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Em fevereiro de 2021, eu dirigia em uma rodovia em


Los Angeles quando notei meus pés dormentes. Não
sentia mais o pedal. Em questão de milésimos de
segundos a dormência chegou às mãos e deixei de
sentir, também, o volante.

Eu estava sozinha, a uma velocidade aproximada de


100 km/h, e não conseguia controlar o carro. Então
me entreguei. "Vou morrer", pensei. "É isso. Vou bater
o carro e morrer".

O sentimento era de total vulnerabilidade,


desamparo e surpresa — afinal, aquilo veio do nada.
Não conseguia entender por que meus pés e mãos
estavam dormentes, o motivo de não ter controle
sobre mais nada.

Então, de uma maneira que não sei explicar,


consegui embicar o carro para a direita e parar no
acostamento. Àquela altura, já podia sentir as mãos
novamente. Aos prantos, telefonei para a minha mãe
— assim como eu e meu marido, ela também mora
em Los Angeles.

Nas pistas, os carros continuavam a trafegar em alta


velocidade. O barulho dos motores e dos pneus dos
veículos deslizando sobre o asfalto soava
enlouquecedor. Com minha mãe do outro lado da
linha, só chorava, chorava e chorava.

A sensação era de que nunca mais eu seria capaz


de sair dali.

"Calma, filha. Eu posso ir ao seu encontro", minha


mãe dizia, tentando me tirar daquele estado. Ao
mesmo tempo em que chorava, eu rezava. Pouco a
pouco, fui me acalmando e, depois de alguns
minutos, pude retornar para a pista.

Quando finalmente cheguei em casa, saí do carro


decidida a nunca mais dirigir.

A descoberta
Aquela não foi a minha primeira crise de pânico. Mas
foi a primeira em que, por causa dela, minha vida
correu risco.

Não que, antes, eu não sentisse que fosse morrer.


Sentia, mas de um outro jeito. Os sintomas do pânico
se confundem com os de um infarto — falta de ar,
taquicardia, pressão no peito. Eu os enfrentava de
maneira mais intensa desde 2019.

Em 2020, outros sintomas somaram-se aos do


pânico. Passei a ter perdas de memória, dificuldade
de concentração, fadiga crônica. Também comecei
a ter problemas na visão e dores musculares tão
intensas que me tornei incapaz de subir escadas.
Sofria dificuldades para andar e até para falar — as
palavras não acompanhavam o pensamento.

Minhas limitações físicas e motoras foram se


agravando rapidamente. Na época, estava envolvida
com a edição do meu filme, o documentário "Eu", em
que investigava justamente a minha saúde mental.
Não havia como editar sem enxergar; decidi, então,
parar de trabalhar e cuidar de mim.

Após uma série de exames, soube que tinha o vírus


Epstein-Barr em estado crônico. Além de sintomas
como cansaço e dores, o vírus provoca, também,
ansiedade e pânico. Na sequência à descoberta do
vírus, recebi outro diagnóstico, provavelmente
relacionado ao primeiro: esclerose múltipla, o que
explicava parte das minhas limitações físicas.

O tratamento
O diagnóstico não me assustou. A verdade é que,
logo após saber do vírus, passei a estudar sobre o
tema com afinco. Li uma porção de livros técnicos e
logo aprendi sobre a possível relação entre a
infecção e a esclerose — tanto assim que a
sugestão para que examinássemos se eu tinha a
doença partiu de mim, não dos médicos. Eu sabia,
também, que o diagnóstico não era o fim do mundo,
que o processo era reversível.

Os médicos me recomendaram um tratamento


focado na alimentação. Até então, eu comia muita
porcaria. Além disso, engolia na pressa, falando, não
pensava que o alimento ia entrar dentro de mim e
me fornecer nutrientes. Passei, então, a olhar para a
comida com gratidão. Fiz um trabalho de
conscientização alimentar, aprendi sobre nutrição e
sobre o valor de cada alimento.

Como estava em um estágio inicial da doença, meu


corpo respondeu bem ao tratamento. Foram seis
meses me livrando de um estado inflamatório por
meio da alimentação. Foi uma desintoxicação tão
poderosa que meu corpo, por assim dizer, resetou.
Fortaleci o sistema imunológico e ele parou de
atacar.

Antes de receber o diagnóstico, quando ainda não


atribuía uma causa aos meus sintomas, senti medo.
Mas, ao entender contra o que eu estava lutando, a
insegurança passou.

No meu processo de autoconhecimento, aprendi


que tudo começa na mente. É preciso manter-se
positiva para que o tratamento flua mais rápido, dê
certo. Na luta contra a doença, só havia espaço, na
minha mente e no meu corpo, para a cura. Foquei
nisso. Sou obstinada em tudo o que faço.

A dor
Meu marido foi a pessoa mais importante para mim
nesse período. Meu porto seguro. Ali, tive a maior
confirmação do amor dele por mim. Aprendi sobre o
poder da família e a importância das relações
sinceras. Esse aprendizado fez com que eu
mudasse minha vida por completo. Antes, o trabalho
era minha prioridade. Hoje, a família vem em
primeiro lugar.

Nunca havia tido senso de família. Na minha vida,


essa imagem foi quebrada. Não tive, por exemplo,
nenhuma convivência com o meu pai, enquanto
crescia. Não temos uma relação difícil, porque não
temos relação. Mas também aprendi que é preciso
trabalhar inclusive, essa ausência de relação —
aceitar que a ausência paterna, na minha trajetória,
faz parte de quem sou. E processar essa falta para
seguir adiante.

Isso não me impede de sentir uma imensa gratidão


imensa por ele. Sem meus pais, eu não estaria aqui.
Hoje sei que as pessoas dão o que têm para dar, e
precisamos agradecer a elas por isso. Afinal, a
pessoa está dando a você tudo o que tem.

Nos meses em que me voltei para mim e decidi não


dividir o que estava vivendo —porque, afinal, estava
confusa, precisando de recolhimento—, amigos me
julgaram. Chamaram-me de egoísta. Naquela hora
doeu, mas entendi o seguinte: o que pessoas falam
sobre nós não nos define. É sobre elas.

A aceitação
Tenho dificuldade em lidar com redes sociais. Elas
me geram ansiedade. No momento, estou ativa por
causa da divulgação do filme "Eu", disponível na
plataforma Aquarius. Mas, findo esse período, vou
dar um tempo.

Essa questão das redes sociais me acompanha há


tempos, todos os projetos da minha produtora são
voltados à saúde mental. Fiz um curta nos Estados
Unidos sobre detox digital. Quando se cresce da
maneira como cresci, sob os holofotes, com
expectativas depositadas sobre si, é fácil perder-se
da própria essência. As redes sociais têm inúmeras
vantagens, mas há nelas muita ilusão, imagens
falsas, um glamour que não existe na vida real.

Meu cotidiano é simples. Vivo em um rancho, no


meio da natureza. Passo o dia descalça, cuidando
das plantas e dos cachorros que resgatei da rua. Se
não tenho compromisso, passo semana sem fazer as
unhas. A vaidade já me consumiu — agora, não
mais. Não me levo mais tão a sério, não tento provar
minhas conquistas, ou que estou certa.

A natureza me ensina muito sobre simplicidade.


Gosto de observar o movimento do vento, as árvores
dando frutos, os ninhos, os bichos que se alimentam
de outros bichos, as cores das estações. A natureza
é de uma engenharia perfeita. Se meu corpo faz
parte da natureza, ele também vai funcionar
perfeitamente.

A independência
No início de 2022, um grupo de amigos que eu não
encontrava fazia tempo me convidou para jantar.
Meu marido estava viajando. Eu queria vê-los. Mas o
trajeto entre a minha casa e a deles incluía a
autoestrada em Los Angeles onde, um ano antes, eu
quase morri. Desde aquela ocasião, eu nunca mais
havia pegado na direção.

Mas decidi ir. Dirigindo. Antes, certifiquei-me de que


não voltaria tarde, para não enfrentar a autoestrada
no escuro. No trecho de ida, telefonei para minha
mãe. "Estou bem, estou conseguindo", eu disse.

O jantar foi maravilhoso. Mas o retorno foi mais tenso


do que a ida. Decidi não colocar nenhuma música
no carro, queria me concentrar totalmente na
rodovia. Quilômetro após quilômetro, fui vencendo a
jornada, dizendo a mim mesma que, no final, ia dar
certo.

Quando desliguei a chave do carro, em casa,


desabei. Veio-me à mente a lembrança do dia em
que, recém-saída da adolescência, eu tirei a carta
de motorista. Na ocasião, chorei de felicidade,
celebrei a conquista da independência.

Naquela noite em Los Angeles, chorei —de alegria e


alívio— pelo mesmo motivo.

Perto de completar 40 anos, eu havia reconquistado


a independência perdida.

Reportagem: Adriana Negreiros | Arte: Deborah Faleiros | Motion:


Leonardo Rodrigues | Edição de texto: Paula Rodrigues
Publicado em 21 de setembro de 2023.

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