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Mary Canon –

The Survivors
OS AVENTUREIROS

DINASTIA O’HARA 02

NA GUERRA E NO AMOR, O IRLANDÊS ENTREGAVA O


CORAÇÃO E A PRÓPRIA VIDA.

No inicio do século XVII. O corrupto rei James I da Inglaterra e


o vaidoso monarca Luis XIII da França controlam os destinos do
mundo. São na verdade manobrados pelo clero e por vaidosos
cortesãos, que alcançam seus objetivos com favores sexuais
concedidos nos aposentos reais. Nesses
anos, turbulentos. Rory O’Hara volta
para a sua atormentada Irlanda, na ânsia
de reconstruir o castelo destruído pelo
invasor inglês e recuperar o orgulho
perdido de seu povo humilhado.
Enquanto isso, na Inglaterra, sua
adorada Brena Coke trava uma luta
insana contra o despotismo dos
soberanos que a querem afastar para
sempre de seu amado Rory. Um desafio
apaixonado de homens que não se
deixam vencer facilmente...

(Romance Histórico – (CLR) CH REEDIÇÃO – 024)


Título Original: The Survivors
Copyright © 1982 by Mary Canon
Publicado originalmente em 1982
pela Harlequin Books.
Copyright para a língua portuguesa em 1988,
e reeditado em 2000 pela
Editora Nova Cultural LTDA.
Tradução: Cecília Florence Borges Rizzo

Digitalização e Revisão: Marina Campos


Formatação: ϾѮϿ ΝЇЄТ∆ ϿϮϾ

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PERSONAGENS

RORY O’HARA (The O’Hara): filho de Shane e Deirdre O’Hara, chefe de seu clã, exilado na França desde a
infância. É mosqueteiro da corte francesa e, posteriormente, o líder de seu povo na reconstrução de Ballylee,
morada de seus ancestrais na Irlanda.
SHANNA O’HARA: irmã de Rory, também criada no exílio.
BRENNA COKE: filha de Elizabeth Hatton e, secretamente, de Rory O’Donnell.
SIR EDWARD COKE: membro do Parlamento Inglês. Segundo marido de lady Hatton, conhecido como
sendo o pai de Brenna.
ELIZABETH, LADY HATTON: mãe de Brenna e esposa de sir Edward.
RORY O’DONNEL (THE O’DONNELL): chefe de seu clã, havia deixado a Irlanda durante a fuga dos condes,
em 1607, para viver no exílio na Itália e na França. Pai de Brenna Coke.
SIR DAVID TALBOT: escocês de nascimento, financia o reerguimento de Ballylee.
AILEEN TALBOT: filha de sir David e de uma francesa.
REI JAMES I DA INGLATERRA: reinou de 1603 a 1625 e foi grandemente influenciado por seu cortesão
favorito, o duque de Buckingham.
REI CHARLES I: filho de James I e governante da Inglaterra de 1625 a 1649.
GEORGE VILLIERS, DUQUE DE BUCKINGHAM-. cortesão predileto do rei James I da Inglaterra, apelidado de
Steenie.
SIR RAYMOND HUBBARD: primo de Buckingham.
SIR FRANCIS BACON: filósofo, cientista e procurador geral da corte do rei James I.

Os AVENTUREIROS

ROBERT CARR, CONDE DE SOMERSET. marido de Frances Howard, é o cortesão predileto do rei James I,
substituído por George Villiers.
DUQUE DE LA MARDINE: amante do poder, alia-se a Buckingham.
LUIS XIII DA FRANÇA: filho de Marie de Médicis, passou a reinar em 1617, após o período de regência de
sua mãe (1610 a 1617), até 1643.
MARIE DE MÉDICIS: esposa de Henrique IV da França e mãe de Luís XIII. Como regente, governou a
França de 1610 a 1617, com o auxílio de seus odiados assistentes, os Concini.
CONCINO CONCINI e LEONORA CONCINI: conselheiros da rainha-mãe da França, Marie de Médicis.
RENÉ DE GRAMONT: filho natural e não reconhecido de Henrique IV da França. Amigo de infância de
Shanna e Rory O’Hara.
ARMAND DE RICHELIEU: clérigo e estadista poderoso, torna-se de fato o governante da França.

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Irlanda, penhor da Inglaterra — não mais a pátria de seus


filhos...
O início do século XVII é como o dobrar melancólico dos sinos,
anunciando a morte da independência irlandesa. Os orgulhosos condes
da Irlanda são forçados a se ajoelhar e vêem suas terras divididas entre
os ingleses e seus herdeiros espalhados pela Inglaterra e França.
Rory O’Hara, chefe exilado de seu clã, sente uma atração bem
mais forte pela vida da corte francesa do rei Luís XIII do que pela volta
às ruínas deploráveis de Ballylee, seu lar. Sob o apadrinhamento do
cardeal Richelieu, ele desfrutava ao máximo de sua condição de capitão
da guarda. Porém, as tramas políticas enviam-no, como espião, à
Inglaterra, onde o destino vai atirá-lo nos braços de Brenna Coke, de
estirpe nobre e beleza arrebatadora, que insiste com ele para que
jamais a deixe, ou ao país. Todavia será esse o destino dele? Ou seu
futuro pertence à Irlanda, ao castelo de Ballylee e à luta para reaver sua
herança e dar continuidade à dinastia O’Hara?

CAPITULO I

PRIMAVERA DE 1616 PARIS

Qual é a sua opinião sobre este ponto, mademoiselle de


Chinon? Mademoiselle? Minha querida, sente-se bem?
— O quê? — murmurou Shanna, abandonando os
pensamentos distantes e voltando à realidade enquanto os olhos
azul-violeta tentavam focalizar a mulher que, do outro lado da
mesa, inclinava-se em sua direção.
— Eu... lamento dizer que minha mente andava longe. A
senhora afirmava...

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A conversa retomou o curso envolvente. Shanna de Chinon


costumava tomar parte ativa na prosa animada do salão de
Rambouillet, sempre revelando interesse sobre qualquer assunto
em pauta, fosse ele poesia, política ou ainda comentários
maledicentes que os convidados de Catherine, marquesa de
Rambouillet, trocavam entre si.
Afinal, não era qualquer refugiada irlandesa que se via requi-
sitada a freqüentar aquele salão. Ali se compartilhava do vinho e
dos diálogos estimulantes entre os homens mais inteligentes e as
mulheres mais lindas e procuradas de Paris.
Shanna, todavia, não se enquadrava em condições comuns,
pois era neta de um lorde inglês, Henry, o primeiro conde de
Haskins, e filha de um príncipe irlandês, Shane O’Hara, barão de
Ballylee. Mesmo assim, sabia que, entre os nobres franceses, sua
linhagem de sangue azul pouco significava. Consideravam-na
apenas como Shanna de Chinon, criada pelas freiras capuchinhas
na abadia de Fontevrault. Fora trazida a Paris como
acompanhante e tutora de Henrietta Maria, a mais nova das três
filhas do rei francês Henrique IV e da rainha Marie de
Médicis. .
Apenas este último fato não lhe teria conquistado lugar no
salão, mas a inteligência vibrante e a extraordinária beleza com-
binadas a haviam transformado numa das convidadas mais fre-
qüentes e admiradas da marquesa.
Entretanto, nessa noite de primavera, Shanna não conseguia
prestar atenção nos assuntos discutidos à sua volta. Os últimos
escândalos da corte, os desgovernos da rainha-mãe, Marie de
Médicis, a aliança recente com a Espanha e a tentativa de acordo
semelhante com a Inglaterra não faziam outra coisa senão des-
pertar-lhe o tédio.
Os pensamentos encontravam-se tumultuados com a notícia
da chegada próxima do pai, Rory, The O’Donnell. Ao entrar no
salão, nessa mesma noite, seu irmão havia lhe contado a
novidade. O chefe do clã irlandês não era seu progenitor
verdadeiro, porém, desde as mortes violentas de Shane O’Hara,

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seu pai, e lady Deirdre, sua santa mãe, sempre chamara


O’Donnell de pai.
Fora ele quem a trouxera, e ao irmão Rory O’Hara, para a
França depois da fuga dos condes irlandeses da região natal de
Ulster, em 1607. Também se devia à amizade entre O’Donnell e o
padre Joseph, prior da abadia de Fontevrault, a admissão de sua
babá Annie Carey, na ordem das capuchinhas, como irmã Anna.
Nesse convento, sob o olhar severo e a orientação dela, Shanna
havia sido educada e aprendera a ser uma lady, ao mesmo tempo
que seu pai adotivo não a deixara esquecer a herança irlandesa.
Mas o padre Joseph compreendera que a jovem exilada,
inteligente e linda, não merecia passar a vida isolada no convento
do vilarejo de Fontevrault.
O então bispo de Luçon, Armand de Richelieu, era amigo che-
gado do padre Joseph. Quando foi chamado à corte em Paris, a
fim de ser secretário da rainha e conselheiro espiritual da
princesa Elizabeth, o sacerdote de Fontevrault pediu-lhe que
incluísse Shanna na comitiva como tutora de Henrietta Maria.
Embora a irmã Anna deplorasse a saída de Shanna dos muros
do convento, tinha sugerido a mudança de nome.
— Ah, minha menina — dissera ela num francês de sotaque
marcado pelo inglês, sua língua original, e pelo irlandês, a
adotada. — Sei bem que entre as paredes do palácio do Louvre
todos a desprezarão se continuar usando o sobrenome O’Hara.
E assim ela passara a se chamar Shanna de Chinon. Haviam
ainda lhe pedido que mudasse também o primeiro nome, porém
negou-se. O prenome lembrava-lhe os anos da infância vividos
na Irlanda, além de inflamar-lhe o orgulho provocado pela
nacionalidade. Ainda agora, se fechasse os olhos, podia rever as
tropas inglesas invadirem o castelo de Ballylee, e ainda
estremecia ao lembrar-se da fuga terrível, nove anos atrás, na
companhia do irmão, de Annie e de The O’Donnell.
Quantas vezes, nesses anos na França, recordara-se da pro-
messa de Rory, o irmão: "Um dia, Shanna, eu a levarei de volta a
Ballylee". Será que isso viria a acontecer? Shanna indagava-se,

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consciente das mudanças operadas em ambos. Embora


continuasse a alimentar o mesmo desejo intenso de retornar à
Irlanda, sabia que Rory passara a adiar a perspectiva de voltar à
terra natal, sentimento que ele não escondia.
— O que acha de Anne, a nova rainha?
— Atrevo-me a afirmar — Shanna replicou — que Anne
possui pele clara, olhos amendoados, faces rosadas e constituição
delicada.
A marquesa riu ao mesmo tempo que apertava-lhe o braço
num gesto carinhoso.
— Minha querida Shanna de Chinon. A facilidade com que se
expressa sempre me surpreende. E uma pena que você não seja
homem e político. Iria longe com suas palavras! Entretanto — a
marquesa continuou, já não mais com um sorriso — o que eu
queria saber é se essa menina terá energia suficiente para
impedir os desmandos feitos sobre a criança solitária, mal-
humorada e aborrecida que é o nosso rei.
Shanna compreendia muito bem a preocupação da marquesa.
Seria Anne capaz de exercer alguma influência sobre o marido, o
rei Luís XIII, a fim de que ele começasse a tirar o poder
destrutivo das mãos da mãe e eliminar a corrupção praticada
pelo marechal da França, Concino Concini? Tinha grandes
dúvidas a esse respeito, porém era ajuizada o suficiente para não
expressar certas opiniões. Resolveu então falar na simpatia, ou
pena, que a vida do jovem casal lhe inspirava.
— Lamento dizer, mas tenho a impressão de que a nossa
rainha Anne encontra-se muito triste e acho que com razão.
Imagino que, em idade tão nova, ser arrancada da própria terra e
levada a outra como esposa de um rei deve constituir algo
amedrontador. Estou certa de que a nossa princesa, Elizabeth,
sente o mesmo a respeito da Espanha e da sua situação.
— Concordo, todavia esse é um fato que as pessoas marcadas
pela realeza têm de assumir. De que outra forma poderíamos
fazer tratados de paz sem antes declarar guerra?
— A marquesa sorriu com malícia e depois comentou: — Se a

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nossa rainha está preocupada com seus deveres de esposa, pode


se acalmar. Garanto que o nosso bom rei, Luís XIII, prefere caçar
e se distrair com o canhãozinho de brinquedo a divertir-se na
cama dela.
Shanna apenas conseguiu concordar com um gesto de cabeça,
pois lembrava-se da noite do casamento, em Bordeaux, no ano
anterior. Luís e a noiva, ambos com quatorze anos, mal acabaram
de trocar os votos matrimoniais quando a rainha-mãe, Marie de
Médicis, os levara para a cama com recomendações explícitas ao
filho para cumprir seus deveres reais.
Shanna não sabia o que se passara no quarto, mas, duas horas
depois, Luís havia saído de lá com a mesma aparência anterior.
"Pobres crianças reais!" Shanna pensara na ocasião, pois em-
punhavam o cetro do poder enquanto eram governados por uma
déspota ambiciosa e ignorante ao mesmo tempo.
Outros cortesãos juntaram-se às duas mulheres e, como se
pudessem ler o verdadeiro significado atrás do palavreado
inconseqüente de ambas, passaram a falar de Marie de Médicis e
seus dois conselheiros odiosos: o marechal Concino Condiu e
Leonora, sua esposa gananciosa e de pele morena.
— Afirmo que o italiano e a feiticeira, sua mulher, só voltarão
a Roma depois de dilapidarem por completo o tesouro francês!
— Um dia, o rei Luís vai se cansar de Concini e ele, mesmo
sendo o favorito da rainha-mãe, terá de partir.
— Talvez, mas antes de isso acontecer é provável que
tenhamos rebelião pelas ruas. O povo sabe que o casal não é
apenas ganancioso, mas sim verdadeiros assaltantes rodeados
por seus asseclas!
Shanna ouvira calada, sentindo um arrepio percorrer-lhe a es-
pinha. De que estranhas maneiras o curso da História poderia
mudar para rumos imprevisíveis.
Henrique IV, apesar de suas extravagâncias de boudoir, o
apetite desenfreado por jovens amantes e a infinidade de filhos
naturais, havia sido um governante bom e justo. Após sua morte
por assassinato, em 1610, seis anos atrás, sua esposa, Marie de

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Médicis, tornara-se a regente, passando a gerir o país em seu


lugar até mesmo depois de Luís XIII alcançar a maioridade, aos
treze anos.
O fato representou um golpe para a França e se agravou
quando Médicis escolheu como conselheiros pessoais sua
cabeleireira, Leonora Galigai, e o marido dela, Concino Concini,
jogador devasso e ambicioso.
Durante os anos em que o casal solidificou o poder
conquistado, as reformas internas de Henrique IV foram
anuladas, a política externa transformada em absoluto caos e
ambos enriqueceram como verdadeiros reis às custas do dinheiro
do povo, que se via cada vez mais espoliado.
Concini inspirava também antipatia por causa de seus hábitos
italianos. Tanto ele como a esposa apelidada de feiticeira devido
à estranha influência mantida em Marie de Médicis, recusavam-
se a aceitar os costumes da corte francesa e exibiam suas
diferenças com grande alarde e ostentação. Como resultado, não
podiam se arriscar a sair do palácio sem guarda-costas. Eram
odiados pelos nobres e sofriam apupos mesclados a pragas
rogadas pela plebe onde quer que aparecessem. Contudo, desde
que Luís XIII alcançara a maioridade, a conversa no salão girava
em torno de traição declarada.
Esse assunto afetava Shanna pessoalmente. Embora lamentas-
se a maneira com que a rainha-mãe delegara seus poderes reais
aos Concini e os descalabros provocados por estes, não podia es-
quecer os deveres inerentes ao cargo que ocupava no palácio. Por
consideração a Marie de Médicis, não desejava opinar sobre esse
assunto.
Além do mais, não ignorava seu lado rebelde de irlandesa.
Muitas vezes havia expressado o pensamento sem medir as
conseqüências, mas nessa noite estava resolvida a manter certa
cautela. Alegando necessitar um pouco de ar fresco, deixou o
círculo de poetas, filósofos e cortesãos e começou a atravessar a
sala apinhada de convidados em direção ao terraço.
O vestido verde-musgo de Shanna, de corpo curto e decote

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com pala de linho e renda, não era tão rico e sofisticado quanto
os das outras senhoras, porém ela o usava com elegância e porte
real. Ao chegar a Paris, sua pobreza em relação às outras damas
da corte a tinha deixado triste e até inferiorizada. Todavia, com o
passar do tempo, notou como essas mulheres, além de fúteis, não
possuíam inteligência brilhante, e, então, deixou de tentar imitá-
las nos caprichos da moda.
Agora, ao mover-se com graça entre os convidados, sentia os
olhares de frieza das mulheres e de admiração dos homens. Não
precisava das roupas exageradas, das jóias ou dos cosméticos usa-
dos pelas outras para se tornar atraente. Sabia, sem convenci-
mento, que a natureza a dotara de beleza extraordinária.
— Mademoiselle de Chinon.
Sentiu a mão firme, no cotovelo, que interrompia seus passos
e gelou ao reconhecer a voz.
— Monsieur Le duc — murmurou com delicadeza.
O duque de La Mardine soltou-a e veio à sua frente,
curvando-se numa cortesia perfeita.
Shanna, mentalmente, maldisse o azar. La Mardine era o
único dos presentes com quem não desejava conversar. Virou-se
um pouco em direção ao grupo que acabava de deixar e notou
que eles também se davam conta da chegada do duque. Sabia
que não conversariam mais sobre Concini, pois isso seria suicídio
político. Afinal, o homem à sua frente era o braço direito e
auxiliar de confiança do conselheiro real italiano.
— Gostaria de saber, mademoiselle, se ponderou sobre o
assunto de nossa última conversa — o duque expressou-se com
uma voz suave que não conseguia disfarçar a inflexibilidade do
olhar autoritário.
A posição de Shanna no seio da família real era, sem dúvida,
muito privilegiada. Ouvia não só a tagarelice da criadagem bem
como os diálogos entre a rainha-mãe e o rei. Havia muito pouca
intriga no Louvré e Tuileries que não viesse parar em seus
ouvidos.
La Mardine já a tinha procurado, várias vezes, com propostas

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de incluí-la na vasta rede de espiões mantida na corte. Como


Concini, ele também gozava da proteção da rainha-mãe, porém
havia a possibilidade de Luís XIII, tendo atingido a maioridade,
descartar-se do italiano e sua comparsa na drenagem dos bens da
França.
O duque ainda tinha um outro interesse, embora ele não o
tivesse expressado verbalmente. Shanna não podia ignorar a
luxúria que os olhos escuros do homem revelavam ao percorrer-
lhe o rosto e pescoço até descansar nos seios bem-feitos. Por um
segundo, eles se deliciaram com a aparência sedosa da pele
exposta e depois prosseguiram à procura das curvas dos quadris
escondidas sob a saia franzida.
Ela sentiu-se despida pelo olhar atrevido que não tentava dis-
farçar o desejo sensual. Parecia dizer-lhe que seria um prazer
incluí-la em sua longa lista de amantes parisienses.
— Como já lhe disse várias vezes, monsieur — Shanna final-
mente replicou com cuidado —, não tenho aptidão para me
dedicar a tramas e intrigas.
La Mardine encolheu os ombros.
— Sei que ouve muita coisa, e eu não preciso mais do que
uma palavrinha dita aqui, outra ali. Deixe-me lembrá-la,
mademoiselle, que a situação de uma pessoa pode ser melhorada
quando outras recebem seus favores. Tenho certeza de que
deseja ser mais do que a governanta de um diabrete real.

Shanna ficou tensa com o insulto dirigido a princesa


Henrietta Maria. Sabia que os olhos revelavam a raiva sentida e
por isso tentou desviá-los de La Mardine. Impossível, pois os
dele, frios e da cor de cobalto, a mantinham hipnotizada ao
mesmo tempo que mostravam traços de profunda crueldade.
Com seu rosto bonito emoldurado por cabelos loiros, ele
sorria com uma certa arrogância. O nariz aquilino parecia ter
excelente olfato para perceber no ar qualquer sintoma de medo
por parte dos que o rodeavam. Shanna sabia que, uma vez

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detectado como sinal de fraqueza, o temor seria atacado por esse


homem, que o usaria em proveito próprio.
Recusou-se a ceder e a deixar transparecer esse sentimento. Já
ia responder com uma negativa peremptória a todas as pre-
tensões dele quando foi salva pela marquesa de Rambouillet, que
havia se aproximado. Sua Graça precisava esclarecer a dúvida
sobre um novo imposto e assim amainar o debate estabelecido
do outro lado da sala.
— Até a próxima oportunidade, mademoiselle — disse ele en-
quanto se curvava em frente a Shanna. — Nosso negócio ainda
não ficou esclarecido definitivamente.
Shanna também se curvou, mas manteve os olhos fixos no
chão a fim de não demonstrar a raiva que sentia.
— Não posso me delongar por mais de uns minutos, madame
— La Mardine explicou à marquesa. — O dia de amanhã será
longo e trabalhoso, por isso preciso me recolher cedo.
— Mesmo uns poucos momentos de sua sabedoria serão
muito apreciados, monsieur — a marquesa mentiu com
habilidade.
Quando já se afastavam, Shanna atreveu-se a erguer a cabeça
e viu a anfitriã olhar para trás com um sorriso de compreensão.
Agradeceu-lhe com um leve aceno e retomou os passos entre os
convidados, na tentativa de alcançar o sossego do terraço.
Finalmente chegou à alta porta de vidro e a transpôs. O largo
terraço encontrava-se vazio; aliviada, Shanna debruçou-se na
grade de ferro batido que o rodeava a fim de correr os olhos pela
cidade.
Deixou que o olhar vagasse a esmo pela cidade até se fixar no
Hotel de Ville, cuja imensidão era quase tão impressionante
quanto à de Notre Dame. Paris pensou distraída, linda e estranha
para ela, tão distante de Chinon e Pontevrault e
incomensuravelmente afastada de sua querida Irlanda. Não
passava de uma criança pequena quando fora arrancada de
Ballylee, porém as visões, os ruídos, os odores do castelo e da
pátria jamais se apagaram da memória. Era como se as urzes e os

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carvalhos altaneiros possuíssem vozes e a chamassem do outro


lado do mar. Mesmo os pântanos e as terras alagadiças pareciam
fazer um apelo mudo à sua alma.
No entanto, encontrava-se numa corte estrangeira, a serviço
de pessoas que detestava, mas impotente para quebrar os laços
que a prendiam ao único trabalho conseguido. Os pensamentos
irrequietos voltaram-se para o primeiro encontro que tivera com
o bispo de Luçon, Armand de Richelieu. Orgulhosa, Shanna
havia expressado seu descontentamento por ser obrigada a
aceitar o encargo de governanta, mesmo em se tratando de uma
princesa, quando, afinal, era filha de um lorde irlandês.
— Muitos de nós, minha menina, devemos nos curvar e
receber agradecidos as oportunidades oferecidas pela sorte. Você
e seu corajoso irmão foram vítimas de um destino cruel, porém já
é tempo de esquecerem a vida que tiveram, ou o que poderiam
ter gozado, para trilharem o caminho onde se encontram agora
— aconselhara o bispo.
Jamais esqueceria Richelieu à sua frente, magro e imponente,
com as vestes roxas, destroçando todos os argumentos
apresentados. Ele era um homem convincente, cujo nariz
arqueado lembrava a proa de um navio e com sobrancelhas
densas na testa alta e reveladora de inteligência. No entanto,
foram a voz sonora e os olhos escuros e metálicos que a
subjugavam. Ele penetrara-lhe a mente e a alma com expressão
imperiosa até que se rendesse e concordasse em segui-lo até
Paris.
Mais tarde, tinha sido a força da personalidade de Richelieu
que obrigara Shanna a servi-lo, além de desempenhar seu
trabalho com a princesa. Esta era a razão principal pela qual
recusara o pedido de La Mardine na primeira vez em que a
procurara. Ser espiã na corte, a serviço do bispo, já representava
grande perigo, mas executar a mesma atividade para o rival do
bispo no grupo de Concini seria um ato suicida. Por isso, quando
o duque lhe fizera a proposta, ela havia contado, em seguida, a
Richelieu.

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— Os instrumentos do poder nas mãos dos tolos são as


máquinas que forçam um governo a se ajoelhar — dissera ele. —
Siga as exigências dé sua ambição, menina, mas não se esqueça
de que, um dia, a França será líder da cristandade.
A inteligência de Shanna captou o que Richelieu dera a
entender nas entrelinhas. Se a França viesse a ocupar esse lugar
de destaque, ele, por sua vez, planejava liderar o país. Portanto,
preferiu ser aliada do bispo convencida de que Armand, no
futuro, teria o poder nas mãos. Então poderia valer-se de sua
associação com ele a fim de retornar à Irlanda e exigir o que, por
direito, lhe pertencia.
De repente, a brisa pareceu-lhe gelada e o luar se refletiu
ameaçador nas águas do Sena. Shanna apertou os braços de
encontro ao peito para combater o arrepio que percorria sua pele
e resolveu voltar ao calor aconchegante do salão. Todavia, nesse
momento, pressentiu a presença de alguém mais ali.
— Na minha opinião, mademoiselle, o luar dança com mais
alegria no Sena depois de sua volta a Paris.
A voz sonora de barítono estava bem próxima de seu ouvido,
e o hálito morno que a acompanhava penetrou nos cachos negros
de seus cabelos. Shanna sorriu sem se dar ao trabalho de se virar,
pois reconhecia quem lhe falava.
— Pelo que vejo continua poeta — disse ela alegremente.
— Só quando estou perto de você, embriagado pelo seu
perfume e ofuscado pelo seu brilho.
O rosto atraente, emoldurado por cabelos dourados, de René
de Gramont surgiu no seu campo de visão. Shanna levantou
cabeça, mas, em vez de ele roçar-lhe a face com os lábios, tomou-
i nos braços com um riso abafado de exultação.
Os olhos azuis, cheios de vida e alegria, a fitavam de uma
altura descomunal, e os dentes alvos e perfeitos brilhavam, acima
do queixo de linhas esculturais. O sorriso, como sempre, revelava
um misto de sarcasmo e meiguice.
— Nada disso, não vou beijá-la como os cortesãos que se
pavoneiam à sua volta, diariamente, lá — René de Gramont

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declarou com um gesto de cabeça em direção ao Louvre.


Retesou os músculos fortes dos braços, o que forçou Shanna a
ficar na ponta das sapatilhas bordadas. Mesmo assim, ele
precisou se curvar para que os lábios de ambos se encontrassem
numa carícia firme e deliciosa.
Por um instante, Shanna permitiu que a sensação inebriante a
envolvesse. Aconchegou-se ao peito másculo enquanto as mãos
dele apertavam-lhe as costas e a língua insinuava-se entre seus
lábios. Porém, quando ele depois tentou tocar-lhe os seios, não
permitiu.
— Não, René — protestou ao virar o rosto e fugir do beijo
tentador. Ele, contudo, insistiu, carinhoso. Beijou-lhe a orelha e
afundou o rosto nos cabelos perfumados.
— Você seria a amante por excelência em Paris!
— Uma esposa melhor — contradisse ela com um risinho.
— Ótimo — René concordou. — Quando quer se casar?
— Nunca — Shanna respondeu, já sem nenhum traço de
humor na voz. — Todos em Paris imaginam que somos amantes.
— Isso porque aqui quase ninguém escapa de tramas
amorosas e não se pode imaginar que uma pessoa durma
sozinha. Se não deseja ser amante nem esposa, o que quer,
então?
— Apenas manter-me sua amiga.
— Posso dedicar-lhe toda a amizade do mundo na cama. Por
Deus, Shanna, eu te amo!
— Eu também lhe tenho grande amor, René, mas de amiga.
Os braços dele apertaram-se à sua volta. Desde os pés até os
ombros Shanna podia sentir o corpo musculoso fremir de
encontro ao seu com tanta intensidade que, apesar do espartilho,
da saia franzida e das varias anáguas, percebeu o latejar
insistente da virilidade de René.
— Sou companheiro do seu irmão — murmurou ele ao seu
ouvido. — Namoricamos, bebemos e lutamos juntos. Ele é o
melhor amigo que já tive, como você também. Porém, minha
querida Shanna, gostaria de ser muito mais, desejo ser seu

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amante.
— E onde você me levaria para a cama? Nos quartéis dos
mosqueteiros do rei?
A referência sobre a falta de recursos de René não o inibiu.
Levantou de novo as mãos e afagou-lhe os seios na parte superior
do decote. Contudo, ao tentar um toque mais íntimo sob a
roupa, Shanna o impediu e declarou:
— Isso seria incestuoso.
— Mon Dieu! Outra vez?!
Ambos tinham doze anos quando se conheceram em Fonte-
vrault. Shanna, a filha órfã de um lorde guerreiro irlandês, e
René, o filho bastardo do rei Henrique IV e de Corisande, a
condessa de Gramont. Ao contrário dos muitos outros filhos
naturais desse soberano, ele nunca fora reconhecido e, portanto,
jamais pudera obter um título de nobreza. Isso e o fato de ser
rejeitado pela mãe, cujas posses eram poucas, atiraram René nas
ruas. Apenas a intervenção bondosa do padre Joseph o salvara da
delinqüência como meio de sobrevivência. No lugar onde passara
a morar, ele se sentira querido pela primeira vez na curta
existência.
A atração entre Shanna e René foi quase imediata, um tanto
mais forte por parte dele no início. Mesmo aos doze anos, ela já
era lindíssima, com olhos vivos, escuros, de tonalidade violeta,
trancas negras como o ébano e silhueta que desabrochava em
curvas perfeitas. René de Gramont foi atingido profundamente.
Em pouco tempo, Shanna começou a alimentar mais do que
interesse infantil pelo rapaz. O riso e as maneiras espontâneas, os
cabelos loiros, a aparência atraente, a inteligência e a sagacidade
marcantes, notados logo, passaram a despertar sua feminilidade.
Porém, mesmo sob os estímulos suaves do amor juvenil e as
mudanças operadas no seu interior, Shanna, sem sabei' por que,
manteve o sentimento abafado. Com o passar do tempo, e bem
devagar, descobriu as razões da atitude: René havia tomado o
lugar do irmão. Depois da fuga da Irlanda, Rory O’Hara tinha
sido levado a Roma e provocado uma saudade imensa. Se o novo

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OS AVENTUREIROS

amigo substituía o irmão distante, como dedicar-lhe outro afeto


senão o fraterno?
Shanna, entretanto, não levou em consideração o ambiente
confinado de Fontevrault. Ela e René gozavam muito da
companhia um do outro o tempo todo. As aulas, os trabalhos
feitos na abadia, as cavalgadas pelos campos, as longas conversas,
os sonhos para o futuro, tudo, enfim, eram experiências
compartilhadas por ambos. Ao completarem dezessete anos,
viviam inseparáveis.
— Conte as últimas novidades de Paris ocorridas na minha
ausência — pediu ela com descontração forçada, ansiosa para
desviar o rumo da conversa. — A condessa Boudine ainda está de
amores com o cocheiro?
— Tenho certeza que sim, mas não mude de assunto. Você
não" quer se casar comigo, ou ser minha amante, porque não
tenho futuro como mosqueteiro do rei? Afinal, já fizemos amor
antes.
Shanna corou constrangida e deu graças por estar com o rosto
virado.
— Foi um erro da juventude — murmurou ela.
— Não concordo e espero, um dia, provar que está enganada,
minha querida.
Havia tanta ternura na voz dele que Shanna sentiu um aperto
na garganta. De fato não tinha sido um erro e, caso tivesse sido,
fora maravilhoso. Tudo se passara num dia claro de céu azul em
que cavalgavam pelas colinas entre Chinon e o rio Vienne.
Teceram, como sempre, os planos visionários de retorno às
terras que lhes pertenciam por direito, René ao castelo de
Gramont e Shanna ao de Ballylee, na Irlanda. Lentamente e da
maneira dissimulada com que o faziam ultimamente, passaram a
falar de amor e casamento. Evitaram toda e qualquer referência a
si próprios, numa espécie de ritual iniciado com as
transformações provocadas pela maturidade em seus corpos.
Shanna nunca descobriu o que desencadeou a mudança de
atitude. Mais tarde culpou a beleza do dia, o ar perfumado da

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OS AVENTUREIROS

primavera e o murmúrio acariciante das águas do rio. Atribuiu


ainda uma certa responsabilidade à segurança da depressão na
terra onde se amaram sobre a maciez da grama e separados do
resto de mundo pela barreira de árvores à volta.
A lembrança da momento em que ela percebeu o que eslava
prestes a acontecer jamais a abandonaria enquanto vivesse. No
meio de uma frase, os olhares de ambos se cruzaram. René es-
tendeu a mão e a segurou de leve pelo queixo para, em seguida,
baixar a cabeça e beijá-la nos lábios macios. A reação de Shanna
foi imediata e tão ardente a ponto de surpreender a si mesma.
Sentiu-se incapaz de abafar a paixão que a dominava e teve a
impressão de que o tempo parava no espaço. Pela primeira vez
na vida, afastou a cautela com que sempre se conduzia. Via-se
arrastada pela explosão impetuosa e inesperada.
— Eu te amo — declarou René com voz calma enquanto a
forçava pelos ombros a se deitar.
— René, não podemos...
Os lábios dele a silenciaram e Shanna surpreendeu-se com a
destreza dos dedos que lhe soltavam os cordéis da blusa de couro
usada para cavalgar. A camisa de cambraia abriu-se quase de
maneira mágica, expondo os seios aos beijos delirantes, que pro-
vocaram-lhe labaredas de fogo pelo corpo todo.
As exclamações de René tinham sido de admiração e
reverência ao deparar-se com sua nudez depois de despir-lhe a
saia de montaria e as anáguas. Apenas por ruídos suaves, Shanna
percebeu que ele também se livrava das roupas, pois fechara os
olhos, numa tentativa de afastar a realidade.
Porém, a pressão dos músculos fortes e viris do corpo dele no
seu e o contato da pele de ambos eram agudamente reais.
Desejosa, deixou-se abraçar e ofereceu o corpo ardente às
explorações excitantes das mãos de René. A cada toque, a
sensualidade desinibida aumentava ao mesmo tempo que
destruía qualquer resquício de prudência.
Ondas de prazer a percorreram quando os dedos dele
acariciaram a parte interna de suas coxas e moveram-se para

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OS AVENTUREIROS

cima. Afastou as pernas e ele aninhou-se entre elas. Embora


totalmente inexperiente, Shanna, movida pelo instinto surgido
de algum recôndito de seu âmago, tomou-lhe o sexo e afagou-o
antes de guiá-lo para dentro de si.
Novamente, viu-se tomada pela surpresa quando a
penetração vagarosa e delicada no corpo não causou quase dor
alguma. Em vez disso, sentiu a excitação crescer como o fogo
atiçado pelos ventos nos campos secos.
Sem esperar, ela foi tomada por .tremores incontroláveis
como se todo o seu íntimo se visse exposto à luz do dia e corpo e
mente explodissem em uníssono. Gritou abraçada a René e
permitiu que o momento de êxtase infinito se prolongasse mais e
mais.
Continuaram abraçados em silêncio até que o entardecer
desbotasse o azul do céu. E, então, ainda calados, banharam-se
nas águas do rio, cada um evitando o olhar do outro.
Cavalgaram a Chinon sem trocar uma palavra, e só na manhã
seguinte o impacto da ação cometida encheu de medo o coração
de Shanna. Poderia ficar grávida? Não, impossível! René não ha-
via... ou será que sim?
Teria cometido um pecado mortal? Como algo tão glorioso
podia ser pecado? Mas era, sim, e, com certeza, ela enfrentaria o
fogo do inferno. Deveria se confessar, porém não sabia se seria
perdoada.
Agiria melhor se contasse tudo à irmã Anna. Sua querida babá
e professora várias vezes insinuara que, durante a juventude na
Inglaterra, estivera longe de ser santa. Todavia, ao aproximar-se
da freira, o medo a fez tocar em outro assunto e ocultar a
verdade.
Passou dias sem se alimentar e depois foi acometida por uma
febre que a manteve no leito quase uma semana. Nos momentos
em que ficava acordada, recriminava-se cheia de medo, e,
quando dormia, pesadelos horríveis sobre o castigo eterno
perturbavam-lhe o descanso.
Finalmente, o bom senso e a inteligência superior falaram

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OS AVENTUREIROS

mais alto. O que estava feito não tinha remédio. Se havia


cometido pecado mortal, então, mais da metade das francesas
lhe fariam companhia no inferno.
Depois de algum tempo, voltou a falar com René e a amizade
entre ambos se restabeleceu. Todavia, Shanna tinha jurado
nunca mais permitir que a intimidade compartilhada às margens
do rio Vienne se repetisse.
Para René, a situação tornou-se insuportável. Estava
realmente apaixonado por Shanna e afirmava-lhe isso em todas
as oportunidades possíveis. Muitas vezes tentou repetir a
aventura amorosa; ela, porém, mantinha-se inflexível.
Pouco depois, ele partia para estudar na escola Navarre, em
Paris. De lá, escrevia constantemente declarando-lhe o amor
imortal. Nessa época, Rory O’Hara, o irmão de Shanna,
terminava o curso de cadete no mesmo estabelecimento. Ele e
René tornaram-se amigos inseparáveis. Este último pediu-lhe
que intercedesse junto à irmã em seu favor, mas nada adiantou.
"Lamento, mas amo a René da mesma forma que a você, meu
caro irmão. Como poderia, então, existir entre nós algo além de
uma sólida amizade?", respondera ela em uma de suas cartas
para Rory.
O’Hara acabara desistindo de ajudar o amigo e dissera-lhe
que procurasse resolver o problema sozinho.
Uma vez, ao visitar o irmão em Paris, Shanna tinha visto René
com a espada de cadete, o chapéu de plumas, o gibão com corte
atrás, a capa elegante e as esporas nas botas, o que lhe transmitiu
a imagem de um deus louro da guerra. O corpo alto havia
adquirido graça com os músculos desenvolvidos nos lugares
certos. O olhar continuava matreiro e vivo e ele ainda se
expressava com sagacidade. Quase cedeu à tentação.
Todavia, a mente dominou o corpo e ela voltou depressa a
Chinon para se refugiar entre seus livros na abadia. Imaginava se
existia, em algum lugar, um homem capaz de despertar-lhe um
amor tão forte que pudesse competir com a paixão desenfreada
que, agora, sabia ser possível.

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OS AVENTUREIROS

— Pergunto-lhe de novo, será que foi um erro? — René


murmurou. As mãos de Shanna afagaram as dele sobre sua
cintura.
— Não, meu querido René, não foi bem um erro, mas uma
experiência gloriosa para nós dois. Saímos dela, eu mais mulher e
você mais homem.
— Ah, enfim admite? — replicou ele outra vez com voz
alegre e esperançosa.
— Naturalmente, porém...
— Então fuja comigo para Burgundy, onde poderei me tornar
um fazendeiro, enchê-la de filhos e da luxúria carnal que aprendi
em Paris.
— Não! Você é quem fugirá comigo para a Irlanda e me
ajudará a organizar um exército que me transforme na rainha de
Ballylee.
A expressão de René perdeu a vivacidade. Como a todo bom
francês, qualquer referência a outra terra representava verda-
deiro anátema, especialmente se feita à Irlanda agreste ou à
Inglaterra sangrenta. Mesmo assim, conseguiu expressar-se com
displicência.
— De forma alguma! Como seu irmão, detesto guerras.
Prefiro passar a vida fazendo amor.
Aconchegou-a mais entre os braços para beijá-la novamente
quando foram interrompidos por um cocheiro.
— Mademoiselle de Chinon?
— Oui.
O criado, de libre vermelha, entregou-lhe uma nota e curvou-
se antes de se retirar.
Shanna abriu depressa a missiva sucinta, lendo-a em seguida.
Com um sorriso feliz, explicou a René:
— É de meu pai, The O’Donnell. Ele se encontra na abadia à
minha espera e de Rory. Vou já avisar meu irmão.
— Rory já se foi, Shanna. Eu o vi escapulir, escondido, há
uma hora.
— Para onde? Preciso encontrá-lo.

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OS AVENTUREIROS

René sacudiu os ombros e virou o rosto, mas Shanna ainda


vislumbrou o sorriso malicioso.
— René...
— Por algum tempo, ele não desejava ser perturbado.
— Disse que ele escapuliu. Quem foi procurar?
Uma outra sacudida de ombros e mais um sorriso maroto que
ela conhecia bem, precederam a revelação.
— La Mardine.
— Mon Dieu! Depressa, teme. de correr. Para o inferno esse
sangue quente de meu irmão!
— Por quê? — René indagou atônito.
— Pense um pouco — Shanna replicou com olhar aflito. —
Use o cérebro sob essa cabeleira loira. Quem é o mais mortal dos
espadachins da França?
— La Mardine.
— E onde Rory se encontra?
— Provavelmente, entre as longas pernas da duquesa de La
Mardine — respondeu ele com um riso divertido.
— E o duque?
— Ali no salão.
— De forma alguma. Ao vir para cá, eu o ouvi desculpar-se
com a marquesa de Rambouillet por ter de retirar-se logo para
dormir mais cedo hoje. Segundo ele, terá um dia comprido
amanhã.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO II

A duquesa de La Mardine separou as pernas longas e bem


torneadas e as envolveu no corpo agitado sobre o seu. Havia uma
nebulosidade rubra e ofuscante à frente de seus olhos enquanto
se estremecia de desejo desenfreado. Encontrava-se assim há
uma hora, desde que haviam entrado em seu quarto e se
desvencilhado das roupas.
Jamais conhecera homem como este. Ele, praticamente, a
havia atacado sem lhe dar tempo para atitudes de recato fingido
que costumava assumir em suas outras infidelidades.
Todavia, não se importava. Ele a possuía com impetuosidade
e exigência, mas, ao mesmo tempo, de maneira deliciosa e
gratificante.
— Ah, Rory, meu amante... meu amante...
— Carlotta, ma Carlotta, você não é apenas a mais linda e

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OS AVENTUREIROS

libidinosa das libertinas da França, mas a rainha de todas elas!


Os olhos escuros de Rory O’Hara fitaram a mulher sobre
quem se deitava. Normalmente, aquele rosto era a imagem da
mais pura inocência, contudo agora apresentava-se com traços
de luxúria e paixão desmedidos. Os cabelos loiros, sempre
penteados de acordo com a última moda, encontravam-se no
mais completo desalinho e os pentinhos que os prendiam
espalhavam-se pelo travesseiro.
Mesmo quando se entregava à satisfação do desejo físico,
Rory não perdia a expressão sorridente do olhar e o riso
ameaçava escapar-lhe da garganta. Era de sua natureza excitar-se
com tramas e inflamar-se ante o perigo. Carlotta, esposa do
duque de La Mardine, proporcionava-lhe ambos os estímulos na
busca do prazer.
Como capitão da guarda de Concini, ele comandava os merce-
nários suíços na proteção do italiano contra espadas afiadas ou
balas letais. La Mardine, por ser o braço direito do marechal, era
seu superior imediato, o que fazia Rory odiar os dois quase com
igual intensidade.
Então, que outra maneira melhor de satisfazer todos os
desejos, enfrentar perigo e intriga, saciar a paixão carnal e
ventilar o ódio a La Mardine, do que deitar-se com a esposa do
duque?
Como todos da corte, ele conhecia bem o passado da duquesa
de La Mardine. Três anos antes, quando se casara, charnava-se
Carlotta de Savoy, e, entre os muitos amantes mantidos até então
incluíam-se os duques de Vendome e de Carlisle. Todos tinham
sido usados como degraus na escalada da posição atual de
privilégio e poder junto a Concini.
Dizia-se que La Mardine, ao se casar, conhecia bem os ante-
cedentes da noiva, porém o dote fabuloso e a beleza
extraordinária de Carlotta o fizeram desprezar tais fatos. Todavia,
contava-se ainda que, na noite de núpcias, ele a tinha avisado de
que, se descobrisse qualquer indício de infidelidade conjugai,
teria o máximo prazer em matá-la, bem como ao amante, não

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OS AVENTUREIROS

importava quem fosse.


Esse desafio jamais poderia deixar de ser enfrentado por Rory
O’Hara.
— Agora que já começamos, doçura — murmurou ele —,
espero que tenha planos para novos encontros.
— Não sei, primeiro preciso pensar sobre isso — respondeu
ela tentando esconder a vontade pela continuação da aventura
amorosa.
— Pois pense, mas não leve muito tempo para chegar a uma
decisão. Posso acabar sendo atraído por uma das meretrizes de
Picard — Rory ameaçou com um riso franco.
O insulto, mesmo de brincadeira, tornou-se mais agressivo
por causa do tom de zombaria com que fora dito. Picard era o
prostíbulo mais famoso de Paris, cheio de mulheres espertas e
dispostas a arrancarem favores de seus clientes da alta-roda.
Carlotta também possuía essas duas características, mas, afinal
de contas, era uma duquesa.
— Insolente, atrevido! — gritou ao mesmo tempo que
desferia novo ataque de murros e unhadas nos ombros dele. De
repente parou, assustada. — Escute!
— O quê? — Rory resmungou.
— Ouvi barulho no pátio lá embaixo.
— Parece uma carruagem — replicou ele, displicente.
— Mon Dieu!
Num ímpeto, Carlotta levantou-se e correu à janela, onde
descerrou uma fresta nas cortinas pesadas. Um raio pálido de
lanterna iluminou-lhe o corpo nu, cuja perfeição despertou a
admiração de Rory, muito embora ele já estivesse com os desejos
plenamente saciados.
— Oh, não! — Carlotta gemeu baixinho e cheia de medo. —
O duque!
Em seguida, começou a correr pelo quarto à procura de algo
apropriado para vestir ao mesmo tempo que apanhava as roupas
de Rory e as atirava na cama.
Ele não se mexeu. Deitado, imóvel, observava-a com olhar

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OS AVENTUREIROS

atento. A duquesa possuía um corpo ágil e bem-feito, estreito na


cintura e arredondado nos quadris. Os seios eram de tamanho
exato, com os bicos erguidos de maneira adorável. O esforço que
ela fazia agora ao tentar vestir uma camisola alva e engomada
dava-lhe uma aparência de ingenuidade e inocência tentadora.
Quando Carlotta se deu conta de que Rory continuava
deitado, exclamou, entre aflita e amedrontada:
— O que há com você?!
— Nada — replicou ele com o sorriso de dentes alvos e bri-
lhantes. — Estou apenas admirando suas pernas longas e
perfeitas. São lindíssimas!
— Vá para o inferno! Ficou louco? Mexa-se, e depressa! Meu
marido está chegando, idiota! Quer arriscar minha vida e a sua?
— Não — Rory respondeu com um riso divertido.
— Gostaria apenas de explicar ao meu senhor, o duque, que
vim ter uma aula sobre costumes franceses para viver melhor.
Levantou-se e começou a se vestir.
Os olhos de Carlotta brilharam tanto de surpresa quanto de
medo, porém a expressão atrevida dele provocou-lhe um sorriso.
— Se a sua perícia com a espada fosse tão boa quanto a
maneira de se expressar, eu lhe pediria que ficasse para me
proporcionar mais momentos de prazer.
— Infelizmente não — Rory declarou, rindo, enquanto
colocava as calças.
Ruídos altos vindos do pátio acompanharam seus
movimentos ao calçar as botas, vestir a jaqueta e colocar a espada
na faixa que ia do ombro direito até o quadril esquerdo.
— Depressa! — Carlotta suplicou ao ouvir vozes no patamar
inferior das escadas.
Rory atirou sobre os ombros a capa de guarda, prendeu o
fecho na altura do peito e colocou uma das pernas do lado de
fora da janela.
— Vamos nos ver outra vez, doçura? — provocou ele.
— Acho que sim. Vá embora agora, seu idiota!
Em vez de atendê-la, Rory inclinou o corpo para dentro do

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quarto e insistiu mais uma vez com o sorriso encantador.


— Quando?
— Mon Dieu! Antes eu não o tivesse conhecido!
— Que bobagem! Quando?
Os olhos de Carlotta arregalavam-se com a apreensão que
sentia e o rosto mostrava-se quase tão branco como a camisola.
— Daqui a um mês... Vou para o campo... no castelo em
Mardine. Ele ainda conseguiu roçar-lhe os lábios num beijo
rápido e dizer:
— Então, até lá — e pulou para desaparecer em seguida, na
escuridão. Apressada, Carlotta fechou bem as cortinas e correu
para o lado da cama. Antes de deitar-se, teve o cuidado de apagar
a vela usando o indicador e o polegar direitos umedecidos com
saliva. Dessa forma não faria fumaça nem produziria cheiro
algum, coisas que poderiam traí-la. Enfiou-se sob as cobertas e
ouviu o som de passos se aproximando da porta.
"Ah, meu Deus amado", rezou aflita, "não esta noite, por mi-
sericórdia. Faça com que ele já tenha visitado uma de suas aman-
tes, ou que esteja cansado... talvez bêbado, e assim não deseje
meu corpo."
Os passos pararam do lado de fora da porta. Carlotta
encolheu-se toda e cobriu a cabeça. Sentia-se atordoada e mal
podia respirar:
Contudo, a caminhada recomeçou ao longo do corredor em
direção à ala onde ficavam os aposentos do dono da casa. Antes
que não ouvisse mais nada, Carlotta, a duquesa de La Mardine, já
havia esquecido as preces fervorosas de um segundo atrás e a
mente ágil formulava outras. Desejava que o tempo voasse a fim
de se encontrar novamente, em breve, sob a potência de touro de
Rory O’Hara, o irlandês atrevido.
René subiu na carruagem e, com um suspiro profundo,
sentou-se ao lado de Shanna.
— Não pude deter o duque no portão por mais tempo. Afinal,
minha desculpa era muito esfarrapada.
— Não tem importância. Vi Rory pular da janela. Diabos!

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OS AVENTUREIROS

Acho que a metade de Paris também testemunhou a fuga —


comentou ela com voz exasperada ao mesmo tempo que
apontava o indicador esguio na direção dos fundos do grande
hotel.
Ele se inclinou, firmou o olhar no ponto indicado até
vislumbrar a figura do amigo. Juntos, acompanharam os
movimentos da silhueta que, abaixada, corria sobre o muro do
jardim. Embora algumas nuvens houvessem ocultado a lua, a
claridade era suficiente para se ver o galão cor de ouro da capa e
os debruns vermelhos e dourados da jaqueta. René sacudiu a
cabeça com ar de reprovação.
— O que foi? — Shanna quis saber.
— Como se não fosse um risco tremendo visitar a mulher de
La Mardine a esta hora, esse louco ainda se atreve a fazê-lo
vestido com o uniforme da guarda.
— Concordo — Shanna murmurou. — E uma grande insa-
nidade mental.
A silhueta aproximava-se do canto do muro e René prendeu a
respiração. Ao ver o amigo alcançá-lo e pular com segurança, sol-
tou-a, num grande suspiro de alívio.
Menos de um minuto depois, eles o viram dobrar a esquina e
entrar na Rua Mauconseil. Já com o chapéu de plumas sobre a
cabeça, Rory caminhava calmamente, dando a impressão de que
passeava apenas para aproveitar o ar fresco da noite. Quando ele
chegou perto da carruagem, Shanna abriu a porta e chamou-o:
— Ei! Aqui, seu bobo!
Os olhos de Rory arregalaram-se e o rosto abriu-se num
sorriso divertido assim que a reconheceu.
— Olá, o que a minha lindíssima irmã está fazendo por aqui
tão tarde da noite?
— Esse meu irmão, além da cabeça dura, tem tanta moral
quanto um gato rondando pelos telhados. Suba logo... dépêche
toil — pediu ela, aflita. Rory riu despreocupado e obedeceu. No
mesmo instante, Shanna bateu com os nós dos dedos no teto da
carruagem, o sinal para que o cocheiro pusesse o veículo em

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movimento. O arranco fez com que o novo passageiro batesse em


René e caísse sentado ao lado dele.
— Ah... bon soirl O que andou aprontando esta noite?
— Nem a metade do que você fez, mon ami — René
comentou malicioso.
— Eu?! Apenas vim cumprir o meu dever ao inspecionar a
segurança da residência de Sua Graça — Rory replicou com ex-
pressão fingida de inocência.
Até Shanna sorriu, mas escondeu o rosto atrás do leque.
— Encontrou tudo em ordem? — perguntou ela, sem poder
disfarçar a curiosidade.
Rory atirou a cabeça para trás ao mesmo tempo que enchia a
carruagem com um riso sonoro.
— Em péssimas condições. Acredito que qualquer malandro
poderia entrar e sair depois de se apossar do maior tesouro do
duque sem que ninguém percebesse.
— E qual seria esse bem? — René indagou, rindo também.
— Você me surpreende, mon ami. Sabe muito bem que não
se
Os AVENTUREIROS
discute esse assunto na presença de mulheres de família,
especialmente de uma senhorita criada num convento.
Rory inclinou-se para a frente e, antes que Shanna pudesse
impedi-lo, beijou-a na ponta do nariz.
— Mon Dieu! Você se tornou um verdadeiro francês, cheio de
fanfarronices e aparências e nem um pingo de tempera —
protestou ela.
— Não, minha querida irmã. Talvez um pouco espalhafatoso,
porém, se tivesse ouvido os suspiros recentes da madame de La
Mardine, concordaria que mantenho intacta a minha força de
irlandês.
Shanna corou até a raiz dos cabelos e cobriu o rosto todo com
o leque, ao passo que Rory recostava-se no espaldar do banco,
sacudido por novo acesso de riso.
"Como estes dois que me adoram e a quem amo tanto

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OS AVENTUREIROS

parecem crianças!", pensou ela.


"São parecidos e diferentes ao mesmo tempo", reconheceu. A
pele morena e os cabelos negros de Rory formavam um intenso
contraste com a tez clara e os caracóis dourados de René. O
irmão era mais baixo, mas o corpo forte transpirava energia
ilimitada mesmo quando comparado à altura portentosa do
amigo. René possuía feições suaves e olhar triste de poeta, ao
passo que Rory tinha o rosto austero como que esculpido em
pedra escura. Até as vozes revelavam-se desiguais durante a
prosa calma e absorvente. Uma lembrava o murmúrio das águas
claras de um riacho e a outra, o estrondo distante de um trovão
nas montanhas.
Todavia assemelhavam-se num ponto importante: a ânsia de
levarem uma vida excitante, descuidada e feliz. Rory costumava
planejar aventuras tumultuosas nas quais René o seguia, num
misto de interesse a adoração. As mulheres sempre rodeavam o
irmão, e Shanna entendia bem a razão. Na personalidade dele
existia algo amedrontador e fascinante ao mesmo tempo. Rory
podia ter uma explosão temperamental com força vulcânica e, no
momento seguinte, encantar todos à sua volta com um sorriso de
criança. Ele era inconstante no domínio das emoções e nunca
conseguia controlá-las completamente.
Esse fator a enchia de preocupação. Tato e diplomacia consti-
tuíam os ingredientes principais para a sobrevivência de ambos
os irlandeses O”Hara a serviço da corte francesa. Rory não
possuía nenhum dos dois predicados. Qualquer pensamento que
lhe viesse à mente ele expressava sem a menor cautela. Se
desejava alguma coisa, esforçava-se para obtê-la e, quase sempre,
a conseguia.
Shanna suplicava-lhe para que pensasse mais no futuro e se
preparasse para o dia em que, finalmente, retornariam à Irlanda e
reivindicariam o que por direito lhes pertencia. A resposta era,
sem dúvida nenhuma, a mesma.
— Um dia, mana, você ainda vai cair em si e perceber que a
Irlanda se perdeu para nós. Ballylee não passa de um

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OS AVENTUREIROS

amontoado.de ruínas e o nosso destino, queiramos ou não, é ser


franceses.
Para ilustrar as palavras, Rory dedicava-se mais ainda ao ma-
nuseio da espada, ao corte elegante das roupas e à perseguição de
uma mulher bonita.
Shanna aceitava o fato de que o irmão era um malandro liber-
tino, porém amava-o do fundo do coração e mantinha viva a es-
perança de que, um dia, o rapazinho no corpo de homem feito
alcançasse maturidade. Rezava constantemente por essa graça e
até mesmo para que algo acontecesse na vida de Rory a fim de
forçá-lo a assumir responsabilidades. Ele admirava Richelieu, to-
davia negava-se a seguir-lhe o exemplo; adorava mulheres, mas
não permitia que nenhuma delas penetrasse o verniz que
mostrava ao mundo e atingisse o poço de suas emoções. Quantas
vezes, depois de ambos terem vindo morar em Paris, ela tentara
penetrar-lhe a alma.
— Se o que deseja, meu querido irmão, é posição social, nada
melhor do que a situação de senhor de suas próprias terras na
Irlanda.
Rory, geralmente, caçoava da insistência de Shanna e rara-
mente abria uma fresta dos pensamentos íntimos e revelava seu
grande tormento.
— Você era muito pequenina para sentar-se nos joelhos do
velho O’Neill e ouvi-lo clamar contra a traição dos chefes dos clãs
durante os dias da grande rebelião. Você não se lembra de
O’Donnell nos primeiros anos após a nossa fuga, antes que a
saudade toldasse os olhos dele para a realidade. Mas eu me
recordo muito bem das palavras com que ele descrevia causas
perdidas e homens semimortos caminhando ainda como bois
mansos à espera do golpe fatal. Ah, minha doce irmã, será que
nunca imagina quão justa era a causa que forçou nossa mãe a
assassinar nosso pai e morrer ao fazê-lo?
— Não foi assassinato — Shanna protestou enérgica — e sim
um ato de misericórdia e amor! Lady Deirdre jamais permitiria
que a história dos O”Hara fosse enlameada com a execução por

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esquartejamento.
Rory apenas sacudia os ombros a argumentos desse tipo e
respondia:
— Você tem seus pensamentos e seus demônios, eu tenho os
meus. Paciência.
Assim ele havia preferido dedicar-se ao prazer e não permitir
que ninguém percebesse a luta íntima que essa escolha lhe pro-
vocava. A lembrança trouxe de volta o pensamento de Shanna à
aventura dessa noite.
— O que você acha que teria acontecido se o duque o
apanhasse nos aposentos da mulher? — perguntou ela,
interrompendo a conversa dos outros dois.
— Imagino que eu teria sofrido uma espetadela.
As palavras foram acompanhadas pelo riso sonoro dos
homens e que Shanna fez questão de não compartilhar.
— Será que nunca pode falar a sério? — reclamou ela.
— A minha resposta não foi brincadeira. Sua Graça teria me
trespassado com a espada.
Ele a exasperava e divertia-se com isso.
— Então por que correu esse risco?
Rory assumiu uma expressão de intensa seriedade, o que apa-
nhou a irmã de surpresa.
— Porque dizem por aí que a senhora em questão tem duas
covinhas em lugares muito escondidos e eu, instigado por mera
curiosidade, quis verificar a veracidade do fato.
— E? — René indagou.
— Não era boato!
Mais risos ecoaram pela carruagem e Shanna, aborrecida, fe-
chou o leque com um gesto brusco e ruidoso.
— Ainda bem que recebemos o chamado. Ele talvez o ajude a
escapar da fúria de um marido ciumento.
— Que chamado?
— De papai, isto é, The O’Donnell — corrigiu, pois o irmão
jamais se referia ao padrinho pelo tratamento de pai.
— Ele voltou de Roma e tem urgência de nos ver na abadia de

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

Fontevrault.
A expressão sombria de Rory não era fingida. Semicerrou os
olhos e apertou os lábios. A hilaridade de momentos antes desa-
pareceu para dar lugar a um ar de concentração.
"Pode ser", pensou ele, "que desta vez o esquema de
O’Donnell tenha dado certo." Sempre que era chamado a
Fontevrault temia que o padrinho, finalmente, tivesse
conseguido abrir-lhe o caminho de retorno à Irlanda.
E Rory O’Hara não tinha o mínimo desejo de regressar à terra
natal.

CAPITULO III

LONDRES

Jamais um julgamento em Westminster Hall havia criado tal


frenesi de antecipação ou alvoroço. Também nunca na história

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OS AVENTUREIROS

da Inglaterra um conde, aliás, o predileto do rei, e sua lindíssima


esposa tinham sido levados a um tribunal sob a acusação de
assassinato.
Por dois dias já, os degraus que levavam do rio à entrada do
edifício fervilhavam com pessoas negociando os lugares para os
espectadores. Durante a última semana, os pares do reino
chegavam a Londres vindos do campo, e um tablado especial
havia sido montado em um dos lados de Westminster para aco-
modá-los. Os de linhagem menos nobre e os plebeus ficariam
num palanque recém-construído acima do primeiro andar. Até
seus assentos eram caríssimos e chegavam a alcançar cinco peças
de ouro cada um.
Numa das fileiras mais altas encontravam-se lady Elizabeth
Hatton e a filha Brenna. A primeira segurava um lencinho per-
fumado de encontro às narinas com a mão esquerda, enquanto a
direita acariciava um pendente de pérola acomodado entre os
seios. Ele tinha quase o tamanho de um ovo e havia sido ofertado
pela ré, cujo crime, agora em julgamento, poderia lhe custar a
vida. Esse presente e a razão pela qual fora dado é que
provocavam o tremor dos dedos de lady Hatton.
De vez em quando, alguém se virava e lançava olhares
furtivos em sua direção e da lindíssima filha. Ambas exibiam o
mesmo penteado moderno, mas os cabelos da mãe eram
castanho-dourados e os de Brenna muito negros. Diferiam ainda
em outros traços. Elizabeth possuía tez clara e olhos verdes,
enquanto os da filha, escuros, brilhavam na pele morena e
demonstravam um anseio apaixonante e maduro demais para
seus dezessete anos.
Havia muitas diferenças entre mãe e filha. Lady Hatton era
uma mulher independente e temperamental. Brenna também
possuía vontade férrea e amor pela liberdade, porém seu
semblante demonstrava imensa serenidade interior, o que a fazia
ser admirada, e até mesmo adorada, pelos que a rodeavam.
Mesmo quando sua mãe empenhava-se em protestos contra
as injustiças do rei, as arbitrariedades do marido ou, ainda, as

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OS AVENTUREIROS

crueldades em geral cometidas pelos homens em detrimento das


mulheres, a voz de Brenna mantinha-se calma em suas
interferências. Lady Hation era, muitas vezes, irascível,
tempestuosa e dona de ambição desmedida, ao passo que a miia,
pu^i^lc c serena, satisfazia-se em observar com placidez e
sagacidade a vida da sociedade londrina na corte.
Desde a mais tenra idade, Brenna fora exposta à corrupção de
James I e dos que o rodeavam. No entanto, graças à sua inteli-
gência privilegiada, em vez de criticar, desculpava e ignorava os
erros dos que detinham o poder.
— Atenção... Atenção! — soou a voz do encarregado em
manter a ordem no recinto. — Todos quietos para a entrada de
milorde.
O salão imenso foi envolvido pelo silêncio enquanto seis fun-
cionários do tribunal, segurando bastões e com mantos de veludo
vermelho e dourado, escoltavam o mais alto magistrado judicial
da Inglaterra até o seu assento, na parte de maior destaque no
fundo da sala,
— Atenção... Atenção! Mantenham-se em silêncio para que o
mandado de sua Majestade e a acusação da prisioneira possam
ser lidos.
O representante da coroa levantou-se e, com voz ressonante,
passou a ler as ordens de justiça determinadas por James I da
Inglaterra ao seu tribunal de nobres e juízes.
O olhar de lady Hatton vagou à sua volta, registrando a pre-
sença dos pares do reino vestidos de maneira austera e, abaixo
deles, os juízes de togas vermelhas. Os rostos destes últimos, sob
perucas elaboradas, demonstravam vivacidade e animação, o que
se devia ao fato de o escândalo a ser revelado poder abalar os
alicerces da já enfraquecida coroa.
Os olhos de Elizabeth detectaram logo a família Villiers, a
mãe, lady Compton, de expressão severa, e os três filhos. George
Villiers destacava-se entre eles com o aspecto arrogante e a
recém-assumida atitude regia. O rosto bem-feito mostrava um
sorriso que distendia os lábios sob o nariz fino e aristocrático, e o

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OS AVENTUREIROS

olhar penetrante observava o que se passava logo abaixo.


O sorriso era bem justificado, Elizabeth pensou, pois se
Robert Carr, o conde de Somerset, fosse julgado assassino,
apenas George Villiers, como cortesão, contava com a
possibilidade de se tornar o favorito do rei.
A ruína quase certa de Carr só podia ser encarada com alegria
por Villiers. Já corria o boato de que ele receberia o título de
visconde assim que a sina de Carr estivesse decidida
judicialmente.
Uma sensação de medo tomou conta de Elizabeth ao lembrar-
se do dia em que resolvera ligar o próprio destino ao de Robert
Carr, sua esposa, Francês Howard, e a família Howard.
Tinha sido numa época de chuva e vento da primavera de 1613
em que a lindíssima jovem a havia procurado. Nesse tempo,
Francês ainda era Lady Essex.
— Por favor, lady Hatton, não sejamos tão formais, pois eu
gostaria de manter mais intimidade com alguém de quem espero
receber um grande obséquio — disse ela.
Um arrepio percorreu a espinha de Elizabeth e lhe levantou
os cabelos da nuca. Conhecia bem os Howard. Thomas, o
primeiro conde de Suffolk, e a mulher, a mãe de Francês,
formavam um casal ladino, que, sem escrúpulos, tinha usado o
favoritismo do rei James para acumular enorme fortuna. Era de
conhecimento geral a atração que sentiam pelo ouro e a falta de
vergonha com que se apossavam dele. Era de se supor que a filha,
a exemplo dos pais, seguisse a mesma trilha.
Achava uma incógnita o fato de a moça vir procurá-la.
Elizabeth já não gozava de simpatia na corte por causa do marido
advogado, sir Edward Coke, que insistia em desafiar o direito
divino de o rei governar. Portanto, o que Francês esperava
ganhar à custa de um relacionamento com uma mulher que não
contava mais com o beneplácito do rei James e da rainha Anne?
E, se era verdade o que as más línguas diziam, existia uma
segunda razão, e bem poderosa, para que Francês não precisasse
do auxílio de fora de seus círculos.

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OS AVENTUREIROS

Lady Hatton molhou os lábios num gesto nervoso e disse:


— Será um prazer se lhe puder ser útil em alguma coisa,
porém confesso que estou surpresa. Já ouvi falar, Francês, que
você se encontra bem perto de alguém que poderá lhe garantir
toda a sorte de favores.
Pela reação da moça, Elizabeth percebeu que os boatos a
respeito da ligação dela com o cortesão predileto do rei, Robert
Carr, eram verdadeiros. Francês, entretanto, assumiu uma
atitude recatada.
— Isso já foi verdade, mas deixou de ser.

Calou-se, então, como se estivesse pesando as palavras antes


de enunciá-las. Os olhos azuis assumiram uma expressão fria e
vidrada <|iie fez Elizabeth lembrar-se de que Francês gozava a
fama de ser astuciosa demais para a idade nas tramas que tecia
na corte. O olhar calculista e duro com que era fitada parecia
dizer-lhe que sua dona conseguiria o que desejava, sem se
importar com o preço exigido.
Até então, tinham-se mantido em pé e Elizabeth, com um
gesto <ui direção ao fogo crepitante da lareira, apontou as
cadeiras ali i-Tii frente.
Com muito cuidado, as duas se sentaram depois de Elizabeth
ter servido vinho para ambas. Fitou a viaiumU. vo:vi apreensão e
esperou que lhe fosse explicado o motivo de sua presença
inesperada ali.
— Serei honesta e franca — disse ela. — O que começou
como um flerte inconseqüente transformou-se em algo bem mais
profundo. Minha cara Elizabeth, eu gostaria de me casar com Sir
Robert.
A revelação chocante e imprevista fez lady Hatton estremecer
c quase entornar o vinho sobre a saia nova de cetim que vestia.
A moça estaria louca? Seis anos antes, quando contava apenas
treze de idade, a lindíssima Francês, a mais destacada das filhas
da família Howard, casara-se com Robert Devereux, o terceiro
conde de Essex. O rapazinho, que tinha só quinze anos, era filho

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OS AVENTUREIROS

do cortesão predileto da rainha Elizabeth, decapitado em


Gallows Green por causa de sua ambição desmedida. Quando o
jovem recebeu de volta as propriedades da família, foi advertido a
não seguir os passos do pai, e o casamento precoce, unindo as
famílias de Essex e Howard, tinha em vista mantê-lo fora de
complicações.
Como os noivos eram muito novos, Essex foi enviado ao
exterior a fim de aprender as artes militares e Francês deveria
esperar, em Suffolk, sua volta, quando então consumariam o
casamento.
Entretanto, à semelhança de lady Hatton anos atrás, ela era
voluntariosa e independente. Não desejava, de forma alguma,
gastar dias da juventude enterrada no campo. Preferia bem mais
ficar em Londres, onde poderia conviver com cortesãos
elegantes, freqüentar teatros e ouvir os relatos dos últimos
escândalos provocados pelo nobres.
Assim, Francês instalou-se na capital do reino e sua
extraordinária beleza logo atraiu a admiração dos elegantes
freqüentadores de Whitehall. Entretanto, ela não deu atenção a
ninguém, exceto ao próprio filho do rei James, o popular Henry,
príncipe de Gales.
O relacionamento entre ambos incentivou as más línguas,
que deliciaram-se com mais esse escândalo entre os muitos
ocorridos na corte, onde o monarca, de costumes dissolutos,
adorava tanto homens como mulheres.
Mas o jovem Henry havia ficado doente e morrera. Francês,
agora, lançava a rede a fim de apanhar um peixe quase tão
grande quanto o primeiro.
Elizabeth, ao replicar, o fez com voz incrédula.
— Então, depois do príncipe, deseja para si o predileto do
rei? Como pode se esquecer de que é casada? Acredito que esteja
um tanto louca!
— Estou mesmo, mas de amor — Francês respondeu com um
sorriso modesto.
— Sir Robert retribui o seu afeto?

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OS AVENTUREIROS

— Está também apaixonado por mim, porém não quer


assumir compromisso algum por causa do meu estado civil. Além
do mais, o amigo e conselheiro dele, sir Thomas Overbury, é
completamente contra a nossa união. Esse é um aspecto que, de
certa forma, pode ser resolvido — Francês declarou e fez um
gesto com a mão cheia de anéis como se não quisesse entrar em
detalhes. — Eu gostaria, Elizabeth, de anular o meu casamento
infantil com milorde Essex.
Lady Hatton sacudiu a cabeça, entre surpresa e incrédula. O
nervosismo provocado pela visita inesperada transformava-se em
medo.
— A anulação de um matrimônio altamente considerado
como o seu, Francês, é quase impossível.
— Eu sei — a moça concordou com um sorriso sagaz e
traidor da falta de nobreza espiritual. — Existe uma saída. Se
quando milorde Essex voltar à Inglaterra eu conseguir provar que
ele é impotente, terei o direito de requerer a minha separação
civil.
— Para tanto, seria necessário também demonstrar a sua
virgindade.
— Exatamente, e é nesse ponto que preciso de sua ajuda,
lady Hatton.
Francês, então, expôs, em detalhes, o plano arquitetado. Eli-
zabeth, a princípio, ficou chocada e, depois, consternada. Ela
própria não fora nenhuma santa preconceituosa, porém jamais
sonhara executar algo tão terrível como o que acabava de lhe ser
explicado.
O aborrecimento sentido era tão profundo que mal conseguiu
pronunciar palavras desconexas de desculpas. Despediram-se,
mas não sem antes Francês arrancar-lhe a promessa de dar uma
resposta, afirmativa ou negativa, no prazo de um mês e também
de não revelar a conversa dessa tarde a ninguém.
Passados alguns dias, o conde de Essex retornava à Inglaterra
e levava a esposa às propriedades de Charticy a fim de consumar
a união conjugai.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

De longe, lady Hatton observava a maneira de Francês


executar o plano elaborado. Ao mesmo tempo que negava-se à
entrega do corpo ao marido, a moça espalhava boatos de que ele
a rejeitava. Orgulhoso, Essex não desmentia as injúrias e
mantinha-se calado sobre o estranho comportamento da esposa.
Nesse período, Francês enviava mensagens constantes a
Elizabeth.
"Por favor, descubra alguma forma de me ajudar assim que
chegar o momento oportuno. Tenho certeza de que já ouviu falar
que o meu querido Robert será agraciado com o título de conde
de Somerset. Garanto que, como condessa de Somerset, eu me
encontrarei em posição de ajudar a minha boa amiga lady
Hatton."
A implicação era clara. Francês, na condição de esposa do
cortesão predileto do rei, poderia solucionar muitos de seus
problemas. E estes não lhe faltavam.
As brigas de Elizabeth com o marido, sir Edward Coke, por v
causa de dinheiro e propriedades, tinham começado no dia do
casamento, há anos, e continuavam inflamadas sem sinal de
tréguas.
Naquele dia mesmo, Coke tinha conseguido adquirir o
controle de seus bens, aliás consideráveis, com a intenção de
forçar Elizabeth a se sujeitar aos mínimos caprichos dele. Devido
à ganância do marido, que cobiçava sua fortuna herdada da
família e do primeiro marido, eles não viviam maritalmente.
Seu tio, Robert Cecil, havia sido seu protetor na corte e uma
armadura contra Coke. Entretanto, o parente predileto, de corpo
franzino e corcunda, com quem compartilhara os maiores
segredos de sua vida, tinha morrido.
O funeral de Cecil fora uma farsa. Os cortesãos bajuladores à
volta do rei James mal puderam esperar o momento de enterrar o
desgastado estadista no túmulo da família em Hatfield House
para voltarem correndo a Londres. Surgia agora a oportunidade
de colherem os frutos financeiros do governo que sir Robert
Cecil, com prudência, protegera contra a ambição desmedida de

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OS AVENTUREIROS

todos eles.
Elizabeth tinha sido a última pessoa a deixar a pequena capela
em Hatfield Garden. Apesar das discussões e diferenças, das má-
goas que o tio lhe causara em nome do dever à coroa e ao Estado,
ela o amara profundamente. Ambos possuíam idéias em comum
e, embora Cecil a houvesse usado para alcançar certos objetivos,
ele jamais deixara de ser seu protetor na corte e de conseguir-lhe
posições de influência. Todavia, ele partira para sempre.
Com a morte de Cecil, a estrela de sir Francis Bacon, antigo
inimigo de Coke, começava a brilhar. Por ser ele rival do marido,
muitas vezes Elizabeth o procurava a fim de pedir auxílio e con-
selhos. Ela não se sentia à vontade na presença desse homem
com olhar de víbora. Porém qualquer pessoa disposta a enfrentar
sir Edward Coke tornava-se de grande utilidade para ela. Infeliz-
mente, um único homem, ou amigo, na corte não era suficiente.
O despropósito do pedido de Francês era tão grande que Eli-
zabeth retraiu-se por um bom tempo. Meses se passaram sem
que ela enviasse resposta alguma a Chartley. Mesmo assim,
continuava a receber mensagens de lá.
"Cara Elizabeth, eu a estou procurando, mais uma vez, porque
o momento decisivo se aproxima. Pense nos dois casamentos que
lhe foram impostos e nas várias ocasiões em que afirmou, publi-
camente, jamais permitir que sua filha Brenna se casasse com
alguém não escolhido por ela.
Pense em mim, eu lhe suplico, como uma segunda filha que
gostaria de fazer a sua própria escolha. Até meus pais concordam
com os meus planos, e eu fiz um acordo secreto com o rei para
que sir Thomas Overbury seja colocado na Torre de Londres a
fim de afastar as objeções dele contra meu casamento com o
querido Robert Carr."
A confusão de Elizabeth aumentou ao se inteirar de que o
próprio rei encontrava-se envolvido naquela trama. E a tal ponto
que chegara a recolher na Torre o conselheiro favorito, Overbury,
para que os protestos dele contra o casamento de Francês
Howard e Robert Carr não pudessem ser ouvidos por ninguém. A

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OS AVENTUREIROS

que extremos se recorria na conquista do poder e do favoritismo


e o que se era capaz de fazer para mantê-los depois de os obter!
Overbury sabia que seu posto de poder, inacessível a Carr,
seria usurpado pela voluntariosa Francês, e por isso clamava con-
tra o divórcio entre ela e Essex e o posterior casamento com Carr.
Lady Hatton reconhecia poder continuar vacilando até o dia
em que não fosse mais possível dar, ou negar, seu auxílio a
Francês. Era isso que pretendia fazer e assim manter-se neutra
naquele caso escabroso. Entretanto, sir Edward Coke apareceu
em Hatton House com mais uma petição preparada com o
intuito de enfurecê-la e tirar-lhe outros tantos direitos. Elizabeth
mal podia imaginar que a visita iria influenciá-la na eventual
decisão.
— Madame, eu lhe pediria que se comportasse com um pouco
mais de civilidade e me tratasse como visita, já que não o faz
como a um marido! — protestou ele, enfurecido.
— Sir, pode continuar em pé, pois só posso tratá-lo como o
pedinte pretensioso que é. Tenho certeza de que sua presença
aqui é motivada pelo desejo de arrancar algo de mim. Diga logo o
que quer.
Os olhos de sir Edward brilharam com a fúria que também o
fez enrubescer. O que acabava de ouvir era verdade, porém
odiava reconhecer isso, mesmo a si próprio.
"Por que essa bruxa não pode ser dócil como Bridget?",
pensou ele. Bridget, a primeira esposa de Coke havia cuidado da
casa, dado-lhe filhos e mantido uma atitude pacífica no
cumprimento dos deveres conjugais. Elizabeth não só não era
servil como também mantinha o nome do primeiro casamento e
negava-se a viver com ele.
— E então? — lady Hatton insistiu.
Com um gesto nervoso, sir Edward folheou o maço de papéis
que tinha nas mãos e separou alguns que lhe entregou.
Um a um, Elizabeth leu, assinou e devolveu, exceto o último,
que manteve em seu poder.
— O que vem a ser isto?

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OS AVENTUREIROS

— Um mandado — Coke respondeu com o olhar fixo na


parede atrás dela.
Lá havia uma tapeçaria vista por ele mais de uma centena de
vezes e aquele súbito interesse pela peça não passou
despercebido a lady Hatton. Ela era uma pessoa astuta que, após
a morte do primeiro marido, havia investido a herança recebida
de maneira tão inteligente que a aumentara muito.
— Vejo que é um mandado, sir Edward, e incompleto.
Por uma fração de segundo, os olhos dele focalizaram os
papéis nas mãos, mas voltaram, em seguida, para a tapeçaria.
— Desejo ver o resto do documento — Elizabeth insistiu
peremptória.
— Não há necessidade.
— É claro que há, sir! — retrucou ela com tal aspereza na voz
que o fez desviar os olhos da tapeçaria e fitá-la.
— Para o inferno, mulher! A senhora é a esposa e eu o
marido, pelo menos no papel, se não o somos de fato! Isso me dá
o direito de gerir os negócios da família!
— Não até que eu saiba de suas pretensões quanto ao resto
do meu patrimônio — declarou ela com voz imperiosa.
Fitaram-se por sobre a escrivaninha que se interpunha entre
ambos, Elizabeth com os lábios cerrados e o porte ereto que não
se curvava em sinal de submissão, e Coke trêmulo de raiva
impotente e olhar fuzilante.
— Madame, a senhora é de tal insolência...
— E o senhor, pelo seu desrespeito aos meus desejos, não
passa de um patife atrevido!
— A senhora assinará — rugiu ele.
— Não até saber do que se trata.
— Elizabeth, é um mandado para permitir a transferência da
mansão de North Elmeham em Norfolk.
— Isso não pode passar de uma brincadeira de mau gosto! —
Elizabeth declarou, atônita. — Elmeham é a única fonte de renda
pessoal que o senhor me deixou e a base do dote de Brenna para
quando ela se casar.

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OS AVENTUREIROS

— Farei outros arranjos nesse sentido e dou-lhe minha


palavra de que aumentarei a parte de seus vencimentos
provenientes de outras propriedades.
— Sua palavra, sir Edward? — replicou ela com sarcasmo.
— Como todos os seus compromissos, ela balança tanto
quanto o traseiro de um asno.
Coke virou-se da janela e aproximou-se para enfrentá-la de
novo. Com os. dentes cerrados, falou:
— Deve ser do seu conhecimento que a minha nomeação ao
cargo de juiz do Supremo Tribunal do rei não passou de uma
promoção apenas de prestígio e de nenhuma compensação finan-
ceira. Isso me atrapalhou muito.
Naturalmente Elizabeth sabia que a função anterior do
marido, no posto de procurador geral, era muito mais lucrativa.
Por essa razão é que sir Francis Bacon, o ferrenho inimigo dele,
cobiçara o cargo com tenacidade e acabara conquistando-o em
1613. Secretamente, ela havia estimulado Bacon nessa luta contra
sir Edward.
Agora tinha a impressão de que Coke procurava vingar-se
dela pela atual diminuição de rendas. Talvez tivesse errado ao
aliar-se a sir Francis, raciocinou ela. Resolveu atacar o marido de
outra forma.
Era do conhecimento geral que Coke e o rei haviam discutido
sobre o direito de James governar. Sir Edward, com a costumeira
falta de tato tinha feito declarações públicas a esse respeito sem
se importar com as conseqüências.

— Sou de opinião que o rei James é um homem com


capacidade extraordinária para prejudicar a si mesmo, ao nosso
país e à lei — dissera. — Pretensiosamente, ele se considera
senhor da vida e da morte. Como prova disso, basta lembrar que,
ao entrar na Inglaterra, ele decidiu que um ladrão subisse à forca
sem antes ser julgado.
E assim, Coke, chegando aos limites da traição, continuara
suas pregações contra o direito divino do soberano.

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

O rei James, irritado, respondera à altura:


— Preste bem atenção, sir Edward Coke. E contra a legalidade
duvidar do poder real. A prerrogativa absoluta da coroa não é
assunto para os discursos de um advogado, e afrontar a nossa
palavra constitui crime. Não reconhecer os atos de Deus é
ateísmo e blasfêmia. Como o meu reinado é um desígnio divino,
parece-nos altamente desrespeitoso que um súdito como o
senhor despreze o que Nosso Senhor determinou que o rei
fizesse!
— Se o senhor não houvesse sido tão intransigente e claro
nas suas condenações dos direitos divinos do rei, talvez tivesse
mantido sua posição de influência na corte e não se tornado
vulnerável à força de vontade e determinação de Bacon. A culpa
foi sua.
— Elizabeth, meus problemas com esse cavalheiro nefando
não se originam nesse ou naquele fato. A realidade, no momento,
é que nossa família, por causa do ocorrido, encontra-se em
dificuldade financeira.
— Sir Edward, durante estes anos todos de nosso casamento,
o senhor me roubou as propriedades de Stoke Poges, usou os
lucros provenientes de Purbeck, vendeu Holdenby, controla
todas as minhas outras rendas e só me fornece umas migalhas
miseráveis para a manutenção de Hatton House. E agora deseja
que eu abra mão da única garantia do futuro de nossa filha?
— Nossa filha, Elizabeth?
A raiva cresceu-lhe no peito e ela já se dispunha a refutá-lo,
mas, ao pensar melhor, sentou-se à escrivaninha com um sorriso.
— Ela leva o seu nome, sir Edward. Creio que essa constitui a
única coisa que o senhor lhe deu de boa vontade.
— Recusa-se, então, a assinar?
— Vou pensar sobre o caso. Passe bem, sir Edward. Elizabeth
podia jurar ter vislumbrado a sombra de um sorriso
•10 rosto do marido enquanto ele se retirava. Ele a havia
deixado nervosa com a referência indireta sobre a paternidade da
filha e tinha consciência disso. Embora nunca expressada por

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OS AVENTUREIROS

palavras, existia a ameaça de que, um dia, Coke revelasse a


Brenna que a mãe já se encontrava no terceiro mês de gravidez
quando se casara com ele.
A filha ficaria desolada. Apesar das desavenças constantes e
cruéis entre os pais, Brenna fora ensinada por Elizabeth a amar e
respeitar sir Edward Coke. Se descobrisse que ele não era seu pai,
sentir-se-ia surpresa e profundamente magoada. E de que forma
ela mesma, Elizabeth, seria considerada daí em diante pela filha?
Os ombros de lady Hatton curvaram-se desanimados e os
olhos encheram-se de lágrimas. Brenna constituía seu bem mais
precioso e amado e, menos às custas do sacrifício próprio, jamais
faria qualquer coisa que pudesse magoá-la. Por outro lado, tam-
bém não cederia à mais recente exigência do marido sem pri-
meiro lutar.
Na manhã seguinte bem cedo, procurou sir Francis Bacon
para relatar-lhe seu último problema. Não confiava inteiramente
no homem, porém ele era a única pessoa a quem podia recorrer.
Fez um resumo do assunto discutido na véspera com sir Edward
e das razões apresentadas por ele.
Sir Francis levou dois dias para descobrir os motivos reais es-
condidos na atitude de Coke.
Sem o conhecimento de Elizabeth, existia uma dívida de
North Elmeham para com a coroa. Ao imaginar que, um dia,
poderia tirar a propriedade da mulher, Coke havia transferido o
débito, aliás feito por ele mesmo, para o próprio nome. Agora
via-se obrigado a saldá-lo e sem meios para fazê-lo. Pretendia,
então, antes que a coroa executasse a hipoteca apossando-se do
imóvel, vendê-lo e pagar o que devia ao mesmo tempo que
encobriria a ilegalidade de seu procedimento anterior.
Elizabeth, ao se inteirar de tudo, ficou fora de si. Indagou a
Bacon se não lhe restava algum recurso de que pudesse se valer.
— Minha cara amiga, o procedimento de sir Edward foi
mesmo irresponsável e não de todo legal, porém, dentro dos
direitos que lhe cabem, ele pode gerir a propriedade como bem
lhe aprouver — explicou ele.

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OS AVENTUREIROS

— Pois muito bem — disse ela, furiosa. — Vou levá-lo a Star


Chamber. Tenho certeza de que o conselho do rei reconhecerá o
erro que sir Edward cometeu, como me prejudicou com isso e me
dará ganho de causa!
Sir Francis riu, o que perturbou Elizabeth de maneira
estranha e incômoda.
— O conselho verá tudo direitinho, mas dará ganho de causa
a sir Edward. Ele é o marido, Elizabeth, e a lei, nesse ponto, está
do lado dele.
—- A lei que vá para o inferno!
— Eu não posso mudá-la — contrapôs Bacon.
— Todavia, o rei pode.
— Talvez, porém duvido muito.
— E possível que exista alguém capaz de convencê-lo a fazer
essa alteração — Elizabeth afirmou com voz seca.
Quando, uma semana mais tarde, chegou outra carta de
Chartley Estates, na qual Francês Howard implorava o auxílio de
lady Hatton, ela respondeu concordando.
Poucos dias depois, Elizabeth desceu o Tâmisa na curta
viagem até Lambeth Palace. Acompanhavam-na mais três
senhoras da corte escolhidas pelo conselho de bispos que julgaria
o pedido de divórcio de Francês Howard.
O ponto crucial do processo constituía na afirmação de
Francês, lady Essex, continuar virgem. Se após um exame ficasse
provado que sim, então sua alegação de impotência do marido
seria aceita, e o casamento, anulado. Esperava-se que
comentários sobre as várias aventuras amorosas da senhora em
questão jamais chegassem aos ouvidos dos bispos.
Ciente de que caminhava por trilhas escusas e perigosas, Eli-
zabeth, seguida pelas outras três senhoras, entrou no quarto de-
signado para o exame de Francês.
Minutos depois, uma silhueta feminina, vestida de preto da
cabeça aos pés, juntou-se a elas.
Francês havia insistido com os bispos em se apresentar dessa
forma, pois qualquer outra vestimenta menos sóbria a constran-

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

geria por demais.


Apenas Elizabeth sabia que a moça a ser examinada não se
tratava de Francês Howard, e sim da filha de sir Thomas Monson,
um aliado fiel da família. Também só lady Hatton foi
encarregada de levantar o véu negro e pesado que cobria o rosto
da jovem e identificá-la.
— De fato, esta é Francês, lady Essex — declarara com um
ligeiro tremor na voz.
A moça foi, então, colocada numa cama para ser examinada.
Depois que lhe levantaram a saia, as anáguas e lhe removeram as
peças íntimas, as quatro senhoras, uma a uma, inspecionaram a
parte anatômica em julgamento e deram o veredito.
Uma hora mais tarde, como porta-voz da comissão, Elizabeth,
com as pernas trêmulas, entrou no imenso salão de Lambeth
Palace.
Finalmente encontrou-se, em pé, diante do júri de bispos ves-
tidos de togas negras e carmesins e cujos olhares penetrantes
pareciam vasculhar-se a mente a ler a verdade. — Lady Hatton.
— Milordes.
— A senhora e suas companheiras examinaram Francês Ho-
ward Devereux, condessa de Essex?
— Examinamos Milordes.
— E qual a conclusão a que todas chegaram?
— Nós a declaramos virgem — replicou ela.
As oito cabeças, com expressão solene, sacudiram, e
Elizabeth, depois de um suspiro abafado de alívio, virou-se e
deixou o salão.
"Pelo menos, a última afirmação não foi mentira", ponderou
ela, pois a moça examinada mantinha, ainda intacta, a
virgindade.
Três semanas mais tarde, o conselho de bispos decretou a
nulidade do casamento de Francês com o conde de Essex. No dia
seguinte, sob as bênçãos do rei, ela se casava com Robert Carr, o
cortesão predileto de James.
Entretanto, nesse meio tempo, a única voz que se pronunciara

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OS AVENTUREIROS

contra o enlace calou-se para sempre. Sir Thomas Overbury,


ainda encarcerado na Torre de Londres, faleceu de moléstia
desconhecida.
A voz do representante da coroa mudou de tom e trouxe o
pensamento de Elizabeth de volta ao presente. A ordem real de
justiça já tinha sido lida e ele agora prosseguia com a acusação.
— ...a referida pessoa, Francês, condessa de Somerset,
quando ainda sob o título de condessa de Essex, arregimentou as
pessoas Elways, Tumer e Weston e com elas conspirou a fim de
assassinar, através da ingestão de veneno, o nobre do reino, sir
Thomas Overbury.
A leitura continuou, porém Elizabeth já não a ouvia mais. Os
olhos embaçaram-se e ela pensou que fosse desmaiar.
Assassinato. Seria isso que teria vislumbrado no olhar de
Francês naquela tarde distante em Hatton House?
Francês tinha, realmente, conseguido a colaboração da Sra.
Turner, uma necromante e vendedora de poções afrodisíacas.
Depois havia subornado Elways, o tenente da Torre, e Weston, o
carcereiro de sir Thomas Overbury, para que lhe ministrassem o
veneno fatal.
Os três já tinham confessado, sido julgados e enforcados
havia algum tempo.
"Deus do céu", Elizabeth ponderou, "como dependemos de
astrólogos, necromantes e cartomantes para satisfazer nossas
ambições! Quase tanto quanto necessitamos de médicos,
parteiras e enfermeiras para cuidarem de nossos corpos".
Mais uma vez, imaginou se, naquela tarde, Francês já havia
pactuado com a Sra. Turner com o intuito de calar Overbury
através de um dos muitos venenos, como arsênico ou mercúrio, a
que a necromante tinha acesso.
Dizia-se, à boca pequena, que o próprio rei havia usado uma
poção letal para dar fim à vida do seu primogênito, Henry, que,
ainda jovem, tornara-se mais popular do que o pai.
A lembrança fez Elizabeth estremecer e, novamente, tocou,
num gesto nervoso, a imensa pérola do pendente, que preço teria

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

de pagar por esse presente e pela intercessão de Francês, junto ao


rei, em seu favor? Ela também tinha sido requisitada para
desempenhar um papel naquele escândalo. Poderia sua mentira
sobre a virgindade de Francês ser descoberta durante o
julgamento? Se assim fosse, qual seria seu castigo?
— Atenção... Atenção! Tragam a prisioneira ao plenário do
júri! Ouviu-se um murmúrio abafado de vozes seguido por um
silêncio sepulcral. Todavia, com o surgimento da condessa de
Somerset na passarela que levava à frente do tribunal, uma excla-
mação irrefreável percorreu o ambiente.
Bem devagar, Francês foi conduzida pelo recém-nomeado te-
nente da Torre, sir George More. Embora seus passos demons-
trassem firmeza, o porte já não exibia a pose confiante e
audaciosa que Elizabeth conhecia tão bem.
A silhueta pequena e esguia estava vestida de preto e sem os
exageros da moda. As mangas compridas não eram bufantes nem
apresentavam cortes longitudinais. Um capuz cobria-lhe a
cabeça toda, e não ostentava jóias ou rendas.
"Um apelo aos puritanos que se encontram entre os jurados",
Elizabeth ponderou, desgostosa.
Francês chegou à frente do plenário do júri onde executou
três curvaturas: ao lorde do Supremo Tribunal, aos juízes e aos
pares da reino. Depois, permaneceu ereta, com as mãos
enlaçadas à frente.
Lady Hatton soltou uma exclamação abafada ao ver o olhar de
Francês levantar e fixar-se no seu por uma fração de segundo.
Ouviu, então, um gemido baixinho ao seu lado e a voz de Brenna.
— Ela é lindíssima e parece tão inocente!
Conseguiu concordar apenas com um aceno de cabeça. De
fato, o rosto pálido de Francês transmitia a mensagem
enganadora de pureza e falta de culpa. Todavia, nos olhos
enormes e amendoados, Elizabeth podia distinguir a expressão
que dominara tantos homens e causara a morte de, pelo menos,
um.
A acusação foi lida de novo e os lábios de Francês começaram

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OS AVENTUREIROS

a tremer. Uma lágrima escapou-lhe de um dos olhos e rolou pela


face. Num gesto incerto, ela ergueu o leque e cobriu o rosto.
Terminada a leitura, o lorde do Supremo Tribunal se levantou
e inquiriu:
— Aqui estão os fatos. Haverá entre os presentes alguém que
deseje acrescentar algo?
Temerosa, lady Hatton prendeu a respiração. Era chegado o
momento em que sua atuação no caso poderia ser revelada. Se
não o fosse agora, não seria jamais.
Desviou o olhar para o conde de Essex. Será que o homem
aproveitaria a oportunidade a fim de revelar a verdade sobre o
divórcio dele e assim limpar o nome e a reputação? No entanto,
ele se conservou imóvel e com expressão distante.
— Lorde Essex? — insistiu o magistrado.
Mais uma longa pausa em que o coração de Elizabeth batia
descompassado na expectativa da revelação que a incriminaria
sem complacência.
— Não, sir — Essex murmurou. — Prefiro manter-me, como
até agora, calado.
Lady Hatton suspirou longamente de alívio. Os ombros
curvaram-se e a cabeça pendeu para a frente.
— Que assim seja — entoou o magistrado antes de sentar-se
novamente.
O meirinho inquiriu a seguir:
— Francês, condessa de Somerset, o que declara em relação
ao seu comportamento desonroso e conseqüente assassinato,
culpada, ou não?
Houve um momento de tensão palpável durante o qual todos
se inclinaram para ouvir a resposta murmurada:
— Culpada, sir.
O lorde do Supremo Tribunal recebeu o bastão branco,
símbolo de seu alto posto, e inclinou-se para a frente.
— Francês, condessa de Somerset, como foi trazida a este tri-
bunal, acusada e se confessado culpada, cabe a mim o dever de
julgá-la.

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OS AVENTUREIROS

Todos os olhares volveram-se para a figura pálida em frente


ao plenário do júri.
— A ré será conduzida à Torre de Londres, de onde será
levada ao patíbulo de execução. Lá será enforcada até que toda a
vida de seu corpo se extinga. Francês, condessa de Somersert,
que Deus tenha piedade de sua alma.
Ao lado da mãe, Brenna permitia que as lágrimas corressem
livremente pelas faces.
"Como você choraria, minha queridinha", Elizabeth pensou,
"se soubesse a verdade toda".

CAPITULO IV

FRANÇA

A volta da abadia de Fontevrault, a noite animava-se com o


coro dos grilos e o ruído de pequenos animais notívagos. The
O’Donnell, de uma das janelas mais altas, contemplava as terras
pantanosas e tão estranhas para ele e seus sentidos.
Embora isso o magoasse, não podia deixar de compará-las
com sua querida Irlanda. Como ansiava poder aspirar o perfume
das urzes e encontrar-se novamente no alto castelo de Donegal,
sentindo o vento vindo do mar a fustigar-lhe o rosto e deixando o
olhar vaguear pelos penhascos ao redor da bala de Donegal!
Havia nove longos anos que esses prazeres lhe tinham sido
tirados. Todavia, se fechasse os olhos, Rory O’Donnell podia
rever os fatos na memória como se tudo houvesse acontecido na
véspera. Lá estava The O’Neill a seu lado na murada do navio
veleiro que se afastava de Lough Swill enquanto os rochedos
coloridos de Malin Head desapareciam na bruma.
Conseguia ainda ouvir o velho conde murmurar com voz em-
bargada e olhos úmidos: "Ah, minha Irlanda! Hoje és uma ilha
desolada. Se existe Deus, que ele te ampare e traga, um dia, teus

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OS AVENTUREIROS

filhos de volta."
Naquela noite distante, O’Donnell pensava na rebelião infru-
tífera que, derrotada, os fizera perder todos os bens, tanto mate-
riais como espirituais e morais.
Entretanto, durante aqueles anos todos, as palavras de O’Neill
voltaram-lhe com freqüência à mente até parecerem gravadas a
fogo: “... traga, um dia, teus filhos de volta."
Restavam tão poucos deles... Maguire e os parentes tinham
morrido em Genebra; Sullivan fora assassinado em Roma, prova-
velmente pelos mesmos agentes do castelo de Dublin que haviam
esfaqueado Cahir O’Dogherty ainda na Irlanda antes que ele pu-
desse fugir.
Quase todos os chefes de clãs, antecessores à fuga dos condes
após o fracasso da revolta contra Elizabeth da Inglaterra,
encontravam-se mortos. Os que ainda estavam vivos mostravam-
se alquebrados demais para enfrentar uma nova tentativa de
rebelião. O próprio O’Donnell, por causa dos ferimentos físicos e
morais, sentia-se velho e desgastado, embora contasse apenas
quarenta e sete anos de idade.
O grande O’Neill, o único chefe que conseguira unir os clãs
beligerantes da Irlanda e convencê-los a lutar contra a Inglaterra,
o inimigo comum, havia partido desse mundo.
O’Donnell enxugou as lágrimas surpreso de que ainda lhe res-
tassem algumas. O’Neill, velho, cego, cansado da vida e das lutas
que enfrentara, havia morrido em Roma, dois dias antes do fale-
cimento do único filho que lhe restava.
O rei da Espanha enviara condolências, e o papa Paulo V, um
emissário com a sua bênção. O funeral fora realizado com a
pompa e honraria dignas do grande guerreiro que por pouco não
salvara a fé religiosa da Irlanda da heresia inglesa.
Tudo aquilo deprimira e desgostara O’Donnell. Não adiantava
aclamarem O’Neill depois de sua morte quando haviam se
omitido em ajudá-lo com o envio de armas e tropas de que ele
tanto necessitava na guerra quase vitoriosa.
— Que os meus ossos possam, um dia, descansar no solo

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OS AVENTUREIROS

irlandês — murmurara o velho líder antes de se calar para


sempre.
Até o final, ele apertara entre os dedos a pequena bolsa com
terra da Irlanda e pedregulhos do trono de rocha, em
Tullaghogue, usado na coroação do clã O’Neill e que os martelos
dos soldados de lorde Mountiov tinham destruído.
O’Donnell duvidava de que pudesse satisfazer a vontade do
velho amigo e companheiro. Talvez, num futuro distante, um da-
queles filhos que O’Neill pedira a Deus para levar de volta à
Irlanda conseguisse executar tal tarefa.
O ruído manso da porta que se abria e fechava anunciou a
entrada de alguém, mas O’Donnell não se virou, pois sabia de
quem se tratava. A oração vespertina já havia terminado, e a irmã
Anna, como fazia todas as noites, tinha vindo até ali em cima, em
seu escritório, para tomar um copo de vinho em sua companhia e
conversar um pouco.
Ouviu o barulho da garrafa sendo aberta e o gorgolejar da
bebida que ela servia.
— Parece que vai chover e já esfriou bastante — comentou
ele ainda de costas.
— Uma boa razão para você não continuar aí exposto ao ar
da noite.
De repente, como se a menção do frio precisasse de uma
prova, o corpo alto e magro de O’Donnell foi sacudido por um
forte acesso de tosse. No mesmo instante, a silhueta pequenina e
envolta em negro da irmã Anna achava-se ao lado dele e fechava
a janela.
— Bem que o avisei. Creio que você apanhou essa horrível
febre romana — afirmou ela ao mesmo tempo que o forçava a se
aproximar da lareira acesa.
Porém, antes que ele se sentasse, a irmã apanhou uma capa
de veludo do encosto de uma cadeira e, carinhosamente, cobriu-
lhe os ombros. Depois, passou as mãos pela gola de pele e pelo
tecido já bem gastos.
— Você devia permitir que eu pedisse às irmãs para lhe

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OS AVENTUREIROS

fazerem um novo manto. Este está velho demais.


— Não! Este é o manto de The O’Donnell e a sua aparência
envelhecida e gasta combina bem com a imagem do clã que ele
representa. Antes de mim, meu pai e meu irmão o usaram. Será a
mortalha adequada para mim.
As mãos da irmã Anna crisparam-se no peito.
— Quero que me prometa não tornar mais a falar em morte
— disse ela com intensidade no olhar.
— Prometo, Annie — O’Donnell respondeu com o antigo
sorriso que lhe acentuava as rugas.
A irmã Anna corou e virou-se depressa com a desculpa de
apanhar os copos de vinho. Só mesmo O’Donnell haveria de
cometer a imprudência de chamá-la, ainda, pelo nome de
batismo. Cada vez que ele o fazia, via-se inundada por
lembranças do passado que não condiziam muito com o hábito
de freira usado agora nem com sua condição de esposa de Cristo.
— Tome o seu vinho — disse ela entregando-lhe o copo. — É
um bom remédio para o seu peito.
— Preferiria bem mais tomar um bom gole de uísque baugh
irlandês! — O’Donnell reclamou.
— Disso não tenho a menor dúvida — afirmou ela ao mesmo
tempo que se sentava e erguia o copo num brinde. — A milady
Deirdre.

— E ao filho dela, a quem estrangularei se não chegar aqui


dentro de uma hora.
A irmã Anna apertou os lábios numa expressão séria, fez o
sinal da cruz e tomou um gole do vinho.
O’Donnell estudou-lhe as feições sob o reflexo do fogo. No
olhar ainda remanescia um pouco do brilho antigo que lhe
chamara a atenção ao conhecê-la, há muitos anos, numa taverna
em Southwark, do outro lado do Tâmisa e da cidade de Londres.
Ela contava apenas treze anos, tinha sido uma meretriz das ruas
e se tornara amante de Ned Buli, um assaltante perigoso de
estradas.

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OS AVENTUREIROS

O dedicado Ned tinha morrido por causa da lealdade a Rory


O’Donnell. Annie Carey sobrevivera e lutara a seu lado contra os
ingleses. Como tudo havia mudado! O ódio desaparecera e ela
adotara a religião de lady Deirdre, a quem havia amado profun-
damente. Depois, fizera os votos de religiosa e agora, estava
prestes a se tornar a abadessa de Fontevrault.
Rory O’Donnell não se cansava de agradecer a Deus por essa
bênção. Antes da execução de Ned no patíbulo de Tyburn Tree,
ele havia prometido cuidar da segurança de Annie. Ela, agora,
encontrava-se não só segura como também serena e feliz. Não foi
possível suprimir o riso.
— Do que está rindo? — a irmã Anna quis saber.
— Não posso deixar de imaginar o que Ned pensaria se
pudesse saber que a sua pequenina Annie logo vai ser abadessa.
— Creio que ele se sentiria orgulhoso.
— Concordo — disse Rory O’Donnell ao notar ò tremor em
sua voz. Mantiveram-se algum tempo em silêncio, com os olhos
perdidos nas chamas crepitantes, antes que O’Donnell
perguntasse:
— Na sua opinião, The O’Hara vai dar importância as últimas
notícias da Inglaterra?
— Não costumo levar em consideração o que o louco do seu
afilhado faz e não posso imaginar qual será a reação dele ao saber
que já pode reclamar seus direitos.
— Seria tão bom se Shanna tivesse o temperamento de Rory
e vice-versa! Se fosse assim, mal se inteirasse da situação, ele
partiria para Calais e Londres. No entanto, Rory se afrancesou
por completo e esqueceu o sangue irlandês.
— Talvez, O’Donnell, seja melhor que ele continue a fazer a
vida aqui na França.
— A serviço daquele italiano bastardo? — replicou ele,
furioso, mas caiu em si e desculpou-se imediatamente: — Perdão
pela falta de controle, irmã.
Numa voz calma, a irmã Anna tentou explicar a situação a fim
de evitar que as diferenças entre os dois homens a quem mais

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OS AVENTUREIROS

queria bem não aumentasse.


— Foi você, O’Donnell, que conversou com Richelieu e o
convenceu do valor de Rory. Através de sua influência ele
conseguiu ir para Navarre e aprender as artes marciais.
— Uma profissão muito honrada — O’Donnell defendeu-se.
— Pois se Richelieu colocou Rory na guarda de Concini e ele
se acomodou por lá, a responsabilidade é, em parte, sua. É
preciso reconhecer isso.
— Eu sei, mas minha intenção era bem outra. Quis que Rory
freqüentasse Navarre a fim de se preparar para o dia em que
pudesse lutar pelos direitos dele na Irlanda. Arrependo-me amar-
gamente por tê-lo trazido da Itália. Rory, agora, não passa de um
vaidoso que se pavoneia com plumas no chapéu para esconder a
falta de miolos. Teria sido melhor se eu o tivesse mandado para a
Espanha. Veja o caso de Owen Roe O’Neill. O rapaz é só um ano
mais velho do que Rory e vem se distinguindo no Exército
espanhol. Não duvido que logo seja promovido a general. E o que
faz o dono do manto do clã O’Hara? Ele...
Um novo acesso de tosse fez tremer o corpo de O’Donnell.
Num instante, ele tinha mais vinho no copo, servido pela solícita
irmã Anna. Contudo, ele deixou que a convulsão do peito
seguisse seu curso e só então sorveu um gole da bebida, que lhe
queimou a garganta dolorida.
— Você está mesmo com febre — a irmã declarou num tom
de voz preocupado.
— E só um pouquinho — contestou ele ao mesmo tempo que
lhe inclinava a cadeira para sentar-se de novo e voltava a fixar os
olhos nas chamas da lareira.
Uma onda de remorso ameaçou formar-se em seu âmago. Ele
a abafou com mais um gole de vinho e levou a outra mão ao
peito.
Dizia-se que a Irlanda Gaélica estava destruída e condenada a
perdição. Colonos ingleses tinham se dirigido, em bandos, ao
norte de Erin depois da fuga dos condes. Assim que chegou a
Londres a notícia de que os nobres de Ulstar haviam abandonado

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OS AVENTUREIROS

a terra natal, começaram a se fazer proclamações. Quase todas as


terras nos condados de Armagh, Tyrone, Coleraine, Donegal,
Permanagh e Cavan tinham sido confiscadas e distribuídas entre
os homens cujas convicções religiosas estavam de acordo com as
da coroa inglesa e do castelo de Dublin.
As próprias terras de O’Donnell e seu amado castelo de
Donegal tinham ido parar, por ordem do governo inglês, nas
mãos de um tal sir Basil Brooke.
— Um inglês desgraçado, um saxão pisoteando os corredores
e as salas de Donegal!
— O quê? — a irmã Anna perguntou.
— Nada — O’Donnell respondeu ao perceber como dera para
pensar em voz alta ultimamente.
Mais uma vez com os olhos fixos no fogo, ele deixou as
reflexões à solta. Estaria tudo terminado com a morte de O’Neill?
Agora, após as duras guerras de mais de quatro séculos de
duração, desde os tempos de Richard de Clare, chamado de
Strongbow e iniciador da conquista inglesa, estariam os
irlandeses reduzidos à condição de vassalos da coroa da
Inglaterra? Surgiria, novamente, um movimento em prol da
independência? Talvez não, mas pelo menos um irlandês poderia
reivindicar seus direitos e herdar algo dos escombros restantes.
— Ele o fará! — O’Donnell exclamou.
— Quem e o quê? — a irmã Anna quis saber.
— O nosso Rory. Desculpe, pensei em voz alta de novo.
— Foi o que percebi — replicou ela com uma expressão tão
estranha que O’Donnell a fitou, surpreso.
Seu olhar estava fixo no medalhão que, sem perceber, ele
tinha aberto.
— Já deve estar uma mocinha.
— Dezessete anos — contou ele cheio de melancolia
enquanto olhava o retrato em miniatura.
— Você pensa muito nela?
Não era mais a irmã Anna quem falava e sim Annie Carey, a
velha amiga.

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OS AVENTUREIROS

— Talvez mais do que devesse — O’Donnell admitiu ao con-


templar a mulher de cabelos castanho-dourados e olhos verdes e
a menininha de cachos negros tão parecida com ele mesmo.
— Aposto que ela é linda!
— Deve ser, mas freiras não fazem apostas.
— Um dos velhos hábitos que não perdi — disse ela com um
riso franco ao levantar o copo. — O amor verdadeiro não é
pecado aos olhos de Deus. A sua filha e a lady Hatton!
— Espero que a filha encontre o que a mãe perdeu. A Brenna
Coke, a quem desejaria poder chamar de O’Donnell
— disse ele também com o copo erguido.
Enquanto caminhava agitado de um lado para o outro,
Armand de Richelieu aconchegou mais a batina roxa de bispo à
volta do corpo magro. Embora a noite estivesse quente e as
janelas de seus aposentos que davam para a rua dês Mauvaises-
Paroles estivessem fechadas, ele sentia frio, sintoma provocado
pela recorrência da febre apanhada na juventude nas terras
pantanosas ao redor de Poitou, onde nascera.
A dor de cabeça latejante piorava com o passar dos anos. Esse
sofrimento constante teria levado um homem menos forte ao
leito, porém o bispo de Luçon preferia ignorá-lo. Richelieu tinha
uma missão a cumprir, não lhe deixava tempo para se preocupar
consigo mesmo.
— As notícias que me traz têm muito peso — o bispo
declarou com voz sonora ao virar-se para o homem vestido de
roupa escura que se encontrava, em pé, perto da janela. — Tem
absoluta certeza de que são verdadeiras?
— Tanta a ponto de eu mesmo cruzar o canal para informá-
lo pessoalmente em vez de enviar um mensageiro. Os cortesãos,
em Londres, ficam com a língua solta assim que se sentam a uma
mesa de jogo. Acredite, Armand, é a mais pura verdade.
O francês do homem era excelente; apenas marcado por um
leve sotaque provocado pela sua língua nativa, o escocês.
As feições de Richelieu mostraram o desapontamento que

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OS AVENTUREIROS

sentia.
— Então James gostaria de solidificar a aliança com a Espanha
através de um casamento, da mesma forma com que a nossa es-
túpida rainha-mãe, Marie de Médicis, fez?
O homem à janela riu.
— E uma pena que os reis espanhóis sejam tão férteis. Eles
procriam infantas como coelhos; uma para a França, e agora
outra já está sendo oferecida no mercado de casamentos.
Os olhos escuros e penetrantes de Richelieu tentaram, em
vão, localizar os do visitante.
— Lamento, mas não posso compartilhar do seu senso de
humor. Por causa da insensatez da rainha-mãe, a Espanha se
tornou uma canga em nosso pescoço lá no sul. Ao norte, estamos
rodeados pelos Hapsburgs e, se a Inglaterra resolver seus
problemas com a corte espanhola, temo que a França se veja
pressionada pelos próximos cinqüenta anos.
— E por isso que desejo me ver fora e longe de toda essa
confusão — o homem declarou ao chegar perto do bispo. —
Durante cinco anos, Armand, eu fui os seus ouvidos do outro
lado do canal. A minha dívida está paga e eu gostaria de me ver
desincumbido dessa tarefa e reivindicar o que é meu.
— Você parou em Poitou a caminho de Paris?
— Parei, sim.
— Falou com a menina?
— Naturalmente.
— Eu jamais deveria ter concordado com o item do nosso
acordo que lhe permitia vê-la — queixou-se Richelieu.
— Todavia, foi o que fez e cimentou nosso acordo.
— E como um malandro e jogador do seu tipo vai poder
cuidar do resto da educação dela? — o bispo desafiou.
— Tenho os meus planos.
— Não diga! — Richelieu exclamou com uma nota proposital
de sarcasmo na voz.
O homem aproximou-se bem até que o bispo pudesse sentir-
lhe o hálito de bebida.

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OS AVENTUREIROS

— Pretendo me afastar dessas tramas políticas. Eu o conheço


bem, Armand, porque, como você, fui astucioso e traiçoeiro.
Agora, não quero mais saber dessas coisas.
O rosto do bispo abriu-se num dos seus raros sorrisos.
— Acredito que você definharia e morreria sem essas
atividades que chama de dissimuladas e falsas. Porém concordo
que manteve sua parte da barganha e eu vou fazer o mesmo. Que
seja assim, mas só lhe peço uma coisa. Continue no seu posto até
que eu encontre um substituto à altura.
Desde que começara a prestar seus serviços ao Estado, o bispo
de Luçon havia encontrado muitos homens do tipo do que tinha
agora em sua presença, cujos olhos e ouvidos eram-lhe muito
úteis no exterior. Através das informações que eles lhe
prestavam, tornava-se possível ficar a par das bobagens
cometidas por Concini no relacionamento com outros países e
corrigi-las. Mas até quando conseguiria fazer isso? Valendo-se da
lisonja e de ardis inteligentes ao tratar com membros do séquito
da rainha-mãe, Richelieu continuava a contar com o favoritismo
de Marie de Médicis. Esse mesmo método estava sendo
empregado em relação a Leonora Concini.
Contudo, não conseguia interferir no poder do marechal.
Concini estava plenamente convencido de que era o rei, embora
não o fosse de maneira oficial.
O bispo massageou as têmporas latejantes e suspirou.
"Com o tempo", pensou "é bem possível que o italiano
provoque a própria queda." Enquanto isso, Richelieu reconhecia,
só ele mesmo conseguiria manter a integridade da França. Para
tanto, precisava contar com o auxílio de homens como esse
escocês que se insinuara na corte londrina.
Um golpe de sorte havia dado a Richelieu o domínio sobre o
estrangeiro. Anos atrás, o homem tivera um caso amoroso com
uma jovem noviça da abadia de Poitou. Quando a moça
descobrira que estava grávida, o amante fora chamado à Irlanda,
para onde. seu regimento havia sido transferido.
Logo após dar à luz uma menina, a noviça falecera e a mãe de

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

Richelieu tomara o bebê sob seus cuidados. Deu-lhe o nome de


Aileen enquanto o filho informava o pai da criança sobre os
acontecimentos.
Nessa época, o escocês tinha dado baixa do Exército inglês e
se estabelecido em Londres, de onde havia mandado buscar a
amante.
Não fora sem certa razão que o papa Paulo V havia predito
que o jovem Armand de Richelieu seria, um dia, um salafrário
muito útil.
A avaliação que o bispo fizera do caráter do escocês mostrara-
se correta. Assim que o homem se inteirara da morte da amante
e da existência da filha, correra a Poitou.

— O que você fez foi muito grave e leviano. Como espera que
eu lhe confie, agora, a criança? Impossível! A menos que prove
seu valor servindo à Igreja e à França, através de mim, por um
período de cinco anos. Só então eu lhe darei a oportunidade de
assumir seus direitos de pai. E, mesmo assim, se a menina con-
cordar — Richelieu exigira.
Sem outra saída, o escocês aceitara o pacto.
Os cinco anos passaram depressa, o que era uma pena, pois o
homem fora um espião excelente, ponderou Richelieu.
Todavia, eleja tinha um substituto em mente. Isso, caso
O’Donnell conseguisse convencer o sobrinho teimoso, Rory
O’Hara, a deixar a França.
Fazia algum tempo que a chuva cala e batia de encontro às
paredes de pedra da antiga abadia, num ruído manso e
acalentador. Ouvia-se ainda, de vez em quando, o estrondo
distante de algum trovão.
A tensão reinante no escritório era tão pesada quanto o
silêncio mantido pelas três pessoas reunidas ali.
Shanna, vestida com um costume de veludo azul-escuro para
montaria, sentava-se, ereta, à mesa. Suas mãos retorciam-se ner-
vosas e o olhar com que fitava o irmão do outro lado da mesa,
embora firme, demonstrava grande apreensão.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

Rory, em pé e com a palma das mãos apoiadas no topo da


mesa, Ha os documentos espalhados entre elas. A medida em
que se inteirava do conteúdo deles, seu semblante tornava-se
mais e mais carregado.
A viagem de Paris a Fontevrault tinha sido cansativa e durara
quatro dias. Eles partiram depois que René lhes conseguira
cavalos do lado de fora da cidade e de Rory ter recebido
permissão para se ausentar.
O’Donnell, ainda envolvido pelo velho manto, mantinha-se
em silêncio, sentado perto da lareira.
Rory largou os documentos na mesa e levantou as mãos até o
rosto. Com delicadeza, massageou os olhos e a testa como se qui-
sesse clarear os pensamentos e, milagrosamente, compreender o
que acabava de ler.
Robert Cecil, conde de Salisbury, lendário pela sua oposição à
Irlanda e ao catolicismo, inimigo declarado de O’Donnell,
O’Hara e O’Neill, havia preparado o caminho para que Rory, The
O’Hara, reivindicasse seus direitos hereditários.
— Parece que não sou muito sagaz — disse ele por fim. —
Por que Cecil, antes de morrer, arranjaria documentos a fim de
me devolver as terras de meu avô na Inglaterra e as de meu pai
na Irlanda? Admito que não entendo.
Shanna soltou uma exclamação de surpresa e correu para o
lado de O’Donnell. Só agora ficava a par do conteúdo dos docu-
mentos e não podia conter a alegria e a excitação.
— Ah, papai, isso é mesmo verdade?
— Você gostaria de se chamar de novo Shanna de Ballylee e
não de Chinon? — perguntou ele com um sorriso.
— O senhor sabe que sim — respondeu ela, enfática,
enquanto se virava para encarar o irmão.
Rory fez-lhe um gesto para que se sentasse ao lado do
padrinho e colocou-se à frente deles, de costas para a lareira.
— Pois muito bem, qual é a explicação?
O’Donnell sustentou o olhar dele com firmeza e sacudiu os
ombros sob o manto pesado.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Já lhe falei sobre a astúcia, dissimulação e poder inquestio-


nável de Cecil depois da morte do pai, lorde Burghley, primeiro
secretário da rainha Elizabeth. Ele era um homenzinho estranho,
de corpo deformado e inteligência brilhante. O nosso amigo aqui
na França, Armand de Richelieu, me lembra muito ele. Como
você sabe, para alcançar certos objetivos, ele não se importa de
cometer uma traição e nem se acanha, ou sente a consciência
pesada, quando se trata de acumular poder. Robert Cecil era do
mesmo feitio e, como Richelieu agora, um homem muito
solitário. No fim da vida, ele tentou reparar os danos causados a
outras pessoas pela sua falta de escrúpulos. Cecil queria a paz.
Preferia a conciliação com a Irlanda a ter de guerrear. Fez de
tudo para conseguir isso.
Sorriu com amargura e acariciou com a mão o medalhão en-
costado ao peito. "De tudo mesmo, até atirar a sobrinha casada
em meus braços para alcançar os próprios objetivos e os da In-
glaterra", rememorou ele. A verdade era que Cecil não poderia
ter imaginado que Elizabeth e O’Donnell se apaixonariam e que
do amor de ambos nasceria uma filha. O estadista também não
fora capaz de prever que, da mesma forma que os unira, acabaria
por forçar a separação definitiva dos dois amantes.
Todavia, essa parte da história pertencia à vida pessoal de
O’Donnell. Era um grande segredo seu e de Elizabeth, e não
havia necessidade de revelá-lo a Rory O”Hara.
Suspirou e fitou de novo o rosto sombrio do afilhado.
— O importante é que Cecil acreditava ter feito um grande
mal a mim, a você e a Shanna. Talvez esses documentos signifi-
quem a maneira encontrada por ele de reparar o erro contra nós.
Isso teria sido impossível depois da morte de lorde Haskins, o seu
avô, pois você era muito pequeno para lutar pelas terras e pelo
título dele. Por essa razão que eu, com o auxílio de Cecil,
escamoteei vocês dois da Inglaterra. Imagino ainda que, quando
as propriedades de Haskins e Ballylee na Irlanda passaram para a
coroa e depois a Robert Carr, o cortesão favorito do rei James,
Cecil deve ter encontrado um jeito de nos recompensar. Essa é a

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

única explicação plausível para esses documentos.


Rory assumiu uma expressão de perplexidade. Apanhou os
papéis de novo e voltou a examiná-los.
— Continuo sem entender. Isto é o direito de confisco dado a
mim pela coroa da Inglaterra caso, um dia, Robert Carr venha a
perder as terras de Haskins e o baronato de Ballylee. Como, em
nome de Deus, Cecil conseguiu que James assinasse tal
documento?!
— Calculo que tenha sido através de seu espírito ardiloso e
sagaz — O’Donnell respondeu rindo.
— Naquela época, James preferia caçar, beber muito e
divertir-se com os cortesãos em vez de preocupar-se com os
negócios de Estado. Provavelmente, Cecil colocou esses papéis
entre outros que o rei teria de assinar, coisa que James fazia
apressadamente, sem se dar ao trabalho de ler.
— Também isso não tem muita importância — Rory
declarou ao colocar os papéis, outra vez, sobre a mesa.
— Afinal, sabemos muito bem que Robert Carr mantém-se,
com firmeza, na posição de favorito de James, esse rei de pernas
finas.
Bem devagar, O’Donnell virou-se na cadeira a fim de fitar
Rory.
— Mantinha-se. Robert Carr, o conde de Somerset, e a esposa
foram declarados réus convictos de assassinato, há quinze dias,
por um júri de seus pares. Foram salvos da sentença de morte
pela graça do rei, porém todas as suas propriedades, exceto a
mansão em Cheswick, foram confiscadas.
— Isso quer dizer que, através da própria assinatura do rei,
nossas terras nos pertencem de novo!
— Shanna disse entre extasiada e perplexa, ao mesmo tempo
que se erguia.
— Não acredito, minha irmã. James é um homem ganancioso
e gastador. Ele há de querer Haskins House e ás riquezas pro-
duzidas nas terras à volta dela — Rory afirmou com expressão de
desgosto e serviu-se de vinho num copo de prata.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

Com o corpo dolorido por estar sentado há tanto tempo,


O’Donnell levantou-se com esforço e aproximou-se do afilhado.
— Tem razão, meu rapaz. Já correm boatos de que essa pro-
priedade será dada ao novo predileto do rei, George Villiers.
— Ouviu bem, Shanna? — inquiriu Rory.
— As terras de Haskins, Rory, e não Ballylee! — O’Donnell
falou com veemência.
— Pelas próprias mãos do rei, você poderá ser o barão de
Ballylee. Não existe um preço sobre a sua cabeça como na minha
e na de muitos outros irlandeses. Você não passava de uma
criança no final da última rebelião. Poderá voltar com Shanna
para a Irlanda, sua terra!
O silêncio que se seguiu foi novamente constrangedor. Os
dois homens fitaram-se com expressões bem diferentes. A de
Rory transmitia preocupação e uma ponta de tristeza, ao passo
que a de O’Donnell, num misto de súplica e felicidade, irradiava
a esperança de que um dos filhos da Irlanda voltasse à pátria.
Os pensamentos de Rory seguiam uma trilha tumultuada. Ele
sabia das vicissitudes enfrentadas pelos nobres da Irlanda que
haviam permanecido em suas terras. Temiam constantemente
que as propriedades fossem confiscadas por representantes
inescrupulosos do governo inglês, e mesmo aqueles que haviam
jurado lealdade a James encontravam-se na situação deplorável
de servidão por causa dos altos impostos que se viam obrigados a
pagar.
Shanna quebrou o silêncio. Aproximou-se do irmão, enlaçou-
o com os braços e ergueu os olhos lacrimejantes.
— Rory, será que não percebe? Finalmente chegou o
momento de realizarmos nosso grande sonho, voltar para
Ballylee.
— Tem certeza, Shanna?
O tom de voz e a expressão dele revelavam o que não se
atrevia a traduzir em palavras. Shanna afastou-se e respondeu,
enérgica:
— Tenho, sim. Você ouviu The O’Donnell.

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OS AVENTUREIROS

— É verdade, Rory — insistiu o padrinho. — Haskins House


pode estar perdida, porém de acordo com as leis inglesas, James
tem de respeitar o documento assinado por ele. Deve devolver
Ballylee e dez mil acres de terra a vocês.
Rory, que não havia desviado o olhar da irmã, comentou:
— Acho, minha querida, que todos os livros lidos e o tempo
passado na corte em Paris não foram suficientes para compensar
o longo período em que viveu no convento. Você ainda não
consegue ver como o mundo caminha.
— E você viveu demais em Roma e Paris — reagiu ela,
furiosa, sem ter entendido as palavras do irmão.
— Shanna, mesmo que James honrasse este documento e me
desse o baronato de Ballylee, aliás meu por direito legal, para
obtê-lo, eu teria de fazer o juramento de supremacia.
— Ah, não! Isso não pode ser verdade! — protestou ela ao
volver o olhar aflito para O’Donnell.
— Acredito que Rory esteja certo, minha menina. Ele teria de
negar a religião de seus pais e aceitar a igreja inglesa da Irlanda.
— E o que a minha catolicíssima irmã, criada num convento,
diz sobre isso?
O medo e a mágoa desapareceram da expressão de Shanna e
deram lugar a um ar decidido e resoluto. Nenhum dos dois
homens estava preparado para ouvir sua resposta.
— Eu me considero católica pelo batismo e francesa pela
educação cultural recebida. Por desejo e nascimento, sou
irlandesa.
— Shanna, você quer dizer... — Rory começou, incrédulo.
— Até Henrique IV, o rei da França anterior, mudou de
religião com a mesma facilidade como se estivesse trocando de
roupa. Foi criado protestante, o que lhe garantiu parte do reino.
Tornou-se católico e conquistou o resto. Conta-se que, durante o
cerco de Paris, ele comentou com a amante: "Paris, mademoiselle
Gabrielle, vale bem uma missa!"
Os homens se entreolharam e Rory comentou:
— A irmã Anna deveria ouvir sua heresia.

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

— Não é heresia alguma! — Shanna protestou com as mãos


nos quadris e o rosto iluminado pela determinação sentida. — O
que vem a ser heresia? Um homem insiste que a religião dele é a
verdadeira enquanto outro teima ao contrário. Na minha
opinião, luteranos, huguenotes, protestantes, católicos são todos
iguais com nomes diferentes. O melhor seria acabarem com tudo
isso e declararem-se cristãos. Quanto a mim, preferia ser cristã
na Irlanda!
— Como dizer tal coisa, menina? — Rory indagou,
espantado. — Sua opinião varia de acordo com o vento!
— Talvez. Mas, como o filósofo Montaigne, acredito que os
meus conceitos mudam com o passar dos anos.
— Pois eu não sou filósofo, poeta, sábio ou político. Não
passo de um simples soldado que mal vê além da espada
— declarou Rory com voz áspera enquanto segurava o copo
de prata com tal força que as juntas dos dedos embranqueceram.
— Não aprendi a suplicar nem a fazer discursos ou política.
Também não sei cultivar a terra. Foram O’Donnell e Richelieu
que me puseram na academia de Navarre. Lá fui ensinado a
manejar mosquetes e artilharia de fogo, a esgrimar, a dominar
todos os segredos da equitação e a matar tão bem quanto o
homem ao meu lado. Sou um soldado, enfim, nada mais.
— Isso você é mesmo — O’Donnell concordou no mesmo
tom baixo de voz. — Todavia, eu gostaria de que fosse soldado na
Irlanda. Preferia que lutasse pela conquista de suas terras em vez
de defender aquele italiano gordo e ladrão.
— Concini há de ir embora algum dia.
— Sei disso. E então o que acontecerá a você?
— O senhor mesmo disse que, quando chegar esse dia,
Richelieu ocupará o lugar vago. A guarda será dele e eu serei
promovido a general.
O’Donnell estremeceu perceptivelmente ao reconhecer a
verdade do que acabava de ouvir. Tentou um argumento
diferente, mas com uma nota leve de súplica na voz.
— Rory, meu rapaz, é em você que estou pensando. Alguns

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OS AVENTUREIROS

chefes irlandeses já receberam novas concessões do governo


inglês e você poderia se juntar a eles.
— E isso que deseja para mim? Pastorear umas poucas
ovelhas, cultivar uma nesga de terra e me contentar com a
companhia de uma camponesa rabugenta quando eu, exausto,
não conseguir me arrastar de uma cabana na floresta? É isso que
quer para The O’Hara?
— Acho bem melhor do que a vida fácil que leva aqui —
O’Donnell respondeu, sentindo a raiva crescer. — Há homens
em Ulster à espera de um outro líder como O’Neill.
— Imagino. Só que vão Ficar esperando até que o papa se
case antes de arranjarem um! Onde estão os O’Hara de Ballyhara,
meus primos distantes? Serão eles os proprietários orgulhosos
das planícies de Antrim? De forma alguma! Eles não passam de
uns desgraçados que labutam pela sobrevivência, asfixiados entre
escoceses presbiterianos e ingleses protestantes.
— Por Deus, pelo menos eles lutam! — O’Donnell explodiu,
já sem poder controlar a irritação.

— Você gostaria que James transformasse a região inteira de


Ulster numa área de recreação para os patrícios escoceses dele,
sem um único irlandês para enfrentá-los?
— Gostaria, sim! E, quanto a Ballylee, eles até poderiam usá-
lo como depósito de seus excrementos que eu pouco me
importaria.
Shanna e Rory surpreenderam-se com a velocidade do movi-
mento do padrinho. Ele avançou uns passos e ergueu o braço
num arco bem amplo. A bofetada que deu com a palma da mão
no rosto de Rory soou como o estalido de um trovão. A cabeça
dele virou enquanto o corpo pesado perdia o equilíbrio e caía de
encontro ao batente da janela.
A reação foi de fúria e, com um grno rouco, eie levantou o
braço a fim de revidar o golpe. O’Donnell não recuou, embora
soubesse que a força do afilhado podia derrubar um touro.
Shanna também tinha consciência disso e, repetindo o nome do

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OS AVENTUREIROS

irmão, se interpôs entre os dois homens.


— Você teria coragem de agredir quem lhe é tão caro?
Bem devagar, a tensão abandonou o corpo de Rory e só então
Shanna afastou-se, tomada por um pranto convulsivo. Uma ex-
pressão de calma substituiu a de revolta no rosto do rapaz, que,
com passos firmes, dirigiu-se até a porta para ir embora. Antes,
porém, que o fizesse, a voz severa de O’Donnell o interrompeu:
— Houve uma época, meu rapaz, em que nós, os gaélicos,
éramos famosos comedores de carne. Das torres de nossos
castelos, contemplávamos a terra que nos alimentava e que
produzia homens de ossatura forte e mulheres bonitas de seios
arredondados e acolhedores.
— Sei disso — Rory explicou numa voz sem expressão
alguma. — Até hoje, cada vilarejo da Irlanda tem o seu castelo
com torreões, mas todos em ruínas. E, quanto aos meus ossos,
eles são tão fortes e os meus músculos tão resistentes quanto os
seus foram um dia.
Ao dizer isso, ele levantou o copo de prata, amassou-o entre
os dedos possantes e atirou-o no chão de pedra.
— Não irei para a Irlanda ou Inglaterra. Partirei para Paris ao
alvorecer — declarou, e desapareceu em seguida.
— Pelo sangue de Cristo! — Shanna exclamou, impaciente.
— Se ao menos eu fosse um homem!

CAPITULO V

INGLATERRA

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OS AVENTUREIROS

Durante o verão de 1616, o governo de Whitehall caminhou


entre a ostentação e o luxo irresponsável. Através de corrupção,
suborno e subterfúgios fúteis, a corte do rei James I parecia cega
a qualquer coisa que acontecesse além das paredes do palácio.
O poeta e dramaturgo William Shakespeare morrera e fora
enterrado em Stratford. Toda a população de Londres admirava
os preparativos do navio Destiny, com o qual sir Walter Raleigh
faria uma expedição a El Dorado, a cidade do precioso e cobiçado
ouro.
Ao chegar o outono, os comentários do julgamento dos
Somerset e suas conseqüências continuavam intensos. Robert
Carr era um homem acabado. Todavia, muitos achavam que
Londres ainda veria Francês, a jovem e linda esposa. Diziam que
a prisão domiciliar em Cheswick logo se tornaria insuportável a
ela e a faria planejar alguma forma de aboli-la.
Com o conde e a condessa Somerset banidos de Londres e da
corte, sir George Villiers apressou-se em ocupar o lugar vago.
Cheio de solicitude, tornou-se indispensável ao rei tanto dentro
como fora do quarto real e viu-se logo recompensado. Recebeu o
título de visconde e já se falava na perspectiva de um ducado.
No início, muitos na corte consideraram a presença de Villiers
como algo agradável em comparação à arrogância de Somerset.
Porém, com o passar do tempo, uma faceta desconhecida de seu
caráter começou a emergir. Ele se mostrava cada vez mais
caprichoso e os antigos amigos que o procuravam com o intuito
de obter favores eram recebidos com expressão sombria e acessos
de fúria. Sem razão aparente e com uma única palavra ao rei, ele
os destruía.
Alguns cortesãos já pressentiam sinais da tempestade que se
formava no horizonte. A própria rainha Anne era uma das
pessoas que perceberam o que se passava e fez questão de
declarar seu ponto de vista. Ela não havia sido amiga de
Somerset, porém considerava o jovem visconde um conselheiro
muito pior.
A família Villiers, especialmente a mãe, a gananciosa lady

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OS AVENTUREIROS

Compton, não perdeu tempo em se aproveitar dos ventos


favoráveis da sorte, Ela usou do prestígio de George para
conseguir casamentos vantajosos para os outros filhos, e também
sobrinhos, o que não teria sido possível até então por causa da
insignificante posição social. Chefes de famílias ricas que tinham
perdido os privilégios na corte depois da coroação de James viam
agora a oportunidade, através das filhas, de readquirirem a
consideração usufruída no passado.
Sir Francis Bacon, sempre consciente da direção tomada pelo
favoritismo do rei, apressou-se em aliar-se ao novo cortesão
predileto. Essa aliança possibilitou a realização de um grande
desejo seu: desferir um golpe eficaz contra o inimigo ferrenho, sir
Edward Coke.
O advogado havia mantido o controle próprio durante o
julgamento de Francês Howard e o rei lhe ordenara
comportamento semelhante na segunda sessão do tribunal,
quando Robert Carr enfrentaria a justiça.
"Eu lhe determino", James escreveu, "a não divagar ou des-
viar-se dos pontos relevantes da acusação que pesa sobre a
cabeça de sir Robert Carr." Sir Edward fez exatamente o oposto.
Num discurso inflamado, ele incitou o tribunal a pensar em
assuntos que o rei não desejava que viessem a público. Eles se
resumiam em insinuações da existência de outros elementos por
detrás do assassinato de Overbury que deveriam ser de origem
espanhola.
Como James estivesse, em segredo, negociando o casamento
do filho Charles com a infanta de Espanha, as implicações de
Coke sobre tramas do papa e de espiões espanhóis ligados a
nobres ingleses foram embaraçosas demais para a coroa.
Até lady Hatton percebeu a estupidez da atitude do marido e
não perdeu a oportunidade de escrever-lhe uma carta.
"Sir, se o rei achar conveniente enforcá-lo, garanto-lhe que
não vou me aborrecer nem um pouco. Continuarei a viver em
Londres e a freqüentar a corte. Por isso eu o aconselho a
controlar melhor sua língua ferina."

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

A resposta sarcástica não se fez esperar.


"Madame, se a vontade de Sua Majestade for mo '«"AT h forca,
tenho meios para forçá-lo a usar uma corda de seda.
Saiba-se que neste dia de 16 de novembro de 1616, por motivos
independentes de nossa vontade, exoneramos sir Edward Coke
de seu posto de juiz do Supremo Tribunal do rei. Sua presença
não será mais permitida no recinto do referido Tribunal.

James R."
As mãos de Coke tremeram e os olhos encheram-se de
lágrimas ao ler o comunicado. O ressentimento transformou-se
logo em ódio ao receber uma nova mensagem que o intimava a
se retirar da cidade e recolher-se ao campo.
Com protestos veementes contra a falta de reconhecimento a
sua dedicação no decorrer de longos anos, ele foi morar em Stake
Poges. Lá, com cuidado e deliberação, Coke arquitetou planos
meticulosos a fim de restaurar o prestígio perdido.
Em janeiro de 1617, quando blocos de gelo desciam a
correnteza do Tâmisa e a neve embranquecia os campos, sir
Edward encontrava-se preparado para agir.
De acordo com os boatos, o visconde de Villiers recebeu o
título de duque de Buckingham e passou a fazer parte do
Conselho Privado do rei. Seus rendimentos anuais igualavam-se
aos de um príncipe, e os irmãos, bem casados, também gozavam
de excelente situação financeira. Sua mãe, lady Compton,
procurava, agora, meios de favorecer o resto da família.
O primeiro da lista era um sobrinho, sir Raymond Hubbard,
rapaz apagado, de feições bem-feitas mas inexpressivas e olhar
triste. O fato de o primo ser o conde de Buckingham e ter
galgado os degraus da fortuna o deixavam estupefato. A idéia de
se aproveitar da situação nunca lhe passara pela mente até que a
tia, lady Compton, a sugeriu.
— Ah, meu querido Raymond, como filho de minha irmã,
tenho de me preocupar com você. Precisamos lhe arranjar um

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OS AVENTUREIROS

bom casamento.
— Eu, me casar?! Com quem? — indagara ele, admirado.
As mulheres quase nunca lhe lançavam olhares estimulantes
Ou provocadores, e quando o faziam, Raymond não reagia,
talvez por timidez quando se tratava de jovens ou por
desinteresse quando tinham idade para serem sua mãe.
— Isso — lady Compton declarara peremptória — é o que
vamos decidir.
Pouco tempo depois, ela ficou curiosa e sir Raymond,
felicíssimo ao chegar uma carta de sir Edward Coke convidando-
os para visitá-lo em Stoke Poges. A missiva sugeria a
possibilidade do casamento do rapaz com a lindíssima filha de sir
Edward e lady Hatton, Brenna Coke.
Brenna cavalgava mais como um homem do que como uma
mulher, com o corpo inclinado sobre o pescoço distendido da
enorme égua castanha.
A agilidade do possante animal sob seu corpo e o vento frio
de inverno nas faces condiziam com seu estado de espírito.
Naquela manhã, havia recebido uma mensagem do pai pedindo-
lhe que passasse os feriados da Candelária em Stoke Poges.
Mostrara o convite à mãe, o que resultará numa grande
discussão.
Lady Hatton encontrava-se empenhada numa nova disputa
com o marido a respeito do exílio dele no campo. Sir Edward
queria que ela intercedesse junto à rainha Anne em seu favor,
mas Elizabeth havia se negado sob a desculpa de que sua própria
situação na corte era pouco segura.
Coke retaliara despedindo a metade dos criados de Hatton
House e ameaçando não pagar o salário dos outros.
Elizabeth, num acesso de fúria, gritara enraivecida:
— Juro por Deus nos céus que hei de pôr um fim na tirania
desse homem! Já sofri nas mãos dele mais do que qualquer
mulher ordinária deste reino. Ele se casou comigo por eu ser de
estirpe nobre e para se aproveitar da influência de minha família.
Foi com a minha fortuna que conseguiu subir tanto. Prefiro vê-lo

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OS AVENTUREIROS

no inferno a ter de usar os meus préstimos para que ele continue


a ser o grande idiota que é!
Brenna escondeu-se antes de ser forçada a tomar partido na
briga. "Pobre papai" pensava, "pobre mamãe e pobre de mim!
Quando isso terminará?"
Ela havia crescido à sombra das desavenças constantes entre
os pais. Na infância, a situação parecera mais cômica do que
triste, porém, ultimamente, Brenna sentia-se deprimida com as
discussões que era obrigada a presenciar.
Admirava a reputação gozada pelo pai como advogado e juiz
honesto da mesma forma que apreciava o espírito independente
e orgulhoso da mãe que a fizera vencer num mundo dominado
pelos homens. Todavia, condenava a ambição desmedida e con-
troladora de cada pensamento e atitude de ambos.
Há muito tempo, Brenna jurara fazer o possível nara ignorar a
animosidade entre os pais e pensar apenas na própria vida.
Prometera a si mesma colocar a felicidade e o amor acima da
ambição a fim de poder viver mais feliz do que a mãe.
A cada dia que passava, ela sentia mais necessidade de
escapar da companhia dos dois, porém isso só seria possível
através do casamento. Infelizmente, ainda não havia encontrado
um homem que lhe inflamasse a paixão a ponto de desejar
compartilhar a vida com ele e, muito menos, a cama.
Não é que lhe faltassem vários pretendentes entre os quais
pudesse escolher. Existiam muitos atraídos não só pelo seu dote
fabuloso como pela beleza do seu rosto e do corpo de formas per-
feitas. A pele morena, os olhos escuros de expressão ardente e o
sorriso cativante despertavam o interesse absoluto dos rapazes
com quem convivia.
Brenna puxou a rédea para a direita e seguiu em direção a St.
Martin's e Tarter Oaks.
Um sorriso matreiro espalhou-se em seu rosto. Havia sido
naquele lugar que o rei James, semanas atrás, inspecionara o
canal. Ao fazer isso, ele caíra do cavalo e fora parar nas águas do
New River. A história para divertimento geral, correu de boca em

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OS AVENTUREIROS

boca, até que todos se inteirassem do caso. O rei era famoso por
suas quedas da montaria.
— Brenna! — sir David Talbot gritou um pouco atrás. Ela
acenou com a mão enluvada, mas não se virou.
A pouco menos de cinqüenta metros adiante havia uma cerca
viva, bem alta, que rodeava a hospedaria Three Ravens, e Brenna
esporeou o animal em direção a ela.
O companheiro de cavalgada percebeu-lhe o intento e
esforçou-se por alcançá-la.
— Não, Brenna! — gritou ele. — E alta demais. Vire as rédeas
e passe pelos portões!
Brenna não lhe deu ouvidos e instigou a égua.
— Upa, upa, menina, vamos lá!
O som da voz da dona estimulou o animal. A cernelha
robusta contraiu-se, as pernas dianteiras curvaram-se antes de
erguerem-se no ar e Brenna soltou um grito de triunfo ao
passarem por cima das folhagens com uma boa margem de
distância.
Segundos depois, ela chegava ao pátio da hospedaria e obser-
vava sir David, que, a meio galope, transpunha os portões até
finalmente alcançá-la. Com um riso cristalino, Brenna declarou
enquanto ele desmontava e corria para ajudá-la:
— Você me surpreende David!
— Por quê? — indagou ele ao mesmo tempo que a segurava
pela cintura e a colocava no chão.
— A noite, você leva uma vida agitada e imprudente, mas,
durante o dia, é a própria imagem da precaução.
— E eu poderia afirmar que você é tão louca quanto linda,
porém isso só estimularia a sua temeridade. Quanto a mim, é
ainda muito cedo para ter bebido o suficiente para ter coragem
de arriscar o meu pescoço.
— Então vamos, meu amigo galante. Quero aquecer meus
ossos com um grogue quente e vê-lo iniciar a ingestão de sua
quota diária de álcool.
Brenna riu e as pálpebras, quase sempre semicerradas, de sir

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OS AVENTUREIROS

David expandiram-se para revelar a satisfação.


Sir David Talbot possuía duas paixões na vida, e beber era
uma delas. A outra, a que ele se dedicava em todas as
oportunidades apresentadas, resumia-se a jogos de azar.
Os hábitos de Talbot tinham lhe proporcionado a reputação
de vadio e perdulário. Brenna, no entanto, sabia que isso não era
bem verdade. Com sua pessoa, ele se mostrava bondoso, gentil e
carinhoso. As vezes chegava a pensar que ele a amava, mas sentia
que as demonstrações de amor não passariam de um beijo
delicado na testa ou do amparo do braço à volta da cintura
durante um passeio a pé.
Essa constituía a maneira de ser de David. Para o mundo, ele
não passava de um alcoólatra esquivo, sarcástico e cínico,
enquanto para Brenna representava o irmão que não tivera, o pai
compreensivo e o admirador complacente. Conheciam-se há
menos de um ano, todavia tempo suficiente para ela considerá-lo
como seu único amigo sincero.
Uma vez, por ter bebido um pouco demais antes de ir visitá-
la, David havia contado histórias arrepiantes sobre a dinastia dos
saadi, em Marrakesh, a capital do Marrocos. As narrativas tinham
deixado Brenna encantada e provocado-lhe o desejo imenso de
ser livre para poder viajar por terras distantes e exóticas.
Muito do que ouvia a respeito de Talbot, ela sabia ser fruto da
imaginação das pessoas, porém acreditava em quase tudo con-
tado por ele mesmo.
Sir David tinha sido capitão do Exército do rei na Irlanda, mas
não se contentara com o soldo baixo, que não permitia o estilo
de vida que desejava. Foi então que ele começou a se dedicar ao
baralho e aos dados. Quando os oficiais, seus
companheiros,mostraram-se relutantes em continuar perdendo
dinheiro em jogos de cacife alto, Talbot deu baixa no Exército e
mudou-se para Londres, onde os lucros seriam maiores.
Não levou muito tempo até ter o suficiente para adquirir uma
posição mais alta na sociedade. Por ser escocês de nascimento e
poder pagar o preço exorbitante pedido, ele comprou, da coroa,

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OS AVENTUREIROS

um título de nobreza. Outros ganhos se acumularam, o que lhe


permitiu manter uma casa com criadagem completa em Londres.
Além disso, alugou, da mãe de Brenna, North Elmcham House,
uma mansão em Norfolk. Agora, sim, vivia o estilo de vida
desejado, pois comia e bebia bem e divertia-se como um
cavalheiro de classe.
Brenna e David ajustavam a visão ao ambiente escuro do in-
terior da hospedaria quando uma criada indagou:
— Um aposento, sir?
— Não, é uma pena, mas a moça não é minha amante, nem
minha esposa. Desejamos apenas uma mesa só para nós. A criada
levou-os até uma, de madeira rústica, próxima de uma das
janelas que davam para o pátio da frente.
— Traga, para começar, duas canecas de aguardente, é do que
um homem precisa num dia como este. Verifique se a
fermentação foi feita, pelo menos, há dois dias. A senhorita vai
querer um grogue de rum.
Sentados um em frente ao outro, e à espera das bebidas,
Brenna não pôde deixar de notar as mãos de David. Elas eram
pálidas, quase sem pigmentação alguma, finas e com dedos
longos e ágeis. Eram típicas de um jogador profissional e, agora,
tremiam.
"Bebida", ela pensou ao mesmo tempo que ansiava poder falar
sobre os problemas que a afligiam com a mesma facilidade com
que ele expunha os seus. Indagava-se constantemente sobre os
motivos que levavam o amigo a beber em excesso.
David percebeu seu olhar e escondeu as mãos no colo sob a
mesa.
— É este frio horrível. Um dia péssimo para cavalgadas. Nem
sei por que concordei com o passeio.
— Ora, foi você quem o sugeriu — afirmou Brenna. — Não
ponha a culpa no frio. Suas mãos tremem por falta de álcool no
corpo.
— Talvez. Mas, se eu não bebesse minha ração diária, como
poderia dar alguma cor neste meu rosto? — perguntou ele ao

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beliscar o nariz já meio vermelho e rindo em seguida.


Como sempre, David levava na brincadeira os esforços
maternais de Brenna de disciplinar-lhe os hábitos. Ela riu
também e, em seguida, mudou de assunto:
— Como estava a França?
— Bem francesa, como sempre — respondeu ele, seco.
— Isso lá é resposta? Você foi a Paris?
— Fui, sim.
— Al está uma cidade que eu adoraria conhecer. Deve ser tão
romântica! Por que você não me leva junto em uma das suas
viagens? — Brenna sugeriu.
— Porque você é muito jovem e inocente para viajar na com-
panhia de um malandro como eu — David retrucou, rindo.
— Confesse a verdade — Brenna disse com um sorriso
malicioso. — Você deve ter uma amante lá e não quer que eu
saiba. Por isso que vai a Paris com tanta freqüência.
— Finalmente, menina, você adivinhou o meu segredo.
Porém não tenho uma amante só, e sim três. São alcoviteiras,
gordas e banguelas.
Como era de se esperar, David descartou-se de sua
curiosidade sobre suas idas constantes à França, o que a aguçou
mais ainda. Sem dúvida alguma, existia um mistério nessas
viagens e Brenna estava disposta a descobri-lo. Já ia insistir com
mais perguntas quando a criada chegou com as bebidas.
—- Pretendem comer também? — a moça perguntou ao
colocar um copo em frente a Brenna e as canecas perto de David.
— Sim. Uma torta de carne para nós, isto é, se o maçapâo
estiver fresco — David pediu.
— Foi preparado hoje de manhã — assegurou a criada.
— Ótimo, mas umedeça bem com manteiga e um pouco de
vinagre de uvas verdes — recomendou ele.
Respirou fundo, deliciada com o aroma vindo da cozinha, e
sentiu-se feliz por David não se constranger em trazê-la a um
lugar como aquele. Qualquer outro de seus amigos se negaria a
fazer-lhe a vontade sob a alegação do ambiente ser impróprio

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para senhoras, ou senhoritas, da alta classe.


Essa era mais uma das razões por que gostava tanto da
companhia de David. Embora ele não fosse realmente um
namorado, levava-a a todos os lugares aonde ela desejava ir.
Tinha certeza de que lhe mostraria o interior de um prostíbulo
de Southwark se ela demonstrasse algum interesse em conhecer
uma casa dessa natureza. Convenções sociais e condições de
nascimento, fossem elas as de um nobre ou as de um bastardo,
não significavam nada para David Talbot.
A criada já havia se afastado com o pedido e ele tinha o olhar
pensativo perdido na paisagem de inverno que se via através da
janela. "Como ele é atraente", Brenna considerou, "embora de
maneira singular." Imaginava que David devia contar não mais
de que trinta e poucos anos de idade. Todavia, a vida desregrada
que levava já lhe marcara o rosto com rugas típicas de alguém
com mais de quarenta. As feições, num momento de abstração
como aquele, demonstravam o tédio, ou desinteresse,
comumente sentido por pessoas que haviam vivido muito em
pouco tempo. Sentia um aperto no coração ao pensar na provável
aparência envelhecida daquele rosto, num curto espaço de
tempo, se seu dono continuasse a vida desregrada de até então.
David era alto e magro e, embora parecesse moroso, ela já o
havia visto mover-se,com a velocidade do ataque de uma áspide
ao ser provocado. As mulheres jamais o olhavam pela segunda
vez e os homens o evitavam, pois o temiam. Todos sabiam que
sir David Talbot, se necessário, não hesitaria em desembainhar a
espada ou sacar a pistola do cinto. De repente, Brenna riu, o que
lhe chamou a atenção.
— Qual foi a graça? — perguntou David.
— Pensava como você é extremamente bonitão.
— Estou de pleno acordo — replicou ele antes de tomar um
terço da bebida de uma das canecas.
— E como me faz sentir mundana quando estou com você.
David inclinou-se para a frente e, quando falou, a voz tinha
aquele

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OS AVENTUREIROS

timbre de ceticismo e aspereza que Brenna conhecia tão bem.


— Meu nariz é muito grande, além de parecer um farol na
escuridão da noite, bebo demais e gasto o meu tempo jogando
baralho e dados. Mesmo assim, você diz que me ama?
— Eu não disse isso e sim que o acho fascinante.
— Pois eu me considero um tipo aborrecido.
Brenna também se inclinou até que o rosto ficasse a poucos
centímetros do dele e descansou o queixo nas mãos.
— David, você nunca me desejou?
— Noite e dia.
— Seu bobo, estou falando sério.
— Não diga! Eu lhe responderia, mas sei que está apenas tes-
tando sua habilidade de sedução.
— Não, apenas a de mulher — replicou ela ao recostar-se de
novo na cadeira.
Em seguida, ela baixou as pálpebras até quase os cílios negros
e longos se tocarem e, num gesto sensual, fez beicinho. Esperou
um pouco antes de comentar:
— Muitos homens considerariam minha expressão de agora
um convite aberto e audacioso.
— E como eles reagem a esse seu olhar? — David perguntou,
sem poder conter o riso.
— Ah, eles se derretem — Bienna replicou numa imitação
perfeita da arrogância da mãe, lady Hatton.
David observou-a por cima da borda da caneca enquanto
bebia mais um pouco.
— Se isso acontece, minha querida Brenna, o significado é
um só. Você apenas dedica esse olhar a homens tímidos. É por
isso que a consideram uma criatura magnífica.
Brenna corou no mesmo instante. Nenhuma outra pessoa
conseguia ler seus pensamentos como David, ou, se o fizesse,
teria coragem de revelar.
— Você é impossível! Assim não podemos conversar.
David sorriu ao ver com que facilidade Brenna mudava não só
a expressão como a atitude também.

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OS AVENTUREIROS

— Tem razão, especialmente quando o assunto é desinteres-


sante, de pouco valor e com um leve toque de romantismo. Creio
que vou esperar para me casar com você até que se torne uma
mulher mais velha e experiente.
Brenna não podia ignorar a zombaria atrevida na voz e no
sorriso de David, porém, vinda dele, não se importava.
— Algumas vezes — comentou ela com um suspiro —
imagino se não te amo mesmo. Tenho a impressão de que
gostaria de me esquivar de todos os outros homens que me
cortejam.
— Isso não passa de uma ocupação casual de uma pessoa
bem-dotada, isto é, linda e inteligente. Mas chega desse assunto
aborrecido. Vamos falar sobre algo mais interessante. Por que
uma mulher tão linda como sua mãe não mantém casos
amorosos?
Brenna não pôde reprimir um risinho divertido.
— Aos quarenta e três anos, ela já passou da idade para essas
coisas.
Foi a vez de David rir, o que fez com estardalhaço.
— Só uma mocinha de dezessete anos poderia expressar tal
idéia e acreditar nela!
— E também porque é casada — acrescentou Brenna.
— Isso não é motivo para a metade das mulheres que
conheço — David argumentou.
— É porque não são casadas com sir Edward Coke. Se ele
pudesse acusá-la de adultério, não haveria limite para as
manobras legais de meu pai com o fito de controlar-lhe as
rendas. Como uma mulher casada com um homem tão esperto
poderia ter relacionamentos extraconjugais?
— É verdade, imagino. Seu pai é o homem mais inteligente e
aborrecido que já conheci. Se eu fosse casado com ele, manteria
ligações amorosas diárias.
David terminou a primeira caneca e bebeu um pouco da
segunda antes de continuar.
— O que você fará quando ele resolver casá-la com algum

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lorde almofadinha de Gales ou com um nobre escocês de


Edinburgh e sotaque fanhoso de erres rolados?
— Ele não fará isso. Minha mãe jamais permitirá. Ela me pro-
meteu, quando eu ainda era pequenina, que eu faria a escolha no
momento oportuno.
Talbot levantou o olhar para as vigas do teto e disse com se-
riedade fingida:
— Deus do céu! Será o fim do mundo quando mocinhas
começarem a escolher, elas mesmas, seus maridos.
— E se eu escolhesse você?
— Eu seria forçado a aceitá-la, mas a levaria para o meu
castelo na Irlanda. Lá eu a faria ficar de joelhos e esfregar o chão
de pedras até que pedisse o divórcio.
Brenna entendeu a brincadeira de David, porém não deixou
de notar uma certa seriedade em sua voz ao referir-se à Irlanda.
Já havia percebido isso outras vezes.
— Ultimamente, quando você fala sobre a Irlanda, há um
tom estranho na sua voz. Por quê?
— Deve ser porque servi o Exército lá.
— Não, a razão é outra, conte a verdade.
Talbot fitou-a com olhar frio e franziu as sobrancelhas como
se avaliasse bem a resposta que daria.
— Por que você insiste sobre a Irlanda?
— Sem razão alguma — respondeu ela com uma leve
sacudida de ombros. — Você é quem sempre se refere a ela.
— É, acho que sim. Tenho pensado muito naquelas terras —
David confessou, com o olhar novamente absorto na paisagem
que se via pela janela.
Brenna pressentiu que o amigo contemplava algo além dos
carvalhos desfolhados pelo inverno e das cercas vivas
amarronzadas de St. Martinsin-the-Fields.
— Quanta seriedade, meu Deus! Vai ver que você tem uma
outra amante na Irlanda além da francesa. Deve ter saudade dela
e é por isso que não tem uma namorada em Londres.
Os olhos de David volveram-se imediatamente e a encararam

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com expressão penetrante. Brenna percebeu que havia tocado em


um ponto pessoal muito sensível. Como se estivesse com frio, o
corpo todo dele tremeu da mesma forma que as mãos há poucos
momentos. Depois, aquietou-se.
— Você não sabe menina, que a Irlanda toda é uma amante?
— Talbot inquiriu ao mesmo tempo que erguia uma das canecas
vazias e a agitava no ar a fim de chamar a atenção da criada. —
Ei, moça, traga mais aguardente aqui. Que desgraça, um homem
pode morrer sóbrio neste estabelecimento!
A criada atendeu-o imediatamente e, em seguida, serviu a
torta de carne.
Só depois de começar a comer foi que Brenna percebeu o
apetite que a cavalgada da tarde fria LHE havia provocado. Tão
entretida estava em saborear a torta que levou algum tempo para
notar que David mal tocara no prato e continuava a tomar a
aguardente.
— Se você só beber e não comer nada, não vai ser capaz de se
manter em cima do cavalo até Hatton House
— provocou ela numa tentativa de incentivá-lo a se
alimentar.
— Cavalgo melhor bêbado do que sóbrio — David replicou
no tom costumeiro e brincalhão, porém com uma expressão
diferente no olhar. — Brenna?
— David, conheço bem esse seu tom de voz. Aposto como vai
fazer uma exposição de sua grande sabedoria ou criticar a deca-
dência da sociedade londrina.
Normalmente, Talbot riria de suas palavras e responderia com
alguma brincadeira. Porém, manteve-se sério, fitando-a de
maneira estranha e intensa.
— Talvez fale sobre ambas as coisas, mas também sobre algo
mais. Pretendo, finalmente, desistir dessa vida desregrada que
você afirma poder me matar um dia — declarou ele com tal
seriedade que Brenna sentiu um arrepio de expectativa e medo
ao mesmo tempo.
— Deixará de beber também? — ela quis saber.

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— Não, minha menina — David protestou rindo —, não


quero virar santo e sim um senhor rural na Irlanda.
— Irlanda?! Aquela terra paga?
— De fato é um lugar um tanto selvagem, mas com espaço
para um homem respirar. Você não o viu através- dos meus
olhos, querida Brenna. Olhe aquilo lá — disse ele, e apontou para
Londres à distância.
— A cidade se esparramou. Nos últimos dez anos, dobrou o
seu tamanho fora dos muros que a rodeiam e logo lançará seus
tentáculos para além de Strand. Aliás, a impureza desse monstro
não demorará muito para acabar com o verde de St. Martins-in-
the-Fields. E na parte velha, a confinada pelas muralhas, o
congestionamento humano e animal vai se tornar cada vez mais
insuportável. Constroem-se moradias a esmo, até em cima de
qualquer estábulo, desde que acomodem alguém e rendam
aluguel. Enquanto isso, os jardins vão desaparecendo.
Brenna não gostou do rumo que as palavras dele estavam se-
guindo. Será que elas sugeriam uma partida próxima da Ingla-
terra? Estaria ela prestes a perder o único amigo sincero de quem
dependia tanto?
— Então, não more mais em Londres e vá ser o senhor rural
em Norfolk, na mansão de North Elmeham — sugeriu ela.
— Imagino que possa fazer isso até você se casar — David
concordou com suavidade.
— Porém meu contrato de aluguel estipula que eu devo
deixar a casa quando você precisar dela para seu dote.
— Mas existem tantas outras propriedades no campo! —
Brenna replicou, aflita.
— Não que satisfaçam o meu gosto. A cada dia que passa, a
minha irritação com os ingleses cresce, talvez porque eu os
conheça a fundo. Também não irei para a França, pois, na minha
opinião, os franceses estão embevecidos demais consigo mesmos
e com a ambição que os domina. Os irlandeses possuem uma
índole muito melhor do que os ingleses ou escoceses. Acho cada
vez mais difícil encontrar a vida que desejo nesta terra infernal

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chamada Inglaterra.
Brenna arregalou os olhos com raiva e levantou os ombros
numa posição bem ereta. Ia protestar, porém David levantou a
mão num pedido de atenção.
— Vamos, minha menina, deixe que eu fale! Não sinto mais a
menor simpatia pelos cavalheiros ingleses sob o regime do nosso
bom rei James. Robert Carr já era insuportável, mas agora, com
Villiers, depois de ter recebido o título de duque de Buckingham,
as coisas vão piorar bem. Ele não faz mais do que se divertir,
comer e beber. Com esse exemplo, um nobre inglês passa o
tempo caçando, jogando tênis ou tapeando seus pares nas cartas
ou nos dados.
— Ah, isso você deve saber muito bem.
— Tem razão, e por isso sinto desprezo por mim mesmo.
Além do mais, sou escocês, um estrangeiro.
— O rei também.
— Se James não fosse rei seria mais antipático ainda.
— Deus do céu, você fala como meu pai!
— Sir Edward só diz a verdade, embora com falta de tato, o
que muito o prejudica. Há muita coisa, menina, que você não vê,
ou percebe, por ter nascido nobre. Tanto em Londres, como no
campo, pessoas de categorias diferentes se misturam com facili-
dade, desde que sejam todas inglesas.
De repente, Brenna vislumbrava um outro lado de David
Talbot e a razão que o motivava a manter uma atitude amarga e
cética: ele era um intruso. Sentiu as lágrimas inundarem-lhe os
olhos, porém conseguiu refreá-las enquanto estendia as mãos e
tomava as do amigo.
— Mas, David, a Irlanda é uma terra perdida e desolada.
Dizem que levará muito tempo ainda até que desapareçam as
devastações provocadas pelas guerras de Munster e Ulster.
— Pelo que vejo você conhece história. O que diz é verdade,
todavia eu acredito numa solução. Você sabe o que quero dizer
ao me referir aos especulador ingleses na Irlanda?
Brenna sacudiu a cabeça em sinal negativo.

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— Pois vou lhe explicar. Esses ingleses são homens sem o


menor escrúpulo, que conseguiram, da coroa e através da
influência deles na corte, vastas extensões de terra. Eles são
obrigados a melhorar as propriedades levando para lá colonos
ingleses ou escoceses. Isso, entretanto, não lhes proporciona o
lucro desejado além de forçá-los a supervisionar o trabalho.
Naturalmente, eles preferem uma solução mais conveniente.
Então, em vez de importar a mão-de-obra, contratam a irlandesa,
que é muito mais barata. Também arranjam um capataz de lá
mesmo, o que lhes permite continuar morando em Londres,
onde esbanjam o dinheiro ganho às custas do suor irlandês.
Enquanto ele falava, Brenna notou, além da raiva contida, um
certo sentimento de obrigação moral que nunca havia percebido
em David Talbot. Com as palavras seguintes, a indiferença e o
ceticismo que o caracterizavam desapareceram para revelar
sonhos e expectativas.
— O especulador inglês, ao colonizar a Irlanda dessa forma,
provocou um grande caos e fez com que os irlandeses ficassem
uns contra os outros. Essa confusão só poderá gerar mais
ganâncias e corrupção. Eu gostaria de comprar umas terras para
mim na Irlanda e acabar com toda essa desordem e venalidade —
confessou ele.
— Eu não compreendo, não entra na minha cabeça.
A voz de David tornou-se tão veemente que a assustou.
— Em cada porto na Inglaterra você encontra irlandeses que
chegam fugindo da fome e da perseguição na própria terra, nos
da França também.
— E você acha que pode mudar isso? — Brenna perguntou
atônita. — Você está louco!
— Não, apenas sendo esperto — replicou ele. — Não posso
impedi-los de emigrar, porém, se conseguir manter um bom
número de irlandeses nas minhas terras pagando o preço justo
por seu trabalho, serei o único proprietário na Irlanda a
enriquecer e adquirir segurança ao mesmo tempo.
Brenna sacudiu a cabeça com incredulidade. As palavras de

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David eram estranhas demais para que as compreendesse.


— Não sei nada sobre isso, mas o que acaba de me dizer
parece sensato e nobre.
— Ora, menina, jamais me acuse de nobreza!
Brenna baixou os olhos e sentiu um grande peso no coração.
O que faria, no futuro próximo, sem o ombro amigo, as palavras
sábias que esclareciam suas confusões, as brincadeiras bem-hu-
moradas que a animavam quando estava deprimida?
— Tenho a impressão de que você já fez todos os planos para
partir — disse ela com o rosto virado para que David não visse
seus olhos marejados de lágrimas.
— Já, sim. Contudo, ainda vai levar algum tempo para acertar
a porção de terra que desejo. Só recentemente, depois do
escândalo de Somerset, é que ela passou para a coroa.
— Não faço a mínima idéia de como possa ser, pois não sei
nada sobre a geografia da Irlanda — disse Brenna com voz meio
rouca por causa do esforço para conter as lágrimas.
Quando Talbot replicou, foi num tom alegre e quase eufórico
que ela nunca havia ouvido antes.
— É um lugar no oeste, lindíssimo e com terras férteis. Cha-
ma-se Ballylee.

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CAPITULO VI

O rei e o duque de Buckingham partiram para a Escócia com


uma comitiva de trezentas pessoas. Na ausência deles, sir Francis
Bacon, recentemente nomeado lorde defensor, passou a
representar a autoridade máxima do reino.
Enquanto isso, entre as paredes de lambris ornamentadas por
tapeçarias raras do grande salão do Stoke Poges, Coke caminhava
enfurecido de um lado para o outro. Já haviam se passado duas
semanas desde que ele enviara o convite, e finalmente chegava o
dia da visita de lady Compton.
Já era de tardezinha e o tempo estava chuvoso quando a car-
ruagem preta e dourada, puxada por quatro cavalos, entrou pela
longa alameda que levava à porta de Stoke Poges.
A carruagem parou e seis lacaios de libre vermelho-escura
desceram dos degraus atrás e dos lados a fim de abrirem a porta e
oferecerem o apoio dos braços. Coke ficou estarrecido ao ver lady
Compton surgir da opulência com que era decorado o interior do
coche. Um capuz de tecido fino mal cobria-lhe os cabelos crespos
e curtos e parecia dar ênfase às feições severas e grosseiras. Uma
enorme e engomada gola de tufos rodava-lhe o pescoço,

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erguendo-se bem acima de cabeça, atrás, e atingindo até o meio


do busto na frente. O vestido era preto com mangas bufantes e
cortes longitudinais forrados de cetim da mesma cor. Fileiras de
pérolas imensas iam dos ombros até os punhos rematados com
renda.
Finalmente, os pés com sapatilhas também negras apoiaram-
se nas pedras do calçamento e sustentaram o corpanzil. A seguir,
o rosto sério e melancólico de sir Raymond Hubbard surgiu logo
atrás, porém Coke, ao dar um passo à frente, não lhe prestou
atenção.
— Milady — disse ele ao curvar-se e tomar-lhe a mão
enluvada —, eu e minha casa nos sentimos honrados em poder
recebê-los. Sejam bem-vindos a Stoke Poges.
— A honra é toda nossa em aceitar o seu amável convite, sir
Edward.
Coke se colocou a seu lado e ofereceu-lhe o braço. Juntos, en-
traram na mansão e, pelo canto dos olhos, Coke observou os
sinais de admiração que lady Compton não conseguiu esconder
ao se deparar no grande salão sob a alto teto abobadado e
aquecido pela enorme lareira de mármore cinzelado.
O aposento e seu mobiliário eram uma amostra do resto da
casa. Stoke Poges oferecia tudo que o dinheiro podia comprar em
relação a luxo e conforto, fato que a visitante não deixou escapar.
— A casa é tão linda e de bom gosto como me haviam
descrito, sir Edward.
— Muito obrigado, milady. Esperemos que a sua estada aqui
seja a mais agradável possível — respondeu ele ao virar-se a fim
de fitá-la diretamente.
— E lucrativa para nós dois — completou ela.
Com essas palavras e o olhar penetrante, lady Compton o avi-
sava de que seria uma oponente formidável e dura na barganha.
Coke se esforçou para não esfregar as mãos num gesto de entu-
siasmo pela batalha que tinha pela frente. Essa mulher oferecia-
lhe o tipo de desafio que apreciava.
Já era noite, depois de lady Compton ter descansado um

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pouco, quando se encontraram numa das menores salas de jantar


da mansão.
Sir Edward dispensou os criados solícitos e serviu clarete a
lady Compton e conhaque para sir Raymond.
— Milady... sir Raymond... — disse ele, passando-lhes os
copos de bebida.
Lady Compton agradeceu e, então, dirigiu-se ao sobrinho.
— Sente-se, Raymond. Vai acabar queimando a roupa aí na
lareira. Ele murmurou qualquer coisa ininteligível e acomodou-
se numa
banqueta perto da tia. Assim que a ordem foi obedecida, a
grande dama virou o rosto alvo de pó para Coke.
— Sir Edward, meu filho, o duque de Buckingham, me
contou que o rei, numa conversa particular, confessou estar
muito contrariado com a ruptura entre a coroa e um súdito tão
competente como o senhor.
— E eu da mesma forma, milady.
— Meu filho afirma que o rei gostaria, imensamente, de
reparar essa situação.
— Tanto quanto eu, milady — sir Edward respondeu, fitando-
a com firmeza e resolvido a não retrair o olhar durante o duelo
inicial de palavras.
— Espero que o duque de Buckingham possa colaborar com
meus esforços no intuito de remendar essa brecha em nosso
relacionamento.
— Estou certa de que ele se empenhará nisso, caso o senhor
tenha a ligação apropriada — lady Compton replicou e, logo em
seguida, virou-se para o sobrinho. — Sir Raymond — chamou
peremptória e irritada com a expressão alienada do rapaz ao lado
dela.
— Minha tia? Ah, sim! Sir Edward?
— Pois não, sir Raymond.
Com um grande esforço, Hubbard ergueu os olhos para os de
Coke. Esse homem de sessenta e cinco anos, alto, de corpo
avantajado, expressão lúgubre e olhar penetrante parecia-lhe

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mais amedrontador do que a tia.


— Sir Edward... — começou ele, hesitante.
— Há alguma coisa que queira me dizer? — Coke incitou im-
paciente, ao pensar nos passos subseqüentes e mais importantes
das negociações.
— Sir Edward, há muito que sou admirador de sua filha
Brenna. Estou com vinte e nove anos e penso já estar na hora de
me casar — declarou para calar-se em seguida.
Fez-se um silêncio profundo enquanto ele reunia coragem
suficiente para prosseguir e, com os olhos baixos, tomou um gole
da bebida.
"Pelo sangue de Cristo!", Coke ponderou. "Nesse ritmo, ele le-
vará um ano para consumar o casamento, se é que vai haver
algum!" Fitou lady Compton e notou que os pensamentos dela
eram os mesmos e que mordia o lábio inferior para não proferir
as palavras que esperava ouvir do rapaz.
Hubbard se deu conta da reação dos dois e murmurou tímido:
— Não posso imaginar uma união de famílias mais adequada
ou uma companheira melhor do que a sua filha. Por isso, gostaria
de pedir-lhe a mão de lady Brenna em casamento.
As últimas palavras foram ditas num tom aflitivo e
provocaram um suspiro de alívio nos outros dois. Sir Edward
balançou a cabeça e respondeu:
— Aceito o seu pedido e considero uma honra juntar as
famílias de Villiers e Hubbard à de Coke.
No mesmo instante, lady Compton e sir Edward
concentraram-se em si mesmos ignorando, por completo, a
presença do rapaz encolhido na banqueta e com o olhar perdido
no fogo da lareira.
— Não creio precisar dizer, sir Edward, que meu sobrinho se
casaria com sua filha mesmo que ela contasse apenas com a
roupa do corpo.
Coke manteve-se em silêncio, à espera das palavras com que
lady Compton entraria no terreno do acordo financeiro. Estava
preparado para enfrentá-la. — Apenas por curiosidade — prosse-

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OS AVENTUREIROS

guiu ela —, gostaríamos de saber o quanto nos seria assegurado,


através desse casamento, pelo dote de Brenna.
— Aí está uma pergunta difícil de ser respondida. Como a se-
nhora sabe, minha filha e eu somos muito apegados um ao outro.
Ela é a minha filha preferida e eu a quero muito.
— Naturalmente — lady Compton concordou com voz seca.
— Esse é um fato muito sabido. Todos os dias, nos jardins da
catedral de St. Paul, as pessoas que passeiam por lá comentam
como o senhor mima a filha.
A mentira foi proferida com a maior arrogância e Coke
retaliou à altura:
— Tenho certeza de que vamos chegar a um acordo
satisfatório quanto ao dote de minha filha, o suficiente para
aumentar as rendas das propriedades atuais de sir Raymond.
Ouviu-se o murmúrio atônito proferido pelo rapaz. Nos
círculos da corte, sabia-se muito bem que ele não possuía bem
algum e dependia da benevolência dos primos.
Lady Compton continuou como se o sobrinho, há muito, já
houvesse deixado a saleta.
— E o senhor fala não apenas por si mesmo como por lady
Hatton também?
— Sem dúvida alguma — Coke respondeu com frieza.
— Desculpe a pergunta que fiz, mas correm boatos de que o
senhor e lady Hatton não têm o mesmo ponto de vista em
questões de negócios.
— Eu também já ouvi tais comentários — Coke comentou
em tom de desprezo — e admito, com franqueza, que existe uma
ponta de verdade neles, entretanto garanto-lhe que minha
esposa está de pleno acordo comigo neste assunto.
Essas constituíam, até então, as duas maiores mentiras da
noite. Há duas semanas apenas, Coke e Elizabeth tinham gritado
raivosos, um ao outro, na presença do conselho de Star Chamber
e ela ignorava, por completo, os planos do marido em relação a
Brenna.
— Ótimo, então podemos acertar os termos.

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OS AVENTUREIROS

— Brenna receberá da mãe a mansão de North Elmeham e as


terras à volta dela em Norfolk.
— E do senhor, sir Edward?
— Estou preparado a aumentar o dote com Stoke Poges. Pela
primeira vez naquela noite os lábios de lady Compton
se curvaram numa imitação de sorriso. Ela não conseguia
esconder a ambição do olhar, que percorria a riqueza do
ambiente. Todavia, sir Edward acrescentou:
— Naturalmente, com usufruto meu.
O sorriso desapareceu. Embora com sessenta e cinco anos,
Coke continuava forte e saudável. Poderia levar ainda um bom
tempo para morrer e só então sir Raymond entraria na posse da
propriedade.
— Quanto à parte em dinheiro, estou pensando em dez mil
libras no momento do acordo e mil anuais.
A expressão severa de lady Compton não mudou, o que
demostrava considerar a quantia insuficiente.
— Estávamos cogitando em trinta mil no início e três mil
anuais. Os lábios de Coke, apertados, sumiram entre a barba e o
bigode preto.
— Minha cara senhora, não vamos valorizar demais o favor
do rei.
Sir Raymond fechou os olhos e baixou a cabeça. Finalmente a
natureza real da reunião era tratada às claras. Lady Compton
permutava a influência do filho na aquisição de mais terras e
poder econômico para a família Villiers enquanto sir Edward bar-
ganhava a filha a fim de ser reempossado no cargo ocupado an-
teriormente. E as pessoas que garantiam essa negociata? Ele pró-
prio estava interessado, mas e quanto a Brenna? Estaria ela a par
do que se passava?
Ele duvidava e tinha quase certeza de que, ao se inteirar dos
fatos, Brenna protestaria, recusar-se-ia a se casar e passaria a
odiá-lo.
Sir Raymond sabia não ter a aparência ideal para se unir com
uma moça tão linda e cheia de vida como a filha de sir Edward,

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OS AVENTUREIROS

contudo jurava a si mesmo amá-la com toda a dedicação possível


se ela o permitisse.
As vozes ásperas e firmes continuavam a encher a saleta, ele,
porém, não se esforçava por entendê-las, pois sua opinião não
tinha o menor valor.
Ele e Brenna não passavam de peças naquela troca ou venda,
para lucro de terceiros.
E, depois de tudo assentado, como seria o casamento? A
simples idéia encheu-lhe a mente de terror, quase de loucura.
As congratulações da tia o trouxeram de volta à realidade do
momento. Sir Edward, a seu lado, estendia-lhe a mão.
— Tudo acertado, meu rapaz. Daqui a quinze dias,
publicaremos os proclamas.
"Isto é", Coke raciocinou, "se eu conseguir vencer a fúria que
tomará conta de Elizabeth, a minha mulher geniosa, quando ela
for informada do meu feito."

CAPITULO VII

O ar estava festivo e cheio de vozes alegres, embora uma


chuva fina houvesse obrigado os convidados a deixarem os
jardins de Hatton House e se refugiarem no grande salão.
Por se tratar do décimo oitavo aniversário da filha, lady
Hatton havia convidado as senhoras e os cavalheiros mais
influentes da corte. Seu intuito era proporcionar um prazer a
Brenna, apesar de suas críticas contra a futilidade dos
freqüentadores de Whitehall.
Na verdade, Brenna preferia a companhia de pessoas de maior
firmeza e sabedoria, como o exacerbado dramaturgo Ben Jonson,
o ator Richard Durbade e o arquiteto Inigo Jones, que se encon-
trava absorvido nos desenhos do projeto de uma nova mansão,
em Greenwich, para a rainha Anne.

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OS AVENTUREIROS

Seu único desapontamento do dia era a ausência de David


Talbot. De manhã, recebera uma carta dele, desculpando-se.
"Minha querida Brenna,
Peço-lhe que me perdoe, mas estou de partida para Norfolk,
de onde seguirei à Irlanda para tratar de negócios urgentes. Devo
ficar lá por uns quinze dias. Gostaria muitíssimo de estar ao seu
lado nesse dia especial, não só para compartilhar de sua alegria
como também para fazer comentários sobre os almofadinhas da
corte que sua mãe deve ter convidado. Recomendações aos
nossos amigos comuns, e saiba que o meu pensamento está com
você. Com muito amor, David T."
Brenna ficou amuada. O que mais além de vacas e carneiros
poderia exigir a presença dele em Norfolk? Todavia, como era de
seu temperamento, aceitou a desculpa do amigo resolvida a não
permitir que a ausência dele estragasse sua festa.
Depois de a refeição terminar e tudo ser posto em ordem,
Brenna circulou entre os convidados enquanto docinhos e
bebidas eram servidos. Com cada um, conversava de maneira
inteligente e delicada, recebia galanteios com secreto orgulho,
distribuía elogios comedidos e mantinha-se neutra em questões
de política ou quando o pai era mencionado. De um modo geral,
ela conseguia distrair e encantar a todos a seu redor até mesmo
aqueles de quem não gostava.
Já era de tardinha quando um murmúrio abafado percorreu o
ambiente. Brenna percebeu a razão imediatamente ao ver o sem-
blante da mãe sombreado pela raiva.
Sir Edward Coke havia desrespeitado a ordem da esposa e
chegava no final da festa. Ele encontrava-se na porta que dava
para o jardim, ladeado pelos filhos Clement e John.
— Que grande atrevimento! — exclamou Elizabeth.
— Mamãe, por favor! Entre, papai -- Brenna pediu depois de
se aproximar e, em seguida, beijou o pai.
Sir Edward respondeu apenas com um aceno de cabeça e
passou por ela sem dizer nada. Brenna abraçou os dois irmãos
por parte de pai e perguntou ao ouvido de Clement:

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

— O que está acontecendo?


— Não faço a mínima idéia. Foram me buscar em uma
taverna e me obrigaram a vir até aqui. Ah, parabéns! Quantos
anos, maninha?
— Dezoito, seu ingrato — Brenna respondeu bem-
humorada.
— Mas vamos ver no que aqueles dois estão empenhados
antes que briguem e estraguem a minha festa.
Brenna, com um sorriso displicente, respondia aos olhares
preocupados das visitas. Erguendo levemente as saias para poder
andar mais depressa e seguida logo atrás por Clement, foi em
direção aos pais.
— Como você cresceu! — o irmão murmurou-lhe ao ouvido.
— Teria reparado nisso antes se viesse me visitar de vez em
quando — replicou ela.
— Sabe muito bem que sua mãe, minha madrasta, me ame-
dronta — disse ele com um riso franco.
Brenna riu também. Dos seus seis irmãos e irmãs por parte de
pai, só se sentia bem em companhia de Clement. Ele era con-
siderado a ovelha negra da família e freqüentemente se rebelava
contra a tirania de sir Edward. Fora ele também que muitas
vezes, durante sua infância e juventude, a defendera contra o
progenitor exigente.
Parou atônita em frente aos pais, consciente de que chegava
tarde demais. O rosto de Elizabeth mostrava-se transfigurado
pela fúria e o de Coke, apoplético com a raiva contida.
Brenna foi tomada por um constrangimento imenso, pois
sentia os olhares de todos às suas costas. Com certeza esperavam
pela explosão iminente entre o casal, o que daria assunto às más
línguas por um bom período de tempo.
Contudo, quando ouviu a voz da mãe, esqueceu-se de tudo e
de todos. Jamais havia testemunhado palavras tão virulentas nas
brigas anteriores.
— Seu cão nojento! Embora eu soubesse que era a mais vil e
miserável das criaturas, jamais poderia imaginar que descesse tão

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OS AVENTUREIROS

baixo e cometesse tamanha violência!


— Mamãe! — Brenna murmurou, incrédula.
— Já está feito, madame — Coke afirmou em voz surda.
— De forma alguma e jamais se concretizará! Prefiro ver a
nós todos no fogo do inferno do que permitir que tal atrocidade
aconteça — Elizabeth garantiu numa voz rouca.
— Acredito que, de qualquer forma, esse é o seu destino, ma-
dame — sir Edward contra-atacou ao mesmo tempo que abria e
fechava as mãos num gesto nervoso.
— Do que se trata? — Brenna interferiu enquanto puxava a
mãe pelo braço.
Elizabeth virou o rosto lívida de ódio para a filha.
— Para proveito próprio, este cão nojento a vendeu para a
família Villiers.
Brenna levou as mãos ao peito num gesto de súplica.
— Oh, Deus amantíssimo, não... papai, não!
— E verdade — Coke admitiu sem enfrentar o olhar aflito da
filha.
— Os proclamas já foram publicados e você deverá se casar
com sir Raymond Hubbard.
Brenna sentiu o corpo balançar e os joelhos fraquejarem. Um
segundo antes de ser engolfada pela escuridão, viu Clement
sacudir a cabeça e baixar os olhos cheios de tristeza.

CAPITULO VIII

FRANÇA

Sob os cachos loiros e fartos dos cabelos de René de Gramont


existia a mente de um idealista. Sua idéia de paraíso na terra
resumia-se numa vida idílica, no campo, compartilhada com a
adorada Shanna nas colinas ondulantes e nos vinhedos sem fim
da Borgonha. Se seu pai, o rei Henrique IV, o tivesse criado junto
com os outros filhos naturais em St. Germain-en-Laye, talvez
suas aspirações fossem diferentes.

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OS AVENTUREIROS

Entretanto, o caso não fora esse. Rejeitado pela mãe


implicante e avara e pelo pai devasso, René considerava-se feliz
por ter encontrado abrigo na tranqüilidade de Fontevrault e
perto de Chinon.
A paz do campo tinha se tornado parte integrante de seu ser e
apagado a sensação dolorosa de vazio formada na infância. Esse
sossego passara a ser uma necessidade física para ele e, a cada dia
que se passava, sentia mais ódio pela vida em Paris. As tramas
políticas o irritavam profundamente.
René tinha consciência das manipulações a seu redor e da
ambição cega dos que as executavam. Sabia que Marie de
Médicis era uma mulher despudorada e ignorante que se juntara
a Concini e à esposa dele a fim de dissipar as riquezas da coroa e
da França.
Ele achava inacreditável que um mero jogador italiano e ex-
crupiê tivesse conseguido se tornar o marechal da França. No
entanto, era isso que Concino Concini fizera através da amizade
da esposa, Leonora, com a rainha-mãe.
Além do mais, para consolidar a posição alcançada, o italiano
tornara-se amante de Marie de Médicis. Muitas vezes René tinha
ouvido comentários, na corte, sobre a arrogância do homem que
costumava deixar os aposentos reais ainda abotoando a roupa na
frente dos cortesãos reunidos.
Através do abuso do poder, Concini havia acumulado fortuna
incalculável, da qual constavam várias casas em Paris e inúmeras
propriedades no campo, em Ancre e Lesigny.
Por essas razões, e outras tantas, o italiano era odiado não só
pelo povo francês como também por muitos que o rodeavam a
serviço. René muitas vezes falara sobre esse assunto a Rory
O’Hara, seu grande e mais chegado amigo e chefe da guarda de
Concini.
— Rory, mon arni, você me surpreende! Reclama da ambição
de Concini, das intromissões da mulher dele e da ignorância da
rainha-mãe e, no entanto, mantém-se a serviço deles.
— Como Richelieu, acho que um pedaço de pão se torna

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OS AVENTUREIROS

mais saboroso se lhe passarmos manteiga. Você, René, pode não


ser mais rico do que eu, mas é o filho de um rei, embora
bastardo, e um francês na sua pátria. Eu sou um apátrida que, se
quiser sobreviver, há de ser através da astúcia, da inteligência e
do relacionamento adequado com pessoas da corte.
— Você escolheu o professor certo.
— De fato. Nesse ponto concordo com O’Donnell. Tenho
certeza de que Richelieu, o mestre em fraudes e artifícios,
governará a França. Nesse dia, terei o meu lugar no mundo.
René havia encontrado quase a mesma reação em Shanna.
Embora ela não concordasse com a maneira como o rei Luís XIII
era mantido na situação de prisioneiro em seu próprio palácio,
por ser estrangeira sentia-se forçada a não expressar opiniões e a
receber as migalhas que caíam em seu caminho.
— Ah, René, um dia você verá. Eu serei novamente uma ir-
landesa na minha terra! Então não terei mais de me curvar em
frente a uma mulher balofa e grosseira, cuja corpulência é tão
inexpressiva quanto a mente.
René, por ser membro da guarda do rei, via-se forçado a
manter uma posição política diametralmente oposta à das duas
pessoas que mais amava no mundo. A linha que o separava de
Shanna e Rory tornou-se mais densa na noite em que foi
chamado pelo seu superior imediato, Nicolas de L'Hôpital, barão
de Vitry, para um encontro secreto nos próprios aposentos do
rei.
No momento em que recebeu a ordem de Vitry, ele começou
a se afligir. Teria a desavença entre o rei e a rainha-mãe e seus
protegidos se aprofundado? Planejariam o jovem rei e seu
companheiro predileto, Charles d'Albert, o duque de Luynes, um
golpe contra o enfatuado Concini? Se assim fosse, o que
sucederia a Shanna e Rory?
Essas perguntas martelavam a cabeça de René enquanto ca-
minhava, pelas sombras do Louvre, ao lado de Vitry e de Michel
d'Ornano, outro tenente da guarda do rei.
De Vitry era um homem corpulento e severo, um soldado

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OS AVENTUREIROS

nato e conhecido pelo ódio dedicado a Concini. Muitas vezes, na


sala da guarda do rei, René o tinha ouvido declarar, abertamente,
que o marechal era o próprio filho de Satã e a esposa dele, uma
bruxa.
— É uma afronta quando o rei da França tem de se encontrar
com o capitão e os tenentes de sua guarda em segredo —
reclamou de Vitry.
Ao subirem as pouco usadas escadas dos fundos que iam dar
nos aposentos do rei, René convencia-se, mais e mais, de que seu
capitão havia persuadido, por fim, o rei a tomar uma atitude.
Quando entraram no saguão externo e não encontraram
nenhuma das pessoas de confiança de Concini, ele teve plena
certeza de que se preparava algo contra o italiano.
Entre o grande número de presentes, encontravam-se de
Luynes, os dois irmãos dele, o frade franciscano Saint-Hilaire,
que recentemente passara umas semanas na Bastilha por ter feito
denúncias públicas contra Concini, e Guichard Deageant, chefe
do Ministério das Finanças, que deu um passo à frente e chamou
a atenção geral.
— Messieurs, Sua Majestade se reunirá a nós em poucos mi-
nutos. Enquanto o esperamos, gostaria de esclarecer alguns
pontos sobre a situação atual do reino que vêm causando
apreensão ao nosso soberano.
René estava a par de quase tudo que passou a ser dito, o que
se resumia em uma reiteração do desprezo pessoal de Concini
por Luís XIII e não um relato das condições do país.
Como exemplo da arrogância e do desacato do marechal para
com o rei, Deageant citou o fato de os homens de confiança de
Concini o tratarem por "Sua Majestade" na presença do
soberano. Seguiu-se o relato de casos semelhantes e,
naturalmente, referências ao relacionamento escandaloso do
italiano com a rainha-mãe.
Nesse ponto, de Luynes interrompeu:
— Digam-me, messieurs, os senhores consideram este verme
plebeu digno do título de rei?

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OS AVENTUREIROS

A resposta negativa foi unânime, sendo que a de Vitry foi a


mais eloqüente. Deageant retomou a palavra:
— Messieurs, o marechal Concini, nestes últimos quinze dias,
planejou o maior de todos os insultos e perigos para todos nós e
o rei. Ele pretende ser nomeado alto condestável da França.
D'Ornano soltou uma exclamação e de Vitry trocou um olhar
significativo com René. Nesse posto, Concini seria o comandante
supremo do Exército do rei e, como tal, governaria a coroa e o
país.
— Mon Dieu! Antes que isso aconteça, eu deceparei a cabeça
desse infame desgraçado! — de Vitry prometeu.
Deàgeant e de Luynes sorriram e o último explicou:
— O marechal deverá chegar aqui às dez horas, amanhã, para
uma reunião com o conselho real. O rei deseja que ele seja preso
nessa hora.
Deàgeant acrescentou:
— Acreditamos que o marechal é capaz de qualquer ato de
traição, mas também é covarde e medroso. Estamos certos de
que a combinação destas duas características o derrotarão.
A inferência era pura e clara como o dobrar dos sinos de
Notre Dame numa manhã de domingo. Faltava apenas a
aprovação do rei. Numa coordenação precisa e dramática, a voz
do frade Saint-Hilaire quebrou o silêncio:
— Messieurs, Sua Majestade, o rei Luís XIII.
Num movimento uniforme, todos tocaram um dos joelhos no
chão em sinal de respeito e obediência. Do quarto adjacente,
surgiu o jovem monarca de dezesseis anos de idade e, com passos
rápidos, entrou no saguão.
Ele se vestia de cetim e rendas brancas e, sobre um dos
ombros delicados, havia uma meia capa roxa com flores-de-lis
douradas. As vestimentas do rei, por si só, já anunciavam a
promessa de mudanças, pois ele sempre usava cores desbotadas e
neutras. Isso o ajudava a passar despercebido entre a mãe
dominadora e o irmão mais novo e viril, Gaston, o duque
d'Orleans. Todos exultaram com a novidade.

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OS AVENTUREIROS

Já fazia um ano que René não via o rei e notou que a


aparência física continuava a mesma. A cabeça e o nariz
pareciam grandes demais para o corpo franzino e os olhos
demonstravam a melancolia de sempre.
Tudo isso não passava de um reflexo da tortura mental a que
era submetido diariamente, René sabia. O pobre monarca devia
ter descoberto há muito tempo que cada dia passado na corte
dominada pela mãe desnaturada e pelo marechal ladino poderia
ser o último de sua vida.
Então o rei falou e René notou que, embora ainda gaguejasse
levemente, havia uma nota de decisão e autoridade nunca ouvida
antes.
— Messieurs, por favor, fiquem à vontade. Acredito não ser
necessário avisá-los de que tudo dito aqui esta noite não deverá
ser repetido.
— Compreendemos perfeitamente, Majestade — de Vitry re-
plicou, mal podendo conter a excitação.
— Fui orientado pelo meu bom conselheiro de Luynes, e por
outros aqui presentes, a reconhecer que já é tempo de a França
ter um verdadeiro soberano.
Ao ouvir essas palavras, a mão esquerda de René, que descan-
sava no cabo da espada, apertou-o num gesto nervoso. A sua
frente estava ao homem que seria rei.
— Tenho uma ordem, Majestade, para prender o marechal
Concini — de Vitry disse sem se importar em reprimir o sorriso
de satisfação. — Ela é em nome do rei?
— É, sim.
— E se ele resistir, Majestade, o que quer que eu faça? Luís
hesitou e dirigiu o olhar a de Luynes, que, por sua vez,
fitou Deageant. Novamente o encarregado das finanças do
reino deu um passo à frente e foi o porta-voz real.
— Capitão, Sua Majestade quer que o senhor aja como for
necessário para a realização do desejo dele.
O olhar de de Vitry desviou-se de Deageant para o rei. O
aceno positivo de Luís foi quase imperceptível, mas o suficiente

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OS AVENTUREIROS

para o capitão.
— A ordem de Vossa Majestade será executada com o
máximo cuidado e presteza.
Os três guardas curvaram-se perante o soberano e já iam se
retirar quando de Lyunes se aproximou e disse:
— Capitão, talvez fosse prudente prender também o duque
de La Mardine, braço direito de Concini e o capitão da guarda
suíça do marechal.
— O irlandês, Rory O’Hara?
— Ele mesmo.
— Entendido — de Vitry replicou e dirigiu-se a René e
d'Ornano.
— Apressemo-nos, pois temos uma noite de trabalho à nossa
frente.
René desceu a escadaria de mármore com o coração pesado.
Tinha seu dever a cumprir, e Rory o dele.
"Como poderei evitar que o capitão dos guarda-costas de
Concini não proteja o corpo do italiano amanhã de manhã?"
René pensou.

CAPITULO IX

A casa de madame Picard ficava na rua Marchant, perto de


Saint-Martin-des-Champs. A parte externa do prédio, de pedras
marrons e treliças de ferro, não se sobressaía das outras vizinhas.

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OS AVENTUREIROS

Entretanto, aqueles que passavam pela porta alta, de topo em


forma de arco, do Hotel de Picard, sabiam que se encontravam
no mais opulento prostíbulo de Paris.
As salas principais ostentavam paredes forradas de lambris
escuros de carvalho, e os quartos eram decorados com uma
prodigalidade sem limites. As cortinas eram de brocados
riquíssimos, as camas espaçosas possuíam dosséis apoiados em
quatro colunas e o forro de veludo vermelho das paredes
combinava com o dos divas. Os pés descalços dos ocupantes de
tais aposentos jamais sentiam a frieza do chão, pois tocavam
tapetes persas sedosos.
Tudo na casa de madame Picard era de extremo bom gosto, o
que tornava os serviços oferecidos bem dispendiosos. Por essa ra-
zão, Rory surpreendeu-se quando René, depois de terem ido
beber em várias tavernas, sugeriu uma visita ao famoso Hotel de
Picard.
— Ah, mon ami, minha bolsa não suporta tal extravagância!
— replicou Rory.
— Porém a minha, sim. Vamos lá, meu louco companheirão
irlandês — René instigou.
Assim, meio cambaleantes e com palavras exaltadas de elogio
à beleza e às habilidades amorosas das moças que os esperavam,
chegaram à casa de madame Picard.
Todavia, para surpresa de René, Rory recusou-se a subir ao
andar onde ficavam os quartos. Depois de se livrar da capa e da
espada, ele se acomodou em uma poltrona adamascada com uma
das pernas sobre o braço dela e a outra estirada à frente. Com
expressão de indiferença, pediu vinho.
René não podia compreender a mudança de humor do amigo
e não gostava disso. O êxito do plano arquitetado dependia de
levar Rory para cima e deixar que fosse entretido pelo resto da
noite e parte da manhã seguinte.

Já na ronda pelas tavernas, ele havia, às escondidas,


acrescentado o conteúdo de seu copo ao do amigo. Um homem

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OS AVENTUREIROS

normal, ao consumir a quantidade de vinho ingerida por Rory, já


estaria prostrado.
Contudo, ele fugia à regra e, depois de beber o suficiente para
três homens, continuava quase sóbrio. Mesmo assim, mal
prestava atenção a Monique, a meretriz jovem e linda que
tentava distraí-lo.
A moça era a jóia da casa Picard. Devia ter entre dezesseis e
dezessete anos, e os cabelos castanho-claros, que caíam em
cachos ao longo do rosto até os ombros, davam-lhe um ar juvenil
e de pureza. No entanto, sua arte em agradar o homem mais
exigente era famosa. René sabia que, se Monique não conseguisse
animar o amigo, ninguém mais o faria.
Ajoelhada ao lado de Rory, Monique interrompeu o afago que
lhe fazia no peito e ergueu os olhos para René.
— O que devo fazer, mon cher, violentá-lo aqui na cadeira?
Ele está tão insensível!
René fez-lhe um gesto para que se levantasse.
— Vá buscar mais vinho enquanto eu procuro reanimá-lo.
Assim que a moça desapareceu, ele se aproximou de Rory e pôs-
lhe a mão no ombro.
— Vamos, mon ami, por que essa indiferença toda? Assim vai
estragar uma noite que começou tão bem.
— Sou um covarde, René.
— Imagine, que bobagem! Deixe disso e vamos para a cama
com duas meninas que você se sentirá viril de novo.
— Estou dizendo a verdade. Minha irmã cuspiria em meu
rosto e O’Donnell me chamaria de traidor.
— Ah, é a Irlanda outra vez!
— Isso mesmo, a maldição de todo irlandês.
René contemplou a expressão de profunda melancolia no
rosto do amigo e, ao pensar nos planos políticos para a manhã
seguinte, os dedos crisparam-se nos ombros dele. Concini iria
morrer e os que estivessem a seu lado também ou, então, seriam
escorraçados de Paris. Armand de Richelieu, o homem a quem
Rory confiara o futuro, cairia.

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OS AVENTUREIROS

— Talvez, mon ami, devesse voltar para a Irlanda.


— O quê? — Rory exclamou, levantando-se. — Você é a
última pessoa de quem eu esperava ouvir isso!
— Sou seu amigo — René replicou à guisa de desculpa e
incapaz de fitá-lo.
— De certa forma, eu o invejo, pois tem uma reivindicação a
fazer.
— Ora! Do que adianta exigir que devolvam meu castelo se
ele não passa de um amontoado de ruínas no fim do mundo?
Não, René, a Irlanda não passa de uma amante traiçoeira.
Quando menino, costumava ouvir histórias contadas por homens
quebrados que ela derrotara. E, quando morreram, a única
recompensa recebida foi uma canção entoada por um trovador
errante pelas terras que não mais lhe pertenciam.
A resposta de René veio através de lábios trêmulos:
— Às vezes penso que La Belle France não é melhor. Temos
príncipes que matariam reis, estes, por sua vez, assassinariam
ministros e um povo que encararia a guerra civil como um
passatempo.
— Talvez — Rory sibilou ao segurar o amigo pelos ombros.
— Mas a França sobreviverá, e eu com ela!
René o encarou com firmeza.
— Acredito que a sobrevivência para homens como nós não
passa de um outro tipo de morte.
— Pois que seja assim. Pelo menos ela virá da ponta de uma
espada estrangeira e não da de um irmão compatriota.
O significado dessas palavras de Rory era bem claro. Muitas
vezes, Shanna havia contado a René histórias sobre a ganância
irlandesa. Ela revelara como a derrota de rebelião de The O”Neill
e The O’Donnell devia-se, em parte, ao fato de muitos irlandeses
negarem-se a se unir contra os ingleses. No final, tinha sido a
traição dos que procuravam ganhar os favores do invasor da
pátria que os vencera.
Aliás, era isso que, através dos anos, tinha destruído o
orgulho de Rory por sua terra natal e seu povo até chegar ao

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OS AVENTUREIROS

ponto em que não desejava mais ser irlandês.


René não tinha argumentos, pois sua situação não era muito
diferente. Trabalhava para Luís XIII não porque fosse o rei, mas
apenas para garantir um meio de vida.
— Monsieur?
Monique encontrava-se a poucos passos com dois copos nas
mãos. René separou-se de Rory e aproximou-se da moça para
apanhar a bebida. Ela olhou para o copo na mão direita e fez um
ligeiro sinal com a cabeça. Monique, certamente, fazia jus às cem
coroas recebidas de René naquela noite.
— Vamos, mon ami, o melhor que temos a fazer é afogar
nossa filosofia mórbida no vinho e aproveitar a vida. Amanhã
enfrentaremos os problemas que aparecerem.
Rory apanhou o copo que lhe era oferecido e, para alívio de
René, tomou, de um gole só, quase a metade do vinho contido
nele. Depois de limpar os lábios com as costas das mãos, disse
pensativo:
— Você deveria ir para a Irlanda, pois cada vez que olha para
a minha irmã fica com ar de bobo apaixonado. Ela quer viver lá e
você a deseja, portanto é uma boa solução. Além do mais, os
estrangeiros alcançam maior sucesso no cultivo da terra do que
os próprios irlandeses. Faça com que ela fique grávida, arranje
um padre e embarque para Eire. Talvez lá acabe encontrando o
lar que tanto procura.
— Ah, se eu pudesse... — René murmurou pensando nas
feições lindas e queridas de Shanna. — E se ela quisesse...
— Não lhe dê oportunidade de escolher — Rory começou
com uma súbita animação. — Coloque-a nos ombros e a leve
diretamente para a cama!
As últimas palavras mal tinham sido ditas quando o copo caiu
com um ruído seco no chão e Rory cambaleou de encontro ao
consolo da lareira. Segurou a cabeça entre as mãos e gemeu.
— Pelo sangue de Cristo... está tudo escuro...
René amparou-o antes que tombasse para a frente. Então,
Rory virou-se nos braços do amigo, abriu os olhos e fitou-o.

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OS AVENTUREIROS

"Ele sabe", René pensou.


Por um instante, teve medo de que a constituição robusta do
irlandês não cedesse ao efeito da poderosa droga, porém Rory ge-
meu novamente, fechou os olhos e amoleceu o corpo.
— Monique, a porta.
Foi preciso um grande esforço para arrastar o amigo escada
acima e deitá-lo numa cama. Com a maior rapidez possível,
despiu-o e cobriu-lhe o corpo com um lençol de Unho e uma
colcha de brocado.
— Fique com ele — recomendou a Monique.
— Ficarei, não se preocupe.
— E conserve as cortinas bem fechadas. Quando ele acordar
amanhã, não deverá calcular a hora pela luz do sol.
A moça assentiu com um aceno de cabeça.
René juntou as peças do uniforme da guarda de Rory e
colocou tudo sob o braço. O’Hara não poderia ser mais visto com
aquelas roupas. Monique já havia providenciado outras de
aspecto neutro, especialmente a capa.
Parou junto à cama e observou o semblante do amigo, mais
calmo sob o sono. Esperava que, um dia, Rory compreendesse e o
perdoasse pela sua intervenção nessa noite.
— Durma bem, mon ami, e me perdoe pelo que lhe fiz. Não
importa a desgraça que o dia de amanhã lhe trará, pois, pelo
menos, você estará vivo.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO X

De uma das aberturas na torre sobre o porão Bourbon do


Louvre, o olhar apreensivo de René percorria o pátio e a ponte
levadiça. De Vitry faria o mesmo de uma outra abertura à direita
e d'Ornano na seguinte.
O dia amanhecera com o céu cinzento e o ar úmido parecia
combinar com o estado de espírito das pessoas cientes do que
estava por acontecer. Uma neblina tênue envolvia as outras três
torres dos dois portões e quase encobria os mosqueteiros posicio-
nados em seus telhados.
Momentos antes, tinham recebido o aviso de que Concini,
acompanhado de uma comitiva de quarenta pessoas, havia
deixado o Hotel d'Ancre. Prosseguiam, agora, pela rua d'Autriche
em direção ao Louvre.
Estaria tudo em ordem? Haveria número suficiente de
homens no pátio? O plano meticuloso de de Vitry teria êxito? As
folhas pesadas dos portões Bourbon e Philippe-Auguste se
fechariam no momento exato, isolando Concini e alguns poucos
seguidores na ponte levadiça, separando-os, assim, de seus
guarda-costas?
Essas perguntas, e mais uma centena delas, atormentavam a
mente de René enquanto as mãos acariciavam os cabos dos dois
arcabuzes presos ao cinto.
Uma interrogação parecia dominar as demais. Seria o
assassinato a única maneira de livrar a França daquele homem?
De manhã cedinho, de Vitry tinha explicado esse ponto com voz
autoritária.
— Se o filho de Satã viver e houver um julgamento, os crimi-
nosos de Paris dominarão a cidade e acabarão matando a todos
nós, inclusive ao rei.
René concordara com um gesto de cabeça e percorrera os
aposentos do Louvre onde se encontravam pessoas que seriam
afetadas com os próximos acontecimentos daquela manhã.
O rei se entretinha jogando bilhar com de Luynes e parecia

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OS AVENTUREIROS

calmo, embora o olhar traísse um certo nervosismo.


Provavelmente, temia a possibilidade de um fracasso. Corriam
boatos de que Concini fora avisado e já reunia seus defensores.
René garantiu que tais rumores eram falsos e informou Sua
Majestade que uma carruagem puxada por seis cavalos achava-se
preparada para levá-lo a um lugar seguro na eventualidade de
algo sair errado. Todavia gostaria de saber qual seria seu destino,
e de outros, caso Concini sobrevivesse.
— Que Vossa Majestade me perdoe pela audácia, mas, se o
marechal escapar e pressioná-lo para saber os nomes dos
conspiradores que...
— Monsieur, pode informar a de Vitry e aos outros que minha
resolução de me manter calado não se abalará mesmo que tenha
de enfrentar a morte — o jovem rei declarou com firmeza.
— E, de Gramont, se todos nós sobrevivermos hoje, acredito
que o promoveremos a capitão. Afinal, se o que dizem é verdade,
será o mínimo que poderei fazer a um meio-irmão.
O coração de René bateu excitado. Era a primeira vez que um
membro da família real insinuava reconhecer sua condição de
filho natural de Henrique IV.
— Sou-lhe muito grato, Majestade.
A euforia produzida por essa declaração do rei o acompanhou
nas atribuições finais pelo palácio e quase o fez esquecer a
repulsa sentida pelo que deveria cometer dali a pouco.
Nas duas últimas investigações, René verificou que Marie de
Médicis se encontrava em seus aposentos e Leonora Concini, nos
dela, bem acima dos da rainha-mãe. Provavelmente ela devia
estar entretida com seu passatempo favorito, ou seja, admirando
e contabilizando as peças roubadas de sua imensa fortuna.
Enquanto isso, o marido caminhava para a morte.
— Lá vem ele!
A voz de de Vitry soou como um trovão aos ouvidos de René e
alertou todos os seus sentidos. Olhou para o vão aberto do
portão Bourbon e viu o marechal, que o atravessava.
Ele estava vestido de preto, com calções de cetim e gibão e

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OS AVENTUREIROS

capa de veludo bordados com fios de ouro. A pouca luz do dia


nublado refletia no cabo da espada cravejado de pedras
preciosas.
Concini caminhava devagar, uns dois passos à frente de La
Mardine e de um grupo de cortesãos subservientes, e mostrava-
se absorvido num maço de papéis de tinha nas mãos.
— Que diabo! — d'Ornano exclamou. — Onde estará o
irlandês? Cinco membros da guarda suíça haviam precedido o
marechal e já tinham atravessado a ponte. Outros tantos, à
retaguarda, aproximavam-se do portão. Não havia sinal de Rory.
René suspirou aliviado e, mentalmente, agradeceu o esforço
perseverante de Monique.
— Não tem importância — de Vitry afirmou já em direção à
porta da torre.
— A vantagem é nossa, pois esses mercenários suíços não
sabem lutar sem um bom capitão. Vamos embora!
— acrescentou.
Desceram os degraus de pedra da escadaria de três em três e
saíram para o pátio. Uma chuva fraca começava a cair e ouvia-se
o estrondo distante de trovões.
Passaram pelos cinco guardas suíços e apenas dois os
saudaram. Concini se encontrava no meio da ponte, ainda
distraído com os papéis que examinava, quando as folhas pesadas
do portão Bourbon fecharam-se com um grande ruído à
retaguarda dele. Por sobre o ombro, René viu que o mesmo
acontecia com as do Philippe-Auguste, o que isolava o marechal
de seus protetores.
De Vitry, ladeado por René e d'Ornano, caminhou depressa
pela ponte e parou a poucos passos do pequeno grupo, com as
mãos levantadas no ar.
— Concino Concini, eu o prendo em nome do rei!
O marechal levantou os olhos dos papéis com expressão de
surpresa. Viu os portões fechados à frente e virou-se para trás.
Chocado, verificou que os de lá também estavam cerrados. Petri-
ficado, perguntou:

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OS AVENTUREIROS

— Eu?!
— Sim! — de Vitry gritou. — Em nome do rei Luís XIII de
França! Em seguida, ele deu dois passos para trás ao mesmo
tempo que as mãos firmes empunhavam as pistolas tiradas do
cinto. Esse era o sinal combinado, e René fez o mesmo. Pelo
canto dos olhos, viu que d'Ornano seguia-lhe o exemplo.
O italiano jogou fora os papéis e, um tanto inclinado para o
lado, levou a mão direita ao cabo da espada. Um verdadeiro pan-
demônio criou-se atrás dele. Seus seguidores atiravam-se ao chão
e alguns deles chegaram a pular nas águas barrentas do fosso
abaixo.
De Vitry atirou primeiro mas acompanhado do fogo das duas
armas de d'Ornano. As três balas atingiram Concini quase ao
mesmo tempo. Mortalmente ferido, ele caiu de joelhos e vergou
o corpo sobre a corrente da ponte levadiça. De Vitry guardou a
pistola e aproximou-se do marechal já empunhando a espada.
Com um grito de triunfo, enterrou a lâmina no peito do
moribundo.
Por uma fração de segundo, René ficou meio aturdido, porém
recobrou logo a presença de espírito. Empunhou a espada e, lado
a lado com d'Ornano, aproximou-se do duque de La Mardine e
de dois de seus tenentes.
O chefe da guarda de Concini já começava a desembainhar a
espada, mas não teve tempo de completar o gesto. De Gramont já
lhe tocava as rendas da camisa com a ponta da arma. Ao mesmo
tempo, de Vitry puxava a lâmina ensangüentada do corpo do ita-
liano, levantando-a para o ar e gritando:
— Por ordem do rei! Viva o rei!
Durante a confusão, as pessoas que passavam pelo lado de
fora dos muros do Louvre gritavam assustadas, todavia, agora,
começavam a aclamar o feito.
D'Ornano juntou a ponta da espada a de René na garganta de
Ia Mardine.
— Viva quem? — perguntou com voz gelada.
O duque deixou que a espada escorregasse para dentro da

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OS AVENTUREIROS

bainha e largou o cabo.


— Viva o rei — disse ele ao fitar de Gramont e d'Ornano com
olhar inexpressivo.
René sentiu algo estranho percorrer-lhe o braço e foi com
esforço que não matou o homem. No olhar vidrado de La
Mardine, ele teve a impressão de vislumbrar a própria morte.
Nesse instante, de Vitry ordenou-lhe:
— Apresse-se e vá informar Sua Majestade que a ordem foi
cumprida.
Ele mal pôde sacudir a cabeça e dirigiu-se para o portão
interno. O outro já estava aberto e o povo invadia a ponte para
ver o corpo do morto.
As mesmas frases estavam nos lábios de todos.
— O estrangeiro morreu... Vive Ia France... Vive le roil — gri-
tavam, eufóricos.
De seus aposentos, Shanna ouvia o vozerio excitado, mas não
podia entender o que diziam, pois suas janelas davam para o lado
oposto do pátio. Só quando duas de suas criadas entraram no
quarto, esbaforidas e com os rostos lívidos, foi que teve notícias
do que se passava.
— O que aconteceu? — gritou ela, nervosa.
Como resposta só obteve o choro convulso e histérico das
moças. Agarrou a mais próxima pelos ombros e sacudiu-a.
— Fale logo, menina! O que foi? — Monsieur le marechal...
— Concini? O que houve com ele? — indagou Shanna com
apreensão na voz.
— Foi assassinado! — revelou a criada num murmúrio, e es-
corregou desmaiada no chão.
— Mon Dieu! — Shanna exclamou atônita, para, em seguida,
ordenar à outra moça:
— Vá depressa apanhar a princesa Henrietta Maria e teve-a
para o quarto mais afastado do apartamento da princesa
Christine. Tranque bem a porta e não saiam de lá. Entendeu
bem?
— Oui, mademoiselle.

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OS AVENTUREIROS

— Então, corra!
A moça obedeceu e Shanna acompanhou-a até ter certeza de
que suas ordens seriam cumpridas. Nesse momento, só podia
pensar na segurança das princesas. Se Luís havia se rebelado
contra a tirania da mãe e de Concini, poderia chegar a extremos e
se livrar de outras pessoas ligadas ao marechal, mesmo que
remotamente e que se tratasse das próprias irmãs.
De repente, a importância do pedido de René tornava-se
clara. Indiferente à modéstia, arregaçou as saias quase à altura
dos joelhos e subiu correndo a escadaria que levava ao andar
superior. Sem bater, irrompeu pelos aposentos da rainha-mãe,
atravessou a sala e entrou no quarto.
Shanna ficou estarrecida com a cena à sua frente. No
ambiente luxuoso onde se sobressaíam os espelhos enormes em
molduras douradas e tapeçarias venezianas reinava a maior
confusão. As damas de companhia de Marie de Médicis andavam
a esmo enquanto gemiam e choravam de tristeza e medo.
No meio delas encontrava-se a volumosa e disforme rainha-
mãe. Era evidente que ela recebera a notícia antes de ser vestida
e penteada. Usava apenas um camisolão e os cabelos estavam
soltos e emaranhados. Como as outras mulheres, Marie de
Médicis ia de um lado para o outro do quarto, porém tropeçava
quase a cada passo.
— O meu reinado foi de sete anos! — gritou ela em tom
agudo e irritado.
— Será que só poderei contar, agora, com uma coroa no céu?
Terá o meu filho traidor coragem de matar a todas nós?
Essas palavras foram recebidas por exclamações estridentes
das outras. Shanna observou a situação e foi invadida por uma
grande calma. Percebia que não se importava, nem um pouco,
com a segurança dessa mulher gorda e antipática, todavia preo-
cupava-se com as princesas Christine e Henrietta Maria. E, para
impedir que algo acontecesse a elas, era preciso garantir a
proteção da rainha-mãe.
Cheia de decisão, ela abriu caminho, meio à força, entre as

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OS AVENTUREIROS

damas de companhia e aproximou-se de Marie de Médices.


— Majestade... Majestade!
A única resposta foi um olhar vago e amedrontado.
— Majestade, precisamos fugir. O povo associa Vossa
Majestade a Concini de maneira perigosa.
A menção do nome do marechal aumentou o desespero da
rainha-mãe. Ela caiu de joelhos e levou as mãos ao rosto.
— Esse idiota! Porco ganancioso! — gritou, raivosa. — Dio
mi salvi... Dio mi salvi!
"Que Deus salve a nós todos", Shanna pensou, "se esta
situação não for encarada com um mínimo de sanidade mental!"
Marie de Médicis não era uma criada e, portanto, Shanna não
podia sacudi-la pelos ombros. Tentou falar-lhe novamente, o que
fez com voz pausada e calma.
— Majestade, precisamos deixar o palácio e ir para o campo.
As princesas...
— Ah, minhas filhinhas! Ele assassinou as irmãs enquanto
dormiam!
Shanna percebeu que qualquer esforço seria inútil, pois a mu-
lher, pelo que dizia, já beirava o desvario. Nesse momento,
monsieur La Place, criado de Leonora Concini, entrou no quarto.
Ao vê-lo, ela reconheceu que a italiana, por exercer grande
influência em Marie de Médicis, era a única pessoa capaz de fazê-
la raciocinar, mesmo que pouco.
Dirigiu-se a ele, mas foi bloqueada pelas mulheres histéricas e
aturdidas.
La Place se ajoelhou na frente da rainha, tendo o cuidado para
não fitar a figura grotesca que ela apresentava com a camisola e
os cabelos desalinhados.
— Majestade...
— Você! O que quer aqui? — gritou ela, reconhecendo-o.
— A senhora Concini ainda não sabe da tragédia. Pensei que
Vossa Majestade poderia informá-la.
— Eu?! — de Médicis rugiu. — Se você não quer contar para
aquela bruxa que o marido foi trucidado, dane-se! Eu é que não

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OS AVENTUREIROS

vou fazer!
— Mas, Majestade...
— Suma daqui, idiota pretensioso. Tenho de me preocupar
com outras pessoas.
Shanna deixou o quarto com passos incertos, o rosto lívido, o
corpo trêmulo e uma imensa repulsa. Não existia mais honra?
Seria a preservação da própria vida a ordem do dia? E a corte
inteira da França, não passaria de um covil de ladrões e
assassinos lamurientos e covardes?
De súbito, ela caiu em si, dando-se conta de que essa era a
realidade e de que precisava escapar o mais depressa possível
enquanto houvesse tempo.
Atravessou a sala e, ao abrir a porta, viu o caminho bloqueado
por dois guardas de olhar severo e mosquetes cruzados.
— Por ordem do rei, ninguém sai ou entra nos aposentos
reais — informou um deles.
Rory O’Hara praguejou contra madame Picard e seu estabele-
cimento, o que provocou lágrimas sentidas em Monique. Mais
furioso ficou ele ao dar por falta do uniforme e encontrar, no
lugar dele, um gibão e calções usados e de tecido ordinário. Não
teve outro remédio senão vesti-los.
Quando chegou à rua, a chuva e o mau cheiro o deixaram
mais deprimido ainda. Já passava do meio-dia e ele deveria ter se
apresentado em serviço às oito da manhã.
Meio atordoado pela ressaca forte, caminhava ao longo do
Sena, em direção à Pont Neuf, e imaginava se La Mardine não lhe
deceparia a cabeça ou, pelo menos, tomaria suas dragonas de
capitão. Quando chegou à rua St. Jacques, ouviu uma algazarra
permeada de aclamações que vinha do outro lado do rio. Dirigiu
o olhar à lie de Ia Cite e à praça em frente da Catedral de Notre
Dame, onde uma grande aglomeração de homens e mulheres
dançava e cantava. Misturados a eles, Rory reconheceu alguns
mosqueteiros do rei, que giravam os chapéus de plumas na ponta
das espadas levantadas no ar.
Embora não pudesse entender as palavras, algo na exaltação

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do povo fez com que sentisse um calafrio percorrer-lhe o corpo,


um frio muito pior do que o provocado pela chuva no rosto.
Rory apressou o passo, mas se viu barrado pouco mais adiante
por uma carruagem puxada por quatro cavalos. Reconheceu-a
logo por ser preta, de linhas simples, e pela libre roxa do cocheiro
e
do lacaio.
— Excelência — disse ele ao aproximar-se da porta e ver o
rosto pálido de Armand de Richelieu pela fresta das cortinas
entreabertas.
— Ah, é você mesmo, O”Hara. Eu não estava bem certo. Entre
depressa, meu filho!
A tensão na voz geralmente tão calma alarmou Rory. Subiu ao
coche e sentou-se no banco em frente ao bispo. Mal a porta se
fechava e já partiam.
— Considerando os acontecimentos desta manhã, você
escolheu um ótimo disfarce — Richelieu comentou em relação às
roupas modestas de Rory.
Este, constrangido, ficou vermelho e tentou encontrar
palavras para explicar a vestimenta estranha. Nesse momento,
depois de uma curva, a carruagem entrou na Pont Neuf.
— Alto lá, cocheiro! Quem é o seu senhor? — gritou alguém
ao interromper a passagem pela ponte.
O bispo abriu as cortinas e Rory soltou uma exclamação
quando olhou por cima do ombro de Richelieu.
— Deus misericordioso, padre!
Pendurado pelos calcanhares no cadafalso que ele mesmo
construíra como aviso aos prováveis rebeldes franceses, estava o
corpo nu de Concino Concini.
— Foi assassinado esta manhã por ordem do rei e pelas mãos
de de Vitry. Você não sabia?
— Richelieu explicou vendo a surpresa de Rory.
— Não, eu...
Foi interrompido por alguém que abria a porta da carruagem.
Um rosto com expressão excitada apareceu e já abria a boca para

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OS AVENTUREIROS

falar quando o bispo o fez primeiro.


— Está aqui a serviço do rei?
— Oui. Vamos esquartejar o traidor italiano e espalhar os pe-
daços dele pelos quatro cantos de Paris!
Richelieu empalideceu mais ainda, porém conseguiu falar
com firmeza.
— Pois cumpra o seu dever enquanto vou cuidar do meu.
Deus salve o rei! Viva Luís!
Aclamações exaltadas ecoaram da multidão, que, ameaçadora,
rodeara o coche, mas que abria caminho ao ouvir as saudações. O
homem à porta gritou:
— Seja quem for, continue seu caminho. Hoje só os com-
parsas de Concini, e não os seguidores do rei, saciarão o ódio dos
parisienses.
A carruagem prosseguiu e só depois de ter atravessado a Pont
Neuf e virado para os lados da rua des Mauvaises-Paroles foi que
Richelieu voltou a se acomodar no encosto do banco. Calado,
fixou o olhar penetrante no homem à sua frente.
— Então acabou acontecendo o pior — disse Rory ainda sem
ter assimilado bem o fato e com a mente confusa.
— Oui. È eu me amaldiçôo por ter sido o mais perfeito idiota
e não haver previsto esse desenlace. Luís, agora, conta com a
idolatria do povo e conseguirá conquistar poder completo e
absoluto.
Os pensamentos de Rory começaram a se tornar mais ordena-
dos. Como o bispo, era necessário avaliar sua situação em face ao
assassinato de Concini.
— Vossa Excelência ainda é secretário.
— Infelizmente, não. De Médicis será exilada em Blois até
que seu castelo em Moulins esteja preparado para recebê-la.
Minhas ordens são para acompanhá-la nesse período de reclusão.
De repente, com o raciocínio mais claro, Rory exclamou,
aflito:
— Minha irmã, Deus do céu!
— Está em segurança — garantiu Richelieu. — Ela irá acom-

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OS AVENTUREIROS

panhar as princesas para Saint-Germain-en-Laye. O rei decretou


a separação da família real a fim de desencorajar de Médicis a
aliciar as filhas com o propósito de cair nas boas graças de Luís.
Tranqüilo em relação a Shanna, Rory voltou a encarar a
própria situação.
— Sou agora um capitão sem encargos. Deverei acompanhá-
lo a Blois?
— Seria um tolo se o fizesse. Seu nome anda de boca em
boca na corte, O’Hara.
— Por quê?
— Temem o seu talento como líder e soldado. De Vitry e os
mosqueteiros do rei preferem sua cabeça antes que mobilize a
guarda do marechal numa tentativa de retaliação.
Rory sorriu com desdém.
— Então meus serviços continuam sob as ordens de La
Mardine.
— Também não, O’Hara. Por causa de sua ausência esta
manhã, o duque pensa que você é um traidor que contribuiu
para o golpe. La Mardine encontra-se na Bastilha por ordem do
rei. Todavia o homem é esperto e maleável como o vime que
verga de acordo com o vento. Cedo ou tarde, ele será solto,
acredito, e o matará. Foi o que jurou alegando sua perfídia.
— E compreensível, mas piora minha situação e não me
deixa escolha alguma — Rory lamentou com um suspiro.
— Existe uma solução — garantiu o bispo. O”Hara fitou o
olhar frio e calculista de Richelieu.
— E qual é ela? — indagou, curioso.
— Deixe a França!

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XI

O longo cortejo contava vinte carruagens e duas guarnições


de cavalaria muito bem armadas. Trombetas anunciavam sua
passagem pelas ruas de Paris, porém o som era quase totalmente
abafado pelos gritos de chacota do povo que ladeava seu
caminho.
Os últimos dias tinham sido tenebrosos e caóticos.
Finalmente, o corpo de Concini fora arrancado das mãos da
população e enterrado. Leonora, sua esposa, presa ainda quando
se encontrava em seus aposentos no Louvre, não tivera destino
muito diferente. Inúmeras jóias da coroa e milhares de libras
foram achadas numa arca aos pés de sua cama.
O povo exigira um julgamento rápido e a italiana fora
condenada por bruxaria. Menos de quinze dias após o assassinato
do marido, ela era decapitada na Place de Greve perante uma
multidão excitada e agressiva.
— Quanta gente, só para ver uma pobre mulher morrer! —
murmurara ela.
Para surpresa geral, o rei fizera esforços para governar. Con-
tudo, no fim de poucos dias tomou-se claro que Luís, como a
mãe que o antecedera, estava destinado a submeter-se à
influência dos conselheiros.
Depois de atravessar o Sena, o cortejo rumou para o sul en-

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quanto três carruagens separaram-se do centro da caravana e to-


maram a direção norte. Uma das guarnições da cavalaria desta-
cou-se para acompanhá-las. A frente dela, ia René de Gramont,
sorridente e orgulhoso de seu novo uniforme de capitão.
A promoção era recompensa do rei, porém de Vitry havia lhe
dado o comando da guarda responsável pela segurança da
princesa Henrietta Maria no exílio. Qualquer outra pessoa
consideraria um grande castigo ter de deixar Paris, mas para
René a mudança era um presente dos céus. Na carruagem ao lado
de seu cavalo fogoso viajava Shanna O’Hara.
Juntos, eles passariam longos meses em Saint-Germain-en-
Laye, nas lindas colinas cobertas de matas além do Sena. René
estava certo de poder, durante esse tempo, conquistar o amor da
única mulher que sempre desejara.
Dentro da carruagem, Shanna mantinha os braços à volta da
princesa, num gesto aconchegante de carinho.
— Você não está com medo, não é, minha queridinha?
— Nem um pouco, Shanna, eu já disse. Conversei com o rei e
descobri que nenhum mal me acontecerá, ou a Christine. E do
meu irmão Gaston que Luís não gosta, e não o acolherá na corte.
Ele é quem deve estar com medo.
Shanna não conseguiu evitar um sorriso diante da seriedade
com que a menina se expressava. Não deixava de existir uma
certa verdade no mito sobre a superioridade da realeza.
— Luís afirmou ter grandes esperanças de que eu e Christine
nos casemos com reis — acrescentou a menina.
— Não tenho a menor dúvida quanto a isso — Shanna
garantiu e deixou que Henrietta Maria continuasse a falar sobre
as probabilidades do futuro sem lhe dar muita atenção.
Na verdade, ela estava preocupada consigo mesma, pois não
tinha mais com quem contar. Seu protetor e de Rory, Armand de
Richelieu, também caminhava para o exílio. O irmão partira para
a Inglaterra com a promessa de mandar buscá-la assim que che-
gasse a hora certa.
Shanna, todavia, estava cansada de esperar pelo momento

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OS AVENTUREIROS

oportuno e de que outros decidissem sobre sua vida.


Deste dia em diante, estava determinada, resolveria seu
próprio destino. O primeiro passo constituía em encontrar uma
maneira de escapar de Saint-Germain-en-Laye.
A carruagem luxuosa de Marie de Médicis encabeçava a comi-
tiva rumo ao sul.
O contingente bem numeroso que a seguia e à carruagem se-
guinte, onde estavam o duque e a duquesa de La Mardine, era
composto de soldados de expressão severa e rígida. De Vitry
tinha se mostrado intransigente sobre esse ponto, pois o ex-
comandante dos guarda-costas de Concini ainda exercia certa
influência em alguns nobres. Tanto de Luynes quanto de Vitry
tinham certeza de que qualquer tentativa de golpe contra Luís
XIII começaria com La Mardine.
Só a própria rainha-mãe tinha conseguido salvar o duque da
sentença de morte. Ela suplicara ao filho e a de Luynes com ar-
gumentos convincentes que o poupassem.
— Não se esqueçam de que existem aqueles desejosos de me
matar enquanto durmo. Será que vou ter de viver isolada, sem
ninguém para me proteger e se interpor entre mim e a adaga do
meu suposto carcereiro?
Embora Luís tivesse se mantido impassível e indiferente, re-
conhecera a verdade nas palavras da mãe e havia decretado que
La Mardine a acompanhasse como guardião pessoal.
O duque concordara. Até mesmo prisão domiciliar em Blois
na companhia dessa mulher emproada e destituída do poder era
melhor do que continuar detido na Bastilha. Como reconquistar
a liberdade assim que chegassem ao destino final da viagem era o
que lhe ocupava a mente na carruagem, onde se sentava à frente
de sua chorosa mulher.
— Você só me deixou trazer metade de minhas roupas! — la-
mentou-se ela em prantos.
— Não vai precisar mais do que isso — replicou o marido
com irritação.
Carlotta, a duquesa de La Mardine, parecia mais uma campo-

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nesa plebéia do que alguém de estirpe nobre. Os cabelos longos e


loiros, que há dias não eram penteados com o esmero habitual,
tinham sido enfiados sob um capuz grosseiro e marrom.

Durante dois dias e três noites ela havia permanecido,


trancada por dentro, em seu quarto na casa em Paris. Carlotta
recusava-se a acompanhar o marido a Blois e, teimosa, insistia
em ir para o castelo em La Mardine.
Finalmente, com o auxilio dos criados, o duque arrombara a
porta. Depois de vestir a mulher com a primeira roupa
encontrada, levara-a, à força, até a carruagem que os esperava no
pátio.
Enquanto atravessavam a cidade de Paris, Carlotta não parou
um só instante de se lamuriar a respeito do sofrimento a que
estava sendo submetida por culpa do marido, cujos privilégios na
corte haviam sido tomados.
— Carlotta, fique quieta! — ordenou o duque.
Ela não lhe deu ouvidos e passou a reclamar da vida que a
esperava em Blois. Lá não haveria festas, bailes e, pensou, muito
menos jovens e atraentes guardas e mosqueteiros desejosos de
agradá-la. Não existia a menor possibilidade de manter um caso
romântico no castelo de Blois.
— Vou morrer de tédio, tenho certeza — afirmou ela.
0 marido, imbuído nos próprios pensamentos, ignorava-a. Es-
tava muito mais interessado em arquitetar as planos de fuga de
Blois e da França. Há alguns anos, La Mardine fizera amizade
com um jovem inglês que visitava Paris. No rapaz elegante e
bonito, ele identificara o mesmo tipo de ambição que admirava.
Como Richelieu, o duque apercebia-se da necessidade de cultivar
um bom relacionamento com estrangeiros, pois nunca se sabia
quando ele viria a ser útil. No caso do inglês de cabelos cor de
areia, La Mardine havia acertado. Com um sorriso, pensou:
"George Villiers, o duque de Buckingham, será um amigo valioso
e de poder quando eu escapar do castelo e fugir pelo canal".
Richelieu que se ocupasse da antipática Marie de Médicis e

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tentasse ganhar as boas graças do rei e de de Luynes. Enquanto


isso, ele, La Mardine, teria o auxílio de toda a corte inglesa para
sua volta triunfal à França.
A voz exasperada da mulher interrompeu-lhe as idéias:
— Você é um porco por me tratar dessa maneira! O próprio
de Luynes afirmou que eu não significava ameaça à coroa e, por-
tanto, poderia ficar em La Mardine.
— Você, minha cara, é uma ameaça a quem quer que se apro-
xime de sua pessoa.
— Tenho sido uma esposa exemplar!
— Não, um modelo perfeito de prostituta.
— Como se atreve...
Antes que terminasse a frase, a mão do duque estalou com
violência em seu rosto. Carlotta gemeu uma vez apenas e enco-
lheu-se nas almofadas do banco, com os olhos lacrimejantes arre-
galados de ódio ao fitar o marido.
La Mardine reconheceu a expressão, porém não se importou.
Afinal, sabia que por ser odiado seria também temido. O medo
era a manivela que impulsionava as manipulações de homens e
mulheres.
Nesse exato momento, na última carruagem da comitiva de
Marie de Médicis, o bispo, Armand de Richelieu, escrevia no
diário apoiado ao colo: "O medo, como a crueldade, é uma ne-
cessidade imperiosa num governo. Os países, da mesma forma
que os homens, não podem ser dirigidos pela bondade, e sim
com rigor. A severidade, quando manejada por mãos certas,
poderá construir uma grande nação".
Ele parou de escrever e fechou o diário. Em seguida, ergueu as
mãos à altura dos olhos e, bem devagar, fechou-as com firmeza.
— Se Deus quiser, estas serão as mãos certas quando chegar
o momento oportuno!
— Richelieu murmurou, convicto.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XII

INGLATERRA

Sir Edward pretendia melhorar sua situação na corte através


do casamento da filha e, quanto à mulher, que fosse para o
inferno!
— Jamais! — protestava Elizabeth. — Duas vezes o meu
corpo foi usado para satisfazer a ambição de outras pessoas, mas
juro por Deus que Brenna não sofrerá o mesmo destino!
Enquanto recados eram trocados entre Stoke Poges e Hatton
House, a mãe tornava-se mais furiosa e o estado de depressão da
filha aumentava assustadoramente.
Dias inteiros, desde o raiar do sol até altas horas da noite,
Brenna mantinha-se dentro do quarto, em prantos. Era com
desespero que sentia falta de amigos a quem pudesse confiar a
grande angústia que a consumia e ser consolada por eles.
A única pessoa com quem poderia contar era David Talbot.
Encarregou Christopher, o filho único de Honor e Charles, os

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OS AVENTUREIROS

fiéis criados de sua mãe, de levar uma carta para o amigo. Todos
os outros empregados da mansão não eram dignos de confiança.
Infelizmente, a resposta de David revelou que ele também
enfrentava grandes problemas. Buckingham estava exigindo um
preço tão alto pela tal propriedade irlandesa que Talbot
precisaria dispor de uma quantia dez vezes mais alta que sua
fortuna para poder comprá-la.
Além do mais, Coke estava se valendo da cláusula do contrato
de aluguel da propriedade de North Elmeham que obrigava o in-
quilino a desocupá-la antes do casamento da filha. David tinha
apenas um mês para deixá-la.
Só agora Brenna ficava sabendo que o amigo tomara a seu
serviço refugiados irlandeses a quem ensinava métodos ingleses
de administração agrícola e de lavoura. Na verdade, dizia ele na
carta, restavam-lhe menos de trinta dias para encontrar casas
onde abrigar cinqüenta empregados e suas famílias, senão
perderia o planejamento e o trabalho de dois anos inteiros.
Brenna não teve coragem de descarregar seu infortúnio nos
ombros de David.
Enquanto a filha lutava naquele estado sombrio de
infelicidade, lady Hatton tornava-se mais inflexível na procura da
vitória. Para Elizabeth não se tratava mais do simples casamento
de Brenna com sir Raymond Hubbard e sim da destruição
completa de sir Edward Coke.
— Vou procurar a rainha Anne e o próprio rei. Sou até capaz
de beijar as botas de Buckingham, mas você não se casará com
um almofadinha idiota e sem dinheiro! E eu também não vou
permitir ser derrotada mais uma vez por um marido cujas
patifaria e ganância sobrepõem-se aos meus direitos.
Essas últimas palavras da mãe deixaram Brenna surpresa e
magoada. Percebia que o orgulho de Elizabeth tinha tanta impor-
tância para ela quanto seu próprio futuro.
— Acredito, mamãe, que não é tanto ao casamento que você
se opõe e sim ao fato de papai ter escolhido o noivo sem
consultá-la — declarou ela, sentida, para em seguida voltar à

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OS AVENTUREIROS

solidão do quarto.
Todavia a queixa não teve o mínimo efeito em lady Hatton.
De fato, ela se encontrava cega a tudo que não se referisse à sua
luta pessoal contra o marido.
Como já havia feito tantas vezes no passado, Elizabeth
procurou o auxílio de sir Francis Bacon. Quase diariamente,
encontrava-se ou escrevia ao lorde defensor, cujo grande poder o
fazia subalterno apenas a Buckingham ou ao próprio rei, em
assuntos de Estado.
Sem hesitação, escreveu a Buckingham na Escócia,.
"Meu muito prezado senhor,
Por razões de amizade e por me orgulhar em lhe ser fiel, vejo-
me no dever de expor minha opinião sobre o provável casamento
do primo de milorde. Creio ser essa uma união muito
inconveniente para ele, bem como para a família toda. Ligá-la a
outra tão instável e causadora de escândalos como a de sir
Edward Coke seria muito imprudente.
Sir Raymond se casaria com uma moça cujos pais não gozam
de respeito graças às divergências, aliás públicas, entre ambos,
além de até hoje não viverem como marido e mulher.
Acima de tudo, milorde correria o risco de perder todos os
amigos que se antagonizam e depreciam sir Edward Coke.
Naturalmente, eu seria uma exceção, pois, devido à grande
estima que lhe dedico, jamais o abandonaria.
Seu servo fiel e obediente, F. Bacon."
Palavras fortes demais quando se levava em consideração que
eram dirigidas ao homem mais poderoso do reino, cuja mãe
havia arquitetado o casamento.
Nesse meio tempo, sir Raymond Hubbard, uma das duas per-
sonagens principais do caso, de alguma forma conseguiu reunir
coragem suficiente para assumir parte da responsabilidade a fim
de chegarem a uma possível solução do problema.
— Mas que desplante! — Elizabeth exclamou quando a
criada anunciou a presença de sir Raymond. — Que atrevimento
completo e descarado! Jamais ele entrará em Hatton House!

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OS AVENTUREIROS

Todavia, Brenna, por possuir um temperamento mais calmo e


menos rancoroso do que o da mãe pensava de maneira diferente.
Talvez, a visita trouxesse algum resultado positivo. Tinha ouvido
contar que sir Raymond era bem diferente dos primos, pois não
demonstrava ser tão ganancioso ou impostor quanto eles. Quem
sabe, se através de uma conversa franca ele não se convenceria
da inutilidade das pretensões de casamento.
— Chega mamãe!
Lady Hatton recuou um passo, tomada pela surpresa. Nunca
tinha visto a filha com expressão severa e raivosa, muito menos
dirigida à sua pessoa.
— Eu quero falar com ele. Acredito que nós dois possamos
resolver o que mães vingativas e pais maliciosos não conseguem!
— E, virando-se para a criada, ordenou: — Já que müady Hatton
recusa a entrada a sir Raymond nesta casa, informe o cavalheiro
que eu o receberei no jardim.
Ao atravessar as largas portas de vidro que davam para o jar-
dim, ela viu sir Raymond, em pé, perto da enorme fonte no
centro do parque.
Pela maneira com que ele mudava o peso do corpo de uma
perna para a outra e levantava e baixava o olhar, Brenna teve a
impressão de que o rapaz, assustado, poderia fugir correndo a
qualquer instante.
— Sir Raymond, finalmente nos conhecemos — disse ela ao
mesmo tempo que se curvava um pouco e estendia a mão. Ele
começou a retribuir o gesto, mas parou. Os olhos castanhos a
fitavam atônitos e a boca se abriu como se fosse falar, porém
nenhum som foi emitido. Era como se aquela criatura de carne e
osso houvesse se transformado em pedra.
— Está tão pálido, sir Raymond! Há algo errado?
— Não, eu... não fazia idéia de que fosse tão linda!
— Oh, muito obrigada, sir.
— Por favor, me perdoe. Eu só a vi poucas vezes e de longe.
Bem, eu... quer dizer...
— Não se preocupe, está tudo bem — Brenna garantiu e es-

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OS AVENTUREIROS

condeu o sorriso com a ponta do leque. — Sente-se.


Raymond obedeceu depressa e, com a mesma rapidez, levan-
tou-se de novo ao ver que ela continuava em pé.
Desta vez, Brenna não conseguiu se controlar e deixou que
um riso cristalino e musical lhe escapasse dos lábios.
— Por favor, sir Raymond, não vamos permitir que esta
situação se torne mais constrangedora do que já é — pediu
enquanto se acomodava no banco e ajeitava a saia volumosa. —
Sente-se aqui — convidou de novo.
— Devo dar a impressão de ser um aparvalhado.
"Sem dúvida alguma", Brenna pensou, "mas um tolo
encantador e inocente!"
Com olhar observador, estudou o homem que desejava sua
mão. Mesmo sentado, ele mostrava ser alto e magro. Nem
mesmo o colete de camurça conseguia disfarçar o peito afundado
e os ombros estreitos.
De repente, ele virou o rosto e a fitou. Brenna sentiu um
aperto no coração ao constatar nos olhos castanhos a expressão
de um animalzinho assustado.
"Deus do céu", ponderou, "ele está com mais medo desta
situação do que eu!"
— Sir Raymond, gostaria de que fosse franco.
Mais uma vez teve a impressão de que ele estava prestes a
fugir correndo dali. Estendeu a mão e tocou-o no ombro.
— Deseja mesmo esse casamento? — indagou ela.
O ombro sob sua mão estremeceu ao mesmo tempo que a cor
fugia-lhe do rosto.
— Milady Coke...
— Eu preferia ser chamada apenas por Brenna e sentir a exis-
tência de uma certa honestidade entre nós.
Percebeu que ele se acalmava e até sorria, mas de maneira tão
triste que ficou consternada.
— Brenna, eu jamais teria a presunção de pensar que uma
moça rica, nobre e linda como você me aceitasse, na condição de
marido, de livre e espontânea vontade.

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OS AVENTUREIROS

— Talvez esteja subestimando...


— Você pediu honestidade, lembra-se?
— Tem razão, continue — concordou ela.
— Sabemos muito bem que estamos sendo permutados por
nossas famílias. Não posso dizer que me oponho a isso, porque
casar-se com você seria o grande desejo de qualquer homem. Sei,
entretanto, que apenas eu sairia ganhando dessa união bem
unilateral e injusta.
— Sir Raymond...
— Por favor, espere e deixe que eu termine antes que
esqueça as palavras. Se é contra a nossa união, como já percebi,
eu preferia fugir da Inglaterra a ter de me casar com você contra
a sua vontade.

Brenna mordeu o lábio numa tentativa de impedir as lágrimas


que ameaçavam correr pelas faces. Este homem alto, desajeitado
e triste dizia-lhe, à sua maneira, que a amava tanto a ponto de
arruinar as próprias esperanças e a vida a fim de salvar as dela.
— Porém, se não houver outra alternativa, se de fato o rei,
meu primo Buckingham, minha tia e seu pai não cederem e con-
tinuarem a nos impor a vontade deles, eu lhe prometo que não
interferirei na sua vida. Não consumaremos nosso casamento e,
quando não surgir um herdeiro, eu direi que sou impotente. Se
você nunca chegar a me amar como eu a amo, saberei
compreender e respeitar, caso venha a dedicar o seu afeto a outra
pessoa.
Levou bem um minuto para Brenna apreender o sentido das
palavras que acabava de ouvir. Quando as entendeu, não
conseguiu esconder a surpresa. Esse homem, praticamente, dava-
lhe permissão para lhe ser infiel.
Meio sem jeito, Raymond tomou-lhe a mão e beijou-a.
— Adeus. Vou-me embora, pois não tenho mais nada a dizer
— declarou ele ao levantar-se para afastar-se em seguida.
Sem reação, Brenna ficou imóvel no lugar apenas ouvindo o

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OS AVENTUREIROS

ruído das botas no cascalho. Fez um esforço e chamou:


— Sir Raymond!
Ele parou e Brenna alcançou-o.
— Considero-o, Raymond Hubbard, o homem mais
compreensivo, bondoso e gentil que jamais conheci. Tudo o que
disse é verdade. Não posso negar que, se existir uma maneira de
conservar minha liberdade para poder eu mesma escolher o meu
marido, eu a abraçarei.
— Acho muito justo.
— Entretanto, quero dizer-lhe que seria um excelente marido
para qualquer moça e espero que, um dia, encontre a
companheira digna de toda a bondade e amor que é capaz de
dar.
Num gesto de gratidão, Brenna beijou-o de leve nos lábios e
correu para a casa antes que ele visse as lágrimas que não con-
seguia mais impedir.

CAPITULO XIII

Nas alamedas em frente da Catedral de St. Paul, onde as más-


línguas da corte se reuniam a fim de comentar a vida alheia, o
assunto favorito era o recrudescimento da luta entre sir Edward
Coke e lady Hatton.
As apostas favoráveis a Coke aumentaram com as últimas
notícias chegadas de Westminster. Naquela manhã, lady
Compton, mãe do duque de Buckingham, tinha se apresentado
perante o conselho para pedir autorização oficial que permitisse
a sir Edward mudar-se para Hatton House e assumir a custódia
da filha Brenna. Apesar das objeções ferrenhas de sir Francis
Bacon, o pedido foi aceito.

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OS AVENTUREIROS

As três da tarde, sir Edward Coke, o filho Clement e quatro


criados, todos armados, entraram com uma carruagem no pátio
de Hatton House. Depois de baterem inutilmente na porta tran-
cada, viram lady Hatton aparecer numa sacada do segundo
andar.
— Peçõ-lhe que desista, sir! — gritou ela. — Não vê que está
perturbando o sossego de toda a Holborn?
— E eu lhe solicito, madame, que abra a porta, pois este sol
inclemente me incomoda! — Coke gritou de volta.
— Então vá refrescar-se no chafariz da fonte!
Sir Edward, nesse dia, não se deixou irritar pelas afrontas ver-
bais da esposa. Sacudiu uns papéis que tinha nas mãos e
informou quase com calma na voz:
— Tenho aqui, madame, uma autorização que me garante
acesso a Hatton House.
— De quem? — quis saber Elizabeth.
— Do conselho real — Coke informou, satisfeito.
Lady Hatton podia lutar contra o marido e a família Villiers,
porém enfrentar o rei seria temeridade. Cinco minutos depois,
com Brenna lívida de medo a seu lado no grande vestíbulo, Eli-
zabeth leu a autorização.
Ao terminar, devolveu-a e ordenou aos criados da casa:
— Arranjem lugares para essas criaturas e preparem a minha
carruagem.
Em menos de uma hora, ela se encontrava sentada em frente
a Bacon e exigia satisfações sobre a tal ordem.
Os olhos viperinos de sir Francis negavam-se a fitá-la e as
mãos nervosas remexiam papéis sobre a mesa.
— E então?
O lorde defensor limpou a garganta e começou a rodar os
vários anéis de ouro que lhe adornavam os dedos.
— Minha querida Elizabeth, temo que nós tenhamos subesti-
mado o interesse de lorde Buckingham nessa questão.
— Como assim?!
— Penso que lady Compton fala por Buckingham e...

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OS AVENTUREIROS

— Interrompeu-se para enxugar a transpiração da testa.


— Bem, Elizabeth, a verdade é que fui cego e não vi a
realidade.
— Você? Jamais!
Bacon continuou como se não a tivesse ouvido.
— Ao tentar ajudá-la, aliás uma das minhas amigas mais que-
ridas, em suas desavenças com sir Edward, e com a única
intenção de evitar danos à coroa e ao país, caso seu marido
voltasse a ocupar o antigo cargo...
— Para o inferno com esse seu palavreado confuso, Francis!
Não sou juiz ou membro do conselho para me impressionar com
suas frases exaltadas.
— O ponto é que, por causa do meu zelo e empenho pela
preservação do Estado, não percebi os interesses do rei e,
portanto, os de milorde Buckingham — Bacon disse depressa.
Antes que Elizabeth pudesse responder, entregou-lhe uma
carta para ler.
"Meu caro e fiel Francis,
Penso que, nesse assunto de meu primo, você se preocupou
demais. Recebi informações de Londres, através de alguns
amigos meus, que você vem se comportando com desdém e
negligência não só em relação a eles como a mim também. Se
isso for verdade, eu não o culpo, pois acho que a
responsabilidade é minha por ter tido confiança na sua pessoa.
Espero que ela possa ser restaurada e que o futuro de meu primo
esteja assegurado quando o rei e eu voltarmos para Londres.
Seu amigo, G. Buckingham."
O sarcasmo dessas palavras abalou Elizabeth. Com o rosto pá-
lido e as mãos trêmulas, devolveu a carta.
— Lamento muito, minha querida.
[— Deus do céu! Como um rei pode se considerar justo
quando governa através dos atos de tolos pretensiosos?!
— Palavras imprudentes, minha amiga — Bacon disse ao,
finalmente, fitá-la. — Creio que de hoje em diante precisamos
reconhecer que os desejos do rei acompanham os do favorito de

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OS AVENTUREIROS

Sua Majestade.
— E os seus seguem os de Buckingham.
— Eu fiz...
— Você fez, Francis Bacon, o que achou prudente para
impedir um homem mais capacitado do que você de ocupar esse
posto. Embora eu odeie os métodos de meu marido, admiro-lhe a
coragem e a clareza de espírito que o fazem reconhecer a
possibilidade de um rei errar.
— Elizabeth, eu fiquei do seu lado e...
— É verdade, porém, como os outros homens em minha
vida, você seria capaz de vender a minha alma para salvar a
própria pele.
Com olhar gelado, Bacon enfrentou-lhe a raiva.
— Já está feito, Elizabeth, e eu a aconselho a não fazer nada
drástico.
— Não, o caso ainda não terminou. Quero que todos vão
para o inferno! Hei de lutar contra cada um de vocês até não me
restar uma moeda na bolsa e fôlego algum em meu corpo!
Clement Coke, com toda a sinceridade, lamentava a angústia
estampada no rosto lindo da irmã por parte de pai. Apesar dos
cinco anos de diferença entre ambos, dos filhos do casamento de
Coke com Bridget ele era o mais chegado a Brenna. Fora ele seu
companheiro de jogos e brincadeiras na infância nos jardins de
Stoke Poges e Holdenby, quem a pusera, pela primeira vez, em
cima de um pônei e a ensinara a cavalgar. Havia sido sempre a
pequenina Brenna, de rosto sério e grandes olhos expressivos,
que intercedera junto a sir Edward todas as vezes em que
Clement se via em apuros, fato, aliás, freqüente.
Agora, ele sentia-se pesaroso por não poder fazer a mesma
coisa pela irmã.
Em tempos mais recentes, ele ganhara o apelido de "Coke, o
lutador". Quando se tratava de luta, ele deixava de ser o rapaz
elegante e janota. Embora pudesse encontrar adversários tão
ágeis com a adaga e espada e certeiros na pontaria da pistola
quanto ele, era seu físico que amedrontava. Era dono de ombros

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e peitos largos e braços musculosos. Esse detalhe mais o prazer


com que lutava tinham lhe valido a alcunha.
Toda essa energia e gosto por brigas não impediam que sua
personalidade apresentasse um ângulo de fraqueza. Clement
Coke detestava trabalhar e em todas as situações com que se
deparava escolhia o caminho mais fácil. O único homem no
mundo que temia era aquele de quem dependia para viver, isto é,
o pai, sir Edward Coke.
Brenna alisou as pregas da saia de brocado cor-de-rosa e fitou
o irmão com os olhos vermelhos.
— Como é que depois de tantos anos de amizade você pôde
concordar em ser meu carcereiro, Clement?
Incapaz de encará-la, ele se debruçou numa janela atrás do
sofazinho onde Brenna se sentava.
— Você deve saber que não gosto de vê-la sofrer assim.
— Então, por que não me ajuda?
— Não posso!
— Como não? E só fugir comigo. Tenho minhas jóias e nós
poderíamos ir para a França ou Holanda. A princesa Elizabeth
está lá com Frederick e, com certeza, me ajudará. Nós éramos
muito amigas.
— Você acredita que ela desafiaria o rei James, o próprio pai,
por sua causa? Duvido minha irmã. Além do mais, você seria
capaz de abandonar sua família e seus amigos aqui?
— Já percebi que não posso contar com amizade alguma e
todos os meus parentes não se importam comigo.
— Talvez lady Hatton ainda consiga salvá-la.
— Você sabe que isso é impossível. Apesar da sua luta
corajosa, ela continua sendo mulher e a esposa. E o homem, meu
pai, quem tem a lei a seu favor.
Clement, ainda de costas, percebeu que Brenna recomeçava a
chorar.
— Você sabe que, se eu pudesse, faria qualquer coisa em seu
auxílio, minha querida.
— Você podia, pelo menos, falar com nosso pai.

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OS AVENTUREIROS

— Brenna, eu perdi meu lugar na Gray's Inn.


— Oh, não!
— Não sou mais estudante de direito. Minhas dívidas de jogo
acabaram com a minha renda e o único provento com que posso
contar é o das minhas terras. Mas, infelizmente, elas são contro-
ladas por meu pai. Sei que sou um perdulário imprestável, porém
não posso mudar. Portanto, meu único meio de sobrevivência é
sir Edward e eu não consigo ir contra ele.
— Sobrevivência! — exclamou ela enquanto as lágrimas rola-
vam copiosas por suas faces.
— Maldição, não existe algo mais importante em nossas vidas
além da sobrevivência?
A carruagem sacudia perigosamente de um lado para o outro
da estrada esburacada.
Dentro, lady Hatton e Brenna, apreensivas, agarravam-se a
qualquer coisa que as ajudasse a manter o equilíbrio nos bancos
acolchoados. Os lábios da filha formavam uma linha rígida. O
medo sentido pelo que estava fazendo era maior do que o
provocado pela possibilidade de um acidente. Três horas atrás,
tinha sido acordada do sono leve a atribulado.
— Queridinha...
— Mamãe?
— Arrume uma sacola pequena que possa carregar se tiver de
fugir correndo.
— Mas por quê?
— Porque não resta outra solução. Se lady Compton e seu pai
não a encontrarem, pequenina, não haverá casamento.
Christopher nos espera, com uma carruagem emprestada,
adiante do jardim.
— Você tem coragem de desafiar o rei e o conselho?
— Até o próprio Deus se for preciso. Apresse-se, agora. Assim
havia fugido e as conseqüências eram bem claras. Ao
agir dessa maneira, Elizabeth abria mão de todos os recursos
que possuía para lutar contra sir Edward. Por enfrentar aber-
tamente o rei e Buckingham, ela não deixava outra opção ao

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OS AVENTUREIROS

conselho real senão sentenciar a favor de Coke em questões de


dinheiro e propriedades.
Todavia o que agora era mais importante para Elizabeth re-
sumia-se no cumprimento da promessa feita a Brenna, há tantos
anos, em frente ao chalé incendiado em Holdenby.
— Você vai fazer a sua escolha, pequenina — jurara então.
— Isso, eu prometo.
De repente, duas das rodas de um dos lados da carruagem
atingiram um sulco mais profundo. Entre as pragas vindas da
boléia e os gritos partidos do interior, o veículo parou e inclinou-
se num ângulo perigoso.

Com movimentos frenéticos, Christopher conseguiu abrir a


porta e encontrou as senhoras no meio da maior confusão de
saias de cetim e capas de veludo, mas sem ferimentos. Uma de
cada vez, ele as ajudou a sair.
— Ah, milady, que infelicidade! — Christopher reclamou. —
Vai levar pelo menos uma hora para desatrelar os cavalos e en-
direitar a carruagem.
Nesse momento, vindo da estrada enluarada que haviam se-
guido, chegou o barulho de um cavalo que se aproximava.
— Não temos mais tempo — gritou Elizabeth. — Tenho cer-
teza de que meu marido vem em nosso encalço. Os filhos dele
não devem estar longe também. Solte os cavalos. Vamos tentar
fugir neles.
Antes de Christopher alcançar os animais, um cavaleiro
surgiu em galope desenfreado, porém puxou as rédeas e fez parar
o animal, meio de lado, em frente a eles.
Elizabeth virou-se depressa ao mesmo tempo que tirava uma
pistola da bolsa. Brenna viu a arma e segurou a mãe pelo
cotovelo.
— Cuidado, não se trata de um conhecido!
— Boa noite, senhores — cumprimentou o recém-chegado
com um gesto em que volteava o chapéu de abas largas e pi
umas. — Viajo apressado esta noite, mas tanta beleza exige que

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OS AVENTUREIROS

eu faça uma pausa!


— Palavras bonitas não endireitarão a carruagem, senhor —
Elizabeth falou em tom de censura.
— Por favor, mamãe — Brenna sussurrou e virou-se para o
jovem sorridente.
Não foi possível impedir a surpresa. As feições dele pareciam
esculpidas na pele morena, a cabeleira farta e negra destacava-se
de encontro ao céu iluminado pelo luar e os olhos eram tão
escuros quanto os seus.
— Qualquer auxilio que puder nos prestar, senhor, terá nossa
irrestrita gratidão — disse ela com voz trêmula.
Foi então que ouviram o ruído de mais cavalos a distância. O
cavaleiro desmontou depressa e soltou um riso sonoro.
— Acredito ser de bom alvitre agir com rapidez. Segure aqui
— pediu ele ao entregar a Brenna a capa que acabava de tirar.
Ela atendeu e viu-o aproximar-se da carruagem.
— Impossível! — lady Hatton exclamou quando se tornou
evidente que o rapaz pretendia endireitar o veículo sem o auxílio
dos cavalos.
— Ei, cocheiro — disse ele a Christopher. — Venha me
ajudar aqui.
— Pois não — respondeu o criado ao mesmo tempo que
punha a pistola, que também empunhava, de volta ao cinto.
Juntos, os dois homens fizeram um esforço violento até que a
carruagem quase chegasse à posição horizontal. Gotas de
transpiração brotavam da testa de ambos. As costuras da camisa
de linho do jovem moreno pareciam querer arrebentar com a
distensão dos músculos poderosos.
— Um bom empurrão agora — disse ele, ofegante.
De repente, o coche sacudiu e voltou a se firmar nas quatro
rodas.
— Inacreditável! — Christopher declarou com a respiração
entrecortada. — O senhor tem força de uns dez homens!
— Não, apenas a vontade — replicou o outro ao notar que o
barulho de várias montarias estava mais perto.

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OS AVENTUREIROS

Com agilidade, apanhou a capa das mãos de Brenna e pulou


na sela.
— Muitíssimo obrigada, senhor — agradeceu ela, desejosa de
poder dizer muitas outras palavras.
— Creio que milady está fugindo. De quem e para onde?
Antes que pudesse responder, a mãe chamou-a já de dentro da
carruagem.
— Depressa, menina, ou estaremos perdidas!
— Não se preocupe nem tenha medo, milady! Estou certo de
que o som dessas patas não anuncia a chegada dos seus perse-
guidores e sim dos meus!
Inclinou-se na sela e tomou a mão de Brenna, que beijou de
leve enquanto lhe sorria.
— O seu rosto lembra o de um anjo e eu contarei os dias até
que possa revê-lo — sussurrou ele.
E então, tão depressa quanto chegara, ele se foi num galope
veloz pelas campinas.
Brenna continuou imóvel no mesmo lugar sentindo um calor
estranho na pele da mão onde fora beijada.
"Ora, lá vai um homem que eu poderia amar", conjeturou ela
admirada.
Da carruagem, lady Hatton viu e reconheceu a expressão da
filha. Isso a deixou tão nervosa e amedrontada quanto o leve so-
taque que havia notado na fala do estranho. Há muitos anos,
Elizabeth ouvira a mesma cadência no linguajar de um outro ho-
mem. Era, indiscutivelmente, irlandesa.

CAPITULO XIV

Idiota! Idiota desgraçado! Rory O’Hara contraiu os músculos e


retesou o maxilar a fim de dominar a raiva sentida, coisa que
vinhal fazendo com freqüência nessas semanas desde que

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conhecera David | Talbot. O homem conseguia provocá-lo a


ponto de quase o forçar \ a desembainhar a espada.
A única razão que o impedia de agir com violência era a
admiração despertada pela gama de qualidades de Talbot. Rory já
as tinha constatado em outros homens, porém separadamente.
Reconhecia nele a sagacidade de Richelieu, a sinceridade de
propósitos de O”Donnell e o perigo da ira um tanto incontrolável
de La Mardine.
Nesse momento, os olhos cinzentos de sir David o fitavam
por j entre as pálpebras baixas e transmitiam a raiva furiosa.
— Concordei com o plano arrojado de Richelieu e quem ele
mandou para cá? Um aventureiro louco!
— Foi inevitável, sir David — Rory explicou com voz surda
enquanto a tensão dos músculos crescia.
— Inevitável coisa nenhuma! Nestas três semanas, desde que
chegou à Inglaterra, não me cansei de avisá-lo de que isto aqui
não é a França. De todos os decretos de James I, o mais
respeitado e obedecido trata da proibição de duelos.
— O homem não passava de um grandessíssimo asno e eu
não consegui agüentar as provocações dele.
Talbot ergueu-se num pulo e começou a andar de um lado
para o outro. Os saltos das botas de montaria ressoavam nas
tábuas de carvalho do chão.
— A família Villiers inteira é composta de asnos, só que dos
poderosos. Sir John é o irmão predileto de Buckingham. O feri-
mento foi muito grave?
— Até certo ponto. O rapaz terá de manter o braço na tipóia
por um mês e não poderá empunhar a espada tão cedo — Rory
respondeu, encolhendo os ombros.
— Bem, não há nada que se possa fazer. Thomas Smythe tem
de desaparecer, porém levará algum tempo para tomarmos as
providências necessárias. Mude-se para o estábulo e tente passar
por um dos meus contratados irlandeses até que eu consiga
escamoteá-lo de volta à França.

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

A expressão de Rory mantinha-se impassível enquanto Talbot


continuava a caminhar pela sala. Sir David conhecia-o apenas
como Thomas Smythe, subterfúgio exigido por Richelieu. O
bispo não confiava em ninguém, nem mesmo no homem que
trabalhara para ele durante cinco anos.
Richelieu tinha deduzido que Talbot não aceitaria como seu
substituto, na Inglaterra, o refugiado de um clã rebelde irlandês
que estava sendo procurado pela França toda. Por isso, ao entrar
no país por Folkestone, Rory O” Hara trazia passaporte com o
nome de mestre Thomas Smythe, mercador.
— Em retribuição ao favor que estou lhe prestando agora —
avisara Richelieu —, não reivindique suas terras na Irlanda até
que eu lhe avise ter chegado o momento oportuno.
Sem outra escolha, Rory havia concordado. O’Donnell
também compartilhava da opinião do bispo e lhe dissera:
— Richelieu tem razão, meu rapaz. Seja paciente, mantenha
os olhos e ouvidos abertos para informá-lo de tudo que se passa
na Inglaterra e você será recompensado. Ele ainda voltará a
ocupar um posto de poder. Marque minhas palavras, pois
conheço bem a sagacidade de Armand de Richelieu.
Será que ele, Rory, tinha estragado tudo agora? A gravidade
da situação provocou-lhe um sorriso. Embora Talbot ignorasse, o
homem que ele conhecia como Thomas Smytle não podia ir para
a França nem permanecer na Inglaterra.
Não deixava de ser uma grande ironia da sorte que a única
saída era a volta para a Irlanda. The O’Hara retornaria à pátria,
sem dinheiro ou terras, não porque assim o desejasse, mas por
pura necessidade.
— Não, pelo contrário, sir David. Faz parte do meu tempera-
mento sorrir nas piores ocasiões.
A expressão de Talbot relaxou um pouco.
— Tenho de reconhecer que quando era mais novo também
me apressava em fazer uso da espada.
— O senhor tem a minha palavra. Da próxima vez serei bem
mais cauteloso. Agora, estou em suas mãos.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

Talbot assentiu com um gesto de cabeça. Admitia a si mesmo


simpatizar com esse rapaz afoito, forte como um touro e com o
andar ágil de um tigre. Existia algo nas maneiras dele, no racio-
cínio rápido e no sorriso espontâneo que lhe lembrava a própria
juventude cheia de aventuras.
— Preste atenção. Não há ruptura alguma que não possa ser,
de certa forma, consertada. Por enquanto...
As palavras de sir David foram interrompidas pelo barulho
das rodas de uma carruagem nas pedras do pátio. Os dois
homens, no mesmo instante, ficaram alertas.
Teriam as homens do rei ou a guarda pessoal de Buckingham
descoberto o paradeiro de Rory tão depressa? Ele sacudiu a
cabeça, incrédulo.
— Impossível! Eu os deixei cavalgando em círculos a
quilômetros de distância daqui.
Juntos, correram à janela.
— Santo Deus! O que poderia ter acontecido para que elas
viajassem a essas horas? — Talbot indagou, surpreso.
Rory viu as duas mulheres descerem da carruagem e sentiu
um prazer imenso ao reconhecer a moça de cabelos e olhos
negros que conhecera ao lado do coche tombado.
Durante as últimas três horas em que cavalgara pelos campos,
o rosto lindo havia perseguido seus pensamentos. Não tinha a
mínima esperança de revê-la um dia, muito menos, tão cedo.
Foi então que a mais velha das duas descobriu a cabeça e sa-
cudiu a cabeleira castanho-dourada. Rory, horas antes na
estrada, não a tinha observado com muita atenção. Mesmo que o
quisesse, não teria sido possível já que o capuz, preso à capa,
escondia-lhe não só os cabelos como parte das feições.
— Quem é aquela mulher? — indagou ele.
— Lady Hatton, esposa de sír Edward Coke.
— Que estranho!
— Como assim?
Quando Rory tornou a falar foi como se estivesse pensando
em voz alta.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Com a luz batendo diretamente em seu rosto e os cabelos


descobertos, ela me parece um tanto familiar. Que coisa impres-
sionante, eu conheço essa mulher! No entanto, tenho certeza de
nunca tê-la encontrado antes desta noite.

CAPITULO XV

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

Em Londres, sir Edward Coke resolveu processar a esposa.


Lady Hatton, agora, não contava mais com amigo algum na
corte. Um mandado foi expedido pelo conselho real autorizando
Coke e lady Compton a ir buscar Brenna em North Elmeham e
colocá-la sob os cuidados de alguém neutro no caso.
Todavia, antes que a ordem fosse executada, surgiu um empe-
cilho dos mais inesperados. Sir Raymond Hubbard, de natureza
tão submissa, resolveu rebelar-se e enfrentar a tia e o primo po-
deroso. Num assomo de coragem, ele declarou que só se casaria
com Brenna Coke se ouvisse, de seus lábios, a afirmativa de que
desejava tanto essa união quanto ele.
Foi com intensa alegria que lady Hatton recebeu essa notícia
em North Elmehan. Para Brenna, entretanto, nada mudava. Em-
bora jovem, compreendia que aquela trégua era apenas
temporária. Ninguém, muito menos sir Raymond, poderia se
interpor, indefinidamente, contra a vontade de Buckingham e do
rei.
— É inútil, mamãe. Só troquei uma prisão por outra.
— Não, minha pequenina, eu tenho planos. Pense numa
alternativa mais conveniente.
— O quê?
— Nós lhe arranjaremos um outro pretendente. Qualquer
um é melhor do que alguém da família Villiers.
Brenna mal podia acreditar nas palavras da mãe. Atônita e
desgostosa fitou-a.
— Será que a sua vida, mamãe, deixou-a tão insensível que
tudo agora, para você, não passa de um jogo? Lembre-se de sua
promessa, eu escolherei o meu companheiro.
— Pois é exatamente isso: Vamos já fazer uma lista! Vejamos,
há Henry Vere, milorde Drodgen e Thomas Heywood. Este é
excelente porque, além de rico, a mãe, lady Winwood, tem
ótimas ligações. Por outro lado, Henry Vere...
Em silêncio Brenna virou as costas e deixou a sala. Não havia
mais raiva ou revolta em seu coração. A mãe tentava ajudá-la da

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

única maneira que sabia, isto é, uma maquinação para contraba-


lançar outra.
Sem perceber, subiu a escadaria e foi se refugiar no quarto na
parte de trás da mansão.
— Milady vai se deitar mais cedo?
— O quê? Ah, talvez, mas troco de roupa sozinha.
A criada pareceu notar o seu estado de espírito deprimido e
deixou o quarto sem fazer ruído. Brenna suspirou, aliviada. A
ultima coisa que desejava era ser perturbada pela tagarelice da
moça.

Sem sono ainda, ela se acomodou na reentrância formada


pela alta e única janela do aposento e que dava para o pátio em
frente aos estábulos. Embora caísse uma chuva fina, Brenna
escancarou a janela e deixou que o olhar se perdesse na paisagem
ainda visível com o resto da luz do dia. As sebes de North
Elmeham sumiam na distância e limitavam os campos onde
carneiros e vacas pastavam insensíveis à chuva. Mais perto da
casa, duas éguas corriam e pulavam, acompanhadas de seus
potrinhos.
O relinchar de um cavalo chamou-lhe a atenção para o pátio.
Um cavalariço tentava acalmar um garanhão castanho, que
cavoucava a terra irrequieto.
Então, surgiu de dentro do estábulo um homem de
constituição forte, envolto numa capa preta. Brenna podia ver
ainda os calções de tecido grosseiro e as meias marrons típicas de
trabalhadores. Entretanto, ela notava uma certa graça e
determinação nos movimentos que o distinguia dos outros
homens a serviço em North Elmeham.
Depois de umas palavras ao cavalariço, a figura estranha
pulou na sela e, com mãos firmes, dominou o animal que, ainda
inquieto, dava uns passos meio de lado. Ao sentir a segurança do
cavalariço, a montaria aquietou-se, ficando bem de frente à
janela de Brenna.
Estarrecida, ela levou as mãos ao rosto e deu uns passos para

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OS AVENTUREIROS

trás, pois reconhecia as feições do homem. Tratava-se do mesmo


que havia endireitado a carruagem durante a fuga de Londres.
Mentalmente, ela revia a intensidade do olhar e o sorriso dele
daquela noite e sentiu o mesmo arrepio que o beijo na mão lhe
tinha provocado.
Tirou as mãos das faces e voltou depressa à janela. Não tinha
como aquietar as batidas fortes e descompassadas do coração en-
quanto ouvia o ressoar do galope do garanhão e via a silhueta do
cavaleiro desaparecer na bruma.
Embora fosse contrário a sua natureza agir ou pensar de ma-
neira impetuosa e chegar a conclusões infundadas, Brenna não
podia impedir que se repetisse em sua mente a mesma idéia
ocorrida naquela outra noite. Todavia existia uma pequena
diferença nas palavras que formavam o pensamento.
"Ora, lá vai um homem com quem eu poderia me casar!"
A chuva agora caía pesada, e Brenna, sentada perto da janela,
de vez em quando deixava cair a cabeça sobre o peito, vencida
pelo sono. Todavia despertava completamente com a
luminosidade dos coriscos e o ecoar dos trovões que os seguiam.
Também chegou a perceber, em duas ocasiões naquela noite, a
entrada e saída da criada no quarto.
"A moça deve estar achando que sou louca", Brenna pensou.
"Talvez esteja mesmo. E se ele não voltar?"
Por que um homem como aquele, obviamente um cavalheiro
de boa família, encontrava-se instalado no estábulo? Qual seria a
ligação dele com David? De quem estaria fugindo naquela noite
em que se encontraram na estrada? Estas conjeturas e muitas
outras permeavam os pensamentos de Brenna ao fitar a
escuridão além do estábulo, entre um cochilo e outro.
Finalmente, quando os galos começavam a cantar e o
horizonte já mostrava uma tênue claridade, sua vigilância foi
recompensada. A chuva havia parado e a neblina tomava conta,
de novo, da paisagem; porém, o ruído crescente do galope de um
cavalo revelava a aproximação de alguém.
Bem devagar, a silhueta escura e fantasmagórica começou a

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OS AVENTUREIROS

tomar forma no nevoeiro denso. Cada vez mais próximos e


maiores, montaria e cavaleiro confundiam-se numa só figura. O
tropel ressoava, agora, nas pedras da alameda que chegava até o
pátio.
— Não, não é possível! — Brenna exclamou em voz alta, sem
poder dominar a surpresa.
Não era o garanhão castanho e sim uma égua preta que
acabava de chegar, mas o cavaleiro não havia mudado. Isso
queria dizer que a distância percorrida por ele durante a noite
fora tão grande que se tornara necessária a troca de montaria.
Mais uma indagação misteriosa atormentava a mente de Brenna
quando, finalmente, ela se atirou na cama.
Ao despertar, horas depois, o tempo nublado e chuvoso havia
passado e um sol luminoso já estava bem alto no céu. A criada
encarregada por David para servi-la devia ter voltado ao quarto,
pela terceira vez, e agora ressoava, a sono solto, no pequeno
estrado aos pés da cama.
Brenna calculou pelos ruídos não só do interior da casa como
dos que vinham de fora que devia passar das nove horas. Mal se
sentou na cama, viu a empregada levantar-se e iniciar as tarefas
de sua obrigação.
De maneira distraída, e um tanto inconsciente, Brenna seguiu
a rotina da toalete matinal. Enquanto aplicava um pouco de ruge
nas faces e creme rosa nos lábios, ela resolveu sondar a moça a
respeito do misterioso hóspede de David.
— Ontem à noite, Malena, vi um cavalheiro muito bem
apessoado sair do estábulo, montar a cavalo e partir na chuva.
Fiquei imaginando por que um homem de certa classe foi
acomodado lá e não aqui na mansão.
— Não sei, milady — respondeu a moça, sem mudar de
expressão.
— Não costumo prestar atenção nas idas e vindas dos amigos
do patrão.
— Então ele é amigo de sir David?
— Não sei, milady — repetiu a criada.

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OS AVENTUREIROS

— Vi os dois conversarem e ajudei a mudar as coisas do


cavalheiro da casa grande para o estábulo.
— Ele estava aqui antes?
— Sim, milady, até a noite em que as senhoras chegaram.
Deseja mais alguma coisa de mim agora de manhã?
— Não, pode ir. Menos de dez minutos depois da saída da
empregada, Elizabet
apareceu nos aposentos de Brenna.
— Bom dia, mamãe. Que notícias o seu mensageiro trouxe d
Londres esta manhã?
— Mensageiro?! — a mãe indagou perplexa. — Quisera eu te
um para poder descobrir que novas malvadezas seu pai está
preparando em Whitehall.
Brenna acreditou, pois há muito aprendera a distinguir a
mentira da verdade expressas por lady Hatton. Então, o tal
cavalheiro moreno e bonitão, que se escondia no estábulo, ainda
não havia sido visto pelos olhos perspicazes da mãe.
— Desculpe tê-la deixado de maneira brusca ontem à noite.
Eu estava muito cansada.
— Cansada do quê, pequenina? — Elizabeth perguntou com
um sorriso triste.
— De meus planos e manobras constantes?
As palavras francas a pegaram de surpresa e Brenna levou um
segundo para responder:
— Disso mesmo. Sir Raymond nega-se a se casar a não ser
que eu consinta também. Jamais concordarei com essa união. En-
tão, por que todos que estão empenhados nessa luta inútil não
desistem e vão cuidar da própria vida?
O sorriso de Elizabeth tornou-se mais triste ainda.
— Como você é ingênua, minha pequenina! As sugestões que
fiz ontem à noite foram para solucionar uma necessidade impe-
riosa. Desejo que escolha o seu marido, mas tem de fazer isso
depressa.
— Mas sir Raymond...
— Por mais gentil e cavalheiro que seja, ele não passa de um

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OS AVENTUREIROS

fraco e acabará cedendo à vontade dos fortes.


Brenna ergueu a cabeça num gesto de orgulho.

— Sou neta de lorde Burghley, sobrinha de sir Robert Cecil e


filha de lady Hatton! Será que isso não me garante privilégio
algum?
— Não nesta época em que vivemos. Apenas filhos de James I
são dignos de distinção por causa de sua origem divina, como o
pai quer que acreditemos. Essa graça estende-se também aos es-
colhidos pela família real.
— Você está sugerindo que eu me case com sir Raymond
afinal e acabe com essa confusão toda? — perguntou Brenna,
entre surpresa e desanimada.
— Não. Estou quase dizendo que se case com quem quiser,
mas que faça sua escolha depressa antes que seja tarde demais.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

CAPITULO XVI

Por quatro noites consecutivas, Brenna manteve-se, durante


horas, à janela do quarto na esperança de rever o homem
misterioso. Nas três primeiras, sua vigília foi inútil, mas, na
última, viu seu esforço recompensado. O luar filtrava-se por
entre nuvens esparsas quando ele surgiu no pátio do estábulo,
pronto para montar.
Observou-o até que desaparecesse da vista, a cavalo, como da
outra vez e, então, deitou-se. Com grande esforço, ficou acordada
revirando-se sob as cobertas e, ao perceber que a madrugada se
aproximava, levantou-se.
Sem fazer barulho para não acordar a criada, Brenna passou
ao cômodo adjacente, onde costumava fazer a toalete matinal.
Lá, livrou-se da camisola e, com água de uma jarra colocada em
uma bacia de estanho, lavou o rosto e o corpo. Depois de pôr as
peças íntimas e anáguas pouco franzidas, vestiu uma saia
pregueada, de algodão marrom e própria para montaria. A parte
interna das pregas era de cetim bege-claro, do mesmo tom da
blusa de cambraia. Calçou as botas espanholas de saltos baixos,
também adequada para cavalgar. Penteou-se e colocou uma capa
escura com capuz.
Em silêncio, atravessou a casa e desceu as escadas dos fundos
usadas pelos criados. As botas ressoaram com um ruído abafado
nas pedras do pátio, que percorreu correndo até alcançar os cer-
cados atrás do estábulo.
Starlight era uma égua cinza que Brenna se habituara a
montar quase diariamente desde a sua vinda a North Elmeham.
Guiou-a pela crina através da porteira e levou-a para longe dos
prédios até um pequeno agrupamento de árvores. Enquanto dizia

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OS AVENTUREIROS

palavras carinhosas e dava palmadinhas no pescoço da animal,


passou-lhe pela cabeça as rédeas que havia apanhado no
estábulo.
Com a saia e as anáguas arregaçadas acima dos joelhos que se
apertavam de encontro ao pêlo macio e morno de Starlight,
Brenna partiu a galope. Dirigiu-se à trilha que, esperava, seria
usada pelo homem misterioso no retorno a North Elmeham.
Reinava o silêncio pleno e característico que precede a primeira
luminosidade do alvorecer, apenas quebrado pelo ecoar das patas
da montaria.
Ao chegar em uma encruzilhada, Brenna freou o animal, des-
montou-o e levou-o para perto de umas árvores de galhos baixos
a fim de esperar. Seu cálculo de horário mostrou-se perfeito, pois
logo ouviu o barulho distante de um cavalo, que aumentava a
cada minuto. Sentiu um arrepio de excitação e apertou os braços
sobre o peito.
Foi então que ela o viu surgir na encruzilhada, a meio galope,
sob a ramagem dos carvalhos. A cabeça dele estava descoberta e
o coração de Brenna bateu agitado com o impacto provocado
pelas feições esculturais e viris emolduradas pela cabeleira negra
e farta que lhe alcançava os ombros.
Ele se vestia todo de preto exceto por uma túnica cor de
açafrão. A capa de lã, forrada de cetim, ondulava-se com o vento
sobre as ancas do garanhão. Ela podia ver ainda as botas finas de
couro e os enfeites de ouro e prata no cinturão largo.
"Não", Brenna raciocinou ao instigar a égua de volta à trilha,
"este não é um trabalhador campesino irlandês".
Assim que viu o caminho bloqueado, ele desviou a montaria
para o lado ao mesmo tempo que sacava a pistola.
— O senhor teria coragem de atirar num outro viajante antes
mesmo de trocarem uma palavra?
Ao ouvir sua voz, os olhos dele arregalaram-se.
— Trata-se de uma mulher?
— Sim, senhor — Brenna respondeu enquanto levava a mão
ao capuz.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Que mulher cavalgaria numa estrada antes do amanhecer?


— indagou ele.
— Uma que não consegue dominar a curiosidade sobre o
homem que compartilha de sua casa, mas não de sua companhia
— retrucou ela, descobrindo a cabeça e soltando as longas
trancas negras.
— Por Deus, é a senhora?! — exclamou ele e atirou a cabeça
para trás ao deixar escapar o riso sonoro e divertido.
As batidas do coração de Brenna aceleraram-se mais ainda.
Quando ele ria, os dentes alvos brilhavam em contraste com a
pele morena, o que lhe aumentava a atração.
Ele levou o garanhão até perto de Starlight e Brenna
estremeceu ao notar a firmeza das linhas do queixo e do nariz
bem-feitos.
— Milady Coke — cumprimentou ele com uma curvatura.
— O senhor tem uma vantagem sobre mim, pois sabe o meu
nome enquanto eu ignoro o seu.
— Smythe. Mestre Thomas Smythe — replicou ele.
— É salteador de estradas, mestre Smythe?
De novo a cabeça se inclinou para trás e o riso ecoou no
silêncio da madrugada.
— Quase, milady, e, se ainda não, provavelmente logo o
serei. Isso a amedronta?
— Não. O senhor me acha imprudente?
— Deveria?
— Vim até aqui só para encontrá-lo.
— Isso me envaidece. Quando eu, formalmente, me tornar
um assaltante, milady gostaria de fazer parte do meu bando?
— Quem é o senhor?
— Já lhe disse, mestre...
— Não, sei que está mentindo. O senhor fala e se comporta
com as maneiras de um cavalheiro educado e, no entanto,
prefere as acomodações precárias do estábulo em vez do conforto
da mansão. Na noite em que nos conhecemos na estrada, o
senhor fugia de alguém. Quem era e por quê?

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Digamos que eu não goze das boas graças de milorde


Buckingham e do nosso soberano. Agora já sabe que sou um fu-
gitivo da coroa. Teria coragem de me entregar às autoridades?
— Não, especialmente se concordar em fazer de mim uma
fugitiva também.
— A senhora?! Como poderia eu transformar alguém de es-
tirpe nobre e posição segura numa criatura procurada pelo rei e
cortesãos?
— Pois prefiro isso a vir a ser propriedade da família Villiers.
Em voz apressada e nervosa, ela contou-lhe sua história, sem
omitir detalhes.
— Não percebo como poderia ajudá-la — afirmou ele.
— Gostaria que me ajudasse a fugir para a França ou aos
Países Baixos, onde meu pai não consiga me apanhar. Se eu es-
capar por conta própria, minha mãe não será responsabilizada.
Apesar das sombras, Brenna notou a expressão preocupada e
de incredulidade dele. Temeu uma negativa e apressou-se em
declarar:
— Posso pagar um bom preço pelo seu auxílio. Tenho
dinheiro, peças de prata e minhas jóias.
— Milady, se estivesse ao meu alcance ser-lhe útil, o único
pagamento que me satisfaria seria um sorriso seu ou, quem sabe,
um beijo.
Brenna sentiu as faces corarem. Apesar de lhe ter declarado
estar preparada a pagá-lo bem, ele pedia algo tão simples. Já ia
aproximar-se e oferecer-lhe os lábios quando ele falou:
— É uma lástima, porém não me encontro em posição de
ajudar nem a mim mesmo, milady.
Essa afirmativa provocou-lhe um arrepio de medo e as
palavras com que a rebateu foram ditas de maneira atropelada.
— Mas o senhor precisa! Não vê que não existe outra saída?
Se minha mãe continuar aqui acabará perdendo tudo; Clement,
meu meio-irmão, não pode me socorrer por depender de nosso
pai, e David, o único amigo que possuo, esqueceu-se de mim.
Não o culpo, pois meus problemas parecem insignificantes perto

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da grandiosidade do sonho dele com a Irlanda, porém...


Enquanto Brenna falava, o homem mantinha uma posição
quase displicente na sela. Todavia, ao ouvir suas últimas palavras,
tornou-se alerta, com um brilho de interesse no olhar.
— Irlanda?
— Sir David gostaria de adquirir umas terras por lá que
Buckingham controla. Se me ajudasse, poria em risco a
transação.
— Eu não fazia idéia...
Ele foi interrompido pelo tropel de cavalos que se
aproximavam a galope. A testa de Brenna latejava e o medo lhe
provocou um espasmo na garganta.
— Não podemos ser vistos juntos. Vá embora, mas antes pro-
meta que, pelo menos, pensará no meu pedido. Por favor,
prometa!
— Milady, como tal súplica poderia ficar sem resposta?
Brenna suspirou, aliviada. A força que havia observado no
peito largo e nos braços musculosos quando esse homem
endireitara a carruagem na estrada pareceu invadir-lhe o corpo.
Antes que se desse conta, os dois cavalos estavam juntos e ele a
abraçava. Os lábios se uniram numa ansiedade que Brenna
jamais sonhara ser possível. Nesse momento, conscientizou-se de
que sua procura terminava.
Ele a soltou e disse antes de se afastar:
— Hoje à noite, olhe em direção da colina do lado sul de sua
janela. Se vir minha silhueta de encontro ao céu, vá ter comigo —
explicou ele. — Peça a Deus que o tempo esteja bom — acres-
centou antes de desaparecer entre as árvores.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XVII

Perto do meio-dia, chegou um mensageiro de Londres com


ordem para lady Hatton se apresentar em Star Chamber. Coke a
acusara de ter seqüestrado a filha sob sua proteção.
Tudo não passava de fingimento e formalidade, já que sir
Raymond continuava a exigir a aquiescência de Brenna para que
ambos se casassem. De qualquer forma, Elizabeth se via forçada a
comparecer na presença do conselho do rei embora o resultado
não passasse de mais uma exibição pública de suas desavenças
com o marido.
— Devo voltar dentro de uma semana. Talvez, então,
possamos retornar a uma vida normal em Hatton House.
Naquela noite, Brenna jantou mais cedo e sozinha na grande
sala da mansão. Logo depois, recolheu-se a seus aposentos e
dispensou a presença da criada, que por sua vez, sem a vigilância
intransigente de lady Hatton, desapareceu para se encontrar com
o namorado.
Fazia-se necessário esperar que todos se recolhessem para o
descanso noturno. Ansiosa, Brenna caminhava da cama até a ja-
nela e, a cada passo, sua resolução tornava-se mais firme e irre-
dutível. Sabia que a fuga não era seu único objetivo e desejava
sentir, de novo, os braços fortes do estranho à volta do corpo.
Pouco se importava que Thomas Smythe fosse um mercador ou
um assaltante de estradas, pois desejava-o para si própria.

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OS AVENTUREIROS

As horas arrastavam-se com lentidão irritante e os olhos de


Brenna começavam a arder de tanto se fixarem na colina do lado
sul. Finalmente, ela o viu, uma figura escura mas bem delineada
de encontro ao céu.
Já se encontrava vestida com a mesma roupa que usara de
madrugada. Outra vez, atravessou a casa e desceu as escadas dos
fundos antes de se embrenhar na escuridão da noite. Os campos
já estavam úmidos de orvalho, e ela, enquanto corria, teve de se
esforçar para não escorregar e cair.
Ele a viu antes que começasse a subir a colina e esporeou o
animal para descer ao seu encontro. Brenna parou e ficou à
espera.
O homem estranho e misterioso cavalgava bem e o corpo
forte parecia fazer parte da montaria. Quando chegou perto, ela
notou as roupas elegantes. Em vez de túnica, ele usava um gibão
lilás que, como a capa cor de vinho, era de veludo. A camisa de
linho fino tinha babados de renda no pescoço e nos punhos, e o
rosto dele mostrava-se bem barbeado.
— Milady veio! — soou a voz vibrante dele, interrompendo
suas conjeturas.
— Naturalmente, pois fui eu quem propôs este encontro.
— Precisamos sair daqui e ir para um lugar seguro — disse
ele ao inclinar-se na sela.
Novamente, a força daquele homem a deixou atônita. Brenna
não era do tipo pequeno e sim alta e de corpo proporcional a sua
estatura. Mesmo assim, apenas com um braço, ele a levantou do
chão e a pôs na garupa do cavalo.
— Segure-se bem! — recomendou ele.

Partiram a galope. Brenna, com as braços à volta do peito


forte e a face colada nas costas dele, pensava extasiada:
"Podíamos cavalgar para sempre assim e esquecer tudo que ficou
para trás".
Rodearam a vila de Norfolk e seguiram em direção leste para
Great Yarmouth e o mar. As patas do cavalo ressoaram ao atra-

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OS AVENTUREIROS

vessarem uma ponte de madeira e logo depois viraram à direita.


Desceram uma encosta escarpada até chegarem a um lugar plano
e coberto por grama.
Ele desmontou imediatamente e estendeu-lhe os braços
enquanto a fitava com a mesma expressão penetrante e
perturbadora. Brenna começou a escorregar lentamente de
encontro ao corpo dele, que sentiu em toda a sua extensão, até as
pontas das botas tocarem o chão.
— Aqui estamos seguros — murmurou ele a seu ouvido. —
Sente-se, porque temos muita coisa para conversar.
Brenna obedeceu e notou que a expressão dele, agora,
mostrava-se séria e compenetrada.
— Você tinha razão. Meu nome não é Thomas Smythe. Não
sou inglês nem francês. Nasci na Irlanda. Sou Rory, The O”Hara,
príncipe do clã com cujo manto fui investido. Parece que isso não
significa nada para você — acrescentou ele, não notando
mudança alguma em seu rosto.
— De fato, sinto muito.
— Não tem importância — Rory declarou com um sorriso
seco.
— Esse título pomposo hão vale nada, pois não restou quase
ninguém do clã O’Hara, como também não sobraram muitos dos
O’Neill e menos ainda dos O’Donnell.
— Já ouvi falar deles. Minha mãe os chamava de homens co-
rajosos e insensatos.
— E mesmo? Ela estava certa, mas nestas circunstâncias isso
não nos ajuda em nada. Na Inglaterra, sou fugitivo por ter me
batido em duelo e, na França, a coroa decretou rainha prisão.
Existe, apenas, um lugar para mim — disse ele, tomando-lhe as
mãos. — Eu me esconderia na Irlanda até não precisar mais viver
no exílio.
Brenna não pôde ignorar a ironia da situação.
— Como nossas vidas, às vezes, se tornam estranhas!
— Por que diz isso? — Rory quis saber.
— David Talbot é escocês e sonha em se tornar rico na

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OS AVENTUREIROS

Irlanda. Você é irlandês e se considera exilado da França.


— Não deixa de ser curioso mesmo, porém gastaríamos dias
para contar essa história e nós não dispomos de tempo.
— Espere! — Brenna exclamou, alarmada. — Você me levaria
para a Irlanda?!
Rory riu, irônico.
— Se lá fosse um refúgio seguro, você não iria?
— Não sei — replicou ela ao recolher as mãos e baixar os
olhos.
— Dizem que é uma terra paga, atormentada por rebeliões e
onde uma mulher inglesa não goza de segurança.
— A Irlanda, menina, é um lugar lindíssimo, cheio de gente
miserável e senhores ingleses. Acredito que lá você estaria a salvo
dos irlandeses mas não dos seus compatriotas. Se fosse para a
Irlanda, seu pai a traria de volta em duas semanas. Não, você
fugirá para a França — Rory determinou enquanto se levantava e
começava a caminhar de um lado para o outro. — Minha irmã
mora lá e eu tenho muitos amigos. Existe uma abadia em...
— E você seguirá para a Irlanda?
Rory parou. Seu tom de voz sentido o cativou por completo.
Estendeu-lhe a mão e a fez se levantar. Tomou-a nos braços a fim
de fitarem-se bem dentro dos olhos.
— É preciso que seja assim, pelo menos por enquanto.
— Não quero que me considere infantil ou apressada, Rory
O’Hara, por lhe dizer que encontrei o homem a quem amar.
— Ah, minha doce Brenna, conheci bem poucas mulheres
sinceras. Ao encontrar uma agora, sinto-me feliz e aflito ao
mesmo tempo. Sou um pobre-coitado sem dinheiro e, ao que
tudo indica, vou continuar assim. Tinha um protetor na França,
porém ele perdeu o poder e o prestígio. Possuo, aqui na
Inglaterra, documentos que provam meus direitos hereditários,
todavia eles se tornaram inúteis, já que sou um fugitivo da lei.
A mente de Brenna mais parecia um turbilhão. A proximidade
de Rory enchia-lhe os pensamentos e formava uma barreira
contra as palavras dele.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Eu menti. Embora pareça desfaçatez, eu teria dado tudo


em troca de minha liberdade. Mas isso foi antes, agora é
diferente porque existe algo muito mais importante.
Ele ainda estava em pé perto do cavalo e Brenna estendeu a
mão para acariciá-lo no rosto.
— Se fosse para ir à Irlanda com você, Rory OTIara, eu iria de
bom grado.
— Acredito, minha adorável Brenna, mas você seguirá para a
França. Já enviei uma mensagem para lá e logo teremos uma
resposta. Agora, na volta para Elmeham, marque bem o caminho
para cá, pois este será o lugar do nosso próximo encontro.
Brenna sorriu e disse, como se falasse consigo mesma:
— Acho que amanhã farei um passeio a cavalo e acabarei
vindo parar exatamente aqui.
— Incrível, você é mesmo persistente, não é?
— Claro, O’Hara, pois sou uma mulher de força de vontade e
que sabe o que quer, lembra-se?

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XVIII

As enormes rosetas de prata das esporas de Buckingham


tilintavam tão alto com as passadas dele pelo salão que
ameaçavam encobrir-lhe as palavras.
Infelizmente para David Talbot isso não acontecia e ele, do
lugar onde se encontrava em pé, podia ouvir a voz do duque com
uma clareza irritante.
— Deve ser do seu conhecimento, sir David, que nestes
tempos, as solicitações e premências dos negócios de Estado
constituem um peso em nossos ombros.
— Sem dúvida alguma, milorde.
Nervoso, David mudava o peso do corpo de uma perna para a
outra e observava os movimentos do alto e esbelto Buckingham.
Pelo canto dos olhos, podia ainda ver o olhar de ave de rapina
com que lady Compton avaliava a situação, esforçando-se para
não demonstrar a raiva e o aborrecimento que o dominavam.
— Existe a questão do casamento com a casa real de Espanha
e esse negócio amedrontador no continente. Temo que o genro
de Sua Majestade extrapole seus direitos e provoque uma guerra

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

lá. O senhor há de convir que estes são os assuntos com que um


homem como eu, conselheiro do rei, deve se preocupar em
primeiro lugar.
O duque de Buckingham encontrava-se, agora, bem em frente
a Talbot e fitava-o com olhar sarcástico.
— Concorda comigo, sir David?
— Naturalmente, milorde.
David desviou os olhos para o florete de Buckingham. O cabo
era de prata e a bainha com engastes de ouro mais fino e
decorativo do que o usado nos pilares da catedral de St. Paul.
Levou a mão à própria arma e imaginou se precisaria defender-se
uma, ou duas vezes, antes de cravar a ponta da lâmina no
coração desse idiota empertigado.
— Ótimo ótimo! Fico satisfeito em ver que compreende
nossas responsabilidades. Sei que conhece as artes marciais por
ter sido soldado e é um competente jogador de cartas e dados.
Não ignoro também que não nasceu numa família de posição
alta, mas conquistou um bom lugar na sociedade às custas de
esforço próprio e inteligência. Gosto disso.
— Obrigado, milorde — David replicou.
Sua irritação crescia a cada minuto. Desejava tratar do
negócio que o trouxera ali o mais depressa possível e ir embora.
Temia uma indiscrição qualquer de Buckingham sobre as
aventuras de quarto com Sua Majestade.
— Hoje em dia, para fazer fortuna em Londres, um homem
precisa ser proprietário de uma taverna, ou de uma tabacaria, ou,
ainda, de um prostíbulo. O senhor ganhou dinheiro sem ne-
nhuma dessas três coisas. Louvo-lhe a sagacidade.
David mal podia esconder o desdém que o duque lhe
provocava com a vulgaridade dos comentários, mas conseguiu
manter a aparência de calma. Havia lhe custado tanto obter essa
audiência que não desejava que nada a estragasse.
— Assim, acredito que possamos conversar num plano
satisfatório. Não deixa de ser constrangedor que eu mesmo tenha
de cuidar de assuntos tão triviais. Entretanto, essa questão da

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

propriedade irlandesa deve lhe ser muito importante, não é, sir


David?
— De fato, milorde, é de suma importância.
— Muito bem. Creio ainda que o senhor concordará comigo
quanto à nódoa afrontosa sobre a minha família, provocada pela
menina Coke, e reconhecerá a importância do problema.
— Como assim, milorde? Ouvi dizer que o seu primo, sir
Raymond Hubbard, é quem recusa a se casar.
O duque corou até a raiz dos cabelos.
— Essa moça enfeitiçou o meu primo. Ele alimenta ilusões
quanto a atitudes de fidalguia há muito desaparecidas. Tenho
certeza de logo poder convencê-lo do engano que está
cometendo. Enquanto isso...
A pausa provocou um peso no coração de David. Ele não se
conteve e perguntou:
— Enquanto isso, milorde?
— A sua oferta por Ballylee feita à coroa é bem razoável.
Penso que se fosse...
— Steenie... Steenie...
As portas no extremo do salão se abriram e dois lanceiros
anunciaram:
— Sua Majestade, o rei!
No mesmo instante, David apoiou um dos joelhos no chão e
lady Compton ergueu-se da cadeira a fim de curvar-se em sinal
de reverência. Buckingham manteve-se em pé e à vontade.
O rei James, meio cambaleante por falta de firmeza nas
pernas finas, entrou no salão e percorreu os olhos turvos e
congestionados por ele.
— Aqui, Majestade — Buckingham murmurou ao se
aproximar para beijá-lo nas faces e nos lábios.
David levantou um olhar discreto e mal pôde evitar uma ex-
clamação de surpresa. Há muito que não via o rei.
James, que nunca possuíra uma aparência bonita, ou
saudável, não passava agora de uma sombra do que fora. Os
olhos, de expressão meio louca, demonstrava a mesma

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

insegurança das pernas. O odor que dele emanava não deixava


dúvida quanto a seu estado de embriaguez. O gibão estava todo
manchado de comida e vinho e a camisa de linho parecia
imunda. A barba que cobria o rosto emaciado, além de
emaranhada, precisava, urgentemente, ser aparada.
David estremeceu e pensou! "E isto rege nossas vidas!"
— Steenie, vamos depressa! — James falou, excitado. — A
quadra de tênis está seca e o tempo desta tarde é o ideal para
uma partida. Vai ser uma competição excelente com você, meu
querido Steenie, e o meu adorado Charles!
— Naturalmente, Majestade.
— Você jogará só de calções e meias. E tão bom ver o sol
brilhar no peito nu do meu Steenie!
Enquanto falava, o rei da Inglaterra acariciava,
amorosamente, o peito e os ombros do duque de Buckingham.
— Como queira, Majestade.
O duque precedeu o rei na saída do salão e, da porta, reco-
mendou a lady Compton:
— Termine a audiência de sir David, mamãe. Quando os
lanceiros fecharam as portas, ela comentou:
— O rei não tem passado muito bem.
— Lamentável, milady — David respondeu quase sem
conseguir esconder a expressão de nojo.
— Fomos informados de que o senhor exerce uma certa in-
fluência sobre Brenna Coke.
— Temos sido bons amigos.
— Conversei com sir Edward e ele concordou em prolongar o
seu contrato de aluguel de North Elmeham até que os seus tra-
balhadores irlandeses possam ser mandados para Ballylee.
— isso quer dizer...
— Significa, sir David, que contamos com a sua autoridade
sobre a referida jovem.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XIX

Na tarde do dia seguinte, Brenna voltou, a cavalo, ao pequeno


vale. Esperou até o anoitecer, porém Rory não apareceu.
Ressentia-se da ausência dele e, ao mesmo tempo, irritava-se
consigo mesma por considerar infantilidade sua a esperança de
revê-lo tão cedo.
Contudo, não conseguia afastar o medo de que ele houvesse
mudado de idéia.
O sol já desaparecera atrás do horizonte quando Brenna, re-
lutante, montou Starlight e retornou a Elmeham. Sentia-se
confusa e amedrontada. Temia que Rory já houvesse fugido, e a
possibilidade de não mais encontrar-se com ele quase a fez
invadir o estábulo a fim de descobrir a verdade.
Mas a prudência, uma de suas características marcantes, a
impediu de agir dessa maneira. Em vez disso, retomou seu posto

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OS AVENTUREIROS

de vigília à janela do quarto, na expectativa de ver, novamente, a


silhueta negra de encontro ao céu.
Brenna mal podia imaginar a agitação que havia provocado
em Rory O’Hara. Na verdade, ele se mantinha escondido no pe-
queno quarto do estábulo, com medo de aventurar-se pela pro-
priedade e encontrar-se com ela.
Pela primeira vez na vida, Rory percebia não estar em posição
de domínio com uma mulher e sabia que não poderia controlar
seus atos na presença dela.
Seu desejo por Brenna era tão forte que ele seria capaz de
cometer a loucura perigosa de possuí-la em Elmeham mesmo
correndo o risco de ser apanhado pelos criados da casa ou
empregados do campo. Durante horas, permaneceu deitado na
enxerga de palha, com as mãos cruzadas sob a cabeça e o olhar
perdido nas vigas do telhado.
Como se estivesse em estado de transe, via o rosto de Brenna
tomar forma, diluir-se e reaparecer de novo. Lembrava-se de seus
olhos ligeiramente amendoados e tão negros como os cabelos
fartos, ou dos lábios lindos, de um rosa forte e brilho convidativo.
Rory a imaginou com um vestido de cetim preto, cuja blusa
justa e decotada revelava parte dos seios arredondados e eretos.
Sentiu um arrepio na palma das mãos e a excitação tomou forma
no corpo.
Ele não se lembrava de ter conhecido outra mulher com
cintura tão fina e quadris tâo arredondados e bem-feitos. Brenna
era uma criatura encantadora e o havia enfeitiçado. Apenas não
entendia como isso podia ter acontecido num período curto de
tempo e em circunstâncias tão ameaçadoras.
Desde o primeiro instante em que a vira, Rory tivera certeza
de ter encontrado o rosto de seus sonhos. Deparava-se com a
realidade e não nutria dúvidas de que amava Brenna Coke. A
frase preferida de Shanna, sua irmã, veio-lhe à mente: "Apenas
uma mulher extraordinária conseguirá domar sua alma louca,
meu irmão. Queira Deus que isso aconteça um dia, pois só então
você será um homem íntegro!"

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

"Muito bem," Rory pensou, "o desejo de Shanna acaba de se


concretizar, mas o que adianta?" Seu destino era esconder-se o
mais depressa possível numa cabana nas florestas da Irlanda até
que pudesse se empregar como mercenário na Espanha ou
França. Dessa forma, que tipo de vida poderia oferecer a uma
moça fina como Brenna Coke?
Uma grande tristeza o invadiu. Virou-se de bruços na
enxerga, desejoso de entregar-se ao esquecimento do sono. Antes
de adormecer, lembrou-se das palavras repetidas tantas vezes por
O’Donnell: "Ser infeliz e frustrado na guerra e no amor é a
maldição irlandesa".
Esse constituía um aviso que Rory respeitara a vida toda, mas,
mesmo ao lembrar-se dele, sabia que, na tarde do dia seguinte,
iria ao encontro de Brenna.
Se alguém visse o ar de firme determinação no rosto de
Brenna, jamais imaginaria o medo que a dominava ao cruzar a
ponte de madeira em direção ao pequeno vale. Starlight
relinchou ao descer a escarpa íngreme, porém não se ouviu
resposta alguma do garanhão de Rory.
Lá embaixo, ela estendeu a capa sobre a grama macia, onde
colocou uma cestinha, com um lanche leve, que tinha trazido
amarrada à sela. Sentou-se e ficou à espera.
O sol ficou a pino e começou sua trajetória lenta em direção
ao horizonte. As horas continuaram a passar devagar até que as
sombras se alongaram sob a última luminosidade que vinha do
horizonte. O piar agudo dos corvos já cessara e os primeiros
tordos iniciavam seu canto noturno.
— Ele virá — Brenna murmurou para as águas do riacho. —
A escuridão da noite é mais segura. Só quando for completa, ele
aparecerá.
Como se a correnteza fosse uma fada mágica e atendesse ao
seu desejo, o galope de um cavalo quebrou o silêncio. Logo
depois, as patas do animal ressoavam na ponte de madeira e,
então, o enorme garanhão deslizou pela escarpa.
Brenna se levantou com o coração disparado e os olhos bri-

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

lhantes de expectativa.
Foi um momento que pareceu durar uma eternidade. Rory,
montado no animal inquieto, mantinha os olhos escuros presos
aos seus. Quando falou, o sotaque irlandês que ela passara a
notar parecia mais marcado.
— E uma loucura o que estamos fazendo, menina. Você está
segura do que quer?
— Completamente, mais do que jamais me senti ou sentirei
— Brenna murmurou com olhar confiante.
Rory soltou a capa enquanto desmontava e nem percebeu que
ela caía ao chão quando se apressou em tomar Brenna nos
braços. As feições morenas dele estavam transtornadas pela
paixão ao inclinar o rosto sobre o seu.
— Você é uma feiticeira que roubou minha alma, Brenna.
— Não, Rory O’Hara, sou a moça que deseja dar-lhe seu
coração. Devagar e sem interromper o beijo, eles estenderam-se
sobre
a grama. Deitado de lado, Rory abriu a camisa; ao mesmo
tempo que Brenna se deliciava em tocar-lhe o peito, ele
desamarrava os cordões de seu corpete.
A exclamação que escapou dos lábios dele ao ver seus seios
nus foi cheia de encantamento e ternura. Bem de leve, tocou-lhe
os mamilos eretos com os lábios quentes antes de cobrir seu
rosto de beijos apaixonados.
O aroma diferente que emanava do corpo e das roupas dele
misturado ao da grama amassada sob o peso de ambos a deixava
inebriada. Era algo viril e diferente do perfume pesado e
enjoativo usado pelos almofadinhas e cortesãos de Londres que
costumavam incomodá-la com propostas veladas e falsas.
— Minha capa! — Rory exclamou ao perceber onde haviam
se deitado.
— Não tem importância, meu amor.
As mãos dele mostraram uma certa hesitação, como se ainda
duvidasse de sua disposição em aceitá-lo. Brenna enlaçou-o pelo
pescoço a fim de demonstrar a firmeza de suas intenções e

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OS AVENTUREIROS

acalmar o medo vago sentido no fundo do coração. Puxou-lhe o


rosto de encontro ao seu enquanto entreabria os lábios e com a
própria língua procurava a dele. Ansiosa e excitada, ela arqueou o
corpo numa entrega total às carícias exploradoras e estimulantes
de Rory.
— Quero amá-la como homem algum jamais amou uma
mulher — disse ele num sussurro emocionado quando,
finalmente, interromperam o beijo sôfrego.
As feições dele demonstravam um misto de súplica e
exigência, a vontade de dar e de receber.
— Rory, meu Rory, meu irlandês, meu homem! — Brenna
murmurou numa entrega total à paixão excitante provocada por
essa criatura cujo corpo forte cobria o seu.
— Será que poderá mesmo me amar, Brenna Coke?
— Tão certo como existem a noite e o dia.
Devagar e com uma suavidade imensa de que Brenna não o
tinha imaginado capaz, ele a possuiu. O membro excitado
penetrou em seu âmago e dominou por completo não só o corpo
como a mente também, na procura de satisfação plena. O riacho,
que antes corria manso e silencioso, parecia agora, a seus
ouvidos, uma corrente magnífica e estrondosa num
acompanhamento perfeito da consumação do desejo de ambos.
Brenna tinha ainda a impressão de ouvir a voz de Rory mur-
murando palavras de ternura e carinho, porém sua atenção total
focalizava-se na força que os mantinha desesperadamente
unidos. Moviam-se como se fossem um único ser e a pouca dor
sentida por ela não passava de um estímulo àquele ato de amor.
Todavia, até mesmo essa dor desapareceu no momento supremo
da explosão do desejo e da comunhão absoluta.
Trêmulos e ofegantes, continuaram abraçados por muito
tempo.
A mente de Brenna, com grande lentidão, voltava das
profundezas alcançadas na procura pela satisfação do anseio
imperioso. Abriu os olhos e viu que Rory a fitava com adoração.
—- Sente-se amada? — perguntou ele com um sorriso.

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OS AVENTUREIROS

— Mais do que sonhei ser possível.


Permitiu que o olhar percorresse, fascinado, aquele corpo
másculo, acariciou os músculos rijos e percebeu que eles estavam
úmidos de transpiração. Com alegria e prazer, conscientizou-se
de que não sentia a menor inibição.
— Você é tão lindo!
— Tanto quanto você? — provocou ele.
Brenna desviou o olhar para o próprio corpo e viu que ele
também brilhava sob uma camada de perspiração. De repente,
rompeu num riso franco e alegre.
— Não me leve a mal — disse ela em resposta ao olhar
indagador de Rory. — Tudo isto é tão novo e estranho, mas, ao
mesmo tempo, maravilhoso. Eu gostaria... Será que é perversão
desejar que houvesse um espelho aqui ao nosso lado? Acaba de
me ocorrer que formamos um casal lindíssimo e eu adoraria nos
ver juntos assim.
O riso sonoro dele ecoou pelo pequeno vale enquanto a
enlaçava com braços e pernas para, em seguida, rolarem pela
grama numa brincadeira divertida.
— Como pode uma criatura ser, a um tempo só, tão inocente
e sensual? — Rory perguntou, entusiasmado.
— Por amor a você, Rory O’Hara! Por amor a você!
Nos dias seguintes, os amantes escaparam da mansão de
Elmeham a toda oportunidade surgida. A cada encontro, beijo ou
carícia, o desejo e a carência de um pelo outro aumentavam de
intensidade. Pareciam duas crianças inocentes quando rolavam
pela grama úmida de orvalho ou se deitavam nus, lado a lado, na
cabana abandonada de um pastor de ovelhas.
Brenna sentia o coração leve com a felicidade que os envolvia.
Logo percebeu que nunca havia rido tanto em sua vida, já que se
encontrava sempre dominada pela tensão provocada pelas cons-
tantes desavenças dos pais. Agora, a companhia de Rory O’Hara
afastava todos os pesadelos.
Foi durante esses encontros que Brenna ficou sabendo muita
coisa a respeito do irlandês de sorriso atrevido que lhe capturara

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OS AVENTUREIROS

o coração. Rory lhe contou sobre a vida levada em Roma e Paris e


a infância passada na Irlanda. Descreveu-lhe, ainda, a figura
guerreira de Shane, seu pai.
— Talvez seja por isso que eu tenha tanto medo de ser
irlandês. Receio que não passe de uma réplica de meu pai. Aqui
dentro do meu peito existe o mesmo demônio que Shane possuía
e, antes dele, o meu avô. É a ânsia pela guerra.
E então, em palavras sussurradas que mais lembravam as de
um poeta do que as de um guerreiro, ele narrou-lhe a história de
Deirdre dos Pesares, um conto antigo do folclore irlandês. Ele a
aprendera dos lábios da mãe, que também se chamava Deirdre e
cuja vida amorosa fora tão infeliz quanto à da heroína da
história.
— Minha mãe amou meu pai a tal ponto que preferiu matá-
lo, ela mesma, antes que os ingleses o executassem de maneira
aviltante e cruel.
— Acredito, Rory O’Hara, que eu o amo com a mesma inten-
sidade — Brenna confessou com voz trêmula.
Porém o temperamento instável de Rory fez com que o estado
de ternura emocional se transformasse em raiva desenfreada. Fu-
rioso, ele amaldiçoou a Irlanda e seu povo.
— Eles adoram uma boa luta e, creio, chegam quase a gostar
da derrota, talvez por terem se acostumado a ela.
Contudo, sob o sarcasmo, Brenna podia detectar a atração
profunda que Rory sentia pela terra natal, fato que não admitia
nem a si mesmo. A verdade, porém, era que, como Shanna, a
irmã, ele sonhava em poder reclamar seus direitos.
Foi num desses momentos em que Rory falava baixinho, com
uma reverência nostálgica, que Brenna sentiu a primeira premo-
nição de que o relacionamento entre eles não percorreria um ca-
minho fácil e suave.
— Há ocasiões, minha adorável menina, em que a minha
mente se enche de lembranças daqueles dias distantes. Recordo-
me das tardes em que minha irmã e eu brincávamos por entre as
urzes dos campos, penso em Annie, a mocinha que cuidava de

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nós como uma santa, ou no cancionista que tangia as cordas da


harpa ao entoar lamento sobre os heróis do passado. Havia coisas
boas e más em Ballylee.
— Meu Deus! — Brenna exclamou, cheia de medo.
— O que foi, menina? Você está lívida!
— Você disse... Ballylee?
— Isso mesmo. É a terra do clã O’Hara, a oeste e entre
Donegal e Connaught. Já ouviu falar sobre ela?
Brenna respirava com dificuldade, como se uma mão invisível
lhe apertasse a garganta.
— E ela que lhe pertence por direito hereditário?
— Exato — Rory concordou, alarmado com as lágrimas que
ela não conseguia mais conter. — Mas o que é isso? Parece que
você viu um fantasma!
— Então você não sabe de nada sobre os irlandeses em North
Elmeham e os planos de sir David?
— Não. Como já lhe disse, ele e eu conversamos muito
pouco. Talbot nem sabe meu nome verdadeiro.
Num movimento brusco, Brenna se levantou e correu até a
margem do riacho, onde se deixou cair abalada por um pranto
convulso. Rory se deu conta da agonia pela qual ela passava e
cuja razão não podia decifrar. Esperou que os soluços parassem e
só então se aproximou.
— Por que, minha adorável menina, a menção do castelo em
ruínas de Ballylee e dos campos abandonados à volta dele, que
pertenceram a meu pai, a deixa tão nervosa?
Com a voz hesitante e trêmula, Brenna narrou a conversa
mantida com David Talbot naquela tarde na hospedaria Three
Ravens. Descreveu o olhar enlevado do amigo ao falar sobre
Ballylee e o sonho alimentado de melhorar a vida dos
trabalhadores irlandeses enquanto ele próprio se transformaria
num fazendeiro próspero.
Por um longo tempo, Rory permaneceu em silêncio, abaixado
a seu lado. Brenna não tinha coragem para se virar e fitá-lo, certa
de encontrar o ódio estampado nas feições dele.

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

"Não passamos de brinquedos nas mãos do destino", pensou


ela, desolada. "O meu amante e o meu melhor amigo cobiçam a
mesma terra." Era preciso admitir que a propriedade Ballylee po-
deria mudar a vida dos dois homens ao propiciar um significado
diferente a cada um deles.
Foi então que uma idéia apavorante tomou conta de sua
mente. E se os dois se batessem em duelo?
— Rory, você deve...
Parou, surpresa, ao ver que ele sorria bem-humorado.
— Como é curiosa essa vida que levamos — disse Rory.
— Você não está bravo?

— E por que haveria de estar? Talbot tem o sonho dele, que


parece melhor do que o meu. Além do mais, ele possui os fundos
para realizá-lo.
— Mas Ballylee pertence a você!
— E do que adiantaria isso? O castelo continuaria em ruínas.
Os planos de colonização de sir David são mais parecidos com os
de um irlandês do que com os dos ingleses e escoceses. Talvez
até eu o ajude a conseguir Ballylee!

CAPITULO XX

Absurdo! Ridículo! — Elizabeth sibilou enquanto a mão


trêmula levava o copo de vinho aos lábios.
— E mesmo, madame? — David Talbot indagou ao mexer-se
um pouco na cadeira e colocar os pés ainda calçados com as
botas de montaria sobre uma banqueta almofada. — Milady
considera minha resolução absurda ou é a idéia de me ter como

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

genro que acha ridícula?


Elizabeth aproximou-se dele e fitou-o nos olhos um tanto
lacrimejantes. Tinham chegado a North Elmeham, vindos de
Londres, havia duas horas. Desde então, David bebia sem parar.
— Eu o admiro, David, e você sabe disso. Eu o aprecio como
a todos os sobreviventes vencedores deste mundo. Você é inteli-
gente, ambicioso, tem força de vontade e, só Deus sabe como,
mantém-se firme e honesto em seus propósitos para consigo
mesmo, embora aparente ser um homem imprestável.
— Parece que a mãe gostaria de me ter para si própria —
David comentou com um risinho seco.
— Sou dez anos mais velha do que você! — Elizabeth
retrucou, ríspida.
— Desculpe — disse ele com um sorriso e um leve enrolar de
língua. — E eu sou quinze anos mais velho do que Brenna. En-
tretanto, esta conversa não nos leva a nada. Eu...
O ruído de patas de cavalo no pátio o interrompeu. Num se-
gundo, lady Hatton encontrava-se à janela e David fez várias ten-
tativas para erguer-se da cadeira. Como não conseguisse,
recostou-se de novo e bebeu mais aguardente.
— Graças a Deus, é Brenna. Imagine andar a cavalo com essa
chuva e neblina! Vai se resfriar, com certeza.
— Ótimo! Quer dizer, que esteja de volta. Assim poderá
resolver por si própria — David disse.
Momentos depois, Brenna irrompia pela sala, com respiração
ofegante e sacudindo os respingos de chuva dos cabelos.
— Mamãe... David...
David retribuiu a pequena curvatura de Brenna com um gesto
da mão direita, que segurava o copo. Gom a esquerda, ele
apanhou a garrafa, cujo conteúdo já estava pela metade.
— Você voltou um dia mais cedo, mamãe.
— O conselho votou a favor de seu pai.
— Oh, não! — protestou Brenna.
Correu até a janela e fixou o olhar na pequenina janela na
parte superior do estábulo. Será que poderiam fugir ainda?

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OS AVENTUREIROS

— Conte-lhe o resto — David sugeriu.


— O quê, sir Raymond cedeu? — indagou ela, aflita.
— Não — Elizabeth afirmou. — Todavia, acredito que ele
logo não terá mais o direito de fazer a vontade própria. Daqui
para a frente, apenas o rei será ouvido.
— Como assim? — Brenna quis saber, ansiosa.
A expressão de Elizabeth mantinha-se calma, porém a filha
sabia que, sob aquela aparência, a mãe se desesperava.
— De Falkland, o rei enviou ordens ao cachorrinho fiel,
Bacon, e ao arcebispo Abbott. Devo devolver você a sir Edward e
não induzi-la a fugir dele outra vez. Você também não poderá
assumir compromisso matrimonial com outro homem sem o
consentimento de seu pai.
— E se você se recusar a me levar de volta? David limpou a
garganta e respondeu por Elizabeth:
— Se lady Hatton, sua adorável mãe, se negar a obedecer,
será levada à prisão de Fleet ao bel-prazer do rei. Este é o tipo de
governo que temos agora.
— Então, tudo está perdido — gemeu Brenna.
— Não, de forma alguma — David contradisse ao levantar-se
cambaleante e perambular pela sala com garrafa e copo nas
mãos. — Existe uma solução bem simples. Temos de sumir com
você e casá-la com alguém. Naturalmente, sem o conhecimento e
permissão de sua mãe.
O olhar de Brenna voltou a se fixar na janelinha do estábulo.
Cheia de determinação, já ia falar sobre Rory O’Hara quando
David continuou:
— Tive minha audiência com o cachorrinho de estimação do
rei, Steenie, e com a horrorosa mãe dele. Fiquei sabendo que
minha oferta sobre Ballylee seria bem-aceita sob certas
condições. A velha bruxa e o filho atrevido sabem de nossa
amizade, minha cara Brenna. Fui informado, com bastante
clareza, de que, se fosse capaz de convencê-la das vantagens do
seu casamento com sir Raymond, poderia tratar da mudança de
meus empregados irlandeses para Ballylee.

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

— Ah, David! — Brenna exclamou, assustada.


— A bem da verdade, minha querida Brenna, acredito que
Ballylee se transformaria num inferno se fosse conquistado a esse
preço. Também a Irlanda se encontra sob o domínio da
Inglaterra e esta sob o de James, que não passa de um devasso
bêbedo sob o calcanhar de Buckingham, e da velha bruxa que ele
chama de mãe. Acredito, piamente, que a Inglaterra com a
liderança de tais paspalhões acabará desaparecendo no mar e
levando consigo a Escócia e a Irlanda. Portanto, irei para a
França. Eu a salvarei, Brenna, e a mim mesmo.
— A mim?!
— Exatamente — Talbot replicou enquanto firmava um dos
joelhos no chão. — Eu a tomarei por minha esposa, Brenna!
— David, é uma brincadeira...
— Não, Brenna, não é brincadeira. Eles não poderão fazer
nada se eu a roubar. Ao mesmo tempo, isso significaria um golpe
para Buckingham. Sei que seu noivado não é questão relevante
de Estado, mas alguém precisa desafiar esse presunçoso atrevido,
mesmo de maneira pequena, ou nossas vidas perderão o sentido.
Brenna fitou a mãe. Os olhos de Elizabeth tinham uma ex-
pressão vaga e vazia. Isso a desconcertou, pois era a primeira vez
que via a mãe perdida, sem encontrar palavras ou saber como
agir. Voltou a se concentrar em David, que se levantava com
esforço e a encarava com os olhos vermelhos. Ele parecia tão
patético e alquebrado!
— Você desistiria do seu sonho com Ballylee apenas por
minha causa, David?
— Desistiria, menina, porque não creio que ele passasse de
imaginação minha. Dou-lhe minha palavra de que casaremos só
no papel. Quando tudo se acalmar por aqui, o que sem dúvida
acontecerá um dia, nós nos divorciaremos e você poderá voltar
para a» Inglaterra.
A generosidade dele era grande demais para ser aceita. Um
dos homens de quem mais gostava no mundo estava disposto a
sacrificar tudo em seu benefício.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— David, acho que você deve ir depressa ao estábulo.


— Nós dois precisamos fazer isso e partir para a França en-
quanto há tempo.
— Certo, mas primeiro vá conversar com seu hóspede. Um
lampejo de sobriedade perpassou o olhar de David.
— Smythe? O que sabe sobre ele?
— Acho que mais do que você, David. Ele chama-se O’Hara e
não Smythe. E The O’Hara, chefe do clã O’Hara.
— Maldição! — David resmungou, alerta. — De Ballylee!
— Isso mesmo, e é com ele que eu me casarei. Partiremos
esta noite para a França, onde contamos com a proteção do
padrinho dele, um tal de Rory O’Donnell.
Ouviu-se uma exclamação abafada vinda por detrás de David.
Em seguida, lady Hatton caiu desmaiada no chão.
Rory O’Hara riu alto enquanto examinava as roupas atiradas
pelo quarto. Elas haviam sido compradas com o dinheiro de
Armand de Richelieu e eram finas, elegantes e de bom gosto. O
propósito delas era facilitar-lhe a entrada na sociedade londrina.
Agora, não passavam de excesso de bagagem e teriam de ser
deixadas para trás.
Isso não o preocupava e até o deixava um tanto aliviado.
Desde que chegara à Inglaterra, Rory tinha descoberto não
possuir a menor aptidão para se valer de subterfúgios e por isso
nunca daria um bom espião. Não que precisasse se envolver em
grandes tramas, seu trabalho não passaria de simples observação
da vida em Londres e dos fatos da corte ocorridos em
Westminster e Whitehall, e deveria fazer relatórios de tudo para
Richelieu.
Também, para onde ia, ele não necessitava de roupas
elegantes e botas finas. Ficaria na França apenas o tempo
suficiente para entregar Brenna aos cuidados de OT)onnell e da
irmã Anna. Então, seguiria para a Irlanda, onde espionaria a seu
jeito e em benefício próprio.
Meia hora antes, Brenna havia entrado apressada ali no
quarto e relatado o que se passara na sala da mansão. Em poucas

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

palavras, referira-se à proposta generosa e desinteressada de sir


David Talbot e o estranho desmaio da mãe.
— Apronte-se depressa e leve o mínimo que for possível —
Rory recomendara. — Teremos de cavalgar, pois não dispomos
de tempo para viajar de carruagem. *
Brenna se retirara no mesmo instante e, ao vê-la atravessar o
pátio correndo, com os cabelos negros e brilhantes esvoaçando
para trás, o coração de Rory encheu-se de ternura. Tinha certeza
de haver encontrado a mulher a quem amar.
A bagagem de Rory já estava pronta numa sacola de couro
que ele prenderia à sela do cavalo. Levava apenas o manto de The
O’Hara, uma muda de camisa e calça e uma túnica de couro para
substituir o gibão elegante e bordado que usaria até deixar a
França a caminho da Irlanda. Lá, ele esperaria, confiante de que
seria aceito como mosqueteiro do rei francês.
De repente, David Talbot irrompeu quarto adentro.
— Tom Smythe, hein? — gritou ele.
— É verdade, sir David, sou mesmo Rory, The O’Hara de Bal-
lylee, como Brenna lhe contou.
— Ela revelou mais coisas — gritou o outro ao dar um passo
à frente e segurá-lo pelos ombros.
Rory surpreendeu-se com a força daquele homem tão menor
que ele.
— E verdade que possui provas de ser você The O’Hara, o
herdeiro legítimo das terras de Ballylee?
— É, sim — Rory afirmou. — Tenho ainda Haskins House e
terras aqui na Inglaterra, porém isso de nada me serve.
— Veremos, O’Hara de Ballylee! — Talbot exclamou com um
riso baixo e gutural, quase satânico.
— Era sobre Ballylee que eu pretendia conversar com o
senhor antes de partir, sir David.
— E eu com você. Mas primeiro quero ver as provas —
Talbot disse ao largá-lo, recuando um pouco.
Com um sorriso, Rory foi apanhar os documentos que se en-
contravam no bolso interno de sua capa.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Olhe aqui, sir David, eu lhe dou os dez mil acres de terra e
as ruínas de Ballylee.
David Talbot apanhou o rolo de papéis com mais agilidade do
que se poderia imaginar no seu estado de embriaguez e sem
parecer ter ouvido as palavras de Rory. Abriu os documentos e,
com ar-rebatamento, ajoelhou-se para lê-los.
— Assinados pelo próprio rei James! E tudo testemunhado
por sir Robert Cecil! Este é, de fato, um documento legal. Ballylee
pode ser seu sem que seja preciso haver litígio. O rei já enfrenta
problemas suficientes com a corte e o parlamento e não há de
querer enfrentar mais um ao negar a validade de um documento
assinado por ele mesmo.
A expressão de alegria pura no rosto de David surpreendeu
Rory. Era exatamente como Brenna o havia descrito, e ele o in-
vejava. Ali à sua frente, ajoelhado, encontrava-se um homem
com o grande sonho de sua vida nas mãos.
— Você partiria para a Irlanda num piscar de olhos, não é
verdade, Talbot?
— Partiria, sim, meu rapaz, pois amo o espírito do irlandês e
a beleza daquela terra. Se eu não fosse tão jovem na época de
O’Neill e O’Donnell, teria lutado como mercenário a troco de um
pedaço de terra por lá.
— Ele é seu agora, Talbot, e não foi preciso levantar a espada
para consegui-lo.
— O que está dizendo? Ficou louco?
— Não, aquela terra não me atrai. Prefiro ir para a França
com Brenna e implorar justiça ao rei Luís. Tenho muitos amigos
lá e com a ajuda deles acredito poder arranjar um posto entre os
mosqueteiros do rei.
— Como pode falar assim? Por Deus, homem, será que não
percebe quem é? Você é The OTIara, representa o clã cujo
sangue corre em suas veias. Eu o invejo por isso e, no entanto,
você só sabe lamentar o que perdeu "e não deseja lutar pelo que
pode vir a ganhar.
— Antes de eu nascer, tudo já estava perdido e nada será

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

ganho durante a minha existência. Sempre desejei, ou precisei,


de pouca coisa na vida, Talbot, até agora.
— Brenna?
— Isso mesmo. Não quero que ela seja a mulher de um
pobre-diabo irlandês cujas terras são o alvo da ganância do fiscal
de imposto inglês. A cada dia que passa, mais irlandeses perdem
suas propriedades com a desculpa de não possuírem
documentação legal. No momento, tenho um título válido, mas
chegará o dia, e você sabe disso, Talbot, em que Buckingham, ou
o rei, ou o filho dele, se James morrer, achará uma maneira de
negar os meus direitos. Essa foi, é e sempre será a maneira de
agir dos ingleses. Você, por outro lado, tem a vontade, o dinheiro
e os homens para reconstruir Ballylee. Além do mais, sir David,
sua nacionalidade escocesa os impedirá de expulsá-lo da
propriedade se ela for sua.
— Não, eu não posso aceitar isso!
Foi a vez de Rory segurá-lo pelos ombros.
— Pode, sim. Estes documentos forçarão Buckingham e a
coroa a lhe vender Ballylee sem que você satisfaça as exigências
feitas em relação a Brenna. Será que não percebe? Eles darão
preferência ao seu ouro do que a um litígio com o herdeiro
legítimo, coisa que não lhes proporcionará lucro algum.
Os olhos de David Talbot se alargaram ao perceber o
raciocínio lógico de O’Hara. De posse desses documentos, ele
poderia, facilmente, forçar Buckingham a ceder.
— Apenas lhe peço uma coisa, sir David, que compartilhe a
sua boa sorte com minha Shanna. De nós dois, ela é a única que
sonha com a volta à Irlanda.
— É difícil de acreditar, OTIara, que esteja abrindo mão de
coisas que outras pessoas consideram tão preciosas. Eu não o
compreendo.
— Basta que minha irmã tenha sua porção do velho solo.
Quanto a mim, desejo apenas um lugar onde possa encontrar a
paz em companhia de Brenna.
— A tentação é muito grande. Maldição, O’Hara, eu já

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

cheguei a sonhar em ser, um dia, o barão de Ballylee!


— E será. Mande seus homens para a Irlanda e acerte a
questão com a coroa. Enquanto isso, eu vigiarei as terras.
Quando os problemas aqui estiverem resolvidos, você se juntará
a mim. Até lá, espero, meu amigo René de Gramont já terá
intercedido por mim junto ao rei e preparado o meu caminho de
volta à França.
— Barão de Ballylee... — Talbot murmurou sem dar atenção
às últimas palavras de Rory.
— Todavia, seria uma falsidade usar aquele manto.
De repente, o David Talbot à frente de Rory era, novamente, o
homem que ele conhecera semanas antes. Os ombros estavam
eretos e o olhar sóbrio.
— Seriam os seus ombros, Rory O’Hara, que deveriam usar o
manto de veludo, mas, para o inferno, se não vou aceitar a sua
oferta!
Os dois riram, satisfeitos, e se abraçaram.
— Contudo, Rory, marque minhas palavras. As terras de Bal-
lylee serão repartidas em quatro partes iguais por nós ou nossos
herdeiros. Sua irmã terá o mesmo que você.
— Por que em quatro? — Rory indagou, curioso.
— Você, sua irmã, eu e minha filha Aileen receberemos, cada
um, um quarto da propriedade — David explicou.
Rory ficou perplexo ao descobrir que Talbot tinha uma filha e
já ia questioná-lo a respeito quando um estrondo muito forte,
vindo da guarita de entrada de North Elmeham, os fez correr à
janela.
— Maldição, meu rapaz! Talvez a nossa barganha se dissolva
antes mesmo de começar. Pelo que vejo, o idiota de Coke tornou
a ordem do rei ao pé da letra e resolveu agir por conta própria!
Enquanto David falava, os enormes portões de ferro cediam
ao impacto de um imenso tronco de árvore manejado por mais
de uma dúzia de homens. Outros tantos, a cavalo, invadiram a
propriedade em direção da casa. A frente deles, brandindo uma
espada velha, cavalgava sir Edward Coke.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

Diante das portas de carvalho, ele gritou exigindo que elas


fossem abertas. Como não obtivesse resposta, ordenou aos
homens que as arrombassem com o tronco de árvore.
— Madame — gritou Coke —, sei que está aí e exijo, em
nome do rei, que me entregue minha filha. Aviso-a, caso resolva
negar meus direitos paternos, de que estou de posse de um
mandado real a fim de conseguir o que desejo. Ínformo-a ainda
de que, se matarmos alguém do seu lado, será homicídio
justificável, porém, se um dos nossos for morto, será assassinato.
David Talbot soltou uma praga e comentou:
— Ouvimos as palavras do maior advogado de toda a
Inglaterra e ex-procurador da Justiça. Vamos embora!
— Fazer o què? — Rory indagou enquanto contava os
homens em frente da casa.
— Ora, meu rapaz, ganhar o dia. Se você me ajudou na reali-
zação do meu sonho, o mínimo que posso fazer agora é salvar
sua heroína!
— Sir David, há mais de duas dúzias de..
— Boas perspectivas! Dois lutadores ferrenhos irlandeses
contra uns pobres-diabos ingleses. Vamos enfrentá-los, mas,
lembre-se, trate apenas de feri-los!

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXI

Elizabeth encontrava-se deitada sobre a colcha de cetim e


olhava pela abertura das cortinas pendentes do dossel sobre a
enorme cama de quatro colunas. Tinha a impressão de estar num
pequenino quarto dentro de um outro maior e isso lhe provocava
a sensação de serenidade e segurança. Porém, cada vez que
olhava para sua querida Brenna, em pé no canto de uma janela,
sabia que o sentimento era falso. A pobre menina retorcia as
mãos e mantinha o olhar fixo no pátio.
Será que o rapaz já se encontrava lá embaixo, selando os ca-
valos para a fuga de ambos? Observou a maneira com que a filha
se vestira. As roupas eram próprias para montaria, porém de
tecido grosseiro, e típicas de uma criada e não de alguém de
linhagem nobre.
"Se ela partir com esse irlandês", Elizabeth refletiu, "essa será
a maneira com que se vestirá pelo resto da vida. Será que foi para
isso que a criei? Enfrentei lutas e sacrifícios para que ela não
sofresse a mesma infelicidade que eu!" A idéia provocou-lhe um
sabor amargo na boca.
Brenna falava, mas a mãe não lhe prestava atenção e a
interrompeu:
— Você sabe que isso é insensatez! A maneira de seu pai nos
tratar não passa de leviandade da parte dele, porém o que você
está prestes a fazer significa um grande desatino.
— Não, mamãe — Brenna contradisse ressentida. — Até
agora tudo foi loucura, mas se eu ficar será uma estultice muito
maior. Já sei que para se viver é preciso amar.
Os olhos de Elizabeth encheram-se de lágrimas provocadas
pela reprovação indireta da filha. Controlou-se e insistiu:
— Você renegaria a sua pátria, o seu dinheiro, a fortuna
Hatton que durante esses anos todos eu lutei a fim de guardá-la
para seu benefício?
Brenna virou-se e Elizabeth pôde ver sua determinação.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Não desejo magoá-la, mamãe, acredite em mim, mas eu


renegaria tudo isso, sim. Esse dinheiro Hatton é uma maldição
que só lhe trouxe infelicidade. Você gostaria de me ver presa por
um casamento sem amor?
Brenna aproximou-se da cama.
Seus olhos também estavam rasos d'água, porém cheias de
firmeza e convicção.
— Por muitas noites, mamãe, eu adormeci chorando e
acordei na manhã seguinte sentindo-me mais triste do que na
véspera. O meu coração agora bate alegre por causa desse
irlandês. Talvez ele seja mesmo o malandro que você o
classificou e é possível que o destino dele traga a tristeza que
você prevê. Eu não me importo, compreenda, ele é o meu
homem e eu o desejo com todo o meu ser.
— Brenna, eu...
— Você jamais poderia saber o que é sentir aqueles braços
fortes à volta do seu corpo e ouvir a voz sonora em seu ouvido
murmurando "eu te amo" até as palavras ressoarem como um
cântico em sua mente. Cada momento em que não me encontro
ao lado dele é tempo perdido em minha vida. Eu não a culpo por
não saber como eu me sinto...
Com um gemido de dor, Elizabeth virou-se para o outro lado
para esconder dos olhos da filha a expressão magoada.
"Saber? Ah, Deus meu, pequenina, sei bem do que você está
falando. Todas as lembranças voltaram como ondas gigantescas
do mar bravio à simples menção do nome dele. Amor? Você acha
que não o conheci? Ah, minha criança, eu vivi o maior amor que
uma mulher poderia encontrar, e você é o resultado dele!"
Elizabeth se esqueceu de Brenna quando sua mente voltou no
tempo para reviver os momentos gloriosos de seu apaixonante
relacionamento com o jovem e atraente Rory O’Donnell.
Tantos anos já haviam se passado, contudo ela ainda sentia os
beijos dele em seus lábios e corpo. Conseguia revê-lo iluminado
pelos coriscos que cortavam o céu sobre o castelo de Corfe e
ouvi-lo murmurar enquanto a aconchegava entre os braços:

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

"Elizabeth, meu amor, meu único amor!"


Ele se fora logo depois de volta para sua Irlanda e suas
guerras. Elizabeth tentara expulsá-lo da lembrança da mesma
forma com que forçara Coke para fora de sua cama.
Entretanto, fora impossível. Quantas noites passara à janela
de Hatton House na esperança de ver o rosto bonito e sorridente
dele. O que teria acontecido e de quem seria a culpa? De seu tio
Robert Cecil por tê-los unido e depois separado? Ou havia
sido ela própria, Elizabeth, quem fizera a escolha final?
— Venha comigo, menina — insistia ele com freqüência —,
para ser minha rainha. Juntos, governaremos a Irlanda!
Um sonho utópico e ambos reconheciam isso. Ele precisava
voltar para a amada Irlanda impulsionado pelo anseio de lutar e
salvar a pátria. Da mesma forma, Elizabeth desejava usufruir dos
direitos outorgados pelo nascimento nobre. Pertencia à família
Cecil e se casara com um Hatton. Em sua terra, possuía fortuna,
posição e poder. Sua escolha fora conservar esses bens.
"Sim, minha pequenina, eu tive o meu amor bem parecido
com o que você pensa possuir agora. Preferi renunciar a ele." De
repente, uma grande calma invadiu Elizabeth. O coração voltava
a bater compassado e a visão, outra vez límpida, permitia-lhe
focalizar a cama, o quarto e a vida.
Sentou-se e fitou Brenna
" Eu tive o meu amor!", repetiu mentalmente.
— E você haverá de conservar o seu — murmurou.
— O quê?
— Vá, minha pequenina. Fuja com o seu irlandês. Mesmo
que precise ir até os confins da terra, continue em frente e nunca
olhe para trás — Elizabeth aconselhou com firmeza.
— Ah, meu Deus, obrigada, mamãe! — Brenna exclamou, ex-
citada, atirando-se nos braços estendidos de Elizabeth.
A despedida foi curta. Beijaram-se e a filha partiu. A porta do
quarto parou por um instante e confessou:
— Eu a amo muito, lady Hatton, e sempre a amarei, pois é a
firmeza de caráter que você me incutiu desde criança que me

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

permite agir desta maneira.


Ela desapareceu em seguida na conquista da liberdade e do
amor. Enquanto o eco de suas botas diminuía com a distância,
Elizabeth mantinha o olhar no arco da porta.
Se tudo corresse bem, Brenna logo chegaria à França. Lá ela
veria The O’Donnell. Será que reconheceria no rosto envelhecido
e marcado de cicatrizes dele alguns dos seus próprios traços e
então adivinharia a verdade?
A possibilidade era alarmante e deprimente. Quantas vezes
Elizabeth, durante suas brigas com Coke, o marido odioso, não
pensara em revelar o fato à filha apenas para se vingar de sir
Edward? Contudo, sempre se refreara, pois sabia que Brenna fi-
caria muito mais magoada do que o pai.
Elizabeth deixou a cama e foi até o espelho. Observou as
feições bem de perto e sob todos os ângulos possíveis. Se a visse
agora, O’Donnell a reconheceria? Provavelmente, sim. Lady
Hatton não demonstrava a idade que tinha, pois o passar dos
anos a havia marcado muito pouco. Não havia muita diferença
entre a senhora que se observava no espelho e a moça que se
separara do amante naquela noite chuvosa e distante no castelo
de Corfe.
— Duvida do meu amor, Rory O’Donnell? — gritara ela para
se fazer ouvir através do vento.
— Nem um pouco, e espero que você acredite no meu
porque além do nosso amor existe pouca compreensão entre nós.
Talvez a nossa grande paixão nos tenha mimado demais.
Ele havia, então, esporeado a montaria e partido. Na guarita
virara-se pela última vez. Ao vê-lo envolto por nesgas de neblina,
o corpo esguio e ereto na sela, as feições bem-feitas escondidas
pela escuridão e os cabelos negros esvoaçando com o vento,
Elizabeth fora atingida pela crueldade da separação.
Como ele a encararia agora? Lembrar-se-ia do antigo amor ou
o teria expulsado da mente? Seria possível transpor a distância
que os separava?
"Que bobagem!", pensou ela. "Como posso alimentar tamanha

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

infantilidade?" Na última vez em que o vira, nos jardins de


Holdenby, quando Brenna era pequena, eleja exibia os sinais de
envelhecimento precoce provocados pelas lutas constantes da
rebelião irlandesa contra o domínio inglês. Naquela ocasião,
Elizabeth se recusara a encontrá-lo e o observara apenas de
longe. Como estaria ele agora?
De repente, ela se conscientizou de que isso não tinha impor-
tância. Mesmo que estivesse alquebrado e envelhecido, ele conti-
nuava sendo Rory The O’Donnell, o amor de sua vida.
Elizabeth abriu o armário e começou a selecionar algumas
roupas quando um grito vindo do interior da casa e deixou
gelada. Outros o seguiram além do ruído de pancadas de madeira
que vinham de fora e que a atraíram até a janela.
— Maldito! — exclamou ao ver o espetáculo que se
desenrolava lá embaixo. — Em que tipo de idiota o senhor se
transformou, sir Edward Coke?
Impaciente com a resistência das portas de carvalho, Coke
conduziu seus homens até a parte lateral da casa, onde
encontrou uma janela aberta que lhe possibilitava a invasão.
Rory e David haviam entrado pela ala dos criados e pararam
apenas o tempo suficiente para Talbot advertir os irlandeses a
não se imiscuírem na confusão.

No momento, eles se encontravam abaixados no corredor que


ligava o grande vestíbulo ao resto da casa e observavam a entrada
de Coke e seus homens pela janela.
— Vá procurar a menina, O’Hara — sir David sussurrou. —
Cavalgue pela estrada de Yarmouth até Boar's Head. É lá que os
encontrarei.
— Não posso deixar um amigo numa situação difícil.
— Do que está falando? Não há um único espadachim
capacitado a me enfrentar, e o primeiro que sacar da pistola, eu o
derrubarei. Assim que o primeiro cair, ninguém lhe seguirá o
exemplo. Vá embora.
— David insistiu.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

Com certa relutância, Rory adiantou-se pelo corredor.


Sir David esperou até que o último homem tivesse entrado.
Então, com movimentos discretos, ele também passou para a sala
e fechou a porta atrás de si. Depois, retirou a chave da fechadura
e enterrou-a num vaso de planta. Em seguida, desembainhou a
espada.
— Uma maneira muito imprópria de um cavalheiro entrar
numa casa, sir Edward. É verdade que o senhor nunca foi
classificado como tal.
Coke, que se encontrava de costas enfileirando os homens, vi-
rou-se ao ouvir a voz ameaçadora.
David deu um passo à frente, o que incentivou um dos
rapazes a levar a mão ao cabo da pistola. Sir David girou a adaga
que empunhava além da espada até a lâmina apanhar um raio de
luz e brilhar ameaçadora.
— Gesto estúpido, rapaz, pois, antes que você atire, eu farei
de sua mulher uma viúva.
O homem empalideceu e recuou vários passos.
— Fique de lado, Talbot, e não se intrometa — Coke ordenou
aos gritos. — Estou aqui a serviço do rei.
— Não posso atendê-lo, sir Edward, já que me vejo na
obrigação de proteger esta casa em lugar da proprietária, lady
Hatton. Só me verei livre dessa incumbência quando devolver a
chave a ela.
— Para o inferno, homem! — Coke rugiu. — Se o que deseja
é uma briga, já arranjou uma!
— Pois então, sir Edward, en garde. Cuidado para não se
cortar com essa espada durante a luta!
As portas da frente foram finalmente arrombadas assim que
Rory passou por elas. Ele já havia procurado por Brenna em cada
cômodo do andar térreo e agora ia em direção às escadas dos
criados a fim de dar uma busca pelos quartos.
Encontrou várias portas abertas, mas não havia sinal de viva
alma. Já ia arriscar e chamar o nome de Brenna quando a voz
dela chegou-lhe aos ouvidos, vinda do jardim. Rory correu até a

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

janela de um dos quartos e a escancarou.


Lá embaixo, viu um homem bem mais alto do que ele e cujos
ombros e peito eram tão largos e fortes quanto os seus. Com uma
das mãos, ele segurava as rédeas de um cavalo e, com a outra,
Brenna. Rory podia ouvir seus protestos enquanto ela tentava
atingir o rosto do homem com as unhas. Tinha-se a impressão de
que o indivíduo se esforçava por convencê-la a montar ao mesmo
tempo que a forçava a fazê-lo.
Como o homem se encontrava de costas para a casa e sob a
janela por onde Rory o observava, este, sem pensar duas vezes,
subiu no parapeito, calculou a distância e pulou sobre o outro.
Ambos rolaram pelo chão, mas logo se levantaram.
Rory procurou a pistola no cinto, porém não a achou. Com
certeza a perdera ao pular da janela, Como um urso ferido, o
adversário atacou e Rory se desviou ao mesmo tempo que
desembainhava a espada e a adaga.
— Gostaria de não matá-lo, amigo.
As palavras mal acabavam de ser ditas quando o homem
atacou de novo. Rory levantou a adaga com a mão esquerda,
todavia não conseguiu dar um golpe, pois seu punho foi agarrado
por dedos fortes como o aço. A lâmina caiu no chão e ele se viu
solto apenas para receber um forte murro no queixo. Cambaleou
para trás e, antes de se recuperar, o florete também lhe era
tomado.
— Agora, rapaz — o estranho avisou enquanto partia a
espada como se fosse um galho seco —, vamos lutar como
homens e com as mãos.
Rory se esquivou da movimentação dos braços do adversário
e acertou-lhe um forte murro na boca do estômago. Depois, com
socos contínuos, subiu pelo peito até alcançar o rosto.
A ferocidade do ataque de Rory forçou o outro a recuar até
que uma árvore o impediu de continuar. Foi então que recebeu o
golpe forte no queixo que o fez cair de joelhos.
Rory mal podia crer no que via. O homem deveria ter ficado
inconsciente depois de apanhar tanto, contudo sacudia a cabeça

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

e sorria.
— Por Deus, rapaz, você luta bem — declarou ele.
— O mesmo digo eu de você — Rory replicou. — Conte uma
coisa, por que rouba moças?
— Chame isso de dever de um filho ou a necessidade de se
garantir o sustento. Quem é você?
— Sou Rory, The O’Hara.
— Um irlandês desgraçado! Não é à toa que luta bem! — re-
conheceu ele, rindo divertido.
— E você quem é?
— Meu nome é Clement, e o apelido, Coke, o lutador. Mas
vamos continuar — Disse ele ao levantar-se.
— Não, Clement!
Os dois homens se viraram ao ouvirem a voz de Brenna. Ela
se encontrava bem perto, com os pés separados e os braços ergui-
dos. Em suas mãos brilhava a pistola que Rory derrubara ao pular
da janela.
— Ande em direção da casa, Clement, ou, eu juro, irmão ou
não, meto-lhe uma bala na cabeça.
Clement ficou perplexo.
— Por Deus, menina, creio que esteja brincando!
— Estou com pressa e não posso perder tempo. Vá andando
de costas, Clement.
A contragosto, ele obedeceu. Assim que se afastou um pouco,
Rory se aproximou de Brenna e segurou a pistola, que continuou
apontando para o outro.
— Sinto muito, Coke. E uma pena que tenha nascido na In-
glaterra, pois luta como um homem.
— Quem sabe numa outra oportunidade, irlandês.
— Será um prazer! — Rory gritou por sobre o ombro
enquanto ele e Brenna corriam pelo jardim em direção ao
estábulo a fim de pegarem os cavalos e fugirem.
Assim que atravessaram uma passagem na cerca viva, Rory a
fez parar e fitá-lo.
— Nem tudo está perdido aqui para você, Brenna. A França

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

poderá não nos receber e o dia de amanhã, em vez de bênção,


será uma maldição. Está certa de querer ir comigo?
— Completamente, e, para mim, tanto faz a França como a
Irlanda.
— Que bom se você fosse irlandesa porque, assim, seria igual
a mim, sem nada a perder e tudo a ganhar. Mas você nasceu
inglesa, o que é uma pena, pois possui o brilho do fogo irlandês
nos olhos.
— Então, eu me farei irlandesa. Ao ouvir isso, Rory riu.
— Um irlandês nasce e não se faz. Enfim, a escolha foi sua.
Lembre-se disso.
— Não me esquecerei, O’Hara. Prefiro ser uma camponesa
pobre, moendo o seu trigo, do que uma dama na companhia de
um almofadinha da corte.
— Minha mãe deve ter dito essas mesmas palavras ao se
casar com meu pai. Vamos embora, não podemos continuar aqui.
De mãos dadas e correndo, eles contornaram o estábulo e
prosseguiram até chegar ao campo, atrás dele, onde Rory e David
tinham deixado os cavalos amarrados e prontos para a fuga.
— Os animais sumiram! — Rory exclamou, assustado.
— Não, meu rapaz, estão aqui — a voz de Talbot avisou
vinda das sombras de um carvalho frondoso e de onde ele surgiu
com três montarias. — Por que demoraram tanto?
Rory já ia responder quando um quarto cavaleiro apareceu de
trás da mesma árvore.
— Mamãe! — Brenna murmurou, atônita. — O que...
— Monte depressa, minha menina. Temos uma longa
cavalgada à nossa espera. Já enviei Christopher na frente para
avisar os pais, Honor e Charles, de que precisamos de
acomodações por uma noite e esconderijos seguros em nossa
viagem.
— Quer dizer..
— Sim, minha pequenina, eu vou com você.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXII

Lady Compton se considerava uma mulher muito esperta e de


grande destreza. Com habilidade, ela havia gerido a herança de
três maridos, conseguido posição de poder para um dos filhos e
casado os outros com moças ricas. O único entrave para seu
sucesso absoluto na vida era a atitude recalcitrante que seu
sobrinho, Raymond Hubbard, vinha mantendo. Mesmo com a
ameaça de enforcamento na Torre de Londres, ele se mantinha
irredutível.
— Sinto-me enojado com esse negócio sórdido, minha tia. E
a razão para isso é o amor e a admiração que dedico a Brenna.
Desejo apenas que ela retribua o meu afeto e que possamos viver
em paz. Gostaria de escapar do domínio da senhora e de milorde
Buckingham, pois acredito que ele acabará provocando a minha
insanidade mental — declarara ele com firmeza.
Lady Compton concordara com esse último ponto. Em sua
opinião, o sobrinho não revelava equilíbrio algum ao não
reconhecer as vantagens que ela lhe apresentava.
— Meu caro rapaz, vivemos numa época de pilhagem e
ganância. Trata-se de um vício perfeitamente normal até entre os
homens da Igreja. Por isso, eu lhe imploro que não despreze essa
oportunidade de construir a própria fortuna. Só Deus sabe se não
vai precisar dela no futuro.
Todavia sir Raymond continuava inflexível, o que obrigava a

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

tia a executar uma nova série de manobras, tomando grande


parte de seu tempo.
Ela se sentiu muito constrangida quando recebeu uma carta
de Francês Carr, condessa de Somerset, pedindo-lhe que fosse
vê-la. Lady Compton não dispunha de tempo para ouvir as
súplicas de uma assassina e assim ignorou a primeira missiva
vinda de Cheswick House, onde Francês se encontrava em prisão
domiciliar.
Nessa mesma ocasião, o idiota de Coke tinha posto tudo a
perder ao invadir North Ellmeham e provocar a esposa. Brenna, a
presa preciosa de cabelos negros, havia fugido para a França e
todas as súplicas à corte francesa para extraditá-la se mostravam
inúteis. Na verdade, o rei Luís XIII se divertia com o embaraço
causado pela fuga ao duque de Buckingham.
Quando chegou a segunda carta de Francês Carr, lady
Compton dispensou-lhe mais atenção.
"Mui prezada lady Compton,
Esperei ansiosa por uma resposta sua, e, como não a tenha
recebido, atrevo-me a escrever-lhe pela segunda vez. Sei que o
seu tempo é muito valioso e escasso e por isso não deve ter
podido me procurar. Peço-lhe, porém, que leia esta minha carta
com mais cuidado.
Embora banida da corte e segredada nesta casa miserável, en-
contro-me a par dos acontecimentos do mundo lá fora. Se a
minha interpretação dos fatos é correta, acredito que a senhora
se sinta frustrada por não ter conseguido o enlace Coke-
Hubbard.
Penso possuir os meios para corrigir a situação embaraçosa
em que a senhora e aqueles ao seu redor se encontram. Se
desejar tomar conhecimento de fatos que poderão se transformar
numa espada sobre a cabeça da rebelde lady Hatton, insisto para
que me venha ver o mais depressa possível. Sua serva, Francês
Carr.
Lady Compton não ignorava que a natureza mesquinha de
Francês Carr não se intimidava em fazer qualquer coisa a fim de

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

conseguir o que desejava. Por isso, aceitou o convite e numa


noite escura, sem lua, acompanhada apenas pelo cocheiro e um
lacaio, foi a Cheswick House.
A própria Francês a recebeu num portãozinho lateral do
jardim e a conduziu até a casa. A pedido de lady Compton, ela
havia dispensado os criados que a serviam em sua ala, fato
responsável pelo silêncio reinante. Numa pequena saleta mal
iluminada, as duas mulheres, uma no alto do poder e a outra em
completa desgraça, se aquilataram enquanto saboreavam um
copo de vinho.
Lady Compton examinou minuciosamente o estado da
condessa de Somerset. Ela havia envelhecido bastante desde o
julgamento. Tanto os olhos como a boca estavam rodeados por
pequenas mas profundas rugas, o vestido se encontrava
amarrotado e os cabelos davam a impressão de há muito não
verem pente ou escova.
— Sua aparência é muito boa, Francês.
— Seus comentários falsos não me ofendem porque já me
acostumei a esse tipo de coisa. Os criados todos os dias, também
me elogiam, o que não é de admirar já que eles não passam de
espiões a serviço do seu filho, lady Compton.
— Mencionarei esse fato ao duque de Buckingham.
Considero uma despesa inútil pagar alguém para espioná-la.
— Eu lhe agradeceria por isso — Francês replicou, nervosa,
rodando um rolo de pergaminho que tinha entre as mãos. —
Também gostaria de gozar um pouco de liberdade.
— Receio que isso seja impossível. O rei...
— O rei não passa de um fraco maldito. O seu filho é quem
me mantém presa e eu quero que a senhora interceda por mim
junto a ele. Desejo apenas permissão para deixar este buraco hor-
rível uma vez por semana.
— Está pedindo um favor grande demais — lady Campton
protestou sem tirar os olhos do rolo de pergaminho, onde
esperava, estava a solução de seu problema humilhante.
— Favor que se encontra ao seu alcance, milady. Seu filho

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

não tem nada a temer de meu marido. Robert Carr é um homem


acabado, uma sombra do que foi. Eu nâo tenho mais nada a ver
com ele. Vivemos separados cada um do seu lado da prisão. O
favor que estou pedindo não se estenderá a ele.
— Talvez eu consiga alguma coisa a seu favor, Francês. Mas
por que deveria fazer isso?
— Porque o noivado de seu sobrinho com a filha de lady
Hatton se transformou numa comédia escandalosa
— Francês respondeu com atrevimento e calma.
— Não vim aqui para... — lady Compton começou ao mesmo
tempo que se levantava da cadeira.
— Sente-se, milady, e relaxe. Sei que somos farinha do
mesmo saco e por isso podemos ser francas uma com a outra. A
senhora, o seu filho e a corte caíram no ridículo do povo por
darem mais valor a esse casamento frívolo do que aos negócios
da coroa, do país e do governo.
Lady Compton voltou a se sentar.
— Espero, milady, que encontre aqui a solução do seu
problema — Francês disse ao passar-lhe o rolo de pergaminho.
A visitante abriu-o depressa e, ao ler seu conteúdo, não pôde
esconder o brilho de alegria do olhar.
— Você juraria perante o conselho do rei que isto aqui é
verdade?
— Juraria, sim.
— E tudo o que pede em troco é liberdade só para você uma
vez por semana?
— Exatamente. Aceito a sua palavra.
— Você a tem. Agora assine o documento. Francês obedeceu
e lady Compton partiu em seguida.
De volta a Londres, na carruagem, ela já preparava seu plano
de ação que entre outras coisas incluía a França.
Assim que o sobrinho se casasse com Brenna Coke, ela
passaria a dirigir o dote imenso da moça. E, com o domínio que
agora possuía sobre lady Hatton, tinha certeza de poder usufruir
também da fortuna Hatton controlada por Coke e a esposa.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

Pretendia ainda encontrar uma maneira de punir sir Raymond


por sua audácia de se interpor em seus planos e nos do filho, o
duque de Buckingham.
Foi uma viagem agitada, feita durante a noite e por estradas
pouco freqüentadas e tortuosas. Um pouco antes do amanhecer,
chegaram à pequenina fazenda de Honor e Charles, antigos em-
pregados de Elizabeth. O casal devia todos os seus bens à gene-
rosidade de lady Hatton e foi sem hesitação que concordou em
esconder os quatro viajantes durante o dia.
Só quando desmontaram que o ferimento de David Talbot foi
descoberto pelos outros. Uma bala perdida o havia atingido no
cotovelo direito enquanto ele fugia pela janela do grande
vestíbulo. Elizabeth e Honor conseguiram extrair o projétil, mas
o ferimento estava feio e inflamado.
Rory o aconselhou a ficar, porém David se negou.
— Não, meu rapaz, serei um homem morto se for apanhado
em solo inglês.
O’Hara reconheceu que ele tinha razão. Em qualquer lugar da
Inglaterra, Irlanda ou Escócia em que se demorassem por uns
dias, seriam apanhados pelos homens de Buckingham e, certa-
mente, não chegariam vivos a Londres.
À noite, eles continuaram a viagem a cavalo e chegaram à
costa. O barco reservado por Rory numa das suas freqüentes ca-
valgadas noturnas estava ancorado à espera.
Na manhã seguinte desembarcaram na França. Como David
não conseguisse mais montar, Rory alugou uma liteira para ele
com o dinheiro trazido por Brenna. Em seguida, partiram rumo à
abadia em Fontevrault, o fim da longa jornada.
Por causa do estado delicado de Talbot, essa última etapa
levou três dias. Durante esse tempo, Elizabeth teve a
oportunidade de verificar quão acertada havia sido a escolha da
filha, Rory O’Hara e Brenna não tiravam os olhos um do outro.
Até um cego poderia notar o grande amor que os unia e isso a
deixava feliz.
O coração de Elizabeth apressava as batidas a cada

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OS AVENTUREIROS

quilômetro percorrido, pois sentia-se mais próxima de


O’Donnell.
A uns quinze quilômetros da abadia, O’Hara esporeou o
animal e seguiu na frente para avisar a chegada dos outros. Era
preciso providenciar acomodações adequadas para sir David e
descobrir se ele próprio poderia ficar seguro lá ou teria de
prosseguir viagem à procura de um outro esconderijo.
Quando chegou, foi imediatamente à presença da irmã Anna
e alegrou-se ao encontrar sua irmã Shanna na companhia da
velha amiga da família. No entanto, a animação sentida com o
encontro inesperado desapareceu ao notar a expressão de tristeza
no rosto de ambas.
O’Donnell estava morrendo. Era apenas uma questão de
tempo o desenlace final.
— Quero vê-lo logo — Rory anunciou, avisando do ferimento
de Talbat e da chegada de lady Hatton e Brenna Coke.
— Deus do céu! — a irmã Anna exclamou num tom de voz
que Rory e Shanna há muito não ouviam.
— O que há? — ele quis saber, surpreso com a palidez da
abadessa.
— Nada, nada — replicou ela. — Vá ver seu padrinho
enquanto eu providencio quartos para todos.
O’Donnell estava magro, abatido e a tosse que há meses o
atormentava se transformara numa irritação constante. Porém a
mente continuava lúcida e o olhar demonstrava interesse pelas
notícias dadas por O’Hara. Quando ele terminou, O’Donnell
suspirou baixinho e tomou a mão do afilhado.
-— Talvez não seja mesmo o nosso destino reconquistar
nossa terra. A minha dívida para com este Talbot é muito grande.
Esperamos que com a ajuda dele e o correr do tempo, Shanna
possa levar o nome O’Hara de volta a Ballylee.
A idéia de que as palavras de Rory não traduziam mais do que
um sonho se refletiu no olhar de O’Donnell.
— E você ficará na França, afinal?
— Se o rei permitir. Caso contrário, irei para a Espanha ou

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OS AVENTUREIROS

Países Baixos, porém não gostaria.


— Pretende se casar com essa inglesa?
— Assim que puder viver em segurança aqui.
— E uma coisa curiosa, meu rapaz, o que essas moças inglesas
fazem conosco. Ela é de família nobre?
— É, sim, família Coke, e seu primeiro nome é Brenna.
Assim que os outros três chegaram à abadia, Talbot foi
imediatamente carregado da liteira para um quarto onde
pudessem lhe dispensar maiores cuidados. Enquanto isso, a irmã
Anna conseguiu afastar Elizabeth para longe dos outros e a levou
ao jardim para conversarem a sós.
— Milady, o tempo não passou para a senhora.
— Annie...
As duas mulheres se abraçaram enquanto as lágrimas corriam
pelas faces de ambas. Foi a irmã Anna quem afastou a melancolia
que as dominava ao perguntar:
— A menina sabe?
— Não, nunca lhe disse uma palavra a esse respeito.
— Elizabeth respondeu e fez uma pausa para pôr em ordem
os pensamentos. — Vim para cá por decisão minha. Talvez
estivesse errada, mas no último momento não consegui resistir.
— The O’Hara e sua filha se amam, não é?
Elizabeth se virou no banco de pedra do jardim para poder
fitar a outra mulher.
— Amam-se, sim. Foi uma grande ironia do destino que
depois destes longos anos eles se encontrassem e sentissem uma
atração mútua.
— A senhora aprova?
— A princípio fui contra, porém ao lembrar minha própria
agonia desde...
— Elizabeth parou, incapaz de referir-se ao sofrimento vivido
por tantos anos.
— Milady, O’Donnell está à beira da morte — a irmã Anna
revelou, o que fez lady Hatton erguer a cabeça e fitá-la assustada.
— Acredito que sua vinda foi desígnio de Deus. O’Donnell

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

jamais a esqueceu e fala em seu nome diariamente.


— Gostaria de vê-lo, por favor.
A irmã Anna desviou o olhar e franziu as sobrancelhas.
Com a voz apressada e frases tumultuadas, Elizabeth
descreveu sua vida desde o último encontro com O”Honnell.
Confessou tê-lo expulsado da mente e do coração e jurado nunca
mais voltar a vê-lo ou pensar nele.
Contudo, os acontecimentos das últimas semanas a haviam
transformado e feito com que ela desejasse esse encontro. Teria
de retornar à Inglaterra e enfrentar a ira do marido e da coroa.
Porém, se pudesse ver O”Honnell pelo menos uma vez, tinha
certeza de poder voltar com calma no coração e um sentimento,
embora tardio, de paz.
A irmã Anna apertou-lhe a mão com carinho e se levantou.
— Vou prepará-lo para sua visita.

Aturdida, Brenna se mantinha sentada na pequenina alcova


ao lado do quarto onde David se encontrava deitado. Com o
auxílio de duas freiras e de um empregado da abadia, tinham
conseguido colocá-lo na cama. Um médico, atendendo o
chamado, viera da vila de Chinon. Ao ver o estado do ferimento
de Uavid, seu diagnóstico fora imediato: o braço direito tinha de
ser amputado.
Ao ouvir a terrível notícia, Brenna havia corrido para fora do
quarto e agora se sentava ali, ouvindo os ruídos dos preparativos
para a cirurgia. Sentia-se agoniada como se vivesse um pesadelo.
Uma das coisas com que seu amigo David Talbot contava a fim
de sobreviver era sua grande e fantástica habilidade como espa-
dachim. A perda do braço direito significaria uma espécie de
morte para ele. Qual seria sua reação ao acordar e descobrir o
que lhe haviam feito?
— E inevitável — afirmara o médico —, caso contrário, ele
não viverá nem mais um dia.
Ao ouvir os gemidos vindos do quarto, Brenna baixou a
cabeça e passou os dedos pela testa num gesto nervoso. A mão

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OS AVENTUREIROS

firme de Shanna, a irmã de Rory, sobre seu ombro a fez ficar


ereta de novo.
— Eles ficarão mais à vontade sem nossa presença aqui.
Venha comigo.
A expressão no rosto lindo da moça e o tom de autoridade em
sua voz fizeram Brenna se levantar. Lembrou-se da firmeza com
que Shanna comandara a transferência de David da liteira para o
interior da abadia, de como controlara a situação com eficiência
e por isso não foi difícil obedecê-la.
Atravessaram longos corredores de pedra e desceram vários
lances de escadas até chegarem a um pátio rodeado de árvores e
muros altos.
— Sente-se e vamos conversar um pouco.
Desconsolada, Brenna fez, mais uma vez, o que lhe era man-
dado e percebeu, de maneira vaga, que a outra moça se sentava a
seu lado.
— Meu irmão falava em você em todas as cartas, mas nunca
disse seu nome.
— Eu me chamo Brenna Coke.
— Agora eu sei, como também sei que sua mãe é lady
Elizabeth Hatton.
Meio atordoada, Brenna sacudiu a cabeça e fixou o olhar nas
mãos sobre o colo.
— E o homem ferido? — Shanna perguntou.
— Ele é sir David Talbot, um amigo querido — respondeu ao
mesmo tempo que começava a retorcer as mãos.
— Seu amigo vai viver — disse ela com voz calma. — Agora
conte-me tudo a seu respeito que meu irmão ainda não me disse.
Brenna começou a falar devagar, porém, ao sentir a afinidade
com Shanna crescer, foi se animando e acabou narrando os acon-
tecimentos do último ano. Shanna a ouviu com atenção e
interesse ao mesmo tempo que lhe observava as feições. Muito
antes de a história terminar, ela já havia solucionado o enigma
que continuava dormente na memória do irmão.
Quando vira lady Hatton, Shanna a havia identificado como a

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

mulher do pequeno retrato no medalhão pendurado


constantemente no pescoço de O’Donnell. Agora, enquanto
Brenna falava, ela observava a linha bem-feita do queixo, o
menear elegante da cabeça e a profundidade dos olhos negros.
Shanna estava quase convencida de reconhecer também o outro
rosto do retrato no medalhão.
Só ao chegar à porta do quarto de O’Honnel, com a irmã
Anna afastada de lado para deixá-la passar, foi que Elizabeth se
deu conta de seu estado. Continuava com as roupas de montaria
que, como seus cabelos, estavam em desordem e cobertos de
poeira da estrada. Devia também estar cheirando a cavalo, mas,
pela primeira vez na vida, ela não se importava com sua
aparência.
Seu olhar nervoso cruzou com o firme e seguro da mulher de
quem ela se lembrava como Annie Carev. Eles pareciam dizer:
"Quantas vicissitudes nós enfrentamos!"
Sob o arco da porta, a irmã Anna apertou-lhe o braço num
gesto de amizade e estímulo e Elizabeth, lady Hatton, entrou no
quarto para encontrar o único homem a quem amara.
As cortinas estavam cerradas à frente das estreitas janelas da
abadia, bloqueando os últimos raios de sol. A única luz vinha das
quatro velas de um candelabro engastado no alto da parede de
pedra.
O ambiente correspondia à idéia feita por Elizabeth da cela de
um monge: austero e simples. Além da cama estreita e sem
dossel, havia um criado-mudo e uma cômoda com bacia e jarra
d'água. Apenas uma tapeçaria antiga e gasta pelo tempo decorava
uma das paredes.
— Elizabeth, será mesmo você?
Ela apertou os olhos na tentativa de enxergar melhor a
silhueta na cama, de onde vinha a voz, e apoiou a mão na parede
de pedra, pois as pernas tremiam.
— Você não passa de um vulto, chegue mais perto — pediu a
voz. — Elizabeth?
Ela criou coragem, deu o primeiro passo e depois outro, até

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OS AVENTUREIROS

alcançar os pés da cama. Não conseguiu impedir que uma excla-


mação abafada de espanto lhe escapasse dos lábios ao ver a figura
nebulosa do homem deitado adquirir forma definida. A luz
bruxuleante das velas iluminava os cabelos brancos à volta do
rosto emaciado, onde os olhos da cor de ébano se afundavam.
Porém, sob a barba bem aparada e tão alva quanto a cabeleira,
Elizabeth podia reconhecer a linha firme do queixo de
O’Donnell.
Os lábios dele se entreabriram e as recordações a envolveram
como um nevoeiro abençoado. O sorriso que a cativara na
juventude ainda possuía o poder de acelerar as batidas de seu
coração.
Lembrou-se do primeiro beijo roubado numa carruagem e
que a deixara com a respiração ofegante, da primeira vez que ele
a tomara nos braços na cabana de um pastor de ovelhas e da
sensação provocada pelo corpo jovem e forte dele apertado
contra o seu.
— Rory O’Donnell — murmurou, quase em êxtase.
— Meu Deus, menina, você não envelheceu nada — admitiu
ao estender-lhe a mão.
De repente, a imagem diante de seus olhos anuviou-se. Os
cabelos voltaram a ser negros, de um brilho acetinado, as rugas
desapareceram do rosto sorridente; o riso era de novo o som
cristalino e desafiador do mundo e a mão erguida demonstrava
força e segurança.
Ela tomou a mão estendida entre as suas e deixou que a
puxasse para a cama. Tocou-o de leve na testa com os lábios e
sentiu que ele afundava o rosto em seus cabelos soltos.
Como se o tempo não houvesse passado e O’Donnell ainda
estivesse se recuperando de graves ferimentos em seu chalé nos
jardins de Holdenby, Elizabeth o tomou entre os braços.
— Elizabeth, meu amor, meu único amor!
— Rory, meu encantador malandro da noite!
Por três dias e três noites consecutivos, David Talbot se con-
servou à beira da morte. Shanna e Brenna se revezavam ao lado

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OS AVENTUREIROS

do leito, ajudadas muitas vezes por Rory O’Hara. Na maior parte


do tempo, ele ficava inconsciente, mas quando acordava era para
entrar num delírio quase histérico.
Em duas ocasiões, entretanto, Talbot se mostrou lúcido, com
expressão enérgica e misteriosa no olhar. Em ambas as vezes, ele
exigiu a presença de O’Hara a seu lado.
Na primeira, David ditou as instruções para seu testamento,
que Rory escreveu com paciência. Ele fez a descrição exata de
todos os seus bens, informou onde se encontrava o dinheiro e o
instruiu como agir, no caso de sua morte, a fim de recebê-lo.
Depois, com a mão trêmula e ajudado por O’Hara, Talbot
assinou
o documento.
— Pelo sangue de Cristo, Talbot, você é um homem rico! —
Rory comentou rindo ao reler o papel.
— De fato — David concordou num esforço para sorrir. —
Posso lhe garantir que tudo não passa de ganhos ilícitos, mas
bem úteis.
Rory deixou o quarto certo de que o amigo não viveria mais
do que aquela noite. No entanto, de madrugada, ele acordou e de
novo quis O’Hara a seu lado.
Shanna, que até então só havia trocado umas duas palavras
com sir David, insistiu para ele repousar.
— Quem é você?
— Shanna, a irmã de O’Hara.
— Pois então, Shanna O'Hara, apresse-se em ir buscar seu
irmão. Você será amaldiçoada se não atender a última vontade
de um moribundo.
Minutos depois, Rory estava no quarto e sentava-se perto da
cama.
Não se admirou com a história narrada por sir David durante
quase uma hora. Já esperava que um homem do tipo e da
reputação de Talbot tivesse outra motivação na conquista de
Ballylee além do bem-estar do campesino irlandês e a salvação
das terras à

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OS AVENTUREIROS

volta do castelo.
— Como vê, O’Hara, prometi a mim mesmo que faria pela
filha o que não pude proporcionar à mãe, isto é, o retorno à terra
natal. Ela só falava nisso.
— Acho que não é muito justo o que me pede, Talbot. Como
posso prometer levar a menina... Aileen, não é?
— Isso mesmo.
— O problema é que não pretendo voltar para a Irlanda.
— Ah, meu rapaz, não acredito que você conheça os anseios
do seu coração, mas isso não tem importância agora. Tudo o que
peço é que tome conta da menina se eu morrer e que a leve para
a Irlanda caso, um dia, você volte para lá.
— Assim está certo. Dou-lhe minha palavra.
— Ótimo. Agora vá embora e mande sua irmã para cá. O
rosto dela parece com o de um anjo e eu prefiro morrer olhando
para ela e não para você.
Rory levantou-se e foi à procura de Shanna.
Quando ela entrou no quarto, sir David já dormia. Com
cuidado, passou uma toalha vimida no rosto e no peito dele,
examinou o curativo e só então se sentou ao lado da cama.
Shanna devia ter cochilado, porque, de repente, estremeceu
ao sentir um aperto na mão. Mesmo dormindo, Talbot havia
estendido o braço e a segurado. Sem se soltar, ela puxou a
cadeira para mais perto da cama.
Antes de se entregar de novo a um sono leve, Shanna sentiu
outra vez a pressão dos dedos dele em sua mão e a retribuiu,
tomada por uma emoção estranha.
Já ia completar uma semana que haviam chegado a
Fontevrault e a nuvem de tristeza pairada sobre a abadia parecia
mais baixa e densa. A irmã Anna e lady Hatton dispensavam
todos os cuidados possíveis a O’Donnell, enquanto Brenna e
Shanna continuavam encarregadas de Talbot. Este começava a
melhorar; o outro, entretanto, definhava com o passar das horas.
Rory O’Hara e Brenna mal se encontravam e, quando isso
acontecia, renovavam as promessas de amor e dedicação mútua.

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OS AVENTUREIROS

Ele tinha menos oportunidade ainda de conversar com a irmã,


porém, numa dessas raras ocasiões, Shanna lhe contara a
estranha mudança ocorrida na personalidade do amigo comum,
René de Gramont. Durante o período de reclusão passado em
Saint-Ger-main-en-Laye, seu temperamento fora se deteriorando
e não mostrava mais traço algum de docilidade.
Shanna se vira incapaz de manter a amizade nascida na in-
fância, pois o amor dele revelara ser uma obsessão cujo fim era a
conquista e não o romance. Palavras raivosas e discussões amea-
çadoras entre eles se tornaram freqüentes e a amedrontavam.
Pesarosa, disse ao irmão:
— Foi um alívio quando a pequenina Henrietta Maria me
deu permissão para vir à abadia.
— Pobre René — Rory comentou. — Receio que não possa
mais contar com a intercessão dele junto ao rei a meu favor.
Durante horas depois dessa conversa com o irmão, Shanna
passeou pelos jardins da abadia, inconsciente do frio que fazia e
atormentada pelos problemas com que se deparava.
Achava estranha a maneira como as pessoas mudavam. René,
que durante anos lhe dedicara amor e lealdade, vivia agora cheio
de rancor. Rory, cuja despreocupação lhe havia conquistado a
fama de vadio e perdulário, demonstrava ser agora senhor de si e
de seu destino.
Shanna não revelara ao irmão toda a verdade sobre o amigo,
com medo de uma explosão temperamental, uma característica
de Rory que não havia mudado. Se ele soubesse de tudo, mataria
René e com isso destruiria toda e qualquer oportunidade de
voltar a viver na corte francesa.
A maneira de agir de René de Gramont havia sido
inacreditável até para a própria Shanna. Cheio de ódio, ele mais
parecia um louco. Depois de beber muito numa noite, ele
invadira seus aposentos, gritara-lhe palavras ofensivas de
acusação e com as mãos fortes rasgara em tiras sua camisola.
Atraídos por seus pedidos de socorro, os guardas dele o
haviam arrastado, pelos calcanhares, para fora do quarto. Só

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OS AVENTUREIROS

então Shanna tinha percebido que René pretendia violentá-la.


No dia seguinte, ela resolvera deixar Saint-Germain-en-Laye,
decisão que se fortalecera ao cruzar com René no pátio.
— Sua vadia sem-vergonha! Você me desgraçou!
— Eu a você?! — indagara, ressentida.
Todavia não foram essas palavras e sim o olhar feroz de René
que a havia amedrontado e feito procurar Henrietta Maria. A
princesa reconhecera logo o medo sentido pela tutora e amiga e
aceitara, sem questioná-la, a história inventada por ela sobre a
doença de O’Donnell.
Ao chegar em Fontevrault, ela se deparara com mais uma
ironia do destino, pois só então ficava sabendo que, de fato, o
padrinho encontrava-se muito mal.
"Mais estranho ainda", pensou ela enquanto se dirigia ao
quarto de David Talbot para substituir Brenna, "é eu me sentir
atraída por este homem desconhecido".

CAPITULO XXIII

Já se aproximava a meia-noite quando correu a notícia de que


o padre Joseph havia sido chamado ao quarto de O’Honnell na
abadia. Rory O’Hara encontrou o sacerdote deixando o aposento
depois de ter administrado a extrema-unção e por sobre os
ombros dele viu a irmã Anna acenando-lhe para que entrasse.
A respiração de O’Donnell se mostrava difícil e ruidosa,
porém, ainda com os olhos brilhantes, ele segurou com firmeza a

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OS AVENTUREIROS

mão estendida do afilhado.


— O senhor deseja de mim mais alguma coisa além das que
eu já sei?
— Sim, meu rapaz. Passo a você a promessa que fiz a O’Neill
de levar nossos ossos de volta ao velho solo, mas só quando
nossos túmulos puderem ser cuidados por irlandeses.
Rory prometeu e afirmou que transmitiria o pedido a seus
filhos, caso Deus lhe desse algum. Depois inclinou-se e beijou a
testa do velho homem.
— Adeus, papai — murmurou ele em gaélico e, em seguida,
deixou o quarto.
Depois de alguns momentos, a irmã Anna avisou O’Donnell:
— Shanna está aí fora esperando. Você quer que eu vá chamar
lady Elizabeth?
— Não, não há necessidade de um adeus entre nós. Basta as
vezes em que já o dissemos. Mas traga a menina, Annie.
Os olhos da abadessa se arregalaram, atônitos, pois, até então,
O’Honnell se recusara a ver Brenna. Ele percebeu seu espanto e
sorriu.
— Chegou o momento de nos vermos.
— Vai revelar-lhe a verdade? — perguntou ela.
— Não, jamais, e você deveria saber disso. Quero apenas lhe
dizer algo. Vá buscá-la depressa.
Shanna passou pela irmã Anna no instante em que a porta do
quarto foi aberta e correu para a cama do padrinho, cujas mãos
cobriu de beijos e lágrimas.
O mais rápido possível, a irmã Anna foi até o quarto de
Talbot, que dormia. Tocou o braço de Brenna e disse-lhe:
— The O’Donnell gostaria de vê-la. Venha depressa.
Brenna sabia que um velho irlandês estava morrendo ali na
abadia, mas, além da curiosidade pela reação estranha de sua
mãe todas as vezes que o nome dele era mencionado, ela pouco
se preocupava com esse homem. A bem da verdade, seus
cuidados com a recuperação de David, a amizade crescente com
Shanna e os sonhos da vida futura ao lado de O’Hara

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

centralizavam todos os seus interesses.


No entanto, via-se agora ao lado de uma cama, fitando um
estranho de cabelos brancos cujos olhos eram tão negros como
os seus. Ele estudava-lhe as feições como se fosse um artista
prestes a pintar seu retrato.
— Você é uma menina linda — disse ele ao tomar-lhe uma
das mãos.
Brenna corou e olhou para Shanna, do outro lado da cama. O
rosto da amiga não demonstrava expressão alguma. Numa das
mãos, ela segurava um medalhão de ouro e com a outra apertava
a do homem, da mesma forma com que ele prendia a sua.
— Você me conhece, Brenna?
— Já ouvi falar no senhor. Sei que é Rory O’Donnell, o rebelde
irlandês.
— Isso mesmo — concordou ele com um riso fraco. — Você
ouviu, Annie? E como tal que serei lembrado, graças a Deus! Já é
algum consolo.
Um frio estranho percorreu o corpo de Brenna.
— Nós nos encontramos uma vez num jardim inglês e,
naquela ocasião, eu já podia ver a moça linda que você seria.
Brenna franziu as sobrancelhas e tentou se lembrar. Ele per-
cebeu e apertou-lhe mais a mão.
— Isso não tem importância. Você não pode se lembrar
porque foi um encontro muito rápido.
É uma pena que agora também nos vejamos por poucos
minutos.
Havia um tom de suavidade na voz de O’Donnell que a
comoveu de maneira estranha e a fez apertar-lhe a mão com
ambas as suas.
— Você será uma O’Hara — murmurou ele.
— Se Deus quiser.
— Tenho certeza de que dará uma ótima esposa. Há uma
coisa que desejo lhe dizer como se vocês dois fossem meus filhos.
Há muitos anos, quando a morte já começava a ceifar a vida de
meu pai, lá nos campos agrestes acima de Donegal, ele disse

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

essas mesmas palavras aos filhos: "Tudo no inundo que merece o


amor de um homem é uma boa mulher e a terra. Esta última é o
único bem que ele poderá deixar para os filhos. Não se esqueçam
disso, pois, sem ela, a sua descendência não terá razão para
permanecer na terra".
De repente, a mão de O’Donnell apertou a sua com muita
força e Brenna se viu envolvida pelo brilho dos olhos dele,
sentindo-se amedrontada embora uma grande emoção a
dominasse.
— A minha alma, menina, não terá paz, no céu ou no
inferno, se chegar o dia em que não restar nem mais um
O’Donnell em Erin. Não se esqueça disso, mesmo que seja a
única coisa que a faça se lembrar de mim.
— Ele está repousando.
— Quero ficar ao seu lado, por favor, Annie — Elizabeth
insistiu ao perceber sua resistência.
A irmã Anna cedeu, afastou-se um pouco e permitiu que ela
entrasse e fosse até o lado da cama, onde se sentou na cadeira
que ocupara durante horas seguidas nesses últimos dias.
— Quem está aí? — perguntou O’Donnell, cujo rosto, parecia
mais pálido ainda em contraste com o negro do manto.
— Sou eu, meu querido.
As pálpebras se entreabriram e ele a fitou.
— Já não dissemos adeus o bastante, Elizabeth?
Ela mordeu o lábio num gesto de autocontrole, pois estava
determinada a não chorar. Cheia de ternura, tomou-lhe uma das
mãos entre as suas e a acomodou no colo.
— Durante anos eu podia fechar os olhos e ver você, mas
jamais tocá-lo. Não me negue estes poucos momentos de contato
como um pequeno consolo pelo tempo perdido.
Os lábios de O’Donnell se mexeram numa tentativa de sorriso
e a cabeça fez um gesto quase imperceptível.
— Ah, minha menina, quando nos tocávamos as faíscas
voavam magníficas!
— Os trovões ressoavam e os céus rugiam — acrescentou Eli-

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OS AVENTUREIROS

zabeth. Depois, permaneceram em silêncio por um longo tempo,


entregues à lembrança dos momentos fugazes mas maravilhosos
em que haviam estado juntos. Elizabeth revivia os beijos, as
carícias das mãos fortes e cada união de seus corpos.
Assim ficaram por uma hora, calados, a mão dele nas suas. De
vez em quando, ele as apertava muito de leve e Elizabeth
retribuía a pressão. De súbito, os dedos de O’Donnell se
crisparam.
— Obrigado, Elizabeth...
— Meu querido...
— ...por ter me deixado amá-la...
Os olhos negros, cor de ébano, brilharam com intensidade e,
então, começaram a sombrear. Elizabeth curvou-se para a frente
como se aquele olhar mais uma vez, por uma fração de segundo,
a possuísse em sua escura profundidade.
A mão de O’Donnell descontraiu-se.
Ela percebeu porém negou a realidade por alguns instantes.
Depois, sem mais poder impedir as lágrimas, fechou-lhe os olhos
e beijou-lhe as pálpebras.
— Adeus, meu irlandês. Continue a sonhar comigo onde
quer que esteja.
Os dois dias que se seguiram foram agitados na abadia. Cada
pessoa se via incumbida de várias tarefas. O corpo de O’Donnell
foi preparado à maneira antiga, com os braços cruzados sobre a
espada colocada em cima dele e tudo envolto pelo manto do clã.
Foi necessário providenciar cavalos, um carroção sólido e uma
carruagem puxada por quatro animais. Também foram tomadas
providências para a viagem de lady Hatton a Paris. Lá, ela pediria
uma audiência com o rei e o cortesão favorito, de Luynes, na
esperança de conseguir a intercessão junto a Buckingham a fim
de garantir segurança em seu retorno a Londres.
Um mensageiro foi enviado a Roma para informar os muitos
exilados irlandeses de lá da morte de The O’Donnell. Eles
também seriam avisados de que, passados os dias formais de luto
pela morte do velho guerreiro, haveria um casamento, uma vez

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

que Rory decidira que ele e Brenna se casariam depois dos


funerais.
Um momento de medo abalou a todos quando um
destacamento dos mosqueteiros do rei chegou à abadia com
ordem de prisão para Rory O’Hara. Graças à intervenção do
padre Joseph e a um documento assinado pelo próprio Rory de
repúdio ao posto ocupado na época de Concini, foi-lhe possível
manter a liberdade. Todavia Rory teve de assumir o compromisso
de se apresentar na corte assim que retornasse de Roma.
Brenna ficou alvoroçada quando Shanna apareceu com
amostras de tecidos, peles e rendas.
— Por ser a noiva de The O’Hara, pretendo vesti-la como
uma princesa! — Shanna confessou, rindo.
Brenna sabia que, ao ajudá-la na escolha dos materiais e do
feitio do vestido de casamento, a nova amiga se distraía e não
pensava muito na separação provocada pela morte do padrinho.
Ambas haviam se tornado bem chegadas, o suficiente para
Shanna fazer toda sorte de perguntas sobre Sir David Talbot à
cunhada, que a informava do que sabia a respeito do amigo, pois
desconfiava do surgimento de algo especial entre os dois que
poderia se transformar em amor.
Na primeira oportunidade, ela mencionou o fato a Rory, que
se mostrou cético.
— Duvido muito, menina. Você ainda não os observou
quando estão no jardim? Creio que vão lá a fim de discutir num
lugar mais espaçoso e não para ajudar a recuperação de David.
Eles se provocam o tempo todo.
De fato havia um antagonismo aparente entre Shanna e
Talbot, contudo Brenna pressentia a existência de uma afeição
mais significativa sob a camada de irritação.
Na noite do segundo dia, O’Hara avisou Brenna.
— Partiremos amanhã bem cedo, caso você não tenha
mudado de idéia.
— Jamais faria isso — protestou ela ao beijá-lo.
— Então você será minha!

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OS AVENTUREIROS

— Preferia bem mais dormir esta noite entre os seus braços


— Brenna provocou.
— Não, minha menina. Já nos arriscamos bastante e não
quero engravidá-la antes do casamento. E a minha maneira de
quebrar a tradição irlandesa. Além de tudo, isso fará a espera
mais excitante.
Beijaram-se ao dizer boa-noite e Brenna foi procurar a mãe no
quarto dela.
Para sua admiração, encontrou-a rezando ajoelhada em frente
ao pequeno oratório do aposento. Elizabeth não era dada a
grandes expressões de religiosidade, por isso, constrangida, a
filha recuou.
— Desculpe, mamãe. Devia ter batido antes de entrar.
— Fique, pequenina. Precisamos nos despedir hoje porque a
partida, amanhã, será muito cedo e não teremos tempo para
umas últimas palavras.
O rosto de Elizabeth iluminado pela luz das velas provocou
outra surpresa em Brenna. Nunca ela havia constatado tanta cal-
ma e serenidade naqueles olhos verdes.
— O que foi, minha querida?
— Jamais a vi tão linda, mamãe!
— E por causa de sua felicidade, pequenina — Elizabeth
explicou com um leve rubor nas faces ao se levantar e envolver a
filha nos braços.
— Você não sente mais medo por mim?
— Nem um pouquinho, e quero que você também não se
preocupe comigo.
— Impossível! — Brenna exclamou.
— Bobagem! Sou uma adversária e tanto, mas creio que
todos já tenham se cansado de escândalos. Terei de continuar
lutando contra sir Edward a fim de salvaguardar nossos bens,
porém tenho certeza de que o rei James e o duque já desistiram
de seus propósitos pretensiosos. Se existe uma coisa que
Buckingham detesta é ser ridicularizado. Caso persista no seu
casamento com sir Raymond, provocará o riso dos franceses,

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

como já fez com o dos nossos conterrâneos.


— Não sei como poderei lhe agradecer por tudo que fez e re-
nunciou por mim, mamãe.
Elizabeth endireitou os ombros e ergueu o rosto na posição
altaneira e soberba de que Brenna se lembrava bem.
— E só me dar netos e netas com seu irlandês e ensiná-los a
levar uma vida independente para que eu possa me orgulhar de
ser avó deles.
— Milady?
Mãe e filha se viraram para a porta e se espantaram com a
palidez e preocupação estampadas no rosto da irmã Anna.
— O que foi, Annie? — Elizabeth quis saber.
— Há uma carruagem parada no portão. Uma senhora
inglesa deseja falar com Brenna.
— Comigo?!
— Isso mesmo, apenas com você.
Brenna se sentia mal e atordoada a ponto de temer um
desmaio, contudo, esforçou-se para ler, pela segunda vez, a
acusação da condessa de Somerset contra sua mãe.
— Isso não pode ser verdade! — exclamou finalmente ao le-
vantar os olhos do papel e focalizá-los no rosto largo e grosseiro
de lady Compton.
— Entretanto, é. Francês Carr está de posse do documento
original e se encontra disposta a testemunhar sua veracidade pe-
rante o conselho real.
Os olhos de Brenna voltaram ao papel e releram certas frases,
que lady Hatton, falsamente, constatou minha virgindade, no
palácio de Lambeth, e assim me libertou do casamento com
lorde Essex... que lady Hatton trouxe para mim algumas geléias e
vinho, enviadas pela necromante, sra. Tumer, as quais
continham o veneno com que assassinei..."
Seus olhos se anuviaram cheios de lágrimas e ela não
conseguiu prosseguir na leitura.
— Que mulher falsa e perversa! Como pode acusar minha
mãe dessa forma?

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OS AVENTUREIROS

— Porque, como todos nós, Francês é capaz de lançar mão de


qualquer recurso a fim de alcançar o que deseja. Preste atenção,
mocinha, essa é a maneira de se viver.
Ao fitar a criatura feia e de expressão severa do outro lado da
mesa, Brenna sentiu, pela primeira vez na vida, ódio profundo
por outro ser humano.
— O que quer de mim? — indagou ela.
— Que suba naquela carruagem e volte comigo para Londres
esta noite.
— Nunca!
— E também que assine este outro documento para impedir
qualquer pessoa da abadia de nos seguir.
Os dedos tremiam quando Brenna apanhou o segundo papel
e o colocou na mesa, em frente, para lê-lo.
"Dirijo esta declaração a todos que testemunharam meu
recente distúrbio mental, em cujo período fugi da Inglaterra e de
meu verdadeiro noivo. Juro, perante Deus Todo-Poderoso como
testemunha, que eu, Brenna Coke, filha mais nova de sir Edward
Coke, ex-procurador geral da Justiça da Inglaterra, concordo
plenamente em me casar com sir Raymond Hubbard. Será a ele
somente que prometerei fidelidade até que a morte nos separe.
Se eu quebrar este juramento, peço a Deus que entregue meu
corpo e minha alma ao fogo do inferno na vida futura. Enquanto
neste mundo, suplico humildemente ao nosso Criador que faça a
terra se abrir e me tragar caso eu não reconheça, com
honestidade, que o meu único e verdadeiro amor nesta vida é e
sempre será por sir Raymond Hubbard."
Ao ler essa frase, o rosto bonito e sorridente de Rory pareceu
dançar na frente de seus olhos. Fez um esforço e terminou a
leitura.
"Declaro que escrevi estas palavras de próprio punho e
consciente de meu comportamento anterior. Renuncio e rejeito
tudo o que se passou antes da assinatura desta declaração e que
possa me afastar a quem por direito pertenço, meu noivo, sir
Raymond Hubbard."

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

— A senhora tem a pretensão de me forçar a assinar isto


aqui? — Brenna indagou, atônita e incrédula.
— Tenho — lady Compton replicou com um sorriso
maldoso.
— Se não o fizer, mocinha, lady Hatton perderá tudo o que
possui, menos o título inútil, e apodrecerá pelo resto da vida na
prisão de Fleet. Marque minhas palavras!
Brenna gemeu aflita e se levantou. Cambaleando, foi até a
janela, que escancarou, porém o ar frio da noite não atenuou a
febre nervosa que lhe abrasava as faces.
"A felicidade acenou tão de perto", pensou, "e fugiu com tanta
pressa!" Lembrou-se de que há poucos minutos tinha dito à mãe
não saber como agradecer-lhe por tudo que havia feito e
renunciado por ela. Teria sido sincera? Seria capaz de permitir
que a mãe terminasse os dias numa cela imunda de prisão? E essa
mulher odiosa, às suas costas, possuiria mesmo o poder para
cumprir a ameaça? Brenna sabia que sim.

Por mais de uma hora, ela se manteve imóvel e em pé à


janela. Km sua mente, dançavam as imagens de O’Hara, seu
grande amor, de Shanna e até do velho guerreiro, O’Donnell,
cujo olhar penetrante, vindo do leito de morte, a dominara.
Com o passar dos minutos, um outro rosto se impôs em seu
pensamento, o de sir Raymond Hubbard, e lembrou-se de sua
promessa. Se o rei James, Buckingham, lady Compton e sir
Edward conseguissem forçá-los a se casar, ele jurava não
consumar a união e justificaria a falta de um herdeiro com uma
suposta impotência.
O olhar de Brenna vagou pela pequena vila de Chinon e
depois se fixou em outras janelas iluminadas da abadia.
"Não será para sempre, Rory, meu amor. Você estará sempre
no meu pensamento e coração até o dia em que eu possa sentir,
de novo, o calor de seu peito sobre os meus seios e os seus braços
à volta de meu corpo."

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OS AVENTUREIROS

Ergueu a cabeça e se virou para enfrentar a mãe do duque de


Buckingham.
— Eu assinarei, mas imponho uma outra condição além da
liberdade de minha mãe — disse ela a lady Compton.
— Você não está em situação de pedir coisa alguma.
— Será que não?
A intrusa a observou com atenção. Os olhos estavam secos e a
expressão deles mostrava determinação. Percebeu que se forçasse
mais um pouco poria tudo a perder.
— Do que se trata?
— Tem a ver com um lugar na Irlanda chamado Ballylee e o
direito hereditário sobre ele de um tal Rory O’Hara...

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXIV

INGLATERRA

Se antes do casamento a vida de Brenna se encontrava sob o


domínio do pai e da mãe, agora estava nas mãos de Buckingham
e de lady Compton.
Desde o dia da cerimônia no palácio de Hampton Court, onde
o rei, a rainha e toda a corte se encontravam presentes, Brenna
sabia que seus sonhos e esperanças estavam perdidos para
sempre. Seu único consolo era o fato de Rory, seu amor, e David
Talbot, o amigo querido, terem alcançado o objetivo deles.
Pensava em ambos ao subir os degraus da Capela do Rei e
nem o brilho dos raios de sol refletidos nos vitrais coloridos con-
seguia amainar sua grande tristeza.
Durante a cerimônia, Brenna se manteve alheia a tudo como
se não entendesse as palavras ditas ou os votos trocados. Só
quando o anel deslizou em seu dedo, deu-se conta da realidade.
Os olhos se encheram de lágrimas ao contemplar a pequena jóia
cujo desenho consistia em duas mãos que seguravam um
brilhante em forma de coração.
Mais tarde, completamente desinteressada, enfrentou o ritual
de elogios e agradecimentos pelos muitos e magníficos presentes
de casamento. Entre eles havia um florete com o cabo incrustado
de pedras preciosas para sir Raymond, sapatilhas e luvas finíssi-
mas bordadas em ouro e prata para si mesma e castiçais de prata
que ela mal conseguia levantar.
Sir Edward Coke, fiel ao temperamento econômico, dera à
filha apenas uma bacia e jarra de prata com filigranas douradas,
enquanto todos esperavam uma jóia cara e vistosa.
Pelo rei ter dado todo o apoio a esse casamento e o noivo ser
primo do cortesão favorito, não pouparam esforços ou dinheiro
para o brilho do banquete servido ao ar livre, após a cerimônia
sob as copas de faias frondosas, atrás do palácio Hampton Court.

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OS AVENTUREIROS

Brenna se sentou entre sir Raymond, que não conseguia esconder


o ar de confusão, e de Charles, o príncipe de Gales que lhe disse:
— Você agiu muito bem ao obedecer os mais velhos. Eles
sabem o que é melhor para nós.
— Quer dizer que, quando chegar a sua vez de se casar,
Vossa Alteza abrirá mão do direito de escolher a noiva?
— Naturalmente, a menos que eu já tenha sido coroado.
Então farei a escolha, pois como Deus, um rei não erra.
"Que os céus nos ajudem! Parece que o filho preservará as
pretensões de James quando este morrer. E, pelo jeito, isso não
vai demorar", Brenna ponderou ao observar o monarca
combalido que ia de mesa em mesa carregado numa pequena
liteira. Até uma criança perceberia que a vida desregrada de
James começava a cobrar um preço alto. Mas, mesmo velho e
doente, ele continuava a ingerir quantidades prodigiosas de
vinho. Tudo o que Brenna ouvira falar, à boca pequena, sobre
Sua Majestade Real, James Stuart, rei de Inglaterra, Escócia,
Irlanda e Gales, era verdade. Ele sorvia copo atrás de copo e
quando ficava sem bebida, gritava irritado.
James costumava referir-se a si próprio como o "Salomão Bri-
tânico", porém Brenna achava que ele se identificava mais com o
encarregado de uma taverna barata de Cheapside. Os olhos sal-
tados se reviravam enquanto ele bebia e parte do vinho
entornava pela roupa, manchando-a. De vez em quando, ele
cochilava, mas, se acordado, chamava pelo favorito.
— Steenie? Onde está o meu querido Steenie?
— Aqui, Majestade.
— Venha dar um beijo a seu pai e à esposa dele.
"E este o governante a quem devo obedecer e ser leal?"
— Brenna indagou a si mesma.
Sem saber de que maneira, ela conseguiu forças pai*a
agüentar o pesadelo, especialmente os beijos do rei e os
cumprimentos de Buckingham e dos irmãos dele. Ao terminar a
representação teatral de amadores que se seguira ao banquete,
Brenna atirou a meia enrolada na liga para apressar o casamento

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OS AVENTUREIROS

da moça que a apanhasse.


Pouco depois, ela e sir Raymond eram acompanhados aos
aposentos designados para a noite nupcial.
Brenna manteve a imobilidade de uma estátua enquanto as
aias a preparavam para a cama. Depois de a fazerem deitar, apa-
garam as velas, exceto duas, e se retiraram.
Sir Raymond entrou silenciosamente no quarto e ela fechou
os olhos, apertando-os com força. Só percebeu que ele se deitava
a seu lado quando sentiu o imenso e fofo colchão de penas se
mexer.
Seu pensamento voou para Elmeham e a cama macia do pe-
queno vale onde corria o riacho. Podia quase sentir o corpo forte
de Rory entre suas coxas, saborear-lhe os beijos e deliciar-se com
o toque acariciante daquelas mãos.
Porém a voz de sir Raymond chegou-lhe aos ouvidos e
estilhaçou as lembranças.
— Minha querida Brenna, você é a noiva mais linda que um
homem poderia sonhar em levar para a cama. Todavia sei que
este casamento não passa de uma farsa de amor.
Brenna abriu os olhos e fitou esse homem estranho e delicado
com quem se casara. Comoveu-se com sua expressão humilde de
súplica, mas não conseguiu se mover ou falar coisa alguma.
— Você ama esse irlandês O’Hara? Ela assentiu com um
aceno de cabeça.
— Ele também a ama? Novo gesto afirmativo.
— Assim sendo, minha querida, há dois homens apaixonados
por você. Compreenda que não posso entregá-la a esse outro,
contudo não tomarei o que considero pertencer a ele por direito.
Eu prefiro obedecer à lei divina que governa o seu coração e não
respeitar a ordem de um monarca decrépito em relação ao seu
corpo. Boa noite, durma bem.
Foram precisos alguns segundos para Brenna apreender o sig-
nificado do que acabara de se passar. Seus olhos se encheram de
lágrimas provocadas pela atitude generosa e altruísta de sir Ray-
mond. Só então atrevia-se a acreditar que ele cumpriria a

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OS AVENTUREIROS

promessa feita nos jardins de Hatton House. Grata, estendeu a


mão e segurou a dele.
Desse forma, unidos apenas pelas mãos entrelaçadas sobre o
abismo que os separava, sir Raymond e lady Hubbard passaram a
noite de núpcias.
O tempo corria e fatos se desenrolavam à volta de Brenna sem
despertar-lhe o interesse.
O velho amigo do pai e aliado da mãe, Sir Fancis Bacon,
alcançou e, dois anos mais tarde, visconde de St. Allbans,
Todavia cargo se atolou de tal forma em corrupção que até uma
corte sem escrúpulos teve de admitir vinte e três acusações de
suborno contra ele e bani-lo de seu meio e do Parlamento.
A grandiosa busca do El Dorado por sir Walter Raleigh termi-
nara de maneira desastrosa. Em 1618, ele pagou com a cabeça o
preço da aventura e Buckingham livrava, enfim, a corte de James
do último herói do reinado de Elizabeth.
O verão trouxe a peste e o inverno, a fome. Guerras assolavam
a Europa e a pequena corrente de imigrantes para o Novo Mundo
começava a tomar vulto. Em 1620 apenas um navio mercante
chamado Mayflower havia transportado cento e duas almas de-
sesperadas para um lugar denominado Plymouth.
Sir Raymond foi nomeado Mestre do Guarda-Roupa da casa
do príncipe Charles, mudando-se, assim, juntamente com Brenna
para Somerset House, a residência londrina do príncipe, no lado
sul de Strand.
Uma jovem senhora deveria se sentir feliz na enorme mansão
de cômodos imponentes, pátios espaçosos e jardins bem
cuidados, e Brenna tentava sê-lo, pelo menos em consideração a
sir Raymond. Nem uma vez, ele tentara quebrar a promessa, mas
o sacrifício começava a deixar sinais no estado de espírito e no
corpo dele.
Ela também se esforçava em tomar parte na vida da corte por
isso passou a demonstrar interesse em falcoarias e
representações teatrais de amadores. Vestia-se de acordo com a
moda preferida pela rainha, embora já fosse um estilo

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OS AVENTUREIROS

ultrapassado que favorecia veludos e cetins pesados, saias


volumosas e grande quantidade de enfeites de ouro.
Buckingham ditava a opulência na corte enquanto os pobres
morriam famintos pelas ruas.
Brenna parecia ter se adaptado aos costumes da corte, porém
em seu coração ainda existiam a mágoa profunda e a semente
adormecida da rebeldia. Ansiava por se ver liberta da lascívia e
simulação que a rodeavam e livre para o amor. Não desejava a
adoração humilde de sir Raymond que jamais poderia retribuir,
mas sim a paixão louca de Rory O’Hara pela qual seu corpo
clamava em vão.
No entanto, ela não alimentava mais esperanças, como
naquela última noite em Chinon, de que seu casamento não
durasse muito e fosse anulado em pouco tempo. Estava
convencida de que não poderia escapar e fugir para a França ou
Irlanda a fim de viver com Rory O’Hara.
Seu casamento havia sido abençoado pelo próprio rei e, se
tentasse escapar dele, provocaria a desgraça de todos os seus
queridos.
Ela nem chegara a abrir as muitas cartas de Rory, com medo
de ler as palavras de amor ou os pedidos de explicação, que elas,
com certeza, continham. Por isso as escondera, ainda fechadas,
no fundo de sua caixa de jóias.
Lady Hatton se tornara mais amarga ainda depois do casa-
mento, que se negara a assistir. Durante meses, ela insistira com
a filha para lhe contar a verdade, porém Brenna não via neces-
sidade de provocar mais confusões e por isso respondera:
— Acabou, mamãe, e não há nada que algum de nós possa
fazer para mudar o que o rei James ordenou em nome de Deus.
Eu lhe imploro que não se imiscua nesse assunto e permita que
nós todos continuemos a viver em paz, aliás, no meu caso,
apenas a existir.
O ódio de lady Hatton tinha a mesma intensidade tanto
contra sir Edward quanto contra o rei. Em relação a James, ela
não podia fazer nada por isso sua ira toda se voltou em direção

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OS AVENTUREIROS

ao marido.
— Por Deus nos céus, juro que, por ter sido obrigada a ceder
neste assunto, ainda hei de sentir o prazer e a honra de derrotar
sir Edward. Ele jamais lucrará com o que fez. É uma lástima que
tudo tenha resultado numa grande mágoa para a filha a quem
tanto amo, mas com um pouco de sorte talvez isso provoque os
meios de ferir o marido que odeio profundamente — Elizabeth
declarara.
As querelas entre os pais não significavam mais nada para
Brenna já que não poderiam continuar a usá-la como instru-
mento para conseguir o que desejavam. Eles não tinham acertado
as diferenças em referência a rendas e propriedades antes do
casamento de Brenna. De acordo com a lei, lady Hatton não
podia dispor de nada sem a autorização de sir Edward. Para
garantir a subsistência, ela foi obrigada a recorrer, novamente, ao
conselho real.
Temerosos de perder a fortuna Hatton, que poderia vir a
parar nas mãos deles através de sir Raymond, Buckingham e lady
Compton insistiram numa trégua na guerra conjugai sem fim
desse casal antagônico. Até o rei sugeriu uma reconciliação. Nada
adiantou, pois mais uma vez lady Hatton preferiu o risco de se
arruinar para ter o prazer de ridicularizar o marido em público.
O resultado dessa última altercação deu muito assunto para
as más-línguas nos jardins de St. Paul. Coke havia sacrificado a
filha na esperança de satisfazer a ambição e Elizabeth atendera as
exigências de lady Compton sobre o dote de Brenna almejando
reaver a posição perdida na corte. Ambos, porém, perderam seus
esforços.
Sir Edward não recebeu de volta seu cargo de juiz do
Supremo Tribunal do rei e foi empossado como membro do
Conselho Privativo, posto sem remuneração e poder. Ele voltou
para Stoke Poges amargurado e ressentido com o rei e
Buckingham, cuja palavra era tão sólida como fumaça num dia
de vento.
Na corte, Elizabeth se negou a cair nas garras de lady

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OS AVENTUREIROS

Compton e do filho, que desejavam se apossar de partes maiores


de sua fortuna. Enclausurou-se em Hatton House para viver de
suas lembranças e escrever longas cartas à filha. Pedia-lhe que
insistisse com o marido para usar de qualquer influência que
acaso ele possuísse junto à família para interceder a seu favor
quando houvesse necessidade.
Brenna dava pouca ou nenhuma importância às cartas da
mãe. Passava os dias alheia a tudo e à noite atirava-se numa
cama vazia para sonhar com o impossível.
Por mais triste que se sentisse, sua compaixão pelo marido
aumentava. Com freqüência, apanhava-o a fitá-la com tanto de-
sespero que sentia um arrepio de medo.
— Será que algum dia você vai me amar, Brenna? Talvez não
como eu a amo, mas quem sabe o suficiente para dar significado
a essa farsa que chamamos de casamento ou a loucura que
vivemos.
— Eu o amo, Raymond, porém como o amigo querido que
você se tornou. Só Deus sabe como eu queria que fosse diferente,
mas não consigo mudar.
Quando às vezes se tocavam por acaso, a interrogação voltava
aos olhos dele.
— Só lhe peço que me dê tempo, Raymond, pois não quero
arruinar sua vida e sei que, se pudesse, você transformaria a
minha numa existência feliz.
Contudo, a expressão do olhar dele não mudava e, devagar,
foi se tornando mais desesperada. Havia momentos em que
Brenna vislumbrava traços de loucura na maneira com que o
marido a fitava. Isso a amedrontava e a enchia de repulsa, porém,
por respeito a sir Raymond não dizia nada. Era o mínimo que
podia fazer pelo homem a quem aprendera a querer bem.
Numa tentativa de esquecer a tristeza em que vivia, ele se
entregou aos deveres do cargo criado pelo primo Buckingham
em seu interesse. Todavia sir Raymond não estava capacitado
para ser, primeiro, mestre do Guarda-Roupa e, depois, o
estribeiro-mor do jovem Charles, o príncipe de Gales. O fato se

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

tornou motivo para pilhérias, o que muito o magoou.


As pessoas ao redor dele começaram a notar a maneira
estranha como agia e falava e dizia-se que ele procurava conforto
na companhia de um padre jesuíta. Chegou-se até a ser
comentada a possibilidade de sir Raymond abraçar a religião.
Ora se um ato cometido na Inglaterra protestante do rei James
podia ser classificado de loucura pura, tratava-se da conversão de
um homem à fé papista.
Apenas Brenna sabia da verdadeira razão por detrás da apa-
rente loucura do marido e se via incapacitada de fazer algo para
amenizá-la.
O duque de Buckingham e lady Compton pouco se
interessavam por esses problemas ou pelos da família Coke, já
que tinham apenas um objetivo em mente: acumular mais
riqueza e poder através da posse de cargos de prestígio pelos
membros da família.
Lady Compton conseguiu o direito de obter uma grande pro-
priedade, Poole House, em Dorset, na orla marítima, que ficava
na baía bem em frente à ilha de Purbeck e o castelo de Corfe de
lady Hatton. Ao duque coube a tarefa, aliás fácil, de pedir ao rei a
concessão de um título de nobreza para o primo, sir Raymond
Hubbard.
Naturalmente, tanto a concessão quanto o uso de Poole
House tinham de ser pagos, e lady Compton pôs à venda North
Elmeham, que fazia parte do dote de Brenna.
Quando essa notícia chegou aos ouvidos de lady Hatton, ela
ficou desesperada e escreveu várias cartas à filha e ao genro
avisando-os de que os poucos bens possuídos por eles estavam na
iminência de se perderem. Como não obtivesse resposta, fez uma
última tentativa.
"Minha querida Brenna.
Pelo menos em um ponto eu agora concordo com sir Edward:
não existe maior insensatez neste mundo do que um súdito acre-
ditar no direito divino do rei. Abomino isso com a mesma
veemência com que desaprovei o seu casamento forçado e sem

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OS AVENTUREIROS

amor. Todavia, como fui incapaz de impedi-lo e não posso lutar


contra a pretensão real, estou decidida a defender o interesse de
nós duas da melhor maneira possível.
Minha pequenina, você precisa ser protegida não só da
maldade da família Villiers mas de si mesma. Correm boatos de
que sir Raymond está ficando louco. Se isso for verdade, acredite,
você estará arruinada. Atualmente, ele é a única pessoa que se
interpõe entre nós e a ira de lady Compton por não poder se
apossar de mais dos meus bens e do seu dote do que já conseguiu
obter.
Por causa disso, acho que devo deixar o isolamento em que
me encontro para procurar a rainha. Ela é a única que parece ser
uma ilha de sensatez e integridade no mar de loucura e
dissolução em que a corte se transformou. Peço-lhe que se
esqueça de sua existência de freira e se junte a mim para ir
suplicar a intercessão da rainha em nosso favor.
Sua mãe amorosa, Elizabeth Hatton.
Brenna não deu atenção à carta. Sir Raymond se remoia, per-
dido no emaranhado dos negócios da família e incapaz de
enfrentar a personalidade dominante de seus membros. Ele
conseguia apenas pensar na mulher que era sua esposa só de
nome e que não podia possuir.
Antes de Elizabeth fazer sua súplica, a rainha Anne, tão cheia
de força de vontade e amor à vida, que suportara com paciência o
marido indiferente, adoecia e, em pouco tempo, vinha a falecer.
Morria com ela a última esperança alimentada por lady Hatton
de salvar o que restava da fortuna da filha.
Sir Raymond e Brenna receberam os títulos de visconde e
viscondessa Poole. Com isso, seu débito com lady Compton
aumentou e North Elmeham foi vendida para saldá-lo.
Antes da mudança de Londres para Poole House, Brenna fez
uma última viagem ao pequeno vale onde havia sido tão feliz
entre os braços de Rory O’Hara. Ficou ali sentada durante horas,
com o olhar perdido nas águas do riacho e alheia ao resto do
mundo. Conversou com a brisa e pediu-lhe que levasse seus pen-

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OS AVENTUREIROS

samentos através do mar da Irlanda.


Estaria ele casado e feliz? Teria filhos? E quanto a David? A
luz do amor que vira no olhar de Shanna teria conquistado o
amigo?
Brenna sentiu uma dor profunda no coração ao pensar neles.
Provavelmente, os três se encontravam felizes em Ballylee en-
quanto ela própria, que tornara essa ventura possível, estava tão
amargurada. Isso não era justo.

CAPITULO XXV

IRLANDA

O dia de Todos os Santos amanheceu com uma ' chuva


torrencial acompanhada do forte vento sudoeste. Mais tarde, o
tempo melhorou, mas o céu continuou cinzento e carregado
enquanto todos os habitantes de Ballylee se ocupavam com os
preparativos para a comemoração do feriado.
A tarde seria servida uma grande refeição acompanhada de
muita bebida e dança, com a presença de todos os arrendatários
na casa-grande para a festividade.
O dia primeiro de novembro marcava o fim do outono e o
início do inverno. As colheitas da primavera e verão já se
encontravam armazenadas, o gado e os carneiros tinham sido
trazidos das pastagens nas montanhas para campos mais
próximos da casa-grande e as vacas leiteiras estavam em currais
onde seriam alimentadas com forragem.
Todas as casas tinham lenha suficiente para enfrentar os
rigores do frio e o castelo contava ainda com um amplo
abastecimento de raízes de pinheiros antigos que perfumariam o
ar quando queimadas nas lareiras.
Para Shanna, essa era a ocasião em que se desobrigava da
tarefa de supervisionar as mulheres de Ballylee na fiação,

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OS AVENTUREIROS

tecelagem e tingimento das roupas da família. Também não


precisava se preocupar muito com a fiscalização da limpeza, do
preparo de refeição e de outros trabalhos ampliados pela reforma
do castelo interrompida agora. Grande parte já terminara, porém
ainda restavam alguns detalhes a serem feitos.
Poucos dias antes, ela exclamara:
— Juro que David Talbot jamais acabará esta restauração. Ele
vai sempre imaginar algo mais para ser feito.
— E com toda a razão — Rory replicara. — Uma vez
realizado, o sonho perde parte do encanto.
O irmão constituía a única preocupação de Shanna entre a
paz e a felicidade encontradas em Ballylee. Rory não estava feliz e
isso transpirava em seu olhar.
Desde a volta da viagem de três meses, ele passara a falar com
muita freqüência sobre a Irlanda, porém a irmã sabia que era
Brenna quem lhe ocupava os pensamentos.
— Seria melhor se você a esquecesse, meu irmão —
aconselhara um dia.
— Eu sei.
— Brenna já deve estar casada há muito tempo e, com
certeza, tem o dobro de filhos que eu.
— É bem provável.
— Mas você ainda a ama, não é?
— Amo, sim.
— Isso é loucura! Procure uma moça irlandesa com quem
possa gerar filhos. Ela se perdeu para você, Rory. Faz três anos já,
mais do que tempo de terminar o período de luto.
— Se Talbot morresse, é isso que você faria?
— Certamente! E necessário um homem para se garantir a
terra. Shanna esperava que as festividades do feriado e a leve
ameaça
de uma nova agitação no país fizessem renascer no irmão a
vontade de viver.
Por volta do meio-dia todos os arrendatários e trabalhadores
de Ballylee já se encontravam reunidos nos dois pátios entre a

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OS AVENTUREIROS

casa-grande e a muralha externa. As crianças brincavam e


corriam por entre as mesas enquanto os adultos cantavam,
conversavam e erguiam brindes com as canecas de bebida.
Contavam-se velhas histórias, discutia-se política, planejavam-se
casamentos e teciam-se comentários sobre nascimentos e
velórios ocorridos durante o ano nas famílias de parentes ou
vizinhos.
Nesse ambiente, Shanna, em estado adiantado da segunda
gravidez, se movimentava com um brilho de orgulho no olhar. O
irmão e o marido tinham conseguido um milagre. Às suas costas,
erguia-se uma das maiores casas da terra e, à sua frente, rostos
felizes refletiam seu próprio contentamento.
"Eles se sentem tão orgulhosos de fazerem parte de Ballylee
quanto eu de ser a senhora dele!",pensou emocionada.
— Hoje não é um bom dia para o parto, milady. É melhor se
sentar e deixar que as criadas façam o serviço — aconselhou
Dick, um dos pastores de ovelhas.
— Nada disso, ainda tenho um mês pela frente — Shanna
respondeu no mesmo dialeto do homem.
De fato ela era a senhora da mansão, a mulher respeitada por
todos os homens, mulheres e crianças que punham os pés nas
vastas terras à volta de Ballylee. Todavia era também a amiga
venerada e querida por todos. Ninguém ignorava que ela era a
primeira a chegar na casa de um trabalhador quando havia uma
criança doente ou a mulher enfrentava as dores de parto. Admi-
ravam ainda, sua educação esmerada, adquirida num convento,
coisa que os filhos deles não poderiam obter.
— A sua saúde, milady O’Hara! — brindou um velho com o
canecão de bebida ao vê-la passar por perto.
— Cuidado com a língua, Casey, ou o meu marido lhe
esquentará as orelhas com a mão forte que lhe resta. Sou lady
Talbot, não se esqueça disso.
— Eu sei, milady, mas a senhora continua sendo uma O’Hara
em Ballylee, bem como o seu irmão. Por todos os santos, jamais
sonhei ver isso de novo!

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OS AVENTUREIROS

— Deus o abençoe, Casey — Shanna murmurou baixinho e o


beijou na testa.
Ouviram-se mais risadas alegres e Shanna continuou a andar
entre as mesas e pessoas. Sob o arco dos portões que ligavam o
pátio a um dos jardins elevados, ela viu Aileen. Ao lado dela en-
contrava-se a pequenina Maura Talbot, que não contava ainda
dois anos de idade.
Parou um instante para observá-las. Embora as duas fossem
irmãs só por parte de pai e houvesse grande diferença de idade
entre elas, eram parecidíssimas. Aos quatorze anos, Aileen já es-
tava bem alta, tinha corpo bem-feito e esguio, pele clara e
enormes olhos azuis. Os cabelos loiros possuíam o tom dourado
do trigo maduro e eram ligeiramente ondulados. A pele e os
cabelos de Maura apresentavam uma tonalidade ainda um pouco
mais clara que os de Aileen.
— Venha cá, menininha — Shanna chamou.
No mesmo instante, a criança correu em direção à mãe, que a
salvou de um tombo ao tomá-la nos braços.
— Que grande dia! — Aileen comentou em inglês marcado
pelo sotaque francês.
— E verdade. A paz gera prosperidade e esta, alegria. Juntas
observaram as várias cenas que se desenrolavam a sua frente. As
crianças já haviam organizado vários tipos de jogos e
brincadeiras e pareciam se divertir muito.
— Você não quer jogar também? — Shanna perguntou.
— Não, isso é coisa para crianças. Shanna concordou com
um aceno de cabeça. De fato, a enteada já era quase uma adulta.
Aliás, quando a conhecera em Luçon, três anos antes, a tinha
achado mais velha do que a idade de então.
Lembrava-se de como havia sentido medo daquele primeiro
encontro. O amor entre ela e David Talbot florescera tão
depressa que não dera tempo para Aileen se acostumar com a
idéia de ter uma madrasta. Porém a simpatia mútua foi imediata
e a amizade entre elas cresceu durante a viagem. No fim do
primeiro ano de convivência em Ballylee, Shanna e Aileen mais

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OS AVENTUREIROS

pareciam ser irmãs do que madrasta e enteada.


Embora nascida e criada na França, não existia dúvida quanto
à personalidade irlandesa de Aileen. Os padres refugiados em Lu-
çon e David, seu pai, haviam lhe instigado um grande amor pela
Irlanda, o que provocara a admiração de Shanna. A menina tinha
se apegado à terra e ao povo no mesmo instante da chegada.
Apenas seu sotaque restava como lembrança da infância vivida
na França.
Pelo canto dos olhos, Shanna observou a mocinha que
começava a desabrochar para a vida. Embora não fosse sua filha,
amava-a com igual intensidade dedicada à menininha que
carregava ao colo. Aileen se vestia da mesma forma que ela, com
uma túnica longa de algodão sobre a qual usava um vestido
amarelo, sem mangas e com decote alto rematado com renda,
vestimenta típica das camponesas humildes.
No dia seguinte, para as comemorações de Finados, a que
compareceria o que restava da pequena nobreza da Irlanda, as
roupas seriam diferentes. Peças de veludo, seda e cetim já haviam
sido tiradas dos baús, arejadas e passadas.
— Espero que você tome parte ativa na reunião de amanhã
— Shanna disse com um sorriso.
— Está contando comigo para encantar algum rapaz? —
Aileen perguntou ao fitá-la, bem-humorada.
— Aí está uma boa idéia. Você já conta quase quinze anos e
não precisa esperar tanto quanto eu.
Está na hora de começar a pensar nessas coisas.
Aileen virou o rosto e deixou que o olhar vagasse pelo pátio e
se fixasse num ponto.
— Ah, eu tenho pensado muito nessas coisas ultimamente —
afirmou ela com um sorriso satisfeito que lhe deixava à mostra os
dentes alvos e perfeitos.
"Eu me tornei uma verdadeira irlandesa", pensou ela
enquanto apalpava com os dedos as folhas de hera que guardara
no bolso. "A tal ponto que passei a fazer simpatias e a usar
amuletos, como as outras moças daqui, a fim de adivinhar quem

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OS AVENTUREIROS

vai ser o meu amor e futuro marido! Com cuidado, repassou pela
memória o que a empregada tinha lhe ensinado. Mais tarde,
nessa noite, guardaria a primeira e a última colherada da farinha
de cevada de seu prato, que poria em sua meia esquerda junto
com as nove folhas de hera. Depois a prenderia com a liga direita
e a colocaria sob a cabeceira da cama. Quando já estivesse
prestes a pegar no sono, repetiria as palavras mágicas:
"Nove folhas de hera, sob minha cabeça coloco
Para sonhar com os vivos e não com um morto.
Para sonhar com o homem com quem me caso
E aos pés de minha cama, esta noite, vê-lo!"
Curiosa com a expressão do rosto de Aileen, Shanna seguiu a
direção do olhar dela pelo pátio até os degraus da entrada
principal da casa-grande. Lá, vestido com um manto de veludo
verde, com pele de castor à volta da bainha e da borda do capuz,
se encontrava seu irmão Rory, The O’Hara.
— Vamos, meu rapaz — Talbot disse enquanto passava o
braço nos ombros de Rory.
— É melhor falarmos agora antes que essa montanha de
comida seja servida, porque, então, ninguém nos ouvirá.
Rory concordou e seguiu David pelas escadas que levavam ao
passadiço à volta do pátio. Quando o alcançaram, um sacerdote e
um pastor de ovelhas se juntaram a eles.
— Dê o sinal — Talbot instruiu.
O pastor ergueu o berrante e o soprou. O som melancólico
encheu os ares produzindo a reação de silêncio desejada. Talbot
chegou até a beira do passadiço e inclinou-se sobre a parede
baixa que o protegia. Estendeu o braço e gritou:
— Arrendatários, lavradores, pastores e criados, eu lhes dou
as boas-vindas neste dia em Ballylee! Deus salve a Irlanda! —
acrescentou ao levantar a caneca de bebida.
— Deus salve a Irlanda! — ressoou o brado uníssono de qui-
nhentas pessoas.
— Deus salve Ballylee! — Talbot exclamou.
O povo respondeu com o mesmo entusiasmo anterior e David

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OS AVENTUREIROS

colocou a caneca sobre a paredinha.


Fez-se novamente silêncio. Havia uma tensão palpável no ar.
Embora David Talbot tivesse provado ser um senhor de terras
justo e um homem honesto, ele continuava sendo escocês aos
olhos daquela gente. Como tal, Talbot devia professar a religião
de seus antepassados, o presbiterianismo. Essa suspeita fazia com
que os irlandeses não confiassem nele e, por essa razão, Rory ia
falar ao povo a fim de garantir a continuação da prosperidade no
futuro sob a mão segura de David Talbot.
O silêncio se tornou mais profundo ainda quando Rory se
aproximou da pequena parede e inclinou-se sobre ela.
— Percorremos um longo caminho juntos, mas
continuaremos em frente. Sei que vocês se lembram do passado e
temem o futuro porque a paz na Irlanda é tão frágil como um
recém-nascido — começou ele.
— Sou proibido pela lei inglesa de vestir este manto verde do
clã O’Hara, mas eu o uso com orgulho e desafio. Por quê? Porque
um dia, neste mesmo lugar, vi Ballylee ser destruído. Jurei, então,
que voltaria. Entretanto, no correr dos anos, esqueci o meu
juramento e perdi a vontade de ser irlandês. Foi este homem que
vocês ainda consideram escocês, quem me devolveu a minha
nacionalidade e Ballylee. A terra é minha de novo e eu desejo
conservá-la. Rory fez uma pequena pausa e então continuou: —
Meus bons homens de Ballylee, temo que nós não possamos
fechar os olhos e imaginar que os problemas terminaram, porque
eles ainda persistem. Cavalguei pela Irlanda sentindo o cheiro da
guerra e ouvindo o rumor da rebelião. Conversei com homens
corajosos como Phelim O’Neill e Rory O’More. Eles não estão
satisfeitos e me perguntaram: "Por que devemos nos empenhar
em conseguir propriedades quando nossos direitos não são
reconhecidos por Dublin ou Whitehall? Por que construir
grandes mansões como. Ballylee se os ingleses podem tomá-las
com um simples rabisco da pena no papel?" As montanhas estão
cheias de homens que se tornaram criminosos por causa da
ganância inglesa e nossas praias encontram-se coalhadas de

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OS AVENTUREIROS

piratas irlandeses. Os que temem enfrentar o perigo vagueiam


como indigentes pelos campos. E o que dizer dos que
continuaram nas suas terras, mas que não conseguiram prosperar
como nós no nosso pequeno paraíso de Ballylee? Deveremos
abandoná-los se os problemas surgirem de novo? Não creio que
possamos fazer isso.
O povo de Ballylee o ouvia com atenção.
— A riqueza de um irlandês se resume no seu rebanho. O
pasto é seu ofício e muitos são ignorantes. Embora não possuam
armas, percebi que estão em tal estado de alerta, que seria
perigoso tentar expulsá-los das terras de seus ancestrais. Eles
lutariam com unhas e dentes a fim de defendê-las. Nunca mais
presenciaremos uma fuga como a dos condes no passado. O
irlandês de hoje prefere morrer de fome aqui do que se
banquetear em algum lugar distante, ou ter uma morte sangrenta
próxima ao sepulcro de seus pais do que ser enterrado no exílio
em uma terra desconhecida. Mais do que nunca, a cobiça dos
ladrões ingleses em Dublin ultrapassa a do rei e a do conselho na
Inglaterra. Gostaria que tivéssemos uma voz no Parlamento em
Dublin. Ela pouco poderia fazer, mas seria um começo. E eu
sugeriria que essa voz fosse a de sir David Talbot! Ouviram-se
algumas exclamações, mas, de um modo geral, todos se
mantiveram calados quando Talbot tomou o lugar de Rory para
lhes falar.
— Os ingleses costumam dizer que a preguiça é a doença
nacional da Irlanda. Qual é a resposta irlandesa para isso? —
Talbot indagou numa voz clara e forte. — Ora, não se trata de
ociosidade e sim da vontade de viver parte da existência e não de
gastá-la trabalhando sem cessar. Por que um homem deveria
empregar todo o seu tempo no labor quando nós temos batata?
Não é verdade que com esse alimento fantástico, que o inglês
Raleigh nos deu, o trabalho de um só homem pode sustentar
quarenta? Acredito que essa foi a razão pela qual o rei James lhe
cortou a cabeça. Afinal, sir Walter forneceu aos irlandeses um
meio de sobrevivência!

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OS AVENTUREIROS

Um riso entusiasmado recebeu essas palavras e Talbot com-


partilhou dele antes de continuar:
— Não é verdade também que uma vaca pode dar carne ou
leite para muitas pessoas? E um homem forte não é capaz,
quando se resolve, de erguer quatro paredes e fazer um telhado
de sapé em três dias? E claro que sim! Não, não é a preguiça a
base de nossa indolência e sim o medo de que os malditos
ingleses tomem nossos bens. O grande problema reside no fato
de os ingleses não compreenderem os irlandeses. Há ocasiões em
que um irlandês prefere comer e beber bem e outras em que ele
dá mais valor à liberdade do que a todo o ouro do inundo.
Outra vez ressoou o riso do povo. Atrás de Talbot, Rory
sorriu. Acabava de descobrir uma nova faceta e qualidade da
personalidade do amigo e cunhado. David era um orador nato.
Rory podia sentir que a tensão deixava o ambiente e que o povo
começava a simpatizar com Talbot.
Quando ele recomeçou a falar foi com voz séria e veemente.
As palavras pareciam dirigidas e cada homem, mulher e criança
no pátio.
— Agora lavramos o campo, criamos gado e carneiros, temos
filhos e os educamos na paz reinante. Mas prestem atenção. O
tumulto e a rebelião, embora pareçam mortos, continuam a
ferver em muitos corações. Os esquemas de James para Ulster se
realizam a cada dia que passa. Cidades inglesas surgem nos
lugares onde existiam castelos irlandeses. Elas são cercadas por
muralhas e se chamam Belfast, Enniskíllen, Coleraine, Omagh,
Cavan e outros tantos nomes. E através delas que a Irlanda está
sendo governada. Até aí, paciência. Contudo, o que dizer do
irlandês nessas cidades, que não pôde fugir como vocês para
Ballylee? Qual é a situação dele na sua própria terra de Ulster? E
de miséria e depressão, de trabalho escravo a troco de esmolas,
executado no lugar que uma vez lhe pertenceu. E ele não tem
esperança de dias melhores para seus filhos. Um homem pode
permanecer miserável e mal-tratado em sua própria casa apenas
por um período limitado.

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OS AVENTUREIROS

Todos ouviram, impressionados, no mais absoluto silêncio.


— Dizem que os irlandeses estão destinados a não serem
mais do que lenhadores e carregadores de água, porque seguem o
papa em vez de ao rei James. É o fato de um homem ser católico
que o transforma num servidor sem bem algum, afirmam os
ingleses. Não acreditem nisso! Estive em Londres, onde o
católico inglês é perseguido. Todavia ele concorda com o seu
patrício protestante a respeito dos irlandeses. Um homem, por
ser protestante, diz que odeia o outro que é católico e vice-versa.
Mentira! Eles se detestam porque um é inglês e o outro irlandês e
ambos querem a terra. A fé em Deus não passa de um pretexto
para um se apossar do que pertence ao outro por direitos legais.
Talbot parou e perscrutou o mar de rostos à sua frente.
Esperou até que as palavras fossem apreendidas.
— Mais uma vez eu lhes peço que prestem atenção. Se esses
desgraçados e infelizes no norte de Ulster acenderem uma
fogueira, as chamas se espalharão pela Irlanda toda, como
aconteceu no passado. Em todas as matas da Irlanda existem
covis de lobos. A medida que os ingleses destroem as florestas, os
covis vão desaparecendo. Quando os lobos não tiverem mais
abrigo, eles atacarão. Mas desta vez as coisas serão diferentes, os
ingleses ficarão de um lado e os irlandeses, unidos, de outro. A
era dos clãs já terminou.
Um silêncio sepulcral acompanhou as últimas palavras de
Talbot. Ele já ia se afastar da parede quando uma voz tímida o
manteve no mesmo lugar.
— Desculpe, sir David, e sem querer ofendê-lo, mas são as
gaitas de fole escocesas que se ouvem nos vales de Antrima a
caminho do sul. Escocesas também são as cidades que o senhor
citou, bem como os carneiros que pastam onde se erguia a rocha
dos O’Neill. Se um dia ouvirmos essas gaitas entoando o brado
de guerra nas colinas de Ballylee, a quem o senhor empenhará
fidelidade?
Talbot trocou um rápido olhar com Rory e depois sorriu para
o povo.

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OS AVENTUREIROS

— É verdade que eu não nasci nas praias de Erin. Todavia


acredito que um homem de qualquer outro lugar poderá se
considerar irlandês desde que saiba cavalgar bem, consiga se
fazer entender em gaélico, não se assuste com uma refeição
gigantesca e esteja disposto a beber e a jogar a qualquer hora do
dia ou da noite.
Mais uma vez o riso alegre ecoou pelo pátio, mas Talbot
levantou a mão num pedido de silêncio e atenção.
— Quero que olhem para minha esposa e observem o seu
corpo. Eu lhes digo e juro perante Deus que, se a criança for um
menino, eu lhe darei o nome de Patrick, porque, se nasci na
Escócia, sou irlandês de coração.
Depois de todos comerem e uma montanha de alimentos ser
consumida, as mesas foram desocupadas. Segundo a tradição,
chegava o momento do acerto de contas. Contadores e
conferentes tomaram seus lugares e logo começou a chamada de
nomes. Os trabalhadores e criados de Ballylee receberam seus
salários e os arrendatários pagaram o aluguel. Todos aceitaram os
lucros dos investimentos que Talbot fizera para eles, cada um
saldou seus débitos e, num consenso geral repartiram-se as
pastagens e os campos de lavoura para o ano seguinte.
Uísque irlandês e vinhos finos continuavam a ser servidos en-
quanto a parte de negócios terminava. De uma janela alta, o
olhar distraído de Rory percorria o pátio. Uma das mãos segurava
um copo de aguardente e os dedos da outra tamborilavam num
papel sobre a mesa ao lado.
Ele só percebeu a presença de Talbot na sala quando sentiu a
mão no ombro e ouviu-lhe a voz.
— Foi um dia excelente e uma ótima conversa com o povo. A
idéia de usar cal nos pastos para um maior rendimento está
tendo grande aceitação e...
Talbot interrompeu o que dizia ao notar a expressão ausente
de Rory.
— O que houve, meu rapaz? Ainda não escureceu, mas
parece que você já viu um fantasma.

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OS AVENTUREIROS

— Acabo de receber uma carta trazida por um viajante vindo


de Dublin. Foi Aileen que me entregou.
— Da Inglaterra?
— Não, da França, de Richelieu — Rory respondeu ao apontar
paia o papel na mesa ao lado.
Talbot apanhou-o e começou a ler.
"Meu caro O’Hara.
Muitíssimo obrigado pelo presente do belo animal. Segundo
me informaram, o cão de caça irlandês é muito valioso e
apreciado em todo o continente, e estou muito satisfeito por
possuir um. Dei-lhe o nome de Diable não só porque assusta
meus gatos mas também por não sair do meu lado como o xará
dele. Às vezes penso se todos os homens não deveriam ter um
lembrete de Satã a fim de se conservarem no bom caminho.
Suas notícias sobre a nova inquietação da Irlanda não me sur-
preenderam. Fui informado de que o povo da Inglaterra também
começa a se agitar sob a autoridade de Buckingham. Dizem que
ele não é o rei apenas no título.
A missão do duque e do príncipe de Gales na Espanha foi um
desastre total, como você deve ter ficado sabendo. Felipe não
tinha a mínima intenção de permitir o casamento da irmã, a
infanta, com Charles. Como sempre, Buckingham não deu
ouvidos aos conselhos ajuizados de um cardeal católico.
Ah, meu irlandês, o alto da escalada sobre a qual conversamos
tanto há muito tempo foi finalmente alcançado. O bispo de
Luçon é agora o cardeal Richelieu, e espero ser logo ministro da
França!
Depois da morte de Luynes, no cerco de Montauban, o nosso
bom rei Luís não foi feliz na escolha do ministro. Houve uma
sucessão deles, entre os quais o duque de La Mardine. Todos se
mostraram inaptos, gananciosos e estúpidos. Espero o chamado
do rei, em Paris, a qualquer momento e é por isso que desejo
tratar do seu pedido.
Na minha opinião, não vai ser difícil conseguir o que deseja.
Embora você tenha dado a palavra de se manter fora da In-

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

glaterra, Buckingham e o rei James não poderão se opor a sua


presença na corte inglesa, caso você vá para lá como represen-
tante da França.

Correm boatos, que acredito serem verdadeiros, de que lorde


Kensington logo virá a Paris pedir a mão da princesa Henrietta
Maria para o príncipe de Gales. Se isso acontecer, será
aconselhável termos um homem forte, até mesmo um irlandês,
como capitão da guarda da princesa para acompanhá-la ao lugar
onde se tornará princesa de Gales e, um dia, rainha da Inglaterra.
Seu fiel amigo em Deus, Armand Du Plessis, Cardeal de
Richelieu.
David Talbot sacudiu o papel com irritação e fitou Rory.
— O homem só quer usá-lo, como já tentou antes e da
mesma forma com que fez comigo por cinco anos!
— Eu sei, David, e muito bem.
— E quanto ao que você disse lá fora hoje à tarde? Eu faço
tudo que está ao meu alcance e agora já contamos com o apoio
do povo, mas é você, The O’Hara de Ballylee, que tem
importância aos olhos dele.
— Por Deus, homem, você acha que não sei disso? Porém, ao
serviço de Richelieu, eu teria a oportunidade de revê-la e de
saber as razões verdadeiras...
O resto das palavras de Rory morreram em sua garganta. Ele
colocou as mãos no parapeito da janela, curvou os ombros e a
cabeça. David ia continuar os protestos, mas, ao ver atitude de
desânimo do amigo, refreou-se. Aproximou-se dele, colocou a
mão em seu ombro e disse, enquanto olhava o povo no pátio:
— Trata-se de uma decisão muito difícil, meu irmão. Você
terá de escolher entre a paixão por uma mulher que talvez nunca
venha a possuir e o amor pela terra que descobriu.
Lá embaixo, o movimento começava a diminuir. As crianças
sonolentas encostavam-se às mães e os homens tomavam um úl-
timo gole de bebida. Foi então que se ouviu o som mavioso de
uma flauta de cana seguido logo depois pelos acordes suaves da

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

harpa, cujo instrumentista se pôs a cantar.


Era uma balada triste descrevendo a solidão que assolara Erin
após a fuga de seus filhos valentes, mas derrotados. Ela
lamentava o destino de O’Donnell, O’Neill e de muitos outros
enterrados em solo estranho e os acusava de dormirem o sono de
heróis, pois, como guerreiros, não haviam morrido empunhando
a espada.
— Parto amanhã — Rory murmurou.
— Para a França ou a Inglaterra? — Talbot indagou,
curvando a cabeça desanimado.
— Não, para as terras de O’Byrne nas montanhas de Wicklow.
Mande uns homens fazerem uma cripta na capela e prepare um
monumento.
— Para quem?
— Para The O’Hara, Shane, e a sua lady Deirdre. Parto em
busca de seus ossos, que trarei de volta a Ballylee.
Sentada em frente ao espelho, Shanna cantarolava baixinho
enquanto escovava os cabelos escuros. Vestia apenas uma
camisola de cambraia fina com viés dourado no decote e nas
cavas. Parecia absorta em seus próprios pensamentos.
Da poltrona onde estava David podia ver, através do tecido
transparente, a curva dos seios fartos. De repente, fitaram-se pelo
espelho.
— Seus olhos refletem desejo — disse Shanna.
— E que homem não o teria com essa imagem à frente dele?
— David indagou com voz suave.
Shanna sorriu e continuou a escovar os cabelos.
"Oh, como sou feliz!", pensou ela. "Tenho uma linda filha,
outra que é como uma irmã para mim e uma nova vida se
desenvolve em meu âmago. Possuo Ballylee e um marido que me
ama mais do que mereço."
Era isso que a entristecia. Tinha tanta coisa boa enquanto o
irmão contava com tão pouco. Há alguns anos, não poderia ima-
ginar que Rory fosse capaz de alimentar um amor por tão longo
tempo. Tornava-se difícil aceitar o fato de que, após três anos de

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

separação de Brenna, ele ainda não houvesse encontrado uma


outra moça que lhe despertasse algum afeto.
O olhar de Shanna caiu na caixa de jóias dentro da qual se
encontrava o medalhão usado por The O”Honnell durante anos e
que ele lhe dera um pouco antes de morrer. Deveria ela dar um
motivo para o irmão voltar a Inglaterra? Faria alguma diferença
se Brenna soubesse da verdade?
Shanna acreditava na existência de uma rebeldia inata no san-
gue irlandês, uma carência e paixão pela terra. Teria Brenna essas
características? Aileen as possuía. A menina havia nascido na
l''r:inça, mas, depois de três anos vividos em Ballylee, sua alma
irlandesa apagara o país natal da memória.
A voz de David interrompeu-lhe os pensamentos:
Eu a desejo, mas, pela sua expressão séria, parece que está
contabilizando os aluguéis.
— Não, não estou.
— Qual é então o motivo de sua preocupação?
— Aileen — respondeu ela, porém achou melhor não dizer
mais nada, pois o marido não compreenderia.
Se contasse que encontrara a filha chorando no quarto e qual
era o motivo dessas lágrimas, David diria que tudo não passava
de 11 tu amor imaginário de adolescente por um homem mais
velho. Entretanto, Shanna havia constatado a profundidade dos
sentimentos de Aileen pela maneira com que ela fitava Rory ou
falava u seu respeito.
— O que tem Aileen? — David quis saber.
— Nada, coisas de mulher.
— Ah, então passam logo — disse ele, aproximando-se.
Com sensualidade, beijou-a atrás no pescoço a acariciou-lhe
um dos seios por sobre a camisola fina.
O mamilo reagiu no mesmo instante e um arrepio de anteci-
pação percorreu o corpo de Shanna, afastando todo e qualquer
pensamento que não dissesse respeito a David, seu homem. Le-
vantou-se e aconchegou o corpo ao dele.
David a beijou com o mesmo carinho e arrebatamento

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

demonstrado na primeira vez em que o fizera. Levou-a pela mão


até a cama larga e de dossel, onde tirou-lhe a camisola.
— Como você pode me desejar quando o meu corpo está tão
disforme?
— Shanna perguntou ao deitar-se.
— Como não poderia? — David respondeu com um riso feliz
ao mesmo tempo que iniciava o ritual que sempre seguia com os
lábios, a língua e o corpo todo.
O grande amor sentido por ele e a paixão vibrante em seu
corpo dominaram Shanna nesse momento de entrega total ao
homem que nunca falhava em conduzir seu desejo à plena
realização.
Foram precisos quinze dias a Rory O’Hara e aos vinte homens
que o acompanhavam para rodearem Glendalough, nas monta-
nhas de Wicklow, e alcançarem as terras de O’Byrne. Quando
chegaram, descobriram que as autoridades de Dublin já sabiam
de seus propósitos. Mensageiros ingleses os esperavam com
ordens para não remover os corpos de Shane e Deirdre CHara de
onde se encontravam.
Depois de muito palavreado e até ameaças, os homens de
Dublin não mais insistiram e deram meia-volta, pois, afinal, o
destino dos ossos de um rebelde irlandês não deveria preocupá-
los.
Finalmente, após um trabalho intenso, o cortejo se pôs a ca-
minho. O caixão duplo estava coberto por veludo preto, os
quatro cavalos que puxavam a carruagem aberta onde se via o
brasão dos CHara tinham plumas negras na cabeça e seus arreios
eram de couro finíssimo com engastes de prata.
Nas estradas e caminhos tortuosos pelas montanhas, através
de vales e riachos de águas geladas, o povo se juntava a fim de
assistir à passagem da comitiva fúnebre, e, ajoelhados, todos se
persignavam.
A noite, o esquife era levado para o interior de uma
hospedaria, caso houvesse uma na vizinhança; se não,
colocavam-no em cima de uma mesa improvisada sob a copa do

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

carvalho mais frondoso que encontrassem. Na manhã seguinte,


não importava a região que percorriam, ele estava rodeado de
círios acesos. Surpreso, Rory se comovia com a demonstração de
respeito do povo. Muitas pessoas haviam viajado quilômetros de
distância para sua homenagem.
Mais uma vez, como durante a viagem pela Irlanda, Rory se
orgulhava ante a admiração provocada pelo nome O’Hara. No
inicio, sentiu-se um pouco confuso, mas logo constatou que as
pessoas não só reverenciavam a memória de um guerreiro morto
e mártir da causa irlandesa, como também exaltavam o amor
dele pela sua senhora. Era um afeto profundo, que os mantivera
unidos em vida e na morte.
Durante vigílias passadas à volta do fogo de uma lareira, no
salão de alguma hospedaria, muitas vezes Rory ouvira ser
recontada a história lendária de Deirdre dos Pesares. Como
quando sua mãe lhe narrara o conto, em sua infância, ao mesmo
tempo que amamentava Shanna, os olhos dele se enchiam de
lágrimas. Só agora se dava conta de que ela o preparava para a
morte dos pais.
Entre as pessoas que surgiam para ver o cortejo havia velhos
que tinham estado à volta do cadafalso do castelo de Dublin e
visto Shane O’Hara, combalido pelas torturas sofridas, subir os
degraus e cuspir no rosto do traidor McTeague O’Byrne.
Eles ainda mostravam espanto e agitação quando se
lembravam de como lady Deirdre também galgara as escadas
antes de afastar o capuz que lhe escondia as feições e apontar
uma pistola ao coração do marido.
— Por amor, Shane! — gritara ela ao disparar a arma.
Lady Deirdre poderia ter aceito a morte do marido no campo
de batalha e até mesmo na forca, contudo seu profundo amor por
ele não teria conseguido permitir a degradação da faca e do
esquartejamento após o enforcamento ineficiente. Essa não seria
a maneira honrada de um chefe irlandês morrer.
Naquele dia, ela também pudera se vingar. Com uma segunda
bala, havia matado McTeague O’Byrne, o infame que provocara a

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

captura de O’Hara.
Segundos depois, um soldado inglês punha fim em sua vida
enquanto, debruçada sobre o corpo do marido, lady Deirdre
murmurava: "Cavem juntas a nossa eterna moradia..."
Finalmente agora os pais de Rory voltavam para Ballylee, num
esquife duplo como desejara ela.
Talbot havia atendido o pedido de Rory com presteza. O
jazido na capela próxima à muralha externa do castelo já se
encontrava pronto quando o cortejo chegou.
O velório foi simples e não seguiu muito à risca a tradição
irlandesa, pois Shanna preferia assim. Não havia necessidade de
chamar carpideiras porque muitas mulheres de voz profunda e
lamuriante tinham vindo dos cantos mais afastados de Ballylee.
Os trovões ensurdeciam e os relâmpagos cegavam. Na capela,
em frente ao túmulo fechado já há um mês, via-se a silhueta forte
e um tanto ensombreada de Rory O”Hara. A chama bruxuleante
dos círios iluminava a inscrição na lápide:
"Aqui jazem The O’Hara, Shane, e sua esposa, lady Deirdre,
cujo amor profundo preferiu provocar a morte de ambos para
evitar a degradação humilhante".
Um pouco abaixo, em letras menores, lia-se o lamento de
Deirdre dos Pesares:
"O leão das montanhas foi morto
E eu me nego a chorar sozinha.
Viver sem o meu amor não resisto
Cavem juntas a nossa eterna moradia.
— Eu acho que já está na hora de deixá-los descansar em paz
— Shanna disse de onde se encontrava, fora do círculo da luz das
velas.
— Tem razão, mas não consigo — Rory confessou.
Shanna mordeu o lábio para conter as lágrimas. A tristeza do
irmão a deixara aflita. Sabia que a melancolia crescente não era
provocada pelos mortos e sim pelos vivos, pelo coração
despedaçado por alguém que vivia tão distante.
Ali em pé, observando-o como fizera tantas noites antes,

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

Shanna apertou entre as mãos um objeto brilhante ao mesmo


tempo que sentia a angustia interior de Rory, provocada pela
divisão de sentimentos. Metade dele se assemelhava a Shane, o
guerreiro e homem cumpridor dos deveres; a outra, lembrava
Deirdre, capaz de amar com profundidade.
Devagar, Shanna se aproximou até também ser iluminada
pela luz dos círios.
— Meu querido, não creio que você readquira a sua paz até
que descubra tudo.
— Não há nada para ser descoberto. A separação foi uma
espécie de morte, e eu não posso esquecê-la. Se ao menos ela
fosse irlandesa, ou o desejasse ser, quem sabe então haveria uma
solução. Muitas coisas aconteceram nestes últimos anos. David
depende de mim para manter a união de Ballylee e eu pressinto a
inquietação crescer. Talvez tenhamos guerra outra vez e, se isso
acontecer, o meu lugar é aqui.
— Certo — Shanna concordou com voz apressada. — Se
tivermos de enfrentar novas lutas, você poderá voltar, de onde
estiver, para Ballylee. Mas, enquanto gozarmos de paz, vá
embora e tente se inteirar de tudo o que houve. Caso não faça
isso, sua melancolia não terá fim e acabará matando-o.
Rory fitou a irmã e sorriu com ironia.
— Mesmo que eu descobrisse por que Brenna fugiu de mim,
se foi ou não forçada a isso, do que adiantaria? Que direito tenho
eu de lhe pedir que deixe o seu país e venha para o meu, onde a
vida é tão atribulada?
— Deus do céu, pensei que você tivesse amadurecido! Vá à
Inglaterra e verifique se ainda existe amor entre os dois. Você
acha que, se a trouxer para cá, Brenna não será capaz de agüentar
os rigores da vida irlandesa?
— Shanna indagou.
— Você e eu sabemos muito bem que os irlandeses não se
fazem, mas já nascem feitos. Até nossa mãe, por ser filha de Rose
de Ballyhara, possuía alma irlandesa.
Shanna fitou o objeto que segurava entre as mãos. "Ele não

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OS AVENTUREIROS

deverá ser usado para causar mágoas", recomendara O’Donnell.


"Nenhum dos dois deverá saber a verdade a não ser que seja para
mantê-los unidos, caso alguém tente separá-los." Num gesto
súbito, ela enrolou o medalhão na corrente e colocou tudo nas
mãos de Rory.
— Vá procurá-la. Se Brenna tiver dúvidas, isto as dissipará.
Traga para casa a sua irlandesa, Rory O’Hara!
Em seguida, Shanna deixou a capela depressa.
Intrigado, Rory revirou o medalhão e o abriu. Acostumara-se
a vê-lo pendurado à volta do pescoço de OTJonnell, mas nunca
lhe fora mostrado o conteúdo dele.
Não foi possível impedir a exclamação de surpresa que lhe es-
capou dos lábios ao ver a miniatura à luz da vela. Entendia agora
por que fora tomado pela sensação de haver conhecido lady
Hatton antes. No pequeno retrato, ela se mostrava mais jovem,
porém as feições, especialmente os olhos verdes, eram
inconfundíveis. Também não podia se enganar quanto à
lindíssima criança de cabelos negros ao lado dela.
— Deus misericordioso! — murmurou ele, atônito, ao mesmo
tempo que muitas lembranças inundavam-lhe a mente.
Correu para fora da capela à procura de Shanna, porém ela já
havia desaparecido.
Rory se encostou à parede de pedra molhada e ergueu o rosto
para o céu. Fechou os olhos à luz dos relâmpagos e os ouvidos ao
estrondo dos trovões e deixou que a chuva fria escorresse pelos
cabelos e pelas faces.
Com os olhos da memória, viu um jardim e uma menininha
de cabelos muito pretos sentada num banco. A seu lado
encontrava-se The O’Donnell. Como eram parecidos!
Mais tarde, numa carruagem, Rory se lembrava agora, tinha
visto a mesma miniatura e as palavras trocadas então voltaram à
sua mente.
"Ela é uma menina muito bonita." "É, sim. Chama-se Brenna...
Brenna Coke." Recordou-se ainda da expressão de tristeza de
lady Hatton cada vez que ela deixava o quarto de O’Donnell, em

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OS AVENTUREIROS

Fontevrault. Ele estava tão cego de amor naqueles dias que não
se dava conta do que acontecia ao redor.
Abriu os olhos e soltou o riso sonoro e vibrante. — Brenna
Coke, sim — gritou ele —, porém deveria ser O’Dormell! Rory
beijou o medalhão e passou a corrente à volta do pescoço.
Caminhou então em direção à casa-grande, de onde partiria, es-
perançoso, para a França e, depois, Inglaterra.

CAPITULO XXVI

INGLATERRA

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OS AVENTUREIROS

O choque e o desânimo que abalaram Brenna e Raymond ao


chegarem a Poole House foram imensos. Descobriram que a
velha mansão mais parecia um estábulo úmido e frio do que uma
moradia. A maior parte da casa se erguia dos restos de um antigo
castelo normando e quase todos os aposentos na ala mais velha
apresentavam um aspecto sombrio e lúgubre, pois as janelas não
passavam de aberturas estreitas por onde não entrava luz.
Os cômodos de construção mais recentes, no lado oposto,
embora claros graças às janelas amplas, eram gelados. Os
batentes em péssimas condições e rachaduras nas paredes
permitiam a penetração constante do vento vindo do mar.
Consertos estavam fora de cogitação já que não havia
dinheiro, segundo lady Compton insistia na cartas semanais que
lhes escrevia. A falta dele também não permitia que tivessem o
número de criados suficiente.
Esse ponto não perturbava Brenna. Quanto menos gente hou-
vesse na casa, maior seria o isolamento almejado por ela.
O casal resolveu enfrentar a situação da melhor maneira pos-
sível e se contentar com o pouco de que dispunha. Uma limpeza
meticulosa, de cômodo por cômodo, melhorou um pouco o
ambiente, mas mesmo assim ele não condizia com a dignidade
de um visconde e sua senhora
Se o interior de Poole House era deprimente e feio, o mesmo
não acontecia com o resto da propriedade. As matas e os campos
verdes que a rodeavam eram lindos e atraentes. Quase todos os
dias, Brenna e Raymond caminhavam pelas alamedas que
ligavam a casa ao mar. Era estimulante e agradável respirar o ar
salgado em que se misturava o perfume de flores silvestres. O
silêncio se mostrava quase absoluto, quebrado apenas pelo ruído
de seus passos ou o mugido distante do gado.
Nos primeiros meses eles sentiram o início de uma
aproximação entre ambos. Tudo o que Brenna desejava sir
Raymond se esforçava por satisfazer. A noite, sentavam-se perto
da lareira e mantinham uma conversa agradável, chegando até a
fazer brincadeiras sobre a situação estranha em que se

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OS AVENTUREIROS

encontravam ou a respeito das pessoas que a tinham provocado.


Os momentos de melancolia em que Brenna revivia o passado e
sir Raymond lamentava a frustração do presente começavam a
rarear.
— Dizem que seu pai começou a ter reumatismo enquanto se
encontrava preso na Torre de Londres — Raymond caçoou.
— Verdade? Onde? — Brenna indagou.
— Nos dedos, de tanto escrever. Isso o forçou a gritar mais
alto na Câmara dos Comuns contra o rei e o meu simpático
primo.
Eleito representante de Liskeard, em Cornwall, ao
Parlamento, sir Edward havia voltado a Londres e exagerado nas
críticas severas dos atos de Buckingham. Seus discursos
condenando a proposta de casamento do príncipe de Gales com a
infanta de Espanha e os gastos desordenados do rei e do cortesão
favorito passaram a ser citados pelo país inteiro. O resultado foi
seu encarceramento na Torre.
Preso numa cela úmida, escura e mal iluminada, Coke se de-
dicou a escrever cartas aos filhos com pedidos de ajuda. Brenna,
por ser viscondessa Poole, gozava de um pouco mais de destaque
social do que seus irmãos e por isso recebeu mais mensagens.
Embora sua infelicidade presente tivesse sido causada pela ga-
nância do pai, ela não lhe queria mal e insistiu com sir Raymond
para interceder junto ao primo em favor de sir Edward. O marido
a atendeu e Coke foi solto.
Contudo, ao voltar à vida pública, ele continuou seus ataques
veementes, chegando a sugerir o julgamento de Buckingham pela
Câmara dos Pares por alta traição ao país.
O resultado disso foi o crescimento do antagonismo entre as
duas famílias, o que se refletia de maneira negativa na vida de
Brenna e sir Raymond. Outro ponto desfavorável eram as exigên-
cias constantes de lady Compton para que lady Hatton
aumentasse o estipêndio anual a fim de sustentar Poole House.
A situação piorou quando Elizabeth declarou a toda Londres
preferir dar até seu último vintém aos pobres a permitir que sua

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OS AVENTUREIROS

fortuna passasse para os cofres da família Villiers.


Foi então que começaram a correr boatos sobre seu
comportamento adúltero. O nome de Elizabeth aparecia ligado a
um número sem fim de homens, desde lordes bonitões e
elegantes até seu cocheiro. Por continuar sendo uma mulher
linda e cheia de viva-cidade, mesmo aos cinqüenta anos, umas
poucas pessoas acreditavam no que diziam as más-línguas,
porém a maioria sabia que tudo não passava de invencionice de
lady Compton, a adversária implacável.
Quase semanalmente, lady Compton chamava sir Raymond a
Londres e insistia com ele para forçar a esposa a exigir mais
dinheiro da mãe. A fim de combater a pressão, lady Hatton
passou a oferecer festas magníficas em Hatton às pessoas
declaradamente inimigas de Buckingham. Como era natural, ela
gostaria de poder contar com a presença do visconde e da
viscondessa Poole em suas recepções, pois assim todos veriam de
que lado da rixa estava o casal. Todavia, ao perceber as intenções
da mãe, Brenna se negava a aceitar seus insistentes convites.
A solidão e a tranqüilidade reinantes em Poole House revigo-
raram a força de vontade de Brenna. A maneira calma de
enfrentar o inevitável se transformou numa barreira contra as
tempestades desencadeadas em Londres. Com os poucos
recursos de que dispunha, esforçou-se para proporcionar ao
marido uma vida confortável e agradável. Encheu a despensa
com os melhores mantimentos possíveis e o parque à volta da
propriedade com animais de caça, tais como veados, raposas,
lebres e texugos. Contratou um empregado para tomar conta
dessa parte e presenteou Raymond com ótimos cães de caça.
Deu-lhe ainda cachorros das raças spaniel e terrier para que se
distraísse quando em casa. De nada adiantaram seus esforços.
Um dia, chegou uma carta de Buckingham exigindo a compa-
nhia de sir Raymond, por um mês, numa estância de águas me-
dicinais. Num dos trechos, ele dizia:
"E nossa esperança que esse tratamento ponha um fim à me-
lancolia dolorosa que aflige o querido primo".

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OS AVENTUREIROS

A ordem chegou justamente na época em que a vida


sossegada começava a surtir efeitos positivos no relacionamento
entre ambos e a minar a resistência de Brenna.
— Deus do céu, por que eles hão nos deixam em paz? — pro-
testou ela com veemência.
— Não sei, minha querida, e temo que eles jamais o façam —
Raymond respondeu triste.
Talvez, se entregue ao próprio destino e sem interferência dos
parentes, o casal pudesse vir a encontrar o amor. Brenna, agora,
só muito de vez em quando pensava em Rory O’Hara ou sonhava
com os seus braços, beijos e carícias. Mais e mais, a tristeza no
olhar do marido a comovia e inspirava sua afeição por ele.
— Acho que por trás de milorde Buckingham está lady
Compton, ansiosa por afastar você de mim — Brenna reclamou.
— Sei disso.
— E assim mesmo vai embora.
— Não tenho outra escolha. Aliás, nunca tive.
— Mas você é um dos pares do reino, um visconde! — insistiu
ela, aflita.
— Isso não quer dizer nada. Londres inteira sabe que os
títulos de nobreza não são mais obtidos por mérito e sim por
conexões vantajosas. Por isso mesmo, não têm valor. Meu primo,
impulsionado pela ambição desmedida, não se contentou em
favorecer aos parentes apenas, mas também a estranhos, com a
outorga de títulos, desde que ele ou minha tia fossem regiamente
recompensados.
-— Mas você é um visconde! — Brenna repetiu.
— E ele, minha querida, um duque com poderes de rei!
O mês de ausência de sir Raymond se prolongou para dois,
três e finalmente quatro. Alarmada, Brenna escreveu a Bucking-
ham e lady Campton, porém não obteve resposta.
Os primeiros dias passados sozinha em Poole House foram
um alívio. Todavia, com o correr do tempo, ela começou a sentir
medo, que acabou se transformando em terror.
Finalmente dava-se conta da amplitude das tramas do duque

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OS AVENTUREIROS

e da mãe dele. Se conseguissem interditar sir Raymond sob a


desculpa de problemas mentais, o confinariam em algum lugar
longe dela. Como resultado, Brenna ficaria sem recursos, pois,
como administradores dos bens do visconde Paoole, Buckingham
e a mãe tinham controle absoluto sobre as propriedades do casal.
Já ia lançar mão do último recurso que lhe restava, ou seja
procurar a mãe, o que desejava evitar, quando sir Raymond
voltou.
Com os olhos arregalados, sem chapéu, as roupas em tiras e
ataduras imundas sobre os braços e mãos ensangüentados, ele
irrompeu a galope pelo pátio de Poole House como uma aparição
vinda do inferno.
Sentaram-se na sala de estar, o único cômodo da casa
mobiliado com decoro e conforto, Brenna perto da janela e
Raymond numa poltrona ao lado de uma mesinha.
De vez em quando, o olhar perdido de Brenna se desviava das
árvores do parque e se fixava no marido.
"Como ele decaiu!", pensou, amargurada. "O pior é que é
tanto culpa deles quanto minha."
— Pensam que estou louco e talvez esteja mesmo.
Ao quebrar o silêncio profundo, a voz dele a sobressaltou.
Brenna levantou-se e deu uns passos em direção ao marido.
A mudança ocorrida nesses meses de ausência tinha sido pro-
funda e deprimente. A barba e o bigode de Raymond, sempre
bem aparados, estavam crescidos e em desalinho; as roupas, que
ele se orgulhava de manter impecáveis, além de rasgadas, tinham
nódoas feias, e as botas se mostravam esfoladas e cheias de lama.
— Suas mãos estão sangrando de novo. Deixe-me...
— Não tem importância — Raymond interrompeu e depois,
com esforço, apanhou o copo de aguardente da mesinha e bebeu.
— Você ficou aqui como uma freira no convento e assim foi mais
fácil para eles fazerem o que desejavam.
— Você me culpa por tudo? — Brenna indagou baixinho.
— De forma alguma — respondeu ele com um riso triste.
— A cerimônia de nosso casamento, na casa de Deus, foi de

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OS AVENTUREIROS

sacrifício e não de santa união. Talvez estejamos pagando por


isso.
Sem mais poder se controlar, Brenna levantou os punhos cer-
rados e deixou as lágrimas de desalento correrem.
— Nós pagamos — disse ela entre soluços —, mas são eles, a
sua família, que não se importam, de destruir quem atravessar o
seu caminho na conquista do poder e da fortuna.
— Por isso, na vida futura, nós dois seremos perdoados, já
que sofremos bastante aqui, e eles queimarão no fogo do inferno
pela eternidade.
— Esse é o jeito de Raymond, o novo católico, falar — disse
Brenna, sem deixar transparecer o desprezo sentido.
— E, sim. Graças a essa fé consigo sobreviver e esperar. Talvez
você também devesse se converter.
— Para perdoar com um sorriso o fato de eles nos roubarem
todos os nossos recursos? Não, prefiro continuar anglicana. E, se
as coisas continuarem a piorar, desisto disso também — Brenna
declarou.
Raymond se manteve calado por uns instantes e quando falou
foi com voz quase inaudível:
— A única razão pela qual eles queriam que eu me casasse
com você se resumia a seus bens. De fato, tudo o que tenho
consegui através do seu dote. Minha família nunca acreditou que
eu realmente a amasse. Isso é um espinho na carne deles. Quem
sabe
— continuou ele com um sorriso e voz mais alta —, se não
devíamos dar tudo de uma vez para eles, pois agora sabemos do
que são capazes de falar a fim de conseguirem seus objetivos.
Brenna cobriu o rosto com as mãos e estremeceu. Por uma
hora, estivera sentada perto da janela enquanto o marido lhe nar-
rava os eventos dos últimos quatro meses.
Enquanto na estância de águas medicinais, Buckingham tinha
implorado ao primo para acabar com o casamento, informando-o
de que seria facílimo pedir a permissão do rei.
— Essa mulher o enfeitiçou, Raymond. E claro que seus

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OS AVENTUREIROS

acessos de loucura são provocados por ela. Abandone-a e volte


para o seio da família. Você não tem de se preocupar, pois a
incapacidade dela engravidar mais o fato de tê-lo enlouquecido
com artimanhas de bruxaria são suficientes para o rei garantir
que todas as suas propriedades e bens fiquem para você depois
da separação.
A sugestão de tamanha baixeza provocara um acesso de fúria
em Raymond. Sem se dar conta das muitas testemunhas
presentes, ele se atirara sobre Buckingham a fim de estrangulá-
lo, o que teria feito se não o tivessem impedido a tempo. A raiva,
o desespero e a frustração foram tão grandes que ele não fora
capaz de dizer uma palavra sequer e apenas gaguejar sons
inarticulados.
A cena viera a calhar aos propósitos de Buckingham, que fora
imediatamente procurar o rei.
— Temo, Majestade, que meu querido primo tenha de fato
enlouquecido. Suplico a sua permissão para confiná-lo no campo
antes que ele cometa algo prejudicial a si mesmo. Não preciso
acrescentar, Majestade, que as atitudes do visconde Poole
acabarão refletindo em seu nobre rei, caso não sejam contidas.
Tudo fora dito em frente a um bom número de cortesãos com
a intenção de se espalhar a notícia de que Buckingham apenas
pretendia proteger um membro da família.
O rei, todavia, percebera as intenções verdadeiras de seu
favorito. Seria melhor afastar o visconde Poole antes que seu
comportamento provocasse um escândalo danoso à pessoa do
duque. Mas por ser um homem pusilânime, James dera logo o
consentimento.
Sir Raymond fora então preso na Wallingford House, onde fi-
caria até serem tomadas as providências necessárias para o leva-
rem à Escócia. Porém ele havia se revoltado, conseguido dominar
o carcereiro e fugir.
Isso apenas servira para aumentar os boatos sobre sua
loucura, pois, na luta contra o homem, destruíra várias peças do
mobiliário. Depois, com os ombros e punhos, sir Raymond havia

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OS AVENTUREIROS

quebrado os vidros de uma janela e pulado para a rua todo


ensangüentado e com as roupas rasgadas. Do primeiro homem
com quem cruzara, ele obtivera um cavalo e dois dias depois,
aparecia em Poole House.
— Eu apenas me revoltei por ser mantido prisioneiro contra
a minha vontade — concluíra ele.
Brenna levantou a cabeça e contemplou o marido, que conti-
nuava sentado, com as pernas compridas esticadas de maneira
desajeitada à frente dele. As mãos enroladas em ataduras sujas e
manchadas de sangue estavam erguidas à altura do rosto.
— Infelizmente agora vai ser muito mais fácil para eles incre-
mentarem as mentiras a meu respeito. A esta altura, a cidade
inteira de Londres deve me considerar um louco perigoso que es-
capou da prisão tomado de fúria.
Raymond sabia que viriam buscá-lo, o que realmente
aconteceu menos de um mês depois. O conde de Middlesex
apareceu acompanhado de vinte soldados da guarda pessoal de
Buckingham. Ao vê-los aproximarem-se, ele resolveu não
oferecer resistência e os acompanhou de volta a Londres.
— Submissão, minha querida Brenna, é a única saída que nos
resta. Ao agir desta forma, espero mantê-la em segurança até o
dia em que me seja possível apelar a um novo rei que nos faça
justiça.
Brenna concordou. James era um rei combalido, atacado
quase diariamente por uma nova enfermidade. Embora Raymond
não houvesse demonstrado eficiência no trabalho para Charles,
havia angariado a amizade do príncipe de Gales. Quando o pai
falecesse e ele fosse coroado, seria bem possível que o casal visse
o fim de suas infelicidades. Enquanto isso, o melhor era aceitar a
situação com paciência.
Porém Raymond e Brenna jamais poderiam imaginar a ampli-
tude da voracidade de Buckingham e lady Compton e até que
ponto chegava a audácia de ambos para satisfazê-la.
Da sala de estar, ouviram o barulho das ferraduras dos cavalos
nas pedras do pátio. Segundos depois, Middlesex atravessava o

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OS AVENTUREIROS

umbral da porta seguido pelos soldados com as espadas


desembainhadas.
— Müorde visconde Poole, tenho ordens para levá-lo a
Londres.
— Pois não — Raymond respondeu, cordato, dando um
passo à frente. No mesmo instante, ele se viu ladeado por quatro
soldados que o conduziram para o pátio. Mal haviam
desaparecido quando o resto dos homens se espalhou pela casa;
Brenna não percebeu de imediato o que pretendiam.
Com espadas e lanças, eles começaram uma destruição
metódica de tudo que encontravam pela frente. Os poucos
móveis que haviam comprado, tapeçarias finas dadas por lady
Hatton, arcas com as roupas e o enxoval de Brenna, caixas de
jóias, louças e uma infinidade de coisas foram totalmente
destroçadas com violência.
— Como se atrevem? — Brenna gritou. — Quem lhes deu
esse direito?
— Ordens do rei — Middlesex respondeu ao desenrolar um
pergaminho e ler:
"Que seja sabido por todos através deste mandado que, em
consideração à incapacidade mental do visconde Poole,
entregamos a lady Compton, sua querida tia, a responsabilidade
de cuidar de todos os seus bens, ou seja, dinheiro, imóveis,
utensílios domésticos, enfim de tudo que lhe pertença. Saiba-se
ainda que o visconde Poole encontra-se nessas condições de
debilidade por culpa da esposa que usou de feitiçaria e mal-tratos
contra o pobre homem. Por essa razão, eles não podem mais
conviver,
James R."
O rosto de Brenna ficou rubro de ódio. Correu até Middlesex,
arrancou-lhe o pergaminho das mãos e rasgou-o ao meio. Como
um animal ferido, atacou-o com as unhas deixando-lhe riscas
vermelhas no rosto.
— Bruxa maldita! — gritou ele ao se desviar antes que Brenna
o atacasse de novo.

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OS AVENTUREIROS

Dois guardas a seguraram pelos ombros, mas Brenna se livrou


deles e correu para o pátio, onde se encontrou no meio de
cavalos inquietos.
— Raymond, eles querem nos deixar na miséria! Raymond!
Porém ele já havia partido e galgava uma colina distante fora do
alcance de sua voz.
Brenna se virou para retornar à casa, mas se viu presa entre
dois garanhões resfolegantes e irrequietos. De repente, um deles
virou as ancas e coiceou.
As duas patas a atingiram em cheio no corpo, deixando-a sem
fôlego. Brenna se sentiu erguida no ar e ainda percebeu a queda
nas pedras do pátio. Depois, tudo escureceu.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXVII

Como uma imperatriz colérica em seu trono, lady Elizabeth


Hatton se encontrava sentada numa cadeira de espaldar alto. Seu
vestido era de cetim branco e o interior das pregas da saia, os
entremeios de renda da blusa e a pele que disfarçava o decote
exagerado eram pretos. A impressão causada era de que essas
cores de luto aliviado haviam sido escolhidas de propósito para
ouvir a história de horror contada pela filha.
— Eles levaram tudo, mas pensei que, pelo menos, deixariam
um telhado sobre minha cabeça. Uma semana depois, todos os
criados, exceto um zelador, foram despedidos e apareceram uns
homens para pregar tábuas nas portas e janelas. Acredito,
mamãe, que, se eu não tivesse fugido aqui para Hatton House,
eles teriam me trancando lá.
Lady Hatton ouvia com ódio crescente enquanto o rubor
subia pelo pescoço e atingia-lhe as faces.
— E Buckingham, esse miserável, recusa-se a lhe dar um mí-
nimo para a sua sobrevivência quando o dinheiro é seu?
— Exatamente. Ele alega que, mesmo se Raymond não
estivesse louco, a minha conduta impediria que nós
continuássemos a viver juntos.
— Deus do céu! Que conduta você poderia ter a não ser a de
uma mulher forçada a se casar com um homem a quem não ama?
— Elizabeth perguntou no auge da fúria.
Brenna apenas sacudiu a cabeça. Não adiantaria nada explicar
à mãe que a suposta loucura do marido se originava no fato de
eles não compartilharem a cama.
— Isso não passa de uma monstruosidade! Quem se atreveria

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OS AVENTUREIROS

a afastar à força o marido da mulher?


— Duques e reis, mamãe.
— Ladrões! — Elizabeth sibilou. — Roubada por um grupo
de criaturas desprezíveis cujo poder é alimentado pelos caprichos
de um déspota bêbado e devasso!
A mãe continuou o discurso irado, porém Brenna pouco ou
nada ouviu de suas palavras. Havia voltado para Hatton House,
onde viveria da caridade de Elizabeth e se encontrava numa
situação pior do que a de quando saíra dali para se casar com sir
Raymond Hubbard. Era agora a viscondessa Poole, um título oco
de uma mulher sem bens ou meios de sobrevivência.
Os dias se transformaram em semanas e estas em meses.
Brenna vagava pelas dependências elegantes e jardins bem
cuidados de Hatton House deprimida e inquieta. O peso
carregado nos ombros minava-lhe as forças.
Uma noite, ela foi chamada a um dos portõezinhos mais
afastados do jardim. Lá, uma silhueta envolta num manto escuro
entregou-lhe uma carta sem dizer-lhe uma palavra sequer. Já se
afastava para a segurança da escuridão quando Brenna conseguiu
divisar-lhe as feições sob o capuz. Reconheceu o padre Fischer, o
sacerdote jesuíta através de quem Raymond se convertera ao
catolicismo.
Com o coração disparado, ela correu para o refúgio do quarto,
onde leu a missiva com ansiedade e angústia.
"Minha querida Brenna,
A tristeza que envolve o meu coração é imensa. Sei que,
através de mim, você sofreu as maiores humilhações possíveis.
Lamento não ser homem o suficiente para tomar da espada e
vingar os sofrimentos que impingiram a uma criatura doce e
meiga como você. Infelizmente, não o sou.
Middlese é o meu carcereiro agora e eu sei que desta vez a
fuga será impossível. Eles desejam me mandar para a a Escócia,
onde serei esquecido por todos. Ás vezes sinto um desgosto
profundo e outras, um grande alívio, pois se estou mesmo louco
o melhor será viver em isolamento completo.

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OS AVENTUREIROS

Dizem que você me enfeitiçou, minha querida, e é verdade,


mas fez isso com a sua inteligência, beleza, graça e encanto. Você
me aturdiu com a sua maravilhosa capacidade de amar. Eu daria
tudo, inclusive minha vida, se por um momento apenas pudesse
chamar de meu o amor que durante estes anos todos um outro
possuiu.
Com amor R”.
Nessa noite, Brenna chorou durante horas até que, exausta,
adormeceu. Pela primeira vez, desde o casamento, seu coração
bateu por Raymomnd e ela desejou tê-lo a seu lado.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXVIII

FRANÇA

Ao pisar em solo francês, Rory sofreu um impacto, pois as


cenas, os sons e os odores lhe pareciam absolutamente
estranhos. Era como se não tivesse sido criado nesse país e
pertencido à sua guarda militar.
Os soldados não usavam mais armaduras e se assemelhavam,
pela maneira de vestir, a pássaros coloridos. Quando mais moço,
Rory teria apreciado a capa curta, que caía drapeada de um dos
ombros, e a profusão de rendas no colarinho e punhos de camisa.
Haveria também de ter aprendido com prazer a curvatura
elegante que se iniciava com o pé direito à frente, como no
primeiro passo de uma dança, e terminava com o floreio do
chapéu de abas largas, cujas plumas de várias cores tocavam o
chão. No entanto, agora, ele apenas sorria divertido, mas sem
grande interesse.
A moda feminina também havia mudado, e para melhor. As
anquinhas desconfortáveis tinham sido abolidas, as saias
franzidas destacavam mais as silhuetas e os decotes baixos,
orlados por jóias, realçavam o busto.
Rory se desviou da rota que o levaria a Paris a fim de visitar a
irmã Anna na abadia de Fontevrault. Desejava agradecer-lhe
pessoalmente o carinho com que ela o mantivera informado, por
cartas, dos eventos na França. Os viajantes com quem conversou

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OS AVENTUREIROS

pelo caminho tinham um só assunto: o odiado e temido ministro


de Estado, o tirano Richelieu.
Assim que chegou a Paris, ele se dirigiu à rua des Mauvaises-
Paroles e se fez anunciar na residência do cardeal. A mulher que
o recebeu à porta e o conduziu à sala de estar vestia-se de preto e
usava um capuz semelhante ao de uma freira que lhe cobria os
cabelos.
— Sou Marie-Madeleine de Combalet, sobrinha do cardeal —
explicou ela ao notar a expressão de surpresa no olhar do
visitante. — Espere um momento enquanto vou avisar meu tio
de sua chegada. Ele está ansioso por vê-lo.
A reação de Rory havia sido natural, pois Richelieu, até então,
recusara-se a empregar mulheres a seu serviço.
Sozinho, percorreu o olhar à volta e reparou na redecoração
de extremo bom gosto do aposento, evidência clara de que havia
sido feita sem preocupação com os gastos.

"Monsieur le Cardinal", Rory ponderou, "como príncipe da


igreja celestial, já começou a receber as recompensas terrenas!"
— O cardeal vai atendê-lo já.
Rory seguiu a mulher por uma escadaria ampla e a um
escritório repleto de estantes de livros. Assim que ela se foi,
Richelieu surgiu de uma pequena capela ao lado.
O’Hara ficou atônito. O homem era o mesmo, porém a
aparência era diferente. A expressão melancólica dos olhos
escuros ainda lhe instigava os sentidos; a postura do corpo esguio
continuava sendo a de Um militar, o que fazia dele um soldado
além de sacerdote; o bigode também era o mesmo, semelhante
ao de um mosqueteiro, com as pontas torcidas e viradas para
cima, e a barba royale, terminada em ponta, dava-lhe o toque de
elegância de que Rory se lembrava tão bem.
Deu-se conta, então, de que a diferença estava na batina mais
longa, de um carmesim profundo e que ondulava regiamente a
cada movimento. Ela dava o toque certo ao homem e o fazia
revelar a única coisa pela qual Richelieu lutara com vontade

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OS AVENTUREIROS

férrea para conquistar o poder.


— Meu filho! — o cardeal exclamou com a mão estendida
para ser beijada.
— Seja bem-vindo a uma nova França.
— Aí estão as três realizações essenciais para se dar continui-
dade à vida próspera e ao governo soberano da França. Os nobres
rebeldes e os huguenotes protestantes devem se submeter ao
controle real e o poder de Hapsburg precisa diminuir nos Estados
germânicos. Caso contrário, e se eles saírem vitoriosos desta
guerra, imagino que possam concentrar os olhares nas fronteiras
da França. Finalmente, eu gostaria de manter relações mais
chegadas com a Inglaterra para evitar um alinhamento dela com
a Espanha.
Rory se recostava confortavelmente na cadeira do outro lado
da escrivaninha de mogno e em frente a Richelieu. Estendeu a
mão e cocou a cabeça de Diable, o cão de caça que havia
mandado de presente ao Cardeal. O cachorrinho havia se
transformado num animal enorme, de pêlo branco e sedoso, com
manchas pretas. Era também muito feroz.
— Você é a primeira pessoa, além de mim, que consegue
tocar em Diable. Nem minha sobrinha se atreve a chegar perto
dele e afirma que é o próprio demônio.
— E porque ele sente o meu cheiro de irlandês. Nós
possuímos um odor diferente.
— Você se tornou de fato um patriota convicto?
— Até o fundo do coração e o tutano de meus ossos — Rory
respondeu sem hesitação alguma ao fitá-lo.
— Ótimo! — disse Richelieu enquanto se levantava e ia até a
janela. — O fato de ser irlandês o torna neutro e não, necessa-
riamente, antiinglês.
— Pelo que entendo, o senhor gostaria de me enviar, de
novo, para as garras do tigre Villiers para ser seus olhos e
ouvidos,' não é?
— Se for possível.
— Mas a sua carta dizia... — Rory começou.

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OS AVENTUREIROS

— Deixe-me explicar. Sua Graça, o duque de Ia Mardine,


através de um comportamento ambíguo, se tornou um homem
poderoso. Enquanto a rainha-mãe se encontrava no exílio, em
Blois, ele lhe jurou fidelidade a fim de gozar da sua confiança,
mas, na verdade, a espionava. Com regularidade, o duque
enviava relatórios detalhados sobre os planos de Marie de
Médicis ao rei e a de Luynes. Quando este faleceu, Ia Mardine foi
chamado à corte, onde recebeu um alto posto. Naturalmente,
desempenhou-se mal e eu interferi.
— Então, o poder é seu.
—- Não, do rei. Luís é um homem fraco, mas não tolo. Ele
preferiu conservar Ia Mardine com uma certa dose de poder a
fim de que o meu não se tornasse muito grande — Richelieu
informou, aproximando-se de Rory. — O duque gostaria
imensamente de encabeçar a comitiva da princesa Henrietta
Maria no caso de sua ida para a Inglaterra como rainha, pois já há
muitos anos que ele mantém relações com Buckingham. Se
conseguisse o que deseja, eu jamais receberia informações
verídicas sobre a corte em Londres. Com o tempo, isso seria
desastroso.
— Talvez também acabe sendo se eu for o seu mensageiro.
Tenho meus negócios particulares na Inglaterra, que, uma vez
terminados, me deixarão livre para voltar à Irlanda.
— Eles têm algo a ver com a moça?
— Sim, Eminência.
Richelieu sacudiu a cabeça em sinal de reprovação e voltou a
sentar-se à escrivaninha.
— Mulheres! Deixe-me lhe dizer uma coisa, meu filho. Assim
como os homens empregam suas habilidades na prática do bem,
as mulheres as usam com propósitos malignos. Elas são animais
estranhos. Às vezes, dão-nos a impressão de serem inofensivas e
de que apenas fazem o bem. Eu acredito com toda a sinceridade
que não existe nada mais capaz de destruir um reino do que uma
mulher.
— Perdoe, Eminência — Rory replicou com um sorriso. — Se

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OS AVENTUREIROS

minha irmã Shanna ouvisse essas suas palavras, não respeitaria


sua vestimenta eclesiástica e lhe arrancaria os olhos com as
unhas.
— E o que faria a sua moça inglesa?
— Provavelmente, rezaria pela sua alma.
Richelieu se recostou na cadeira e o ar se encheu com seu riso
alto.
— Então, seria melhor que você a esquecesse e procurasse
uma mulher mais parecida com sua irmã. E desse tipo de
companheira que você vai precisar logo na Irlanda!
— Pode ser. Eu mudei muito nestes últimos anos. Acredito
agora que as mulheres devem ser amadas e não usadas.
— Nem todos pensam assim — Richelieu contestou batendo
com ambos os punhos no topo da escrivaninha.
— La Mardine lança mão de tudo que dispõe para alcançar
seus fins. Quando lorde Kensington chegou ao Louvre para as
negociações de proposta de casamento, ele foi recebido,
primeiro, nos aposentos particulares de Carlotta, a esposa de La
Mardine.
Rory se lembrou da noite em que pulara pela janela do quarto
da duquesa e não pôde evitar um sorriso malicioso. Como certas
coisas e pessoas mudavam e outras nem um pouco!
— Parece que Carlotta continua a mesma.
— E verdade. O número de seus amantes é imenso e todos
com o mesmo fim: progredir. O duque atrelou o poder ao corpo
da mulher e a transformou num instrumento que maneja bem. E
por causa disso, O’Hara, e pela falta de princípios dele em tudo o
mais, que preciso me valer de todos os recursos e pessoas sob
meu comando para derrubá-lo. Algo no olhar e no tom de voz do
cardeal despertou uma suspeita na mente de Rory.
— Derrubá-lo, Eminência? Até a morte, talvez?
— Se for preciso — Richelieu admitiu.
— Um desejo bem pouco santo, especialmente partindo de
um príncipe da Igreja.
Desta vez as palavras de Rory não provocaram o riso do

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OS AVENTUREIROS

cardeal e sim um ricto de causar arrepios.


— Concordo com Maquiavel, o italiano. A ética cristã não
pode ser observada, com segurança, ao se governar uma nação!
— declarou ele.
Rory se instalou na rua de Bourdonnais, perto da casa de
Richelieu. Durante duas semanas, ele não saiu; passava o tempo
observando Paris da janela e inteirando-se das notícias sobre as
negociações do casamento da princesa Henrietta Maria, que o
cardeal lhe enviava diariamente.
Os franceses estavam fazendo muitas exigências, todavia
existia a possibilidade de serem atendidos. Notícias vindas da
Inglaterra informavam que o rei James se encontrava à morte e
Buckingham tentava persuadir o Parlamento a liberar verbas
para uma guerra contra a Espanha. Por causa disso, ele
necessitava de um acordo político com a França.
O preço de Richelieu era alto. Em todos os lugares onde Hen-
rietta Maria residisse, ela deveria contar com sua própria capela.
Para a realização dos serviços religiosos em tais recintos, haveria
vinte e oito sacerdotes. O total de servidores domésticos seria de
cem pessoas, o que incluía cinqüenta guardas sob o comando de
um capitão escolhido pelo rei Luís. Tanto os padres como os sol-
dados deveriam ter permissão de usar a batina, o uniforme e as
armas em qualquer lugar e hora e contariam ainda com ampla
liberdade não só na corte como no campo também. As intenções
de Richelieu eram óbvias. Ele planejava instalar uma rede de
espiões na Inglaterra com a aprovação do governo inglês.
Embora cético quanto à aceitação dessas condições, Rory,
com paciência, esperava pela decisão final. Experiências passadas
o haviam ensinado a não subestimar a astúcia, crueldade e simu-
lação de Armand de Richelieu, ainda mais agora que ele era o
cabeça da Igreja católica na França, bem como ministro no
governo do rei.
Com o passar do tempo, Rory começou a sair de casa,
raramente no início e com mais freqüência depois, porém
sempre à noite. Na verdade, ele temia um encontro com La

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OS AVENTUREIROS

Mardine. O cardeal também o havia avisado a respeito da


impetuosidade dos jovens almofadinhas de Paris.
— Apesar de eu ter decretado a proibição de duelos, os
rapazes ainda o têm como passatempo favorito. Tome cuidado,
meu filho, pois basta um olhar arrevesado ou um esbarrão não
proposital para provocar o tapa de uma luva no rosto e o
cruzamento de espadas num parque ou campo deserto.
Rory respeitou a recomendação, pois o tempo passado na
Irlanda o tinha deixado completamente sem prática para
empunhar o flo-rete. Seus passeios noturnos se limitavam a
longas caminhadas pela redondeza de Morais, perto da Place
Royale. Suas botas ressoavam nas pedras da rua de La Ferronerie,
não muito longe do lugar onde o pai do rei Luís, Henrique IV,
tinha sido esfaqueado pelo fanático Revillac.
Podia ver à sua volta o crescimento de Paris. Através do
trabalho do arquiteto Lemercier, Luís XIII estava remodelando o
Louvre. No centro do Sena, as ilhas Notre Dame e de Vaches
haviam sido juntadas para formar a de St. Louis. Igrejas estavam
sendo construídas e os limites antigos da cidade se expandiam
com o surgimento de bulevares largos e de fileiras de novas e
imponentes mansões.
Paris se transformava numa linda cidade. Anos atrás, nos
tempos de estudante e de membro da guarda de Concini, Rory
teria apreciado mais essa modificação, pois ela significava a
excelência do lugar para se morar. Agora, ele se sentia perdido,
solitário e morto de saudade dos vastos campos verdes de
Ballylee. Percebia como gostava muito mais do latido dos cães,
do mugido do gado e do canto dos galos do que do ruído das
carruagens nas pedras do calçamento e dos gritos estridentes de
vendedores ambulantes.
Sua mente se encontrava torturada por dúvidas. E se o afas-
tamento de Ballylee resultasse em nada? Mesmo que a princesa
Henrietta Maria se casasse com o príncipe de Gales e ele, Rory,
também fosse para Londres como capitão da guarda, teria opor-
tunidade de ver Brenna? E de que adiantaria isso? Caso ela lhe

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OS AVENTUREIROS

explicasse por que partira de repente de Chinon para a


Inglaterra, a dor profunda de seu coração passaria? Contudo, ele
sabia que precisava ver Brenna mais uma vez.
Finalmente, o chamado de Richelieu chegou, mas não
motivado pelas razões esperadas por Rory.
— Os idiotas! — Richelieu exclamou. — Já era tempo de sa-
berem que tenho ouvidos em cada canto de Paris. Seria
impossível eu não ficar sabendo de uma conspiração de
assassinato, mesmo rodeada do maior segredo!
Sentado, Rory se via incapaz de se mexer enquanto apreendia
os detalhes da notícia recebida. Gaston, o irmão mais novo do rei
Luís, havia sido atraído por La Mardine e a duquesa a tomar
parte nos planos para assassinar Richelieu. Se o cardeal desapa-
recesse, a duque teria caminho aberto para a Inglaterra e seria
capaz de passar, aos olhos do povo, como o responsável pela
aliança entre França e Inglaterra. Havia ainda o fato de Luís não
ter filhos e estar doente. Se morresse, Gaston seria coroado rei e
governaria sem os empecilhos provocados por seu maior inimigo,
Richelieu.
— Eles teriam me abatido como a um porco na minha
própria mesa! Talvez tivessem conseguido se a pessoa escolhida
possuísse mais fibra — o cardeal declarou, irritado.
Rory fechou os olhos e gemeu baixinho. Podia imaginar com
facilidade a silhueta imponente, envolta na túnica vermelha,
levantar-se da mesa e enfrentar a adaga do assassino em
potencial. Conseguia até ouvir a voz gelada e cortante como o
aço do cardeal ao atacar, com palavras, o criminoso e forçá-lo a
se ajoelhar e confessar.
— O que vai fazer com eles? — indagou.
— Com Gaston, nada, não posso. Ele é um príncipe de
sangue azul. Luís lhe dará uns tapinhas na mão e ele voltará a se
divertir com as mulheres de vida fácil nas tavernas e casas de
jogo. La Mardine e a esposa libertina posso expulsar da corte por
uns tempos, mas é só.
— E o pobre-diabo que serviu de instrumento? Richelieu

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OS AVENTUREIROS

sacudiu os ombros e abriu os braços.


— Alguém precisa pagar e servir de exemplo. Mandarei
decapitá-lo. Rory se sentiu mal ao ouvir essas palavras. Não
conseguiu impedir que lembranças de aventuras divertidas por
tavernas e prostíbulos de Paris, nos dias da juventude, lhe
viessem à mente. Recordou-se do dia fatídico da morte de
Concini, quando foi salvo de sorte igual pela interferência do
amigo dedicado.
— Ignorava que René de Gramont houvesse se aliado a La
Mardine — Rory disse num tom de voz sem expressão.
— Infelizmente, o seu amigo não é mais o mesmo. Ele se
junta a qualquer um que lhe pague as contas e encha seu copo. E,
como a maioria dos homens, de Gramont não resiste à sedução
da duquesa.
Rory ergueu o peito forte e se debruçou em direção a
Richelieu.
— Preciso vê-lo.
— Não lhe fará nenhum bem.
— Preciso de permissão para entrar na Bastilha.
O olhar frio de Richelieu se tornou mais gelado ainda ao
encarar O’Hara enquanto avaliava o pedido.
— Dizem que a enfermidade dele é antiga, uma paixão que
lhe provocou a loucura. O carcereiro me informou que, às vezes,
ele é coerente e até esperto; outras, porém, grita raivoso, espuma
e gane como um cachorro.
— Eminência...
— Preferiria cortar a cabeça de La Mardine, mas, como isso é
impossível, terei de me contentar com a de Gramont.
— Eminência, um passe — Rory insistiu num misto de
súplica e exigência.
Richieleu sacudiu os ombros de novo e apanhou papel e pena.
Manteve o rosto abaixado sobre a escrivaninha para que Rory
não visse o sorriso que lhe curvava os lábios finos.
Ladeado por dois lanceiros, Rory acompanhou um guarda
através do pátio de muros altos. Do outro lado, assim que a porta

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OS AVENTUREIROS

pesada foi aberta, eles entraram, deixando para trás o ar fresco e


a luminosidade do sol. Os odores fétidos e de umidade eram
quase insuportáveis e os gemidos vindos das sombras onde a luz
dos tocheiros não alcançava incomodavam os ouvidos de
maneira penosa.
— Por aqui — indicou o guarda.
Os ombros largos de Rory tocaram as paredes de pedra que
limitavam a escada estreita e em espiral por onde desceram aos
recônditos da Bastilha. Ali, as celas não passavam de cubículos
apertados, com três paredes de pedra e uma grade de ferro na
frente. Pararam diante de uma delas, cuja porta o guarda abriu
com uma das chaves que trazia à cintura.
Em seguida, ele requisitou a entrega da adaga, espada e duas
pistolas de Rory e entregou-lhe uma vela acesa.
— Bata com a bota na grade quando quiser ir embora — re-
comendou o homem antes de fechar a porta e desaparecer.
Por alguns segundos, com a vela erguida acima da cabeça,
Rory perscrutou as sombras e levou algum tempo para perceber
que o amontoado de trapos a um canto tinha forma humana.
— René, René de Gramont — chamou ele.
Não recebeu resposta e nem notou movimento algum.
Curvou-se e tocou um dos ombros ao mesmo tempo que repetia
o nome do amigo. Bem devagar, aquele molambo foi tomando
forma: primeiro a parte de trás da cabeça, depois os ombros, os
braços e o torso. Em seguida, ele se virou e Rory soltou uma
exclamação de horror. Sabia tratar-se de René de Gramont, mas
era quase impossível reconhecer o amigo que amara como a um
irmão nos tempos de juventude.
Sob a barba por fazer há vários dias, a pele emaciada colava-se
aos ossos e os olhos encovados estarreciam. A cabeleira farta e
loira, motivo de orgulho no passado, se encontrava em estado
lastimável de imundície e desalinho e, sob os farrapos do colete e
da camisa de cambraia, a pele sobre o peito afundado tinha um
aspecto doentio.
— René, sou eu, O’Hara, Rory O’Hara. Não se lembra de

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OS AVENTUREIROS

mim? — indagou ao iluminar o próprio rosto com a vela.


Ele se deu conta de que os olhos azuis, porém tão
embaciados, de René começavam a reconhecê-lo com lentidão.
— Rory O’Hara — grunhiu o pobre.
— Isso mesmo — confirmou e pôs a vela no chão entre
ambos.
-— Olhe, eu trouxe pão e vinho para você. Coma, meu amigo
— Rory convidou.
Ao som da palavra "amigo", René se encolheu de encontro à
parede com expressão de loucura no olhar.
— Que maneiras são essas? Coma — Rory insistiu. — Você
parece faminto. Tome aqui.
O preso estendeu bem devagar uma mão esquelética e, então,
num movimento brusco, arrancou o alimento oferecido dos
dedos de Rory. Com sofreguidão, entulhou a boca com nacos
enormes de pão até não caber mais. Ao beber o vinho, deixou-o
escorrer pelos cantos dos lábios.
Incapaz de testemunhar a cena degradante, Rory se virou de
costas, de encontro à grade, até que os sons animalescos se aba-
tessem. Só então ele se voltou e os dois velhos amigos se fitaram
sob a luz da vela.
Richelieu tinha razão. Havia, de fato, sinais de loucura no
olhar dardejante de René, Rory reconheceu.
— Vá embora — de Gramont resmungou ao mesmo tempo
que estapeava o rosto de O’Hara por lhe ter tocado o ombro.
O golpe provocou mais choque do que dor. Parecia impossível
que aquele corpo definhado pudesse atacar com tal força a ponto
de fazer Rory perder o equilíbrio e quase cair.
— Vá embora — René repetiu com os braços em posição de
luta.
— Eu vim como um amigo ansioso por ajudá-lo — Rory
começou com voz suave.
— Tanta coisa boa se passou entre nós e por isso não posso
vê-lo nesse estado.
No mesmo tom continuou a falar sobre as aventuras vividas

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

pelos dois nas tavernas de Paris ou no prostíbulo de madame


Picard. Recordou a alegria e a despreocupação com que
encaravam tudo. Momentos se passaram e René pareceu se
acalmar.
— O’Hara — disse ele finalmente com uma sombra de reco-
nhecimento no olhar.
— Isso mesmo, René, o irlandês.
— Vou morrer, você sabe? — indagou, trêmulo.
— Sei, sim.
— Os loucos não vão para o inferno, não é, O’Hara? Eles
sobem com os anjos.
— René, meu querido amigo, por quê?
— Tenho de pagar por ter sido um idiota e amar uma mulher
— de Gramont replicou.
— Carlotta?
Um riso estridente e histérico invadiu a cela prolongando-se
por muito tempo até terminar num acesso de tosse.
— Carlotta?! Homem algum ama a duquesa, apenas a leva
para a cama!
— Quem, então?
— Deus do céu! Qual mais a não ser sua irmã?
— Quer dizer que, depois de todo este tempo...
— Do que está falando? O tempo que transcorreu desde que
ela se foi não passa de um piscar de olhos em comparação com o
período de uma existência, O’Hara. Esses anos todos, venho vi-
vendo com sua irmã dentro de mim. Como uma bruxa, ela me
destruiu.
— Meu amigo...
— Esqueça isso, O’Hara. Já que não posso chamar sua irmã
de esposa, não quero tê-lo como amigo. Se eu tivesse uma adaga
aqui comigo, a enterraria no seu coração, e, caso não estivesse
tão fraco, o estrangularia. Quando Shanna partiu de St. Germain-
en-Laye, jurei que a seguiria para trazê-la de volta comigo. Se ela
se negasse, eu a mataria e a mim mesmo.

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OS AVENTUREIROS

Enquanto falava, a voz de René foi se elevando até transfor-


mar-se em gritos estridentes.
— Você está louco!
— Estou, sim, O’Hara — René confirmou com voz agitada
enquanto tentava se levantar, mas só conseguindo ficar de
joelhos.
— Se não estivesse, não teria concordado em matar Richelieu
como um homem corajoso para depois me acovardar feito um
cachorrinho ganidor. Isso prova que perdi a lucidez.
— Ficará bom, René, eu prometo — Rory declarou e
estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar.
— De qualquer forma, eu o tirarei...
René o empurrou e repetiu, irritado:
— Vá embora, O’Hara, e me deixe cumprir meu destino em
paz. Pelo menos a morte por execução é melhor do que numa
viela escura de Paris.
— Ela encontrou o amor, René. Chama-se David Talbot.
— Eu sei! — rugiu o outro. — Sempre acompanhei os seus
passos, até na sua terra paga.
Rory percebeu algo terrível na expressão do amigo, uma certa
intensidade no olhar desvairado que o assustou.
— Minha irmã o amava como amigo, René.
— O que você entende de amor, O’Hara? Nunca soube o que
significa dedicar todo o seu afeto a uma única mulher no mundo
e depois perdê-la. E também, jamais saberá o que quer dizer
amar uma criatura a tal ponto que o fato de não tê-la poderá
levá-lo à loucura e a preferir morrer do que continuar vivendo
neste inferno em que me encontro há treze anos.
O esforço despendido para dizer essas palavras minou a
energia de René. Ele se encolheu todo e virou para a parede. Com
humildade, Rory replicou:
— Ah, meu amigo, como você se engana. Um dia, ainda lhe
contarei tudo, mas primeiro preciso tirá-lo daqui.
Depois bateu com a bota na grade e, quando a porta foi aberta
e já ia sair, ouviu as últimas palavras de René.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Não faça nada, O’Hara, e me deixe morrer em paz. Senão,


um dia, você ainda se arrependerá de sua interferência.
Nos dias que se seguiram à visita, Rory implorou incansa-
velmente a Richelieu para poupar a vida de René. Usou de todos
os argumentos possíveis, desde o parentesco dele com o rei,
embora ilegítimo e não reconhecido legalmente, até o estado de
loucura do pobre homem. Todavia o cardeal se mostrou ir-
redutível e de uma maneira um tanto estranha. Afinal, naquelas
condições, de Gramont não serviria de exemplo a possíveis as-
sassinos. O dia da execução se aproximava e Richelieu se tornava
mais inflexível.
— Alguém precisa pagar e é uma pena que seja esse idiota.
Infelizmente, não há- ninguém para tomar-lhe o lugar.
Rory se encontrava muito deprimido. Não havia possibilidade
de se arranjar uma fuga da Bastilha e mesmo que houvesse seria
uma temeridade sua tentar ganhar a liberdade de René dessa
forma. Incorreria no desagrado de Richelieu e acabaria perdendo
a oportunidade de ver Brenna.
Dois dias antes da execução, Rory jantava numa taverna
quando foi procurado por uma menina.
— Monsieur le Gael?
— Oui.
Ela entregou-lhe um papel dobrado e desapareceu em
seguida. Rory o abriu e leu:
"Meu louco e encantador irlandês. Fiquei sabendo de sua che-
gada a Paris há pouco tempo. Sua Eminência, o cardeal,
movimenta bem os seus peões no escuro. Gostaria de encontrá-lo
por razões antigas, porém, no momento, existe um negócio mais
urgente para tratarmos. Não importa o que tenha ouvido a meu
respeito desde que chegou, O’Hara. Afirmo-lhe que sou uma
escrava dos desejos e tramas do meu marido e impotente diante
da ira dele. Por isso, ficaria feliz em poder ajudá-lo no seu esforço
para conseguir a liberdade de Gramont. Sei de que forma isso
poderá ser feito.
Se desejar o meu auxílio nessa questão, vá se encontrar

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

comigo, ainda hoje, quando a lua estiver alta, antes da uma da


madrugada, nos campos além de Notre-Dame-de-Bonne-Nouvell
e, perto da porta St. Denis. Ao virar-se para o leste, verá um
grupo de carvalhos frondosos, mais de doze. Estarei, a cavalo, sob
eles.
Com muita saudade, Carlotta.
Rory O’Hara levou o papel à chama da vela e enquanto o via
queimar ponderou sobre os perigos de se associar aos inimigos
de Richelieu. Lembrou-se então da velha amizade por René e
conscientizou-se de que iria ao encontro.

CAPITULO XXIX

Como o céu estivesse limpo, o luar refletia com intensidade.


Rory cavalgava devagar, não só para não chamar a atenção de
algum caminhante retardatário como também porque o terreno
era meio pantanoso. De vez em quando, um animalzinho
notívago atravessava à sua frente. Ouviu os sinos da Notre-
Dame-de-Bonne-Nouvelle baterem a meia hora e por sobre as
árvores já podia ver o perfil da igreja recém-terminada.
Não demorou muito para alcançar os limites de um vasto
campo. O aroma de flores silvestres perfumava o ar e uma brisa
suave fazia farfalhar a vegetação rasteira. Bem devagar e com

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OS AVENTUREIROS

cuidado, ele percorreu o olhar à volta. Alamos e faias altas


espalhavam-se ao longo da trilha batida e não muito distante
havia um pequeno agrupamento de carvalhos. Todavia, a uns
cem metros deles, viu outros mais numerosos e copados. Deviam
ser os que procurava. Nesse instante, o cavalo resfolegou e, como
resposta, ouviu-se o relinchar de outro.
Mantendo o passo vagaroso da montaria, Rory se aproximou
das árvores. Duas delas, um pouco mais à frente das outras,
erguiam-se como torres dos lados de um portal. Entre ambas
encontrava-se um cavalo com alguém envolto numa capa preta
sobre ele.
Rory ficou tenso, porém logo relaxou pois percebeu que a
pessoa montava de lado e, portanto, tratava-se de uma mulher.
Continuou em frente até os animais ficarem flanco a flanco, e só
então a amazona se mexeu. Uma mão enluvada ergueu-se e
afastou o capuz da capa.
Carlotta sacudiu a cabeça e a cabeleira longa e loira espalhou-
se pelos ombros e costas. Ela não havia mudado nem um pouco e
parecia tão jovem como antes. A pele mostrava-se ainda delicada
e sedosa e os olhos escuros mantinham o mesmo brilho fogoso.
Rory não pôde impedir um sorriso.
— Eh, bien, meu irlandês esbelto, bonitão como sempre.
— E você, Carlotta, continua tão encantadora quanto,
segundo ouvi, venenosa.
— Ah, mon cher — murmurou ela em tom ofendido —, essa
não é a maneira de um cavalheiro cumprimentar uma senhora
com quem compartilhou momentos de intimidade!
— Muitas vezes, Carlotta, o passado distante cai no
esquecimento
— Rory afirmou, ansioso por tratar do assunto que o levara
ali.
A duquesa fez que não ouviu, encostou a montaria na dele e
enlaçou-o pelo pescoço.
— E assim, mon cher, que se saúda um antigo amante!
Tomado de surpresa, Rory não conseguiu impedi-la de o puxar a

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OS AVENTUREIROS

seu encontro e tomar-lhe os lábios num beijo opressivo e auda-


cioso. Podia sentir na boca o contato de sua língua possessiva e
seus seios apertados
— Ah, ela é, sem dúvida, a mais encantadora e habilidosa das
cortesãs, não concorda, irlandês?
Rory afastou os lábios dos de Carlotta e virou a cabeça. A
poucos passos, sem chapéu ou capa, estava o duque de La
Mardine. Ele havia trazido a montaria, sem fazer ruído algum,
pela retaguarda, até chegar bem perto enquanto a duquesa o
distraia com os lábios e o corpo. Tinha a espada desembainhada
e sorria com a expressão de crueldade de que Rory se lembrava
tão bem.
Furioso, Rory lutou para se desvencilhar dos braços de
Carlotta, o que conseguiu, mas não antes de ela escorregar a mão
pelo talabarte e segurar o cabo da espada.
— Lamento, mon cher — disse ela com um sorriso ao puxar a
arma para fora da bainha.
Em seguida, a duquesa esporeou o cavalo e se afastou.
"Isto não foi planejado para ser um duelo de cavalheiros e sim
um assassinato", Rory raciocinou. La Mardine não desejava en-
frentá-lo em pé de igualdade.
— Monsieur, já matei setenta e dois homens com esta lâmina.
No entanto, devo admitir que nenhum gemido de agonia ou der-
ramamento de sangue trouxe tanta alegria ao meu coração como
a que vou sentir esta noite ao trespassá-lo com a minha espada
— anunciou o duque.
Rory mal teve tempo de empunhar a adaga e aparar o golpe,
O embate da arma longa contra a curta ressoou estridente. Con-
tinuaram cruzando as lâminas até que os cabos se encontraram.
Afastaram-se um pouco e viraram os cavalos para iniciar novo
confronto.
— É apenas uma questão de tempo, irlandês. Vou me divertir
até matá-lo — La Mardine provocou.
Enfrentaram-se outra vez, porém com Rory menos
desprevenido. Conseguiu desviar a espada de La Mardine antes

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

de ser atingido por ela. Em seguida, inclinou o corpo para trás, o


que fez o impulso do outro forçá-lo a continuar em frente. Ao se
cruzarem, e na última fração de segundo, recuou. Passou sob a
arma de La Mardine ao mesmo tempo que, com sua força
descomunal, batia com o ombro na cintura do duque.
La Mardine perdeu o equilíbrio, caiu ao chão e O’Hara pulou
atrás. Tarde demais, pois havia subestimado a agilidade do ad-
versário. O duque já se erguia nos joelhos com a espada empu-
nhada. Rory nem acabara de levantar a mão quando sentiu a
lâmina enterrar-se em seu braço. O duque tentou soltá-la para
continuar o ataque, porém, com um grito de dor, Rory conseguiu
desvencilhar-se. Abaixou-se e pôs-se a procurar, freneticamente,
a adaga que derrubara ao ser ferido a fim de se defender de novos
golpes.
Mas não houve nova luta. La Mardine havia se levantado e
segurava as rédeas do cavalo. Por um breve segundo, Rory ima-
ginou que o homem ia fugir. Foi então que seu olhar caiu no
suporte das pistolas, preso à sela do animal.
De repente, teve a sensação de que ficava imóvel e o tempo se
estagnava. Viu-se jovem, sentado ao lado do padrinho e tutor,
The O’Donnell, as palavras do velho guerreiro ecoando em seus
ouvidos.
"Na guerra, meu rapaz, é a sobrevivência que importa. E, a
não ser a vitória, tudo o mais significa morte. Nenhuma fração
deve ser tomada ou dada!"
La Mardine segurou uma das pistolas pelo cabo é a puxou
para fora do suporte.
Rory se sentia calmo e em controle do corpo. A dor do braço
deixou de importuná-lo quando sacou a própria arma de fogo do
cinturão. Para não errar o alvo, firmou-a no cabo da adaga que
continuava enterrada em sua carne e atirou.
A bala atingiu o duque bem no meio do peito. Ele parou, com
olhar estarrecido, e, incrédulo, viu o círculo vermelho se alargar
na camisa imaculadamente branca.
Quando ele levantou os olhos e cambaleou para a frente,

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OS AVENTUREIROS

O’Hara já empunhava a segunda pistola. O outro projétil


enterrou-se à esquerda do primeiro e La Mardine morreu antes
mesmo de cair aos pés de Rory.
Atordoado e com os movimentos entorpecidos como se
estivesse sob o controle de outra pessoa, O’Hara arrancou a
adaga do braço e a jogou sobre o corpo do duque. Virou-se e,
piscando os olhos fim de dissipar a névoa formada neles,
caminhou em direção seu cavalo.
Carlotta apareceu e, com movimentos graciosos, passou pelo
marido sem nem ao menos olhá-lo. Abraçou Rory e levantou o
rosto sorridente onde os olhos escuros continuavam a brilhar
com sensualidade.
— Ao vitorioso, os despojos — murmurou ela.
Rory a esbofeteou nas duas faces com toda a força que lhe
restava no braço ferido. Foi, então, invadido por uma dor atroz
que o fez cair de joelhos enquanto sua voz quebrava o silêncio do
campo com gemidos agoniantes.
Como o príncipe de Gales era protestante, seu casamento com
Henrietta Maria, embora por procuração, pois ele ficara na Ingla-
terra, não podia ser realizado no interior de uma igreja católica.
Assim sendo o longo cortejo nupcial acompanhado pelo som
de cem trombetas, passou por galerias onde se aglomerava uma
grande multidão, vindo do palácio do arcebispo para a porta
oeste da catedral de Notre Dame. Lá, a longa fila de cortesãos
regiamente vestidos parou nos degraus onde se realizaria a
cerimônia.
Encabeçando a procissão, vinha a guarda da princesa coman-
dada pelo capitão escolhido por Richelieu, Rory O’Hara. Ouviam-
se exclamações de admiração pela elegância das túnicas
vermelhas, com mangas bufantes e uma cruz prateada
adornando o peito. Os talabartes para as espadas, bem como a
proteção côncava sobre o cabo destas, eram de ouro.
Atrás da guarda vinham duzentos mosqueteiros do rei, com
os elmos abertos e os escudos de prata encantando os
espectadores. Eles marchavam com perfeição ao som das

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OS AVENTUREIROS

trombetas e seus mos-quetes e lanças alinhavam-se em harmonia


geométrica.
As damas de honra à volta da futura princesa de Gales e
rainha da Inglaterra pareciam formar um mar ondulante com
suas capas de veludo preto e roxo e vestidos vermelhos e
dourados com recortes elegantes que mostravam anáguas de
cetim azul-celeste.
No centro do círculo formado pelas damas e entre os dois
irmãos, o rei Luís XIII e Gaston, o duque de Orleans, vinha
Henrietta Maria, criatura de silhueta delicada e pele morena. Seu
vestido de noiva era de tecido caríssimo, de prata e ouro,
adornado com minúsculas flores-de-lis de renda dourada e
diamantes no centro de cada uma.
Rory O’Hara conduziu os guardas sob seu comando, com
orgulho, até os degraus onde eles se separaram em duas fileiras.
Observou quando o rei Luís entregou a mão da irmã ao velho
duque de Chevreause, o representante do príncipe Charles.
Lembrou-se dos suspiros de alívio dados por todos na corte
quando ficaram sabendo que o duque de Buckingham não
poderia assumir essa incumbência.
Por causa de suas maneiras e procedimento em Paris durante
os últimos dias das negociações do casamento, ninguém desejava
vê-lo de volta.
Ele chegara a um baile vestindo uma capa que lhe chegava aos
pés, bordada com fieiras de pérolas. A linha que as prendia
rompera-se por ser fina demais e cortesãos abaixaram-se pelo
chão à cata da preciosidade avaliada em mais de cem mil libras.
Buckingham rira divertido e alguém o ouvira comentar que
ninguém na corte de Londres se daria ao trabalho de se arrastar
pelo chão à procura de ninharias.
Em apenas duas semanas, Buckingham havia se antagonizado
com toda a corte francesa e, acima de tudo, com o próprio rei. No
seu primeiro encontro com a rainha Anne, ele tentara
deslumbrá-la com atenções exageradas. Como o rei quase sempre
a ignorasse, a pobre mulher se sentira fascinada.

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OS AVENTUREIROS

Ao pressentir a conquista, Buckingham resolvera ir ainda


mais longe. Depois de uma recepção, ao ar livre, oferecida em
sua homenagem em Amiens, o duque tivera a audácia de entrar
nos aposentos particulares da rainha.
Embora o rei não ligasse muito para a esposa, seu senso de
realeza ficava ofendido quando outro homem o fazia,
especialmente de maneira tão aberta e indecorosa. Através de
Richelieu, Buckingham tinha sido convidado a deixar o país e a
não mais voltar.
"E esta é a situação que vou enfrentar na Inglaterra", Rory
pensou preocupado.
O rei James havia morrido, porém a coroação do filho como
Charles I traria poucas modificações. Buckingham continuaria
sendo o cortesão favorito.
O olhar de Rory deixou a silhueta da noiva, que, ajoelhada
diante do cardeal Rochefoucault, recebia a bênção nupcial, e fi-
xou-se na dama de honra mais influente e importante de
Henrietta Maria, a duquesa de La Mardine. Sentiu um gosto
amargo na boca ao lembrar-se da noite, quase dois meses atrás,
em que fora aos campos além da outra Notre Dame, e o
desconforto aumentou ao pensar no encontro subseqüente
ocorrido dois dias depois.
Ele tinha sido chamado ao apartamento de Richelieu a fim de
receber o encargo de capitão da guarda. Nessa mesma ocasião, o
cardeal, satisfeitíssimo com a morte de La Mardine, havia
assinado a ordem de clemência para René De Gramont.
— Muitíssimo obrigado, Eminência — Rory dissera com
sinceridade profunda.
— Não me agradeça. Não foi através de meus atos que uma!
outra cabeça caiu em lugar da desse tolo.
Na mente de Rory não existia dúvida alguma a que cabeça d
cardeal se referia. Então, Carlotta aparecera saída da pequena
capela ao lado. Exibia um exagerado vestido vermelho de cetim e
não o luto que deveria usar.
— Madame Ia duchesse acompanhará a comitiva nupcial à In-

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glaterra como chefe das atividades domésticas da nova rainha —•


o cardeal informara com naturalidade.
Não fora a expressão de Richelieu nem o sorriso de triunfo de
Carlotta que fizeram Rory adivinhar a verdade.
— Eminência, o que teria feito se eu tivesse recebido a bala
fatal em vez de La Mardine? — Rory indagara irônico.
— Havia tempo ainda. Alguém mais apareceria. A estrada do
poder, meu amigo irlandês, muitas vezes, é pavimentada com ve-
lhos laços.
A sua frente, a cerimônia terminava, o que lhe trouxe o pen-
samento de volta ao presente. Todos, exceto os protestantes in-
gleses, começaram a entrar na igreja para assistir à missa nupcial.
De repente, Carlotta se aproximou enquanto esperava a vez de
juntar-se ao cortejo.
— Ah, meu irlandês bonitão — murmurou-lhe ao ouvido. —
Como nos divertiremos juntos do outro lado do mar!

CAPITULO XXX

INGLATERRA

Desesperada, Brenna lançou mão de todos os recursos de que

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OS AVENTUREIROS

dispunha a fim de melhorar a situação em que se encontrava.


Escreveu cartas a todos na corte que, imaginava, dessem ouvidos
à sua história. Sabia poder contar com a simpatia de várias
pessoas, no entanto ninguém se atreveu a enfrentar a ira de
Buckingham ou a sobrepujar os esquemas de sua mãe
voluntariosa.
Quando se tornou evidente que cartas não a ajudariam,
Brenna dirigiu-se pessoalmente a Whitehall, onde foi humilhada
como nunca o fora antes em sua vida: negaram-lhe entrada à
Câmara do Conselho, em frente a pessoas desclassificadas como
jogadores, prostitutas e almofadinhas sem títulos de nobreza, a
viscondessa Poole, esposa de um dos pares do reino, foi
rechaçada não pelo rei ou nem mesmo pelo duque, mas por um
simples pajem.
Ao caminhar pela Strand e subir a colina em direção a
Holborn, o estado de espírito de Brenna não era mais de
desespero e sim de depressão absoluta. Uma viscondessa que
havia se casado com um dote de cinqüenta mil libras e um
estipêndio anual de outras três mil não tinha dinheiro nem para
alugar uma carruagem, pois todos os seus bens estavam sendo
controlados pela família Villiers. O aspecto da cidade refletia seu
desânimo. Não mais se ouviam os gritos estridentes de
vendedores ambulantes e, mesmo que contasse com os meios
para pagar seu transporte, teria sido difícil encontrar até mesmo
uma carroça.
Esse ano de 1625 tinha começado de maneira estranha. Em
janeiro, o tempo estivera bom, quase quente, todavia, em
fevereiro, tornara-se extremamente frio, com marés altas e
prenhes, de mau agouro. Elas provocaram inundações em ruas,
destruíram casas e chegaram a invadir Westminster Hall, que
ficara com quase um metro de água em suas dependências.
Agora em março, tanto o frio como a chuva continuavam
impiedosos e a neblina cobria ruas e casas como uma mortalha.
A água empoçada dificultava a caminhada e em cada cinco casas,
por onde passava, uma tinha a cruz vermelha pintada na porta.

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OS AVENTUREIROS

Embora ainda fosse um pouco cedo, a peste e seu primo alemão,


o tifo exantemático, já faziam a visita anual à população de
Londres.
Quando chegou a Hatton House, Brenna estava gelada até os
ossos, pois suas roupas e seus sapatos encontravam-se encharca-
dos. Elizabeth a levou imediatamente para a cama e a obrigou a
tomar uma boa porção de caldo quente de carne de carneiro.
Pela sua tristeza, era fácil concluir-se o que se havia passado
em Whitehall. Devagar, lady Hatton conseguiu arrancar da filha
a história completa da afronta recebida.
— Este é o mundo em que vivemos agora. E por isso que con-
cordo cada vez mais com sir Edward e o Parlamento. Eles que
deveriam governar, e não o rei - Elizabeth declarou.
Brenna, com as feições tensas, recostava-se em numerosos
travesseiros de pena.
— Não é o rei quem governa, e sim milorde Buckingham. Isso
me deixa bem confusa. O homem possui praticamente a
Inglaterra inteira, por que, então, quer se apossar dos meus
poucos bens assim como dos seus também?

— Minha querida, quando vai entender que eles nos odeiam?


As pessoas de origem humilde, ao alcançarem uma posição supe-
rior, esforçam-se por devorar as de estirpe nobre como nós, espe-
cialmente se nos encontramos sujeitas ao poder delas.
— É só isso que existe? — Brenna indagou, exaltada. — Ódio,
desconfiança, ganância, ambição? Nossas vidas se resumirão
sempre a essas coisas?
— Infelizmente, sim — Elizabeth respondeu com calma. —
Se é que desejamos sobreviver.
Por dois dias, Brenna ficou de cama, com febre e tosse. Na
manhã do terceiro, acordou bem, o sol brilhava e os sinos das
igrejas tocavam desde Londres até Westminster. Elizabeth apa-
receu no quarto acompanhada de uma criada com a bandeja do
café da manhã.
— Está um dia lindíssimo, maravilhoso! — lady Hatton excla-

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OS AVENTUREIROS

mou sorridente e com expressão feliz ao mesmo tempo que abria


as cortinas.
— Está mesmo — Brenna concordou animada com o bom
humor da mãe.
— O nosso bom rei James foi recompensado pelo seu
governo glorioso.
— O que quer dizer com isso?
— Ele morreu.
Brenna não conseguiu tocar no alimento, mas não por causa
da morte do rei, e sim pelo olhar de pura alegria da mãe ao lhe
dar a notícia.
A peste tomava conta da cidade e as pessoas começavam a
deixá-la. Partiam para o campo valendo-se de qualquer tipo de
transporte e, quando não encontravam nenhum, seguiam a pé
mesmo. Não se ouvia mais o ruído de uma única carruagem ro-
dando nas pedras do calçamento e no Tâmisa não se achava
barco algum de aluguel.
Da janela, Brenna podia ver as pessoas de luto acompanharem
as carroças com os caixões dos parentes mortos. Para não
contrair a peste, elas haviam enchido as narina e os ouvidos com
arruda e losna.
Agora, em vez de uma em cinco casas, ruas inteiras estavam
assinaladas com a cruz vermelha. A corteja tinha ido para o norte
o lady Hatton preparava-se a fim de ir a Bristol e, de lá, até o
castelo de Corfe. Insistiu com Brenna para acompanhá-la.
— Não, mamãe prefiro ficar aqui em Hatton House. De
Corfe, nos dias claros, eu poderia ver Poole House do outro lado
da baía. Essas lembranças quero esquecer.
— Ninguém de posição social alta vai permanecer nesta
cidade infestada pela peste. Vá já arrumar suas coisas
— Elizabeth ordenou, peremptória.
Inflexível também, Brenna respondeu:
— Concordo com você mamãe, nenhum nobre ou pessoa
importante vai ficar em Londres, por isso é bom você ir logo. Boa
viagem.

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OS AVENTUREIROS

Sem outra alternativa, lady Hatton partiu acompanhada dos


criados, mas deixou três a serviço da filha.
Brenna passava os dias nos jardins da casa e à noite sentava-se
à janela do quarto, com o olhar perdido pelo casario de Londres e
o Tâmisa mais além. O silêncio aterrador da cidade só era que-
brado pelo chocalhar das carroças dos mortos e pelos gritos dos
cocheiros vestidos de preto.
— Mortos, entreguem seus mortos!
Brenna ficou sabendo por uma das criadas que os corpos não
estavam mais sendo enterrados em covas individuais, e sim em
valas comuns. Esse era o último recurso que restava aos pobres
de Londres. Morriam poucas pessoas de posses, pois a maioria
tinha fugido.
Pela primeira vez na vida, Brenna sentiu afinidade com essa
gente miserável, escondida atrás de portas cerradas e iluminada
pelas labaredas dos fogos acesos para espantar a peste. Ela
passara a fazer parte da classe pobre.
Brenna escrevia mais uma carta a Raymond, que ele jamais
receberia, quando foi acometida pela náusea. A principio, não
deu importância, porém ela piorou. Quando começou a sentir
febre e uma fortíssima dor de cabeça, foi para a cama.
As criadas cuidaram dela sem preocupação, imaginando que
se tratava de uma recorrência da febre anterior. Contudo, ao
aparecerem dores reumáticas e tensão muscular, elas se
amedrontaram e, quando Brenna começou a delirar e manchas
escuras surgiram em sua pele, entraram em pânico.
Era impossível deixar a cidade, por isso enviar uma mensagem
a lady Hatton estava fora de cogitação. Embora trabalhassem ali
há pouco tempo, sabiam da animosidade existente entre a dona
da casa e sir Edward. Aliás, ele estava proibido de entrar em
Hatton House. Mesmo que o chamassem, as criadas duvidavam
que o homem viesse, pois sabiam do tratamento dispensado à
filha no passado.
Passaram-se mais dois dias durante os quais elas penduraram
maços de folhas verdes diversas nas paredes e saquinhos com

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OS AVENTUREIROS

substâncias aromáticas no dossel da cama com intuito de


perfumar o ar. Na lareira, queimavam, dia e noite, hortelã,
tomilho e arruda secos. O odor desses remédios antigos
impregnou tanto o ambiente que a respiração ali tornou-se
difícil.
A febre aumentou e o delírio tornou-se histérico. Finalmente,
uma das criadas foi até a Sergeanfs Inn, a hospedaria onde sir
Edward morava.
Avisado do estado de Brenna, ele chegou a Hatton House em
menos de uma hora, o que não deixou de provocar uma certa
admiração.
— Suas tolas, ela está com tifo — o velho causídico gritou,
irritado. — Tirem esse lixo do quarto e abram as janelas para
entrar ar fresco.
Com a mesma energia dispensada aos discursos contra o go-
verno, Coke tomou conta da situação. As ordens dele eram dadas
em voz severa e as criadas corriam para obedecê-las.
Toda a roupa de cama e outras com que Brenna houvesse tido
contato foram levadas ao pátio para serem fervidas em grandes
tachos. Enquanto isso, o corpo da doente foi lavado com esponjas
embebidas em vinagre, substância também usada na limpeza de
todos os objetos do quarto. A noitinha, ela dormia com uma ca-
misola limpa e em lençóis imaculados. O quarto também ficara
impecável e o ar tornara-se respirável novamente. Além das me-
didas sanitárias, sir Edward colocou compressas frias na testa da
filha a fim de baixar a febre.
Na verdade, ele havia feito tudo que estava a seu alcance e
agora restava apenas esperar. Trouxe um cadeira para perto da
cama e sentou, cansado. Perto da meia-noite, Brenna entreabriu
os olhos e murmurou:
— Papai?
— Descanse menina. Nunca fiquei muito a seu lado, porém
agora estou aqui.
Nos dias que se seguiram, sir Edward não deixou o lado da
cama de Brenna, embora fosse idoso e sofresse de gota.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

Ficou surpreso ao descobrir que as três criadas tinham fugido


assustadas, porém enfrentou a situação. Levou utensílios da co-
zinha ao quarto adjacente ao de Brenna e, num caldeirão pendu-
rado sobre o fogo da lareira, ele passou a fazer sopas
substanciosas.
Dia e noite, de maneira incansável, Coke cuidava da filha. Às
vezes, ela acordava lúcida e, ao ver a cabeça grisalha do pai
pender cansada sobre o peito, estendia a mão e tocava a dele. Sir
Edward acordava no mesmo instante e a fitava.
— O que foi, menina?
— Nada. Durma, você parece exausto.
Porém, quase o tempo todo, Brenna desvairava não só acor-
dada como dormindo. Foi através de suas palavras agitadas que
sir Edward descobriu sua paixão pelo irlandês, Rory O’Hara.
Rubro de constrangimento, ele ouviu os mais íntimos detalhes
sobre o relacionamento amoroso e as razões pelas quais ele
terminara.
Inteirou-se ainda da vida infernal que ela e o marido levavam.
Quando Brenna, preocupada com o destino de sua alma,
começou a rezar pedindo perdão por nunca ter permitido a
consumação do casamento, sir Edward não resistiu e deixou o
quarto enquanto as lágrimas corriam-lhe nas faces.
— Não é culpa da menina — disse a si mesmo. — Nesse
ponto é igualzinha à mãe e por isso a história se repetiu.
Com bastante lentidão, Brenna foi se recuperando. Já fazia
dois dias que não tinha febre quando as manchas características
de enfermidade apareceram no rosto e nas mãos de Coke.
E foi assim que sir Raymond Hubbard os encontrou: Brenna
acordada, porém sem forças para levantar a mão, e sir Edward,
ardendo em febre, enquanto dormia na cadeira ao lado da cama.
Correu até ele e segurou-o por sob os braços. Coke acordou, es-
tremeceu e, assustado, fitou o intruso.
— O senhor teria coragem de morrer a fim de salvar alguém
que vendeu sem hesitação? — Raymond indagou baixinho.
— Se soubesse que a estava vendendo a um louco, teria

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

pensado melhor.
— Em todos nós, sir Edward, existe algum traço de loucura,
mas nem todos são capazes de dominá-la como o senhor. Sabe
onde há uma outra cama onde possa deitá-lo?
Por não ter forças para argumentar, Coke apontou o caminho
para um quarto próximo. Lá, Raymond o despiu e aplicou o
mesmo tratamento com vinagre que havia sido dispensado a
Brenna. Já ia sair quando sir Edward o chamou.
— Vai cuidar dela?
— Da mesma forma com que o senhor fez, isto é, desta vez.
Vamos esperar, sir Edward, que Brenna nos perdoe por nossas
fraquezas. Talvez, juntos, consigamos fazê-la viver.
Raymond estava satisfeitíssimo. A cor começava a voltar ao
rosto de Brenna e as olheiras não eram mais tão profundas e
escuras como antes. Ela já conseguia se alimentar sozinha e con-
versar um pouco.
— Não sabia que você dominava a arte da culinária —
Brenna brincou, bem-humorada. — Como aprendeu a cozinhar?
— Graças a ter passado mais tempo solteiro do que casado —
respondeu ele.
Brenna corou e, mudando de assunto, indagou pelas últimas
novidades.
— Depois da morte de James, meu primo percebeu que não
seria aconselhável me manter isolado por mais tempo. Além do
mais, minha amizade com Charles continua intata.
— O rei foi sepultado?
— Foi, sim. Como muitos outros, assisti à cerimônia por cu-
riosidade e não por tristeza. Aliás, não vi uma lágrima sequer.
— Mas foi um funeral digno de um rei, não foi?
— Sem dúvida. Dizem que Charles gastou cinqüenta mil
libras para enterrar o pai. O discurso foi feito pelo bispo
Williams, que falou durante horas sobre a sabedoria de Salomão
e a do rei James. Acredito que ninguém aceitou a comparação.
Brenna estendeu á mão e tocou a de Raymond.
— Não gosto de me sentir feliz pela morte de alguém, mas

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

talvez agora, com um novo rei, nós dois possamos levar uma vida
mais normal.
O rosto de Raymond se anuviou. Ela percebeu e indagou:
— Qual é o problema?
— Tenho medo, Brenna, de que o nosso Charles I, como o pai,
já possua mais poder do que bom senso.
Apesar da idade avançada, sir Edward recuperou-se logo da
febre, graças não só à sua constituição forte como também aos
cuidados dispensados por Raymond, o visconde Poole.
Assim que ele se viu com forças suficientes para voltar à hos-
pedaria carregado numa pequena Iiteira, tornou-se irritante e
iras-cível como antes.
— Mandei avisar o Dr. Weymouth para vir vê-lo na
hospedaria — Raymond informou.
— Pois eu o mandarei embora imediatamente. Desde que
nasci, nunca sofri uma sangria ou fui examinado, Essas são as
duas únicas coisas que os médicos sabem fazer, pois não passam
de charlatões. Eu curei Brenna e você me curou, e não médicos.
Eles não passam de necromantes com malinhas pretas.
— Sir Edward...
— Ouça aqui, meu rapaz, nem todas as drogas da Ásia, o
ouro da África e os médicos da Europa poderão me curar da
enfermidade que acabará me matando: velhice.
Raymond sacudiu os ombros e afastou-se da Iiteira onde sir
Edward já se acomodara.
— Vamos embora depressa! — gritou Coke. — Fiquei tempo
demais longe de meus livros.
A recuperação de Brenna foi bem mais lenta. Todavia, aos
poucos, ela começou a ganhar parte do peso perdido e o brilho
dos olhos retornou. Uma noite, ao entrar no quarto, Raymond a
encontrou fora da cama, respirando fundo perto da janela. Parou
abrupto quando sentiu no corpo o despertar da velha carência.
— As fogueiras da peste estão bem baixas e o vento está
levando embora a fumaça — disse ela sem se virar.
— E um alívio respirar ar puro e sem cheiro de morte.

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OS AVENTUREIROS

— Tem razão — concordou ele, hipnotizado pelas curvas de


seu corpo delineadas sob a camisola e o robe finos.
— Porém, não abuse. Ainda não se encontra tão forte como
pensa.
Brenna se virou e Raymond quase derrubou a bandeja em que
trazia o jantar. Ela havia passado um pouco de ruge nas faces,
carmim nos lábios e sombra nos olhos. Tinha ainda escovado os
cabelos, que afastara da testa, prendendo-os para que caíssem ao
longo das faces. Nunca a vira tão linda, e a paixão erótica do
momento anterior desapareceu para dar lugar ao encantamento
e à adoração provocados por essa visão.
— O resultado foi muito assustador? — brincou ela sem que-
rer fitá-lo.
— De forma alguma, você está muito bonita.
De repente, a cena tornou-se constrangedora para ambos.
— Vamos jantar — disse ele numa tentativa de imprimir na-
turalidade ao ambiente.
— Enquanto comemos, vou lhe contar as últimas novidades.
Brenna fez cara de desagrado enquanto se sentava e abria o
guardanapo no colo. Só então notou a comida.
— Raymond, onde conseguiu tudo isso?
— Fui ao campo hoje de manha. Veja só, vitela, legumes,
queijo, morangos e vinho — disse ele, orgulhoso.
— Uma refeição digna de uma rainha!
— Pelo menos de uma viscondessa — Raymond replicou e
serviu o vinho.
Por algum tempo, comeram em silêncio, admirados com o
apetite que os dominava.
— Está tudo delicioso! Obrigada, milorde.
— De nada, milady — respondeu ele com um sorriso.
Já comiam os morangos quando Brenna sentiu uma pontada
de remorso.
— Raymond, morreu muita gente?
— Dizem que milhares, e o número continua crescendo.
— Todo o ano a peste aparece e mata tanta gente! Acho que

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

essa é a maneira de Deus nos castigar por nossos pecados.


De maneira impulsiva, Raymond estendeu a mão e tomou a
sua. Com voz meiga, replicou:
— Nesse caso, nós dois devemos ser inocentes, já que
sobrevivemos.
Fitaram-se, mas apenas por uns segundos. Embaraçado, Ray-
mond baixou o olhar e retirou a mão da sua. Brenna notou que
ele corava.
— Que estranho, só agora percebi que você raspou a barba e
o bigode. Por quê?
O rubor de Raymond se acentuou e ele curvou a cabeça. Foi a
vez de Brenna tomar-lhe a mão para, em seguida, insistir para ele
falar.
— Por quê, Raymond?
— Quando eu era menino — começou ele com voz incerta
—, minha irmã mais velha, uma vez, me fez passar a mão pelo
seu rosto e depois me disse: "Veja como é macia a pele de uma
moça". Então, explicou que se eu desejasse ser um cavalheiro fino
e admirado pelas mulheres deveria tomar cuidado com a minha
barba. Segundo ela, as senhoras delicadas não gostavam de sentir
aspe-reza nas faces.
— E por isso você se barbeou? — Brenna perguntou
esforçando-se para não sorrir.
— Isso mesmo. Bem, está na hora de você voltar para a cama
e de eu arrumar tudo isto aqui.
Raymond empilhou as louças na bandeja e, quando já ia sair,
Brenna lhe pediu:
— Assim que acabar tudo lá embaixo, você vem me dar boa-
noite, Raymond?
— Venho, sim — prometeu ele e saiu depressa.
Brenna despiu o robe e caminhou até a janela. Enquanto
admirava o luar sobre os telhados do casario de Londres, sentiu o
coração se encher de paz e felicidade como há muito tempo não
lhe acontecia. Tanta coisa difícil de ser suportada tinha-lhe
amargurado a vida. Graças a Deus, ela e o pai já estavam bons e

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OS AVENTUREIROS

até Raymond parecia ter se recuperado da melancolia que o


atormentava.
Respirou fundo o ar estimulante da noite e jurou a si mesma
esforçar-se ao máximo para que o resto de sua vida fosse cheio de
amor e felicidade. Ouviu a batida leve de Raymond na porta e
convidou:
— Entre.
Brenna virou-se da janela ao mesmo tempo que o marido en-
trava no quarto. O luar varava o tecido fino da camisola
revelando as formas bem-feitas de seu corpo e a luz bruxuleante
da vela dava-lhe um brilho de alabastro nas curvas do rosto.
Devagar, ela levantou os braços e deixou a camisola cair no chão.
Raymond, quase sem respirar, contemplou a nudez adorável
de sua mulher.
Não trocaram palavras e nenhuma foi necessária. Os olhos
dele devoravam cada movimento seu, cada reflexo da pele
enquanto ela se dirigia para a cama.
Uma vez lá, levantou a vela até que a chama tremeluzente
dançasse sobre seus seios e então assoprou-a. A tonalidade de
sua pele transformou-se de um dourado incandescente para o
misterioso azulado do luar.
Raymond, incapaz de se mexer, viu-a se deitar e não se
importar em cobrir o corpo lindo e nu.
— Venha deitar-se ao meu lado, Raymond — Brenna
murmurou batendo de leve com a mão na cama.
— Brenna, eu...
Ela estendeu os braços num convite gracioso. Com passos in-
certos, Raymond foi se aproximando até que os dedos de ambos
se tocaram.
— Você está com medo de mim, de nós dois, Raymond?
— Acho que estou — respondeu trêmulo.
— Eu também.
Brenna tomou-lhe o rosto entre as mãos e o beijou com suavi-
dade nos lábios até senti-lo relaxar.
— Ah, Brenna, minha querida e lindíssima Brenna!

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OS AVENTUREIROS

Muito tempo depois, com a cabeça sobre o braço de


Raymond, Brenna pensou consigo mesma: "Agora posso dizer
que fui verdadeiramente amada por dois homens. Finalmente, o
casamento do visconde e da viscondessa Poole se consumou".

CAPITULO XXXI

FRANÇA

O cortejo da nova rainha da Inglaterra deixou Paris numa


ensolarada manhã de maio. Com a guarda à frente e o séquito
logo atrás, Henrietta Maria seguia por entre as aclamações da
multidão numa liteira de veludo vermelho puxada por duas
mulas. Os arqueiros, guildas e trompetistas de Paris contribuíam
para a pompa da procissão, dando-lhe mais cor e brilho. Até as
mulas ostentavam mantos vermelhos com egretes.
Na ponte St. Denis, o contingente parisiense retornou à
cidade e a rainha passou da liteira para uma magnífica carruagem
puxada por quatro cavalos. A comitiva real iniciou, então, a
viagem rumo a Boulagne, passando por Amiens. Em cada
cidadezinha ou vilarejo havia paradas, representações e
espetáculos de fogos de artifício que deviam ser assistidos.
Levariam mais de quinze dias para alcançar solo inglês e mais
uma semana até chegarem a Londres. A frente da coluna, Rory
O’Hara cavalgava elegante com as botas altas, o alegre chapéu
emplumado e a vistosa capa que se ondulava sobre as ancas da
montaria. Todavia sua expressão mostrava-se séria e preocupada.

Finalmente, estava a caminho da Inglaterra e ansiava por


chegar logo, por isso as perspectivas de demora afetavam seu
estado de espírito.
Contudo, as razões para atrasos eram justificáveis. A maioria
dos camponeses e fazendeiros nunca tinha visto um membro da
família real. Agora surgia a oportunidade de contemplarem reu-
nidos a rainha de França, Anhe; a rainha-mãe, Maria de Médicis;

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OS AVENTUREIROS

a nova rainha da Inglaterra e Gastan, o duque de Orleans,


herdeiro legitimário do trono francês.
Na primeira noite, pararam em Chantilly, onde o castelo do
duque de Chatelet havia sido preparado para recebê-los.
O jantar servido no amplo gramado do jardim foi
acompanhado por uma representação alegórica e uma exibição
de fogos de artifício. Como capitão da guarda pessoal da rainha,
O’Hara era obrigado a permanecer em pé, às suas costas o tempo
todo. Estava exausto, porém a compaixão sentida pela delicada
jovem de cabelos escuros e sob sua proteção sobrepujava o
cansaço. Os grandes bailes e outras festividades que por um mês
antecederam a cerimônia de casamento a haviam deixado quase
entorpecida e um tanto indiferente ao que se desenrolava ao
redor.
Ao vê-la fechar os olhos e cambalear a cabeça, Rory imediata-
mente deu um passo a seu lado.
— Vossa Majestade?
— Sim? — Henrietta Maria respondeu ao mesmo tempo que
piscava desesperada e tentava concentrar a atenção.
Num tom de voz não muito alto, mas o suficiente para ser
ouvido pelos convivas mais próximos, ele informou:
— Majestade, o seu cachorrinho de estimação, Pepe, não
passa bem. Parece que comeu algo indigesto.
— Ah, que pena! Preciso ir vê-lo. Desculpem-me todos.
Não houve expressões de desagrado, pois ninguém ignorava o
quanto Henrietta Maria gostava de seus quatro cãezinhos.
Amparada pelo braço de O’Hara e seguida pelas damas de
honra, a rainha se dirigiu a seus aposentos. No caminho,
levantou o olhar e o fitou.
— Espero, capitão, que ao chegar em meu apartamento, Pepé
já tenha se recuperado milagrosamente.
— Na verdade, Majestade, ele já está bom.
— Obrigada, capitão. A cada dia que passa, respeito mais a
escolha de monsieur le cardinal dos líderes da comitiva.
Rory não agira apenas em benefício da rainha, mas dele tam-

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OS AVENTUREIROS

bém. Enchia-se de tédio com as festividades e tanto o corpo


como a mente necessitavam de um repouso restaurador. No
quarto, livrou-se logo do chapéu, da capa e da espada. Em
seguida, chamou o ajudante de ordens e valete.
— André? Ei, André, venha tirar minhas botas. Quero me
deitar. Maldição, onde você se meteu?
Serviu uma dose de conhaque e sentou-se numa poltrona
confortável, com os olhos fechados. Percebeu quando lhe
levantaram uma das pernas e tiraram a bota. Antes que fizessem
o mesmo com a outra, sentiu um perfume forte. Atônito,
arregalou os olhos.
— Carlotta! Como...
— Parece que André está apaixonado, há várias semanas, por
Isabelle, minha criada.
— O idiota! — Rory sibilou pondo-se de pé.
Mal tinha dado um passo em direção à porta quando Carlotta
lhe bloqueou o caminho e abraçou-se a ele.
— Nunca esqueci aquela noite distante — disse ela.
— Pois eu, sim.
O sorriso nos lábios vermelhos se alargou com a resposta
dele. A duquesa aproximou-se mais até que os seios lhe roçassem
o peito. O perfume intoxicaste tornou-se provocativo e, por mais
que tentasse, Rory não conseguia afastar os olhos do decote exa-
gerado. Carlotta percebeu e respirou fundo para que os seios se
erguessem mais.
— Então já é tempo de despertar sua memória. Continua
ainda com a potência de um touro, irlandês?
Puxou-o pela cabeça até que os lábios se encontrassem. A
mente de Rory anuviou-se sob a sensação agradável provocada
por aquele corpo de saliências e reentrâncias tentadoras que se
amoldava ao seu. Passou-lhe os braços e apossou-se das nádegas
firmes com as mãos enormes enquanto recebia a língua que
forçara para entrar em sua boca.
"Um beijo tão doce como o mel", pensou ele, "ou como o
néctar provado por Adão ao dar a primeira mordida na maçã."

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OS AVENTUREIROS

Com agilidade, ele a ergueu no colo. — Isso, meu amante! —


Carlotta sussurrou-lhe, ao ouvido.
— Quero que me possua como o animal de que me recordo
tão bem! — acrescentou com os olhos fechados.
De repente, ela se viu em pé, do lado de fora da porta.
— O animal, madame Ia duchesse, foi domado.
— Seu idiota! Camponês estúpido! Vai se arrepender, seu ir-
landês atrevido!
Rory bateu a porta e a trancou.
"Sim, provavelmente vou me arrepender", pensou ele ao
arrancar a roupa e se atirar na cama. "Na verdade, já estou
começando, Carlotta, porém não pelas razões que você pensa."
Na manhã seguinte, duas pessoas apresentaram-se com
expressão de raiva e mau humor: Carlotta, rumo a Amiens, e
André, o ajudante de ordens de Rory, de volta a Paris.
Finalmente, depois de cinco dias em que as festas e demons-
trações de apreço retardavam a viagem, o cortejo real chegou a
Amiens, onde o esperavam os lordes Holland e Carlisle, que o
acompanharia a Boulogne e na travessia do canal.
Ainda no pátio, começaram a ser trocadas saudações em que
se sobressaiam curvaturas e o beija-mão. De súbito, o alarido fes-
tivo aquietou-se de maneira estranha. O’Hara seguiu os olhares
de todos em direção à entrada do castelo e não pôde refrear uma
exclamação irada.
No topo da escadaria, com um gibão branco adornado por
pétalas presas por fios de ouro e uma capa regia de arminho,
postava-se George Villiers, o duque de Buckingham.
Não havia dúvida de que o tratado surgido da aliança
matrimonial já corria perigo. Por desafiar o edito do rei Luís que
o proibia de pôr os pés em solo francês, o duque podia arrasá-lo
completamente.
O corpo alto e esbelto de Buckingham desceu os degraus
numa postura de rei. Os lábios sensuais e cruéis desmentiam o
encanto das feições bonitas enquanto ele cumprimentava as
senhoras da família real.

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OS AVENTUREIROS

Ele se ajoelhou em frente à rainha Anne de França e segurou-


lhe ambas as mãos. Seus olhos atraíam os dela como imãs e
tornava-se óbvio a Rory, e a todos, o que eles transmitiam. Na
expressão de Buckingham podia-se ver com clareza o desejo cru e
lascivo.
Rory se virou e deu com Carlotta a seu lado. Ela o observava
com olhar calculista que parecia dizer: "Touché, monsieur
Virlandais!"
Só então ele se lembrou de tê-la visto durante muito tempo
em atitude de conversa confidencial, na carruagem da rainha
Anne. Era claro que Carlotta tinha sido o canal por onde haviam
tramitado as mensagens entre a rainha e o duque, preparando o
caminho para a chegada de Buckingham.
"Cuidado, Carlotta", Rory ponderou. "No seu desejo de an-
gariar o beneplácito real, um dia poderá ir longe demais com
suas tramas!"
A rainha-mãe, Marie de Médicis, queixou-se de dores no
corpanzil causadas pelo sacolejar da carruagem. Conseguiu
convencer Henrietta Maria a ficar dois dias a mais em Amiens
antes de prosseguir viagem para Boulogne. Todos ficaram
satisfeitos, mas ninguém mais do que Buckingham. Contudo,
para Rory O”Hara, a permanência ali por dois dias além do
planejado significava a perspectiva de problemas.
A comitiva real e todos os seus membros constituíam respon-
sabilidade sua. Ele sabia da fraqueza da rainha Anne, cujos olhos
brilhavam como faróis todas as vezes que fitavam um cortesão
atraente. Até ele mesmo já havia sido alvo, várias vezes, de
olhares sedutores por parte dela.
"Maldito Luís por ser um idiota", pensou irritado. "Já que não
leva a mulher para a cama, deveria trancá-la a chave."
A alegria e o abandono da corte aumentaram longe de Paris e
a notícia da estadia de quatro dias em Amiens envolveu a todos
numa onda de alvoroço. Em questão de horas estabeleceram-se
ligações e até a disciplina entre os oficiais e guardas mais novos
se viu ameaçada. Na segunda noite, o ambiente se tornou mais

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OS AVENTUREIROS

descontraído ainda. Durante o suntuoso banquete no grande


salão do castelo, as altas paredes pareciam ressoar a algazarra
divertida que se estabelecera. Rory postara guardas junto ao
castelo e nos jardins que o rodeavam. Não havia mais nada que
pudesse fazer, pois a realeza agia como desejava.
De manhã ele havia escrito uma carta a Richelieu reclamando
da duquesa de La Mardine e informando sobre a chegada de
Buckingham. Pensou melhor e rasgou-a, já que ela não resolveria
os problemas de imediato. Além do mais, temia que a cólera
fizesse o rei Luís lhe ordenar que escoltasse o duque de
Buckingham sob prisão até Boulogne. Caso isso acontecesse,
chegaria à Inglaterra como inimigo do homem mais poderoso do
país.
Em intervalos curtos e regulares, lacaios lhe prestavam rela-
tórios do que se passava. A rainha mãe, bem como Henrietta
Maria, já se haviam retirado, mas dado permissão à suas damas
de honra de continuarem na festa. Rory praguejou.
Gaston, o Delfim, acompanhado de dois cortesão, também
fora para seus aposentos e exigia que lhes providenciassem
meretrizes. Os lordes ingleses, por haverem conquistado damas
francesas, logo desapareceram nos quartos do andar superior.
Madame Saint-Germain sugeriu um baile, porém Buckingham
propôs um passeio pelos jardins a fim de respirarem o ar
revigorante da noite. A duquesa de La Mardine e a rainha Anne
apoiaram prontamente a idéia.
Momentos depois, casais passavam pelas pesadas portas de
carvalho do castelo. Sebes bem podadas formavam um
emaranhado de alamedas que se espalhavam pelo jardim inteiro.
Embora tochas iluminassem grande parte da área, ainda
restavam caramanchões com bancos de pedra imersos na
sombra.
Em poucos minutos, o lugar se encheu com o ciciar de vozes,
de sedas e tafetás. O’Hara observava as mulheres elegantes e
cheias de jóias serem levadas por seus cavalheiros em todas as
direções. De repente, sentiu um grande desalento.

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OS AVENTUREIROS

"Eu não deveria me importar com o fato de essa criatura dar


tão pouco valor à sua honra e à da nação que adotou a ponto de
trair o rei, seu marido", Rory raciocinou. Contudo, sabia que era
preciso se preocupar com aquilo, pois sua ida à Inglaterra
dependia do bom andamento de tudo. Se a rainha Anne cedesse
aos encantos do cortesão inglês, ele seria responsabilizado pelo
ato de adultério.
Como que instigado por um empurrão, O’Hara pôs-se a cami-
nhar pelas alamedas à procura da capa verde e da tiara sobre os
cabelos escuros da rainha Anne.
— Vamos caminhar juntos, irlandês, estou desacompanhada
— Carlotta convidou materializando-se ao lado dele e tomando-
lhe o braço.
— Será que nada abranda o seu ardor, Carlotta? — indagou
ele, irritado, enquanto tentava soltar o braço sem sucesso.
— Nada, e eu o perdôo. Vamos passear.
Rory cedeu, mas com o olhar continuava a busca.
— Pelo jeito com que perscruta o jardim, imagino que tenha
arranjado uma amante.
— Arranjei, sim — concordou ele com um sorriso.
— Quem será minha rival, uma camponesa?
— Talvez sua criada Isabel le. Antes de partir, André me in-
formou que ela é excelente sobre um colchão.
— Ótimo! — Carlotta exclamou com voz tensa. — Se tiver
algum problema em arranjar os encontros é só me avisar. A
vagabunda me obedece em tudo.
Rory percebeu que iam passar pela mesma fonte a terceira
vez. Sempre que tentava tomar a direita, Carlotta o puxava para a
esquerda. Irritado, soltou o braço e seguiu pela alameda na
direção desejada.
— Idiota, não vá por aí — sibilou ela.
Rory interrompeu os passos e percebeu que a duquesa tinha
uma certa razão. Ele ficaria desgraçado caso continuasse ou se
voltasse. Que direito tinha um mero capitão da guarda, e ainda
por cima irlandês, de interferir nos assuntos de uma rainha fran-

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OS AVENTUREIROS

cesa? Já ia retroceder ao lado de Carlotta quando um gemido de


dor, feminino, chegou a seus ouvidos vindo do outro lado da
sebe. Em seguida, uma voz murmurou em tom aflitivo:
— Monsieur, meu braço! Como se atreve? Eu lhe ordeno...
A voz foi interrompida, porém Rory a reconheceu. Em poucos
passos, ele alcançou a passagem que dava para o outro lado da
sebe. A um simples olhar, apreendeu a história toda. O flerte
leviano da rainha com Buckingham havia escapado de seu
controle.
Os ombros nus estavam apertados de encontro ao tronco
áspero de uma nogueira, a capa e a tiara haviam caído ao chão e
um dos lados da blusa tinha sido abaixado, deixando exposto um
dos seios. A expressão do rosto era de humilhação e dor e ela
lutava para se desvencilhar de Buckingham.
O duque a prendia pelos pulsos e tinha a cabeça enterrada
entre seus seios.
— Boa noite, Majestade — Rory cumprimentou bem alto. —
Acredito ser seu desejo poder contar com um acompanhante que
a leve a seus aposentos.
Buckingham virou o rosto sombrio, observou o uniforme de
O’Hara e, sem soltar a rainha, disse, zombeteiro:
— Suma daqui, idiota.
Rory mal podia crer na audácia e no atrevimento do homem.
Depois de falar, ele se virou de novo para os seios de Anne.
— Com a permissão de Vossa Graça — Rory replicou —,
quero informá-lo de que Sua Majestade gostaria de que se afas-
tasse dela. Ao mesmo tempo que falava, ele olhou para a rainha e
suspirou aliviado ao notar sua aprovação.
As feições quase sempre calmas do duque ficaram rubras de
fúria. Soltou os pulsos de Anne e dirigiu-se a O’Hara.
— Será que não me ouviu, seu porco? Suma daqui! Sabe lá
com quem está falando?
— Mais uma vez, peço a permissão de Vossa Graça a fim de
dizer-lhe que sei perfeitamente bem a quem me dirijo. Estou
consciente também de que se trata do homem que vem

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OS AVENTUREIROS

desacatando a rainha da França.


A mão de Buckingham moveu-se com velocidade extrema.
Apanhou as luvas e com elas bateu-lhe no rosto.
— Cumprimento o bom gosto de Vossa Graça. Suas luvas são
de couro finíssimo — O”Hara comentou entre dentes.
Desta vez o duque levou a mão à espada. Todavia, mal os
dedos tocavam o cabo incrustado de pedras preciosas, já a lâmina
desembainhada de Rory brilhava sob a luz das tochas.
— Maldito idiota! Teria coragem de levantar a espada contra
mim?
— Como Vossa Graça pode ver, já levantei. Buckingham
rosnou como um animal ferido e lutou para tirar
depressa a arma da bainha. Contudo, antes que conseguisse, a
espada de Rory cantou no ar para em seguida descer e causar uns
seis ou sete rasgos na jaqueta de cetim do duque.
— Acredito que a loucura provocada pela beleza da rainha
Anne em Vossa Graça foi apenas momentânea, não é?
— Rory insistiu com firmeza.
Buckingham empalideceu ao ver o estado em que ficara a
roupa. Quando levantou o olhar, Rory estremeceu, pois nunca
tinha visto tanto ódio nas feições de um homem.
— Quem é você? — o duque indagou ríspido.
— Rory O’Hara, milorde, capitão da guarda da rainha.
Buckingham franziu a testa, esforçando a memória. Depois re-
laxou e Rory percebeu que se lembrava de quem era.
— Capitão da guarda de que rainha?
— Henrietta Maria — O’Hara respondeu, preocupado. Um
sorriso cruel tomou conta do rosto do duque.
— Ótimo! Isso quer dizer que você logo estará na Inglaterra
— Buckingham disse e desapareceu pelo jardim.
Rory voltou a atenção à rainha, que já havia endireitado a
blusa e reposto a tiara na cabeça. Ele apanhou a capa e, com
delicadeza, colocou-a em seus ombros. Ao oferecer-lhe o braço,
notou que ela crispava as mãos e tinha os olhos baixos no chão.
Sentiu uma grande compaixão por essa pobre mulher que havia

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OS AVENTUREIROS

sido trazida da Espanha, quando não passava de uma criança,


para se casar com outra. Não podia julgá-la culpada por desejar
ser 'amada, pois o menino com quem se casara transformara-se
num homem desinteressado no amor.
— Majestade, acredito que esta noite não passou de um
sonho e é como tal que vai lembrar-se dela ao acordar amanhã.
— E o senhor, capitão? — indagou ela, medrosa.
— Eu nunca sonho, Majestade, por isso não poderei me
recordar de nada.
A rainha Anne ergueu o rosto e Rory pôde ver as lágrimas
rolarem em suas faces.
— Fui uma tola e gostaria de lhe agradecer, capitão Rory
O’Hara. Saiba que, se o sonho for esquecido, quem o arrebatou
jamais o será. Boa noite, capitão, prefiro ir sozinha.
Rory curvou-se e a viu se afastar. Esperou um pouco e depois
também seguiu em direção à entrada do castelo.
Mal havia dado uns passos quando percebeu que alguém o se-
guia. Virou-se depressa e viu Carlotta, que se aproximava com
um sorriso enigmático nos lábios rubros.
— Ao que tudo indica, irlandês, fiz um amigo na Inglaterra, e
você, um inimigo.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXXII

INGLATERRA

Raymond conseguiu alugar acomodações bem confortáveis ao


sul do Tâmisa, perto do palácio Lambeth. Embora Buckingham
houvesse ordenado que vivessem separados, ele e Brenna
mudaram-se para fazer uma nova tentativa de vida conjugai.
Entusiasmado, Raymond jurou que, logo após o retorno do
primo da França, iria à corte reivindicar a posição social e o
controle das terras de ambos.
— Pela primeira vez possuo alguma coisa que me estimula a
enfrentar o duque.
Brenna sorriu a fim de encorajá-lo, porém tinha certeza de
que o marido perderia a coragem. Raymond era um homem bom,
generoso e delicado, mas fraco e tímido e se intimidava com
facilidade. Por essa razão, resolveu acompanhá-lo quando foi
chamado a York House para uma audiência com a temida e velha
tia, lady Compton.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Não vai demorar muito — avisou-os o lacaio de libre ao


indicar-lhes cadeiras na ante-sala do enorme saguão onde lady
Compton atendia as pessoas.
Apesar das pesadas portas de carvalho estarem fechadas, po-
diam ouvir as vozes que vinham lá de dentro. Uma era, sem
dúvida, da velha senhora e a outra mais parecia o rosnar de um
urso.
Quando menos esperavam, as portas se escancararam e um
homem alto, com uniforme de tenente da guarda de
Buckingham, irrompeu do saguão.
— Será que percebe com quem está falando? — lady
Compton perguntou por detrás dele.
— Percebo, sim, milady — o homem replicou levantando a
mão esquerda toda deformada.
— Falo com a mãe do homem que me negou a justiça do rei!
— Retire-se daqui!
— Foi por causa do seu filho que sofri o ferimento causador
desta deformação — gritou ele enquanto sacudia a mão no ar. —
E agora a senhora me nega o posto de capitão que ele prometeu
para recompensar isto!
Lady Compton apareceu no umbral das portas. Estava
curvada, grisalha e apoiava-se em duas bengalas, todavia
continuava prepotente, o que se notou quando ela gritou ao
homem!
— Retire-se daqui, criatura! E o melhor é deixar Londres
também antes da volta do duque, senão acabará perdendo a uso
da outra mão!
— Vou me retirar, sim — respondeu o homem em tom amea-
çador.
— Mas marque minhas palavras: este não é o fim de John
Felton.
Ele se virou e, por uma fração de segundo, o olhar exaltado
prendeu-se no de Brenna provocando-lhe um arrepio de medo.
Seus olhos eram grandes, porém com pupilas pequenas, e asse-
melhavam-se aos de um animal acuado. As botas ecoaram no as-

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OS AVENTUREIROS

soalho de carvalho e ele se foi.


Lady Compton fitou-os e disse:
— Entre você, ela não — e virou-se em seguida de volta ao
saguão. Brenna e Raymond trocaram olhares e ela tomou-lhe o
braço enquanto dizia:
— Não, Raymond, eu o acompanho.
Juntos, entraram no saguão com lambris de carvalho e
paredes cheias de obras de arte. As telas de Ticiano e o imenso
tapete persa constituíam um atestado à habilidade dos Villiers de
adquirir e acumular bens.
Lady Compton já se sentara numa poltrona de tecido
adamascado e veludo, semelhante a um trono, ainda mais que se
assentava numa pequena plataforma. Como sempre, estava
vestida com luxo, numa infinidade de metros de cetim preto que
a cobriam por completo, exceto a mãos de veias salientes e o
rosto enrugado, severo e sério.
— Eu lhe disse... — começou ela.
Depressa, Raymond tomou-lhe uma das mãos e a beijou.
— Milady, ela é minha esposa.
— Ela é a mulher que o enfeitiçou e não lhe dá filhos porque
aquelas que pactuam com o demônio são estéreis!
— Milady, eu lhe suplico...
— Tem coragem de interceder por uma feiticeira?
— Ela não é uma feiticeira e sim uma mulher que abomina o
pecado. Forçada pela senhora e por meu primo, seu filho, ela se
sujeitou a humilhações, afrontas...
— Silêncio! — gritou a velha senhora e em seguida bateu com
uma das bengalas no tablado.
Atemorizado, Raymond afastou-se para trás. Se ao menos es-
tivesse falando com o primo e não com a tia, haveria a
possibilidade de enfrentar a família.
Todavia, ele não estava e Brenna percebeu que a batalha desse
dia, se travada entre mulheres, poderia ter um resultado menos
negativo. Tomou o braço do marido e virou-o em direção à porta.
— Vamos, Raymond.

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OS AVENTUREIROS

— Brenna, se de fato queremos...


— Não diga nada por enquanto.
Atrás deles, lady Compton soltou um riso satisfeito que mais
parecia o cacarejo de uma ave.
— E melhor mesmo irem embora os dois.
Brenna abriu a porta e, com delicadeza, empurrou o marido
para fora.
— Espere aí, Raymond.
Só então, ele percebeu suas intenções, porém, antes de poder
impedi-la, a porta já se fechava. No interior do saguão, Brenna,
depois de passar a chave na fechadura, retirou-a e a escondeu no
decote.
— Como se atreve a tanto? — lady Compton gritou raivosa
para, em seguida, pôr-se de pé e bater com as bengalas no chão.
As feições de Brenna não expressavam ódio, e sim uma calma
determinação. Aproximou-se da velha senhora, tirou-lhe as ben-
galas e as fez rolar pelo chão para bem longe.
— Ah, a bruxa quer me matar! Você acabará na prisão de
Fleet! Devolva...
— Feche essa boca, velha malvada e vingativa! — Brenna
sibilou com o rosto a centímetros do da adversária.
Pálida de medo, lady Compton sentou-se outra vez. Não
estava mais sofrendo uma afronta e sim sendo desafiada. Toda a
influência de seu poder não podia ajudá-la nesse momento.
— Creio que você teria coragem de me matar!
— Não seria preciso — Brenna replicou. — A sua maldade
durante estes anos todos já a corroeu por dentro e logo acabará
de vez com a senhora. Contudo, enquanto isso não acontece,
quero que respeite meus deveres de esposa e o afeto que dedico a
meu marido.
— Gostaria de lembrá-la...
— Quem fala sou eu, a senhora apenas ouve. Milady
desprezou a lei de Deus ao manter Raymond separado de mim e
agravou o estado de melancolia em que ele se encontrava tirando
nossos meios de subsistência. Não me casei pobre, porém agora

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OS AVENTUREIROS

estou graças as suas artimanhas cruéis. Quero avisá-la, para o seu


próprio bem, que tome providências a fim de remediar seus erros
e calar minha boca. Caso contrário, clamarei publicamente por
vingança pela injustiça sofrida em suas mãos.
Brenna respirou fundo e fitou lady Compton com firmeza.
— Se não me atender, vestirei trapos e irei mendigar nas ruas
de Londres ao mesmo tempo que contarei, a quem quiser me
ouvir, que devo meu estado de privação à senhora. Explicarei aos
pobres, aos camponeses e até mesmo aos ladrões que não é de se
estranhar que eles não tenham pão para comer, já que uma
nobre da corte, sob as ordens de lorde Buckingham, também
passa fome.
Os olhos astutos de lady Compton semicerraram-se enquanto
ela avaliava as palavras de Brenna. Sabia que o povo odiava o
filho além de atribuir os problemas do país à família Villiers.
Logo Charles seria coroado e cabia a eles convencer os súditos de
que o novo soberano faria mudanças positivas. O momento não
era propício a outras complicações.
— Teria mesmo coragem de ir às ruas?
— E de muito mais. Contaria a todos como naquela noite em
Chinon fui convencida a me casar. Toda Londres gostaria de
saber como a assassina Francês Howard conquistou a liberdade
de andar pelas ruas enquanto seus cúmplices, por serem de
posição social mais baixa, foram enforcados.
Com a respiração irregular e ruidosa, lady Compton inclinou-
se sobre o braço da poltrona.
— O que quer de mim?
— Apenas o dinheiro que nos pertence legalmente e o direito
de viver em paz, sem importunações de sua parte e de seus filhos.
Os lábios de lady Compton tremiam. Sabia que fora derrotada
desta vez, porém não para sempre.
— Está bem, vou providenciar o que quer. Agora, vá embora
daqui.
— Com o maior prazer. Lembre-se apenas de que, caso sinta
a tentação de voltar atrás, tenho sempre à mão os trapos de que

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OS AVENTUREIROS

lhe falei.
A nova rainha da Inglaterra havia desembarcado em Dover,
onde passara sua primeira noite em solo inglês. Na manhã se-
guinte, o rei Charles receberia a comitiva em Canterbury e, se-
gundo as más-línguas, consumaria o casamento lá mesmo.
Ansioso, ele não havia tido paciência para esperar a segunda
cerimônia nupcial a ser realizada em Londres.
Agora, o rei Charles e a rainha Henrietta Maria chegavam à
capital do reino. Embora a peste não houvesse desaparecido por
completo e chovesse muito, milhares de pessoas encontravam-se
às margens do Tâmisa para verem a barcaça real. Outras tantas
saudavam o casal real das janelas de suas casas ao longo do rio ou
de barcos que acompanhavam a esteira de espuma do batelão. Os
canhões da Torre de Londres e dos navios da Marinha real davam
tiros e os sinos das igrejas enchiam o ar com som festivo e
alvissareiro.
Por causa da chuva, tinha sido erguido, às pressas, um
pavilhão nos jardins de Somerset House a fim de abrigar mais de
duzentos pares do reino que já se encontravam ali a fim de
recepcionar a nova rainha.
Entre eles estavam o visconde e a viscondessa Poole.
Brenna sorria contente, mais segura de seu futuro como há
muito não se sentia.
O marido se vestia com elegância em roupas e acessórios
novos entre os quais se destacavam a jaqueta de seda azul e o
chapéu de abas largas. A viscondessa, por sua vez, exibia o
conjunto mais fino que encontrara. Também se vestia em azul
com uma blusa de voai de tom celeste sob um colete que, como a
saia rodada, era de cetim azul-marinho. Na cintura usava uma
faixa cor-de-rosa que combinava com as fitas do cabelo. As meias
eram de sedas assim como as sapatilhas bem abertas e bordadas
com linha azul e dourada.
Lady Compton finalmente passara a lhes entregar as rendas
provenientes de seu dote, embora não a quantia total.
Gritos de vivas irromperam da multidão junto às escadas do

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OS AVENTUREIROS

desembarcadouro. A barcaça real deixava o centro do rio e apro-


ximava-se da margem. Charles e Henrietta Maria, vestidos de
verde da cabeça aos pés, sorriam e acenavam para o povo.
Buckingham foi o primeiro a desembarcar, seguido pelos
lordes Holland e Carlisle.
A aglomeração compacta de pessoas não permitia uma visão
completa da cena. Todavia Brenna conseguia vislumbrar de
relance mulheres vestidas c penteadas com elegância e gosto,
soldados de túnicas vermelhas e uma cruz prateada no peito e o
verde das roupas reais. A muralha humana tomou corpo e
acabou por bloquear a cena empolgante.
Assim que o rei e a rainha entraram no jardim, formou-se a
fila de recepção. Um a um, por ordem de importância, os cava-
lheiros da corte e suas senhoras iam sendo chamados a fim de
saudar a rainha e congratular o rei.
— Ela é encantadora — Raymond murmurou.
— É mesmo, porém tão jovem e de aparência frágil — Brenna
acrescentou.
"Como vai ser difícil a sua vida", ponderou consigo própria ao
contemplar a mocinha entregue a um casamento de Estado além
de ser uma emissária católica num país protestante.
Se a religião não se tornasse uma pedra de tropeço em seu
caminho, com toda certeza o homem alto, de cabelos claros a
poucos passos atrás, o seria. Já se comentava nos círculos da
corte que o duque de Buckingham não toleraria interferência
alguma da nova rainha em questões de religião e política.
Ninguém, nem mesmo a esposa, teria tanta influência em
Charles quanto o cortesão favorito.
Brenna estremeceu ao pensar na luta pelo poder que se
desencadearia muito em breve.
— O visconde e a viscondessa Poole — anunciou o
intendente ao bater três vezes no chão com o bastão dourado.
Brenna e Raymond se aproximaram. O visconde colocou um
dos joelhos dobrados no chão em frente ao soberano e ela se
curvou enquanto ambos murmuravam.

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OS AVENTUREIROS

— Vossa Majestade.
Charles olhou surpreso para Buckingham, mas logo em
seguida voltou a atenção ao casal.
— Nossos olhos se alegram ao testemunhar a reconciliação
de sua família, lorde Poole.
— Agradeço, Majestade — Raymond gaguejou antes de beijar
as mãos do rei e da rainha.
A mão de Henrietta Maria tremia como um passarinho apri-
sionado quando Brenna a tomou para beijar antes de se expressar
em francês fluente:
— Espero, Majestade, que não considere a nova pátria e seus
costumes muito severos e que a saudade de sua própria corte
desapareça quando descobrir o amor dos novos súditos.
Os olhos escuros da rainha se arregalaram e Brenna percebeu
o alívio provocado por suas palavras.
— O seu francês é impecável! Venha nos visitar assim que
estivermos instalados.
— Será um grande prazer, Majestade.
Brenna e Raymond se afastaram e a chamada de outros casais
teve continuidade.
— O que disse a ela que a deixou tão satisfeita? — Raymond
perguntou baixinho.
— Não foi bem o quê, mas sim como eu o disse. Sua
Majestade vai precisar de senhoras inglesas na corte. As que
falam francês, provavelmente, serão convidadas mais depressa.
— Acho que você herdou um certo jeito de sua mãe —
Raymond comentou com um sorriso.
Com o intuito de ceder lugar aos que ainda se encontravam
na fila dos cumprimentos, Brenna e Raymond se dirigiram à en-
trada de Somerset House.
Já haviam subido a metade da escadaria ladeada por guardas,
quando Brenna parou com uma exclamação abafada. A mão no
braço de Raymond crispou-se e ela estremeceu.
— Brenna, minha querida, o que foi?
Pálida, ela mordeu o lábio e não respondeu. O marido seguiu

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OS AVENTUREIROS

seu olhar assustado e no topo da escadaria descobriu quem a in-


timidava. Tratava-se de um homem pouco mais baixo do que ele,
porém com ombros e peito muito mais largos do que os seus. Ca-
belos negros esvoaçavam sob o chapéu de abas largas e a túnica
vermelha e prateada exibia, nos ombros, a insígnia de capitão.
A razão pela qual a presença do comandante francês da
guarda pessoal da rainha perturbava Brenna constituía uma
incógnita para Raymond. Mas, então, ele se deu conta da
intensidade com que os olhos escuros a fitavam e soube quem
era.
Raymond sentiu uma pontada no coração. Voltou a olhar para
Brenna na esperança de que um sinal desmentisse a descoberta,
contudo ela foi confirmada por seu aspecto de choque.
Como se fosse preciso não existir dúvida alguma na mente de
Raymond quanto à identidade do homem, uma mulher linda e
loira, com um vestido branco esvoaçante, passou por eles e disse
ao oficial:
— Capitão O”Hara, não está se sentindo bem? Parece que viu
um fantasma!

CAPITULO XXXIII

Não levou muito tempo para Rory O” Hara ficar sabendo da


história do tumultuado casamento do visconde e da viscondessa
Poole. Embora os detalhes variassem um pouco de acordo com
cada narrador, não foi difícil calcular a aspereza do caminho
palmilhado por Brenna durante os últimos anos.
O’Hara não duvidava de que continuasse a amá-la tanto ou
mais do que antes. No instante em que a vira, tivera certeza
plena. Havia sido à custa de muito esforço que se mantivera em
seu posto em vez de sair correndo para tomá-la nos braços e co-

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OS AVENTUREIROS

brir-lhe o rosto de beijos. Estava certo ainda de ter detectado a


mesma luz de amor em seus olhos.
Entretanto, um segundo antes de vê-lo, Brenna parecera
muito feliz apoiada no braço do marido. Teria ele, Rory, a
coragem de usurpar essa felicidade? Ignorava se ela havia feito a
escolha de livre e espontânea vontade e se Hubbard era, afinal, o
homem a quem Brenna amava. Talvez essa fosse a razão pela
qual ela fugira da França de volta à Inglaterra.
As indagações que afligiam a mente de Rory, em vez de lhe
sugerirem uma solução, deixavam-no mais confuso ainda.
Resolveu esperar um certo tempo para ver se ela o procuraria. No
momento, esse era o caminho mais fácil, especialmente levando-
se em conta a sobrecarga que vinha enfrentando na corte.
Ao pôr os pés na Inglaterra, o duque de Buckingham não per-
dera tempo em tecer planos para desacreditar Rory. Começara
com a tentativa de instigar a rainha contra o capitão, porém
como Henrietta Maria não lhe tivesse dado ouvidos, o duque
havia procurado o rei e o conselho. Argumentara com o fato de
O” Hara, alguns anos atrás, ter se comprometido a permanecer
na Irlanda e fora de questões políticas.
Farto com a insistência do cortesão, Charles enviara uma
mensagem ao cunhado, Luís XIII da França, pedindo o
afastamento do irlandês da Inglaterra. Rory tinha certeza de que
a recusa do pedido partira mais de Richelieu do que do rei.
O’Hara escreveu a Shanna e Talbot relatando as preocupações
e o que descobrira sobre Brenna. A resposta veio logo. "Meu
querido irmão:
Foi com tristeza que li a sua carta, porém, como lhe disse
muitas vezes aqui, já esperava essas notícias. Você e Brenna
foram arrancados um do outro e, embora sob as cinzas talvez
ainda existam brasas, acredito que o fogo se acabou.
Desista, meu irmão, e volte para o seio de sua família e de sua
terra. Maura pergunta com freqüência pelo tio Rory e Patrick já
se firma nas perninhas. Quanto a Aileen, você não acreditaria em
seus olhos se a visse agora. Ela está lindíssima e não é mais a

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OS AVENTUREIROS

criança que você imagina.


Todos sentem a sua falta, caro irmão, e nós todos gostaríamos
de que voltasse para aqueles que realmente o amam. Com muito
amor, Shanna.
Rory começou a escrever outra carta à irmã para dizer-lhe que
voltaria logo, mas desistiu e rasgou-a.
Durante horas permanecia sentado olhando a miniatura no
medalhão. Preocupava-se em encontrar Brenna outra vez e
também se seria capaz de esperar até que ela o procurasse.
Existiam outros problemas que o afligiam e quase todos rela-
cionados com a infelicidade da jovem rainha. A corte inglesa era
muito diferente da do seu irmão na França, onde havia muito
mais pompa. Charles tinha de se sujeitar à austeridade, pois de-
pendia de um Parlamento mesquinho para a liberação de fundos.
A presença dos padres de batina na corte enfurecia os puritanos,
e a da guarda francesa armada, a população. Henrietta Maria se
ressentia tanto com isso que se recusara a aprender inglês e não
mostrara interesse em comparecer à coroação do marido.
Buckingham contribuía muito para piorar a situação, pois se
mostrava sempre indelicado com a rainha. Dava-lhe ordens o
tempo todo e queria interferir na escolha de suas roupas.
Insistira ainda com ela para receber a mãe e a irmã dele em seu
círculo mais íntimo na corte.
Henrietta Maria, intransigente, recusara-se em atendê-lo e re-
taliara expulsando todas as inglesas de seu convívio, exceto
aquela que Buckingham odiava frontalmente: lady Brenna
Hubbard, a viscondessa Poole.
Quando Raymond entrou na sala, tinha o rosto corado por
causa do ar frio de outono. Duas criadas ocupavam-se em
arrumar arcas enormes sob a orientação de Brenna. O olhar
sombrio dele se transformou em desdém ao ver os vestidos e
anáguas desaparecerem nos baús.
— A cavalgada foi boa? — Brenna perguntou ao beijá-lo no
rosto e voltar, em seguida, a prestar atenção às criadas.
— Não, Mary, o cor-de-rosa, não. A rainha detesta ver essa

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OS AVENTUREIROS

cor à sua volta.


Raymond serviu-se de aguardente e foi tomá-la à janela de
costas para a atividade da sala. Provou a bebida e começou a
bater com o rebenque na coxa.
A princípio, Brenna não deu muita importância ao barulho
surdo, mas quando ele se transformou num ruído ritmado e
constante a ponto de enervar as criadas, percebeu que não podia
mais ignorá-lo.
— Raymond, será que precisa fazer isso?
— Preciso, sim — respondeu ele em tom ríspido.
Brenna fez um sinal às criadas para se retirarem e, logo que a
porta se fechou atrás delas, foi para junto do marido.
— Não vejo por que começar o dia da mesma forma com que
terminamos o de ontem, isto é, brigando — disse ela.
— Nós não brigamos, apenas discutimos.
Brenna o segurou pelo braço, na tentativa de forçá-lo a se
virar de frente, mas ele empurrou sua mão e continuou a bater
com o rebenque, só que, dessa vez, no parapeito da janela. Ela
suspirou desanimada e massageou a testa. Estava com uma
terrível dor de cabeça e o corpo cansado por causa da noite
passada em claro. O que começara como uma discussão sensata
terminara, de madrugada, numa gritaria ofensiva.
O rei havia dissolvido o Parlamento em retaliação à atitude de
sir Edward Coke, que exigira melhor explicação do duque de
Buckingham sobre a verba pedida para a guerra contra a Espanha
e outros pontos obscuros de relações exteriores. Como não
obtivesse resposta, Coke convencera a Câmara dos Comuns a
negar a verba.
Furioso, Charles os tinha mandado para casa e anunciara uma
viagem à reserva de caça de New Forest. Como cavalheiro da
Câmara do rei, Raymond era obrigado a acompanhá-lo.
A rainha, por não apreciar a caça, avisara que passaria um
mês em Titchfield, a casa de campo do conde de Southampton.
Como dama de companhia da rainha, Brenna se via na
contingência de segui-la.

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OS AVENTUREIROS

— Essa foi a maneira encontrada por Buckingham de nos se-


parar de novo — Raymond insistiu.
— De forma alguma. São apenas costumes da corte e não há
nada que possamos fazer.
— Podemos dizer que estamos doentes e ficar em Londres.
— Raymond, já conseguimos tanta coisa! Quase todos os
nossos bens foram devolvidos, vivemos novamente como marido
e mulher sem sermos importunados pela sua tia, gozamos de
situação privilegiada na corte, você com o rei e eu com a rainha.
Por que deseja estragar tudo agora?
— Eu?! Não sou eu quem está pondo em risco nossa posição
na corte e sim seu pai! E ele que teima em escrever a tal Magna
Carta com o propósito de diluir o poder do rei. Isso sem falar em
sua mãe, que recusa o pedido do rei em alugar Hatton House.
Pelo sangue de Cristo, mulher, será que você não pode convencê-
los a terem um pouco de senso comum antes que acabem nos
arruinando?
Brenna deixou escapar outro suspiro profundo. Tudo aquilo
era verdade. Sir Edward e lady Hatton faziam com que Raymond
e ela se sentissem constrangidos na corte. Era também verdade
que os pais se negavam a ouvi-la.
Contudo, não era isso que perturbava Raymond e que havia
acabado com a calma e a docilidade dele. Brenna vira o ciúme
nascer e aumentar a cada dia que passavam na corte.
Reconhecia-o nas feições de Raymond sempre que O’Hara
aparecia. Caso os três se encontrassem na mesma sala, ela sentia-
se como se estivesse no inferno.
— Esse irlandês, o seu O’Hara...
— Raymond, ele não é o meu O’Hara.
— O bastardo tem a cara de um deus, e o corpo também.
Aposto como possui a força de dez. Você já notou as mãos dele?
Imensas! Acho que ele é capaz de estrangular um homem apenas
com uma delas. Dizem que esse O’Hara é amante da francesa
loira, a duquesa de La Mardine.
Brenna se mantinha em silêncio.

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OS AVENTUREIROS

— Correm boatos de que foi O’Hara quem dominou meu


primo, Buckingham, na França. Poucos homens têm a coragem
de desembainhar a espada para o duque.
— Raymond, por que você se tortura assim?
— Será que sou eu quem está sendo torturado?
Nas primeiras vezes, Brenna havia saído da sala em prantos,
depois seu bom senso a convencera de que tudo passaria com o
tempo. Todavia isso não tinha acontecido; pelo contrário, a
situação havia piorado muito. Agora, o pesadelo de Raymond se
tornava real: a esposa dele, durante um mês, estaria sob o mesmo
teto que o ex-amante enquanto ele se encontraria a quilômetros
de distância.
Brenna tornou a tomar-lhe o braço e desta vez conseguiu
fazê-lo virar-se para ela.
— Raymond, vamos deixar de lado as palavras de duplo
sentido e conversar com franqueza.
Não havia mais traço algum de meiguice ou súplica nos olhos
castanhos que a fitavam.
— Muito bem, vamos fazer isso.
— Eu mal olhei para ele e não lhe dirigi a palavra nem uma
única vez desde que chegou. E, a não ser que seja forçada a fazê-
lo por conta dos meus deveres para com a rainha, não o farei
também no futuro.
Os lábios de Raymond se curvaram numa imitação de sorriso
e ele voltou a bater com o rebenque na coxa.
— Quer dizer que realmente está tudo acabado? Você não
tem recordações ou pensa nele?
— Eu...
A hesitação foi mínima, mas o suficiente para provocar um
acesso de fúria em Raymond. Ele girou o rebenque no ar e
depois, com um único movimento, varreu todos os copos e
garrafas sobre o aparador ao lado. Antes que tudo se aquietasse,
ele já alcançava a porta.
— Raymond, eu queria apenas ser sincera. Ninguém jamais
esquece o passado, pois ele sempre volta a nos importunar. Ray-

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

mond, eu suplico...
O estrondo da porta que batia interrompeu as palavras.
Brenna sentou-se, encolhida, perto da janela.
— Oh, meu Deus — murmurou, aflita —, não disse a verdade
e por falta de coragem!
Banhada em lágrimas, deixou que o olhar se fixasse em
Somerset House do outro lado do Tâmisa.
— Por que você voltou Rory O’Hara? Por que reapareceu em
minha vida e me fez ver como é vazia e insípida sem você?
As instruções de Richelieu eram simples, claras e precisas.
Como responsável por todos os franceses a serviço da rainha na
Inglaterra, O’Hara não só teria de ser guarda de Sua Majestade
como também emissário do rei Luís.
"E assim sendo", escrevera o cardeal, "você deverá fazer tudo
que estiver ao seu alcance para manter a aliança franco-inglesa
como foi estipulada no contrato de casamento. Você se esforçará
ao máximo para criar uma aura de conforto ao redor da rainha a
fim de reter a felicidade dela. Deverá, ainda, chamar a atenção de
Charles e Buckingham para o fato de que o rei da França espera
que haja anuência por parte do rei da Inglaterra às promessas
feitas por ele, isto é, revogar as leis contra a fé católica em seu
país."
Tudo bem mais fácil de ser dito do que feito.
Nem o povo inglês nem o Parlamento estavam a par dos
acordos secretos sobre religião feitos por Charles no contrato
matrimonial. O rei se via forçado a curvar-se perante o povo e
banir todos os padres, exceto os que faziam parte da comitiva da
rainha.
Rory sabia que a referência de Richilieu à aliança franco-
inglesa significava a recomendação para que se esforçasse em
manter a Inglaterra em guerra contra a Espanha. Ora, isso seria
inútil, pois o Parlamento, por falta de confiança em Buckingham,
não liberara a verba para o conflito.
O’Hara se tornara um diplomata sem pasta e um conselheiro
a quem ninguém dava ouvidos.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

Agora, cavalos suarentos e exaustos levavam Rory de


Titchfield a New Forest, e vice-versa, numa freqüência irritante,
sob as ordens do rei.
— Capitão, desejo que informe sua ama e senhora que o rei,
seu marido, encontra-se imerso em profunda tristeza porque ela
não procura se dar bem com o povo.
— Sim, Majestade.
— Diga-lhe ainda que sua atitude taciturna e mal-humorada
em relação a mim e a minha corte deve ter um fim, mesmo que
para tanto seja necessário deixar a senhora em questão mais
infeliz do que já parece ser.
Rory reconheceu a ameaça implícita nessas palavras.
— Mais uma coisa, capitão. Você é irlandês e, como tal,
súdito da coroa inglesa. Como explica o fato de estar a serviço do
rei francês?
— Com o seu perdão, Majestade, mas encontro-me a serviço
da rainha inglesa.
Por um instante, Charles ficou confuso e sem saber como
continuar. Todavia, Buckingham sussurrou-lhe algo ao ouvido e
ele atacou por outro lado.
— Chegou a nosso conhecimento que você ainda conta com
a concessão de vastas glebas de terra na Irlanda, num lugar
chamado Ballylee.
— Com todo o respeito devido, Majestade, mas não possuo
nada. As terras a que se refere pertencem a sir David Talbot, um
escocês. Foram entregues a ele, legalmente, pelo pai de Vossa
Majestade e por Sua Graça, o duque de Buckingham. Rory estava
convencido de que, a fim de evitar um emaranhado de processos
legais, tanto o rei como o duque não insistiriam na questão de
Ballylee. Contudo, a ameaça existia. Aliás, ele se via atacado por
todos os lados. Cada momento de sã consciência trazia a vontade
de abandonar a busca e fugir.
Mas, no instante seguinte, lembrava-se do rosto de Brenna e
do brilho de seus olhos escuros ao vê-lo. Isso significaria amor?
Não estava bem certo, porém não podia desistir até que

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

soubesse.
Em audiências particulares com a rainha, Rory insistira com
ela para abrandar sua atitude para com o povo, a corte e o
próprio rei. Porém Henrietta Maria, a mocinha dócil,
transformara-se em uma rainha petulante e autoritária.
Rory suspeitava que a nova maneira de ser de Henrietta Maria
resultava da tutelagem da duquesa de La Mardine, e contra isso
não havia nada que pudesse fazer, exceto dar mais conselhos.
Existia um último caminho para se chegar à rainha, mas O’Hara
recusava-se a segui-lo. A viscondessa Poole era tão amiga de
Henrietta quanto a duquesa, talvez até mais. Se Rory conseguisse
convencer Brenna a usar de sua influência a fim de forçar a
rainha a seguir seus conselhos, quem sabe a vida de todos seria
melhor.
Entretanto, isso significava encontros particulares e segredos
compartilhados com Brenna, possivelmente contra sua vontade.
Rory não estava ainda preparado para agir assim.
O estopim que provocou a explosão final foi uma ocorrência
insignificante, mas a detonação foi ouvida na Inglaterra inteira.
Numa calma e ensolarada manhã de domingo, a irmã de
Buckingham, a condessa de Denbigh, providenciou para que
fosse realizado um culto protestante no grande salão de
Titchfield House. O’Hara não foi informado porque se
encontrava em New Port, a chamado de Buckingham. Caso
contrário, teria podido cancelar a cerimônia ou transferi-la a
outro local.
Em New Forest, o assunto a ser tratado era trivial e, assim que
se viu desimpedido, Rory pediu permissão para ir embora. Porém
o duque, para sua surpresa, insistiu que ficasse.
— Eu gostaria de constatar a sua habilidade na caça, irlandês.
Depois, quem sabe, poderemos acertar nossas diferenças
enquanto tomamos um copo de vinho.
No fim da caçada, não houve conversa alguma e muito menos
vinho. Rory foi dispensado e quando chegou a Titchfield, na
tarde do dia seguinte, descobriu por quê.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

A condessa de Denbigh dispensara a permissão não só de


O’Hara como a da rainha também para a realização do culto.
Frontalmente ofendida, Henrietta Maria revidara. Pelo menos
dez vezes, à frente de suas damas de companhia e com seus
cãezinhos, ela atravessara o grande salão onde se realizava a
cerimônia religiosa. Em cada nova ocasião, o riso e as palavras se
tornavam mais altos até acabarem por interromper,
definitivamente, o culto.
Na segunda-feira à noite, a notícia do desrespeito da rainha
para com a religião anglicana havia se espalhado. O povo estava
furioso, o arcebispo de Canterbury exigia uma desculpa, o rei mal
podia acreditar em tamanha ousadia e as duas câmaras do Par-
lamento demandavam a retorno da comitiva da rainha para a
França. Apenas o duque de Buckingham se mantinha em
silêncio.
No centro da tempestade, estava Rory O’Hara. Não lhe
restava outra escolha. Através de um ajudante de confiança, ele
enviou uma mensagem à viscondessa Poole.
A garoa fina transformara-se em chuva pesada quando Brenna
ultrapassou os limites dos jardins, tremendo com a água gelada
que lhe escorria pelas faces. Mesmo as roupas pesadas de veludo
e a capa forrada de pele não eram suficientes para conter o frio
provocado pela tempestade de inverno.
"Loucura", pensou aflita. "O que estou fazendo é uma loucura
desvairada!"
Ela havia ignorado as duas primeiras mensagens de Rory, mas
a súplica insistente na última a tinha forçado a tomar o pedido
em consideração.
"Eu lhe peço encarecidamente, não, eu lhe imploro e suplico,
minha cara, que se encontre comigo o mais depressa possível. Eu,
a França e até a Inglaterra dependemos dos resultados da
conversa que venhamos a ter. Talvez apenas você seja capaz de
raciocinar com a nossa rainha.
Se é nosso passado que a está impedindo de se encontrar
comigo num lugar secreto, suplico-lhe que não tenha medo. Os

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

motivos que me impelem a procurá-la não são, de forma alguma,


pessoais, eu lhe garanto.
A carta apresentava outros argumentos, porém Brenna não
precisava deles. Desde a primeira, sentira uma vontade imensa
de atendê-lo. Só o medo das descobertas que faria ao revê-lo e da
reação de Raymond, caso ele viesse a saber do encontro, a
haviam impedido de responder. No entanto, OHara tinha
colocado o assunto sob um ângulo tão importante que ela não
podia deixar de levar em consideração.
Parou, cautelosa, e perscrutou a escuridão além da guarita.
Não via ninguém.
— Aqui, milady.
— Quem é? Qual é o seu nome?
— Phillipe, milady.
Brenna rezou para que fosse o mesmo citado nas instruções
enviadas por Rory. Deu uns passos em direção da voz e logo viu a
silhueta de um homem ao lado de uma égua.
— Depressa. Ajude-me a montar — pediu ela.
Phillipe obedeceu e Brenna encontrou-se logo em cima da
montaria, que se agitou um pouco com o movimento.
— Acalme-se, menina — Brenna murmurou ao mesmo
tempo que puxava as rédeas de leve. — Qual é o caminho?
— indagou ao homem.
— Acompanhe o riacho por um quilômetro e meio. Quando
chegar a um pequeno bosque de faias, verá uma estrada
esquerda. Siga por ela mais uns oitocentos metros até avistar
uma colina, à direita, com um telheiro na encosta. E lá que o
capitão vai estar esperando.
Brenna assentiu com a cabeça e virou a égua rumo à trilha ao
lado do riacho. Assim que se certificou de que o solo era firme e
sem pedras, partiu a trote e, logo depois, a meio galope.
A chuva continuava a castigar-lhe o rosto e o coração batia
acelerado com a perspectiva de encontrar Rory.
A orientação dada por Phillipe provou ser correta. No bosque
de faias descobriu logo a estrada e, embora não pudesse enxergar

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OS AVENTUREIROS

muito adiante, deu rédea solta à égua. Em poucos minutos


chegava à colina e divisava na escuridão as linha do telheiro.
Virou à direita e só parou bem perto do barracão. De repente, a
mão de alguém saiu das sombras e segurou a brida da égua. Em
resposta à sua exclamação de surpresa, ouviu:
— Não se assuste, sou eu.

Baixou a cabeça ao ver que a égua entrava sob o telheiro e


percebeu pelo mugido suave que havia gado lá no fundo. Um
segundo depois, sentia as mãos dele na cintura.
— Não, eu... — Mas suas botas já tocavam o chão.
Sob a roupa, a pele se arrepiou nos lugares onde Rory a tocara
e Brenna deu graças a Deus pela escuridão encobrir o rubor das
faces.
— Podemos nos sentar. Há um monte de palha logo aqui —
Rory explicou.
— Não, obrigada, prefiro ficar em pé.
— Como queira — replicou ele, com um toque leve de
sarcasmo na voz.
— Achei melhor não acender uma vela, pois pode haver
algum pastor por aí.
Pelo ruído da palha e um leve tilintar, Brenna percebeu que
Rory se sentava e ajeitava o talabarte onde a espada se prendia.
Ouviu-o ainda suspirar.
— Sua carta era um tanto enigmática. Eu gostaria...
— Brenna, será que a rainha não concordaria em pedir
desculpa ao arcebispo?
— Não acredito. Ela afirma que não deve enaltecer a
ninguém, muito menos ao chefe de uma religião paga.
— Maldição! Será que a rainha não percebe que está agindo
como uma criança voluntariosa e tola?
— Rory!
— É verdade. Preste atenção. Você e o resto dos ingleses não
conhecem os termos secretos do tratado de casamento. Mas é
bom saber que Charles os está ignorando, embora, não por conta

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OS AVENTUREIROS

própria.
— Instigado por Buckingham? — Brenna perguntou.
— Isso mesmo. O homem quer garantir os privilégios e o
poder possuídos mesmo às custas do país. Ele também deseja se
vingar de mim por tê-lo insultado.
— Ouvi contar essa história. Você devia tê-lo matado —
Brenna comentou ao revelar o desprezo sentido pelo duque.
— Devia mesmo, mas, infelizmente, não o matei. Agora
através de subterfúgios torpes, ele está estimulando as
infantilidades da rainha e, com isso, afastando-a do rei. Charles e
Henrietta Maria não percebem que não passam de joguetes nas
mãos do duque. Buckingham almeja a glória de passar, perante
os olhos do povo, como o salvador dos protestantes franceses.
Percebe o perigo disso?
— Ele nos forçaria a entrar em guerra com a França?!
— Se puder, sim.
— E o que, meu Deus, eu posso fazer? — Brenna perguntou,
tentando prestar atenção apenas nas palavras de Rory e não na
sonoridade da voz dele, que a deixava trêmula.
— A rainha a admira, Brenna, e respeita sua opinião. Você é a
única inglesa na corte. Use a sua influência e a faça ver a
necessidade de oferecer uma desculpa ao arcebispo, caso ele con-
tinue a exigi-la. Convença-a a aprender inglês e, acima de tudo, a
ser mais atenciosa com o rei.
— Posso tentar.
— Por favor, Brenna, faça um esforço para ter êxito.
Ela sentiu uma vontade irresistível de se aproximar de Rory e
sentir o calor e a força do corpo dele. Todavia segurou as rédeas
da égua com firmeza como se o animal pudesse puxá-la de volta,
caso cedesse à tentação.
— Por que um irlandês se envolveu tanto com os negócios de
Estado anglo-franceses, Rory O’Hara?
Demorou muito para a resposta ser dada. Através do silêncio,
Brenna sentia que ele formulava razões para lhe dar em vez
de ser sincero e dizer a verdade.

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OS AVENTUREIROS

— O comércio com a Inglaterra, França e Espanha é muito


importante para a Irlanda e, naturalmente, Ballylee. Eu me imis-
cui nesse assunto com o intuito de ajudar a preservar a paz —
Rory explicou finalmente.
Brenna sentiu um peso no coração. Então, a volta dele à In-
glaterra não tinha nada a ver com sua pessoa. Mas por que isso a
deixara triste? Não havia amaldiçoado o retorno dele há bem
pouco tempo? Com esforço, manteve a voz calma.
— Como vai Ballylee?
— Linda e próspera.
— E David?
— Ele e Shanna se casaram e têm dois filhos. São muito
felizes. Brenna se recostou na égua e mordeu o lábio a fim de
abafar os soluços, porém não conseguiu reter as lágrimas.
— Preciso voltar — disse ela baixinho.
— Você é feliz, Brenna? — Rory perguntou.
Ele havia se levantado e chegado bem perto. A voz grave,
apenas sussurrada, pareceu ecoar-lhe na própria alma. De
repente, as mãos dele estavam em seus ombros e Brenna não
impôs resistência quando Rory a virou para tomá-la nos braços.
Todavia, quando os lábios dele encontraram os seus, o sinal de
alarme soou em sua mente.
— Não... não... por favor — murmurou de encontro à boca
que se tornava mais insistente em possuir a sua.
O beijo se aprofundou e seu corpo começou a traí-la,
amoldando-se ao dele. Rory gemeu seu nome ao mesmo tempo
que conseguia afagar-lhe um dos seios por sob a capa.
— Eu lhe suplico, Rory O’Hara, por tudo que é sagrado, não
continue! — Brenna gritou, exaltada.
Como se houvesse levado uma bofetada, ele a largou e deu
um passo para trás. Podiam sentir a tensão um do outro através
da respiração ofegante de ambos.
— Perdoe, foi minha culpa, mas o seu perfume foi suficiente
para que eu visse sua face e sentisse seu corpo mesmo na
escuridão e a distância.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Ah, meu Deus amantíssimo! — Brenna disse entre os


soluços que não conseguia mais conter. — Já estava tudo quase
acabado. Por que você teve de voltar?
— Eu menti, Brenna, voltei por sua causa. Durante estes
anos, só pensei em você. Preciso saber por que você fugiu aquela
noite, senão vou acabar enlouquecendo, pois a dúvida me
atormenta sem parar.
Brenna se recostou de novo na égua. Não se atrevia a contar-
lhe a verdade porque, com certeza, ele adivinharia que seu amor
jamais havia acabado e, então, não haveria fim para essa tragédia.
— Voltei aquela noite porque caí em mim. Percebi que o
nosso amor não passava de uma paixão inconseqüente e tola da
juventude. Eu me dei conta de que era uma inglesa, de estirpe
nobre, criada e educada como tal e que jamais poderia ser a
esposa de um fazendeiro irlandês numa terra paga.
— Não acredito em você — Rory disse com voz sentida. — A
maneira com que retribuiu o meu beijo...
— Será que ainda é tão ingênuo, Rory O’Hara? Sou uma
mulher com certas fraquezas e você continua atraente e viril
como um demônio tentador. E, se precisa de mais alguma prova,
veja a minha posição social. Sou uma viscondessa, esposa de um
par do reino. Teria você podido me proporcionar essas regalias
em sua terra atribulada?
— Compreendo — disse Rory em um tom gelado que cortou
o coração de Brenna, ela, porém, não cedeu.
— Vou ajudá-lo para o bem de meu país e do meu rei, mas
quero a sua palavra de que o incidente desagradável desta noite
não se repetirá.
— Pois não, milady. Juro que não a importunarei mais. Antes
que Rory a ajudasse a montar, Brenna pulou na sela
com agilidade. Qualquer contato físico seria perigoso.
— Logo que tiver alguma novidade, mandarei um recado a
Phillipe pela minha criada, a fim de nos encontrarmos.
— Muito bem. Só mais uma coisa. A duquesa de La Mardine
é uma versão feminina de Buckingham. Ela é capaz de trair até o

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OS AVENTUREIROS

rei para conseguir o que deseja. Cuidado com ela.


— Conheço bem as artimanhas da duquesa e saberei como
evitá-las. Boa noite — disse Brenna, afastando-se.
Saiu do telheiro e esporeou a égua. Conseguiu manter o
controle dos nervos até chegar ao bosque de faias. Lá, deixou que
a égua fosse a passo e deitou a cabeça no pescoço dela sacudida
por soluços violentos e incontroláveis.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXXIV

Para Raymond, a cena era remanescente de uma outra


ocorrida há alguns anos. Ele se sentava em frente à lareira, com o
olhar atraído pelas chamas crepitantes, pensando em Brenna e
consciente de que ela não o amava.
Atrás dele encontrava-se a tia, como também naquela ocasião
em que acertara a barganha da mão de Brenna com Coke em
Stoke Poges. Mas, em vez de sir Edward como terceiro ocupante
da sala, estava Buckingham, a poucos passos à esquerda, de
costas para o fogo.
Havia ainda uma outra circunstância diferente. Eles preten-
diam negociar o dote de Brenna assim que o convencessem de
pedir divórcio.
— Então, primo, o que me diz? — indagou Buckingham num
tom de voz áspero.
— E difícil de acreditar. Ela me deu a palavra.
— Palavra de feiticeira — sibilou lady Compton, mas a um
sinal do filho não disse mais nada.
— Pense um pouco, Raymond. Ela mesma não admitiu a
você ter tido um relacionamento com o irlandês? Já lhe contei
dos encontros que estão tendo e em que rolam deitados na palha
de um telheiro imundo.
Num movimento abrupto, Raymond se levantou da cadeira e
começou a andar de um lado para o outro, massageando a testa
onde o suor porejava.
— Não posso acreditar na palavra de uma criada.
— E as duas provas, primo? A duquesa de La Mardine lhe deu
as datas e o horário dos encontros deles. Ela mesma viu sua
mulher voltar de suas orgias.
— Pare, pare!

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OS AVENTUREIROS

— Até um pastor os apanhou juntos uma noite!


— Que provas mais você precisa, meu sobrinho, para se con-
vencer de que ela o traiu?
Raymond sentia o sangue latejar nas têmporas e as palavras
martelarem-lhe os ouvidos como as patas de um cavalo nas
pedras do calçamento. Na corte tinha visto os olhares trocados
por Brenna e Rory.
— Já o magoei demais no passado, meu querido — Brenna lhe
dissera um dia. — Juro não fazê-lo mais no futuro.
"Como não me magoaria encontrando-se, às escondidas, com
o namorado?" perguntou a si mesmo.
Raymond desejava muitíssimo acreditar nela, porém a
semente da dúvida tinha sido plantada em seu coração no dia em
que o ex-amante de Brenna desembarcara em Londres. Devagar,
a antiga frustração causadora de sua loucura, e que já havia
desaparecido de sua vida, encontrou um substituto, o ciúme.
— Provas! — gritou ele de repente ao virar-se para a tia e o
primo.
— Quero provas concretas e não a tagarelice dessas mulheres
de língua de trapo!
Buckingham olhou demoradamente para a mãe antes de lhe
fazer um sinal imperceptível. A velha senhora se levantou com
dificuldades e foi até uma arca de carvalho. Abriu-a com uma
chave presa em uma corrente de ouro à volta do pescoço e,
quando voltou para o centro da sala, tinha, nas mãos, um maço
de cartas amarrado com uma fita azul.
Raymond apossou-se do pacote e gritou:
— O que é isto?
— Provas. Cartas de amor.
Ele caiu de joelhos e, como se estivesse tocando uma serpente
enrodilhada, desamarrou a fita com cuidado.
Acima dele, Buckingham e lady Compton trocaram um
sorriso satisfeito. Dias antes, eles haviam selecionado as cartas
antigas de Rory escondidas no fundo da caixa de jóias de Brenna.
Tiveram a precaução de eliminar as com data ou referências à

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OS AVENTUREIROS

França.
Raymond jamais saberia que as cartas não tinham sido
escritas nos últimos meses.
Depois da volta da corte a Londres, Brenna se sentia ora ani-
mada ora deprimida.
A rainha tinha dado ouvido a seu raciocínio lógico e, ao
encontrar o marido em Hampton Court, desmanchara-se em
sorrisos. As palavras ditas haviam sido conciliatórias e
prognosticavam, a Charles, uma nova atitude de obediência.
— Gostaria de pedir a meu marido, o rei, que perdoasse sua
esposa, a rainha, e esquecesse a ofensa cometida por ela que lhe
causou mágoa — Henrietta Maria dissera.
Em particular, ela também apresentara ao arcebispo
desculpas pela afronta cometida contra a religião anglicana.
Jurara que, no futuro, daria tanta atenção aos conselheiros do rei
quanto aos seus.
A satisfação íntima de Brenna por ter contribuído para a mu-
dança de atitude da rainha era anuviada pelo mau humor de
Raymond. Seu desânimo aumentava quando ele passava dias se-
guidos afastado de sua companhia.
Em casa, ele parecia um estranho, especialmente à noite, sen-
tado em frente a lareira com a garrafa de aguardente na mão.
Nunca mais ele sugerira que fossem se deitar mais cedo ou batera
na porta de seu quarto em horas avançadas da noite.
Por mais que tentasse, Brenna não conseguia penetrar a bar-
reira de silêncio que Raymond erguera à volta de si mesmo. A
administração das terras do casal estava sendo negligenciada e a
maneira estranha de ele se comportar na corte provocava comen-
tários sobre o retorno da loucura antiga do visconde Poole.
Desta vez, porém, Brenna também começou a estranhar o
marido. De fato havia um brilho feroz nos olhos dele e um tique
nervoso nos lábios. Um dia, ela descobriu onde Raymond passava
o tempo quando se encontrava longe de casa. Parte era na com-
panhia do primo, o duque, muito embora ainda declarasse a an-
tipatia sentida por ele. O resto do tempo, Brenna soube pela mãe,

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OS AVENTUREIROS

ele ficava com o bispo em Ely House.

Nas poucas ocasiões em que Raymond permanecia a seu lado,


mostrava-se cada vez mais afastado dela. Quase sempre resmun-
gava como se falasse consigo mesmo e quando ele lhe dirigia a
palavra era em tom ríspido.
— Diga uma coisa, mulher...
— Brenna, Raymond, por favor. Não empregue o tratamento
usado pelos puritanos. Ainda não nos convertemos a essa fé.
— Graças a Deus, não.
— Raymond, o que está preocupando você?
— Sabia que não somos casados aos olhos da Igreja?
— Somos, sim, perante a Igreja da Inglaterra.
— Ela não representa a religião verdadeira. Se você me
acompanhasse na fé autêntica, seria absolvida através da
confissão sincera.
— Confissão?! Raymond...
— Se não confessamos nossas imoralidades junto com os
outros pecados, comemos e bebemos para a nossa própria
condenação quando comungamos.
— Não tenho nada para confessar — Brenna declarou com
voz calma e deixou a sala.
O tempo corria e ela passava longas horas sozinha em seus
aposentos. As vezes em que se atrevia a sair, o fantasma de Rory
O” Hara aparecia em qualquer lugar: na corte, cavalgando no
parque St. James, nas ruas, ou num barco no Tâmisa. Sempre lia
nos olhos dele a mesma indagação, "por quê?".
Nos encontros subseqüentes, mantidos no telheiro, Brenna se
esforçava ao máximo para esconder os sentimentos, contudo
havia sido quase impossível. No fim descobrira que suas palavras
corajosas da primeira noite tinham se apagado da mente dele por
completo.
Cada vez que se encontrava perto de Rory, o sorriso
encantador, os cabelos negros e rebeldes e as feições bem-feitas
minavam mais e mais suas intenções de manter-se afastada.

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OS AVENTUREIROS

Percebia que as forças necessárias para continuar a vê-lo estavam


no fim e logo teria de lhe dizer isso.
Pensava nele na noite em que Raymond tocou novamente no
assunto de religião. Entretinha-se com seu bordado enquanto
ele, calado, fitava o fogo na lareira.
— Sabe, o catolicismo é a religião à qual os atribulados
podem recorrer — afirmou ele, quebrando o silêncio.
— Raymond, será que precisamos insistir nesse ponto?
— Precisamos, sim — gritou exasperado.
Depois, retorceu as mãos como se quisesse se acalmar e, ao
falar de novo, a voz mostrava-se quase normal.
— Ele oferece alívio e salvação ao pecador, não importa o que
tenha cometido, até adultério.
— Então, você deveria se esforçar por converter seu primo
Buckingham em primeiro lugar — Brenna sugeriu.
Raymond fez que não ouvira e perguntou:
— Por que será que você não está grávida?
A pergunta fora de hora a deixou atônita, porém Brenna re-
solveu responder com um gracejo.
— Talvez porque não tenhamos tentado o suficiente. Os
olhos dele, pelo excesso de bebida, a fitaram.
— Isso faz parte do teste — resmungou ele.
— Não sei do que está falando.
— Há semanas que não me deito com você.
— Eu sei, Raymond.
— Então, se você começar a engordar, a verdade subirá à
tona.
— Que verdade?
Com dificuldade, ele se levantou e, meio cambaleante, chegou
até a sua frente, numa atitude ameaçadora.
— Eu sei, Brenna.
Ela encarou os olhos fundos e sombreados desse homem que
estava se transformando num estranho.
— Sabe o quê, Raymond? — indagou ela, embora no fundo
do coração soubesse o que o marido insinuava.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Não se finja de inocente — Raymond rugiu num acesso re-


pentino de fúria que a fez temer um ataque físico.
— Por favor, Raymond, será que não podemos conversar com
calma sobre o que o está preocupando? Não há nada...
— Nada? Você chama traição ao marido de nada? Eu sei de
tudo, será que não compreende? Estou a par de seus encontros
secretos com o irlandês em Titchfield e dos seus amores numa
cama imunda de palha! Eu sei...
— Você não sabe de nada porque não existe nada para saber!
— Brenna gritou ao levantar-se e enfrentá-lo. — Aposto como
ouviu boatos de fontes pouco confiáveis!
— Vi as cartas que ele lhe escreveu.
— Cartas?! Não existe nenhuma.
De repente, Raymond pôs-se a andar pela sala à procura de
algo. Quando encontrou, voltou a seu lado.
— A Bíblia! Jure sobre ela.
— Jurar o quê? — Brenna perguntou, atônita.
— Que não é adúltera.
— Eu não sou — soluçou ela, aflita.
A sala rodava ao seu redor e o ricto medonho de Raymond a
apavorava. Novamente, ele gritou, raivoso:
— A mão na Bíblia! Jure, jure mesmo correndo o risco da con-
denação eterna de sua alma!
— Eu juro! Eu juro!
Brenna exclamou com ambas as mãos sobre o livro. A Bíblia
caiu no chão com um estrondo que pareceu ecoar a exclamação
aturdida de Raymond.
— Você mandou sua alma para o fogo eterno!
— Apenas jurei. Que mais queria que eu fizesse?
— Nem ao menos Deus você respeita — disse ele, agora com
voz baixa e sombria.
A raiva sentida por Brenna nesse instante dominou seu medo.
Segurou Raymond pelo peito da camisa e sacudiu-o com toda a
força que possuía.
— Isso é insanidade fora de propósito, Raymond! Assim

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

como os ouviu, vai ter de me ouvir também.


O braço de Raymond se levantou, fez um arco no ar e a mão
estalou em seu rosto com brutalidade. Brenna rodopiou e caiu
para trás de encontro à parede. Quando seus olhos clarearam,
viu-se sentada no chão, olhando para a expressão de choque do
marido.
— Deus do céu, você está mesmo louco — murmurou.
Não levou muito tempo para lady Compton espalhar pela
cidade e pela corte a notícia de que o visconde Poole estava
residindo em Suffolk, sem a viscondessa naturalmente.
Com a velocidade do fogo num campo seco, as línguas
viperinas enlamearam a reputação da viscondessa, afirmando
que ela cometera uma leviandade em companhia de um dos
guardas da rainha.
A vida de Brenna passou a ser comentada por todos, que
também a fitavam com malícia onde quer que a vissem. Sua
presença na corte foi barrada e as poucas amigas que possuía
passaram a ignorá-la.
Ela não se surpreendeu quando um oficial de Justiça bateu à
sua porta e, com desinteresse, ouviu a leitura do documento
trazido pelo homem.
— ...e o visconde Poole deseja viver, deste dia em diante,
aparte de sua esposa. Levando em consideração seus sentimentos
anteriores por ela, o visconde não quer o divórcio, apenas a
separação. Ele concorda em suprir os meios para o sustento
diário dela e... Brenna deu pouca atenção ao resto. Tudo
terminara e lady Compton saíra vitoriosa afinal.
O último golpe veio com as dúvidas da mãe quanto à sua ino-
cência. Indignada, disse-lhe:
— Pois muito bem! Se vou ser condenada, não há de ser sem
razão.
Com os parcos meios de que dispunha, Brenna alugou um
Chalé
em Hounslow, um vilarejo meio deserto, perto da grande
charneca

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

ao sul de Londres. Contratou os serviços de duas criadas,


porém
apenas para durante o dia.
O tempo passou. Tanto a corte como a cidade encontraram
outros assuntos para suas línguas maldosas e a viscondessa Poole
caiu no esquecimento. Lady Compton, satisfeita com a vitória,
assestou as garras em outras vítimas e Buckingham absorveu-se
na tentativa de convencer o Parlamento a aceitar seus pontos de
vista.
Finalmente, Brenna escreveu uma carta longa e detalhada a
Rory O’Hara. Nela contou-lhe tudo o que havia acontecido em
sua vida desde a noite em que partira de Chinon. Confessou-lhe
que seu amor por ele jamais tinha morrido e que, aliás,
encontrava-se mais forte do que nunca.
Dois dias após ter recebido a carta, O’Hara cavalgou a
Hounslow.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXXV

Nem mesmo no breve momento de paixão em que Rory a


tomara nos braços e a beijara no telheiro de Titchíield, eles
haviam se sentido tão constrangidos e pouco à vontade. As
palavras trocadas pareciam forçadas e sem espontaneidade.
O tempo passado longe e os momentos de convívio na corte,
em que eram obrigados a esconder os sentimentos, a paixão e a
carência mútuos, constituíam uma barreira. Nenhum dos dois
parecia capaz de fazer o gesto ou dizer a palavra que reavivaria as
chamas.
— Eu me sinto como se fosse uma criança — Brenna disse
sem conseguir fitá-lo.
— Eu também — acrescentou ele.
— Você não está com fome? Gostaria de jantar?
— A bem da verdade, não me alimento desde o café da
manhã e seria capaz de devorar um carneiro inteiro.
— Pois, então, avive o fogo na lareira enquanto preparo
alguma coisa na cozinha.
— A lenha está no fim — Rory comentou.
— Que tal rachar um pouco?
Com acanhamento e timidez, ele tirou o talabarte e a jaqueta
do uniforme e foi para a porta de trás do chalé.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Rory, a camisa — Brenna disse com um sorriso.


Ele se virou ao mesmo tempo que desamarrava os cordéis da
camisa. Os olhos de ambos se cruzaram e as mãos dele pararam
no ar, deixando o peito exposto.
— Por que, de repente, você me faz sentir tão tolo? —
perguntou ele, sem poder controlar o riso.
— Não mais do que você a mim — Brenna respondeu
contagiada com a mudança de humor dele.
Sem que eles soubessem como, o gelo havia se quebrado.
Rory acabou de tirar a camisa e foi cuidar da lenha e Brenna
ocupou-se do jantar. Momentos depois, o som ritmado do
machado entrava pela janela aberta e fazia com que o ambiente
parecesse o de um lar aconchegante.
Brenna esquentou um ensopado suculento que tinha
preparado mais cedo e, quando ouviu o som de passos na sala,
pôs numa bandeja duas canecas de cerveja amornada com o
espeto de ferro do fogão.
— Aceita uma...
Parou ao ver, da porta, Kory abaixado em frente da lareira
pondo mais lenha no fogo. Ele se virou quando ouviu sua voz e o
quadro, que a fascinava, ficou mais perfeito ainda.
Os músculos dos ombros e dos braços ondularam-se com o
movimento sob a pele morena e brilhante com os reflexos das
chamas. O corpo forte e perfeito como o de um deus e a
seriedade das feições esculturais sob a cabeleira negra a faziam
sentir, mesmo de longe, a virilidade emanada dele. Era como um
perfume inebriante que lhe despertava o desejo.
Rory percebeu, por seu olhar, a reação que provocava. Levan-
tou-se e estendeu os braços.
— Eu te amo — disse com simplicidade. Havia uma
tonalidade grave na voz dele que Brenna reconheceu como a
antiga paixão. Deixou cair a bandeja e, com passos cambaleantes,
atravessou a distância que os separava.
Seus lábios receberam os dele com prazer e a doçura do beijo
a deixou extasiada. Sentiu os dedos penetrarem nos cabelos

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

numa carícia suave que ela retribuiu afagando-lhe o peito


primeiro e depois as costas.
Os lábios de Rory devoravam os seus e as mãos começavam a
lhe percorrer o corpo instigando mais e mais o desejo a cada
novo toque. Brenna levou a mão ao busto e desamarrou os
cordéis do corpete, baixando-o dos ombros em seguida. Os seio
nus incendiaram-se quando os mamilos excitados apertaram-se
de encontro ao peito dele.
Seus dedos trêmulos ocuparam-se, então, em despir a saia e
as anáguas. Com a ansiedade sofrida, quase arrebentou as
presilhas na cintura ao forçá-las até cederem. As peças caíram à
volta dos pés e Brenna estremeceu de pura antecipação.
Roíy deu um passo para trás e, com o olhar meigo e
apaixonado, acariciou-lhe a nudez.
— Deus amantíssimo, você é linda!
Numa fração de segundo, levantava-a nos braços e saía à pro-
cura do quarto com o ruído das botas no assoalho repercutindo
as batidas fortes do coração de ambos.
O corpo de Brenna afundou no colchão macio de penas e,
quase logo depois, o dele, já livre do resto das roupas,
acomodava-se a seu lado. Com um gesto firme, ela guiou um dos
seios aos lábios ávidos de Rory.
O hálito quente foi como uma língua de fogo no mamilo
antes que a boca sôfrega o rodeasse. Brenna crispou os dedos nos
cabelos dele, instigada pelo latejar intenso e agudo de desejo e
prazer.
As mãos de Rory percorriam todas as curvas e reentrâncias de
seu corpo, aumentando-lhe a carência até que, desesperado, fre-
misse de encontro ao dele e revelasse a aproximação do fim da
resistência.
— Eu quase consegui me fazer esquecer como o toque de suas
mãos era maravilhoso — murmurou ela.
A resposta foi silenciosa. Com a respiração entrecortada, Rory
gemeu e cobriu seu corpo com o dele. A penetração foi suave,
mas possessiva, segura, provocadoramente vagarosa, como se ele

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

esperasse sua rendição.


E Brenna, numa entrega total, deixou que todo o seu ser se
diluísse e formasse um só com o dele.
Permaneceram deitados, sob a luz de uma única vela e os
corpos nus abraçados. Brenna enroscava os dedos nos pêlos
fartos do peito dele enquanto Rory lhe alisava os cabelos negros e
sedosos. Tinham a sensação de que haviam feito amor durante
horas e de que a paixão reprimida por tanto tempo emergira
violenta muitas vezes em seguida. Agora, suspiravam como se,
finalmente, estivessem saciados.
— Foi como se nós nunca nos tivéssemos separado — Brenna
murmurou.
— Nunca estivemos, meu amor, pois jamais, nem por um
momento, eu deixei de te amar.
— Nem eu a você — disse ela. — Apenas não havia percebido
até agora há pouco.
Rory se virou e fitou-a bem dentro dos olhos.
— Em que inferno eles transformaram sua vida!
— Não diga isso, tudo acabou — murmurou Brenna,
aconchegando-se bem a ele.
— Quero que me ame outra vez.
O outono transformou-se em inverno e este em primavera.
Todavia, quando se encontravam no interior do chalé, o tempo
parava. Tornaram-se mais audaciosos e Rory não ia mais a
Hounslow apenas à noite.
— Não creio que devamos forçar a nossa boa sorte e
continuar nesta situação por muito tempo mais — Rory,
finalmente, disse um dia.
— Eu vivo apenas o momento presente, pois é mais um
instante de felicidade compartilhado com você.
— Brenna, já desafiamos as convenções. Vamos dar mais um
passo à frente — sugeriu ele.
— Como assim?
— Vamos embora para Ballylee.
— Impossível, meu querido, e nós dois sabemos disso. Já se

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OS AVENTUREIROS

foram os tempos em que o chefe de um clã irlandês podia se


apossar da mulher de outro. E, muito embora eu possa ser
condenada pelo pecado que estou cometendo, continuo uma
mulher casada. Você precisa pensar na segurança de Shanna e
David. Se me recebessem em Ballylee, Buckíngham teria a
desculpa desejada para atacá-los. Sabe muito bem que ele não
hesitaria a um segundo sequer.
— Maldição! Não posso me contentar só com isto. Quero que
você seja minha não apenas de corpo e alma como também legal-
mente — declarou ele.
— Nós estamos juntos e, no momento, isso basta — Brenna
afirmou com um suspiro.
Semana após semana, eles usufruíam a felicidade que, final-
mente, haviam alcançado. Eory comprou-lhe uma égua, bem pa-
recida com a que Brenna cavalgava em Titchfíel, e arreios. Juntos,
passeavam ao entardecer pelas colinas, de onde assistiam o pôr-
do-sol, ou em noites enluaradas ao longo de riachos, e também
caminhavam pela grande charneca, alheios a tudo ao redor. Eram
amantes e haviam se encontrado no tempo.
Por fim, foi Richelieu, e não Buckíngham, ou lady Compton,
quem interrompeu o romance. O cardeal teceu a paz com a
Espanha e, de repente, a França não enfrentava mais problemas
no exterior. Isto deixava o ministro livre para por em prática a
segunda parte de seu plano. Concentrou, assim, toda a atenção
na cidade independente de La Rochelle, o reduto dos
protestantes franceses. Como o resto da França, os huguenotes
seriam forçados a reconhecer Luís XIII como soberano.
Em represália, o rei Charles da Inglaterra ordenou, sem que se
esperasse, a detenção de toda a comitiva da rainha Henrietta
Maria. Todos foram enviados, imediatamente, a Dovere, depois,
para a França. Rory O’Hara, apanhado de surpresa como os
outros, conseguiu enviar uma carta a Brenna suplicando-lhe que
fosse encontrá-lo em Dover. Lá, ele se esforçaria para fazê-la
passar como membro da comitiva.
Brenna hesitou apenas por um segundo quando recebeu a

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OS AVENTUREIROS

mensagem. Sabia que teria de enfrentar a ira da família, porém já


se sacrificara muito por ela no passado. Agora, pensaria só em si
mesma e no homem a quem amava.
Depressa, ela juntou o pouco dinheiro que tinha, selou a égua
sozinha e armou-se ainda com uma pequena pistola, pois as es-
tradas para Dover estariam cheias de assaltantes.
Cavalgou o dia inteiro e algumas horas depois de escurecer.
Bateu, então, à porta de um camponês, que, junto com a mulher,
a recebeu com simpatia. Eles a abrigaram durante a noite e, de
madrugada, a acordaram como tinham prometido. Temerosa de
que a égua não resistisse cavalgar o resto do percurso, trocou-a,
embora com tristeza, por outra montaria descansada.
Já escurecia novamente, quando avistou o castelo de Dover.
Instigou o animal e, algum tempo depois, chegava ao porto onde
ainda teria de procurar por Rory.
Os marinheiros a quem perguntava onde poderia encontrar o
capitão do porto a fitavam com atrevimento e malícia. Custou
muito para que um lhe desse alguma indicação, mas em vez do
homem, ela encontrou a carruagem confortável e imponente do
duque de Buckingham, dentro da qual se via a duquesa de La
Mardine.
Brenna suspirou aliviada ao reconhecer a cabeleira loira e
bem penteada. A presença dela ali significava que o navio ainda
não havia içado velas.
— Madame, madame! — Brenna chamou ao mesmo tempo
que tentava abrir a portinhola do coche.
— Vá embora, menina! Ah, mon Dieu, é a senhora, Milady!
Pensei que fosse uma vendedora qualquer.
Brenna sabia que as lágrimas de aflição abriam uma trilha nas
faces sujas da poeira da estrada que também lhe cobria as roupas.
Todavia não se importava.
— O navio, madame, para a França, onde está?
— Ora, ele partiu há quase duas horas.
— Mas a senhora...
— No último instante, recebi uma permissão especial do

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OS AVENTUREIROS

duque para permanecer na Inglaterra. Ele é tão fino e amável que


até mandou a própria carruagem me buscar.
Uma semana mais tarde, do chalé de Hounslow, Brenna
enviou uma carta para a França.
"Meu querido, Estou grávida, porém não se desespere porque
me sinto felicíssima. Assim que nosso filho nascer, pois tenho
certeza de que será um menino, eu fugirei para me encontrar
com você em Paris.
Até então, saiba que te amo e morro de saudade.
Com todo o meu amor, Brenna."

CAPITULO XXXVI

Apesar de seus gritos de dor, Brenna podia ouvir a voz das


duas mulheres, porém não distinguia as palavras. Sob suas mãos,
as contrações do abdômen distendido retesavam a pele e a
deixavam rígida. Um intumescimento ondulante estremeceu
suas palmas. Era a criança, a semente de Rory O’Hara que lutava
para nascer.
As dores chegavam uma após a outra e nos poucos segundos
de intervalo, ela entreabria os olhos. A mãe encontrava-se à sua
cabeceira, com expressão de pena e condenação ao mesmo
tempo, e a parteira, cujo rosto mostrava-se vermelho e
pontilhado de transpiração, estava entre suas pernas levantadas.
"Depressa", a mente de Brenna implorou, "Deus
misericordioso, depressa, porque não posso agüentar mais."
Ela retesou-se e o corpo foi tomado pela agonia de uma dor
dez vezes maior do que as anteriores. Brenna gritou e, abençoa-

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OS AVENTUREIROS

damente, penetrou na escuridão.


— Jamais vou poder agradecer o suficiente — Brenna disse
enquanto observava o homem corpulento, seu irmão por parte
de pai, pondo Robert de volta no berço.
— Não é preciso — Clement replicou sentando-se a seu lado.
— Essa foi a maneira que encontrei para suavizar o remorso
sentido há tanto tempo.
"Como ele está diferente!", Brenna pensou. "Da mesma forma
que nós todos, Clement mudou muito."
Ainda o chamavam de "Coke, o lutador", contudo, agora ele
lutava com as palavras ao lado do pai, na Câmara dos Comuns,
como o homem responsável em que se transformara.
No nascimento de Robert, fora Clement que a confortara en-
quanto a mãe se preocupava com o escândalo. Antes mesmo de
Brenna recobrar os sentidos por completo, Elizabeth havia
mandado chamar um reitor. Então, lá mesmo, o nascimento do
menino fora registrado e ele batizado com o nome de Robert
Hubbard, embora sem o conhecimento da mãe.
Ao ficar sabendo, Brenna protestara com veemência.
— Ele é um O’Hara e esse é o nome que lhe darei!
— De forma alguma! A sua insensatez chegaria ao ponto de
admitir e confessar seu pecado ao mundo? Desista, porque eu
não permitirei.
— Aos meus olhos, não foi pecado. Ele é o filho de The O”
Hara, com quem pretendo ir me encontrar em Paris assim que
estiver mais forte.
— Faça o que bem entender — Elizabeth replicara com raiva
estampada no rosto.
— Enquanto isso, vou tentar, o mais que puder, evitar o
escândalo. A lei estabelece que o filho de um casamento legítimo
recebe o nome do pai. Este foi o caso aqui e, inferno, é assim que
eu quero.
— Deus do céu! — Brenna esbravejara. — Minha mãe ficou
puritana, meu marido católico e meu filho bastardo legítimo.
Estou cansada de ouvir falar em escândalo. Eu é que fui

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OS AVENTUREIROS

escandalizada a vida inteira e agora chega!


Entretanto, como sempre, lady Hatton não aceitara
argumento algum. Quando tudo ficara resolvido à sua maneira,
ela havia voltado para Hatton House confiante de que, na sua
idade, a leviandade da filha não lhe mancharia a reputação.
Havia sido Clement quem, realmente, a tinha ajudado.
Levara-a para a casa dele em Londres, perto da Cripplegate, e
contratara uma excelente ama para o bebê. Ele havia, ainda,
estabelecido comunicações com Paris.
— Você continua com o firme propósito de ir para a França
quando receber o chamado? — Clement perguntou.
— Sem dúvida alguma! Vou sentir saudade da Inglaterra, mas
não do povo. Não gostaria que o filho de The O’Hara crescesse
numa terra governada por homens como Buckingham!
— Talvez não vá ser tão fácil como você imagina. Os ventos
de guerra estão soprando fortes dos dois lados do canal. O duque
clama por sangue. Ele seria aclamado o salvador da glória da
Inglaterra se conseguisse livrar La Rochelle do cerco de
Richelieu.
— Ele seria o salvador da própria glória! — Brenna afirmou
com sarcasmo.
Nesse momento, o barulho de uma carruagem no portão cha-
mou-lhes a atenção.
— Pelo sangue de Cristo, será que milagres nunca cessam de
existir? — Clement conjeturou em voz alta com um sorriso.
— O que será que a grande lady veio fazer em minha casa?
Enquanto uma criada trazia lady Hatton aos aposentos de
Brenna, Clement apressou-se em se refugiar em outro lugar.
Elizabeth resmungou um cumprimento e, após se sentar, deu
início, imediatamente, as explicações dos motivos que a traziam
até ali.
— A situação está feia, minha filha teimosa.
— Como assim? — Brenna perguntou, evitando encarar o
olhar acusador da mãe.
— A notícia do nascimento de seu filho já chegou aos

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OS AVENTUREIROS

ouvidos de Buckingham. Lady Compton repudiou a criança e foi


ao conselho do rei declarar que ele não é Hubbard.
— E não é mesmo.
— Que desgraça! Será que você não pode ter um pouco de
senso? — Elizabeth gritou.
A voz exaltada provocou o choro assustado do bebê e Brenna
correu para acalmá-lo.
— Por favor, mamãe, faça suas reclamações num tom mais
baixo.
— Você também perderá a calma quando souber das notícias
— lady Hatton disse com frieza.
— Conte logo, estou ouvindo.
— O duque exige que você seja julgada, publicamente, por
adultério e bruxaria. Ele agora alega que Raymond não tinha
acesso a você e, mesmo se tivesse, não poderia ser o pai da
criança por razões de saúde.
— Concordarei com isso no tribunal — Brenna declarou.
Elizabeth ergueu-se, ameaçadora.
— Será melhor que não, pois, caso contrário, perderá o
direito de continuar me chamando por "mãe". Você vai declarar
que, de fato, o visconde Poole é o pai da criança e negar qualquer
ligação com o irlandês. Vai ainda afirmar que seu filho é um
Hubbard por laços sangüíneos, embora esse seja um nome
maldito.
— Mamãe, você nunca deu um passo errado na vida?
Elizabeth desviou o olhar da filha e foi até a janela.
— Dei, sim, e venho pagando por ele todos estes anos.
— Pois eu não cometi erro algum para ser tão duramente
castigada durante a minha vida inteira. Entretanto, como sinto
um grande amor por você e não quero mais provocar escândalos
sobre o seu nome, farei o que me pede.
Brenna concordou com resignação e ouviu, então, o suspiro
de alívio da mãe.
— Muito obrigada. Agora vou ter de levar o menino — lady
Hatton informou, ainda incapaz de encarar a filha.

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OS AVENTUREIROS

— Robert?! Por quê? — Brenna indagou em pânico.


— Porque, minha menina, a corte me nomeou tutora até o
final do julgamento.
— Mas eu posso cuidar dele aqui mesmo — protestou ela,
retorcendo as mãos, aflita, ao apreender o significado das
palavras da mãe.
Elizabeth se virou com o rosto pálido e cansado.
— Você não continuará aqui. Vai ser mandada para a prisão
de Pleet até o término do julgamento.
O palácio de Lambeth se erguia com esplendor sombrio à
margem sul do rio Tâmisa. Assim que Brenna desceu do barco,
dois guardas postaram-se a sua retaguarda a fim de escoltá-la
pelo labirinto de muros e alamedas do jardim até a sala do
tribunal.
Ela pôs-se a caminhar de cabeça erguida, embora tivesse
certeza de que o terrível mau cheiro da prisão de Pleet
continuasse impregnado nos cabelos e na roupa. A luminosidade
do sol ainda a fazia piscar constantemente, pois, por duas
semanas, não havia sido exposta a ela.
A janela da cela escura e úmida onde ficara não passava de
um corte estreito na grossa parede de pedra e seu parco campo
de visão se resumia à imundície degradante do Fleet Market.
Durante o tempo de confinamento, Brenna vira nove homens
morrerem nas forcas.
Jurava agora, a si mesma, ao passar entre as esporinhas, rosas
e o ar perfumado dos jardins do palácio de Lambeth, que,
independente do resultado do julgamento, jamais voltaria à
prisão de Fleet.
— Aqui — ordenou um dos guardas com voz ríspida.
Entre as pessoas que enchiam a sala do tribunal, havia bispos
e juízes de toga e espectadores curiosos.
"Agora", pensou ela ao tomar o lugar indicado, "sei
exatamente como Francês Howard se sentia."
O julgamento não passou de uma grande farsa encenada.
Buckingham havia lançado mão de todos os recursos possíveis,

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OS AVENTUREIROS

inclusive suborno, para garantir a vitória. Brenna mal podia crer


em seus olhos ao presenciar o desfile de testemunhas, cuja
maioria nunca vira antes. Uma delas, o falado dr. John Lambe,
conhecido por se encontrar nas mãos do duque, além de canalha,
tinha sido julgado e declarado culpado, há alguns anos, por
bruxaria e estupro.
"E ele me condena", Brenna pensou, desanimada.
À tarde, tornou-se evidente que apenas um milagre a salvaria.
A acusação de bruxaria tinha sido retirada, mas as outras conti-
nuavam como uma espada sobre sua cabeça.
Com o coração angustiado, Brenna achava cada vez mais
difícil demonstrar segurança através da posição ereta. De
repente, um murmúrio agitado percorreu o ambiente e todas as
pessoas viraram-se para trás. Brenna não pôde evitar de seguir-
lhes o exemplo. Atônita, soltou uma exclamação alta de surpresa
ao ver o marido a caminho do banco de testemunhas.
Ao passar por ela, fitaram-se por um breve segundo e Brenna
não discerniu, nos olhos castanhos, nenhum traço de ódio,
desejo de vingança ou loucura, e sim a antiga melancolia.
— Gostaria de testemunhar, milorde? — perguntou o
presidente do Supremo Tribunal.
— Gostaria, Excelência — Raymond replicou, olhando mais
uma vez para Brenna antes de continuar. — Quanto às acusações
de adultério, contra esta mulher, minha esposa, não posso
afirmar se é culpada ou inocente. Aliás, isso não me afeta, pois o
julgamento que ela receberá aqui será ínfimo perante que Deus
lhe dispensará. Por isso, peço-lhes clemência para a ré.
Várias exclamações ecoaram pela sala e muitos juízes que co-
chilavam por causa do calor aumentado por suas togas e perucas,
voltaram a ficar alertas.
— E em referência à legitimidade do menino, Robert
Hubbard, milorde?
Raymond olhou de soslaio para Brenna e, então, fitou os
juízes com firmeza.
— Declaro que meu primo, George Villiers, duque de

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OS AVENTUREIROS

Buckingham, cometeu um grande engano. Na época da


concepção, eu, realmente, tive acesso à minha esposa. Milordes,
digo e sustento que Robert Hubbard é filho do meu sangue e
meu legítimo herdeiro.
Foram precisos longos minutos para os juízes implantarem o
silêncio de volta e, enquanto isso, Raymond desaparecia por uma
porta lateral.
— Sob a luz das palavras da última testemunha — o
presidente do Supremo Tribunal entoou, finalmente, em voz
solene —, poderá apenas existir um veredicto. Brenna Hubbard,
viscondessa Poole, não foi culpada por trazer um filho ilegítimo a
um par do reino. Todavia, nós a julgamos culpada de adultério. O
que diz a Igreja?
Vagarosamente, o velho arcebispo se levantou e fitou Brenna
com severidade.
— Viscondessa Poole, a Igreja também a julga culpada do
pecado de adultério e portanto a condena a pagar a penalidade
de quinhentas libras e a comparecer a St. PauPs Cross no
domingo vindouro, quando será publicamente excomungada.
Depois disso, fará a penitência andando descalça e enrolada num
lençol branco desde St. PauPs Cross até o Savoy, onde ficará, em
pé, para que toda Londres, a ralé e a nobreza, possam ouvir suas
palavras de contrição!
Clement insistia com Brenna para se submeter a penitência,
sir Edward enviava mensagem da Sergeanfs Inn suplicando-lhe
que levasse em consideração a posição dele no Parlamento e lady
Hatton a avisava do perigo de perder o filho e voltar à prisão de
Fleet.
A resposta de Brenna aos três era sempre a mesma.
— Nada poderia ser tão insultante à minha vida já
muitíssimo aviltada do que o cumprimento dessa sentença
injusta. De forma alguma, mesmo que seja condenada à morte,
farei essa penitência!
No domingo marcado, juntou-se uma grande multidão ao
longo do caminho de St. PauTs Cross até a Strand. Muitas das

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OS AVENTUREIROS

pessoas sentiam simpatia pela lindíssima viscondessa Poole,


porém não conseguiam resistir à tentação de vê-la sujeita ao
castigo humilhante. Esperaram em vão, pois ela não apareceu.
Clement voltou a Cripplegate e Brenna indagou, nervosa:
— Havia muita gente?
— Nem queira saber. Você teria tido muito mais
espectadores ao seu passeio domingueiro do que Raleigh teve na
execução dele!
Apesar das palavras irônicas, as feições de Clement revelavam
a grande preocupação causada pela irmã.
— Não se aflija, eles acabarão cedendo — Brenna disse.
— Duvido, agora é uma questão de prestígio para
Buckingham e ele não vai abrir mão disso.
— Nenhuma notícia de Paris? — perguntou ela.
— Ainda não. Tenho um mensageiro em Dover e cavalos des-
cansados em vários pontos do caminho de lá até aqui para, assim
que chegar, a notícia nos alcançar depressa.
Buckingham não perdeu tempo em exercer a autoridade.
Logo apareceram guardas em Cripplegate com uma intimação
para que Brenna cumprisse a penitência determinada pelo
arcebispo no domingo seguinte. Caso desobedecesse, ela perderia
todas as propriedades e bens, além de ficar sujeita à vontade do
rei de aprisioná-la.
Brenna rasgou o papel e devolveu os pedaços ao guarda.
— Que bens e propriedades? E, se for presa, será pela vontade
de Buckingham e não do rei! — declarou ela, irritada.
Nessa mesma tarde, apesar da chuva forte, a casa passou a ser
vigiada por guardas. O duque tinha a presa numa rede e não
queria correr o risco de perdê-la.
Brenna sentia pressões de todos os lados, todavia mantinha a
aparência calma e recusava-se a ceder. Interiormente, encontra-
va-se profundamente atemorizada, pois receava perder o filho e
voltar à prisão de Fleet por tempo indeterminado.
Com o passar dos dias, seus temores começaram a invadir os
sonhos, durante os quais via as ratazanas da prisão correndo à

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OS AVENTUREIROS

procura de alimento ou o enforcamento de algum desgraçado.


Várias vezes acordou aos gritos.
Na manhã seguinte, perguntava, ansiosa:
— Notícias da França?
— Ainda não, mas não perca as esperanças — Clement res-
pondia consciente da inutilidade dessas palavras.
Embora não significassem nada para o bebê, Brenna enviava
bilhetinhos carinhosos a Robert na casa da mãe. Dizia-lhe que
logo estariam juntos novamente e esses dias de separação seriam
esquecidos. Na verdade, as frases eram dirigidas a si mesma,
numa tentativa de manter o estado de ânimo.
Monsieur François de Bassompierre era um militar francês
ilustre, alto e grisalho, e, no momento, emissário de Richelieu na
Inglaterra. Este último detalhe ele explicou a Brenna logo depois
de entrar na sala e se apresentar. Abaixou a voz, então, e
perguntou-lhe:
— Milady, posso falar abertamente?
— Com toda certeza, estamos a sós.
— A senhora tem um amigo muito poderoso na Inglaterra e
outros mais ainda na França.
O coração de Brenna disparou e, por um momento, não
conseguiu falar.
— Monsieur, o senhor me traz notícias do seu país?
— Não, milady, isso não seria apropriado. Aqui, sou hóspede
do rei e temo que a senhora não goze de sua simpatia.
Brenna franziu a testa, intrigada. Se esse homem não trazia
mensagem alguma da França, o que estaria fazendo ali?
— Vim até aqui para lhe dizer adeus.
— O quê? Monsieur...
Ele fez um gesto pedindo silêncio e atenção.
— Amanhã, à meia-noite, partirei da ilha de Guernsey para
St, Maio, na França.
Brenna franziu mais ainda a testa enquanto assimilava o que
acabava de ouvir até que captou o significado por detrás das pa-
lavras. Um navio francês, com um fugitivo dentro, teria mais pro-

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OS AVENTUREIROS

babilidades de passar despercebido se levantasse ferros na ilha de


Guernsey do que em Dover. Sorriu e disse:
— Acredito ter compreendido monsieur.
— Embarco na galé Gascogne — informou ele ainda. — E
agora, milady, adieu.
— Boa viagem, monsieur.
Bassompierre mal acabava de entrar na carruagem quando
Brenna correu ao encontro do meio-irmão no escritório dele.
— Clement, Clement! Chegou a hora! Amanhã, à meia-noite,
embarco num navio na ilha de Guernsey!
Alerta, ele verificou se ninguém os ouvia.
— Guernsey? Isso quer dizer que precisamos ir esta noite e
viajar depressa.
Só então Brenna se lembrou de que era vigiada.
— Clement, e os guardas? Se eu ultrapassar os portões da
cidade, eles me prenderão.
— Não se preocupe com esses cães, minha querida, tenho um
plano para afastá-los daqui — afirmou ele com um riso satisfeito
e entusiasmado.
— Vou arrumar minhas coisas e, por favor, Clement, arranje
um criado de confiança. Preciso mandar uma carta à minha mãe
— Brenna informou.
— Está bem, mas lembre-se, leve pouca coisa. No quarto,
Brenna se apressou a escrever. "Mamãe,
Eu lhe suplico que se compadeça de minha miséria, pois só
assim poderá compreender a atitude que me vejo forçada a to-
mar. Lembre-se de que sou sua filha e, se não fugir, serei a
criatura mais desgraçada do mundo. Tenha piedade de mim, mãe
querida, da mesma forma que teria de um pobre que lhe
mendigasse esmolas.
Amanhã, à meia-noite, alcançarei a minha felicidade, pois
partirei para a França de Guernsey. Todavia, sem meu filho, não
serei totalmente feliz. Peço-lhe que leve Robert ao meu encontro
na ilha, para que ele venha a conhecer o pai verdadeiro e alegre a
vida da mãe que o deu à luz.

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OS AVENTUREIROS

Com humildade e amor, sua filha, Brenna.


— Represente direito — Clement recomendou enquanto
arrumava a peruca preta na cabeça do rapaz.
— Eu me sinto um tolo com estas roupas de mulher —
reclamou ele ao fitar Brenna, encabulado.
Eles eram da mesma altura e, com as saias rodadas, seria
difícil não o confundirem com ela a distância.
— Acho que isto aqui vai ajudar bem — disse ela,
acrescentando um xale à vestimenta.
— Perfeito! — Clement exclamou, satisfeito. — E agora,
apresse-se, a carruagem está esperando. Lembre-se de que, se
tudo sair bem, você receberá mais dinheiro do que ganha
durante um ano inteiro.
Enquanto o rapaz deixava a casa, Clement e Brenna posta-
ram-se a uma janela para ver se o plano daria certo.
Com olhares furtivos ao redor e passos pequenos como lhe
haviam instruído, ele desceu os degraus e caminhou até o portão.
Do outro lado da rua, quatro cabeças levantaram-se e
observaram a silhueta em movimento. Pouco depois o rapaz
entrava na carruagem e esta partia depressa.
— Mexam-se, seus desgraçados! — Clement sussurrou. Como
se o tivessem ouvido, os guardas correram em busca dos cavalos
numa viela próxima e, em questão de minutos, partiam a galope
atrás da carruagem.
— Deu certo, deu certo! — Brenna gritou, excitada, batendo
palmas como uma criança alegre.
— Se deu! E lá está a nossa carruagem, que seguirá na direção
oposta. Vamos depressa! — Clement convidou ao tomar-lhe o
braço.
Brenna não precisava de estímulo. Partiu correndo, pois ia ao
encontro da liberdade e do amor.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXXVII

O’Hara caminhava de um lado para o outro da praia


pedregosa, num trajeto sinuoso à volta de enormes rochas
desgastadas pela ação do mar.
De perto da água, Bassompierre e o capitão da Gascogne ob-

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OS AVENTUREIROS

servavam as ondas bravias e o balançar da embarcação.


— Monsieur? — o capitão chamou.
Rory mudou a direção dos passos e se juntou a eles.
— Monsieur, o tempo está piorando e a maré...
— Só mais alguns minutos.
— Está bem, monsieur, mas apenas um pouco mais. Se não
partirmos logo, teremos de desistir da viagem por hoje.
Rory assentiu com um gesto de cabeça e tomou a trilha que
levava até o alto do penhasco; logo se encontrava ao lado de Cle-
ment, cujo nervosismo era evidente. Ambos olharam para
Brenna, que, a poucos passos, retorcia o lenço entre os dedos
esguios. Seu rosto estava tenso e mal se via o lábio inferior que os
dentes mordiam.
— Brenna — Rory chamou baixinho.
— Um pouco mais de paciência, meu querido. Ela virá, tenho
certeza — disse Brenna num tom de voz aflito.
— Brenna, o vento está mudando e...
— Um cavalo... Olhem lá — Brenna gritou ao sair correndo,
seguida por Rory e Clement.
De fato, um cavaleiro se aproximava, porém com a escuridão
era impossível determinar se era pessoa amiga ou não.
Pouco depois, as nuvens se entreabriam e o luar filtrou pelas
brechas.
— Christopher! — Brenna gritou. — E o criado de minha
mãe — avisou por sobre o ombro.
— É ele mesmo, mas vem sozinho — Clement resmungou.
Rory olhou para o rosto largo dele e percebeu a preocupação
que o dominava.
Christopher parou o animal com um puxão brusco das rédeas
e desmontou no mesmo instante.
— Minha mãe, Christopher — Brenna gaguejou ofegante ao
agarrá-lo pelo braço.
— Onde está minha mãe?
Com tristeza e culpa estampadas no olhar, a criada tirou uma
carta do interior do gibão de couro e a entregou a Brenna, sem

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

conseguir fitá-la.
— O que é isto?
— A resposta de minha ama ao seu pedido — respondeu ele,
mantendo o olhar baixo.
Brenna abriu o lacre depressa e, ao ler a mensagem, o rosto
empalideceu mais ainda e o corpo cambaleou.
— Não, meu Deus... não quando eu já estava tão perto!
Clement a amparou nos braços e Rory apanhou a carta. "Minha
querida filha,
Em primeiro lugar, quero lhe dizer que a amo mais do que a
qualquer outra pessoa neste mundo. O que você fez está feito, e
o que fizer no futuro não está em meu alcance impedir. Todavia
posso evitar que arruíne o futuro do seu filho. Sir Edward
declarou, publicamente, que Robert é seu neto, assim como eu
também o fiz. Raymond já preencheu todas às formalidades para
garantir a Robert o direito de primogenitura e o título de lorde
Poole.
Mesmo que eu quisesse levar-lhe o seu filho, seria impossível,
pois Buckingham me mantém vigiada como se eu fosse uma
criminosa. Se deseja mesmo partir para a França, querida filha,
que seja assim, porém lembre-se de que sua família, inclusive seu
filho, estão na Inglaterra. Eliza. H."
Rory praguejou e amassou a carta.
— Preciso voltar — Brenna murmurou sem expressão na voz
e com o rosto angustiado.
— Não, menina — Clement contradisse, com o braço em
seus ombros.
—: Pense na prisão de Fleet. Não haverá quem segure a fúria
de Buckingham agora.
— Clement tem razão — Rory afirmou, tomando-a para os
braços dele.
O corpo de Brenna tremia, porém ela não chorava. Sentia
como se não tivesse mais lágrimas.
— Minha mãe está certa, minha família e meu filho estão
aqui. Preciso voltar.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Não vou deixá-la — disse Rory, fitando-a bem dentro dos


olhos.
— Ele é nosso filho! — Brenna murmurou. — Você
concordaria que nós dois o abandonássemos?
Essas palavras foram como uma punhalada em Rory. Todavia
ele continuou insistindo, pois sabia que a batalha pela conquista
do filho teria mais êxito se fosse travada pelos dois juntos na
França.
— Nós ainda temos amigos aqui como Clement, a rainha e
outros. Com o tempo poderemos conseguir que o menino...
— Não. Se eu for embora, enquanto Buckingham existir, ele
não deixará que eu veja o meu filho de novo, além de perseguir o
resto de minha família.
A expressão de O’Hara se tornou inflexível e os lábios, uma
linha dura. Com delicadeza, afastou Brenna dos outros.
— Minha querida, deixe que sua mente volte para o passado
distante, quando você era uma menininha sentada num banco
nos jardins de Holdenby. Um homem alto, de cabelos negros,
mas já meio grisalhos, tinha ido visitá-la.
— Não me recordo.
— Tente — Rory insistiu ao mesmo tempo que soltava a
corrente de ouro do pescoço. — Você passou umas duas horas
com ele no jardim e, quando o homem já ia embora, você correu
até a carruagem e lhe deu isto — Rory contou, pondo a corrente
em suas mãos.
Brenna segurou-a apenas com uma delas e com a outra
massageou a testa enquanto forçava a memória. As lembranças e
as palavras vieram meio hesitantes enquanto abria o medalhão.
— Havia outras pessoas na carruagem — disse ela.
— Exatamente, uma mulher, um menino e uma menina.
— Isto aqui foi presente de despedida de minha mãe.
— A mulher era Annie Carey, a irmã Anna da abadia de
Fontevrault, a menina, Shanna e o menino, eu.
Os olhos de Brenna arregalaram-se e ela os levantou do me-
dalhão que fitava. -

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OS AVENTUREIROS

— E o homem era Rory O’Donnell. Rory concordou com um


gesto de cabeça.
— Desde aquele dia, até o fim da vida, ele usou isso perto do
coração.
De repente, Brenna se lembrou dos olhares maliciosos com
que a fitavam enquanto estava crescendo e das acusações veladas
de sir Edward no auge das discussões com sua mãe.
— Não, não poderia...
— É verdade, Brenna, minha querida. Sem que soubéssemos a
historia se repetiu conosco.
Brenna sentia-se muito atordoada. Todos eles tinham vivido
uma mentira. Seria ela, Brenna, a razão do ódio profundo entre o
pai e a mãe?
Seria essa a razão pela qual sir Edward a havia vendido com
tanta facilidade para se casar contra a vontade?
Agora se lembrava de tudo. Naquele dia distante, ao voltar do
jardim, correra para a mãe a fim de falar-lhe sobre a visita, porém
EIizabeth, em prantos, não a deixara contar nada. Outros fatos
surgiram-lhe da memória, como a insistência da mãe em
acompanhá-la à França da outra vez e, ainda, as horas seguidas
que Elizabeth passava no quarto de O’Donnell na abadia e do seu
semblante sereno quando emergia de lá. A voz grave de Rory
interrompeu-lhe os pensamentos:
—Você tem tanto da Irlanda em suas veias quanto eu, e nosso
filho Robert mais do que nós dois. O que me diz agora, menina
Londres ou Paris? '
Brenna encostou a cabeça no peito de O’Hara e murmurou-—
Paris.

CAPITULO XXXVIII

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

FRANÇA

Paris era um mundo novo para Brenna. Entristeceu-se quando


irrompeu a guerra entre a França e a Inglaterra, mas as derrotas
sofridas por Buckingham não a deprimiam. No seu entender, ele
não era a Inglaterra e, quanto mais depressa perdesse o poder,
melhor para o país.
Como previra, o duque não havia cedido em relação a seu
filho. Todas as súplicas ou ameaças, mesmo partindo de fontes
influentes, não o abalavam. Robert Hubbard não teria permissão
para deixar a Inglaterra.
Na tentativa de esquecer um pouco a saudade do filho, Bren-
na se entregou à vida social parisiense. Tornou-se uma das
favoritas da corte, amiga da solitária rainha Anne e uma das
poucas mulheres recebidas por Sua Eminência, o cardeal de
Richelieu. Isso se devia, em parte, ao constrangimento que ela
infligira a Buckingham e que tanto prazer causara ao cardeal. Por
essa razão, esperava que, um dia, Richelieu fosse o poder que lhe
devolveria o filho.
Rory foi promovido a coronel da guarda do cardeal e alugou
uma casa na rua St. Antoine, que redecorou completamente, de
acordo com o gosto de Brenna.
— Ah, meu querido, estou no auge da alegria! Só não entendo
como conseguiu fazer tudo isso com o soldo de coronel —
Brenna comentou, curiosa.
— Tem razão, ele não daria nem para o início da reforma —
Rory confirmou enquanto o riso vibrante o dominava. —
Quando vai se convencer de que sou um homem riquíssimo,
acima dos sonhos de muitos homens? Talbot transformou
Ballylee num pequeno império. Não se preocupe, minha doçura,
podemos ter tudo o que desejamos.
Embora Rory conservasse seus aposentos no quartel dos mos-
queteiros, passava poucas noites fora da casa da rua St. Antoine,
onde ambos encontravam muita alegria e amor.
A guerra corria favorável à França e Rory foi promovido a co-

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OS AVENTUREIROS

mandante da guarnição em Paris. Ele perdera o gosto pelas ba-


talhas e Richelieu respeitava seu ponto de vista.
Contudo os momentos de depressão começaram a surgir
entre os de alegria e despreocupação. Brenna sentia saudade não
só do Olho como da Inglaterra também, e Rory desejava muito
voltar a Irlanda. Ambos sabiam da impossibilidade de realizarem
seus anseios e por isso os guardavam para si próprios.
— Venha até a janela. Olhe lá — Rory disse, com o indicador
apontado. Brenna soltou uma exclamação ao ver a magnífica car-
ruagem parada à porta. Era branca com arabescos dourados e
quatro cavalos, da mesma cor, sob arreios finíssimos e engastes
de prata.
— Quem será... — começou ela a questionar sobre a
identidade da pessoa possuidora de tal maravilha.
— E sua — disse Rory com um sorriso.
— Deus do céu, que extravagância! — Brenna exclamou.
— Não, apenas uma necessidade. Se eu a trouxe para o exílio,
quero que leve uma vida de rainha.
Um leve arrepio percorreu a pele de Brenna. Na verdade, era
ela quem os mantinha exilados agora. Caso O”Hara desejasse, po-
deria voltar para Ballylee. Contudo, ele não faria isso sem a sua
companhia, o que não era possível, pois Paris continuava sendo o
único lugar seguro para ela.
— Vamos dar um passeio pelo parque e exibir o seu novo
acessório?
Brenna riu como uma criança feliz e tomou o braço oferecido
por Rory. A carruagem, os cavalos e a libre elegante do lacaio a
faziam sentir-se mesmo uma rainha.
Passearam ao longo do Sena e então foram a Tuileries. Lá, ao
descerem da carruagem, tiveram a impressão de que os jardins
eram um mar colorido e envolvente.
— São lindíssimos! — Brenna comentou, respirando o ar per-
fumado por dezenas de essências emanadas dos canteiros.
— Como você também é — Rory replicou com voz meiga. Ela
corou e apertou-lhe de leve o braço.

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OS AVENTUREIROS

— Não será inconveniente passearmos juntos assim tão aber-


tamente? — Brenna murmurou.
— Em Paris, não passamos de mais um casal de jovens
amantes
— respondeu ele e acariciou-lhe a mão.
Depois de caminharem pelas alamedas durante algum tempo,
sentaram-se em um banco.
— Monsieur le cardinal me contou que Buckingham está ar-
mando novos navios a fim de fazer outra tentativa de libertação
de La Rochelle — comentou Rory, bem-humorado.
Brenna respondeu no mesmo tom de voz.
— Seria de se pensar que, com tantas atribulações, o duque
não tivesse tempo de se preocupar comigo.
— Tem razão, mas, infelizmente, sabemos que Buckingham,
como Richelieu, não perdoa quem atravessa seu caminho, nem
mesmo uma viscondessa fugitiva.
— Porém, ao contrário de Sua Eminência, o duque não
possui nem os fundos nem a habilidade para alcançar seus alvos.
— Observação muito bem feita, minha lindeza, mas
deixemos a política de lado e vamos ver as rosas lá adiante nesta
alameda
— Rory convidou.
Caminharam entre os canteiros floridos, parando de vez em
quando para apreciar uma rosa mais bonita ou mais rara. De
repente, Brenna parou assustada e crispou a mão no braço de
Rory.
— O que foi? — perguntou ele, preocupado.
— Eu... aquele homem... Cada vez que saio eu o apanho me
observando de longe.
Rory seguiu seu olhar. O homem, alto e de vasta cabeleira
grisalha, encontrava-se a alguma distância num pequeno aclive.
Embora parecesse um desocupado qualquer imerso na
ociosidade, não era possível deixar de se perceber a intensidade
com que ele fitava Brenna.
— E melhor eu ir ver o que esse malandro pretende. Espere

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OS AVENTUREIROS

aqui — Rory resmungou, aborrecido.


Mesmo a distância, podia-se ver que as roupas sujas e esfar-
rapadas do homem tinham tido seus dias de elegância e que os
cabelos não recebiam cuidados há vários dias.
Quando Rory já se encontrava mais perto, ele pulou e saiu em
uma carreira desabalada por entre os canteiros e sebes, mas Rory
conseguiu reconhecer-lhe as feições.
— René... René de Gramont! Espere!
Por uns cinco minutos, Rory correu de um lado para o outro
dos jardins, sem êxito algum. René tinha desaparecido.
"Estranho" ponderou enquanto voltava para o lado de Brenna,
"ele não precisava ter fugido. Do que estará com medo?"
Pressionada pelo calor, Brenna se refugiara sob a copa
frondosa de uma faia. Ao ver-lhe o rosto na sombra, uma idéia
estranha surgiu na mente de Rory.
Desde a chegada a Paris, Brenna gastava muitas horas ao ar
livre e o sol acabara por lhe amorenar a pele clara.
Com sua altura, silhueta e cabelos negros, quando vista de
longe, dava a impressão de ser a irmã gêmea de Shanna.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XXXIX

INGLATERRA

O duque de Buckingham sentava-se à cabeceira da longa


mesa onde tomava o café da manhã. Seu humor era péssimo.
Oficiais, mensageiros e ordenanças o rodeavam, e, de vez em
quando, ele olhava pela janela da sala.
Na baía, a alguma distância da casa de High Street, onde se
hospedava, o duque podia ver Portsmouth Harbor e os vários
navios ancorados. Eles formariam a segunda expedição que
tentaria livrar os protestantes de La Rochelle do cerco francês. A
primeira havia fracassado e o sabor da derrota ainda amargava a
boca do duque.
Essa era apenas uma das muitas questões que lhe
atormentavam a mente esta manhã. Um pouco antes de deixar
Londres, o seu amigo, dr. Lambe, tinha sido assassinado nas ruas
pela população. Uma tarde, ao sair do teatro Fortune, ele havia
sido seguido pela multidão, que gritava: "Quem governa o reino?
O rei. Quem governa o rei? O duque. Quem governa o duque? O
demônio!"
Normalmente, a morte de alguém, amigo ou não, pouco
afetava George Villiers. Contudo, a mesma multidão, no dia
seguinte, continuara gritando pelas ruas e a pregar cartazes.
"Deixem Charles e George fazerem o que podem,
O duque deverá morrer como o Dr. Lambe.
O duque de Buckingham estremeceu com a lembrança.
"Ralé imunda, suas palavras mudarão quando eu voltar vito-
rioso da França!", prometeu a si mesmo.
— Alguma coisa errada com a comida, Vossa Graça?
— Não, estou sem fome esta manhã.
Tocou de leve o lado esquerdo do casaco. Sob ele, encontrava-
se o trabalho escrito, feito na noite anterior, e que constava das

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OS AVENTUREIROS

exigências a serem feitas a Richelieu no dia em que a Inglaterra


se tornasse vitoriosa.
Eram elas:
La Rochelle deveria ser um Estado protestante independente.
Todos os prisioneiros ingleses seriam libertados sem o
pagamento de resgate. Todos os exilados nobres na França
deveriam ser enviados para a Inglaterra.
O último ponto fez Buckingham sorrir. De uma vez por todas,
ele poria fim, à sua maneira, nessa questão idiota com a
viscondessa Poole e o irlandês O’Hara.
— Vossa Graça?
Buckingham olhou interrogativamente para o ordenança.
— A carruagem de Vossa Graça está à porta.
O duque se levantou e, seguido por lorde Cleveland e outras
pessoas de sua comitiva, deixou a sala e entrou no vestíbulo onde
ficava a porta da frente. Já quase a alcançava quando um homem
alto e de expressão soturna apareceu à sua frente, saído de por
detrás de uma cortina preta de veludo.
— Você?! — Buckingham rugiu ao reconhecê-lo. — Como se
atreve...
— Que Deus tenha misericórdia de sua alma vil! — o homem
gritou ao avançar com a mão esquerda deformada no ar.
George Villiers viu o braço direito dele levantar-se e, tarde
demais, notou a adaga que empunhava. O duque mais ouviu do
que sentiu a lâmina penetrar-lhe no peito.
A sua volta, estabeleceu-se a confusão. Lorde Cleveland
amparou-lhe o corpo e outros se aproximaram. Buckingham
agarrou o cabo da adaga e puxou-a para fora.
— Vilão! — gritou enquanto desembainhava a espada e avan-
çava em direção ao agressor.
Entretanto, o golpe recebido tinha sido fatal. Com sangue
brotando de sua boca, Buckingham caiu de encontro a uma mesa
e depois ao chão, já morto.
O assassino tirou o chapéu da cabeça e dele sacou uma nota
que entregou calmamente a lorde Cleveland.

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OS AVENTUREIROS

"O homem que não se dispõe a sacrificar a sua vida pela


honra de seu Deus, de seu rei e de seu país é um covarde e não
merece ser soldado ou chamado de cavalheiro."
— E você se considera um merecedor de tal honra, seu assas-
sino? — lorde Cleveland gritou, furioso.
— Sim, milorde. Apenas não sou um assassino, e sim um pa-
triota. Meu nome é John Felton.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XL

FRANÇA

É pecado, sei disso, regozijar-se com a morte de outro ser


humano. Entretanto, sinto um grande alívio com o fato.
Esse era o ponto de vista de Brenna e, segundo as notícias
recebidas da Inglaterra, também de muita gente.
Toda Londres festejava o acontecimento. Os homens nas
tavernas bebiam à saúde de John Felton e canções eram
compostas em sua honra. Tão eufórico e agitado se encontrava o
povo que o culto religioso do sepultamento de Buckingham na
Abadia de Westminster teve de ser celebrado em segredo.
Entretanto, a morte do duque de pouco ou nada valeu para a
solução do problema de Brenna, pois a vontade dele continuava a
ser feita pelo rei. Nem súplicas secretas feitas à rainha Henrietta
Maria lhe devolveram o direito de possessão do filho.
O bispo Laud, por razões diferentes, continuou nas pegadas
de Buckingham. Ele pretendia solidificar o poder da Igreja da
Inglaterra sobre os puritanos e papistas. Com esse fito, o bispo
planejava transformar a excomunhão e a fuga de Brenna para
evitar a penitência num exemplo.
Com o advento da paz, começaram a chegar na corte francesa
emissários ingleses que insistiam com Richelieu e o rei Luís XIII
para expatriarem a viscondessa Poole a fim de que fosse punida.
Quando as primeiras tentativas falharam, Laud enviou mais ho-
mens com a missão de entregarem, pessoalmente, o mandado de
excomunhão a Brenna. Esse era o primeiro passo antes de outras
providências a serem tomadas contra ela na Inglaterra.
Havia dias em que Brenna mal se atrevia a sair de casa, pois,

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OS AVENTUREIROS

várias vezes, em lugares bem diferentes, os tais homens já


haviam tentado lhe impingir o documento. Esforçaram-se ainda
em subornar as criadas e, em certa ocasião, por se encontrar
sozinha em casa, atendera à porta apenas para se ver à frente de
um dos emissários do bispo Laud. Por muita sorte, conseguira
impedir a entrada dele e se trancar por dentro.
Seu estado nervoso piorava mais e mais e não passava um dia
sequer sem se ver atacada por forte dor de cabeça.
Com o correr do tempo, seu estado de tensão começou a
prejudicar o relacionamento com Rory. Sem que pudessem
evitar, o amor que nutriam um pelo outro já se ressentia da
situação. O’Hara não podia manter esperanças de voltar para a
Irlanda com ela e Brenna, de conseguir retornar à Inglaterra. E,
acima de tudo, a saudade do pequenino Robert corroia as
entranhas de Brenna.
Nem mesmo a vida agitada e alegre da corte francesa ou a
própria Paris eram suficientes para afastar a imagem do filho de
seu pensamento. Brenna se tornou irritadiça com os que a rodea-
vam, inclusive Rory e, cada vez menos, saía de casa.
Rory podia perceber a brecha que se abria entre eles, mas
sentia-se impotente para evitá-la. Ele também tinha sua saudade
e, de vez em quando, ela o traía. As cartas vindas de Ballylee
instando-o para voltar chegavam, agora, com muito maior
freqüência e com um conteúdo cada vez mais enigmático. Até
que, um dia, David Talbot surgiu em Paris com o propósito de
implorar pessoalmente.
David havia mudado muito pouco no decorrer dos anos. A
agilidade do corpo magro e rijo continuava a mesma e os olhos
cinzentos, sob as pálpebras semicerradas, ainda fascinavam
Brenna com sua intensidade.
Ele falava sobre a mulher e os filhos com amor e
encantamento. Aileen havia se desabrochado numa verdadeira
moça irlandesa e preocupava o pai não porque fosse
namoradeira, mas sim pelo contrário.
— Juro que não encontro outra explicação. A educação no

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OS AVENTUREIROS

convento teve muita influência nessa menina. As filhas de nossos


vizinhos já estão todas casadas, e a maioria é uns cinco anos mais
nova do que ela. Logo Aileen completará vinte anos e ainda
estará solteira. Nenhum rapaz vai querê-la mais! — David
reclamou a Rory e Brenna.
Talbot, porém, não podia esconder o orgulho de pai ao falar
nos cabelos loiros da filha mais velha ou da beleza mágica de seu
rosto, Achava que a pequenina Maura seguiria pelo mesmo cami-
nho de formosura e já era considerada a princesinha de Ballylee.
— E Patrick, o caçulinha! Esse, sim, é um menino e tanto!
Não nega ser um O’Hara. E parecido com você, Rory, e com
Shanna, forte como um touro e esperto feito uma raposa. Já
precisei castigá-lo várias vezes, pois é tão arteiro que deixa a mãe
louca.
Brenna se esforçava para abafar as emoções. O coração se
confrangia ao ouvir David descrever as alegrias e lutas diárias
provocadas pela criação dos filhos. Muitas vezes, durante a
conversa, ela se levantava e ia até o aparador, onde fingia
arrumar os copos e garrafas, mas seu intuito era manter-se de
costas para que os homens não lhe vissem a mágoa estampada no
rosto.
Rory também sentia o apelo da saudade pelo filho que não
tinha ao lado dele e da família tão distante na Irlanda. Brenna
podia ler isso nos olhos escuros cada vez que ele os relanceava
em sua direção.
A conversa, então, girou sobre política e Rory demonstrou um
mal-estar maior ainda.
— Eu lhe afirmo, meu amigo, agora não passa de uma
pequena marola, mas um dia, não muito distante, ela se
transformará numa onda gigantesca. Ninguém acredita em mim,
porém sei do que estou falando, pois vivo sob o calcanhar inglês
há muito tempo.
Rory sacudiu a cabeça e rodou o copo entre as mãos.
— Dizem que Charles empenhou, secretamente, as jóias da
coroa aos holandeses para conseguir um empréstimo.

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OS AVENTUREIROS

— Acredito — disse Talbot. — Sem receber dinheiro do


Parlamento, ele precisa arranjá-lo em outro lugar. Nossos
aluguéis e impostos sobem a cada semana, e não se passa um dia
sem que os colonizadores não se apossem de mais terras, que
pagam com o suor irlandês!
Talbot interrompeu para sorver um gole de bebida e, antes de
continuar, olhou de soslaio para Brenna.
— Sempre tivemos de conviver com o banditismo, todavia,
agora, suas fileiras engrossaram não só com irlandeses miseráveis
como também com soldados ingleses que há muito não recebem
o soldo. O lorde representante está sempre à procura de
maneiras para conseguir mais dinheiro com maior rapidez. Ele
agora voltou os olhares para o oeste, O” Hara, em direção a
Connaught, Sligo e Ballylee.
O silêncio que acompanhou as palavras de Talbot assemelha-
va-se a uma neblina densa. O olhar pesaroso de Brenna não se
desviava do rosto de Rory e sua tristeza aumentou mais ainda
com a declaração seguinte de David.
— Eu armaria os vizinhos e arrendatários, porém não tenho
certeza de que eles lutariam unidos a um escocês.
A inferência era clara e a tensão provocada por ela podia
quase ser tocada com a mão.
— Dublin e o Parlamento irlandês não podem fazer nada?
— Dublin, O’Hara, é uma cidade inglesa e o Parlamento não
passa de um instrumento nas mãos da Coroa. Rory O’More, sir
Phelim O’Neil, e sabe lá Deus quantos mais, roncam como
nuvens negras de tempestade lá nas montanhas de Ben Bulben.
Eles acham que a inquietação na Inglaterra poderá ajudá-los a
reconquistar suas terras irlandesas. Quando lhes digo que
tenham paciência, respondem que posso falar assim porque
possuímos nossa terra. Rory, se a rebelião chegar a Fire, nós não
teremos outra escolha senão entrar nela.
O rosto de Rory expressava tanta dor e frustração que Brenna
afastou o olhar por não suportar seu sofrimento.
— Esses olhos cinzentos, David, podem mesmo enxergar

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

além do amanhã? — Rory perguntou bem devagar.


— Podem, sim, meu amigo, e eles vêem a realidade. Os irlan-
deses são sonhadores, cancioneiros, poetas e guerreiros. É
preciso um escocês como eu, ou um holandês, alemão, até
mesmo um francês, para mostrar o progresso ao irlandês.
Contudo, para liderá-lo na guerra, é necessário um compatriota
seu! — Talbot afirmou e outro longo momento de silêncio tenso
os envolveu.
Brenna o quebrou com voz tão calma que ela mesma ficou
surpresa.
— Talvez você devesse voltar, O’Hara.
— Não!
— Pelo menos por pouco tempo. Eu poderia ficar em Fonte-
vrault. A irmã Anna...
Rory se levantou com a rapidez de um tigre e, com um gesto
brusco, atirou o copo no consolo de pedra da lareira.
— Não! — gritou ele. — E juro por Deus nos céus que não
quero mais ouvir falar nisso!
Os dias transformaram-se em semanas e David Talbot conti-
nuava na França. Ele não tocou mais no assunto da volta para a
Irlanda com Rory O’Hara. Em vez disso, passou a dedicar sua
atenção a Brenna.
A velha amizade renasceu com facilidade e isso deixava
Brenna contente, pois trazia uma mudança no seu dia-a-dia
tristonho. Rory agora, por causa do relacionamento tenso entre
ambos, passava dias seguidos longe da rua St. Antoine.
Brenna e David faziam quase todas as refeições juntos e gos-
tavam de conversar à noite. Mais uma vez ele assumiu o papel de
irmão mais velho, em cujo ombro ela podia chorar as mágoas.
Contudo, qualquer que fosse o assunto da conversa havia sempre
uma certa tensão entre ambos.
— Você se corresponde com lady Hatton?
— Com freqüência. Ela me mantém informada sobre Robert.
Diz ela que o menino gostaria de me conhecer e que Raymond
parece tê-lo aceitado como se fosse filho dele.

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Mary Canon –
The Survivors
OS AVENTUREIROS

— Contou a Elizabeth que sabe quem era seu pai?


— Não, pois não vejo razão para fazê-lo. Hoje sei muita coisa
sobre Rory O”Donnell e compreendo por que minha mãe o amou
tanto.
— A tal ponto que o deu de volta à Irlanda.
— Por favor, David.
— Sinto muito, menina, mas isso precisa ser dito.
— Shanna também desistiria de você. por amor? Talbot
hesitou por um segundo apenas.
— Acredito que sim, ela é uma mulher extraordinária.
Ballylee é a sua vida e ela a ama mais ainda do que eu. E uma
criatura de fibra, Brenna, e chega até a ser inflexível. Talvez seja
por isso que eu a amo tanto.
— Minha mãe é assim também. Ela seria capaz de se tornar
puritana apenas para se opor ao rei. Aliás, tenho medo de que ela
eduque Robert nessa linha de idéias. Ela possui uma grande
fortaleza de espírito, muito mais do que eu. Porém não lamento a
diferença entre nós porque lady Hatton magoou muitas pessoas
durante a sua vida.
— E você jamais o fará — Talbot garantiu.
Brenna continuava a falar, pulando de um assunto para outro,
e David parecia não se importar. Para ela era como se estivesse
num confessionário descarregando o peso enorme que existia em
sua alma, com a ajuda de alguém compreensivo e em quem
confiava.
Finalmente, embora por caminhos indiretos, a conversa
sempre retornava ao mesmo ponto.
— Não há esperanças de você readquirir a posse da criança?
— David perguntou.
— Não — Brenna replicou. — Nem a rainha Henrietta Maria
conseguiu me ajudar. O rei não abre mão dessa exigência. Ele
decretou que Robert não deixará a Inglaterra. Todos, finalmente,
concordaram em retirar as acusações contra mim se eu voltar
definitivamente para a minha família e, pelo menos em parte,
apagar a mancha sobre o nome Villiers.

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

— Então, você não tem escolha, Brenna — David disse com


suavidade e com os olhos tão apertados que ela mal podia ver as
pupilas. — Deixe Rory ir, Brenna, pois ele acabará morrendo se
continuar na França.

CAPITULO XLI

Meu amor, minha querida! — exclamou Rory entrando no


quarto, erguendo Brenna nos braços e rodopiando com ela. —
Vista-se com as sedas mais finas, faça as criadas arranjarem-lhe
um penteado elegante e cubra-se com todas as suas jóias.
— Por quê? E me ponha no chão! Você me aperta tanto que
fico sem ar.
— O teatro privativo no Palais Cardinal de Richelieu ficou
pronto e ele nos convidou, a mim, a você e a David, para irmos lá
esta noite. Ele mesmo virá nos buscar e, como a realeza, veremos
o pomposo Montfleury representar!
Brenna percebeu que grande parte da efusividade de Rory não
passava de uma tentativa dele de animar-lhe o estado de espírito,
contudo ela valorizava essa oportunidade de se vestir com
elegância e sair de casa. O ambiente, desde a chegada de David,
era de depressão e pessimismo.
Ela passou boa parte da tarde banhando-se e perfumando o
corpo. As criadas arrumaram-lhe os cabelos negros em camadas
de pequeninos cachos no alto da cabeça e, depois de muita inde-
cisão, escolheu o vestido que usaria. Ele era vermelho-escuro, de
seda finíssima, com pregas bordadas em ouro e uma tira fininha
de pele à volta da bainha e do decote baixo e quadrado.

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The Survivors
OS AVENTUREIROS

Quando ficou pronta, o ruído de carruagens já interrompia o


silêncio da noite em frente ao portão. Um último exame no
espelho a deixou satisfeita. Parte dos seios aparecia com discrição
e fascínio no decote, o penteado dos cabelos negros realçava a
beleza do rosto e os brincos de brilhante refletiam a luz a cada
movimento seu.
Não havia dúvida de que Brenna havia se transformado numa
mulher de grande beleza. Como esposa, mãe e até amante, havia
enfrentado duras lutas, porém sobrevivera. Inclinou-se um pouco
para o espelho e viu as pequeninas rugas que já começavam a
aparecer nos cantos dos olhos.
— E então — disse em voz alta para o próprio reflexo — o que
queria? E o conjunto todo que O’Hara ama e talvez, esta noite,
ele o encontre novamente.
Com essa idéia em mente, Brenna desceu as escadas com uma
alegria há muito não sentida.
Sua entrada na sala foi imponente e despertou a admiração
geral. A frente de Richelieu, ela se curvou e disse com um sorriso:
— Eminência, esta será uma noite para ser lembrada!
— E a adorável senhora é uma mulher para não ser esquecida!
— o cardeal respondeu galanteador.
O bom humor de Brenna contagiou a todos e quando os
quatro, seguidos pelo enorme cão irlandês do cardeal, deixaram a
casa, o som do riso enchia o ar. Até a expressão severa de
Richelieu se abrandava com um sorriso. Ele dispensou o lacaio e
fez questão de ajudar Brenna a subir na carruagem.
Ela mal havia colocado o pé no degrau quando o pesadelo co-
meçou. Não duraria mais do que uns poucos momentos, no
entanto as conseqüências mudariam suas vidas para sempre.
O homem alto e grisalho, que seguia constantemente os
passos de Brenna, surgiu das sombras atrás da carruagem. Rory o
reconheceu logo e tentou bloquear-lhe a passagem.
— René, você está se tornando importuno.
De Gramont, com um brilho estranho no olhar, empurrou
O’Hara e aproximou-se de Talbot. Levantou ambas as mãos que

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Mary Canon –
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OS AVENTUREIROS

empunhavam uma pistola e, sem proferir palavra, atirou.


Brenna gritou e Richelieu, por estar mais perto, tentou atacar
de Gramont com a bengala de cabo de ouro. René, porém, deu-
lhe um golpe com o cano da pistola e o derrubou, para em
seguida sacar uma segunda arma e apontá-la para Brenna.
— Você não me enfeitiçará mais, Shanna! — gritou ele.
Horrorizado, Rory percebeu que a distorção da mente de
René era tão grande que a simples presença de Talbot e a
semelhança de Brenna com Shanna o haviam levado a cometer
um assassinato.
Pulou para a frente e bateu no braço de Gramont, provocando
novo disparo. Brenna gritou outra vez e a bala entranhou-se no
forro de veludo da porta aberta da carruagem, perto de sua mão.
Com um rosnar surdo e amedrontador, o enorme cão irlandês
de Richelieu passou por Rory e, então, sem ruído algum, Diable
atirou-se a garganta de René. A ferocidade do animal era tão
grande que nem três guardas do cardeal conseguiram dominá-lo
Ele só se desprendeu da vítima quando Richelieu o chamou a
Seu lado.
Rory se ajoelhou ao lado do corpo de David Talbot. Com os
ombros sacudidos pela tristeza e pelo choque, tomou a cabeça do
amigo entre os braços e fitou os olhos sem vida
Richelieu fez o sinal da cruz sobre os dois mortos e o único
ruído que se ouvia era o de sua oração silenciosa
Finalmente Rory desviou o olhar de David para René e em
seguida, fitou Brenna. Imóvel como uma estátua, ela continuava
no degrau da carruagem, com o rosto banhado em lágrimas
— Deus amantíssimo, eu matei a ambos — gemeu ele — Se
ao menos tivesse sido capaz de ajudar René, esta tragédia não
teria sido capaz de ajudar René, esta estratégia não teria
acontecido. A morte dos dois pesará para sempre sobre minha
cabeça.

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OS AVENTUREIROS

CAPITULO XLII

IRLANDA

O lugar de descanso eterno de sir David Talbot conferiu-lhe a


honra que merecia e teria desejado. Ele foi sepultado na pequena
capela de Ballylee, bem em frente ao jazigo de Shane O’Hara e
sua amada esposa, Deirdre.
Rory encomendou a um escultor a inscrição simples: "Sir
David Talbot, Nascido Escocês. Morreu Clamando pela Alma
Irlandesa"
Não poderia haver palavras mais adequadas, pois fora justa-
mente isso que fizera na viagem a Paris. Ele clamara a O’Hara
que voltasse para a terra. Durante dias seguidos após o
sepultamento, um número incontável de homens, mulheres e
crianças vinha rezar à beira do túmulo. David Talbot recebia
depois de morto o reconhecimento e a reverência reservados
apenas aos irlandeses e que lhe haviam sido negados em vida.
Shanna aceitou a morte do marido com um estoicismo que, a
princípio, desconcertou e até enfureceu Rory. Mas depois com-

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OS AVENTUREIROS

preendeu que a irmã, como Talbot sempre afirmava, era uma


mulher muito forte.
— Ele teve uma vida completa e morreu como um homem
bom — Shanna dissera durante o sepultamento. — Ele nos deu
duas filhas lindíssimas e um filho forte. David me restituiu
Ballylee e me proporcionou anos de felicidade e amor. Um ho-
mem não poderia exigir muito mais da vida e nem uma mulher,
do seu companheiro.
Aileen abalou-se mais com a morte do pai do que as crianças
e O”Hara, considerando-a como uma irmã mais nova, tomou a si
o encargo de amenizar-lhe a tristeza. Passavam muito tempo
juntos, passeando pelas colinas e charnecas. Conversavam
bastante e logo ele descobriu que, como uma verdadeira
irlandesa, seu estado de espírito flutuava. Num momento, Aileen
podia se encontrar no auge da euforia e, no seguinte, no mais
profundo desânimo.
Rory constatou ainda que gostava da companhia de Aileen.
Da mesma forma que Shanna, ela amava a terra e não se cansava
de falar dela. As cartas que a irmã lhe escrevera para a França não
fugiam da verdade ao descrever a beleza da moça. Os cabelos
loiros de Aileen pareciam-se mesmo com o trigo maduro, porém
possuíam um brilho dourado muito especial, ainda mais quando
ela corria ao sol.
— Por que será — Rory perguntou um dia — que você ainda
não se casou?

— Já fui cortejada — Aileen respondeu baixinho, com o rosto


virado para outro lado.
— Contudo, não se casou — insistiu ele. Aileen volveu a
cabeça e, ao fitá-lo, seu olhar expressava tanta franqueza que
Rory foi obrigado a desviar o dele.
— Não me interesso ou gosto de rapazolas — confessou ela
com simplicidade.
A noite desse dia, Rory conversou com Shanna a respeito de
Aileen.

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OS AVENTUREIROS

— É verdade, ela está mais do que pronta para receber um


homem — a irmã concordou.
— E por que não se casa?
— Ela está esperando.
— Deus do céu, pelo quê?
— Para o inferno, Rory O’Hara! Você não passa de um grande
tolo. Só um cego não veria o que os olhos de Aileen expressam
quando fitam você.
— Bobagem! — gritou Rory. — Ela não passa de uma criança
e eu já começo a ter cabelos brancos.
Mas ao sair de casa, batendo os pés, havia um rubor profundo
no rosto dele.
Os sinais estavam todos à volta de Rory e se tornavam mais
aparentes a cada novo dia. A sólida estrutura de Ballylee
começava a esfarelar, pois o tecido que a mantinha unida, isto é,
o povo, já mostrava falhas, muito embora a vasta fortuna
acumulada por Talbot continuasse segura. Como havia feito
através de toda a Irlanda, Rory saiu para percorrer a propriedade.
Quando já voltava, ele procurou o velho pastor de ovelhas, de
cabelos e barbas vermelhos entremeados de fios prateados,
O’Higgin. Encontrou-o sozinho, entre o seu rebanho.
— Deus salve a todos neste lugar — Rory saudou à maneira
tradicional.
— E a milorde também.
— Não sou um lorde, O’Higgin, apenas Rory O’Hara, o fazen-
deiro de Ballylee.
— Para nós, nesta terra, o senhor é The O’Hara, lorde de Bal-
lylee. Gostaria de compartilhar da minha refeição e do meu ca-
chimbo, milorde?
— Com prazer, O’Higgin.
Rory se lavou enquanto o velho pastor preparava os
alimentos. Foi uma refeição simples, mas deliciosa, de que
constavam carne de carneiro, pãezinhos de aveia, batatas e
coalhada. Enquanto a saboreava, O’Hara comentou:
— Você cozinha bem, O’Higgin.

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OS AVENTUREIROS

— Comida modesta e fácil de preparar.


— Por que você não tem uma mulher?
— Enterrei três. Na minha idade, é o suficiente.
— E quanto a filhos?
— Oito. Três filhas. Morreram ao dar à luz.
— Os filhos por onde andam?
— Mortos nas velhas lutas.
O resto da refeição foi feito em silêncio. Quando terminaram,
ergueram-se e foram para a porta da choupana. O’Higgin
acendeu dois cachimbos e passou um a Roíy. Entre baforadas,
sorviam goles de uma bebida caseira forte, servida em canecas de
barro, e viam os raios de sol transformar os campos verdes em
vermelho e laranja.
— Um dia, as lutas voltarão com toda certeza, muito embora
não seja num futuro próximo — O’Hara disse.
— Tem razão — O’Higgin concordou. — Não há saída.
— O escocês morreu.
— Ouvi contar. Acho que era um bom homem. Que Deus o
tenha. O sol já desaparecera e o cinza do anoitecer começava a
cobrir os campos.
— O escocês era protestante, mas creio que irlandês de
coração — Rory falou depois de algum silêncio.
O’Higgin pensou sobre isso por um longo tempo antes de
falar.
— Dizem que a fé faz parte do ar que respiramos. É ela que
dá ao homem coragem e satisfação pela vida e que não o deixa
sentir medo da pobreza, da dor e até da morte.
— Fé em quê, velho homem?
— Na terra, em nós mesmos e em Deus.
— Você é um homem bom, O’Higgin.
— Obrigado, milorde.
— Amanhã eu gostaria que você levasse o seu rebanho para
perto da casa-grande. Vou me afastar por uns tempos e deveria
haver um homem bom com quem as mulheres pudessem contar
Você faria isso, O’Higgin?

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OS AVENTUREIROS

— Faria, sim, milorde.

CAPITULO XLIII

FRANÇA

Com a ida de Rory à Irlanda e a morte trágica de David


Talbot, o amigo querido, Brenna ficou completamente só em
Paris. A solidão e a saudade do filho, da família e da Inglaterra
tornaram-se quase insuportáveis.
Esses sentimentos provocaram-lhe uma vontade muito
grande de voltar a Fontevrault. Precisava desesperadamente
conversar com alguém que pudesse ajudá-la a analisar seus
problemas e, talvez, a encontrar respostas às perguntas que lhe
atormentavam a mente e o coração.
Enviou uma mensagem à irmã Anna pedindo-lhe permissão
para ir à abadia e recebeu uma pronta resposta. Deixou uma nota
para O’Hara avisando-o de onde se encontrava e partiu à noite

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OS AVENTUREIROS

daquele mesmo dia.


A irmã Anna pouco, ou nada, havia envelhecido e em algumas
horas fez Brenna sentir ter encontrado o lugar mais cheio de paz
do mundo. As tempestades que lhe assolavam a vida
desapareciam por encanto quando se encontrava na presença da
velha abadessa e, pela primeira vez em muitos anos, ela se viu
capaz de procurar pelo seu verdadeiro "eu".
Como desejasse saber mais sobre a história de seu
nascimento, contou à irmã Anna a descoberta da verdade e
pediu-lhe que lhe relatasse tudo que era de seu conhecimento.
— Esta noite, minha menina, eu rezarei e, amanhã,
conversaremos.
Foram longas horas de perguntas e explicações, mas, no final,
Brenna percebeu que compreendia e apreciava a mãe. Sabia que
jamais poderia concordar com ela, porém agora entendia muitas
das atitudes de Elizabeth e as razões que a haviam motivado.
Durante a sua permanência na abadia, sua serenidade interior
era tão grande que, quando lhe chegou às mãos uma carta do
visconde Poole, conseguiu lê-la com absoluta calma. Raymond
havia se recobrado do abalo nervoso que por tanto tempo o ator-
mentara e tinha reassumido o comando dos negócios. Ele
aceitara seu lugar na Câmara dos Lordes e conseguira obter
lucros com as propriedades dos dois.
Ao se aproximar do fim da carta, Brenna não pôde mais
conter as lágrimas.e assim, minha querida Brenna, gostaria de
que soubesse que nunca, em toda a minha vida, amei outra
mulher a não ser você. Se conseguir, em seu coração, esquecer o
passado, saiba que eu já o fiz.
Eu lhe suplico, caríssima Brenna, volte para a Inglaterra, para
mim e para o nosso filho. Raymond."
Brenna leu a releu a carta até que o papel ficasse úmido com
suas lágrimas.
Na tarde seguinte, chegou um mensageiro com a notícia da
vinda de Rory O”Hara. Ele estaria em Fontevrault dentro de três
dias.

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OS AVENTUREIROS

Eles se encontraram, sozinhos, numa pequena alcova ao lado


da capela e, antes de trocarem a primeira palavra, já sabiam qual
seria o desenlace.
O’Hara lutou à procura de palavras e, ao encontrá-las, não
conseguiu pronunciá-las, pois elas lhe travavam a garganta. Os
olhos se enchiam de lágrimas cada vez que os pousava nas
feições calmas e cheias de determinação de Brenna. Ela
demonstrava uma serenidade que Rory não via há muitos anos,
desde as noites distantes no chalé de Hounslow.
Brenna sabia que Rory percebia seu estado interior e se en-
tristecia por ele não se sentir da mesma maneira. Via a expressão
de tortura naqueles olhos negros quando encontravam os seus e
fugiam desesperados. Ela adivinhava os pensamentos que lhe
atormentavam a mente, pois eles se refletiam na expressão
angustiada. Todavia tinha certeza de que ele, um dia, também
encontraria a serenidade que a dominava.
Ali em pé, tentando ordenar os próprios pensamentos, as pa-
lavras de The O’Donnell ressoaram em sua mente com tal clareza
que ela seria capaz de repeti-las em voz alta.
"Tudo no mundo que merece o amor de um homem é uma
boa mulher e a terra. Esta última é o único bem que ele poderá
deixar para os filhos. Não se esqueçam disso, pois sem ela, a sua
descendência não terá razão para permanecer na terra.
E então, ainda com o eco das palavras de O’Donnell a ressoar-
lhe na mente, Brenna falou a Rory:
— E tão estranho este bem maravilhoso que possuí. Na minha
vida, amei, não, amo dois homens. E eles são tão diferentes. Um
é Raymond, porém você foi destinado a ser The O’Hara e, ao
nascer, já representava uma lenda. Até este dia, imaginei ter
vivido muitas lutas, mas, agora, olho ao meu redor e já não me
sinto tão segura disso. Você era apenas um menino quando viu
Ballylee ser reduzido a escombros, sua família dizimada e a sua
terra e o seu lar roubados. Você tem um nome que acarreta
privilégios e deveres, Rory O’Hara, todavia não passa de um
homem mortal. Chegará o dia em que terá de enfrentar esse fato,

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OS AVENTUREIROS

e eu já posso vê-lo. Então, meu querido amor, com a mesma


certeza com que afirmo a existência de Deus, sei que não terei
forças para suportar a provação.
Brenna fez uma pausa e enxugou os olhos com o lencinho.
Mesmo através das lágrimas, o sorriso persistia.
— Raymond tem sido protegido a vida toda como um
cavalheiro inglês, da mesma forma que eu na posição de uma
dama inglesa. Minha mãe poderia ter competido com um
homem igual a você, aliás coisa que fez e eu fui o resultado.
Temo não ter, em minhas veias, quantidade suficiente do
impetuoso sangue irlandês. Lembro-me quando o querido David
falava da Irlanda ardente, e eu estremecia de medo, o que
continua acontecendo nas ocasiões em que você, meu querido
Rory, também se refere à sua terra da mesma forma.
Brenna aproximou-se de Rory e tocou-lhe os lábios com os
seus de maneira suave e meiga.
— Eu sempre vou te amar — murmurou ele tomando-a nos
braços pela última vez.
— E eu a você. Quero ainda que saiba uma coisa, irlandês. Se
depender da minha vontade, o seu filho saberá, um dia, que nas
veias dele corre o sangue dos altivos O’Hara.

CAPITULO XLIV

IRLANDA

Rory O’Hara encontrava-se em pé no passadiço da muralha,


olhando através da charneca e das colinas ondulantes para a
tempestade que se formava. O vento forte agitava-lhe o manto
pesado e as primeiras gotas de chuva fustigavam seu rosto.
Ele estava ali há horas, como fazia todos os dias ao
entardecer, desde a sua volta.
Ouviu o ruído de sapatilhas nos degraus de pedra atrás de si,
porém não se virou, pois sabia a quem pertenciam.
Aileen parou atrás e um pouco acima dele, a capa enrolada

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OS AVENTUREIROS

com firmeza à volta do corpo e os cabelos loiros e longos


esvoaçando-lhe nas faces. O sorriso calmo de solene
determinação refletia seus pensamentos.
"Não sou mais uma criança, Rory O’Hara, e sim uma mulher
com paixão no corpo e amor no coração. Sei das lágrimas que
você verteu e das mágoas que suportou. Acredite em mim,
O’Hara, quando afirmo que poderei curá-las."
Devagar, Aileen se aproximou até ficar ao lado dele.
— É uma terra linda — murmurou ela com suavidade.
— E Ballylee é a parte mais linda dela — Rory afirmou.
— O grande sonho de meu pai era que sempre existisse um
O’Hara em Ballylee.
— Eu sei. Muitas vezes ele me revelou essa vontade.
— Para isso acontecer, você deve ter filhos, O’Hara.
Rory se virou e inclinou a cabeça para fitá-la. O amor estava
lá, no fundo de seus olhos azuis, e O’Hara não podia e nem
desejava mais lutar contra ele.
— Eu jamais farei com que se esqueça dela, mas você nunca
se arrependerá por eu ter tomado o seu lugar — Aileen
prometeu.
Rory não disse nada. Virou-se e contemplou Ballylee. "Sou
The O’Hara, senhor de tudo que vejo." Devagar, o braço dele
escorregou sob a capa e trouxe o corpo delicado e palpitante de
encontro ao seu.
— Nós faremos filhos fortes e bons, O’Hara, filhos da terra!
— Isso nós faremos. Faremos, sim.

FIM

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