRILO E DIZ:)
A.M: Você tinha razão! Apareça na fazenda que não te arrependerá!
(PADRE PARA JOÃO GRILO)
Padre: Alguém me diga pelo amor de Deus o que foi que eu disse?
João Grilo: Nada, nada, Padre. Esse homem só pode ta doido com mania de ser
grande. Até o cachorro quer da carta de nobreza.
Padre: Eu faço tudo para agradá-lo e ele vai se queixar ao bispo.
João Grilo: Vai nada. Eu vou até ele e o convenço, pode deixar, mas eu queria um
favorzinho.
Padre: Sabia que tinha algo em troca, pois então diga.
João Grilo: A cachorra da mulher do padeiro está muito mal e eu queria que o senhor
benzesse a bichinha.
Padre: De novo?! Mas é possive.
João Grilo: Mais do que possível, o senhor não ia benzer a do major Antonio Moraes?
Padre: O terra pra ter cachorro doente, só essa.
João Grilo: E a maia agora é benzer. Mas como é, o senhor benze ou não benze ?
Padre: Pensando bem acho melhor não benzer. Vá se embora, vá!
João Grilo: E o que que eu digo pra Dona Dora?
Padre: Diga a ela que o bispo está ai e que eu só benzo se ele der licença.

CENA 9
(NA CASA DO PADEIRO DORINHA ESTÁ LAMENTANDO A PIORA DA CACHORRA
JUNTO COM EURICO E CHICÓ. JOÃO CHEGA)
Dorinha: Ain, que minha cachorrinha ta morrendo. Cadê o padre pra benzer ela, João
Grilo?
João Grilo: Não pode vim. (DORINHA CHORA EM DESESPERO) Disse que o bispo ta ai
e que só benzia se fosse a cachorra de Antonio Moraes, gente mais importante, por
que se não o bispo pode reclamar.
Dorinha: QUE HISTÓRIA É ESSA?! ENTÃO PODE BENZER A CACHORRA DO
MAJOR ANTONIO MORAES E A MINHA NÃO? CHICÓ FIQUE AQUI COM BOLINHA
QUE EU VOU RESOLVER ISSO É AGORA!
(APAGAM-SE AS LUZES. SAI DORINHA, EURICO E JOÃO GRILO A CAMINHO DA
IGREJA E ECONTRA COM O PADRE. A LUZ ACENDE E ELES JA ESTÃO COM O PADRE).

CENA 10
Padre: O que é isso? O que é isso? (CALMO E SÍNICO)
Eurico: Eu é que pergunto: O que é isso? Afinal de contas eu sou presidente da
irmandade das almas. E isso é alguma coisa!
João Grilo: É padre. O homem ai é coisa muita. Presidente da irmandade das almas.
Pra mim, isso é um caso claro de cachorro bento. Benza logo essa cachorra e tudo fica
em paz.
Padre: Não benzo, não benzo e acabou-se! Eu não estou preparado pra fazer essas
coisas assim de repente, sem pensar, não.
Dora: Quer dizer que, quando era pra benzer a cachorra do major, ja estava tudo
pensado; pra benzer a minha ééé essa complicação! OLHA AQUI MEU MARIDO
PRESIDENTE E SÓCIO BENFEITOR DA IRMANDADE DAS ALMAS. EU VOU PEDIR
A DEMISSÃO DELE!
Eurico: Vai pedir minha demissão!
Dora: De hoje em diante, não sai la de casa nem um pão pra irmandade!
Eurico: Nem um pão!
Dora: E olha que os pães que vem pra aqui são de graça!
Eurico: São de graça!
Dora: E olhe que as obras da igreja é ele quem ta custeando!
Eurico: Sou eu que estou custeando!
(EURICO TROMBA EM DORA QUE ESTA ENFURECIDA SAINDO DA IGREJA)
Padre: Que isso? Que isso? (calmo e sínico)
Dora: O que é isso? O que isso é a voz da verdade, padre João. Agora o senhor vai ver
quem é a mulher do padeiro!
João Grilo: Ai ai ai... a senhora o que é do padeiro?
Dora: A VACA...
João Grilo: A vaca?
Dora: A vaca que eu mandei pra cá pra fornecer leite ao vigário tem que ser devolvida
hoje mermo!
Eurico: Hoje mermo!
Padre: Até a vaca?
João Grilo: A vaca também é demais!
(CHICÓ ENTRA.)
Dora: O cabra desmandado. Eu não mandei você ficar la cuidando de Bolinha?
Eurico: Não mandou?
Chicó: Mandou.
Dora: E como é que ela ta?
Chicó: Ta lá com quatro pata, um rabo, um focinho...
Dora: Não me diga que ela piorou?
Chicó: Digo nada.
João Grilo: Ela piorou? Diga!
Chicó: É pra dizer ou pra não dizer?
Dorinha: Num me diga que você deixou Bolinha morrer!
Chicó: Eu não deixei não!
Dorinha: Ai, graça a Deus...
Chicó: Mas a senhora sabe como a bichinha é desobediente.
João Grilo: Oh Chicó, tu não tinha nada que sair de junto da cachorra!
Chicó: Mas se eu tivesse ficado lá com a defunta, quem ia vir avisar que ela morreu?
Dorinha: Aaaaa, MEU DEUS, minha cachorrinha morreu!
(SAI DORINHA, EURICO E O PADRE)

CENA 11
Chicó: A cachorra cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável,
aquilo que marca nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que
iguala tudo o que é vivo em um só rebanho de condenados, porque tudo que é vivo,
morre.
João Grilo: "Tudo que é vivo morre"... Bonito! Onde foi que tu ouviu isso? Da sua
cabeça que não saiu, que eu sei!
Chicó: Não saiu mesmo não, João. Só ouvi o padre dizer, uma vez! Foi no dia que meu
pirarucu morreu...
João Grilo: Seu pirarucu?
(ELES SAEM DA IGREJA NO RUMO DA CASA DO PADEIRO)
Chicó: É! Meu é modo de dizer, porque pra falar a verdade, acho que eu é que era
dele. Nunca lhe contei isso não?
João Grilo: Não!
Chicó: Foi quando estive no Amazonas... Amarrei a corda do arpão ao redor do corpo
de modo que eu fiquei com os braços sem movimento, quando ferrei o bicho ele deu
um puxavante maior e eu cai no rio.
João Grilo: O bicho pescou você, não é?
Chicó: Exatamente João, o bicho me pescou. Pra encurtar a história o pirarucu me
arrastou rio acima, três dias e três noites.
João Grilo: Três dias e três noites? E você não sentia fome não?
Chicó: Fome não, mas era uma vontade de fumar danada! Quando ele morreu, ai que
eu pude acenar, e ai vieram me soltar.
João Grilo: E você não estava com os braços amarrados, Chicó?
Chicó: Mas na hora do aperto dá se um jeito a tudo!
João Grilo: (RINDO DA SITUAÇÃO) E que jeito você deu?
Chicó: Não sei, só sei que foi assim!

CENA 12
(CHEGANDO NA CASA DO PADEIRO.)
Dorinha: Ain, minha cachorrinha... ai, ai, ai.....
(JOÃO GRILO E CHICÓ FINGEM CHORAR IGUAL DORINHA).
João Grilo: Ai, ai, ai... (CUTUCANDO CHICÓ)
Chicó: Ai, ai, ai....
Padre: Todos devem se resignar.
Dora: Se o senhor tivesse benzido a bichinha, a essas horas, ela ainda estava viva!
Padre: Qual, qual... Quem sou eu?
Dora: Mas tem uma coisa, Padre, agora o senhor vai enterrar a cachorra!
Padre: Enterrar a cachorra?
Dora: Vai enterrar e tem que ser em latim. De outro jeito não serve, não é?
Eurico: É, em latim não serve.
Dorinha: Em latim é que serve!
Eurico: É! Em latim é que serve!
Padre: Vocês estão louco!!! Não enterro, de jeito nenhum! (PEGANDO O CHAPÉU E
SAINDO DA CASA)
Dora: Está cortado o rendimento da irmandade!
Padre: Não enterro!
Eurico: Está cortado o rendimento da irmandade!
Padre: NÃO ENTERRO!
Dora: Meu marido considera-se demitido da presidência!
Padre: NÃO ENTERRO!
Eurico: Eu me considero demitido da presidência!
Padre: Não enterro!
Dora: A VAQUINHA VAI SAIR DA IGREJA IMEDIATAMENTE!
Padre: Oh mulher sem coração...
Dorinha: Sem coração? Sem cora... Porque não quero ver minha cachorrinha ser
comida pelos urubus? ENTERRA OU NÃO ENTERRA?
Padre: Se fosse pela lei de Deus a gente dava um jeito, mas com o bispo não tem
conversa.
Dorinha: Pão agora pro vigário, só sai daqui dormido e com o dinheiro na frente.
Padre: Oh mulher cruel
Dora: E pelo dobro do preço!
(O PADRE VAI EMBORA E ELES VOLTAM PRA JUNTO DA CACHORRA)

CENA 13
Eurico: Ô meu amor, ela já tá começando a cheirar mau.
Dorinha: Então saia você de casa, quem sabe a catinga aqui dentro melhora.
João Grilo: Se o senhor me desse carta branca eu enterrava a cachorra!
Eurico: Tem a carta!
João Grilo: Posso gastar o que quiser?
(DORINHA CHORA DESESPERADA)
Eurico: Pode! (LAMENTANDO)
(JOÃO SAI ESFREGANDO A MÃO COM AR DE MALANDRO)
Chicó: O que é que tu vai arrumar agora, João?
João Grilo: Vou arrumar é um jeito da cachorra ser enterrada, e vai ser em latim!

CENA 14
(JOÃO VAI ATRÁS DO PADRE JOÃO)
João Grilo: Oh Padre João!
Padre: Que foi?
João Grilo: A patroa mandou buscar essa vaquinha que ela lhe emprestou.
Padre: Oh mulher desalmada! Se eu pudesse eu enterrava a cachorra, o gato, o diabo!
Mas o bispo está aí!
João Grilo: Esse povo é tudo doido, padre. Eles pensam que bicho é gente. A cachorra
tinha até um testamento que ela deixava uma parte de dinheiro pro padre.
Padre: Que isso, que isso??? Cachorra com testamento?
João Grilo: Bolinha era uma cachorra inteligente. Todos os dias, botava os olhos bem
compridos toda vez que o sino batia, até que meu patrão entendeu que ela queria ser
enterrada como cristã e teve que prometer que em troca do enterro, acrescentaria 3
contos de réis para o padre!
Padre: Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (FINGINDO CHORO)
João Grilo: Mas infelizmente não foi possível fazer o enterro, de modo que vai ser difícil
cumprir o testamento nessa parte. E agora a cachorrinha vai ser comida pelos urubus.
Padre: Comida ela? De jeito nenhum! E o testamento onde está?
João Grilo: Já foi passado em cartório, coisa garantida!
Padre: Uma cachorra dessa não pode ser comida pelos urubus!
João Grilo: Apoiado!

CENA 15
(O ENTERRO DA CACHORRA SEM NENHUMA FALA, APENAS DORINHA GRITANDO,
JOÃO GRILO E CHICÓ FINGINDO QUE ESTÃO CHORANDO E JOÃO PAGANDO AO
PADRE. APAGAM-SE AS LUZES E O PADRE APARECE NA IGREJA, EM SEGUIDA
ENTRA O BISPO)
CENA 16
(VOLTANDO DO ENTERRO O PADRE ENTRA EM CENA CONTANDO O DINHEIRO E
ESCONDE RAPIDAMENTE QUANDO ENCONTRA O BISPO NA IGREJA)
Padre: Bispo?! Não esperava vossa reverendíssima aqui!
Bispo: Estou de "passouns", como dizem os franceses... Mas há coisas que eu não
posso deixar passar com essa facilidade.
Padre: Não estou entendendo.
Bispo: Mas entenderá quando eu disser que Antônio Moraes falou comigo...
Padre: Antônio Moraes falou com o Senhor?
Bispo: Sim, justamente para reclamar de seu procedimento para com ele.
Padre: Não entendendo o que quer dizer.
Bispo: Vamos deixar de brincadeira Padre João! Antônio Moraes veio reclamar da sua
brutalidade, pois o senhor chamou a mulher dele de cachorra!
Padre: Eu?!
Bispo: Si, o senhor!
Padre: Eu juro que eu nunca chamei a mulher dele de cachorra!
Bispo: Chamou Padre João!
Padre: Não chamei seu bispo!
Bispo: Chamou Padre João!
Padre: Não chamei seu bispo!
Bispo: Chamou Padre João!
Padre: Chamei seu bispo.
Bispo: Afinal de contas, o Senhor chamou ou não chamou?
Padre: Eu não chamei, mas se vossa reverendíssima diz que eu chamei é porque sabe
mais do que eu.
Bispo: Então não é verdade que Antonio Moraes falou para mim que ele queria que o
senhor abençoasse a filha dele e o senhor chamou a mulher dele de cachorra!
Padre: A FILHA?
Bispo: Sim,a filha.
Padre: E é a filha que ele queria abençoar?
Bispo: Claro que é. Não é isto que eu estou lhe dizendo?
Padre: O Grilo tinha me dito que era a cachorra...
Bispo: Grilo? O senhor está brincando comigo, Padre João. Que história é essa de grilo
com cachorra?
Padre: Vossa reverendíssima me perdoe mas agora eu estou entendendo tudo!
Bispo: Quem está começando a não entender nada sou eu!
Padre: A culpa disso tudo é de João Grilo.
Bispo: Quem é João Grilo?
Padre: É um amarelo que trabalha na padaria, mas agora ele me paga!

CENA 17
(O PADRE SAI NERVOSO DA IGREJA E ECONTRA JOÃO GRILO)
Padre: JOÃO GRILO! Seu amarelo safado, venha aqui!
João Grilo: Estás ouvindo Chicó? Eu se fosse você reagia!
Chicó: Eu?!
João Grilo: Sim! Eu se fosse você reagia! Não admito que fale assim de amigo meu na
minha frente.
Chicó: Mas o amigo é você!
João Griló: Então reaja Chicó, tu não é homem não!
Chicó: Sou homem, mas sou frouxo!
João Grilo: Muito bem, sendo assim, eu falo! Por que foi que vossa reverendíssima me
chamou de safado?
Padre: Porque você é um amarelo muito safado! Seu moleque, agora você vai explicar
ao bispo que história é essa de vir me dizer que a cachorra de Antonio Moraes estava
doente fazendo me chamar a mulher dele de cachorra!
João Grilo: Ah... E a safadeza é essa? Isso é nada, Padre João. Muito pior é enterrar a
cachorra em latim como se fosse cristã e nem por isso eu vou chamá-lo de safado!
Padre: AHHHHHHHHH!
Bispo: Mas o que foi?
Padre: Uma dor que me deu assim de repente, AHHHHH!
João Grilo: Coitado... Mas o senhor tinha que ver era os grito que minha patroa dava
enquanto se fazia o enterro da cachorra.
Padre: Oh meu querido João Grilo me acuda que eu estou morrendo, AHHHH!
João Grilo: Eu? Quem sou eu pra socorrer padre? Eu um amarelo muito safado!
Padre: Retiro o que eu disse, João!
João Grilo: Retirando ou não, o fato é que a cachorra foi enterrada em latim!
Bispo: Cachorra enterrada em latim?
Padre: Enterrada e latindo, senhor bispo, AU AU AU. Não sabe?
Bispo: Não sei, não senhor! E nunca vi cachorra morta latir! Que história é essa?
Padre: AHHHHH!
João Grilo: Que aperreio é esse? A desgraça agora foi que começou.
Padre: AHHH... (FINGE QUE DESMAIA)
Bispo: Então houve isso? Uma cachorra enterrada em latim?
João: Então é proibido?
Bispo: Se é proibido... deve ser, porque é engraçado demais pra não ser. É proibido,
sim, é mais do que proibido. Padre João, o senhor será suspenso! O que você fez é
uma vergonha! Uma desmoralização! Quanto ao senhor, seu João Grilo, vai se
arrepender de suas brincadeiras, jogando a igreja contra Antônio Moraes, é uma
vergonha! Uma desmoralização.
João Grilo: É mesmo, uma vergonha, uma desmoralização! Uma cachorra safada
daquela se atrever a deixar 3 contos pro Padre e 6 pro Bispo, é demais!
Bispo: Como?
João Grilo: Ainda não sabe da história do testamento não?
Bispo: Testamento? Que testamento?
João Grilo: O testamento da cachorra!
Bispo: Testamento da cachorra?
Padre: Sim, senhor Bispo, a cachorra tinha um testamento, maluquice de sua dona
sabe, onde deixou 3 contos para a Paróquia e 6 para a Diocese.
Bispo: É por isso que eu sempre digo que os animais também são criaturas de Deus...
Que animalzinho inteligente, que sentimento nobre!
Padre: Até senhor Bispo, a pedido da dona eu permiti que acompanhasse o enterro.
Bispo: Em latim?
Padre: Que nada, eu disse 4 ou 5 coisas, coisa pouca não sabe...
João Grilo: Nu-sei-o-quê, Nu-sei-o-quê, defutórium, amém!
Bispo: Vamos deliberar, é assunto pra se discutir com muito cuidado!

CENA 18
(DORINHA EM CASA LENDO REVISTA E CONVERSANDO COM CHICÓ)
Chicó: Como vai a senhora? Já está mais consolada?
Dora: Consolada? Como se além de perder minha cachorra ainda tive que gastar pra
se enterrar.
Chicó: E ficou barato, a senhora pagou o padre pra enterrar o bicho eu já vi pagarem
15 conto pro bicho benzer uma pessoa.
Dora: E que bicho foi esse, Chico?
Chico: Foi um papagaio que eu tive. (VIAJANDO NA HISTÓRIA) Quando ele nasceu eu
trabalhava num seminário, e de tanto ouvi as aulas ele sabia a bíblia de cor. Depois fui
morar num lugar que só tinha padre a mais de dez léguas de distância. O bicho é que
acostumava dispensar o sacramento.
Dora: Que fim levou esse papagaio?
Chico: Se converteu pra protestantismo e foi viver numa igreja batista...Há uns dois
anos soube que morreu de velhice.
Dora: Como morreu de velhice, se você disse que viu ele nascer? Papagaio vive mais
de 100 anos.
Chico: Não sei, só sei que foi assim.
Dora: Ai, Chico, eu me sinto tão sozinha depois que minha cachorrinha morreu.
Chico: Carece a senhora arrumar outro bichinho de estimação.
Dora: E o que você sugere?
Chico: Ah, Canário é bom pra alegrar.
(DORA COMEÇA A SE DESPIR)
Dora: Eu quero um bichinho maior que a minha solidão é muito grande.
Chico: Uma lebre, um preá...
Dora: Maior!
Chico: Um cachorro, um cabrito...
Dora: Maior, maior...
Chico: Parece que eu to entendendo.
Dora: E vai ficar parado ai, é?
Chico: E se seu marido chegar?
Dora: Oxe, ta com medo?
Chico: Medo, uhu, MEDO EU? Agarro ele pelo chifre, rodo, rodo e sacudo pra cima!
Dora: Sacode mermo?
Chico: Sacudo!
Dora: Ain, que eu adoro um homem brabo. Repete!
Chico: Sacudo, sacudo, sacudo!
Dora: Então vem me sacudir um pouquinho, vem! Meu valentão.
Chico: Assim?
Dora: Assim!
Chico: E agora, o que eu faço?
Dora: Quem pergunta isso sou eu. O que eu faço? Pode mandar.
Chico: Eu ?
Dora: É, fala que quem manda aqui é você. Fala.
Chico: Quem manda aqui sou eu.
Dora: Fale outra vez.
Chico: Quem manda aqui sou... (BATIDAS NA PORTA)
Vicentão: DORA!
Dora: Eita que me esqueci que também marquei com Vincentão.
Chico: Danou-se! Com a senhora a gente bota e leva chifre ao mesmo tempo.
Vicentão: Dora! Abre aqui, Dora!
Dora: Agora lascou! Vicentão te esfola se te pega aqui.
Chico: Quem é Vincentão?
Dora: Oxe, então não sabe quem é Vincentão? Que deu aquela pisa em seu Golias da
farmácia.
Chico: Ai, Meu São Davi.
Dora: Escangalhou o Ernesto grandalhão, e....
Chico: Chega! Quero saber mais não, prefiro continuar sem conhecer o homem.
Dora: Ai, o que eu faço?
Chico: E é eu que sei! A casa é sua, quem manda aqui é a senhora.
Vicentão: ABRE ESSA PORTA!
Chico: O que eu faço agora, hein?
Dora: Deixa que eu dou um jeito nele.
(DORINHA FOI ABRIR A PORTA)
Vicentão: Eita que hoje eu to com a gota! Hoje eu to com a moléstia! Por que não abriu
a porta logo quando eu lhe mandei? Hein?
Dora: Eita, não abri? Olha ela ai abertinha!
Vicentão: E por que a demora?
Dora: E não foi você mesmo que mandou pra eu me arrumar todinha pra você?
Vicentão: Foi. Mandei.
Dora: Então, eu tava me arrumando. Afinal de contas, quem é que manda aqui ?
Vicentão: E tem precisão de dizer?
Dora: Precisão não tem, mas se quiser dizer...
Vicentão: Quem manda aqui sou eu!
Dora: Ai, que eu adoro um homem brabo. Repete!
Vicentão: Quem manda aqui sou eu!
Dora: Repete!
Vicentão: Quem manda aqui... (BATIDAS NA PORTA)
Eurico: O Dora!
Dora: Ai, é o meu marido.
Vicentão: Agora lascou.
Eurico: Dora!
Dora: O que eu faço?
Vicentão: E eu que sei? A casa é sua. Quem manda aqui é você! O que eu faço agora,
hein?
Dora: Você vai fingir que entrou aqui pra pegar alguém.
Vicentão: E tem alguém aqui?
Dora: Claro que não, homem de Deus. Por isso mesmo. Como você não encontrou ele
aqui, você vai sair por ai atrás dele, entendeu?
Vicentão:Ele quem, rapaz?
Dora: O Vicentão, parece que Deus te deu esse corpo todo por que esqueceu de te dar
a cabeça, não foi?
Vicentão: Não to entendendo é nada, viu?
Dora: Nem precisa entender. Pega essa tua peixeira e sai por ai gritando: "Eu te pego,
cabra safado, eu te pego"! Entendeu?
Vicentão: Eu te pego, cabra safado! Eu te pego.
Eurico: O Dora eu to perdendo a paciência.
(VICENTÃO SAI GRITANDO COM A PEIXEIRA NA MÃO)
Eurico: Que diabo é isso?
Dora: Quiquinho, você chegou na hora exata.
Eurico: Hora exata de que?
Dora: O condenado Vicentão ia matar o pobre do Chico.
Eurico: Que Chico?
Dora: Pode sair, Chico, ele ja foi.
Chico: Boa noite, meu patrão.
Dora: O coitado chega ta amarelo.
Eurico: E mais amarelo vai ficar senão contar direitinho o que esta fazendo aqui.
Dora: Pois Vicentão jurou Chico de morte, e achou de matar ele aqui, logo aqui na
nossa casa.
Chico: Na sua casa.
Eurico: (RINDO DA SITUAÇÃO) Vicentão lhe jurou de morte, foi?
Chico: Jurou! Pela mãezinha dele, que Deus a tenha. Se o patrão não tivesse
chegado...
Eurico: Também, cabra frouxo que você é, Chico. Por que não enfrentou o homem? Se
fosse eu descangotava ele!
Dora: Ai que eu adoro um homem brabo!

CENA19
(QUANDO DORINHA E EURICO DEITAM NA CAMA CHEGA JOÃO GRILO BATENDO NA
PORTA)
João Grilo: Dona Dora!
Dora: Mas será possível!
Eurico: O que foi homem?
João Grilo: Dona Dora, houve mais um pequeno arranjo, o bispo teve que entrar no
testamento!
Dorinha: Estás doido é? Eu já não gastei 3 conto com o padre?
Eurico: E agora é mais quanto?
João Grilo: E agora mais 6 pra Diocese.
Dorinha: TA DOIDO É?! Passa esse dinheiro pra ele, Eurico. Oh, depois vou descontar
do seu salário.
Eurico: É, descontar do seu salário.
João Grilo: Do meu salário?! Eu ajudei a senhora correndo atrás pra enterrar diabo de
cachorra e é assim que me trata?
Dora: Todo mundo sabe que você é treiteiro, João Grilo. Você é um safado!
João Grilo: Safado? Eu ja to por aqui com vocês! Descontar do meu salário é demais,
eu ja não ganho bosta nenhuma. E outra coisa, safado aqui é outra pessoa, ta?!
Eurico: Olha como fala com minha mulher, ou eu te meto o tiro na fuça.
João Grilo: Ah, mas você não ta metendo é nada! Por que quem ta metendo aqui é
outra pessoa, né, Chico?
Eurico: Devolve esse dinheiro aqui, seu ladrão! Duvido que o bispo cobrou isso tudo.
João Grilo: Ladrão é você, presidente da irmandade... Três dias passei em cima de
uma cama, tremendo de febre e nem um copo d'Água me mandaram!
Eurico: Seu ingrato, eu que nunca o despedi apesar de todas as suas trapaças.
João Grilo: Nunca me despediu porque eu trabalhava barato e bom. E faça o favor de
não me irritar, se não... Eu dou um tiro na cabeça do Chicó!
Chico: Oxe, na minha não!
João Grilo: To caindo fora! Fui.
(JOÃO GRILO SAI E AS LUZES SE APAGA)
CENA 20
(O CENÁRIO É NA FAZENDA DO MAJOR)
João Grilo: Emprego, trabalho, serviço, tarefa, qualquer coisa serve.
A.M: Sua reputação não é das melhores!
João Grilo: A seu Major, vivem querendo que pobre não tenha defeito.
A.M: Dizem que você é embrulhão, abusado. Cheio de nove horas!
João Grilo: Meu senhor, é tanta qualidade pra dar emprego que eu não conheço um
patrão com condições de ser empregado.
A.M: Vou fazer uma aposta com você, lhe faço três perguntas. Se você acertar ganha o
emprego.
João Grilo: Agora! Não tenho nada a perder.
A.M: Tem sim, se errar arranco uma tira de couro das suas costas.
João Grilo: Danou-se.
A.M: E é?
João Grilo: Eu topo, só falta convencer minhas pernas que estão se tremendo toda!
A.M: Muito bem, lá vai a primeira! Qual é a distância de uma ponta do mundo à outra?
João Grilo: É... Um dia de jornada que é o tempo que o Sol leva pra percorrê-la.
A.M: O que é que existe acima do rei?
João Grilo: A coroa.
A.M: O que é que eu estou pensando agora?
João Grilo: Em mim ganhar!
A.M: Muito bem, João Grilo! Tu é sabido mesmo!
João Grilo: Mais sabido é o Senhor que agora manda em mim!
A.M: Então vá a Taperoá buscar a minha filha que está na quermesse.
João Grilo: Sim senhor.

CENA 21
(A CENA MUDA PARA A QUERMESSE, ONDE TEM VÁRIAS PESSOAS, MÚSICA,
BARRAQUINHAS E ACONTECE O ENCONTRO DE ROSINHA E CHICO QUE ESTÃO EM
DIREÇÕES OPOSTAS, PORÉM NÃO ESTÃO SE VENDO, ENTÃO ELES OLHAM PARA
TRÁS, SE APROXIMAM E QUANDO OUVEM OS FOGOS DE ARTIFÍCIO OLHAM
NOVAMENTE PARA FRENTE E SE VEEM. CHICÓ FICA ADMIRADO E JOÃO GRILO
COMENTA)
João Grilo: Oh Chicó! Eita cabra folgado, aproveitando a festa e eu aqui trabalhando
né!
Chicó: E é?
João Grilo: Oush, andou bebendo foi?
Chicó: É o quê?
João Grilo: Nada não... Seu pai mandou vim te buscar!
Rosinha: Quem é ele?
João Grilo: E não é Chicó?
Rosinha: Chicó de quê?
João Grilo: Não sei, não, mas é só chamar Chicó que ele vem.
Rosinha: Me deu vontade de comer um confeito, João vai me comprar um canudo!
Vicentão: Desistiu de ir embora, é?
Rosinha: Vou comprar um confeito!
Vicentão: Deixa que eu compro pra senhora!
Eurico: Dona Rosinha manda as ordens.
Rosinha: Vá me comprar um confeito.
Eurico: Um confeito?
Rosinha: É!
Chico: Trouxe um confeito pra senhora.
(Chicó entrega um confeito à Rosinha)
Rosinha: Obrigada Chicó!
Chicó: Como sabe meu nome?
Rosinha: Eu adivinhei!
João Grilo: Seu confeito.
Rosinha: Demorou tanto que Chicó já me trouxe um...
João Grilo: Como, se a senhora pediu foi pra mim?
Rosinha: Ele adivinhou!
Vicentão/Eurico: Rosinha! Seu confeito!
Rosinha: Obrigado, obrigado.
João Grilo: Eita que todo mundo aqui lê pensamento.

CENA 22
(ROSINHA CHEGA NA FAZENDA COM JOÃO GRILO E ECONTRA COM O MAJOR)
A.M: ROSINHA! Você já está uma mocinha e eu tenho que tomar providências para
proteger a sua honra, eu quero que você volte pro Recife casada!
Rosinha: Eu meu pai?
A.M: Sim, você, não se faça de lesa! Aqui está o seu dote, essa porca pertenceu a sua
bisavó Rosa Benigna Varras de Medeiros. Todo santo dia Sinhá Rosa botava uma
moeda na porca, quando ela morreu deixou essa porca de presente de casamento pra
você que recebeu o nome de Rosa em homenagem a ela.
João Grilo: Eu rogo a Deus que essa santa senhora tenha tido uma vida longa!
A.M: Ela viveu até quase 100 anos. Essa bicha tá cheia de dinheiro agora só falta você
arranjar um homem que seja doutor e valente pra você se casar.
Rosinha: Como meu pai, se eu não gosto de ninguém?
A.M: Besteira, com o tempo você se acostuma e acaba gostando!
Rosinha: Ah minha Nossa Senhora, agora eu vou ter que casar obrigada!
João Grilo: Se aperrei não Dona Rosa, a senhora vai encontrar alguém que lhe queira
bem. Com a ajuda da sua beleza e dessa porca aqui, pretendente é o que não vai
faltar.

CENA 23
(JOÃO GRILO VAI NA FEIRA SE ECONTRAR COM CHICO)
Chicó: Não consigo comer não, é tanto amor que me dá uma gastura aqui dentro.
João Grilo: Por que você não fala isso pra ela?
Chicó: Pobre do jeito que eu sou...
João Grilo: Casando com ela você fica rico.
Chicó: Casando de que jeito homem?
João Grilo: Jeito eu dou, mas aí é que está! Depois de rico você esquece seu amigo
João Grilo...
Chicó: Pra quê que eu quero dinheiro se nem comer eu quero mais?
João Grilo: Casando com ela seu fastio acaba. E de sobra pra matar a fome tu ainda
ganha uma porca cheinha de dinheiro que a bisavó da Dona Rosinha deixou pra ela.
Chicó: Pois se você arranjar esse casamento, minha metade da porca é sua.
João Grilo: Esse casamento está arranjado!

CENA 24
(CHICO ARRUMA UM TERNO, UM CHAPÉU E UM SAPATO PARA CHICO E VÃO PARA
FAZENDA DO MAJOR)
João Grilo: Agora você está pronto pra pedir a mão da noiva.
Chico: Com que dinheiro vou pagar essa roupa?
João Grilo: Deixa de besteira homem, tamo fazendo isso pra ficar rico, se aperrei não.
(ENCONTRANDO COM O MAJOR QUE ESTA SENTADO EM UMA CADEIRA)
João Grilo: Seu major? Desculpe a impertinência mas eu queria apresentar um
conhecido meu lá de Serra Talhada, pretendente à pretendente de Dona Rosinha.
(A.M): Tem que ser no mínimo fazendeiro ou então doutor.
João Grilo: Pois esse é fazendeiro e é doutor!
(A.M): E o que é que você tá fazendo que não mandou o rapaz entrar? Muito prazer
seu...
Chicó: É... Chicó!
(A.M): Chicó? Chicó de quê?
João Grilo: Francisco Antônio Ronaldo Ermeregino de Aragão Correia Vaz Pereira Goz,
Chicó é somente o apelido dele.
(A.M): Também com um nome desse, ninguém decora! Como é que chama a sua
fazenda?
Chicó: Que fazenda?
João Grilo: É tanta fazenda que ele até se confunde. Como é que se chama aquela de
Serra Talhada doutor?
Chicó: Fazenda de Serra Talhada?
João Grilo: Fazenda de Serra Talhada, tá ai um nome bonito, simples e sem arrodeio.
(A.M): Então além de fazendeiro o senhor é doutor?
João Grilo: Doutor Advogado, formou-se na capital.
(A.M): Então quer dizer que você sabe tu sabe tudo sobre leis?
Chicó: Tudo, tudo, tudo também não.
João Grilo: Ele é muito modesto.
(A.M): Você pretende se casar com minha filha?
Chicó: Oi? É... É... Na verdade...
João Grilo: Tão acostumado a falar Alemão que chega na hora de falar Brasileiro perde
as palavras.
(A.M): Rosinha!!!
Rosinha: Senhor?
(A.M): Venha cá, venha conhecer um pretendente seu.
Rosinha: Pretendente?
(A.M): Chegou como pretendente à pretendente, mas já foi promovido.
Rosinha: Eu gosto de outro meu pai.
(A.M): Oxente, quem mandou?
Rosinha: Começou sem querer... Mas agora nem se eu não quisesse!
(A.M): Quem é o cabra?
Rosinha: Ele é pobre, mas é valente e honesto.
(A.M): O meu ganhou. É fazendeiro, doutor e fala alemão.
Rosinha: Eu não posso mandar no meu coração.
(A.M): Então deixa que eu mando. Você tem uma semana pra esquecer um e gostar do
outro...
Rosinha: Meu pai eu prefiro morrer! Mas já que o senhor insiste.
(A.M): Pronto Doutor Chicó, a garrota já está domada.
Rosinha: Então a gente se casa semana que vem.
(A.M): Já?
Rosinha: Eu tenho mais é que lhe obedecer meu pai.
Chicó: E eu tenho mais é que obedecer Dona Rosinha.
João Grilo: E o major vai poder obedecer sua santa avozinha que deixou essa porca
cheinha de dinheiro pra Dona Rosinha quando ela se casar...
Padre João: Boa tarde!
Chicó: Vixe, Fedeu.
João Grilo: Pois veja só! Falando em casamento chega o padre!
Padre João: Casamento de quem?
(A.M): Eu quero que o senhor conheça o meu futuro genro!
Padre João: Chicó?!
(A.M): O senhor já conhece?
João Grilo: Todo mundo conhece Seu Chicó! Vai ser o casamento do ano, a igreja vai
ser até reformada!
Padre João: E vai?
João Grilo: E o senhor não acha que precisa?
Padre João: Demais! Menino, a igreja está caindo aos pedaços, não sabe?
João Grilo: Olha aí! Seu major não vai querer ver os pedaços da igreja caindo na
cabeça dos convidados, não é?
(A.M): De jeito nenhum!
Padre João: Tem que consertar o telhado, dar uma boa pintada...
João Grilo: Calma Padre João, primeiro dê os parabéns à Seu Chicó!
Padre João: Parabéns. Reformar o altar, envernizar os bancos, comprar um sino...
acho que com uns 12 contos passa a reforma.
(A.M): Pode fazer a reforma que Seu Chicó manda pagar.
Chicó: 12 contos de réis?
Padre João: Se for adiantado fica por 10.
(A.M): Então pague logo Seu Chicó! Que assim que se faz economia.
Chicó: 10 contos de réis?
João Grilo: Ele não está acostumado com dinheiro pouco. 10 contos Doutor! Aquilo que
o senhor deu à seu empregado ir à Serra Talhada buscar o resto do dinheiro! Deu o
que tinha no bolso!
(A.M): Venha comigo que eu lhe empresto o dinheiro pro senhor adiantar pro padre.
Não sei muito de tu não então vamos trocar um papel entre nós. Você (João Grilo) vai
até a cidade e me traz uma cópia da escritura da Fazenda Serra Talhada de
propriedade de Dr. Chicó pra me deixar como garantia pelo empréstimo. Você (Chicó)
assine este contrato passando a propriedade pro meu nome caso não pague a dívida.
Vá simbora rapaz, o que é que tá esperando?
João Grilo: Pra quê escritura Seu Major? Dr. Chicó vai provar que a palavra de homem
vale muito mais que a fortuna dele. Não é uma terra que ele vai te dar como garantia
não, pode escrever ai que se ele não lhe pagar em uma semana o senhor pode...
Arrancar uma tira de couro das costas de Chicó.
(A.M): Eita, cabra macho! Assine aqui!
Chicó: Assino não!
João Grilo: É que ele está sem óculos! É só carimbar com o dedo.
(A.M): Assine você também como testemunha!
João Grilo: Eita que eu estou ficando importante!
Chicó: Eita que eu tô ficando lascado.
(ELES VÃO PARA O OUTRO LADO DO PALCO)

CENA 25
(CHICO COMEÇA A TIRAR A ROUPA ENQUANTO JOÃO GRILO FICA DE UM LADO PARA
O OUTRO, PREOCUPADO)
João Grilo: Sei não Chicó, espreme, espreme e não sai uma ideiazinha.
Chicó: Não desanime não homem, deve ser fome.
João Grilo: É nada... Fome, aperreio. Antigamente isso tudo me fazia pensar mais
rápido...
Chicó: Mas cadê aquele João Grilo, o quengo mais fino do nordeste? Capaz de fazer
dormindo o que ninguém faz acordado?
João Grilo: Acabou-se, o poço secou, Chicó. Nenhuma gota de pensamento, nem um
clarão de entendimento. Estou como num quarto sem porta, pra onde eu me viro dou
com as ventas na parede. Franzino, pobre, e agora Burro! O que me resta é ter que me
matar! AH! Adeus Chicó! Nunca mais... Vou comer farinha.
Chicó: João, que desgraça é essa? Você não pode morrer no meio dessa história!
João Grilo: Pronto, acordei!
Chicó: Oh homem pra morrer, oh homem pra ressuscitar é esse.
João Grilo: Você ainda não entendeu que essa é a grande ideia que eu tive?
Chicó: Você não tinha ficado burro, e por isso que ficou morto?
João Grilo: Chicó se burrice matasse você já tinha batido a cachuleta faz tempo. Eu
enfiei a faca foi nessa bexiga de sangue que eu escondi embaixo da camisa.
Chicó: Menino, vishe que eu tô tremendo até agora, olhe pra aqui.
João Grilo: É assim mesmo que tu vai fazer, tu vai botar essa bexiga cheia de sangue,
vai fingir que morreu, mas disso você vai fugir pra bem longe. Aí Rosinha finge que
endoidou de tristeza e vai te encontrar.
Chicó: Tu já usou essa ideia de fingir de morto, já tá todo mundo prevenido.
João Grilo: Dessa vez tu vai morrer de morte matada, de frente a igreja que é pra
ninguém duvidar. O padre e o bispo tão sabendo de tudo e vão testemunhar sua morte.
Chicó: E quem é que vai querer me matar?
João Grilo: O cangaceiro, você vai morrer feito herói, defendendo a cidade.
Chicó: Tá desconversando, e eu lá quero história com essa gente?
João Grilo: O cangaceiro sou eu, demência! E eu vou chegar disfarçado.
Chicó: Mas você não é meio magrinho pra ser cangaceiro, não?
João Grilo: Na hora do apavoramento, ninguém presta atenção em detalhes.
Chicó: Ah minha Nossa Senhora se eu sair dessa...
João Grilo: Homem não prometa mais nada que depois quem tem que pagar sou eu.
Chicó: E eu vou entrar nessa parada seco, é?
João Grilo: Confie em mim. Pode começar a arrotar valentia por ai que amanhã você
vai enfrentar o rei do cangaço!
(AS LUZES SE APAGAM. JOÃO GRILO SAI DE CENA E CHICÓ VAI PARA A PADARIA)

CENA 26
(SOM DE GALO CANTANDO E LUZ LARANJA NO PALCO SIMULANDO A LUZ DO DIA.
CHICO CHEGA NA PADARIA DANDO UMA DE VALENTÃO)
Chicó: Vidinha aqui tá muito parada! Minha mão tá coçando pra dar uns bofete!
Eurico: Oxe, que isso homem, tem medo dos homem não?
Chicó: Um bando de frouxo, Seu Eurico! Já pensei até em me alistar na volante pra sair
por aí matando cangaceiro.
Eurico: Homem se aquiete, aquilo lá é uma guerra!
Chico: É isso mesmo que eu quero! O pipoco dos tiros! A mulherada gritando! A bala
zunindo no pé do ouvido!
Dorinha: AAAAAH! Acabou tudo, os cangaceiros invadiram a cidade!
Chicó: Eita que agora eu me espraio!
Eurico: E a polícia?
Dorinha: A polícia correu!
Eurico: Correu foi?
Dorinha: Então, informaram que eles iam la pela banda da igreja, eles saíram
exatamente pelo outro lado!
Chicó: Sabe que me deu uma vontade danada de rezar?
Eurico: Homem, você se lasca!
Chicó: Comigo é assim, escreveu não leu, o pau comeu. Vou até deixar as armas. Pra
acabar com esse frouxo na dentada.
(CHICO VAI ATÉ A IGREJA)
Chicó: Seja quem for o corno que invadiu essa igreja, venha ca pra fora que eu vou lhe
aparar o chifre! Vai conhecer o que é um macho!
Severino: Tá aí duas coisas que eu não sabia, uma que eu era corno, outra que
defunto falava.
Chicó: Ai mamãe.
Severino: Tava me desafiando? Cabra safado...
Chicó: Eu? Desafiando? O senhor?
Severino: Responda! Em vez de ficar perguntando. Falou comigo ou não falou?
Chicó: Foi engano meu patrão.
Severino: Se fosse comigo eu ia deixar viver pela coragem, mas como foi engano, vai
morrer com os outros!

CENA 27
(SEVERINO VAI NA CASA DO PADEIRO)
Severino: Com licença.
Dorinha: Pode entrar, a casa é sua, e a dona também.
Severino: Mostre a mão esquerda.
Dorinha: Com muito gosto.
Severino: É uma aliança é?
Dorinha: É, eu sou casada com uma desgraça aí, mas eu estou tão arrependida, eu só
gosto é de homens valentes. E esse aí é uma vergonha.
Severino: Vergonha? Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito.
Sabe o que é que eu faço com as que eu encontro com esse costume?
Dorinha: Não...
Severino: Ferro na tábua do queixo.
Dora: Ai...
Severino: Vamos pra igreja agora! Anda, se amolece não.

CENA 28
(NA IGREJA TODOS ESTÃO SENDO REFÉNS DOS CANGACEIROS)
Severino: Vão, me deixem ver os bolsos!
Eurico: O senhor me desculpe, mas eu não tenho nada aqui.
Severino: Ah, mas não se preocupe, passei na padaria e peguei tudo que tinha la.
Agora uma fila aqui! (UM AO LADO DO OUTRO) 1... 2... 3... 4... 5... Quem vai ser o
primeiro?
Padre: Primeiro as damas.
Dorinha: Primeiro as damas nada aqui só tem uma.
Eurico: O senhor podia começar por ordem de idade.
Chicó: Os mais velhos primeiro.
Bispo: Primeiro os mais jovens.
(JOÃO GRILO ENTRA VESTIDO DE GANGACEIRO)
João Grilo: Se preparem pra morrer, Severino de Aracaju acaba de chegar!
Dorinha: Oxente e agora tem dois é?
(A.S): Eita mas se ele é o senhor, o senhor quem é?
Severino: Eu sou eu, uai!
(A.S): Se o senhor é o senhor, ele quem é?
Severino: Isso é o que vamos ver agora! Quem é esse toco de amarrar jegue?
João Grilo: Qual?
Severino: Você mesmo que acabou de chegar dizendo que sou eu.
João Grilo: Acabei de chegar e já vou dando meia volta.
Severino: Meia volta nada! Seu arremeto de gente.
Eurico: Como é isso hein?
João Grilo: Isso é apenas uma visão, vocês tão vendo dois mas na verdade só tem um!
Ele! Com licença...
Severino: Um momento amarelinho!
João Grilo: É que está ficando tarde e eu tenho o que fazer. Tchau pra vocês, até logo
e muito boa viagem pra todos.
Severino: Venha cá! Quero falar com você!
João Grilo: Oh, não sei qual conversa você quer ter comigo, mas o dinheiro que eu ia
ter não tenho porque a mulher do padeiro não me pagou o combinado pra eu
convencer Chicó a se encontrar com ela. Pode cobrar ele de Dona Dora.
Eurico: Então você andava mesmo enfeitando a minha testa sem eu saber, se fosse ao
menos com alguém de respeito mas até Chicó!
Chicó: Chicó o quê? Eu que corria o risco de ficar falado andando com essa mulher pra
cima e pra baixo.
João Grilo: Agora vamos sair Chicó que o calor aqui está aumentando.
Severino: Nada disso, agora você fica e vai morrer com os outros. Vamos começar com
o excelentíssimo seu padeiro dessa cidade.
(A.S): É agora!
Severino: E ainda terá a súbita honra de morrer ao lado de sua excelentíssima mulher
safada, tenha a bondade de sair pra fora que Severino de Aracaju não mata ninguém
dentro da igreja.
(A.S): Se tem uma coisa que eu não gosto é de matar mulher, mas se é o jeito...
Dorinha: Pode deixar, tenho mais coragem que muito homem safado.
(A.S): Seu padeiro não gosta de morrer, bateu comigo que não gosto de matar, mas a
gente conta até três pra dar coragem né?
João Grilo: É assim que serão dois numa só carne.
Chicó: Mangue não João! Mulher valente! Safada, mas valente!
Severino: E agora chegou a vez do... Bispo!
Bispo: Não! Pode cuidar dele primeiro...
Padre: Nada disso, a vez é do senhor!
Severino: Pra não haver mais discussão vão os dois juntos!
Bispo: Mas o primeiro tiro é pra ele!
(A.S): Não gosto de matar padre não, nem bispo, que dirá os dois de uma vez.
Severino: Você acabe com sua frouxura! E vocês sustentem as pernas! Que vergonha,
chega dá desgosto matar uns homens desse. Muito bem, quais são os nomes de
vossas senhorias?
Chicó: O meu é Chicó se for do seu agrado.
João Grilo: A minha senhoria não tem nome nenhum porque não existe! Pobre lá tem
senhoria, pobre só tem desgraça.
Severino: Diga então o nome de vossa desgracença.
João Grilo: João Grilo!
Severino: Pois está muito bem, chegou a hora de sua desgracença João Grilo, o
amarelo mais amarelo que eu já tive a honra de matar...
João Grilo: Um momento, antes de morrer eu quero lhe fazer um grande favor.
Severino: Qual é?
João Grilo: Dar-lhe essa gaita de presente.
Severino: Uma gaita? Pra quê que eu quero uma gaita?
João Grilo: É pra nunca mais morrer com os ferimentos que a policia lhe fizer.
Severino: Que história é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de
cobra, mas de gaita benta que cura ferimento de rifle é a primeira vez.
João Grilo: Mas cura, essa gaita foi benzida por meu padrinho Padre Ciço pouco antes
de morrer.
Severino: Só acredito vendo.
João Grilo: Pois não. Queira vossa excelência me ceder o seu punhal. Agora vou dar
uma apunhalada na barriga de Chicó.
Chicó: OXE, Na minha não!
João Grilo: Deixe de moleza Chicó! Depois eu toco a gaita e você fica vivo de novo
(SUSSURRANDO) A bexiga, a bexiga.
Chicó: Muito obrigado, mas eu não quero não João.
João Grilo: Homem, sabe do que mais? Vamos deixar de conversa, tome logo!
(João Grilo dá uma apunhalada na bexiga) MORRE DESGRAÇADO! (Chicó
entende o plano e se joga no chão fingindo-se de morto)
João Grilo: Está vendo o sangue?
Severino: Estou. Que você deu a facada, disso nunca duvidei. Agora, quero ver é você
curar o homem.
João Grilo: É já.
(COMEÇA A TOCAR NA GAITA E CHICÓ COMEÇA A SE MOVER NO RITMO DA MÚSICA,
PRIMEIRO UMA MÃO, DEPOIS AS DUAS, OS BRAÇOS, ATÉ QUE SE LEVANTA COMO SE
ESTIVESSE COM DANÇA DE SÃO GUIDO)
Severino: Nossa Senhora! Só tendo sido abençoada por Meu Padrinho Padre Cícero.
Você não está sentindo nada?
Chicó: Nadinha.
Severino: E antes?
Chicó: Antes como?
Severino: Antes de João tocar na gaita.
Chicó: Ah, eu estava morto.
Severino: Morto?
Chicó: Completamente morto. Vi Nossa Senhora e Padre Cícero no céu.
Severino: Mas em tão pouco tempo? Como foi isso?
Chicó: Não sei, só sei que foi assim.
Severino: E que foi que Padre Cícero lhe disse?
Chicó: Disse: "Essa é a gaitinha que eu abençoei antes de morrer. Entregue a
Severino, que precisa dela mais do que vocês".
Severino: Ah meu Deus, só podia ser Meu Padrinho Padre Cícero mesmo. João me dê
essa gaitinha!
João Grilo: Então me solte e solte Chicó.
Severino: Não pode ser, João. Eu matei o bispo, o padre,, o padeiro e a mulher e eles
morreram esperando por você. Se eu não o matar, vêm-me perseguir de noite, porque
será uma injustiça com eles.
João Grilo: Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Cícero e
você me paga desse modo!
Severino: De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte.
João Grilo: Mas pode conhecê-lo agora.
Severino: Como?
João Grilo: Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e
você volta.
Severino: E se você não tocar?
João Grilo: Não está vendo que eu não faço uma miséria dessa? Garanto que toco.
Severino: Sua idéia é boa, mas por segurança entregue logo a gaita a meu cabra.
Agora eu levo um tiro e vejo Meu Padrinho?
João Grilo: Vê, não vê, Chicó?
Chicó: Vê demais. Está lá, vestido de azul, com uma porção de anjinhos em redor. Ele
até estava dizendo: "Diga a Severino que eu quero vê-lo".
Severino: Ai, eu vou. Atire, atire!
(A.S): Capitão...
Severino: Atira, cabra frouxo, eu não estou mandando?
(A.S): Capitão! Vamos embora que a volante ja deve ter sido avisada.
Severino: Atire!
João Grilo: Homem atire logo pelo amor de Deus!
(A.S): Ai eu não gosto de matar chefe não mas tenho que matar.
Severino: Espere não se esqueça de tocar na gaita.
(A.S): Tenha cuidado não, capitão...
Severino: Então atire!
(A.S): Eita os macacos estão chegando.
(O AJUDANTE DO SEVERINO TOCA A GAITA)
João Grilo: Deixe o capitão falar mais um cadinho com Padre Cícero.
(A.S): Capitão, capitão! Ah seu grilo safado, você matou o capitão. É pra matar, não é...
Chicó: Venha logo homem!
João Grilo: Deixe eu pegar o dinheiro pra pagar a tua dívida...
Chicó: Corre homem!
(A.S): Filho da égua, pela primeira vez na minha vida vou matar alguém com gosto.
(O AJUDANTE DO SEVERINO ATIRA EM JOÃO GRILO)
Chico: João? João? Será que você vai morrer, João?
João Grilo: Acho que vou Chicó, estou ficando com a vista escura...
Chicó: Ai meu Deus, pobre do João Grilo vai morrer!
João Grilo: Deixe de latomia, Chicó, parece que nunca viu homem morrer. Isso tudo é
só lamento de perder o dinheiro da porca que você vai ganhar quando casar com
Rosinha.
Chicó: João? JOÃO? João? João? Ai meu Deus do céu, morreu o pobre de João Grilo,
um amarelo tão safado morrer assim, o que eu faço no mundo sem João? O que eu
faço no mundo sem João? JOÃO? JOÃO? Não tem mais jeito, João Grilo morreu.
Acabou-se o grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença, encontrou-se com
seu único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a
terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só bando de
condenados, porque tudo o que é vivo, morre.
(LUZES APAGAM. CHICO SAI DE CENA E JOÃO GRILO CONTINUA DEITADO)

CENA 29
(CENA DO JULGAMENTO. JOÃO LEVANTA E COMEÇA OBSERVAR AO REDOR.
PESSOAS ENTRAM CANTANDO UMA MÚSICA DE IGREJA "AVE MARIA" COMO SE
ESTIVESSEM EM PROCISSÃO. ELE ENCONTRA O PESSOAL QUE MORREU)
Severino: João, seu cabra safado!
João Grilo: Mas será o impossível? Será que nem aqui o senhor me da sossego,
capitão?
Severino: Já rodei, rodei, rodei, nem sombra do meu padrinho!
João Grilo: Pelo visto ele esta com muita gente para atender.
Severino: É mesmo, ta lotado.
João Grilo: E ta chegando mais. Olha ali mais quatro que o senhor ja despachou.
Severino: Por falar nisso, o que você ta fazendo aqui que não ta la embaixo?
João Grilo: Eu estou morto, que nem você!
Severino: Olha o respeito! Eu la homem de morrer?
João Grilo: O senhor não se lembra da história da gaita?
Severino: É mesmo! E o que será que o meu cabra ta fazendo que não toca logo a
danada pra eu envivecer de novo!
João Grilo: Eita, Severino veio besta! Já viu gaita pra envivecer os outros? Leseira!
Severino: Olhe como fala comigo que eu te mato!
João Grilo: Me mata como, se eu ja morri! (TODOS COMEÇAM A RIR)
Severino: Mato só ele não, mato qualquer um que ficar de ri-ri-ri pro meu lado!
Eurico: A gente ta querendo lhe ofender, não, capitão.
Bispo: Pois o senhor não morreu sozinho não, morremos todos nós!
(SEREVERINO SEGURA JOÃO GRILO E COLOCA UMA FACA EM SEU PESCOÇO)
Severino: Escuta aqui, amarelo: você vai me pagar por essa história da gaita.
João Grilo: Amarelo é sua avó. Já morri mesmo, não vou ficar ouvindo desaforo de seu
ninguém. Agora não tem pobre nem rico, valente nem frouxo, é todo mundo igual
diante de Deus! Ou do diabo.
(ABRE AS PORTAS COM GRITOS DE DOR E O DIABO APARECE)
Diabo : Mas, por que essas caras de espanto ? A porta !! Por acaso eu sou algum
monstro ?
Bispo : Não ! De jeito nenhum, nós "tamo" até impressionados com sua elegância com
sua finura .
Dora: É , parece até um artista.
Eurico : E você acha " mermo" é ?
Dora : Eu acho .
Eurico: Ah, então eu também acho.
Padre: Alguém ja lhe disse que o senhor é muito mais simpático pessoalmente ?
Severino: E olhe que é difícil eu gostar da cara de um sujeito assim de primeira .
Diabo: Estão vendo ? O diabo não é tão feio quanto parece .
João Grilo: Pode ser mas esse cheirinho de enxofre .
Diabo: Talvez o meu cheiro esteja incomodando vocês ...
Todos juntos : Não ... Não ...
Dora: Ah , é eu acho até bem bonzinho.
João Grilo : Pois eu já estou a beira de ter um birola com esse fedor ! (SEVERINO TAMPA
A BOCA DE JÕAO )
Diabo : Olhe ! Respeito é bom e eu gosto !
Eurico : Mas o que é isso criatura , ninguém ta lhe desrespeitando não!
Diabo : Dessa vez passa !
Severino : (AINDA COM A MÃO NA BOCA DE JOÃO) você devia dar graças a Deus que o
diabo é um caba bom (João solta) eu no lugar dele...
João Grilo: Eu no lugar dele tomava era um banho com chá de amolece casca pra ver se
diminui essa inhaca !
Diabo : Vocês agora vão pagar tudo o que fizeram!
Dora : Ain , que eu adoro homem brabo!
Diabo: Vou mandar todos pro quinto dos infernos!
(TODOS COMEÇAM A GRITAR E CORRER PARA O LADO CONTRÁRIO DO DIABO, MAS A PORTA
SE ABRE E TODOS TENTAM CORRER, UM VENDO TENTA ARRASTÁ-LOS)
João Grilo: Que diabo de tribunal é esse que não tem apelação! Eu sempre ouvir dizer
que pra uma pessoa ser condenada, ela tem que ser ouvida! Eu apelo para quem pode
mais! Valei-me meu nosso Senhor, Jesus Cristo!
(TUDO COMEÇA A SE ACALMAR E A ILUMINAÇÃO MUDA)

CENA 30
Diabo: Quem é? Emanuel?
Jesus: Sim, Emanuel. O leão de Judá, filho de Davi. Venham todos, pois vão ser
julgados.
João Grilo: Eu não quero faltar com respeito a uma pessoa tão importante, mas se não
me engano, aquele sujeito acaba de chamar o senhor de Emanuel.
Jesus: Foi isso mesmo, João, esse é um dos meus nomes. Mas você também pode me
chamar de Jesus, de Senhor, de Deus.
João Grilo: Mas espere, o senhor é que é Jesus?
Jesus: Sou, por que?
João Grilo: Porque... não é lhe faltando com respeito, não, mas eu pensava que o senhor
era muito menos queimado.
Bispo: Cale-se!
Jesus: Cale-se, você! Você estava mais espantado do que ele, só escondeu essa
admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.
João Grilo: Mito bem! (BATENDO PALMA) A cor pode não ser das melhores,mas o
senhor fala bem que faz gosto!
Jesus: Muito obrigado, João, muito obrigado! Mas você também é cheio de preconceitos
de raça. Eu vim hoje assim de propósito, porque eu sabia que isso ia despertar
comentários. (DIRIGINDO-SE AO DIABO) E você fique de frente.
Diabo: To bem assim.
Jesus: Como quiser. Faça o seu relatório começando pelo bispo.
(DIABO ABRE UM LIVRO ENORME)
Diabo: Simonia: Negociou com o cargo aprovando o enterro de um cachorro em latim por
que o dono lhe deu seis contos.
Bispo: E é proibido, é?
Diabo: Homem, se é proibido, eu não sei. O que eu sei é que você achava que era, e
depois, de repente passou achar que não era. E mais: velhacaria, arrogância com os
pequenos, subserviência com os grandes. E tudo que se disser do bispo pode se aplicar
ao padre!
Padre: Mas eu não citei o código canônico em falso como ele.
Diabo: Em compensação, acaba de incorrer em falta de coleguismo com o bispo!
Padre: Menino! E o que eu fizer aqui ainda voga?
Jesus: Não, isso é confusão do demônio. E o padeiro?
Diabo: Ele e a mulher foram os piores patrões que já se viu.
Dora: É MENTIRA!
João Grilo: É não, é verdade! Três dias eu passei...
Jesus: Em cima duma cama, com febre e nenhum copinho d'água lhe mandaram. Eu já
sei, João. Todo mundo sabe dessa história de tanto ouvir você contar.
João Grilo: Mas eu posso? Me diga mesmo se eu posso? Bife passado na manteiga pra
cachorra, e fome pra João Grilo? É demais!
Diabo: Avareza do marido, adultério da mulher. Bem metido e bem pesado, cada um era
pior do que o outro.
Jesus: Acuse Severino.
Diabo: E precisa? Matou mais de 30!
João Grilo: Esse diabo é uma mistura de tudo que eu nunca suportei: promotor,
sacristão, cachorro e soldado de polícia.
Diabo: Você ta muito engraçado agora, mas Manoel é justo e a situação está favorável
pra mim e preta pra vocês.
Jesus: É verdade. A situação esta ruim pra vocês, porque as acusações são graves.
Diabo: (RINDO) O que me diverte nisso tudo é ver esse amarelo tremendo de medo! (O
DIABO APONTA PARA JOÃO GRILO E O FAZ TREMER)
João Grilo: Se a tremedeira parasse, eu era capaz de me defender.
Jesus: Pois pode parar!
João Grilo: Que alívio, já estava ficando cansado. O que é isso?
Jesus: É besteira do demônio. Esse sujeito é meio espírita e tem mania de fazer mágica.
João Grilo: Logo vi que só podia ser confusão desse catimbozeiro!
Jesus: E agora o que é que você diz em sua defesa? Eu sei que você é astuto, mas não
pode negar o fato de que foi acusado.
João Grilo: O senhor vai me desculpas, mas eu não fui acusado de coisa nenhuma.
Jesus: Não?
Diabo: Foi mesmo não! Começou com uma confusão tão grande que eu esqueci de
acusá-lo. Mas agora você me paga, amarelo! Tramou o enterro da cachorra, incitação a
simonia. Encorajou encontros de Chico com uma mulher casada, incitação a
concupiscência. Arquitetou a morte de Severino! Crime com premeditação.
Jesus: É, João, realmente você passou da conta.
Diabo: De um modo que o caso dele é sem jeito... é o primeiro que eu vou levar.
João Grilo: Ah! Você pensa que eu me entreguei? Pode ser que eu vá, mas não é assim
não! Eu vou apelar!
Padre: Pra quem, João? Você mesmo ouviu nosso senhor dizer que a situação está
difícil...
Jesus: Espere. Quem você vai se pegar, João?
João Grilo: Eu vou pedir pra alguém que está mais perto de nós, por gente que é gente
mesmo!
Jesus: É algum santo?
João Grilo: O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara. Meu trunfo é
maior que qualquer santo!
Jesus: E quem é?
João Grilo: Valha-me Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa da leite, a
braba da quando quer. A mansa da sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui
navio, agora sou escale. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Valha-me
Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré!
(NOSSA SENHORA ENTRA E TODOS SE AJOELHAM)
Diabo: Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete!
(NOSSA SENHORA DIRIGINDO-SE A JESUS QUE LHE PEDE A BENÇÃO DANDO UM BEIJO EM SUA
MÃO)
Nossa Senhora (N.S): Como você ficou bonito com essa cor, meu filho! foi você que me
chamou, não foi, João?
João Grilo: A senhora se zangou com o versinho que eu recitei?
N.S: Não, João, Por que iria me zangar? Tem umas graças que eu até acho bom. Quem
gosta de tristeza é o diabo.
Diabo: Protesto!
Jesus: Eu já sei que você protesta, mas eu não tenho o que fazer, meu velho. Discordar
da minha mãe é que eu não vou!
Diabo: Grande coisa esse chamego que ela faz pra salvar todo mundo. Termina
desmoralizando tudo!
Severino: Você fala assim porque nunca teve mãe!
João Grilo: É mesmo. Um sujeito ruim desse, só sendo filho de chocadeira! (DIABO
AMEAÇA JOÃO)
N.S: Pra que você me chamou, João?
João Grilo: É que esse filho de chocadeira quer levar a gente pro inferno. Eu só podia me
pegar com a senhora mesmo.
N.S: Vou ver o que eu posso fazer. Intercedo por esses pobres, meu filho. Que não tem
ninguém por eles. Não os condene.
Diabo: Eu apelo pra justiça!
João Grilo: E eu para a misericórdia.
N.S: É preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. Os homens
começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta quase sem
querer. É medo.
Diabo: Medo, medo de que?
N.S: Mede de muitas coisas. Do sofrimento. Da solidão. E acima de tudo, medo da
morte,
Jesus: E é a mim que você vem dizer isso? A mim que morri abandonado, até por meu
pai?
N.S: Mas não se esqueça da noite no jardim, do medo por que você teve que passar.
Pobre homem, feito de sangue e de carne como qualquer outro. E como qualquer outro,
também abandonado na hora da morte e do sofrimento.
Diabo: Medo da morte todo mundo tem e nem por isso as pessoas se tornam virtuosas.
E o que esse medo fez o padeiro e sua mulher, por exemplo, se tornarem melhores?
Medo da morte por si só não redime os pecados!
N.S: Mas, na hora da morte, as vezes sim. Na oração da Ave Maria, os homens me
pedem para rogar por eles, na hora da morte. Eu rogo. E olho para eles nessa hora, e
vejo que muitas vezes é na hora de morrer que eles, finalmente, encontram o que
procuraram a vida toda. Foi o que aconteceu com Eurico e Dora, quando iam ser
fuzilados pelo cangaceiro. Alego em favor dos dois, o perdão que o marido deu a mulher
na hora da morte. Abraçando ela para morrerem juntos. O mais ofendido pelos atos que
ela praticava era ele, e, no entanto ele rezou por ela.
Jesus: Esta recebida a alegação. Quanto ao padre e ao bispo?
N.S: Na hora da morte eles também tiveram a sua revelação. Eles seguiram o seu
exemplo, meu filho, perdoando os seus assassinos.
Diabo: É sempre assim! Depois de morrer, todo mundo fica bonzinho!
N.S: Quanto a Severino...
Jesus: Quanto a esse, deixe comigo. Não foi a sua morte que o redimiu, mas a de seus
pais. Com oito anos de idade, ele conheceu a fera que existe dentro dos homens.
Severino: Escapei daquele massacre sem querer, passei a vida desafiando a morte.
Jesus: Severino enlouqueceu depois que a polícia matou a família dele. Ele não era
responsável por seus atos, está salvo.
Diabo: Isto é um absurdo contra o qual...
Jesus: (IMITANDO A VOZ DO DIABO) Já sei que você protesta, (VOLTANDO A VOZ
NORMAL) mas não recebo o seu protesto, você não entende nada dos planos de Deus.
Severino esta salvo. Ele foi um mero instrumento da cólera divina. Severino, meu filho,
pode ir para ali.
Bispo: E nós?
Padre: Decida-se logo, por favor, que essa ansiedade é pior do que qualquer coisa!
Jesus: Não diga isso, você não sabe o que se passa la embaixo. Qualquer ansiedade é
melhor do que aquilo.
Diabo: É, mas eu não posso ficar aqui eternamente a espera. Afinal, qual é a sentença?
João Grilo: Um momento, senhor. Eu posso da uma palavra?
Jesus: Você, o que acha, minha mãe?
N.S: Deixa João falar, meu filho.
Jesus: Fale, João.
João Grilo: Os quatro último lugares do purgatório estão desocupados?
Jesus: Estão.
João Grilo: Pega esses quatro camaradas e bote lá!
N.S: É uma ótima solução, meu filho. Da pra eles pagarem o muito que fizeram, e ainda
assegura a salvação deles.
João Grilo: E tem a vantagem de descontentar esse camarada aqui que é pior que carne
de cobra! Esta vendo ele aqui de costas?
Jesus: Estou!
João Grilo: Isso é de ruim! (DIABO GRUINDO)
Jesus: Minha mãe, o que acha?
N.S: Ah, eu ficaria muito satisfeita.
Jesus: Então esta concedido. Podem ir vocês quatro.
Diabo: Não tem jeito, homem que mulher governa...
Jesus: Agora nós, João Grilo.
Diabo: Pelo menos esse eu faço questão de levar.
Jesus: Você que é tão sabido, o que é que você tem a dizer em sua defesa?
João Grilo: Nada não, senhor.
Jesus: Como nada? Chegou a hora da verdade.
João Grilo: É por isso que eu estou lascado, comigo era na mentira!
Diabo: Ainda bem que reconhece. (BATE PALMA E ABRE A PORTA DO INFERNO)
N.S: Você mentia para sobreviver, João.
João Grilo: Mas eu também gostava. Eu acabei pegando gosto de enganar aquele povo.
N.S: Não, porque eles lhe exploravam. A esperteza é a coragem do pobre! A esperteza
era a única arma de que você dispunha contra os maus patrões!
João Grilo: Agradeço a sua intervenção, mas devo reconhecer que eu não vivi como um
santo!
Diabo: Ta se fazendo de humilde pra ela tomar as dores dele.
João Grilo: Do jeito que eu sou ruim pode ate ser isso mesmo.
N.S: Não, não se entregue! João, esse é o pai da mentira, ele está querendo lhe
confundir!
João Grilo: A verdade é que eu não fui nenhum santo e nem tive uma morte gloriosa
como a dos meus companheiros.
N.S: João foi um pobre como nós, meu filho, e teve que suportar as maiores dificuldades
numa terra seca e pobre como a nossa. Pelejou pela vida desde menino. Passou sem
sentir pela infância, acostumou-se a pouco pão e muito suor. Na seca, comia macambira,
bebia o sumo do xiquexique. Passava fome. E quando podia mais, rezava. Quando a
reza não dava jeito, ia se juntar ao grupo de retirantes que ia tentar sobreviver no litoral.
Humilhado...derrotado... cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva, pegava o
caminho de volta, animava-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que
crescesse com a chuva. E quando revia a sua terra, dava graças a Deus por seu um
sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé! Peço-lhe muito simplesmente que não o
condene.
Jesus: O caso é duro. Eu compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso
também tem limite. Eu acho que não posso salvá-lo.
N.S: Dê-lhe, meu filho, então outra oportunidade.
Jesus: Como?
N.S: Deixa João voltar.
Jesus: Você se da por satisfeito?
João Grilo: Ah, demais! Pra mim é até melhor, porque daqui pra la eu tomo cuidado pra
hora de morrer e não passo nem pelo purgatório, que é pra não dar gosto ao cão!
N.S: Então, João, fica satisfeito?
João Grilo: Eu fico, quem deve estar danado é o filho de chocadeira!
(O DIABO TENTA ATACAR JOÃO GRILO QUE CORRE PRA TRÁS DE NOSSA SENHORA QUE O
PROTEGE MANDANDO O DIABO PARA O INFERNO)
João Grilo: O que ele teve, meu Deus!
N.S: Na raiva, olhou pra você e me viu.
João Grilo: Quer dizer que eu posso voltar?
Jesus: Pode, João, vá com Deus.
João Grilo: Com Deus e com nossa senhora, que foi quem me valeu. (BEIJA AS MÃOS
DE NOSSA SENHORA) Até a vista! Grande advogada. E não me deixe de mão, não.
Estou decidido a tomar jeito, mas a senhora sabe que a carne é fraca!
N.S: Até a vista, João.
João: Obrigado, senhor. (BEIJA A MÃO DE JESUS) Até a vista!
Jesus: Até a vista, João! João!
João Grilo: Senhor?
Jesus: Veja como se porta.
João Grilo: Sim, senhor!
Jesus: Mãe, se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai
terminar virando uma repartição pública: existe, mas não funciona.
(OS DOIS SAEM DE CENA DE MÃOS DADAS)
CENA 31
(CHICÓ CARREGANDO JOÃO GRILO PARA ENTERRÁ-LO)
Chicó: Quando eu penso que o pobre do João não teve nem direito de um enterro no
cemitério que nem os outros. Coitado, tá mais abandonado que o cachorro do Padeiro.
João Grilo: Um padre nosso e uma Ave Maria pra uma alma que aqui pena.
Chicó: Ai meu Deus, é o João! JOÃO! Dizei-me o que quereis, se estais no céu, no
inferno ou no purgatório!
João Grilo: Olha a besteira desse, fala logo com voz de alma "João, dizei-me se estais,
nu-sei-o-quê". Tenha vergonha Chicó! Estou vivo.
Chicó: Aaaaah, é alma das ruim, daquelas que dizem que estão vivas! Ai minha Nossa
Senhora!
João Grilo: Levante Chicó! Não está vendo que sou eu? Estou vivo rapaz!
Chicó: E é possível?
João Grilo: É possível porque estou aqui.
Chicó: Só acredito vendo!
João Grilo: Pois veja.
Chicó: Aaaaaaai.
João Grilo: Que isso homem, você num disse que só acreditava vendo?
Chicó: Disse, mas não era pra me mostrar não.
João Grilo: E como é que vai ser agora, Chicó?
Chicó: Vai ser assim mesmo. Eu sem acreditar, e você sem me mostrar.
João Grilo: E a nossa sociedade, nossa velha amizade? Vai se acabar?
Chicó: Já acabou! É contra os meus princípios fazer sociedade com defunto!
João Grilo: Mas eu estou vivo rapaz! Veja, pegue aqui no meu braço. Coragem homem,
pegue!
Chicó: É mesmo João! *abraço* Como é que foi isso, João?
João Grilo: Não sei, eu acho que a bala pegou de raspão. Fiquei com a vista escura,
quando acordei, estava aqui. Vivinho!
Chicó: Eita que noticia boa!
João Grilo: Tenho uma horrível pra lhe dar.
Chicó: O que é homem?
João Grilo: Eu perdi o dinheiro que estava no meu bolso.
Chicó: Fique descansado João. Eu tirei do seu bolso antes de te enterrar.
João Grilo: Eita cabra safado. Com pena de mim, mas não esqueceu o dinheiro num
foi?
Chicó: Quer saber de uma coisa? Foi! O dinheiro estava ali, você estava morto. Não ia
servir pra nada, achei que ficaria mais seguro comigo.
João Grilo: Fez bem, eu teria feito o mesmo. Quer dizer que estamos ricos!
Chicó: É miliardário. Além do dinheiro do Padre e do Bispo, tem o dinheiro que
Severino pegou na padaria. O que você acha da gente ficar com a padaria?
João Grilo: Grande ideia! "Padaria Miramar: João Grilo, Chicó e Cia"! O que acha?
Chicó: Lindo... Ai meu Deus! Minha Nossa Senhora! Burro, burro, burro!
João Grilo: Que isso? Burro o que? Burro é você!
Chicó: Sou eu! Eu mesmo, João! Sou o maior burro que já apareceu nessa história! Ai
meu Deus, minha Nossa Senhora!
João Grilo: Que que há rapaz?
Chicó: Pobre de mim, pobre do João Grilo! Era rico nesse instante, agora é pobre de
novo!
João Grilo: Não me diga que você perdeu o dinheiro!
Chicó: Perdi nada João, tá aqui! Ai minha Nossa Senhora!
João Grilo: E porque essa gritaria toda, homem de Deus?
Chicó: Eu pensei que você tinha morrido João!
João Grilo: E o que que tem isso homem?
Chicó: Tem que eu, achando que você tinha morrido, prometi dar todo o dinheiro a
nossa Senhora se você saísse daquela!
João Grilo: Ai meu Deus! Ai minha Nossa Senhora!
Chicó: Ai meu Deus! Ai minha Nossa Senhora!
João Grilo: Mas Chicó, como é que você faz uma promessa dessa?
Chicó: E eu sabia que você ia escapar desgraça? Ô homem duro de morrer, meu Deus!
João Grilo: Ah promessa desgraçada! Ah, promessa sem jeito!
Chicó: Agora é tarde pra dizer isso!
João Grilo: Não teria sido metade que você prometeu?
Chicó: Não João, foi tudo!
João Grilo: Ah promessa desgraçada! Ô promessa sem jeito!
Chicó:Diabo de uma reclamação em cima da gente minuto a minuto. Vamo deixar de
conversa e vamo pagar o que se deve!
Joâo Grilo: Vamos não! Vá você! Eu não prometi nada, e metade do dinheiro é meu!
Chicó: É, mas quando eu prometi ele era meu, porque eu me considerava seu herdeiro!
João Grilo: Eu não tenho nada a ver com isso! Eu não prometi nada!
Chicó: Então fique com sua parte e assuma sua responsabilidade, que eu vou acertar a
minha!
João Grilo: Chicó!
Chicó: Que é?
João Grilo: Espere que eu vou com você!
Chicó: Vai?
João Grilo: Vou!

CENA 31
(OS DOIS SE DIRIGEM A IGREJA E COLOCA O DINHEIRO NO PE DA SANTA SE LAMENTANDO)
Chico: Ôh meu Deus, oh minha nossa Senhora! com essa confusão toda, esqueci do
dinheiro que tinha prometido pro Major!
João Grilo: Você promete dinheiro demais, Chico!
Chico: Esqueceu que esse dinheiro foi você que me fez prometer? E ainda deu como
garantia o direito do Major arrancar uma tira de couro das minhas costas?! (JOÃO
GRILO OLHA SEM GRAÇA PRA CHICO E COMEÇA A COLOCAR O DINHEIRO NA CAIXINHA)
João Grilo: Ai, meu Deus... ai, minha nossa Senhora. E agora vai o dinheiro todinho pra
santa.
Chico: Será que não da pra ser metade?
João Grilo: Não senhor, você disse tudo! Ainda mais que foi pra Nossa Senhora, se
fosse pra outro santo eu até pensava no caso... CHICO! Tive uma idéia! Você se casa
com Rosinha e ganha a porca de presente e paga a dívida com o Major.

CENA 32 (O CASAMENTO)
A.M.: Se quiser desistir, eu levo a moça de volta pra casa.
Chicó: Nem que me esfolasse o coro todo major. Pouco mais, uma tirinha só.
A.M.: Pois então, eu vou fazer um cinto com ela.
Rosinha: Você pode não ser valente Chicó, mas finge que é uma beleza.
Chicó: Aquela santa porquinha me deu uma coragem da gota!
(O CASAMENTO É CELEBRADO E TODOS COMEMORAM E CHICO, ROSINHA, JOÃO GRILO E O
MAJOR VÃO PARA A FAZENDA)

CENA 33
(ELES CHEGAM E VÃO DIRETO PEGAR A PORCA)
João Grilo: Não se esqueçam que a metade é minha!
Chicó: Que danado de dinheiro é esse?
João Grilo: Essas moedas são do tempo do Ronca!
Rosinha: Vala-me meu santo Cristo! Esse dinheiro já está recolhido há muito tempo!
Não vale mais nem um tostão de hoje!
João Grilo: Mas como foi que eu não imaginei isso antes? Sua bisavó depositou essas
moedas nessa porca já faz 50 anos! Como eu sou burro, BURRO!
Chico: Imagina eu!
João Grilo: Estou cansado dessa agonia de fica rico, fica pobre, fica rico, fica pobre!
Chicó: E eu tô cansado dessa agonia de ficar inteiro, ficar sem tira, ficar inteiro, ficar
sem tira!
A.M.: A festa está muito boa, mas tá na hora de cumprir o contrato!
Chicó: É cedo...
A.M.: Não se preocupe, que a faca tá amoladinha!
Chicó: O senhor não teria uma anestesia?
Rosinha: Perai meu pai! O que que estava no contrato mesmo?
A.M.: Dez contos de réis ou uma tira de couro!
Rosinha: Dez contos de réis ou uma tira do couro dele?
A.M.: Isso!
João Grilo: Couro, couro?
A.M.: COURO, COURO!
Rosinha: Só couro?
Chicó: Acha pouco?
João Grilo: Pouco não é, mas também não é tanto assim!
A.M.: É uma tirinha só!
João Grilo: Uma tirinha só, sem nenhuma gota de sangue, que sangue não estava no
contrato!
A.M.: Que história é essa?
Rosinha: A única palavra que se pronunciou nesse contrato foi couro! Ninguém falou
em sangue, não foi?
Chicó: E é mesmo, eu não tinha atinado pra isso antes.
João Grilo: Ou o senhor tira uma tira do couro do Chicó sem nenhuma gota de sangue,
ou não tira é nada!
A.M.: Eu devia era lhe rasgar pelo pescoço, seu cabra safado! Só não faço isso, porque
o pior castigo que eu posso dar para a minha filha, é deixar ela casada com uma
desgraça que nem você! FROUXO, FROUXO! VAI, VAI, MALAMANHADO!
Chicó: Bondade sua!
A.M.: SOME DAQUI ATÉ A SEXTA GERAÇÃO! Eu sou capaz de tocar fogo nessa
casa, mas num deixo um tostão pra senhora DONA ROSINHAAAA!

CENA 34
Chicó: Todo mundo liso de novo.
Rosinha: De novo não, meu filho. Comigo é a primeira vez.
Chicó: É mesmo minha flor, desde o golpe do baú ao contrário.
João Grilo: Eu estive pensando se não é melhor assim. Quem sabe se eu ficando rico
não terminava como o padeiro? E depois com a desgraça, a gente tá acostumado!
Chicó: Falando nisso, está me dando uma fome da muléstia.
Rosinha: Sorte que eu carreguei um pedacinho de bolo da festa.
João Grilo: Oh dona Rosinha, a senhora está aprendendo a ser pobre!
Mendigo: Uma esmola pelo amor de Deus? É pra tirar a barriga da miséria.
João Grilo: O senhor vai desculpando, mas aqui, barriga de miséria já é três.
Rosinha: Tome meu senhor! Vá com Deus.
Mendigo: E vocês vão com ele.
João Grilo: Danou-se dona Rosinha, foi-se a comida quase todinha!
Chicó: Deixe, ele também é filho de Deus.
Rosinha: Jesus às vezes se disfarça de mendigo pra testar a bondade dos homens.
João Grilo: Pode até acontecer, mas aquele ali não era não!
Chicó: Oxi, como é que você sabe?
João Grilo: Jesus? Pretinho daquele jeito?
Chicó: Porque não? Eu conheci um sujeito que se encontrou com Jesus.
João Grilo: Aonde Chicó?
Chicó: No céu... Diz que lá a arrumaria é mil vezes melhor que a de Juazeiro. Diz que
viu Jesus sentado no trono com um monte de anjinhos ao redor, igualzinho na pintura.
Ele me falou que o paraíso fica lá pros lados da Bahia, por isso que o Cristo é
escurinho.
João Grilo: E contou como rapaz, se ele já tinha morrido?
Chicó: Não sei, só sei que foi assim!
(ELES SAEM DANÇANDO E BRINCADO PELO PALCO)

FIM

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